COMPORTAMENTO AMBIENTAL DA IDENTIDADE BRASILEIRA: O DESENVOLVIMENTISMO COM O QUAL NOS ENVOLVEM André Geraldo Soares Educador ambiental, mestre em Sociologia Política Florianópolis, julho de 2003 RESUMO O presente texto aborda a questão da formação da identidade do povo brasileiro na sua relação com o comportamento em ambiente. Inicialmente se vincula a história do Brasil a um desdobramento da história européia; em seguida é feito um rápido levantamento, em autores nacionais, de teorias sobre a identidade brasileira; ao final, a identidade brasileira é vinculada ao imaginário central do desenvolvimento produzido pelos países que exercem domínio, de diversas formas, sobre os países periféricos. Sugere-se, como conclusão, que a autenticidade da cultura brasileira seja constantemente afirmada interna e externamente. 1. A CONTINUIDADE DA HISTÓRIA EUROPÉIA NO BRASIL A importância que se dá ao passado histórico-social de um povo (ou de uma cultura, sociedade, região ou outro recorte de pesquisa) parece ser crescente. Os povos atualmente encontram-se em condições diferentes para compreenderem tanto seu passado quanto o que seja a história. Se comparado com as épocas mais remotas, principalmente anteriores ao renascimento, vivemos hoje em outra dinâmica temporal. Contemporaneamente a história se “desenrola” de uma forma diferente de como o fazia em outras épocas, com um outro ritmo e velocidade de mudanças. Hoje o mundo, a cada dia, acorda outro muito mais do que acordava em cada uma de suas “épocas” passadas. Relevante é a consciência que se instaura, de modo cada vez mais acentuado, de que a história de cada povo está entrelaçada com a de outros (atualmente nenhum povo pode dizer que não depende de um outro – até mesmo as estimadas 60 tribos indígenas brasileiras ainda não contatadas, que têm sua sobrevivência e liberdade depositada nas mãos dos desígnios do “grande espírito” europeu). É possível, hoje, compormos a imagem de uma história da humanidade. Essa história, por sua vez, veio a se apresentar num planeta de pelo menos 4.600.000.000 de anos de idade. Aqui também nos vemos todos num mesmo caldo, nos originamos de uma mesma sopa primordial1. Essa importância conferida ao passado histórico e essa consciência, contudo, são embrionárias. Elas não se ampliarão como decorrência natural e direta das descobertas geobiológicas ou histórico-culturais. A ampliação dar-se-á pela pressão exercida por pessoas e grupos no sentido de estabelecer e firmar, na representação dos indivíduos sociais de hoje, essa imagem de vida e de história processual e interligada. O Brasil faz parte da história da humanidade, e para compreendê-lo tal como é hoje (política, ciência, religião, etc.) não basta ir a 1500: «precisamos reconstituir o conjunto da nossa formação colocando-a no amplo quadro, com seus antecedentes, destes três séculos de atividade colonizadora que caracterizam a história dos países europeus a partir do séc. XV. 1 Entre 3,8 bilhões de anos e 700 milhões de anos atrás toda a vida na Terra consistia apenas de organismos unicelulares. Todos nós, seres vivos de hoje, provimos desta mesma fonte. [...] a ocupação e o povoamento do território que constituiria o Brasil não é senão um episódio, um pequeno detalhe daquele quadro imenso» (Prado Júnior, 1986: 20). O comportamento do brasileiro em relação ao meio ambiente pode ser compreendido recorrendo-se ao modo de vida de nossos antepassados e a quê ele servia, como peças de engenho: «se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, [...] ouro, diamantes, [...] algodão, e em seguida café, para o comércio europeu» [...]. O “sentido” da evolução brasileira [...] ainda se afirma por aquele caráter inicial da colonização» (idem: 31-32). Nos formamos como uma continuidade do mundo europeu, o “grande espírito”. A julgar tanto pela nossa imitação ao modo de vida preconizado pela civilização européia, desdobrada com força em americanismo (o poder soft, simbólico), bem como pelo tratamento que eles nos dispensam (o poder hard, do político-econômico ao bélico), é fácil compreender que nossa condição de país periférico e colonizado não mudou muito. 2. A IDENTIDADE NACIONAL COMO UM CAMPO DE LUTA INTERNA E EXTERNA «Toda identidade se define em relação a algo que lhe é exterior, ela é uma diferença» (Ortiz, 1986: 7), e parece que a humanidade tem uma dificuldade de conviver com as diferenças: bairrismo, racismo, xenofobia e intolerância religiosa são algumas das manifestações de aversão à alteridade. Anteriormente à consolidação dos Estados-nações, as cidades-Estado freqüentemente invadiam umas às outras para domínio explícito. Ocorrem ainda casos de que em territórios às vezes não muito grandes, sob as mesmas leis e ordem, grupos diferentes e discordantes são forçados a conviver juntos2. Na maior parte das vezes, o domínio se dá de modo dissimulado, razão pela qual é bastante difícil identificar «quem é o artífice desta identidade e desta memória que se querem nacionais? A que grupos elas se vinculam e a que interesses elas servem?» (idem: 139). O problema é intensificado ao levarmos em conta a «posição dominada em que nos encontramos no sistema internacional» (idem: 7). Buscamos conhecer nossa identidade, mas para isso temos que nos lançar à busca da identidade dos grupos e povos estrangeiros que nos exercem dominação. Assim como a identidade nacional «é uma construção simbólica» (idem: 8), a concepção de natureza que orienta nosso comportamento em relação a ela também o é. Os grupos de interesse hegemônico procuram então modificar esses símbolos (ou mentalidades, significações, representações, mitos, ideologias – pertencentes todos ao universo do imaginário) para conseguir empreender a manutenção do status quo ou sua transformação para status que os interessem. Como os sistemas simbólicos de uma sociedade são entrelaçados – embora não ao modo da lógica matemática –, os grupos ligados à ecologia política só conseguirão o seu intento se desconstruírem não apenas os símbolos ambientais, mas também os da identidade nacional, do papel da mulher, do sistema político, do regime econômico e outras dimensões de escala cultural. A identidade brasileira é buscada em diversos caracteres. Esforçam-se alguns por encontrar aquela que se configuraria como a “essência” de um povo, que pode inclusive ser sua mestiçagem ou sua heterogeneidade. Sérgio Buarque de Holanda pretende encontrar essa identidade na cordialidade: «Já se disse, numa feliz expressão, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade – daremos ao mundo o “homem cordial” [expressão de Ribeiro Couto]. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro» (1982: 106). 2 O recente conflito na Bósnia é um exemplo. 2 Não se gabem os que leram só essa parte: «seria engano supor que essas virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade. [...] Ela pode iludir na aparência. [...] a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a sociedade. [...] Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar sua sensibilidade e suas emoções» (idem: 107). Renato Ortiz, fazendo esse levantamento, além da opinião de Holanda arrola a «tristeza», por Paulo Prado, e a «bondade», por Cassiano Ricardo (1986: 137). Jacob Bazarian (1991: 23) vai procurar algo como «traços gerais característicos» nas «bases materiais da sociedade», os quais se compõem de geográficos, demográficos, econômicos e biopsíquicos, e os amarra de forma já clássica: «É o conjunto desses fatores, que podemos chamar de infra-estrutura, que, a nosso ver, condiciona e/ou determina os traços característicos somáticos e psicológicos de um povo ou grupo étnico – chamado de caráter nacional». Bazarian segue argumentando que «os grupos sociais que nascem e crescem num ambiente onde é fácil de sobreviver (clima tropical, natureza pródiga e generosa) têm menos estímulos ou motivações para trabalhar e, portanto, progredir» (idem: 34). Uma vez que o Brasil possui duas regiões infra-estruturais distintas, os da faixa norte-nordeste possuem como características: preguicite aguda e/ou crônica, dissipação, imprevidência, improvisação, irresponsabilidade, leviandade, falta de seriedade, desapreço aos compromissos assumidos, anarco-individualismo, amoralismo, irreverência, marginalidade cultural, adaptabilidade, desrespeito pela ordem legal, picaretagem, malandragem, jogador, providencialismo, misticismo, ecletismo, sincretismo, ecumenismo ideológico, pragmatismo, cordialidade, otimista, espírito dionisíaco, carnavalesco, sentimentalismo, sensualismo, vaidade, etc (características analisadas entre as páginas 42 e 51 do mesmo livro). Já os grupos sociais do sul-sudeste, aos seus olhos possuem mais virtudes: cita «uma dose maior de laboriosidade, poupança, previdência, responsabilidade, seriedade, competência, eficiência, produtividade, racionalidade e outros traços favoráveis ao progresso» (idem: 32). Na Crítica da razão tupiniquim, Roberto Gomes (1980) anda em torno do pensamento nacional analisando características tais como ecletismo, concórdia, o jeito, o apego a uma razão ornamental. A crítica composta por ele vai contra nossa subserviência ao pensamento europeu. Levantamos questões suficientes para compreendermos algo a respeito da identidade nacional, mas teremos multiplicadas as interpretações sobre o que caracteriza a brasilidade tantos quantos forem os autores, mas também precisaríamos recorrer a uma pesquisa, de opinião ou similar, para avaliar o que os brasileiros pensam do povo brasileiro. Não há como negar o peso que representa nosso passado de colonizados. Aquilo que é hoje nosso território foi “limpo” dos entraves humanos ao progresso da coroa, ao mesmo tempo que provocou a mesma “limpeza” em boa parte da África. «O colono europeu», diz Prado Júnior, «viria como dirigente da produção de gêneros de grande valor comercial, como empresário de um negócio rendoso; mas só a contragosto como trabalhador. Outros trabalhariam por ele» (1986: 28-9). Na mesma direção, Holanda, contrário à tese posteriormente formulada por Bazarian (que, embora arrole aquele na bibliografia, parece não tê-lo lido), argumenta que «um fato que não se pode deixar de tomar em consideração no exame da psicologia desses povos [ibéricos] é a invencível repulsa que sempre lhes inspirou toda moral fundada no trabalho» (1982: 9); e, mais adiante: «uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobilitante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia» (idem: 10). Dentre os temas relativos ao problema da identidade de uma nação ou de um povo, é importante ainda a noção de modelo civilizacional. O ocidente vive na busca do 3 desenvolvimento das forças produtivas3, e os povos de “história fria” que obstaculizaram em algum momento esse movimento foram varridos. Os demais povos e países que sobreviveram continuam sendo dizimados, mas agora culturalmente – em velocidade cada vez maior em tempos de globalização. O que favorece o desenvolvimento, seja ele sustentável ou não – questão secundária –, é considerado bom. Demais hábitos que não se conformam a esse critério são condenados ao embargo, à intervenção ou simplesmente ao escárnio. 3. COMPORTAMENTO BRASILEIRO NO AMBIENTE: O DESENVOLVIMENTISMO «Não existe um consenso sobre meio ambiente na comunidade cientifica em geral. Supomos que o mesmo deve ocorrer fora dela. Por seu caráter difuso e variado considero então a noção de meio ambiente uma representação social» (Reigota, 1995: 14). O que orienta nosso comportamento em um lugar é a representação que dele temos. A regra social mais rígida não será cumprida sem a correspondente internalização do significado amplo que orienta sua decretação. Segundo Ortiz, «sabendo que nas sociedades primitivas o mito é o sistema que organiza o social, pode-se afirmar que a história mitológica é a história dos grupos sociais restritos que a encarnam, enquanto a ideologia seria a história da sociedade como um todo (pelo menos tenderia a sê-lo)» (Ortiz, 1986: 136). Tanto o mito quanto a ideologia são, porém, orientados por elaborações de fundo imaginário; por este motivo, essas duas modalidades do significado existencial se confundem e se entrelaçam continuamente; em sociedades heterogêneas como o Brasil, sob a mesma ideologia oficial convivem diversos grupos orientados por mitos de que podem entrar em choque com ela. O ocidente judaico cristão foi fundado sobre um mito, já celebre, expresso no Gênesis bíblico, de que o mundo foi criado para usufruto humano. Um outro mito generalizado orienta comportamentos como o estabelecimento dos parques de conservação ecológica, o que foi analisado por Antonio Carlos Diegues em O mito moderno da natureza intocada (1996). Segundo esse mito, a natureza guardada pelos parques deve permanecer isolada do mundo humano, donde devem ser retirados inclusive os moradores e povos tradicionais; com efeito, tanto no exterior quanto no Brasil essas medidas foram tomadas. Implicitamente isso significa que o mundo pode ser dividido em espaços de conservação total e em espaços onde tudo é possível de ser feito e desfeito. Na contramão desse mito, os que se colocam contrários aos parques argumentam que eles freiam o desenvolvimento. É esse, aliás, o motivo de relutância tanto dos países desenvolvidos quanto dos subdesenvolvidos em tomar medidas – que, com seu adiamento se fazem cada vez mais urgentes e radicais – coibitivas da ação predatória em escala. A noção de “desenvolvimento sustentável”, chamada como alternativa ao progresso predatório, também pode se prestar a confusões, tanto entre a população quanto entre os agentes políticos críticos. O que está por trás desse conceito de pretensões paradigmáticas é o dilema como fazer para continuarmos nos desenvolvendo e não o dilema como fazer para proteger a vida. O desenvolvimentismo, ou a ideologia do desenvolvimento, continua sendo o imaginário orientador das ações dos indivíduos da sociedade greco-ocidental sobre a natureza. O que é ou não possível e necessário ser feito, ou deixado de ser feito, é decidido, nas sociedades modernas, pelo seguinte critério: tal ação atrapalha ou não o desenvolvimento?. O povo brasileiro busca sua identidade comparando-se com os demais povos pelo critério do desenvolvimento. Esse conceito-critério foi criado no decorrer da história 3 Marx não só reconheceu essa dinâmica como construiu sua teoria contando com a continuidade dessa escalada. Castoriadis interpreta que o «imaginário central» de nossa civilização seja a «expansão ilimitada do controle racional» da natureza e dos humanos. 4 européia, da qual somos desdobramento e continuidade, e tanto governo quanto oposição política discursam constantemente em prol da nossa escalada nesse ranking. Com o passar do tempo podemos observar a consolidação de uma história própria das nações filhas da Europa (como mostram os EUA); hábitos e costumes próprios, modos de relacionamento social, valores éticos diferentes expressam uma autenticidade desvinculada da influência do passado colonial; sendo autênticos ou não, importa que se reconheçam a distinção e a herança cultural onde elas existem verdadeiramente, afirmando-as positivamente. De subalternas ou agregadas, de apêndices ou brotos europeus, os países deles derivados podem passar a ocupar, pela afirmação dessa autenticidade, uma cadeira ao seu lado no planeta – ou pelo menos, de início, um banquinho. Fazer um inventário de nossas identidades, ou achar a essencial, se isso for possível, pode ser importante. Mas essa empresa não está senão a meio caminho em direção daquilo que verdadeiramente importa: construirmos juntos o sentido de nossa existência em outras bases, pois já não é mais possível, a todos os povos e nações, continuar perseguindo os mesmos objetivos pelos quais se pautam os europeus e seus agora denominados “parceiros”. BIBLIOGRAFIA - BAZARIAN, Jacob. Porque nós, brasileiros, somos assim?: os traços característicos dos brasileiros, suas causas, suas conseqüências. 4a ed. São Paulo, Alfa-Omega, 1991. - DIEGUES, Antonio Carlos. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo, HUCITEC, 1996. - GOMES, Roberto. Crítica da razão tupiniquim. 4a. ed. São Paulo, Cortez, 1980. - HOLANDA, Sérgio Buarque de. 15a. ed. Raízes do brasil. Rio de Janeiro, José Olímpio, 1982. - LAGO, Paulo Fernando. O homem e a economia: considerações sobre recursos naturais renováveis. In: SILVA, Jaldyr B. Faustino da et alii. Fundamentos da cultura catarinense. Rio de Janeiro, Laudes, 1970. pp. 115-134. - ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 2a ed. São Paulo, Brasiliense, 1986. - PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do brasil contemporâneo. 19a ed. São Paulo, Brasiliense, 1986. - REIGOTA, Marcos. Meio ambiente e representação social. São Paulo, Cortez, 1995. 5