Bioinspiração da esperança:
venenos que curam
“... Sede prudentes como as serpentes...” (Mat 10:16)
Pelo Dr. Alvaro Antonio Alencar de Queiroz
A serpente, considerada uma antiga
divindade da Sabedoria no oriente e na
região do mar Egeu, representa em várias
mitologias, entre elas a Maia, o símbolo
universal da renovação e a regeneração
que pode conduzir para a imortalidade.
Na Antiguidade clássica, com o
avanço da alquimia, Mercúrio foi reconhecido como o protetor dessa arte e de
outras informações ocultas, em geral conhecidas como “Herméticas”. E foi assim
que a Química e a Medicina associaram
o bastão de Hermes com os discípulos
de Esculápio (em latim: Aesculapius), o
bastão envolvido por uma serpente tornou-se o moderno símbolo da medicina
(Figura 1). Durante a Reforma Protestante, a iconografia de Cosme e Damião foi
completamente substituída pela de Esculápio entre os países reformados, e o
bastão com a serpente enrolada se implantou definitivamente como o símbolo
da Medicina em todo o ocidente.
(B)
(A)
Figura 1. Estátua de Esculápio (Aesculapius) no
museu do Teatro de Epidauro, Grécia (A). Seu
bastão se tornou o símbolo da Medicina na
contemporaneidade em grande número de
países do mundo e está presente na bandeira
da Organização Mundial da Saúde (B).
Naturale
abril/maio - 2012
Os conhecimentos da Biologia Molecular e da Engenharia Genética aplicados
à obtenção de novos fármacos e medicamentos têm proporcionado uma revolução
nas ciências da saúde nas últimas duas décadas. A utilização de ferramentas de bioinformática, clonagem gênica e as purificações de proteínas de fluidos biológicos têm
permitido um avanço significativo na obtenção de novos compostos com atividade
terapêutica, particularmente para o tratamento do câncer.
Embora muitas proteínas terapêuticas possam ser produzidas utilizando equipamentos denominados fermentadores (Figura 2), é nítido que o processamento
microbiano não se mostra completamente adequado para a produção de um grande
número de proteínas bioativas em escala industrial. Isso ocorre devido à incapacidade das bactérias realizarem reações de modificações pós-sintéticas, requeridas para
a atividade biológica plena. Diante disso, para a síntese de uma série de proteínas de
interesse terapêutico, há a pertinência do uso de células animais, para que as modificações adequadas sejam realizadas. Nesse
cenário, a utilidade das
serpentes na produção
de novos fármacos a
partir de seu veneno
surge como uma perspectiva promissora para a produção de compostos com atividade
(A)
(B)
biológica altamente seFigura 2. Biorreatores do Centro de Estudos e Inovação em
letiva para algumas
Materiais Biofuncionais Avançados da UNIFEI para o cultivo de
das enfermidades que
células animais ou vegetais para a produção de compostos para
afligem o ser humano
a biomedicina (A). Em (B) são mostrados biorreatores em escala
deste século, entre elas
industrial.
o câncer.
A quimioterapia convencional para tratamento do câncer gera intensos efeitos
colaterais e isso tem estimulado a busca de novos compostos capazes de combater
a proliferação incontrolada das células tumorais.
A química do veneno de serpentes (Figura 3, página seguinte) tem atraído a
atenção dos pesquisadores e são particularmente interessantes, devido à sua forte atividade farmacológica e seletividade para tumores. Os venenos de serpentes
contêm um grupo importante de substâncias denominadas peptídeos que possuem
atividade citolítica sobre uma grande variedade de células tumorais, que podem ter
valiosa utilidade terapêutica.
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Figura 3. Extração do veneno de uma serpente. A pequena gota amarela observada é
uma rica fonte de moléculas bioativas que
podem ser de grande utilidade para o tratamento de várias enfermidades que afligem a
humanidade do século XXI, destacando-se o
tratamento do câncer.
A crotoxina (CT) é a principal toxina
presente nos venenos das serpentes da
América do Sul (Crotalus durissus terrificus)
e representa quase 50% do peso seco
do veneno sendo a primeira neurotoxina animal a ser purificada e cristalizada
(Figura 4). Demonstrou-se que esta toxina com atividade de fosfolipase (PA2)
possui atividade antitumoral capaz de
combater a proliferação incontrolada
das células tumorais. A complexa mistura química presente na crotoxina/PA2 do
veneno da cascavel tem demonstrado
uma significativa atividade contra uma
grande variedade de linhagens celulares
de tumores de origem humana sendo
observado uma atividade particularmente importante nas linhagens de células
de câncer de pulmão e mama.
(A)
(B)
Figura 4. A serpente Crotalus durissus terrificus,
conhecida popularmente como cascavel (A)
e a simulação computacional da estrutura da
proteína fosfolipase (PA2) (B) responsável pela atividade antitumoral da crotoxina.
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Os estudos da literatura têm apontado efeitos antitumorais significativos da crotoxina com efeitos terapêuticos significativamente superiores aos quimioterápicos
tradicionais, sendo já observadas algumas patentes registradas por pesquisadores
brasileiros, destacando-se entre elas, as de pesquisadores da Universidade Federal
de Itajubá – UNIFEI (INPI: PI0704648-0, 2007/2012).
Com a finalidade específica de minimizar os efeitos colaterais indesejáveis associados à utilização da crotoxina no tratamento do câncer, pesquisadores da UNIFEI
tem sintetizado microesferas e nanoesferas transportadoras da toxina (Figura 5). As
nanoesferas (ou microesferas) são ocas, o que permite o transporte de uma elevada
concentração de crotoxina até a região tumoral.
Uma vez atingida a célula neoplásica, a parede porosa das micro/nanoesferas
propicia uma liberação controlada e contínua da crotoxina, o que permite a manutenção da qualidade de vida do paciente devido à minimização dos efeitos colaterais
durante o tratamento. É a verdadeira engenharia bioinspirada ou seja, imita-se as
biomoléculas transportadoras existentes no corpo humano, as micro/nanoesferas
comportam-se como sistemas biomoleculares que mimetizando as células biológicas
levam a dose terapêutica adequada da crotoxina até o tecido doente.
As micro/nanoesferas transportadoras
da proteína crotoxina
são sistemas inteligentes com superfície cuidadosamente projetada para atuar como
uma verdadeira “bomba” de crotoxina e
contêm em sua superfície, receptores para
(B)
(A)
células tumorais além
de possuírem uma perFigura 5. Microesferas sintetizadas no Centro de Estudos e Inovação em Materiais Biofuncionais Avançados da UNIFEI para a
meabilidade controlaliberação controlada de crotoxina (A) e exemplo ilustrativo da
da. O sistema transporredução do tumor após aplicação da crotoxina imobilizada nas
tador de crotoxina é
micro/nanoesferas em modelo de experimentação animal (B). O
inteligente no sentido
sistema está patenteado no INPI (INPI: PI0704648-0, 2007/2012).
de responder a pequeAtualmente estão buscando a patente internacional.
nas variações do meio
fisiológico no qual se encontra e ao mesmo tempo, é biocompatível. Pode-se dizer
que o sistema transportador gerado pelos pesquisadores da UNIFEI é uma revolução
significativa para a biomedicina contemporânea.
A biomedicina contemporânea é um tema que gera muita esperança para a
classe menos favorecida de nossa sociedade. Seus avanços levarão ao alívio do sofrimento, ao desenvolvimento de medicamentos mais efetivos e seguros, à cura de
condições hoje intratáveis e, sobretudo, ao desenvolvimento de tecnologias amigáveis aos pobres. Entretanto, devemos recordar que a maior causa da falta de saúde
em nosso planeta é codificada pela Organização Mundial da Saúde como Z59,5, uma
doença terrível que assola o planeta cuja “arma” é o ego humano. Na Classificação
Internacional de Doenças Z59,5 significa pobreza extrema.
Em pleno século da bionanotecnologia cerca de 12 milhões de crianças com menos de cinco anos, quantidade essa igual à soma da população da Noruega e Suécia,
morrem nos países menos desenvolvidos. Milhões e milhões de anos de evolução
permitiram que a Natureza desenvolvesse uma assombrosa diversidade de soluções
de elevada complexidade que viabilizam a vida em nosso planeta. Na solidão dos
laboratórios, observa-se a Criação com o olhar de um cientista. Entretanto, a bioinspiração virá somente se, aliado a esse olhar; a humildade e o amor incondicional
pela vida biológica desse planeta estiverem presentes. Nossas universidades públicas
estão cheias desses seres. Esses seres não mudarão o mundo, não encontrarão nenhum novo Éden, mas estarão sempre a serviço do bem da humanidade.
Dr. Alvaro Antonio Alencar de Queiroz, Coordenador Científico do Centro de Estudos e Inovação em
Materiais Biofuncionais Avançados, UNIFEI.
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