Merli Leal Silva é mestre em comunicação social pela PUC-RS, professora do curso de comunicação da PUC-RS, IELUSC e ESPM-RS. Pesquisadora da área de comunicação e relações de gênero, tem diversos artigos sobre o tema publicados. Atualmente contribui com artigos mensais para a revista eletrônica do Ielusc. UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES DEPARTAMENTO DE JORNALISMO E EDITORAÇÃO CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO MEMÓRIAS VELADAS A trajetória da mulher negra da sociedade colonial à era republicana Edna de Mello Silva maio/1999 1- Introdução Quando o Brasil se prepara para comemorar seus 500 anos afloram os ideais de um país jovem e liberto de preconceitos, um “cadinho” de raças que deu origem a um povo alegre e hospitaleiro. Para entender essa história, torna-se necessário retornar às suas origens e analisar a vida de homens e mulheres que ajudaram a construir esta nação. Neste contexto, o papel histórico da mulher negra foi relevante. Presente nos trabalhos do campo ou das cidades, assumindo as tarefas domésticas, cuidando de seus filhos e muitas vezes do filho dos outros, ela foi e continua sendo um elemento importante para a economia nacional, desde a época colonial, não obstante ainda nos dias de hoje ter seus direitos sociais e sua cidadania renegados. Resgatar a história da mulher negra não é simplesmente voltar os olhos a um passado distante da realidade brasileira. Ignorada da história oficial, o conjunto de suas experiências refuta o clima de falsa cordialidade existente no Brasil, desmistificando a democracia racial já defendida até por intelectuais. A escravidão do passado deixou marcas de discriminação e preconceito. A falta de políticas sociais não permitem condições de igualdade nos setores de saúde, educação e moradia. As mulheres precisam de elementos para construir sua própria identidade e principalmente, conhecer sua história. Esse trabalho se propõe a levantar algumas considerações sobre a presença da mulher negra no Brasil, a partir do descobrimento e seus desdobramentos na época colonial até o advento da República. Trata-se de um levantamento, cujo esforço principal é a de colocar em debate o papel histórico da mulher negra, reconstruindo sua trajetória e marcando sua importância na formação da nação brasileira. 2- A chegada ao Brasil A origem história do tráfico negreiro se deu com a conquista de Ceuta, em 1415, quando Portugal iniciou sua exploração na África. Em 1444, Lançarote de Freitas realizou a primeira expedição portuguesa para o arrebanhamento de escravos, chegando na região de Lagos. As primeiras expedições foram marcadas por assaltos às aldeias, visando a dominação do povo com a utilização de armas de fogo. Homens, mulheres e crianças eram forçados a entrar nas “galeras” do navio. Muitas famílias foram separadas e houve muitas mortes pelo caminho, os corpos eram jogados no mar. A chegada em Portugal se dava com muita festa e o clero abençoava os capitães dessas expedições. O tráfico tornou-se um importante setor da economia de Portugal. Com o passar do tempo, os portugueses começaram também a entregar negros na América Espanhola, mas já não tomavam as aldeias de assalto, preferiam negociar com chefes de tribos rivais e trocar o serviço por mercadorias, o que diminuía sobremaneira o custo da expedição, pois eram necessários menos homens e os artigos eram de baixo custo (espelhos, tecidos, adornos, etc). A Igreja teve um papel fundamental no tráfico. O Papa Nicolau V, através da bula Romanus Pontifex (08/01/1455) acentuou a idéia de era preciso retirar os africanos da “servidão perpétua”, afastando-os dos deuses pagãos, batizando-os e integrando-os à sociedade cristã. Desde modo, o tráfico negreiro se camuflava de uma “aura santa”, uma verdadeira missão de cristianismo, que mesmo com a perda de muitas vidas humanas era interessante visto que as almas iriam para o céu, pois já estavam batizadas. Mais tarde, o mesmo Papa deu a D. João III, o direito ao padroado, que dava ao rei de Portugal o poder de arrebanhar “novos crentes” para a religião católica, além da permissão de cobrar e administrar os dízimos eclesiásticos, as ofertas dos fiéis para a Igreja. Há registros que indicam que as primeiras expedições portuguesas ao Brasil, de 1516 a 1526 já traziam negros escravos vindos de Portugal, tendo em vista que a presença de escravos já era comum na vida portuguesa. Apesar disso, a chegada da primeira leva de escravos vindos da África para o Brasil deu-se em 1549, na cidade de São Vicente, litoral paulista. D. João III concedeu a cada colono o direito de importar até 120 escravos para os trabalhos na colônia. É importante ressaltar que os portugueses já se utilizavam da mão-de-obra indígena, que devido à falta de adaptação ao trabalho escravo e servil e ao contágio de doenças transmitidas pelos brancos, teve sua população reduzida em poucos anos. Os povos africanos que foram trazidos para o Brasil eram originário de diversas regiões e possuíam diferentes fenotipias: • África Ocidental - Yorubas (Nagô, Ketu, Egbá), Gegês (Ewe, Fon), FantiAshanti ( conhecidas como Mina), povos islamizados ( Peuhls, Mandingas e Haussas); cor clara, cabelos ondeados, quase lisos, nariz proeminente; • África Central - povos Bantos: Bakongo, Mbundo, Ovimbundo, Bawoyo, Wili (conhecido como Congos, Angolas, Benguelas, Cabindus e Loangos); possuíam cor pardo-escura, tipo “chocolate”; • Sudeste da África Ocidental - Tongas e Changanas entre outros (conhecidos como Moçambiques); cor escura, variando até o preto retinto. O percurso entre os dois continentes durava em média 120 dias e era marcado por muito sofrimento. Havia pouca comida, pouca água e total falta de higiene. Os mercadores entupiam os navios de escravos para reduzir o custo da expedição. Os mortos eram jogados no mar, sob as bênçãos do sacerdote presente. Durante a viagem se perdiam até 20% das vidas humanas ali segregadas, porém o alto preço de cada escravo vendido compensava a perda financeira do traficante. É impossível imaginar o horror, a debilidade física e mental que essas viagens causavam aos negros que aqui chegavam. O trauma aumentava mais ainda, quando famílias eram destruídas, e os indivíduos eram aglomerados em lotes de acordo com a idade, o sexo e a força física. Pais, mães e filhos sobreviventes teriam destino incerto, pois seriam vendidos separadamente. “Desterrado de seu continente, separado de laços de relação pessoal, ignorante da língua e dos costumes, o recém chegado se transforma em boçal”.10 O quadro que os propensos compradores assistiam indiferentes era deprimente para os padrões culturais de hoje: mulheres gritando, reclamando os filhos perdidos, homens tentando desvencilhar-se das correntes, crianças assustadas e parvas. Porém, essas cenas não comoviam os interessados e o leilão começava. Antes, porém, os escravos eram maquiados “aplicava-se óleo de palma, a fim de esconder as doenças e dar brilho à pele; lustravam-se os dentes; impunham-se exercícios físicos para aumentar a flexibilidade.”11 Os negros eram vendidos como peças. Segundo Kátia Mattoso, “uma peça da África no geral era de 1,75 metro de negro. Dessa forma, cinco negros entre 10 Schwarcz, Lilia Moritz - Negras Imagens: Ensaios sobre Cultura e Escravidão no Brasil. São Paulo, EDUSP, 1996. Pág. 12 11 idem. 30 e 45 anos que somados tinham 8,34m, representavam não cinco escravos, mas 4,76m. Dois negros de 1,60m eram 3,20m de peças de escravos”.12 A área que hoje constitui hoje a Praça da Bandeira, no centro da capital paulistana foi palco desse tipo de leilão, que ocorria uma vez por semana, em 1814. Célia Lucena assim descreve a ocasião: “Logo que o sol se aprumava, chegavam ao largo os senhores de calças de brim branco engomadas, sobrecasaca, chapéu alto peto, ou um legítimo “panamá” branco, acompanhados das sinhazinhas de rostos pálidos, risonhas, mantilha de seda e vestidos repolhudos. Chocavam-se com um fileira de “mercadoria negra”, representada pelos “pais-joões” e pelas “mães-bentas” com seus assustadiços rebentos negros, que ficavam em destaque numa vitrine melancólica, à exposição da cobiça dos compradores. O leilão começava ao meio- dia, quando tocava o sino de bronze da Igreja de São Francisco; a partir desse momento senhores e senhoras circulavam. Crianças existiam em abundância e eram muito procuradas para o trabalho doméstico e para os recados urgentes. Os mais moços eram sempre mais procurados, enquanto os mais velhos eram aceitos apenas em liquidação, ou serviam para ser enviados de presente a amigos, no último dia do ano.”13 Após o leilão, o escravo acompanhava seu senhor, deixando para trás a família, os amigos ou qualquer laço que conseguiu sobreviver à travessia da viagem. Agora, o senhor que o comprou seria o dono de sua vida e decidiria onde, como e de maneira iria viver, com quem e quando iria se relacionar. O escravo era um bem que faria parte do patrimônio do senhor. Nos inventários e heranças, ele aparecia sem distinção ao lado de animais, sob a classificação de bens semoventes, apenas distinguindo-se dos bens móveis e imóveis. 3- A Mulher negra na Sociedade Colonial 12 13 Mattoso, Kátia M. de Queiróz- Ser escravo no Brasil. São Paulo, Brasiliense. S.dp. pp.88ss). Lucena, Célia Toledo. Bairro do Bexiga - A sobrevivência cultural. São Paulo, Brasiliense, 1984. Pág.23. O trabalho Os escravos estavam presentes no campo e nas cidades. Os que não eram do eito e do engenho ou da plantação de café, trabalhavam na casa do senhor nos serviços domésticos. Nas cidades, eram utilizados como meio de transporte, trabalhadores alugados, e diversas outras funções. Havia uma seleção eugênica e estética para a compra de escravas para o trabalho doméstico. Somente as de pele mais clara, corpo perfeito e de melhor aparência eram admitidas dentro de casa e exerciam diversas funções como mucamas, cozinheiras, arrumadeiras, costureiras, lavadeiras e outras atividades domésticas. Apesar de conviver mais intimamente com seus senhores, essas mulheres enfrentavam toda sorte de dificuldades como os constantes castigos da sinhá, a intolerância das crianças que desde cedo aprendiam a castigar os escravos e até mesmo atender aos desejos sexuais do senhor ou dos visitantes que se hospedassem na casa. As escravas que possuíam a cor da pele mais escura geralmente eram designadas para o trabalho do campo, fazendo o mesmo tipo de serviço dos homens e sofrendo os mesmo castigos por parte do feitor. Nas grandes cidades, além dos escravos serem absorvidos pelos trabalhos domésticos também eram explorados como “negros de ganho”. Os homens escravos eram alugados como pedreiros, barbeiros, alfaiates, funileiros, carpinteiros, vendedores ambulantes ou formas de transporte de carga ou de pessoas em palanquins. O aluguel poderia ser por serviço ou por jornada, porém todo o dinheiro era revertido para o senhor. As escravas de ganho exerciam diversas tarefas como vender quitudes e guloseimas, lavar ou engomar roupas, ser amas-de-leite, e até mesmo prostituirem-se. Algumas patroas cobriam suas escravas mais jovens (13 a 16 anos) de jóias a fim de se tornarem mais atrativas para os clientes. Todo o dinheiro era dado para a sinhá, e se porventura a escrava engravidasse o bebê era vendido e a mãe alugada como ama-de-leite. É interesse notar que na sociedade colonial o trabalho era visto como uma atividade indigna. O status social das famílias era medido de acordo com as propriedades que possuía e o número de escravos. Cabia ao senhor a tarefa de administrar seus bens e à sinházinha apenas procriar. Todos os serviços eram feitos pelos escravos e vistos com desprezo pelos senhores. O abuso sexual A mulher escrava era submetida a diversas modalidades de abusos desde sua infância. Ainda pequena, ela poderia ser escolhida para a ser a acompanhante de uma criança branca, pois era comum os padrinhos presentearem os afilhados com um escravo. Apesar do contato estreito entre amo e escravo, a relação não se dava em igualdade de direitos e muitas vezes a criança escrava era tratada como se fosse um brinquedo, sofrendo todas as maldades que uma alma infantil, desde cedo preparada para o desmando e acostumada à total satisfação de suas vontades poderiam produzir. O contato íntimo com a sinházinha algumas vezes gerava uma relação homossexual camuflada. Na sociedade colonial, a mulher branca casava aos 13,14 anos com um parceiro designado pelo pai, havia pouco respeito por seus sentimentos e um desenvolvimento sufocado de sua sexualidade. As mucamas serviam como acompanhantes, despiam, davam banho às amas, vestiam-nas, acariciavam-nas, penteavam seus cabelos, eram confidentes de seus segredos e não raro desenvolvia-se entre ambas uma relação de carícias prazeirosas para a senhora. A iniciação sexual do sinhôzinho era feita por falta dos 13, 14 anos com uma das escravas da casa. Muitas vezes, esses relacionamentos eram incentivados pela mãe do garoto que temia que ele viesse a se tornar um “maricas”. O próprio dono da casa também se servia das escravas para satisfazer seus desejos, havendo aquelas que devido à predileção do senhor eram afastadas do trabalho e se dedicavam mais intimamente a cuidar dele. É claro que a rivalidade entre senhoras brancas e escravas era constante, e muitas vezes a escrava tinha olhos furados, seios cortados, dentes quebrados e diversos castigos que a desfiguravam, motivados pelo ciúme da sinhá preterida. As escravas que trabalham fora da casa-grande enfrentavam o mesmo grau de dificuldades. As habitações destinadas ao escravos do eito eram coletivas, as senzalas abrigavam homens e mulheres. Havia a desproporção de uma mulher para quatro homens, pois acreditava-se que o homem escravo auferia mais lucros ao senhor pois trabalhava mais e não estava sujeito aos problemas da menstruação e da maternidade. Dessa forma, a mulher escrava estava desprotegida e muitas vezes era violentada pelos outros escravos e também pelo feitor. É importante deixar claro que a mulher negra, na condição de escrava, não tinha condições sequer de defender seu corpo e sua dignidade. Ela era uma coisa, uma mercadoria que poderia ser usada por quem a possuísse. Existem livros que apontam a sexualidade da mulher negra como responsável por despertar o desejo do senhor e que essa seria uma forma de ascensão e diminuição de castigos. A verdade é que não era lhe dada nenhuma alternativa a não ser lutar por sua sobrevivência. Os relacionamentos amorosos da mulher escrava também eram condicionados à autorização do senhor. Na maioria das vezes, o casamento entre negros não era apreciado pois causaria impedimento para a venda do casal em separado. Alguns senhores, incentivavam a relação entre os negros, acreditando que assim eles teriam mais motivos para ficar, visto que seria mais difícil fugir e abandonar a família. Somente em 1869 proibiu-se que se vendesse marido , mãe e filhos menores de 15 anos separados. Como constantemente eram vendidas, trocavam de senhores, e migravam para outras regiões, as mulheres escravas tinham vários parceiros durante sua vida, algumas paixões intensas e duradouras, outras saudades amortecidas e principalmente, a certeza de não serem donas de seu corpo e de seus destinos. Cabe ressaltar que a violência sexual contra a mulher escrava não era vista como uma agressão pela sociedade da época. A escrava não era gente, era um bem que podia ser vendido, trocado, alugado como qualquer outra mercadoria. A relação social presente na escravidão pressupõe que exista um senhor que é o dono, e um servo que é o escravo. O descaso para com as escravas eram tão grande que o tratamento que os médicos receitavam para rapazes já contaminados com a sífilis era o de manter relações sexuais com mulheres negras virgens de 12 a 13 anos, “não havia melhor depurativo contra a sífilis do que uma negrinha virgem”.14 A Maternidade A escrava não podia criar seus filhos, mesmo os havidos em conseqüência das relações com os senhores. ( O abolicionista Luiz Gama, foi vendido pelo próprio pai, um português, quando tinha 6 para 7 anos.) Não era interessante economicamente deixar a mulher cuidar do filho, pois a criança levaria no mínimo 8 anos para se tornar lucrativa e a mãe seria afastada do trabalho. Algumas mães eram levadas ao desespero e o infanticídio se tornava a única saída para libertar a criança e a mãe. Algumas vezes, era o próprio senhor 14 FREIRE, Gilberto- Casa-Grande e Senzala. Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 1961. Pág 441. que recomendava ao feitor se livrar do recém-nato para que a mãe pudesse ser aproveitada como ama-de-leite. Muitos bebês eram colocados na Casa da Roda ou Casa dos Enjeitados, uma organização criada em 1773, por Romão Mattos Duarte, com objetivo de recolher crianças abandonadas. A “roda” era um cilindro de madeira que girava em torno de um eixo, que continha uma parte aberta onde eram colocados os recém-nascidos e girando-se o cilindro, alguém o pegava do lado de dentro, sem que se pudesse conhecer quem os deixavam. A partir de 1775, as crianças escravas colocadas na roda eram consideradas livres, o que se tornou uma esperança de vida melhor para as mães que queriam afastar seus filhos do cativeiro. Alguns senhores permitiam que a mãe escrava tivesse seu filho junto a si, porém só por interesses econômicos, pois desde modo aumentaria o seu rebanho escravo. Era comum que os senhores até tivessem relações sexuais com a escrava, visando ao embranquecimento das crias, porque os escravos de cor mais clara tinham melhor preço no mercado. Como as mulheres brancas casavam-se muito cedo, em torno dos 12, 13 anos, geralmente aos 14 anos já eram mães. A gravidez precoce e a falta de assistência médica adequada levavam muitas jovens à morte e quando isso não acontecia a própria debilidade física e as repetidas gestações as impediam de amamentar seus filhos. Para esse serviço, eram alugadas “amas-de-leite”, escravas recém paridas que iriam alimentar com o leite de seu seio os filhos das sinhás. Algumas senhoras da cidade mantinham suas amas-de-leite bem vestidas e adornadas, pois representava um sinal de prosperidade da família. Devido ao alto contágio da sífilis, era necessário que as escravas tivessem um atestado de saúde para serem aproveitadas como amas. Gilberto Freire assim as descreve: “Peitos de mulheres sãs, rijas, cor das melhores terras agrícolas da colônia. Mulheres cor de massapê e de terra roxa. Negras e mulatas que além do leite mais farto apresentavam-se satisfazendo outras condições das muitas exigidas pelos higienistas portugueses do tempo de D. JoãoV. Dentes alvos e inteiros (nas senhoras brancas era raro encontrar-se uma de dentes sãos e pode-se afirmar, essa uma das causas principais do ciúme ou rivalidade sexual entre senhoras e mucamas. Não serem primíparas. Não terem sardas. Serem mães de filhos sadios e vivedouros.”15 Pena que muitos destes filhos sadios e vivedouros tivessem suas vidas cortadas ao nascer! A relação escrava-sinhá-bebê apesar de muito próxima era regida pelo autoritarismo presente na condição servil. Afastadas de seus filhos recémnascidos e tendo a responsabilidade de criar outro bebê não é difícil imaginar a dubiedade de sentimentos que a escrava deveria sentir em relação à família branca. Mesmo o amor e atenção dedicados à criança branca seriam poucas vezes retribuídos, pois desde a infância os sinhôzinhos/sinházinhas eram incentivados a maltratarem os escravos. Somente em 1852 com a extinção do tráfico negreiro é que a maternidade da mulher negra começou a ser incentivada, motivada pela dificuldade de se comprar mais negros e pelos altos preços que alcançavam no mercado. Os escravos livres Alguns escravos conseguiam juntar dinheiro para comprar sua carta de alforria, principalmente aqueles que viviam nas grandes cidades. O preço da alforria era fixado pelo senhor, porém sempre visando o alto lucro, muitas vezes o valor estipulado não correspondia ao preço da vigente na praça. Desta forma, o escravo com poucas exceções encontrava meio de se libertar. Mesmo quando conseguiam a carta, muitos escravos livres eram presos sob suspeita de serem escravos fugidos e a qualquer momento poderiam ser devolvidos a seus 15 Idem. Pág.503. senhores, caso fosse alegado infidelidade por parte do escravo. Eles não podiam votar, nem ter cargos, não tinham direito à cidadania. A fuga era uma forma de rebeldia contra o sistema opressor da escravatura. Mas é inútil pensar que a liberdade do escravo pudesse ser conquistada dessa forma. O escravo fugido era perseguido pelos capitães-domato, especializados nessas empreitadas e nas grandes cidades até anúncios de jornais eram feitos descrevendo o escravo e oferecendo gratificação a quem oferecesse informações sobre seu paradeiro. As penalidades para quem acoitasse um escravo fugido eram severas. Além de pagar multas, o infrator era retido por seis meses na prisão, além de ter a obrigação de ressarcir o senhor do escravo com a quantia referente aos dias que se serviu do escravo fugido. A sobrevivência dos escravos fugidos era muito difícil. Muitos deles esperam a noite chegar e roubavam alimentos nos celeiros, animais e qualquer outro mantimento de que pudessem dispor. Era comum haver estupros de mulheres brancas cuja autoria era dada aos negros fugidos. A polícia poderia parar qualquer um que se julgasse suspeito e prender para averiguações e mesmo os escravos livres não ficavam sujeitos a todo tipo de intrigas, mesmo aquelas geradas pela concorrência comercial. Os quilombos eram organizações dirigidas pelos próprios escravos que conseguiam fugir e se estabeleciam no interior das cidades, espalhados por todo o território nacional. Alguns quilombos conseguiriam progredir a ponto de ter seu reconhecimento aceito pelos fazendeiros vizinhos, porém as medidas governamentais protetoras dos direitos de propriedades dos senhores autorizaram o uso da força para a destruição completa dos quilombos. Foi o caso do Quilombo de Palmares cujo líder foi Zumbi. A abolição O Brasil foi o último país a abolir a escravidão de seu território. A conhecida “Lei Áurea” , assinada pela Princesa Isabel, em 13 de maio de 1888, foi uma reação às pressões comerciais da Inglaterra. Quando a abolição chegou vários cidades já não tinham escravos, desde fevereiro de 1888, como Tietê, Indaiatuba, Rio Claro, São Roque, Una e Sorocaba. Alguns fazendeiros já haviam aceitado pagar um salário para os escravos livres, em compensação cobravam o alojamento e a comida dispensada aos trabalhadores, que descontado do saldo deixavam o escravo em pior situação que a anterior. Com a abolição, grande parte da população escrava saiu às ruas e estradas em busca de um vida melhor, do encontro com parentes perdidos e a esperança de obter uma vida digna. Não houve nem um projeto de recolocação profissional, acesso à moradia ou ajuda às famílias dos escravos recém-libertos. 4- A mulher negra e a sociedade republicana Os ex-escravos encontraram dificuldades de se fixar tanto nas cidades e quanto campo. A maioria começou a viver da agricultura de subsistência, ocupando terras vazias ou voltaram para os antigos donos. No Sul, tiveram que conviver com a competição dos imigrantes que começam a chegar ao Brasil, principalmente vindos da Europa, os quais possuíam maior escolaridade e eram profissionais especializados. No Norte, a economia falida devido ao declínio do açúcar e o empobrecimento da região não deram tréguas e muitos tiveram que migrar para regiões mais prósperas. Neste contexto, a mulher negra teve que conviver com uma realidade parecida com a da escravidão. Algumas conseguiam se manter como lavadeiras e passadeiras, porém dependiam dos antigos senhores para encontrar serviço e receber pagamentos que muitas vezes eram fixados em alimentos. Poucas conseguiram se estabelecer como comerciantes, entre elas, as quituteiras e as cozinheiras que fixavam seus tabuleiros em pontos de passagem dos transeuntes. Uma grande parcela de jovens não conseguiam trabalho e se prostituíam para conseguir sobreviver e manter a família. De maneira geral, os ex-escravos exerciam funções pouco desejadas por outros profissionais, como a coleta de lixo, o carregamento de água das fontes, serviços ambulantes, etc. Aliados a todas essas dificuldades, as primeiras décadas da República tiveram ainda a consolidação de elaboradas teorias sobre a inferioridade racial do negro, defendidas por intelectuais da época que viam a miscigenação como a saída possível para promover o embranquecimento da nação. “Mesmo os abolicionista falavam de um processo “evolucionista” com o elemento branco triunfando gradualmente. Estavam preparados até para acelerar essa “evolução”, promovendo a imigração européia, a que eram favoráveis por dois motivos: primeiro, os europeus ajudariam a compensar a escassez de mão - de - obra resultante da eliminação do trabalho escravo, o que era tanto mais necessário quanto a taxa de reprodução da população livre de cor, era tida como insuficiente para atender às necessidades do trabalho. Em segundo lugar, a imigração ajudaria a acelerar o processo de embranqueamento no Brasil.”16 As ideías de hierarquização das raças e da superioridade da raça branca eram defendidas com foros de legitimidade científica. As elites brasileiras absorveram esse pensamento e o futuro do país era tido como incerto pois a união de raças era condenada. Enquanto havia a escravidão, a maior parte da elite dava pouca atenção ao problema da raça em si. O racismo começou a aflorar quando os negros teriam direito à mesma cidadania que os brancos e se fez necessário encontrar uma elemento diferenciador entre as partes. A cor da pele surge como atributo principal que distingue o elemento inferior. Marcos Rodrigues Silva descreve a realidade da mulher negra: “A nova realidade da mulher livre não trouxe muitas novidades ao seu modelo de vida 16 SKIDMORE, Thomaz E. - Preto no branco - Raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. social. Agora, passa a ser considerada a “empregada doméstica ou, como hoje muitas senhoras costumam dizer: “a secretária (!) da casa”. Pois bem, a mulher negra deixou a senzala e os caprichos dos senhores para morar nos cortiços e mocambos da cidade; entretanto deixou as obrigações das fazendas para servir aos “caprichos da patroa”. Tudo muda com os novos costumes adotados na sociedade capitalista atual. São novos os métodos aplicados à manutenção da mão-de-obra da mulher negra: ela teve de duplicar seu trabalho físico e encontrar as energias, através, novamente, do abuso das suas capacidades físicas e intelectuais.” 17 A mulher negra recebeu dois rótulos que a transformaram em produto para o mercado do capital: o de negra e mulata. É um maneira discriminadora que limita a participação social e controla todos os meios de ascensão econômica da mulher negra e lhe reserva uma categoria onde sua atuação é possível. Na sociedade atual, a vida da mulher negra continua presa à diversos tipos de dificuldades. A liberdade cantada pelos abolicionistas não se consolidou na prática. O estigma da cor da pele a acompanha e lhe reserva um papel secundário nas atividades profissionais, somente permitindo o acesso às ocupações que não interessam à “raça superior’ como as atividades domésticas, o serviço de faxina, etc. O serviço de ama-de-leite evoluiu para o de “ baby sitter”, porém a mulher negra ainda não tem sua maternidade garantido, devido à falta de aconselhamento pré-natal, serviço médico gratuito e condições adequadas para garantir ao seu filho o direito à vida. O abuso sexual do senhor foi substituído pelo abuso institucional do símbolo da “mulata”, presente em campanhas publicitárias, comentada em rodas de samba, estereotipada e utilizada para vender turismo sexual. 17 Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1976. Pág. 40 SILVA, Marco Rodrigues - O negro no Brasil - Histórias e Desafios. São Paulo, Ed. FTD, 1987. A vida na casa grande foi substituído pelo serviço doméstico em casas de classe média. Ainda hoje, algumas mulheres dormem no emprego. O serviço é assalariado, porém o valor é baixo e insuficiente para garantir o sustento da família. Grande número de mulheres negras criam os filhos sozinhas, o abandono, a dificuldade de manter relacionamentos duradouros ainda persiste. Os registros dos escravos da época colonial foram queimados, a pedido do Ministro Ruy Barbosa, em 1890. É difícil quantificar quantas mulheres escravas vieram para o Brasil. Ainda hoje, essa prática de “queima de arquivo” parece persistir pois há poucos documentos que elegem a mulher negra como tema de pesquisa. A partir dos anos 80, as mulheres começaram a se organizar em movimentos de defesa de cidadania e discussão de direitos, o que tem aberto algum espaço na sociedade racista de hoje. São necessários muitos empreendimentos para promover a integração da mulher negra na sociedade como a garantia à educação, à saúde, à habitação e ao trabalho. O sonho de liberdade ainda não foi alcançado mais de 110 anos após a abolição. -------------------------------------------------------- BIBLIOGRAFIA AZEVEDO, Célia Maria Marinho de - Onda Negra, medo branco - O negro no imaginário das elites - séc. XIX. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. CHIAVENATO, Júlio J. - O negro no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1987. FREIRE, Gilberto - Casa - Grande e Senzala. Editora José Olympio, São Paulo, 1961. GIACOMINI, Sonia Maria - Mulher e Escrava - uma introdução histórica ao estudo da mulher negra no Brasil. Rio de Janeiro, Vozes, 1988. GOULART, José Alípio - Da fuga ao Suicídio. Rio de Janeiro, Ed. Conquista, 1972. LEITE, Míriam Moreira - A condição Feminina no Rio de Janeiro - séc. XIX. São Paulo, Hucitec, 1984. LUCENA, Célia Toledo - Bairro do Bexiga - A sobrevivência cultural. São Paulo, Brasiliense, 1984. MAESTRI Filho, Mário José - Depoimentos de escravos brasileiros. São Paulo, Ícone, 1988. MATTOSO, Kátia M. de Queiróz- Ser escravo no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1987. MOURA, Clóvis- História do Negro Brasileiro. São Paulo, Ática, 1992. PEREIRA, Nunes - A Casa das Minas - Culto dos Voduns Jeje no Maranhão. Rio de Janeiro, Vozes, 1979. SANTOS, Ronaldo Marcos dos - Resistência e Superação do Escravismo na Província de São Paulo (1885-1888). São Paulo, IPE, 1980. SCHWARCZ, Lilia Moritz- Negras Imagens: Ensaios sobre Cultura e Escravidão