DIREITO INTERNACIONAL DE ÁGUAS NA BACIA AMAZÔNICA:
APLICAÇÃO REGIONAL DE PRINCÍPIOS DO DIREITO
INTERNACIONAL DE ÁGUAS1
Cristiane Vieira Jaccoud do Carmo Azevedo2
Mariana Suzuki Sell3
Resumo: A Bacia do Rio Amazonas, uma das maiores bacias hidrográficas
transfronteiriças do mundo e um de seus sistemas hidrográficos mais importantes,
possui o eixo de seu arcabouço jurídico-institucional fundamentado no TCA e alguns
acordos bilaterais que o seguiram. Com o aumento de interesse de desenvolvimento
econômico da região, a disciplina jurídica do uso e gestão de recursos hídricos ganha
relevância. Importa analisar, nesse contexto, a adoção e aplicação dos princípios gerais
consolidados no Direito Internacional de Águas na região, seja implícita ou
explicitamente pelos acordos e tratados, seja por sua inserção nas ações e políticas
públicas adotadas pelos países da Bacia.
INTRODUÇÃO
Há tempos a Região Amazônica ocupa posição de destaque nos fóruns
internacionais relacionados ao meio ambiente, devido à reconhecida importância de seu
patrimônio natural. As questões relacionadas a águas, em especial ao uso e gestão da
Bacia do Rio Amazonas, não receberam, até recentemente, devida atenção dos países da
região. Essa deficiência se reflete no marco jurídico desenvolvido sob a égide do
Tratado de Cooperação Amazônica, que pouco se refere ao tema, apesar de eleger a
Bacia como sua referência territorial de aplicação.
No entanto, programas de manejo sustentável em execução pela Organização do
Tratado de Cooperação Amazônica – OTCA, em parceria com agências e organismos
internacionais, referem-se especificamente aos recursos hídricos, como o Projeto
Manejo Integrado e Sustentável dos Recursos Hídricos Transfronteiriços na Bacia do
Rio Amazonas.
Outrossim, o uso e a alocação de recursos hídricos e suas implicações
ambientais têm ganhado destaque com o crescimento do interesse de integração e
desenvolvimento econômico na região da Bacia, em especial no que concerne à
expansão de vias de transporte hidroviário e à exploração de seu enorme potencial
1
Publicado em MENEZES, Wagner (Coord.), Estudos de Direito Internacional: Anais do 4º Congresso
Brasileiro de Direito Internacional, vol. VI, pp. 283/295, Curitiba: Juruá, 2006
2
Mestranda em Direito Ambiental pela Universidade Católica de Santos – UNISANTOS, onde é bolsista
CAPES; Especialista em Direito Ambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro –
PUC-Rio; Advogada, graduada pela Fundação Educacional do Vale do Itapemirim – FEVIT; Engenheira
Florestal, graduada pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES e colaboradora do Instituto de
Pesquisas Avançadas em Economia e Meio Ambeitne - Instituto Ipanema, Rio de Janeiro.
3
Mestre em Direito Internacional Público pela Universidade de Kyoto – Japão, com especialidade em
Direito Ambiental e Direito de Águas; Advogada, graduada pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro - UERJ; colaboradora do Instituto de Pesquisas Avançadas em Economia e Meio Ambeitne Instituto Ipanema, no Rio de Janeiro; membro da Câmara Técnica de Ciência e Tecnologia do Conselho
Nacional de Recursos Hídricos; coordenadora da Rede Sul-Americana de Água.
energético, como exemplificado pelos projetos planejados no âmbito da Iniciativa para a
Integração de Infra-estrutura Regional Sul Americana - IIRSA.
O presente trabalho propõe-se a analisar o marco jurídico-institucional existente
na região, em especial no que concerne a águas, sob a luz do Direito Internacional de
Águas, verificando a forma e o grau de adoção e aplicação de seus princípios na região
da Bacia do Rio Amazonas.
Outrossim, pretende-se verificar como os projetos de gestão e desenvolvimento
econômico em planejamento ou execução adequam-se aos referidos princípios ou de
que forma os contrariam ou consolidam.
I. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A BACIA AMAZÔNICA
A região amazônica é conhecida como a maior floresta tropical do mundo,
representando 56% do total mundial de florestas latifoliadas4. Extendendo-se por mais
de 7,8 milhões de km2, representa 44% do território sul americano, ocupando todo o
centro oriental da América do Sul, abrangendo áreas da Bolívia, Brasil, Colômbia,
Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela.
A maioria do território está ocupada por florestas tropicais úmidas, que se
caracterizam por apresentar uma grande biodiversidade, abrigando mais de 30.000
espécies de vegetais, cerca de 2.000 espécies de peixes, 60 espécies de répteis, 35
famílias de mamíferos e 1.800 espécies de aves, além de grandes reservas minerais5.
Esta enorme riqueza em biodiversidade é também devida às características
geográficas da região, que compreende territórios localizados entre 6.000 metros de
altitude, na Cordilheira dos Andes até o nível do mar6. Esta heterogeneidade geográfica
implica também na diversidade climática da região, que varia desde as zonas tropicais
até as temperadas, frias e frígidas, com enorme influência sobre os solos, flora, fauna e
atividades humanas.
ARAGON7 afirma que a população da região está estimada em 24 milhões de
habitantes, que cresce a mais de 3% ao ano e é composta por um mosaico heterogêneo
de povos indígenas e migrantes antigos e recentes de origem européia, asiática e
africana. Os processos recentes de ocupação têm culminado com uma população
concentrada em áreas urbanas e povoados, mas alcançando cidades que ultrapassam a
um milhão de habitantes. Todavia, cerca de 85% de sua área ainda pouco intervinda.
Segundo BOTTO 8 , a Bacia Amazônica constitui um dos mais importantes
sistemas hidrográficos do mundo. Com aproximadamente seis milhões de Km29, os rios
amazônicos despejam no Oceano Atlântico entre 200.000 e 220.000m3 de água por
segundo, o que significa entre 6,3 e 6,9 bilhões de m3 por ano, o que correponde
aproximadamente a 16% do total de água doce que entra diariamente nos oceanos. Além
disso, despejam ainda, anualmente, cerca de um bilhão de toneladas de sedimentos
4
Cf. BRAGA, Benedito, Sustanaible water-resources development of the Amazon Basin.
Cf. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA). Programas Binacionales de
Cooperación Fronteriza.
6
Cf. BOTTO, Manuel Picasso, The Amazon Cooperation Treaty: A Mechanism for Cooperation and
Sustainable Development.
7
ARAGON, Luis E., Há futuro para o desenvolvimento sustentável na Amazônia?
8
Cf. BOTTO. Manuel Picasso. The Amazon Cooperation Treaty: A Mechanism for Cooperation and
Sustainable Development.
9
Agência Nacional de Águas - ANA
5
2
férteis, que são distribuídos pela corrente do Atlântico Norte desde a costa brasileira até
a Venezuela e algumas ilhas do Caribe.
Pelo que foi brevemente exposto, pode-se perceber a região amazônica é
responsável por serviços ambientais globais significativos, como o controle do efeito
estufa, preservação do equilíbrio hídrico na atmosfera, circulação de nutrientes e
conservação da diversidade biológica e cultural.
II. O TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA
Devido à importância da bacia e do bioma, aliado ao interesse dos países
amazônicos em desenvolver economicamente suas respectivas porções, bem como,
reconhecendo a necessidade de resolver problemas vinculados à gestão ambiental e à
exploração racional dos recursos naturais, os governos de oito dos noves países que
compartilham a Bacia Amazônica, a saber, Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana,
Peru, Suriname e Venezuela formalizaram, em 03 de julho de 1978, o Tratado de
Cooperação Amazônica – TCA, cujo objetivo principal era realizar esforços e ações
conjuntas a fim de promover o desenvolvimento harmônico de seus respectivos
territórios amazônicos, de modo a que essas ações conjuntas produzam resultados
equitativos e mutuamente proveitosos, assim como para a preservação do meio
ambiente e a conservação e utilização racional dos recursos naturais desses
territórios.10
Dessa forma, encontraram no Tratado um âmbito adequado para promover a
cooperação internacional nas zonas transfronteiriças através de projetos de integração, o
qual transformou-se no principal instrumento jurídico para o desenvolvimento
harmonioso e integrado da bacia, como base de sustentação de um modelo de
complementação econômica regional que contemple o melhoramento da qualidade de
vida de seus habitantes e a conservação e utilização racional de seus recursos.
Um dos aspectos mais interessantes do TCA é a delimitação do território de sua
aplicação. Segundo o Artigo II, o Tratado se aplica nos territórios das Partes
Contratantes na Bacia Amazônica, assim como, também, em qualquer território de uma
Parte Contratante que, pelas suas características geográficas, ecológicas ou
econômicas, se considere estritamente vinculado à mesma. Nesse ínterim, outra
característica interessante é o fato de estar aberto para adesão de Estados que não fazem
parte da bacia, mas cujo território considere-se relacionado geográfica, ecológica ou
economicamente a ela. Todavia, essa disposição queda sem efeito frente ao Artigo
XXVII, que impede a adesão por terceiros.
Dentre outros aspectos contemplados pelo TCA, destaca-se a colaboração entre
os países membros para promoção de pesquisa científica e tecnológica e o intercâmbio
de informações e colaborações; serviços de saúde e melhoria das condições sanitárias;
estabelecimento de uma adequada infra-estrutura de transportes e comunicações;
incremento do emprego racional dos recursos humanos e naturais e promoção do
desenvolvimento econômico e social dos territórios; incremento do turismo e o
comércio transfronteiriço e conservação do patrimônio etnológico e arqueológico.
No que tange aos recursos hídricos, a disciplina do TCA limitou-se a assegurar a
liberdade de navegação nos rios amazônicos e a previsão (genérica) de utilização
racional dos recursos naturais, em que pese a previsão de que o uso e aproveitamento
dos recursos naturais nos respectivos territórios é direito inerente à soberania do Estado,
10
Cf. Artigo I do TCA
3
sendo que seu exercício não terá outras restrições senão as que resultem do Direito
Internacional.
Quanto à estrutura organizacional, foi previsto no bojo do TCA a criação de um
Conselho de Cooperação Amazônica11, de uma Secretaria12, de Comissões Nacionais
Permanentes13 e de Comissões Especiais14.
As medidas previstas deveriam ser adotadas mediante ações bilaterais ou de
grupos de países, com o objetivo de promover o desenvolvimento harmonioso de seus
respectivos territórios, uma vez que o TCA permite celebrar acordos sobre temas
específicos e tem a flexibilidade para ajustar-se às mudanças e necessidades de cada
região15.
II.1 O florescimento de acordos bilaterais e a ausência de preocupação com a
gestão de bacias hidrográficas transfronteiriças
A partir do final da década de 70 até o final da década de 80 foram celebrados
alguns acordos bilaterais de cooperação com a finalidade de estabelecer mecanismos
para a execução de ações fronteiriças.
O país pioneiro na formalização de acordos no âmbito do TCA foi a Colômbia,
através das parcerias Colômbia-Equador (Plano de Gerenciamento das Bacias dos Rios
San Miguel e Putumayo) e Colômbia-Peru (Plano de Desenvolvimento Integrado da
Bacia do rio Putumayo), ambos em 1979. Neste mesmo ano, ainda foi firmado o acordo
Brasil-Peru (Programa de Desenvolvimento das Comunidades Transfronteiriças Iñapari
– Assis Brasil). Posteriormente, desenvolveram-se a parceria Colômbia-Brasil (Plano
Modelo de Desenvolvimento Integrado das Comunidades Vizinhas do Eixo Tabatinga –
Apaporis), em 1981, e a parceria Bolívia-Brasil (Programa de desenvolvimento
Integrado das Comunidades Vizinhas Boliviano-Brasileiras), em 1989.
Geralmente, os objetivos dos acordos enfocavam estudos básicos e zoneamentos
sobre suas respectivas áreas e intercâmbio de informações; promoção da gestão
ambiental das respectivas áreas e incentivo ao desenvolvimento autônomo e sustentável
através da utilização correta das potencialidades e respeito às limitações dos recursos
naturais; contribuição para a melhoria da qualidade de vida da população mediante
11
O Conselho de Cooperação Amazônica seria composto por representantes diplomáticos de alto nível
dos Estados membros, com previsão de reunião anual e atribuições de velar pelo cumprimento, objetivos
do TCA e pelas decisões tomadas nas reuniões de Ministros das relações Exteriores; considerar as
iniciativas e projetos apresentados pelas partes para adoção de decisões pertinentes à realização de
estudos e projetos bi ou multilaterais, cujas decisões estivessem a cargo de decisões das Comissões
Nacionais Permanentes; avaliação do cumprimento dos projetos bi ou multilaterais e adoção de normas
para seu funcionamento, conforme Artigo XXI do TCA.
12
As funções da Secretaria estavam previstas pelo Artigo XXII do TCA, contudo, foram alteradas tendo
em vista a criação da Organização do tratado de cooperação Amazônica – OTCA, conforme se verá mais
adiante.
13
As Comissões Nacionais Permanentes estariam encarregadas da aplicação, em seus respectivos
territórios, das disposições do TCA, assim como da execução das decisões adotadas pelas reuniões dos
Ministros das Relações Exteriores e pelo Conselho de Cooperação Amazônica, sem prejuízo de outras
atividades que lhes fossem atribuídas por cada Estado, conforme Artigo XXIII do TCA. Ressalta-se que
tais Comissões já foram criadas na maioria dos países do tratado e suas estruturas organizacionais estão
adaptadas às realidades político administrativas de cada Estado.
14
Cf. Artigo XXIV.
15
Cf. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA). Programas Binacionales de
Cooperación Fronteriza.
4
geração de atividades produtivas e fontes de trabalho; melhoramento de infra-estrutura;
promoção da integração econômica; conservação da biodiversidade da região;
fortalecimento de organismos nacionais vinculados ao planejamento ambiental e ao uso
dos recursos naturais e incentivos de criação de mecanismos de trabalho
interinstitucional.16
Em que pese alguns acordos terem como delimitação microbacias
transfronteiriças, pouca ou nenhuma preocupação houve quanto à gestão dos recursos
hídricos. Estes só tornaram-se objeto de preocupação recentemente, devido à ênfase
dada pela Organização do Tratado de Cooperação Amazônica, criada com a finalidade
de fortalecer e alcançar os objetivos do TCA.
II.2 A criação da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica - OTCA e o
início da formalização de programas sobre gestão dos recursos hídricos da Bacia
Amazônica
Considerando a conveniência de aperfeiçoar e fortalecer institucionalmente os
processos de cooperação desenvolvidos, bem como, alcançar os objetivos do Tratado,
bem como, em 1995 as oito nações decidiram criar a Organização do Tratado de
Cooperação Amazônica – OTCA, dotada de personalidade jurídica com competência
para celebrar acordos com as partes contratantes, com Estados não-membros e com
outras organizações internacionais. O intuito foi formalizado em 1998, através de
protocolo de emenda ao TCA, o qual previa ainda o estabelecimento de uma Secretaria
Permanente com sede em Brasília.
A criação da OTCA como organização internacional, manteve a estrutura
organizacional inicial esboçada no TCA, todavia, aperfeiçoou e inovou em alguns
aspectos, principalmente no que tange à Secretaria, que, como mencionado, tornou-se
permanente e foi finalmente instituída em Brasília em 2002 e na criação de Comissões
Especiais da Amazônia 17 , destinadas ao estudo de problemas e tópicos específicos,
agrupadas em instituições nacionais competentes de cada setor e criando uma ativa rede
sub-regional de comunicação.
Tal desenvolvimento institucional atribuiu maior dinamicidade à integração
regional e à efetivação dos objetivos do Tratado, principalmente pelos acordos,
programas e projetos firmados e pela abertura ao apoio técnico e financeiro de
organismos multilaterais e países contratantes.
No que tange aos recursos hídricos, os avanços só foram possíveis após a
criação da OTCA. Dentre os acordos, programas e projetos assinados pela OTCA,
destaca-se a Carta de Entendimento entre a OTCA e o Comitê Intergovernamental da
Bacia do Prata (CIC) e o Memorando de Entendimento entre a OTCA e a OEA para o
projeto “Manejo Integrado e Sustentável dos Recursos Hídricos Transfronteiriços na
Bacia do Rio Amazonas”.
A Carta de Entendimento entre a OTCA e o Comitê Intergovernamental do
Prata (CIC) foi firmada em agosto de 2004, devido à particular experiência gerada no
CIC com o “Programa Marco para a Gestão Sustentável dos Recursos Hídricos da Bacia
16
Cf. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA), Programas Binacionales de
Cooperación Fronteriza.
17
As Comissões Especiais da Amazônia foram divididas em quatro coordenadorias: Saúde (Cesam) e
Assuntos Indígenas (Ceaia); Meio Ambiente (Cemaa); Transportes, Infra-estrutura e Comunicações
(Ceticam) e Turismo (Cetura); Educação (Ceeda) e Ciência e Tecnologia (Cecta).
5
do Prata em Relação aos Efeitos Hidrológicos da Variabilidade e a Mudança
Climática”18 e a vontade da OTCA de preparar e executar o projeto para o “Manejo
Integrado e Sustentável dos Recursos Transfronteiriços da Bacia do Rio Amazonas”,
tendo em vista ambos serem financiados pelo Fundo para o Meio Ambiente Mundial
(FMAM).
Desta forma, o principal objetivo do documento em questão foi manter um
intercâmbio de informações sobre os trâmites, procedimentos e formas de trabalho
utilizadas e sobre as experiências geradas no CIC e na OTCA em relação a gestões de
interesse mútuo em processo de cooperação e de financiamento, na preparação e na
execução de projetos de cooperação técnica e financeira e financeira de agências ou
organismos internacionais e manter atividades de cooperação mútua quando forem
identificados temas e ações de interesse comum para as duas organizações.
Logo após, em junho de 2005, foi firmado o Memorando de Entendimento entre
a OTCA e a OEA para o projeto “Manejo Integrado e Sustentável dos Recursos
Hídricos Transfronteiriços na Bacia do Rio Amazonas” no objetivo de estabelecer os
prazos e condições para a preparação e execução do referido projeto e administração
dos recursos financeiros.
O Projeto foi acordado entre a OTCA, o FMAM, a OEA e o PNUMA, com
duração prevista de 23 meses, devendo ser concluído em abril de 2007. Seu objetivo
principal é fortalecer o marco institucional para planejamento e execução das atividades
de proteção e gestão sustentável do solo e dos recursos hídricos da Bacia do Rio
Amazonas em face à mudanças climáticas. As ações consideradas prioritárias foram
agrupadas em cinco componentes: (1) consolidação de uma visão comum para a Bacia e
elaboração da Análise de Diagnóstico Transfronteiriço (ADT); (2) fortalecimento
institucional e capacitação para a gestão integrada de recursos hídricos; (3) previsão de
impactos hidrológicos da variação climática e implicações para o desenvolvimento; (4)
gestão sustentável e integrada do uso do solo e da água e (5) participação pública para a
gestão sustentável de recursos hídricos na Bacia do Rio Amazonas.19
III. Aplicação de princípios e regras procedimentais de Direito Internacional de
Águas na Bacia do Rio Amazonas
O Direito Internacional de Águas vem sendo desenvolvido desde o século XVII,
apresentando ênfase em navegação até o final do século XIX. A partir do início do
século XX, com o aumento da demanda por usos diversos da navegação, foram
elaborados instrumentos jurídicos internacionais objetivando sua regulação, nos quais
gradualmente foram consolidados princípios e regras procedimentais concernentes às
relações entre países de bacias transfronteiriças e proteção ambiental das águas. Os
princípios gerais hoje amplamente reconhecidos pelo Direito Internacional são: a
18
PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS DE MEIO AMBIENTE (PNUMA) e FUNDO PARA O MEIO
AMBIENTE MUNDIAL (FMAM), Concept Document for Sustainable Water Resources Management in
the La Plata River Basin.
19
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA), Integrated and Sustainable Management
of Transboundary Water Resources in the Amazon River Basin; KETTELHUT, Julio Thadeu, Gestão
Conjunta de Rios Fronteiriços e Transfronteiriços na América do Sul: Programa da Bacia do Prata,
Projetos Piloto Guarani e Quarai e Projeto Manejo Integrado e Sustentável dos Recursos Hídricos
Transfronteiriços na Bacia do Rio Amazonas, in Cap-Net Brasil, Oficina de Capacitação de
Capacitadores em Gestão Integrada de Recursos Hídricos: Material de Apoio Metodológico e
Bibliográfico.
6
unidade de bacia, cooperação, utilização razoável e eqüitativa, desenvolvimento
sustentável e participação pública. Analisemos a aplicação destes princípios na Bacia do
Rio Amazonas.
III.1 Princípios gerais
Unidade de bacia: refere-se à indivisibilidade geo-hidrológica das bacias
hidrográficas, reconhecendo a necessidade de que a gestão de águas considere a bacia
de drenagem como um todo, inclusive águas subterrâneas. No caso de bacias
transfronteiriças, a utilização de suas águas por um Estado ribeirinho pode afetar os
interesses de uso de outros Estados.
Há, portanto, uma interdependência física entre os Estados ribeirinhos,
reconhecida, já em 1911, pelo Instituto de Direito Internacional (IDI) em sua
Declaração de Madri20. Contudo, o princípio de unidade de bacia foi desenvolvido e
pioneiramente adotado pela Associação de Direito Internacional (ILA), na Conferência
de Dubrovnik, em 195621. Em 1958 a ILA reiterou sua posição declarando: um sistema
de rios e lagos em uma bacia de drenagem deve ser tratado como um todo integrado, e
não como frações22. As Regras de Helsinque de 1966 da ILA, trabalho que constitui
uma das principais referências no Direito Internacional de Águas, trazem o conceito de
bacia de drenagem internacional: uma área geográfica que se estende a dois ou mais
Estados, determinada pelos limites divisores de um sistema de águas, incluindo águas
superficiais e subterrâneas, fluindo a um terminal exutório comum23.
A Convenção das Nações Unidas sobre os Usos Diferentes da Navegação de
Cursos de Água Internacionais de 199724, por outro lado, não adotou o conceito de bacia
de drenagem, preferindo usar terminologia distinta - curso de água, que define como um
sistema de águas superficiais e subterrâneas constituindo, em virtude de sua relação
física, um todo unitário e normalmente fluindo a um terminal comum25.
Pode-se concluir que o princípio da unidade de bacial foi tacitamente adotado
pelo TCA por ter elegido a Bacia do Rio Amazonas como referência territorial para
desenvolver ações de cooperação na região amazônica, independentemente de se
referirem à utilização de recursos hídricos ou não26. Da mesma forma, a implantação do
Projeto Manejo Integrado e Sustentável dos Recursos Hídricos Transfronteiriços na
Bacia do Rio Amazonas demonstra o reconhecimento, pelos Estados da Bacia do Rio
Amazonas, de que sua gestão deve ser integrada, considerando a bacia hidrográfica
como um todo. Assim é que o primeiro componente do referido Projeto refere-se à
construção de uma visão comum para a Bacia e à elaboração da Análise do Diagnóstico
Transfronteiriço (ADT) para a Bacia como um todo.
20
“Riparian States with a common stream are in a position of permanent physical dependence on each
other which precludes the idea of the complete autonomy of each State in the section of the natural
watercourse under its sovereignty.”
21
Cf. Princípio VIII (ILA, Relatório da 47a Conferência, pp. 245-249).
22
Cf. Resolução sobre o Uso de Águas de Rios Internacionais (ILA, Relatório da 48a Conferência, p. viii).
23
Cf. Artigo II (ILA, Relatório da 52a Conferência, pp. 484-5).
24
A Convenção foi adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1997, mas, conforme seu
artigo 36, são necessárias 35 assinaturas para que entre em vigor.
25
Cf. Artigo 2º (a).
26
Cf. Artigo II.
7
Cooperação: como conseqüência da indivisibilidade de bacia, cooperação entre
países co-ribeirinhos faz-se imprescindível para o uso sustentável de bacias
transfronteiriças. A maioria dos tratados concernentes à gestão e utilização das águas da
Bacia reconhece a importância da cooperação, geralmente estabelecendo mecanismos
cooperativos de gestão, como a criação de comissões mistas para promover e elaborar
estudos e projetos conjuntos, coletar dados, realizar atividades de monitoramento,
funcionar como órgão de resolução de disputas, entre outras funções. Comissões mistas
são notavelmente importantes para a gestão cooperativa de bacias transfronteiriças,
como no caso das Bacias dos Rios Columbia, Mekong, da Prata e Reno. Na ausência de
órgãos desta natureza, mecanismos de cooperação devem ser buscados através de outros
canais diplomáticos.
Diversos são os exemplos de instrumentos jurídicos internacionais que
determinam ou recomendam a cooperação em bacias transfronteiriças 27 . Além das
convenções e tratados, algumas decisões arbitrais e judiciais ressaltam a importância de
cooperação para o uso de recursos naturais, como a decisão da Corte Internacional de
Justiça no Caso do Projeto Gabcíkovo-Nagymaros28.
O TCA, como sugere seu próprio nome, tem por finalidade principal promover a
cooperação entre os países da Bacia Amazônica, entendendo-a como instrumento
facilitador para o desenvolvimento sócio-econômico e a preservação ambiental da
região, assim como para a integração e solidariedade na América Latina como um
todo29. Além do TCA, diversos acordos bilaterais foram firmados com o propósito de
desenvolver a cooperação na região, como os Acordos Colômbia-Equador, ColômbiaPeru e Colômbia-Brasil para a Cooperação Amazônica30, anteriormente mencionados.
O Projeto Manejo Integrado e Sustentável dos Recursos Hídricos
Transfronteiriços na Bacia do Rio Amazonas é composto primordialmente de ações
conjuntas ou de cooperação entre os Estados da Bacia. Em especial merece destaque o
componente de fortalecimento institucional, que, reconhecendo a necessidade de um
marco jurídico-institucional sólido para ação conjunta na Bacia, visa à propulsão de
integração entre os Estados membros e o desenvolvimento de capacidade institucional
no âmbito da OTCA, órgão que pode desempenhar um papel central nas atividades de
cooperação.
Ademais, lembremos os inúmeros projetos de integração e cooperação
econômica previstos no âmbito da Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura
Regional Sul Americana, que tem por finalidade promover o desenvolvimento da infraestrutura de transporte, energia e telecomunicações sob uma visão regional. A IIRSA,
iniciada em 2000 entre os 12 países da América do Sul, possui dez eixos de integração,
entre os quais o Eixo do Amazonas, que se refere à interconexão entre portos no
Pacífico (Tumaco, na Colômbia; Esmeraldas, no Equador; Paita, no Peru, etc.) e portos
brasileiros (Manaus, Belém e Macapá). Através dos Rios Huallaga, Maranhão, Ucayali,
Amazonas, Putumayo, Napo, Iça e Solimões, correspondendo a mais de 6.000 km de
27
E.g. o Plano de Ação de Mar del Plata (ONU, 1977), Recomendação 90; a Convenção da ONU sobre
Usos de Cursos de Água Internacionais Diferentes da Navegação (1997), Artigo 8º.
28
Veja o parágrafo 17 da decisão. Segundo PHILIPPE SANDS, a natureza e a extensão da obrigação de
cooperar é uma questão central na disputa entre Hungria e Eslováquia sobre a barragem de Gabcíkovo e a
diversão do Rio Danúbio (Principles of International Environmental Law I: Frameworks, standards and
implementation, p. 198).
29
Cf. Preâmbulo do TCA. O termo cooperação é repetido 11 vezes ao longo do texto do TCA.
30
Cf. QUINTERO, Fabio Torrijos, The Amazon Policy of Colombia, in BISWAS, Asit K., et al. (Ed),
Management of Latin American River Basins: Amazon, Plata and San Francisco, pp. 54-65.
8
vias navegáveis, os projetos no Eixo Amazonas visam à integração de transporte fluvial
em uma área de influência de aproximadamente 4.499.152 km2 31.
Por fim, caberia notar que o Plano Nacional de Recursos Hídricos do Brasil,
aprovado em janeiro de 2006, contém macro-diretrizes de cooperação com outros países
na gestão de rios e aqüíferos transfronteiriços32.
Utilização razoável e eqüitativa: historicamente várias teorias foram
elaboradas para justicar a alocação do uso de águas, entre elas a da utilização eqüitativa,
atualmente aceita pela comunidade internacional como regra de Direito Internacional.
Funda-se na igualdade de direitos de todos os ribeirinhos, não no sentido de alocar
quantidades de água ou benefícios idênticos a todos, mas no sentido de considerá-los em
posição de igualdade para satisfazer suas necessidades.
Um dos primeiros tratados a adotar o princípio foi o Tratado de Bayonne, entre
Espanha e França, de 1866. Foi adotado por várias resoluções elaboradas pela ILA,
como a Resolução de Nova Iorque (1958), as Regras de Helsinque (1966) e as Regras
de Berlim (2004). O artigo 13 das Regras de Berlim, que revisaram o artigo V das
Regras de Helsinque, elencam os fatores que devem ser considerados para a
determinação do que representa um uso eqüitativo 33 . A Comissão de Direito
Internacional das Nações Unidas, aproveitando o trabalho da ILA, apresenta uma lista
semelhante de fatores, sem estabelecer uma ordem de prioridade entre eles, exceto
quanto aos usos destinados à satisfação de necessidades humanas vitais 34 . A Corte
Internacional de Justiça, no Caso do Projeto Gabcíkovo-Nagymaros, reconheceu em
favor da Hungria o direito a uma divisão eqüitativa e razoável dos recursos do Rio
Danúbio35.
Apesar de o TCA basear-se no princípio de distribuição eqüitativa de benefícios
e resultados e no princípio de utilização racional dos recursos naturais36, pensamos ser
necessário que os Estados membros avancem no fortalecimento do marco jurídico da
Bacia, adotando em termos claros o princípio de utilização eqüitativa e razoável,
prevenindo conflitos entre os países de montante e jusante.
Desenvolvimento sustentável: conceito recente, adotado pelo Relatório
Brundtland, da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1987),
segundo o qual desenvolvimento sustentável é o desenvolvimento que atende às
necessidades das gerações atuais sem comprometer a abilidade das gerações futuras
satisfazerem às suas próprias 37 . A definição traz os conceitos de igualdade inter e
intrageracional, requerendo melhor distribuição do uso de recursos naturais para
satisfazer as necessidades atuais dos pobres. Ambos os aspectos do desenvolvimento
sustentável encontram-se consolidado na Declaração do Rio de 199238.
Em geral os instrumentos de Direito Internacional existentes sobre o uso de
águas transfronteiriças enfocam a alocação de direitos dos Estados ribeirinhos,
31
IIRSA, sítio oficial (http://www.iirsa.org).
Volume III do Plano, primeiro conjunto de macro-diretrizes (http://phrh.cnrh-srh.gov.br).
33
Relatório da 71a Conferência (http://www.ila-hq.org/html/layout_committee.htm).
34
Artigos 6º e 10(2)
35
Cf. parágrafos 78 e 85 da decisão.
36
Cf. Artigo I.
37
COMISSÃO MUNDIAL DE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, Our Common Future, p.
8.
38
Cf. Princípios 3 e 5
32
9
negligenciando seus aspectos ambientais. Poluição constitui objeto de garantias e
deveres jurídicos somente no que se refere à prevenção de danos aos Estados que
compartilham a bacia concernente, ou seja, não tem por finalidade primeira a proteção
da qualidade das águas por seu valor ambiental intrínseco. Contudo, com a célere
evolução do Direito Ambiental Internacional e sua inserção como aspecto transversal
nos demais campos do Direito e de políticas públicas, não se pode imaginar atualmente
a elaboração de novos acordos e tratados sobre águas que não tenham um viés de
desenvolvimento ambientalmente sustentável.
Na Bacia do Rio Amazonas, contudo, já no Tratado de 1978, anteriormente ao
Relatório de Brundtland e à Declaração do Rio, os Estados membros declararam-se
conscientes de sua responsabilidade de preservar o meio ambiente, ao lado do da
responsabilidade de promover o desenvolvimento socioeconômico 39 . Em vista da
relevante importância dos ecossistemas amazônicos não só para a região, mas para todo
o planeta, no entanto, o TCA é extremamente deficiente no que concerne ao
estabelecimento de compromissos de preservação ambiental e desenvolvimento
sustentável.
Houve cuidado quanto a essas questões em alguns dos acordos bilaterais que
seguiram o TCA, como o Acordo Colômbia-Brasil para a Cooperação Amazônica, que
busca a garantia de desenvolvimento racional dos recursos naturais, inclusive fauna e
flora, preservando o meio ambiente. Em conjunto com o Acordo, foi elaborado o Plano
Modelo de Desenvolvimento Integrado das Comunidades Vizinhas do Eixo Tabatinga –
Apaporis. A região objeto do acordo sofre diversos problemas de degradação ambiental
como a contaminação de mercúrio na parte superior do Rio Negro40.
Assim também o Tratado Colômbia-Peru para a Cooperação Amazônica, que
atribui grande importância às ações de preservação ambiental e uso racional de recursos
naturais no desenvolvimento socioeconômico. O Tratado refere-se à Bacia do Rio
Putumayo, que enfrenta sérios problemas ambientais decorrentes da introdução de
sistemas de produção e padrões culturais e sociais inadequados ao ecossistema
amazônico e que estão degradando o meio ambiente e sua biodiversidade. A degradação
inclui erosão do solo, contaminação das águas e sedimentação da bacia41.
O Projeto Manejo Integrado e Sustentável dos Recursos Hídricos
Transfronteiriços na Bacia do Rio Amazonas visa promover atividades para a proteção e
a gestão sustentável do solo e das águas da Bacia. Seu quarto componente é dedicado à
gestão integrada e sustentável do uso de água, com enfoque nos desafios gerados pelos
efeitos da mudança climática no ecossistema amazônico.
Todavia, as práticas insustentáveis de desenvolvimento persistem na região, que
é carente de regras internacionais com sanções claras e mandatórias. Projetos com alto
potencial de dano ambiental, como os sistemas de conexão hidroviária e de
desenvolvimento energético previstos na IIRSA, continuam sendo planejados em nome
do desenvolvimento econômico. As hidrovias poderão resultar em erosão, inundações,
destruição de fauna e flora e contaminação das águas, entre outros danos diretos e
indiretos. A construção de barragens para a produção de hidroeletricidade também
geram forte oposição das comunidades locais e de organizações ambientalistas em vista
39
Cf. Preâmbulo.
QUINTERO, Fabio Torrijos, The Amazon Policy of Colombia, in BISWAS, Asit K., et al. (Ed),
Management of Latin American River Basins: Amazon, Plata and San Francisco, pp. 62 e 63.
41
QUINTERO, Fabio Torrijos, The Amazon Policy of Colombia, in BISWAS, Asit K., et al. (Ed),
Management of Latin American River Basins: Amazon, Plata and San Francisco, p. 59-61.
40
10
dos inúmeros problemas sócio-ambientais que podem acarretar. Em se considerando
que o potencial hidrelétrico da Bacia ainda inexplorado é muito alto (no Brasil
corresponde a 45% do potencial existente), a tendência é que aumente cada vez mais o
número de projetos para seu aproveitamento.
Os resultados do Projeto Manejo Integrado e Sustentável dos Recursos Hídricos
Transfronteiriços na Bacia do Rio Amazonas poderão indicar se os países da Bacia
estão realmente disponíveis a reverter os presentes padrões insustentáveis de
crescimento ou se sustentabilidade ambiental continua sendo mera retórica política.
Gestão participativa: os direitos de participação dos cidadãos na gestão
ambiental e de acesso à informação encontram-se bem estabelecidos nas convenções
internacionais desde a Declaração de Meio Ambiente e Desenvolvimento do Rio 42
(Princípio 10) e da Agenda 21. Ele implica no direito de acesso à informação
concernente ao meio ambiente e a projetos pelos quais pode ser afetado. As autoridades
públicas devem não só prover a informação requerida, mas também promover
conscientização pública e educação. Os cidadãos interessados devem poder participar
dos processos decisórios e ter acesso a mecanismos administrativos e judiciais para
prevenir atividades nocivas ao meio ambiente e obter reparação pelos danos causados.
A Associação de Direito Internacional reconheceu, na recente revisão das
Regras de Helsinque (Berlim, 2004), o direito de participação como um dos princípios
de Direito Internacional que governa a gestão das águas, transfronteiriças ou não,
considerando que todas as pessoas que são afetadas por projetos ou atividades
relacionadas a águas têm o direito humano de participar de seu processo decisório. Os
Estados têm que prover todas as informações relevantes, inclusive o estudo de impacto
ambiental43.
O princípio não foi explicitamente adotado pelo TCA, firmado ainda na década
de 70, anteriormente ao amplo reconhecimento do direito de participação pela
comunidade internacional. Por outro lado, o recente Projeto Manejo Integrado e
Sustentável dos Recursos Hídricos Transfronteiriços na Bacia do Rio Amazonas contém
um componente de participação pública para a gestão sustentável de recursos hídricos.
É reconhecida a importância do envolvimento de todos os atores na gestão de águas,
com especial atenção à participação das mulheres e jovens e das comunidades indígenas.
Para tanto, o componente prevê programas de educação formal e informal e
comunicação social, promovendo a conscientização pública e a divulgação de
conhecimento sobre questões de qualidade da água, em especial com relação aos efeitos
das mudanças climáticas na hidrologia e ecologia da Bacia.
42
43
Cf. princípio 10.
Cf. Artigo 18.
11
IV. Conclusão
A Bacia do Rio Amazonas é considerada uma das maiores bacias hidrográficas
transfronteiriças do mundo, correspondendo a aproximadamente 44% da extensão
territorial da América do Sul. Contudo, sua importância advém não só de sua extensão
geográfica, mas principalmente pela biodiversidade presente em seus ecossistemas e por
constituir um dos mais importantes sistemas hidrográficos do mundo. Os rios
amazônicos despejam no Oceano Atlântico aproximadamente 16% do total de água
doce que entra diariamente nos oceanos. A região amazônica é responsável, portanto,
por serviços ambientais globais significativos, como o controle do efeito estufa,
preservação do equilíbrio hídrico na atmosfera, circulação de nutrientes e conservação
da diversidade biológica. Além de sua riqueza natural, a região apresenta um mosaico
heterogêneo de povos indígenas e migrantes antigos e recentes de origem européia,
asiática e africana, sendo extremamente relevante para a preservação do patrimônio
cultural.
Devido à importância da bacia e do bioma, aliado ao interesse dos países
amazônicos em desenvolver economicamente suas respectivas porções, bem como,
reconhecendo a necessidade de resolver problemas vinculados à gestão ambiental e à
exploração racional dos recursos naturais, os governos da Bolívia, Brasil, Colômbia,
Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela formalizaram, em 1978, o Tratado de
Cooperação Amazônica – TCA, como um instrumento para promover a cooperação
internacional e o desenvolvimento harmonioso e integrado da bacia. No que tange aos
recursos hídricos, a disciplina do TCA limitou-se a assegurar a liberdade de navegação
nos rios amazônicos e a previsão de utilização racional dos recursos naturais.
Seguindo o TCA, a partir do final da década de 70 até o final da década de 80
foram celebrados alguns acordos bilaterais de cooperação entre os Estados da Bacia. Em
que pese alguns acordos terem como delimitação microbacias transfronteiriças, pouca
ou nenhuma preocupação houve quanto à gestão dos recursos hídricos. Estes só
tornaram-se objeto de preocupação recentemente, como a instituição da Organização do
Tratado de Cooperação Amazônica - OTCA, criada em 1998 com a finalidade de
implementar o TCA.
No que tange aos recursos hídricos, a OTCA celebrou acordos, programas e
projetos de gestão, entre os quais se destacam a Carta de Entendimento entre a OTCA e
o Comitê Intergovernamental da Bacia do Prata e o Memorando de Entendimento entre
a OTCA e a OEA para o “Projeto Manejo Integrado e Sustentável dos Recursos
Hídricos Transfronteiriços na Bacia do Rio Amazonas”.
Este marco jurídico-institucional estabelecido a partir de 1978 com o TCA,
passando por acordos bilaterais, até a criação da OTCA, incorporou, ainda que
implicitamente, alguns dos princípios do Direito Internacional de Águas mais aceitos
pela comunidade internacional, como o da unidade de bacia, da cooperação e do
desenvolvimento sustentável. Carecem de um mínimo de consolidação no direito
regional os princípios da utilização eqüitativa e razoável e da gestão participativa. No
âmbito de ações e políticas públicas, merece destaque o Projeto Manejo Integrado e
Sustentável dos Recursos Hídricos Transfronteiriços na Bacia do Rio Amazonas, que
consolida a aplicação do princípio da unidade de bacia e de sua gestão integrada, o
princípio da cooperação, do desenvolvimento sustentável e o da gestão participativa,
prevendo a participação pública, conscientização e educação como um de seus
principais eixos de atuação.
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