II JORNADA DISCENTE DO PPHPBC (CPDOC/FGV) INTELECTUAIS E PODER Simpósio 6 | Intelectuais e poder A república antecipada e o cel. Manoel Corrêa de Sousa Lima: um estudo sobre a auto narrativa e a proclamação da república em São José do Rio Pardo/SP em agosto de 1889 Liliane Faria Corrêa Pinto* Resumo: O cel. Manoel Corrêa de Sousa Lima participou de uma proclamação antecipada da república em São José do Rio Pardo/SP, em agosto de 1889. Levou cem homens de sua fazenda que, junto com outros cem homens de outro coronel local e mais alguns independentes, tomaram a cidade e proclamaram a república. O movimento foi debandado por policiais das cidades vizinhas em poucos dias e os mandantes foram processados. Nesse texto, propomos uma análise da contraposição de memórias dos depoimentos dos envolvidos no evento, encontrados no inquérito policial, em contrapartida aos relatos fornecidos pelo cel. Manoel Corrêa de Souza Lima, anos depois, em seu memorial de Nepomuceno/MG, sua terra natal, e em uma entrevista concedida ao Diário da Tarde, em janeiro de 1949. Palavras-chave: República – Coronelismo – Narrativa Auto Biográfica – Memória **** * Doutoranda em História, Política e Bens Culturais no CPDOC / FGV. Mestre em História Econômica pela USP. 2 A proposta do texto é contrapor os depoimentos de alguns envolvidos com o episódio republicano de São Jose do Rio Pardo, escritos no inquérito, e a escrita de si do cel. Manoel Corrêa de Souza Lima (cel. MCSL a partir de agora) em seu manuscrito “Nepomuceno – o seu início” e em uma entrevista concedida ao Diário da Tarde quando fez noventa anos. O inquérito policial, encontrado no Arquivo Público do Estado de São Paulo, contém 221 páginas com depoimentos de testemunhas e participantes do dia onze de agosto de 1889, dia da república antecipada de São José do Rio Pardo, até o dia 24 de agosto do mesmo ano. Já as memórias do cel. MCSL começaram a ser escritas por ele em 1920 e foram redigidas até o final dos anos de 1930. A reportagem no jornal Diário da Tarde foi realizada em homenagem ao nonagésimo aniversário do cel. MCSL. Seu sobrinho neto o indicou a um amigo jornalista para uma entrevista por ter completado idade tão avançada em 1949. São José do Rio Pardo é uma cidade do oeste paulista fundada na primeira metade do século XIX por fazendeiros, em sua maioria de origem mineira, que se instalaram nas terras férteis das margens do rio Pardo. Suas fazendas se dedicavam à produção de café que, a partir do terceiro quartel do século XIX, se intensificou na região e passou a ser o principal produto da economia riopardense. Nos anos de 1880, os proprietários de escravos de São José do Rio Pardo, antevendo a abolição, contrataram italianos para substituir os cativos. Inúmeros italianos chegaram a São José por volta do ano de 1888 e 1889 e se estabeleceram nas fazendas para o trabalho na lavoura. Alguns deles não se adaptaram às atividades agrícolas e deixaram o campo para se dedicaram ao artesanato, à manufatura e ao comércio no distrito sede, outros vieram da Itália e Suíça diretamente para as profissões urbanas e não chegaram a viver nas colônias. Na cidade, formou-se, então, um conjunto cultural com elementos brasileiros, italianos e africanos que se dividiram politicamente em monarquistas e republicanos. Os monarquistas eram brasileiros, soldados da polícia e militares de baixa patente que viviam na cidade, além de alguns fazendeiros e brasileiros de famílias tradicionais. Os republicanos eram italianos e fazendeiros brasileiros que pertenciam ou simpatizavam com o Partido Republicano Paulista. Em julho de 1889, os italianos fizeram uma solenidade para a inauguração da pedra fundamental da Sociedade Italiana XX de Setembro, uma mútua criada para auxiliar os patrícios italianos que se estabeleceram na cidade e precisavam de apoio financeiro. Além das festividades da mútua, os italianos fizeram uma manifestação em prol da república andando pelas ruas do centro e cantando o hino francês da marselhesa (DEL GUERRA, 1999). Duas versões descrevem a manifestação em dois jornais da época: “O Tiradentes” e o “Oeste de 3 São Paulo”. Não tivemos acesso a nenhum deles, apenas ao folheto de Honório de Sylos, um jornalista riopardense, que reproduz os dois textos. Na primeira versão, Honório de Sylos resume o artigo do jornal “Oeste de São Paulo”, da cidade de Casa Branca, datado de 30 de junho de 1889. Nessa reportagem, no dia 24 de junho daquele ano, teria havido um confronto entre republicanos e monarquistas ocorrido por causa de um encontro ocasional do desfile de lançamento da pedra fundamental da Sociedade Italiana que seguia com os italianos cantando a Marselhesa musicada pelos instrumentos da banda Giuseppe Verdi com os monarquistas do Partido Liberal que saiam de uma reunião e seguiam pelas ruas ao som do Hino Nacional sonorizado pela banda Riopardense. As músicas das duas bandas se confundiram e a Giuseppe Verdi tocou mais uma vez a Marselhesa. Por fim, o delegado mandou que a banda parasse de tocar e houve gritos e xingamentos entre os dois grupos. No dia 25, os republicanos seguiram para a estação ferroviária com a banda Giuseppe Verdi para vaiar o delegado e o Dr. Fortunato dos Santos Moreira, de Pindamonhangaba, que era candidato a deputado provincial. Na versão do jornal “O Tiradentes”, de São José do Pardo, cuja edição saiu em sete de julho de 1889, o delegado Bittencourt, o Dr. Fortunato e alguns capangas teriam atacado os republicanos no evento comemorativo da Sociedade Italiana, forçando-os a saudar a monarquia. Como os republicanos não quiseram cumprir as ordens do delegado, os soldados e capangas bateram em Ananias Barbosa, líder dos republicanos, mas foram combatidos pelo povo. O grupo monarquista deixou o local e foi seguido pelos republicanos que cantavam a Marselhesa e proferiam discursos. Segundo José Murilo de Carvalho, a Marselhesa era o hino dos republicanos brasileiros que a entoavam em todas as manifestações, como um símbolo da revolução e da república (CARVALHO, 1990:122-123). Em São José do Rio Pardo, foi cantada pelas ruas da cidade com o mesmo intuito de representar a liberdade, a revolução e a república. Para os italianos estabelecidos naquela cidade, poderia representar mais que a simples adesão ao ideal republicano, mas o sentido da união dos imigrantes contra os maus tratos de patrões que, muitas vezes, tratavam os estrangeiros como escravos. Nesse sentido, o cantar a Marselhesa, mais que um ideal republicano, era um símbolo da força da união perante as más condições das colônias e da vida dos imigrantes na cidade. O confronto entre republicanos e monarquistas de junho de 1889 indicava a instabilidade entre os dois grupos em São José do Rio Pardo. Quarenta e sete dias depois, os ânimos entre monarquistas e republicanos ainda estavam exaltados e o partido republicano 4 local organizou uma visita de Francisco Glicério. A chegada do político aqueceu novamente as divergências. Os republicanos foram à estação de São José do Rio Pardo para receber o visitante que foi saudado com vivas à república. Foram para o Hotel Brasil onde jantaram e, em meio ao jantar, ocorreram os embates. Soldados da força policial atiraram pedras e paus no prédio, invadindo o hotel e quebrando móveis, louças, portas e janelas. Em represália ao ataque monarquista, a cidade foi tomada pelos republicanos e no dia seguinte, onze de agosto, eles abriram o inquérito contra o cap. Saturnino Barbosa, preso como autor e mandante da invasão. Nesse dia, deram os primeiros depoimentos três testemunhas. Com a chegada dos policiais de Casa Branca, os monarquistas dominaram as forças republicanas e continuaram o inquérito, mas inverteram a “culpa”. Fizeram autos de corpo de delito em dois policiais e o laudo do prédio de hotel. Tomaram os depoimentos de várias testemunhas até o dia vinte e quatro de agosto. A partir desse momento, nossa tarefa de contrapor os relatos se inicia. Temos os depoimentos do inquérito cujos fatos se alteram de acordo com a tendência do depoente e a versão do cel. MCSL que não se manifestou durante o inquérito, mas deixou escrita sua história em seu manuscrito “Nepomuceno – o seu início” e deu uma entrevista para o jornal em 1949. O manuscrito do cel. MCSL teve início em 1920, em Nepomuceno – MG, e sua proposta era escrever a história da sua cidade natal e sua família. No final dos anos de 1930, ele já estava com problemas nos olhos e sua neta terminou de redigir o que ele ditava. O suporte do texto são dois cadernos de contabilidade cortados ao meio, aproveitando as pautas e deixando de lado as colunas. Ele tem a capa dura marmorizada, já envelhecida, um nas cores marrom escuro e branco e, outro, em preto e cinza. As lombadas foram feitas por um tecido grosso, engomados por cola, na cor preta e outro azul. No centro do primeiro caderno, cuja cor é marrom, há uma etiqueta com a as palavras: “Registro de movimento das estampilhas para vendas mercantis da casa comercial de...”. O texto foi escrito à mão com caneta nanquim ou bico-de-pena pelo autor até metade do segundo caderno quando sua neta, Eurídice Corrêa Lima, passou a redigir as palavras ditadas por ele. A letra do coronel era bonita, firme e bem traçada, indicando alguém com costume de escrever. A de sua neta era mais arredondada, mas também tinha firmeza e indicava regularidade de escrita. Ela era estudante da escola normal e se tornou, em seguida, professora primária. O suporte do texto é uma importante pista para a análise da escrita de si e da própria fonte primária (MAUAD & MUAZE, 2004). Nesse caso, os cadernos utilizados sugerem que o texto era uma primeira 5 versão, ainda um rascunho, mas acreditamos que como os olhos do cel. MCSL o traíram, ele apenas terminou o texto, deixando algumas rasuras, palavras faltando ou erradas e, ainda algumas informações em branco, como datas e nomes. O cel. MCSL escreveu sobre a chegada dos bandeirantes a São João Nepomuceno de Lavras do Funil (hoje, Nepomuceno – MG) e a colonização da localidade. Para isso, contou a história da família, discriminando toda a sua ascendência desde seu bisavô, cap. Manoel Joaquim da Costa, proprietário de terras naquelas paragens até as gerações posteriores, chegando a falar de seus netos. Quando escreve sobre seus avós, pais, irmãos e esposa, faz uma escrita de si, com referências a sua vida, convicções e personalidade. O cel. MCSL era um dos fazendeiros que vivia em São José. Era patrão de italianos e proprietário de duas fazendas de café – as fazendas Pião e Limoeiro. Nasceu em São João Nepomuceno de Lavras do Funil (hoje, Nepomuceno) em 1859. Estudou as primeiras letras em Três Pontas e continuou parte dos estudos no Seminário de Mariana. Casou-se em 1872 com a prima, Anna Augusta de Lima, e acreditamos que recebeu as terras riopardenses como dote. Mudou-se para São José do Rio Pardo e, segundo sua neta, Eurídice Corrêa Lima, assim que tomou posse das propriedades, alforriou seus escravos. Eles não quiseram permanecer nas fazendas e o cel. MCSL contratou os italianos que chegaram ao final dos anos de 1880 (LIMA, 2010). Em seu texto “Nepomuceno – o seu início”, cel. MCSL descreve o que ele chama de “revolução” ao falar de si no trecho dedicado a sua esposa, subterfúgio utilizado para abrir um precedente para sua escrita de si. No tempo do império, seu marido republicano fervoroso, crente que a forma republicana vinha trazer a felicidade e a grandeza do Brasil e havendo vários incidentes entre republicanos e monarquistas deu-se uma revolução na qual seu marido era parte ativa, tendo sido presas as autoridades administrativas, políticas e policiais, inclusive um destacamento de 30 praças, o que causando grande indignação a estas autoridades e ao Governo imperial, foram processados os cabeças da revolução, dos quais seu marido fazia parte, isto deu-se no dia 11 de agosto de 1889, ia ser condenado seu marido a pena de exílio e D. Anna Augusta de Lima, nenhuma queixa, nem reclamação 6 articulava, apenas procurava saber se a mulher e filhos do exilado era permitido acompanhá-lo. (LIMA, 1920-38: 29) Esse seria um resumo da república antecipada de São José do Rio Pardo, descrito pelo Cel. MCSL em seu manuscrito. Ele foi mais detalhista na entrevista para o jornal Diário da Tarde, concedida ao fazer noventa anos. Na reportagem, ele descreve o processo de qualificação dos eleitores e afirma que a maioria riopardense era republicana e que os republicanos fizeram um acordo com os liberais, mas foram traídos. Após esse fato, ele conta como foi o primeiro embate entre liberais e republicanos. Certa ocasião chegou à cidade uma caravana para uma conferência do Partido Liberal. Houve passeata pelas ruas, comícios e vivas aos liberais. Quando passavam pela “Sociedade Italiana 20 de Setembro”, em cujo recinto se festejava um acontecimento qualquer, um orador liberal invadiu a sede e subiu à tribuna, concitando a colônia italiana a ser liberal, a exemplo de Garibaldi. Em seguida, o Sr. Cândido Prado, pai do Dr. Cartéia Prado, conhecido médico de Belo Horizonte, corajosamente pediu a palavra, e, apesar da maioria de liberais retrucou o orador, pregando a causa republicana. Um fazendeiro liberal, bastante corpulento com muita dose de atrevimento, arrancou Cândido Prado da tribuna, envolvendo-o num manto. (TAVARES, 1949) Assim que Cândido Prado foi agredido, Ananias Barbosa soube da violência e resolveu revidar, dando bengaladas nos monarquistas que estavam na caravana. Ele debandou os liberais que se submeteram aos republicanos, sujeitando-se a aceitar sua bandeira e hino. Esse teria sido o primeiro confronto sério entre monarquistas e republicanos e coincide com a versão de Honório de Sylos que teria saído no jornal “Oeste de São Paulo”. Por outro lado, esse encontro não é mencionado no inquérito policial e, segundo o cel. MCSL, foi um momento incisivo para a disputa entre monarquistas e republicanos em São José do Rio Pardo. Em dez de agosto, Francisco Glicério chegou a São José do Rio Pardo e hospedou-se no Hotel Brasil, de propriedade de Ananias Barbosa, onde foi servido um jantar em sua homenagem. À noite, um destacamento de trinta praças, comandado por um tenente, invadiu e depredou o hotel. Os republicanos, reunidos com Glicério e com a ajuda deste, prenderam as autoridades locais como o presidente da Câmara, o cap. Saturnino Flaustino 7 Barbosa, o subdelegado e o oficial de justiça. Segundo o cel. MCSL, “Somente eu comandava cem homens. Procuramos os liberais, alguns escondidos debaixo da cama...” Prenderam os soldados, desarmando-os. Um deles resistiu, “atirando sobre o povo. A massa popular reagiu à bala.” (TAVARES, 1949). Por fim, a bandeira republicana foi hasteada nos prédios públicos e a cidade foi declarada republicana. Na tarde do dia onze, o chefe de polícia da Província de São Paulo chegou com cem praças e retomou a cidade. No mesmo dia, iniciou um processo contra os líderes do movimento, entre eles, o cel. MCSL. Para contrapor ao relato do cel. MCSL, temos a versão dos depoimentos do inquérito policial. Nesse documento, no dia onze de agosto, depuseram o cap. Saturnino Franzinho Barbosa, que consta como preso, o comerciante Izidoro Vannucci, o Doutor Antônio Munniz de Souza e uma testemunha que falou em nome do cel. MCSL que esteve presente no início dos depoimentos, mas saiu em meio a eles. O primeiro depoimento foi dado por Izidoro Vannucci, um comerciante na cidade. Ele estava em sua casa na manhã do dia onze quando o cap. Saturnino Barbosa, liberal, entrou sendo perseguido por um negro com uma espingarda. Vannucci retirou o homem armado para conversar com o capitão, enquanto o povo se aglomerava do lado de fora. Saturnino Barbosa pediu que mandasse chamar o cel. MCSL que estava junto ao povo para acalmar os ânimos gerais. Em seguida, o Dr. Munniz entrou para conversar com o capitão e o retirou-o da casa rendido. Ele foi levado para o sobrado de Honório Dias onde estava o QG republicano. Vannucci afirmou também que “a polícia neste lugar tem andado em desordem, tanto que no Hotel Brasil houveram desacato entre a polícia, proprietário e hóspedes do hotel” e, segundo ele, “o subdelegado José Honório acompanhava a essa gente”. (SÃO PAULO: 1889). Após o depoimento de Vannucci, o Dr. Antônio Munniz de Souza contou sua história. Segundo ele, estavam na estação ferroviária esperando Francisco Glicério para recebê-lo com uma banda de música. O trem atrasou e a estação estava muito cheia. Por isso, advertiu aos republicanos que estavam com ele a espera de Glicério que “a manifestação não passasse de vivas à república e a Francisco Glicério”. A comitiva chegou e se dirigiu ao Hotel Brasil, onde se reuniram. Os companheiros mais amigos ficaram para o jantar que, segundo o Dr. Munniz, foi sem brindes. Após a refeição, ele voltou para casa porque se sentia adoentado. Depois de se deitar, ele ouviu os sinos badalarem, mas achou que era um incêndio e, como sua esposa o advertiu que não deveria sair, optou por ficar em casa e adormeceu. Durante a noite, nada viu, mas de manhã sua esposa comentou que não pode dormir por causa 8 da algazarra que havia na cidade. Foram a casa dele e arrancaram as bandeiras e assim fizeram com outras residências. As praças de polícia, comandadas pelo subdelegado José Honório, assaltaram o Hotel Brasil. Enfim, pela manhã, após serem relatados todos os fatos a ele, o Dr. Munniz telegrafou às autoridades e, chegando a casa do Sr. Honório Dias, verificou que lá estavam presos o subdelegado e o oficial de justiça. Foi, então, a casa de Izidoro Vannucci buscar o cap. Saturnino Barbosa que estava escondido e sob ameaça de ser preso pelo povo para levá-lo ao sobre de Honório Dias. De lá o preso foi transferido para o prédio da câmara após o desarmamento e prisão dos praças criminosos. Em seguida, afirmou que (...) atribuem o capitão Saturnino responsabilidade nos sucessos, pelo fato de ser ele um chefe liberal que não se conforma com o crescimento do partido republicano no lugar, com o qual partido e respectivo pessoal anda em luta irreconciliável; que mais correram boatos, aliás hoje confirmados, bem ou mal, por todas as praças do destacamento, que se acham presas, de que o Capitão Saturnino consertara ontem a agressão aos republicanos; que ele depoente acha tão brutal semelhante meio de combater os adversários, que o seu espírito repugna acreditar em tão nefanda maquinação. Respondeu a requerimento da parte, que quando chegou a casa de Vannucci, a voz de prisão já havia sido dada, estavam glomerados em frente ao edifício e adjacências muitos trabalhadores de roça armados, que haviam sido requisitados para garantir a população contra a polícia, nacionais e estrangeiros e bem assim pessoas como não há mais dignas nesta Vila pertencentes a diversos credos políticos. (SÃO PAULO: 1889) Após seu depoimento, a testemunha que substituiu o cel. MCSL, o Dr. Geraldino da Silva Campista, deu seu testemunho. Ele ouviu o alarme de incêndio por volta das dez horas da noite e soube o que era pelo cap. Saturnino Barbosa que gritava para acudirem o Hotel Brasil. Com medo de sua casa ser agredida, como ouviu que aconteceria por pessoa do povo, levou sua família para o sobrado de Honório Luís Dias em (...) companhia do cidadão Francisco Glicério, Doutor Mercado e outros trataram de providenciar meios de defesa chamando seus correligionários que residem nas fazendas assim como o pessoal que pudessem dispor. Enquanto esperavam os companheiros dirigiu-se ao hotel Brazil para diviso presenciar os atos de vandalismo praticados pelos soldados; estando nesse hotel ai apareceu o subdelegado José Honório dizendo que não podia conter a força e pedia que se 9 dispersassem os que ai estavam neste momento um grupo de pessoas vindo do hotel pessoas sérias e de todo conceito afirmaram que senhor José Honório tinha dirigido os primeiros ataques contra o hotel aos gritos de mata, mata, e quiseram tirar sem desforço contra o dito subdelegado ao que se opôs o depoente trazendo o mesmo debaixo de sua responsabilidade até a casa do cidadão Honório Dias onde estava reunido o partido republicano e ai resolver-se que fosse o mesmo detido para a garantia de todos. (SÃO PAULO: 1889) Segundo a testemunha, o subdelegado foi mantido na residência de Honório Dias sob a proteção de Francisco Glicério, Dr. Mercado, ele próprio e outros que contiveram “o povo que a todo transe procurava reagir contra as autoridades policiais.” (SÃO PAULO: 1889). No dia onze, o Dr. Geraldino viu um grupo que corria para prender o cap. Saturnino sob a acusação de que ele pretendia fugir para Casa Branca. Ele estava na casa de Izidoro Vannucci e havia sido preso “por pessoas capazes, trabalhadores estrangeiros e nacionais e outras pessoas qualificadas.” (SÃO PAULO: 1889). O cap. Saturnino pediu para ser levado em segurança e foi tranqüilizado pelo Dr. Geraldino de que ele não corria risco. Foi levado pelo Dr. Muniz, Dr. Mercado e “outras pessoas distintas” para a casa de Honório Dias. No dia seguinte, a cidade já estava novamente sob o controle monarquista e o delegado fez o laudo do prédio do Hotel Brasil e o auto de corpo delito no soldado que apanhou dos republicanos. Honório Luís Dias foi o depoente do laudo e afirmou, respondendo as perguntas, que o hotel foi depredado e sofreu danos nas portas, janelas e paredes que foram furadas e quebradas com pedras, armas, rifles e tiros. No interior do prédio, louças, espelhos, vidros e diversos objetos foram quebrados e o laudo final calculou o prejuízo causado ao patrimônio do hotel no valor de 150 mil réis e três contos de réis de danos morais. Após o laudo, o soldado Ignacio de Morais e o cabo Francisco da Silva Rego responderam aos quesitos do auto de corpo delito. O primeiro foi ferido nos embates da noite do dia dez de agosto e o segundo foi agredido por Ananias Barbosa, ambos com algum instrumento pontudo, mas os ferimentos foram lesões leves cujos danos foram avaliados em 50 mil réis, para o primeiro, e 30 mil réis, para o segundo. Em seguida, há os depoimentos de várias testemunhas, cerca de vinte depoentes, entre praças e cidadãos que estavam no hotel ou viram os movimentos da noite do dia dez. Para nosso trabalho, vamos resumir os relatos dos depoentes dos dias subseqüentes ao dia onze, cujos depoimentos já foram descritos. No inquérito, os praças afirmavam que o cabo Rego estava de ronda e, quando passou em frente ao Hotel Brasil, foi 10 agredido por Ananias Barbosa, republicano e proprietário do estabelecimento. O motivo que eles alegavam para esse comportamento foi que o cabo Rego havia prendido o irmão de Ananias Barbosa alguns dias antes. Ananias e o Dr. Cavalcanti levaram o cabo Rego até a cadeia, onde foi deixado. Os praças tocaram o sino da cadeia e foram ao Hotel Brasil para buscar os agressores do cabo e seu boné que havia ficado no local da agressão. Eles foram recebidos a bala pelos republicanos que estavam ali. Voltaram para a cadeia e prepararam outro ataque ao hotel, sob o comando do subdelegado. Os republicanos reuniram muitos homens armados e, sob o comando de Honório Dias, Elisiário Dias, cel. MCSL e outros, tomaram a cadeia, prenderam o subdelegado e o cap. Saturnino. Alguns praças foram a Casa Branca para buscar reforço e voltaram para retomar a cidade. O segundo conjunto de depoimentos é composto pelas testemunhas não envolvidas e os republicanos. Seu resumo inicia o episódio com a descoberta do cabo Rego no quintal da casa de Ananias Barbosa. Ele teria sido encontrado e se fingiu de bêbado. Ele foi levado à cadeia e, quando chegou ao local, mandou tocar os sinos para reunir as praças e retornar ao hotel para prender o proprietário. Vendo a represália dos praças, os republicanos reunidos para o jantar de Glicério organizaram-se e mandaram chamar os homens e fazendeiros das fazendas para auxiliar no enfrentamento. Por fim, tomaram a cidade e prenderam o subdelegado e o cap. Saturnino. Foram líderes mencionados Honório Luís Dias, Manoel Corrêa de Souza Lima, Major Lima, entre outros, reconhecidos pelos praças e cuja autoridade foi observada pelo cap. Saturnino, em seu segundo depoimento, quando afirmou: Disse mais o depoente, que uma hora pouco mais ou menos depois de sua prisão na sala da Câmara ele e seus companheiros de prisão ouviram os indivíduos que os guardavam, dizerem entre si, pertencerem um a Manoel Corrêa de Souza Lima, outros a Honório Dias e seus irmãos e outros ao Capitão Antônio Corrêa, podendo ele e seus companheiros de prisão observar este fato. (SÃO PAULO: 1889) Nos testemunhos não há uma especificação de que tenha sido realizada uma revolta republicana, em especial, nos depoimentos dos pracinhas. Algumas questões podem ser ressaltadas dessa ausência de menção. Para os pracinhas, era melhor que não tivesse ocorrido uma república antecipada porque isso denegria a imagem deles enquanto liberais e soldados. Agregamos a isso o fato de que para eles, realmente, não aconteceu nenhuma revolta republicana, eles estavam, apenas, defendendo o companheiro de tropa que havia sido agredido. Por outro lado, os chefes dos pracinhas eram liberais e contrários aos republicanos 11 na política local e uma represália diante da agressão de Ananias Barbosa para com o cabo Rego era uma boa oportunidade de vingar os acontecimentos de quarenta e sete dias antes. Temos, assim, as duas possibilidades convivendo simultaneamente nos depoimentos dos praças, mas devemos nos ater, especialmente, na construção dos relatos que delineavam o que eles queriam para o momento. Já pelo lado dos republicanos, a versão deles sugere que eles foram agredidos pelos liberais que estavam insatisfeitos com a presença de Glicério. Alguns relatos afirmaram que, no momento do ataque ao Hotel Brasil, os pracinhas gritavam “morram os republicanos”. Outros descreveram que durante a concentração dos soldados diante da cadeia, antes de atacarem o hotel, eles gritaram “viva a monarquia, fora Francisco Glicério e morra a república!” Em relação a presença do cabo no quintal da casa do Hotel Brasil Acreditamos que a ação de Ananias Barbosa foi, inicialmente, desvinculada de qualquer questão política porque, segundo os depoimentos, ele estava apenas tirando o cabo que entrou no quintal de sua casa. E em um dos relatos, o cabo tentava ouvir conversas da casa de Ananias Barbosa a mando do subdelegado de polícia quando foi visto no quintal e preso pelo proprietário e levado para a cadeia. Ele se fingia de bêbado e, quando chegou a cadeia, se desvencilhou dos seus condutores e entrou para o quartel, tocando o sino em seguida. A partir daí, os confrontos começaram. E os relatos coincidem. Quando contrapomos a versão do cel. MCSL com os diferentes relatos do inquérito temos dados coincidentes entre o relato dele e os depoimentos dos republicanos. A escrita de si do cel. MCSL sugere a existência de uma “revolução” republicana que aconteceu por acaso, em seus termos: “deu-se”. Quando imaginamos o momento e como as coisas aconteceram podemos perceber que havia, realmente, uma insatisfação entre republicanos e liberais, configurado, possivelmente, pela chamada “traição” dos liberais com os republicanos na formação da Câmara de São José do Rio Pardo. As festividades da inauguração da pedra fundamental da sociedade italiana que se encontraram com a reunião do Partido Liberal foi outro elemento que acreditamos tenha influenciado o aquecimento dos ânimos entre os dois grupos rivais. O encontro do cabo Rego no quintal da casa de Ananias Barbosa foi, então a gota d’água para o confronto propriamente dito. O cel. MCSL não menciona esse “detalhe” que teria desencadeado as ações dos praças e dos republicanos. Em contrapartida, se o depoimento de Ananias Barbosa for verdadeiro, o cabo estava dentro do terreno para ouvir as conversas da casa que recebia o republicano Francisco Glicério. Aí, a 12 presença do praça na casa era uma provocação e uma continuação das manifestações de dias antes. Como nossa proposta é analisar a escrita de si do cel. MCSL quando ele menciona a república antecipada de São José do Rio Pardo, precisamos compreender em que medida a escrita de si é construída. Uma escrita de si pressupõe uma pessoa que escreve sobre si mesmo – sobre sua vida, suas experiências, sua intimidade, enfim, sobre aspectos do indivíduo moderno que entendemos como fragmentado. Essa escrita expressa a “subjetividade de seu autor como dimensão integrante de sua linguagem, construindo sobre ela a ‘sua’ verdade.” (GOMES, 2004) E, ao mesmo tempo que o autor tenta reafirmar a verdade a partir de sua experiência pessoal, ele constrói o texto como sua representação e se recria como uma invenção do próprio texto. Nesse sentido, o cel. MCSL tenta se construir e salientar momentos de sua vida que reafirmam a verdade, mas também a recria e recria o autor das palavras e dono das memórias. A escrita de si do cel. MCSL constrói para ele próprio a memória de um momento heróico, de grande importância para a nação, cujos feitos seriam punidos com o exílio para exemplificar aqueles adeptos da república que insurgiram contra o imperador. O ideal republicano aparece como um símbolo da liberdade. Ele disse: “A cidade rejubilou-se e a bandeira republicana foi hasteada nos edifícios públicos.” Essa consideração dá um aspecto de que os riopardenses estavam felicíssimos com a tomada da cidade e que a república era esperada e bem vinda. Provavelmente, isso era o que o cel. MCSL e os republicanos que oportunamente tomaram a cidade e hastearam suas bandeiras nos prédios públicos queriam. O cel. MCSL, em sua escrita de si, exalta os aspectos que lhe são caros na construção de sua memória e de sua história. Ele opta por escolher as versões e o olhar que enfatizam o que ele pretende guardar de si e preservar para expor aos outros. Sua auto narrativa deu à república antecipada de São José do Rio Pardo um caráter mais revolucionário que ela teve. Ele desprezou as nuances que a fizeram um evento ocasional e deu a ela o empenho e o fervor da opção política que ele tinha e que, possivelmente, seus correligionários compartilhavam. Por fim, a contraposição dos relatos do inquérito e da narrativa do cel. MCSL trouxe uma reflexão acerca das fontes, como elas foram escritas e como elas podem ser lidas. A república antecipada de São José do Rio Pardo ficou eternizada a partir das memórias dos que nela se envolveram como uma “revolução” republicana e, em contrapartida, foi enfatizada pelos praças que nela se envolveram contrários ao republicanos em seu aspecto ocasional e de revanche. 13 Bibliografia CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da república no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. DEL GUERRA, Rodolpho José. A São José, Nostra Nuova Storia. São Paulo: Grass, 1999. _________________________. No ventre da terra mãe (São José do Rio Pardo). São José do Rio Pardo, SP: Graf-Center, 2001. DUMONT. Louis. Homo aequalis: gênese e plenitude da ideologia econômica. Bauru, SP: EDUCS, 2000. GOMES, Ângela de Castro. “Escrita de si, escrita da história: a título de prólogo”. In: GOMES, Ângela de Castro (org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. LIMA, Eurídice Corrêa. Entrevista concedida a Liliane Faria Corrêa Pinto em Nepomuceno, em setembro de 2010. LIMA, Manoel Corrêa de Souza. Nepomuceno, seu início. Manuscritos. Nepomuceno, 192038. MAUAD, Ana Maria; MUAZE, Mariane. “A escrita da intimidade: diário da viscondessa do Arcozelo”. In: GOMES, Ângela de Castro (org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. SÃO PAULO. T.I. Processos Policiais. Cx. 18, Ordem 3219. Arquivo permanente do Arquivo Estadual de São Paulo. TAVARES, Marcelo Coimbra. Proclamaram a república três meses antes do 15 de novembro. Diário da Tarde, Belo Horizonte, 24 fevereiro, 1949, p. 1 e 5.