“SALVA-ME POR TUA GRAÇA” (SL 6.1-10) [4]
INTRODUÇÃO:
“Volta-te, SENHOR, e livra a minha alma; salva-me por tua graça (‫( )חסד‬hesedh)”
(Sl 6.4).
O que levaria um homem a fazer um pedido como esse? Sim, já que não nos é
costumeiro pedir algo sem uma promessa de pagamento, retribuição ou, pelo menos, de explicação do porquê daquela situação de carência.
Aqui temos um homem desprovido de qualquer orgulho ou perspectiva de retribuir
o salvamento solicitado. Ele não barganha com Deus, não tem falsas esperanças
quanto às possibilidades futuras nem faz projeções que poderiam ser interessantes
ao seu interlocutor; ele pede apenas pela graça.
1
A palavra traduzida por graça (4) (ds,x,) (hesedh), cuja etimologia é obscura, tem
um emprego rico no Antigo Testamento. Ela pode também ser traduzida por “bondade”, “benevolência”, “benignidade”, “clemência”, “beneficência”, “humanidade” (ARA.
2Sm 2.5), “fidelidade” (ARA. 2Sm 16.17) e “misericórdia”. A palavra ocorre intensamente nos Salmos. Das cerca de 250 vezes que ocorre no Antigo Testamento, 127 é
no Livro de Salmos.
Hesedh pode ser empregada acerca de Deus e acerca do homem. Quando a palavra se refere ao homem, reflete o seu amor para com o seu próximo e para com
Deus; quando a palavra é aplicada a Deus, denota a Sua graça, envolvendo a idéia
de aliança, pacto de Deus com o Seu povo.
A idéia principal é a de que Deus manifesta o Seu amor ativamente na forma de
2
uma relação de um pacto; Hesedh é um “amor de Pacto” (Dt 7.9,12; Jr 31.3);
3
“Hesedh da aliança”. O Pacto de Deus é unilateral no que concerne às suas de1
H.J. Stoebe, desex: In: Ernst Jenni; Claus Westermann, eds. Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento, Madrid: Ediciones Cristiandad, 1978, Vol. I, p. 832.
2
Van Groningen, comentando o Salmo 111.1, chama a expressão de “fidelidade pactual”; no
Salmo 118.1, designa de “amor pactual” (Gerard Van Groningen, Revelação Messiânica no Velho
Testamento, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1995, p. 351, 363). Packer, a traduz por “Amor
constante” (J.I. Packer, Vocábulos de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 1994, p. 88); Eichrodt,
chama de “amor solícito” (Walther Eichrodt, Teologia del Antiguo Testamento, Madrid: Ediciones
Cristiandad, 1975, Vol. I, p. 213). Harris seguindo a versão King James, crê que uma boa tradução é
“bondade amorosa” (R. Laird Harris, hsd: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional
de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 503).
3
R. Laird Harris, ihsd: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo
Testamento, p. 501.
“Salva-me por tua graça” (Sl 6.1-10)[4] – Rev. Hermisten − 14/06/10 – 2
mandas e provisões; compete ao homem aceitá-lo ou não, porém, não pode modificar os seus termos. O Hesedh é a causa e o efeito do Pacto; Deus fez o Pacto por
4
misericórdia; Ele revela a Sua misericórdia de acordo com o Pacto (1Rs 8.23 [2Cr
6.14]; Ne 1.5; 9.32; Is 55.3; Dn 9.4).
Devido ao Seu Hesedh, Deus voluntariamente elege o Seu povo, mantendo-Se
fiel nesta relação independentemente da fidelidade circunstancial dos Seus eleitos
5
(Dt 7.6-11; 2Sm 2.6; Sl 36.5; 57.3; 89.49; Is 54.10; 55.3).
O clamor do salmista amparava-se na graça de Deus demonstrada em Sua aliança para com o Seu povo. Ele só pode clamar pela “bondade amorosa de Deus” para
ser salvo.
Na obra de Thomas à Kempis, Imitação de Cristo, nos deparamos com a pergunta de um pecador que, consciente de suas faltas, reconhece a grandeza da misericórdia de Deus: “Que posso eu fazer em expiação dos meus pecados, senão
confessá-los humildemente e chorá-los, implorando incessantemente vossa
misericórdia? (...) Detesto sumamente todos os meus pecados, e proponho
nunca mais cometê-los; arrependo-me deles e me hei de arrepender en6
quanto viver....”.
Retornando ao texto, destacamos que este é o primeiro dos chamados Salmos
Penitenciais, a saber: Salmo 6, 32, 38, 51, 102, 130, 143. Eles são assim classificados porque neles temos os salmistas suplicando o perdão pelos seus próprios peca7
dos e, também, expressam a tristeza apropriada do penitente.
8
Não sabemos quando Davi escreveu o Salmo 6, nem isso é relevante aqui. Kidner, que o divide em duas partes, diz:
4
22
“ Pôs-se Salomão diante do altar do SENHOR, na presença de toda a congregação de Israel; e
23
estendeu as mãos para os céus
e disse: Ó SENHOR, Deus de Israel, não há Deus como tu, em
cima nos céus nem embaixo na terra, como tu que guardas a aliança e a misericórdia (ds,x), (hesedh)
a teus servos que de todo o coração andam diante de ti” (1Rs 8.22-23).
5
6
“ Porque tu és povo santo ao SENHOR, teu Deus; o SENHOR, teu Deus, te escolheu, para que lhe
7
fosses o seu povo próprio, de todos os povos que há sobre a terra. Não vos teve o SENHOR afeição, nem vos escolheu porque fôsseis mais numerosos do que qualquer povo, pois éreis o menor de
8
todos os povos, mas porque o SENHOR vos amava e, para guardar o juramento que fizera a vossos pais, o SENHOR vos tirou com mão poderosa e vos resgatou da casa da servidão, do poder de
9
Faraó, rei do Egito. Saberás, pois, que o SENHOR, teu Deus, é Deus, o Deus fiel, que guarda a aliança e a misericórdia (ds,x,) (hesedh) até mil gerações aos que o amam e cumprem os seus manda10
mentos;
e dá o pago diretamente aos que o odeiam, fazendo-os perecer; não será demorado para
11
Guarda, pois, os mandamentos, e os estatutos, e
com o que o odeia; prontamente, lho retribuirá.
12
os juízos que hoje te mando cumprir.
Será, pois, que, se, ouvindo estes juízos, os guardares e
cumprires, o SENHOR, teu Deus, te guardará a aliança e a misericórdia (ds,x), (hesedh) prometida sob
juramento a teus pais” (Dt 7.6-12).
6
7
8
T. Kempis, Imitação de Cristo, 9ª ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1945, IV.9.3. p. 242-243.
Vd. William S. Plumer, Psalms, Carlisle, Pennsylvania: The Banner of Truth Trust, 1975, p. 94.
Veja-se: Alexander Maclaren, Psalms: In: W.R. Nicoll, ed., The Expositor’s Bible, [CD-ROM], (Rio,
Wi: Ages Sofware, 2002), (Sl 6).
“Salva-me por tua graça” (Sl 6.1-10)[4] – Rev. Hermisten − 14/06/10 – 3
“A oração de alguém que está profundamente perturbado e alarmado,
ocupa a primeira metade do salmo. A segunda metade, a partir do versículo
6, não contém petição alguma: no início, há choro, mas, no fim, um irrompi9
mento de fé desafiadora. As orações e as lágrimas não foram em vão”.
Analisemos o Salmo sob a perspectiva da súplica do salmista: “.... salva-me por
tua graça (ds,x,) (hesedh)” (Sl 6.4).
1. A SITUAÇÃO DO SALMISTA:
Davi nos apresenta um quadro relativamente detalhado de sua situação. Ele se
sente totalmente impotente, sem ânimo e forças para lutar. O salmista se diz doente:
debilitado (ll;ma
. )u ('umlal) (2), figuradamente, “fraco”, “seco”, “murcho”, “desfalecido”
10
e, com os ossos abalados (lhB) (bahal) (2). Ele fala também de suas angústias
espirituais usando a mesma expressão que empregou para descrever os seus ossos. É como se dissesse: meus ossos e minha mente estão abalados. Esta expressão é usada nas Escrituras para falar, do tremor dos ossos (Sl 6.2), da alma (Sl 6.3)
11
e das mãos (Ez 7.27; 2Sm 4.1).
Ele está angustiado, enfraquecido, física e espiritualmente. Daí o seu senso de urgência: “mas tu, SENHOR, até quando?” (Sl 6.3). O
tempo sempre é longo quando a dor e a angústia nos dominam. Notemos também
que o “até quando” faz sempre uma projeção distante. Esta é uma pergunta de um
coração em intensa agonia.
Como ele sabe que o seu livramento é impossível por si mesmo, e, ao mesmo
tempo, considerando a gravidade de sua situação e sua fé em Deus, clama ao seu
Senhor: “Volta-te, SENHOR, e livra a minha alma; salva-me por tua graça (ds,x,) (hesedh)” (Sl 6.4). Não é à toa que nos dez versículos deste salmo o salmista repete o
nome de Deus 8 vezes, sendo que 5 delas nos quatro primeiros versos, onde a sua
situação é mais tragicamente descrita.
Ele sente a morte aproximar-se (Sl 6.5). Está exausto, cansado de gemer. Este
cansaço além de associado à sua dor física e espiritual, relaciona-se também à sensação de que parece debalde o seu gemido (hx'na
" )] ('anachah). Aliás, o gemido é re12
sultante também de sua desolação. O seu choro é contínuo e intenso (6-7). No entanto, parece que nada disso adiantava, e, a bem da verdade, nem Davi chorava
com algum propósito específico. Nesta descrição hiperbólica, vemos um homem profundamente triste e magoado cujas lágrimas são constantes e incontroláveis nas ho9
Derek Kidner, Salmos 1-72: introdução e comentário, São Paulo: Mundo Cristão/Vida Nova, 1980, p.
76.
10
11
Ne 4.2; Is 16.8; Jl 1.10; Na 1.4 (duas vezes).
“O rei se lamentará, e o príncipe se vestirá de horror, e as mãos do povo da terra tremerão (lhB)
(bahal) de medo; segundo o seu caminho, lhes farei e, com os seus próprios juízos, os julgarei; e saberão que eu sou o SENHOR” (Ez 7.27). “Ouvindo, pois, o filho de Saul que Abner morrera em Hebrom, as mãos se lhe afrouxaram (lhB) (bahal), e todo o Israel pasmou” (2Sm 4.1).
12
Vejam-se: Sl 69.3; Is 49.4; Jr 45.3
“Salva-me por tua graça” (Sl 6.1-10)[4] – Rev. Hermisten − 14/06/10 – 4
ras da noite. Como disse Calvino: “A tristeza que domina a mente facilmente
segue sua rota rumo aos olhos, e seguindo essa via concretamente se reve13
la”.
Davi permanece insone e, por isso mesmo, ele parece prematuramente mais velho e com o consequente enfraquecimento de sua visão: “Meus olhos, de mágoa, se
acham amortecidos, envelhecem por causa de todos os meus adversários” (Sl 6.7).
Aqui temos um Davi quase irreconhecível. Aquele pastor protetor de suas ovelhas, corajoso guerreiro, foragido, estrategista de pensamento tão rápido, tão bem
acostumado aos desafios dos mais variados, agora sente-se inativo: “Estou cansado
de tanto gemer.... por causa de todos os meus adversários” (Sl 6.6-7).
O salmista se sente tão fraco que é incapaz de esboçar qualquer reação; ele apenas geme e chora. Aparentemente está totalmente entregue aos seus adversários.
Notemos que todas estas expressões servem para mostrar o quão intenso e totalmente debilitado está o salmista: corpo e alma; o homem integral está abalado. A
sua alma treme mais do que o corpo: “a minha alma (vp,n)< (nephesh) está profunda14
mente (daom.) (me`od) perturbada (lhB) (bahal)” (Sl 6.3). A sua angústia, portanto,
não é apenas física. O amor de Deus parece distante e a Sua ira uma realidade pre15
sente. A sua aflição é maior do que todas as outras aflições. “Considerando o
quanto Deus estava desgostoso com ele [Davi], viu, por assim dizer, o inferno
escancarado para recebê-lo; e a fadiga mental que isso produz excede a
todos os demais sofrimentos. Aliás, quanto mais sinceramente é um homem
devotado a Deus, muitíssimo mais severamente perturbado é ele pelo senso
da ira divina; e é por isso que as pessoas santas, que de outra forma são dotadas de inusitada fortaleza, têm revelado neste aspecto muito mais debilidade e necessidade de determinação”.16
Há uma tendência natural em nos solidarizar com o salmista. Às vezes acontece
conosco também quando vemos alguém sendo disciplinado. Por um momento temos
a impressão que quem aplicou a pena está errado, que quem está sofrendo está coberto de razões. “Para que tanto rigor?”, perguntamos um tanto misericordiosa e irresponsavelmente. Quem já não viu um pai disciplinado o filho no mercado e, diante
do choro da criança ficou com pena sem saber ao certo o que o pequeno fez? Ten13
14
15
João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 1, (Sl 6.7), p. 132-133.
Este advérbio denota a dor superlativa de sua alma.
Vd. C.F. Keil; F. Delitzsch, Commentary on the Old Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, (s.d.), Vol. V, (Sl 6.2-4), p. 133.
16
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 6.6-7), p. 131. “Ora, não podemos tirar bom proveito da Sua disciplina, a não ser que, julgando que Ele está indignado com os nossos vícios
e maldades, consideremos o Senhor propício a nós,e que Ele nos trata com afetuoso amor”
(João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa,
São Paulo: Cultura Cristã, 2006, Vol. 2, (II.5), p. 178).
“Salva-me por tua graça” (Sl 6.1-10)[4] – Rev. Hermisten − 14/06/10 – 5
demos a simpatizar com aqueles que estão circunstancialmente mais fracos e aparentemente indefesos. O sofrimento dá-nos a impressão que apaga todas as nossas
transgressões. Quando alguém chora, por exemplo, parece que qualquer tentativa
de análise objetiva desaparece; o choro parece justificar qualquer coisa.
Retornando ao salmo, podemos destacar que ele estava profundamente amargurado. Prossigamos em nossa análise.
2. O QUE ELE FEZ:
Nesta altura faz-se necessário que façamos algumas perguntas objetivas: o que
causou esta dor tão intensa no salmista? O que ele fez para estar nesta situação? É
justo o seu sofrimento? Vejamos então o que ele mesmo diz:
A) Pecou:
O salmista pecou e tem consciência disso; ele sabia que a fúria de Deus era
resultante de sua desobediência; ele reconhece o seu pecado, daí dizer: “Senhor
não me repreendas na tua ira, nem me castigues no teu furor” (1). Davi tinha consciência de que era merecedor de repreensão e de castigo da parte de Deus. Ele sabia
que o seu problema era com Deus – já que pecara contra Ele –, mas, também sabia
17
que os homens eram seus agentes.
Uma das coisas mais difíceis de fazer é olhar os nossos pecados de frente e não
tentar usar de subterfúgios, não buscar desculpas, antes encará-los para poder vencê-los. No entanto, este é um ponto fundamental; o reconhecimento de nosso pecado. “Se você não reconhecer que, todo o tempo em que estiver nesta vida e
neste mundo, haverá este terrível poder infernal dentro de você, ao seu redor e sobre você, então será um mero neófito nestes assuntos! (...) O primeiro
passo é que o homem tem que reconhecer e confessar sua pecaminosida18
de”.
Davi fez isso: assumiu o seu pecado diante de Deus.
B) Expôs a Deus a Sua dor:
“.... o SENHOR ouviu a voz do meu lamento” (Sl 6.8).
O fato do salmista reconhecer o seu pecado não elimina a dor de seu sofrimento.
17
“Em Deus, que é juiz, não há perturbação. Todavia, os atos de seus servos, chama-se sua
ira” (Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulinas, 1997, IX/1, 3, p. 62).
18
D.M. Lloyd-Jones, O Clamor de um Desviado, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas,
1997, p. 16-17.
“Salva-me por tua graça” (Sl 6.1-10)[4] – Rev. Hermisten − 14/06/10 – 6
Nos colocarmos em relação correta com Deus não quer dizer que de forma automática estejamos livres de nossos atos pecaminosos e de suas consequências. Portanto, ainda que a confissão nos traga alívio, não significa necessariamente que os
efeitos de nossos pecados sejam aliviados. Davi demonstra isso expondo a Deus o
seu lamento.
O salmista sabia que tinha pecado contra Deus; por isso, sentia na pele, na alma
e nos ossos a dor das consequências de seus atos. No entanto expôs a Deus o que
estava sentindo, como estava angustiado com tudo isso, como sofria por causa do
seu pecado e consequentemente pelo peso da mão de Deus sobre ele.
Ao contrário de nossos primeiros pais, Adão e Eva, que envergonhados, tentaram
fugir da presença de Deus, Davi, sem dúvida, também envergonhado, expôs a Deus
a sua dor.
C) Suplicou a Deus:
Ele suplicou a Deus e já se conforta em saber que Deus ouviu o seu lamento e
a sua súplica, acolhendo, tomando para si a sua oração “O SENHOR ouviu a minha
súplica; o SENHOR acolhe a minha oração” (Sl 6.9).
A nossa questão agora é: o que o salmista pediu a Deus?
3. O QUE O SALMISTA SUPLICOU A DEUS:
O que pedimos a Deus em nossas aflições? O que dizemos a Deus? Toda oração
é lícita? Quando estamos aflitos tudo é válido?
O salmista sabe que pecou; por isso está intranquilo, ele não roga amparado em
seus feitos ou suposta inocência, antes, apela para a misericórdia e graça de Deus.
“A ansiedade e a tristeza reduziram Davi à paralisia do desespero próprio em
que o seu único remédio é uma confiança implícita na misericórdia de
19
Deus”.
Vejamos então, o que o salmista suplicou:
A) Não o repreenda e castigue na Sua Ira:
“.... não me repreendas (xk;y") (yakah) na tua ira (@a;) (aph), nem me castigues
20
(rs;y)" (yasar) no teu furor (hm'xe) (chemah)” (Sl 6.1).
19
Leslie S. M’Caw, Salmos: In: F. Davidson, ed. O Novo Comentário da Bíblia, 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 1976, p. 503.
20
De modo semelhante ao salmo 38.1.
“Salva-me por tua graça” (Sl 6.1-10)[4] – Rev. Hermisten − 14/06/10 – 7
A repreensão de Deus bem como a sua disciplina, tinha em vista a paternal correção de seu pecado e a sua educação conforme o alvo proposto por Deus em harmonia com a Aliança. “A disciplina tem seu fundamento teológico na aliança
21
que Yahweh estabelece com Seu povo”. Enquanto que a repreensão (xk;y")
(yakah) parece acentuar o aspecto do convencimento do pecado conforme a Lei de
22
Deus, o castigo (rs;y)" (yasar) denota mais a instrução paternal. A disciplina de Deus
revela o Seu amor. Como escreveria Salomão: “11 Filho meu, não rejeites a disciplina
do SENHOR, nem te enfades da sua repreensão. 12 Porque o SENHOR repreende
(xk;y") (yakah) a quem ama, assim como o pai, ao filho a quem quer bem” (Pv 3.1112). Davi sabia disso tudo. Contudo, quem deseja livremente a ira de Deus? Por intermédio de Jeremias, Deus nos ensina a pedir: “Castiga-me (rs;y)" (yasar), ó Senhor,
mas em justa medida, não na tua ira (@a;) (aph), para que não me reduzas a nada”
(Jr 10.24). Ele pede a Deus, então, que o discipline com misericórdia. Por ter pecado, Davi deseja a correção amorosa de Deus, a sua salvação, não o castigo que
consistisse na sua alienação de Deus. Aqui temos uma disciplina restauradora. Seja
qual for o pecado cometido por Davi, o certo é que ele já se arrependeu e está buscando a restauração de sua total comunhão com Deus. O objetivo de Deus ao nos
disciplinar é nos tornar semelhantes a Cristo em quem temos a verdadeira humani23
dade e a verdadeira divindade (Rm 8.28-29).
Calvino faz um extenso e proveitoso comentário comparativo:
“Vamos aqui referir-nos a todas as punições em geral com a palavra juízo. Este nós dividiremos em duas espécies, quais sejam, o juízo de vingança ou vindicação, e o juízo de
correção ou disciplina. Pelo juízo de vindicação o Senhor pune de tal forma os Seus inimigos que demonstra a Sua ira contra eles para pô-los a perder, destruí-los e reduzi-los a
nada. Portanto, trata-se de vingança ou vindicação de Deus quando a punição que Ele
envia vem junto com a Sua ira. Pelo juízo de correção ou disciplina Ele não pune com fúria e não castiga para pôr a perder ou para humilhar as pessoas. Por isso, se quisermos falar em termos próprios, essa forma de punição não deve ser chamada vingança ou vindicação, mas admoestação e repreensão. Um pertence a um juiz, o outro a um pai. Porque o juiz, ao punir um malfeitor, pune a sua falta e o seu malefício. Já um pai, ao corrigir
o seu filho, não tem por objetivo vingar a falta que ele cometeu, mas, antes, procura ensiná-lo e torná-lo mais prudente no futuro”.
24
Sabemos, portanto, que a instrução de Deus é necessária e que somos bem21
Paul R. Gilchrist, yãsar: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 632.
22
Ver: Paul R. Gilchrist, Yakah: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia
do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 615-616.
23
28
“ Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que
29
são chamados segundo o seu propósito.
Porquanto aos que de antemão conheceu, também os
predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre
muitos irmãos” (Rm 8.28-29).
24
João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa,
São Paulo: Cultura Cristã, 2006, Vol. 2, (II.5), p. 174.
“Salva-me por tua graça” (Sl 6.1-10)[4] – Rev. Hermisten − 14/06/10 – 8
aventurados quando seguimos os seus ensinamentos: “Bem-aventurado o homem,
25
SENHOR, a quem tu repreendes (rs;y)" (yasar), a quem ensinas (dm;l)' (lamad) a tua
26
lei (Sl 94.12). Também temos consciência de que a ira de Deus é a manifestação
27
da Sua justiça. A ira de Deus, portanto, não é caprichosa, é justa. Contudo, quem
poderia resisti-la em sua manifestação? Daí o salmista suplicar amparado no conhecimento de Deus: “Ele, porém, que é misericordioso, perdoa a iniqüidade e não destrói; antes, muitas vezes desvia a sua ira (@a;) (aph) e não dá largas a toda a sua indignação (hm'x)e (chemah)” (Sl 78.38). Isto nos conduz ao segundo ponto.
B) Compaixão:
O salmista sabendo de sua impossibilidade apela para a compaixão de Deus:
28
“Tem compaixão (!n:x)' (hanan) de mim, SENHOR....” (Sl 6.2). A súplica é feita por
alguém que nada tem a oferecer. Esta palavra é geralmente é usada denotando uma
situação extrema de tristeza e perigo associada à incapacidade de solucionar o problema (Vejam-se: Sl 4.1; 31.9; 41.4,10; 51.1; 56.1; 57.1; 86.3; 119.58).
C) Cura física e espiritual:
Devemos entender que a cura que pedia não era de nenhuma doença específica, mas sim, das consequências físicas decorrentes do seu pecado e da consciência angustiada de ter pecado contra Deus: “ 2 Tem compaixão de mim, SENHOR,
porque eu me sinto debilitado; sara-me, SENHOR, porque os meus ossos estão abalados (lhB) (bahal). 3 Também a minha alma (vp,n)< (nephesh) está profundamente
(daom.) (me`od) perturbada (lhB) (bahal); mas tu, SENHOR, até quando?” (Sl 6.2-3).
D) Livramento:
“Volta-te, Senhor, e livra (#l;x)' (halats) a minha alma....” (4). Davi suplica que
25
A idéia básica da palavra é a de treinar e educar, acostumar-se a; familiarizar-se com; aprender
(Cf. Walter C. Kaiser, Lâmad: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do
Antigo Testamento, p. 791; D. Muller, Discípulo: In: Colin Brown, ed. ger. Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, Vol. I, p. 662; A.W. Morton,
Educação nos Tempos Bíblicos: In: Merrill C. Tenney, org. ger., Enciclopédia da Bíblia, São Paulo:
Cultura Cristã, 2008, Vol. 2, p. 261).
26
Portanto, devemos suplicar pelo ensino de Deus: “Bendito és tu, SENHOR; ensina-me (‫()למד‬lamad)
os teus preceitos” (Sl 119.12). “Eu te expus os meus caminhos, e tu me valeste; ensina-me (‫()למד‬lamad) os teus decretos” (Sl 119.26). (Do mesmo modo: Sl 119.64,66,68,73, 108,124,135; 143.10).
27
“Deus não seria Deus se não odiasse o pecado e manifestasse Seu furor contra ele” (D.M.
Lloyd-Jones, O Caminho de Deus não o nosso, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas,
2003, p. 61).
28
É desta palavra que vem o nome Ana e seus derivados. Veja-se: Edwin Yamauchi, Hãnan: In: R.
Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida
Nova, 1998, p. 495.
“Salva-me por tua graça” (Sl 6.1-10)[4] – Rev. Hermisten − 14/06/10 – 9
assim como Deus o livrou antes, o faça agora, volte-se para ele e o livre. Aqui temos
a prática do que Deus ensina por meio de Asafe: “Invoca-me no dia da angústia; eu
29
te livrarei (#l;x)' (halats), e tu me glorificarás” (Sl 50.15).
Toda a oração de Davi se ampara não em seus supostos merecimentos, mas, na
graça de Deus; é ao Deus da graça a Quem ele recorre: “Salva-me por tua graça” (Sl
6.4). O restabelecimento do salmista só é possível pela graça de Deus visto que ele
sabe que transgrediu a lei de Deus e por isso também está consciente de que é jus30
ta a sua punição.
CONCLUSÃO:
Há neste salmo uma nota vibrante de gratidão: Deus ouviu a voz do seu lamento
e acolheu a sua oração; o salmista repete três vezes:
“O Senhor ouviu a voz do meu lamento” (8).
“O Senhor ouviu a minha súplica” (9).
“O Senhor acolhe a minha oração” (9).
Estas repetições são eloquentes: “A assídua repetição de uma sentença é
desnecessária numa narração, mas demonstra o afeto de alguém que está
radiante. Costuma assim falar os que se alegram, porque não lhes basta pro31
ferir uma só vez o motivo de sua alegria”.
A mudança de tom no salmo tem como ingrediente fundamental, a certeza de que
Deus ouviu o seu clamor. Nesta certeza Davi se fortifica e, agora, não apenas como
um crente restaurado, mas, também como rei, diz: “Apartai-vos de mim, todos os
que praticais a iniqüidade, porque o Senhor ouviu a voz do meu lamento” (Sl 6.8)
(Ver Sl 101).
IMPLICAÇÕES CONCLUSIVAS:
1) Conscientes de nossos pecados, não busquemos desculpas para eles, antes
confessemos a Deus rogando o Seu perdão.
2) O tempo da angústia por mais doloroso que seja deve também nos conduzir à reflexão a respeito de Deus e de nossa vida a fim de que possamos amadurecer
espiritualmente: “Antes de ser afligido andava errado, mas agora guardo a tua
palavra” (Sl 119.67). “Os eleitos, tanto quanto os réprobos, estão sujeitos
aos castigos temporários que pertencem somente à carne. A diferença
entre os dois casos está unicamente no resultado; pois Deus converte a29
30
31
Do mesmo modo: Sl 81.7; 91.15; 116.8; 119.153.
Vd. Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulinas, 1997, IX/1, 5, p. 64.
Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulinas, 1997, IX/1, 11, p. 68.
“Salva-me por tua graça” (Sl 6.1-10)[4] – Rev. Hermisten − 14/06/10 – 10
quilo que em si mesmo é um emblema de sua ira em meios de salvação
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de seus próprios filhos”.
Calvino faz uma indagação pertinente e desafiadora: “Quando ficamos sabendo que os castigos de Deus são açoites paternais, não é nosso dever
tornar-nos filhos dóceis, em vez de, resistindo, imitar aqueles para os quais
já não há esperança, endurecidos que estão por suas más obras? Estaríamos perdidos, se o Senhor não nos puxasse para Si por meio dos Seus cor33
retivos quando caímos”.
3) Por maiores que sejam os nossos pecados, exponhamos a Deus em oração, não
tenhamos vergonha de colocar diante de Deus as nossas angustias, temores e
ansiedades. Tenhamos vergonha de pecar. Lamentavelmente tendo feito isto, arrependidos, não tenhamos vergonha de confessar a Deus a nossa transgressão
rogando-lhe a graça do perdão.
4) Devemos ter sempre presente diante de nossos olhos que a restauração concedida por Deus à nossa vida é unicamente amparada em Sua misericórdia e graça, cujo fundamento é a obra redentora de Cristo.
5) Devemos estar sempre prontos para nos rejubilar com a resposta de Deus. Junto
com um coração suplicante devemos ter uma alma agradecida (Sl 6.5) “Esta é a
vantagem primordial das aflições, ou seja, enquanto nos tornam conscientes de nossa miséria, nos estimulam novamente para suplicarmos o fa34
vor divino”.
6) Calvino termina o comentário de Os 1.1-2, com esta oração, que bem pode ser
nossa à luz do que aprendemos:
“Conceda, Todo-Poderoso Deus, que, visto teres uma vez adotado a
nós, e continuares a confirmar esse teu favor por nos chamares incessantemente a ti mesmo, e que não só nos castigas severamente, mas tam32
João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002 Vol. 3, (Sl 79.1), p. 250. Calvino,
comentando a respeito da pedagogia das aflições, exorta: “Os homens são incapazes de sentir
seus pecados a menos que sejam levados pela força a conhecer-se por si mesmos. Por isso,
vendo que a prosperidade nos embriaga de tal maneira, e que quando estamos em paz
cada um se adula em seus pecados; temos que sofrer pacientemente as aflições de Deus.
Porque a aflição é a autêntica mestra que leva os homens ao arrependimento para que se
condenem eles mesmos diante de Deus e, sendo condenados, aprendam a odiar aqueles
pecados nos quais anteriormente se banhavam” (Juan Calvino, El Uso Adecuado de la Afliccion:
In: Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 19), p. 226).
33
João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa,
Vol. 4, (IV.17), p. 204. “....os crentes são açoitados, não para com isso satisfazerem à ira de
Deus, nem para pagarem o que é devido ao juízo que Ele lhes impõe, mas a fim de aproveitarem a oportunidade para arrependimento e para retorno ao bom caminho” (João Calvino,
As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, Vol. 2, (II.5), p.
177).
34
João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 1, (Sl 30.8), p. 635.
“Salva-me por tua graça” (Sl 6.1-10)[4] – Rev. Hermisten − 14/06/10 – 11
bém gentil e paternalmente nos convidas a ti mesmo, e nos exortas, ao
mesmo tempo, ao arrependimento — ó, permitas que não fiquemos endurecidos de modo a resistir à tua bondade, nem que abusemos de tua incrível tolerância, mas que submetamo-nos a ti em obediência; para que,
todas as vezes em que ocorra de tu nos castigar severamente, possamos
suportar tuas correções com genuína submissão de fé, e não continuarmos indomáveis e obstinados até o fim, mas retornarmos a ti, a única fonte
de vida e salvação, a fim de que, assim como começaste em nós uma
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boa obra, também a aperfeiçoe até o dia de nosso Senhor. Amém”.
Maringá, 11 de junho de 2010.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
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John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996,
(Os 1.2), Vol. XIII/2, p. 46.
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“SALVA-ME POR TUA GRAÇA” (SL 6.1-10) [4]