GRAMSCI E A REPÚBLICA Fernando Filgueiras Doutorando em Ciência Política no IUPERJ Mestre em Ciência Política pela UFMG Professor de Sociologia Jurídica na Faculdade Metodista Granbery Membro do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa” da UFJF [email protected] I A tradição italiana de pensamento sempre foi cercada por uma preocupação com a corrupção da ordem política e social. Desde a formação de Roma que o espírito da corrupção da sociedade e da ordem política ronda as mentalidades, e faz de seus intelectuais homens inquietos com a república e com a sua autodeterminação. Quando da morte de César em 43 a.C., precipitou-se uma crise na república romana, a qual resultou em lutas fratricidas pelo poder. A vitória de Augusto e a implantação do regime imperial através da pax romana trariam de volta a segurança e a tranqüilidade necessárias, mas a desejável liberdade enquanto fator de uma cidadania ativa seria fundamentalmente deixada de lado. O império, para muitos autores da tradição italiana, seria a corrupção da causa romana, a qual foi particularmente retratada por Ovídio, em seu Metamorfoses, para o qual o apego à tradição, à glória na guerra ou nos tribunais e a atividade política intensa deram lugar ao culto ao amor, ao pacifismo e à apatia diante da res publicae. Ovídio retrata a Roma do mundanismo, em que as vantagens privadas estão acima de qualquer construção do bem comum. O mundo das paixões seria o mundo da decadência moral, dos homens apáticos e auto-interessados. 1 As Metamorfoses de Ovídio é a teoria da corrupção em Roma, que mais tarde seria significado da fragmentação social, da busca incessante pelas vantagens privadas e da ausência de um centro político que possibilitasse a manutenção da liberdade, que somente poderia ser conquistada através da própria ordem social. É neste sentido de resgatar as bases da república romana que o espírito latino de Maquiavel teoriza o modo segundo o qual a liberdade pode ser alcançada num mundo fragmentado, marcado pelo mundanismo e pela apatia. Apenas a cidadania ativa e a reconstrução de uma república, nos moldes da república romana, poderiam substituir os efeitos maléficos do período imperial e reconstruir a esfera pública feita de homens de virtú. O autor de O Príncipe trabalha a política de um ângulo em que ela é uma função do homem sujeito da história, do homem livre do idealismo e que constrói sua realidade através de seus atos e desejos. Esta concepção parte da idéia de homens de virtú, que sabem como dominar a Fortuna1 e lidar com as contingências da política cotidiana. Na História de Florença, Maquiavel mostra como a corrupção resultou na ameaça da liberdade, já que os cidadãos de Florença foram perdendo, ao longo do tempo, sua virtú. Maquiavel acusa tanto a população quanto a aristocracia pela corrupção da república florentina. De um lado, porque a população promoveu a licenciosidade e a apatia. De outro lado, porque os aristocratas promoveram a escravidão e passaram a legislar em causa própria. E como resultado da corrupção, o povo latino encontrava-se fragmentado, sem honra e sem república. A glória do povo latino apenas seria alcançada caso a fragmentação desse lugar a uma república, como ressalta Maquiavel em seu “manifesto político”. Como herdeira de toda uma tradição latina “sem lugar”, já que a Itália se dividia numa miríade de repúblicas as mais diversas, a obra de Gramsci guia-se pela reconstrução do centro político das repúblicas italianas, dando termo à fragmentação e à apatia do povo. Como crítico do Risorgimento, Gramsci ocupa-se de pensar os elementos constituintes de uma verdadeira independência e unidade política na Itália, nos idos da primeira metade do século XX. Sua intenção é refletir sobre a constituição 1 A Fortuna é uma referência a uma boa deusa da mitologia latina, filha de Júpiter, que tinha o poder de dar todos os bens que os homens desejassem. Para conseguir suas benesses, os homens necessitam, de acordo com Maquiavel, seduzir esta deusa e se mostrar vir, de inquestionável coragem e diligência para alcançar seus presentes. Os homens, para atingir as benesses da Fortuna, necessitam possuir a virtú no grau mais elevado, isto é, necessitam ser virtuosos e viris o suficiente para que tenham a capacidade de ação no tempo, sabendo lidar com as contingências de seus atos, o que resulta na prosperidade. Conf. MAQUIAVEL, Nicolau. História de Florença. São Paulo: Musa, 1995. 2 do centro da vida política italiana no pós-unificação e elencar um conjunto de fatores que seriam responsáveis pela “verdadeira” modernização italiana. Modernização esta que, segundo Gramsci, seria representada por uma morfologia e uma semântica próprias de uma eticidade caracterizada por uma cidadania ativa, por parte de uma classe operária em formação, e pelo papel do Estado como fator de integração social, econômica e política. É neste sentido que, para a unificação das repúblicas italianas se tornar efetiva, é fundamental fazer renascer o espírito da república romana. E é por isto que o crítico do Risorgimento evoca Maquiavel, porque a unificação depende, necessariamente, de acordo com Gramsci, da formação de uma vontade coletiva para um determinado fim político. Gramsci, em termos, pouco se preocupa com a “estrutura”, sendo o autor marxista que de fato fez uma teoria da “superestrutura” e como que os elementos da ideologia são constituintes da unidade política e social. Nos Cadernos do Cárcere de Gramsci2, O Príncipe de Maquiavel significa uma ideologia política, uma criação concreta que congrega um povo fragmentado e disperso, fazendo nele suscitar a vontade coletiva. O príncipe é o elemento que transforma as paixões políticas em virtudes, dando uma forma concreta à vontade coletiva, a qual possibilita uma verdadeira reconstrução das bases sólidas de uma esfera pública. Desta forma, por se tratar de uma ideologia, o elemento mítico do príncipe como chefe político e condotiere ideal do povo não significa uma doutrina de imediatismo objetivo, mas um mito, nos termos de Sorel, que congrega formas de consenso ideológico que possibilitam atingir o telos positivo, através do acordo das vontades associadas. O Príncipe de Maquiavel é um “manifesto político” em nome da unificação social e política. Contudo, na modernidade, não é possível pensar, em sociedades complexas, o mito soreliano se realizando através de uma pessoa real. Os homens são tão iguais em sua consciência, que não é possível a um indivíduo concreto exercer a virtude necessária para transformar sua ação em mito, assim como o fez César. De acordo com Gramsci, apenas organizações voltadas para a formação da vontade coletiva podem efetuar o mito. O príncipe moderno não é um indivíduo, mas o partido político, que germina a vontade coletiva através de ações parciais e afirmadas historicamente, que tendem a se 2 Conf. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 3 tornar universais e totais, já que a vontade coletiva é a necessidade elevada à consciência e convertida em práxis transformadora. Os partidos políticos modernos exercem a ideologia e disseminam o mito, possibilitando aos homens sua unificação em torno de uma concepção de bem. O partido político é o moderno príncipe das sociedades complexas da modernidade, organizadas institucionalmente em torno do princípio da divisão do trabalho. É nas sociedades divididas funcionalmente, entretanto, que o moderno príncipe não funda uma nova ordem política ou uma nova sociedade, mas restaura e reorganiza a sociedade nos termos de sua base, não nos termos da fundação. O moderno príncipe pauta-se por uma ação de reconstrução intelectual e moral, que se sobrepõe à estrutura econômico-corporativa da modernidade através da constituição de uma nova estrutura de trabalho. O trabalho, que segundo Gramsci, continua sendo fator primordial das necessidades materiais humanas e da organização funcional da sociedade moderna, o qual se encontra dividido e seu lucro expropriado por uma burguesia “parasitária”. O papel do moderno partido político é reconstruir as bases de acordo com as quais o trabalho é efetuado na sociedade moderna. O partido político deve ser um “chefe”, que saiba “o que quer e como obter o que quer”, modificando a estrutura do trabalho através da associação das livres “paixões” dos homens, produzindo um largo alcance histórico de mudança e transformando-se em categoria fundamental da filosofia da práxis, transformando as aparências em fatos concretos das necessidades humanas. A paixão como categoria, catalisada pelo partido político, transforma-se em impulso imediato para a ação permanente e orgânica da vida econômica, superando-a e fazendo emergir uma vontade coletiva que permita o verdadeiro renascer. Para Gramsci, a política é a ação permanente, a gênese de organizações permanentes que se identificam com a “estrutura” econômica e mudam seus alicerces. Nestes termos que a burguesia trata de diferenciar funcionalmente a estrutura econômica da superestrutura ideológica, formando um sistema de dominação que centraliza o poder através de mecanismos coercivos e persuasivos do aparato estatal e jurídico. Apenas o partido político pode romper com o sistema de dominação burguês, porque ele transforma paixões desconexas em ideologia de restauração. 4 A pretensão, ou a sintaxe da teoria de Gramsci é criar condições para que a existência da divisão do poder entre governantes e governados não seja uma relação necessária, mas que se estabeleça um consenso através da vontade coletiva condensada mediante o partido político, cujo espírito é hoje o elemento mais adequado para elaborar a capacidade de transformação, através da formação dos dirigentes e da capacidade de direção. O partido político, entendido como o moderno príncipe, é o único elemento capaz de fazer com que o espírito da modernidade3 se realize de modo efetivo. Quando pensa em partido, no entanto, Gramsci não pensa em organizações instrumentais e no mero sentido legal, que reforçam a dominação burguesa, mas no partido orgânico, que atua como força diretriz em si, reunindo as frações da sociedade em torno de um consenso universal. Gramsci identifica dois tipos de partidos que se apresentam ao público e que fazem a abstração da ação política imediata. Um primeiro tipo que é constituído por uma elite cultural, que dirige a sociedade sob o ponto de vista da cultura e da ideologia em geral. E um segundo tipo mais recente, o partido da não elite, das massas que podem ser manobradas por mitos messiânicos ou discursos morais. Gramsci condena a visão segundo a qual a massa é manobrável, seja por uma elite cultural, seja através de uma fidelidade genérica a um centro político. O autêntico organismo das massas tem que assegurar a livre expressão dos anseios dos grupos sociais de que sua linha de ação é constituída. Desta forma, segundo Gramsci, a escrita da história de um partido é a escrita da história geral de um país, porque o partido tem sua gênese na ideologia dominante ou até mesmo da ausência desta ideologia. Por isso que um partido não pode prescindir dos elementos básicos constituintes de sua ideologia, que são a força coesiva (fidelidade), a liderança (inventividade) e o elemento médio (fator de ligação dos dois anteriores). Por se tratar, portanto, de elementos ideológicos, há uma correlação, de acordo com Gramsci, entre partidos e classes sociais, tornando o primeiro uma nomenclatura da segunda. Já que um partido representa uma “parte” da sociedade, que pode ter uma função progressiva ou regressiva, conforme cada uma lute pela hegemonia na sociedade 3 Ao falar de “espírito de partido”, notamos em Gramsci um certo elemento hegeliano de eticidade do Estado como sujeito universal, capaz de mediar o singular e o plural nos termos da formação de uma intersubjetividade não forçada da vontade coletiva. Contudo, é importante diferenciar duas variáveis acessórias aduzidas por Gramsci de uma função progressiva ou regressiva do partido político. No caso da eticidade do Estado burguês, segundo o autor, a mesma se realiza especialmente na vontade do conformismo, própria da função regressiva do partido burguês hegemônico. 5 civil, seu significado é a capacidade com que consegue estabelecer um consenso em torno dos valores morais e culturais através da persuasão constante. A eticidade do Estado se realiza através de um consenso dos governados, consenso este que está organizado pelo partido hegemônico e que é reforçado pela função “educativa” do partido. Contudo, o Estado burguês, nos termos de Gramsci, é a “hegemonia couraçada de coerção”, a qual ocorre através do direito e da identificação do Estado com o governo. O Estado burguês coaduna o elemento político e econômico através do corporativismo moderno, que realiza a dominação existente e impõe, mediante coerção, uma consciência externa à consciência do operariado. Desta forma, o papel do partido junto às massas significa a realização plena da eticidade através da identificação do momento histórico para a realização da revolução, durante a crise de hegemonia do partido dirigente. Crise esta que ocorre quando a classe dirigente falhou em sua empresa política, seja através do fim da dominação cultural, seja pela passagem da passividade para uma certa atividade por parte das massas, no sentido de reivindicações, em seu conjunto desorgânicas, que constituem uma revolução. A crise de hegemonia, no sentido estabelecido por Gramsci, ocorre quando o partido já não é mais reconhecido como expressão de sua classe. São nos momentos de crise de hegemonia que, normalmente, surge o cesarismo como equilíbrio instável e pessoal das forças sociais em confronto aberto, em que a continuação da luta resultaria na destruição recíproca das forças. O equilíbrio surge ou retificando o Estado atual ou transformando-o no sentido de mudança de uma fase histórica introduzida com inovações que representem esta transformação. No segundo caso, o cesarismo pode conduzir a uma revolução passiva, que nos termos de Gramsci, significa a mudança histórica sem o desaparecimento das formações sociais tradicionais, na medida em que as forças produtivas que nelas se desenvolveram permanecem no lugar ulterior do desenvolvimento progressivo. A revolução passiva é a transformação sem a mudança no conteúdo material da vida, retificando velhas práticas de dominação, mesmo que tenha havido uma mudança na forma estatal e jurídica. Mas se a sociedade de massas é sujeita a todo tipo de cesarismo, como fazer com que a transformação histórica seja de fato efetiva? 6 II A idéia de risorgimento vem do verbo risorgere, que significa ressuscitar, renascer. O Risorgimento foi um conjunto de movimentos liberais e nacionais italianos que ocorreram no século XIX, conduzindo a Itália à independência nacional pelas guerras do Piemonte contra a Áustria e à sua posterior unificação, que se efetuou em 20 de setembro de 1870. Os referidos movimentos liberais se dividiam em dois: os Moderados, liderados por Cavour, e o Partido de Ação, liderado por Mazzini e Garibaldi. A unificação, na ótica dos dois movimentos, lançaria a Itália para a modernidade e devolveria seu poder histórico, herdeiro de Roma. O problema, segundo Gramsci, é o processo mediante o qual o Risorgimento foi conduzido pela direção dos dois principais partidos, bem como o pós-unificação e as lutas internas do movimento burguês com o intuito de concentrar o poder. O fato, segundo o crítico do Risorgimento, é que o exame do renascimento do Estado italiano deve ser realizado pelo critério metodológico da análise do “domínio” e da “direção intelectual e moral” do grupo social que quer se tornar hegemônico. Nenhuma transformação histórica ocorre sem que lideranças consigam formar consensos (mesmo que mínimos) em torno de sua causa. No caso italiano, a causa do Risorgimento divide-se entre dois partidos, cada um exercendo os dois elementos centrais da mudança histórica, mas representando apenas um movimento. O Partido de Ação conseguia exercer o domínio sobre a classe burguesa em ascensão na Itália, bem como coadunar alguns elementos populares em torno da causa da unificação. Contudo, faltava ao Partido de Ação o elemento dirigente da política, capaz de resolver os conflitos internos do movimento, bem como pregar os valores da mudança, que eram largamente encontrados junto aos Moderados. Se o Partido de Ação exercia algum domínio, os Moderados exerciam a liderança intelectual e política e, de fato, se tornavam vanguarda real, orgânica, das classes altas. Os Moderados eram intelectuais e organizadores políticos. Eram formados pelos grandes agricultores, empresários comerciais e industriais, que condensavam organicamente a massa dos intelectuais em torno do movimento de unificação. De outro lado, o Partido de Ação não tinha um programa de governo, era apenas, de acordo com Gramsci, um organismo de agitação e propaganda, capaz de gerar o domínio sobre a massa através da 7 força da eloqüência do discurso e da capacidade de agregar elementos populares à causa da unificação. É neste sentido que o Risorgimento pode ser entendido como um único movimento liberal, apesar de ter dois partidos. Enquanto o Partido de Ação exercia o domínio, os Moderados exerciam a direção do movimento burguês. Além disso, a relação entre o Partido de Ação e os Moderados explica certas conseqüências do Risorgimento, como a ausência da reforma agrária no conteúdo programático do movimento, bem como a ausência de reivindicações das massas populares e camponesas. O Risorgimento foi um movimento político burguês, cujo horizonte era lançar a Itália à modernidade sobre a tutela dos Moderados. O Partido de Ação estava subordinado aos Moderados, mesmo que de modo irregular, porque não contava com o elemento intelectual que fosse capaz de dirigir a política. A dificuldade para o Risorgimento era agregar os diferentes interesses das diversas repúblicas italianas. Enquanto ao Norte interessava a independência em relação à Áustria e o impulso à modernização, ao Sul interessava o fim do poderio dos Bourbons e a manutenção de um certo status quo, já que a modernização não interessava a uma região caracteristicamente agrícola e latifundiária. Além da diferença Norte e Sul, dificultava o projeto da unificação e independência o poderio do papado e as lutas internas entre as repúblicas, como, por exemplo, a corrente de Guerrazzi e Montanelli contra a anexação da Toscana ao Piemonte, bem como o ultimato dos latifundiários da Sicília para a reconstituição do ducado de Milão. Diversos eram os interesses e maior era a necessidade de uma direção política, de acordo com Gramsci, que desse conta de liderar intelectualmente o projeto do Risorgimento. A formação do bloco nacional em 1848 sob a hegemonia dos Moderados foi o fator de formação da direção política que tornou possível a pregação da unidade realizada pelo Partido de Ação. O fundamental é que não havia nenhum elemento jacobino em nenhum dos dois partidos, pois a luta era travada no âmbito internacional contra a Áustria e não interno, que não contava com uma burguesia forte e não havia um momento histórico propício à formação da classe revolucionária. Da agregação das forças políticas italianas sob a tutela dos Moderados e a ação política do Partido de Ação, resultou um consenso intelectual de que a independência e 8 a unificação das repúblicas italianas poderia resultar na manutenção do status quo, e não refletir em uma mudança estrutural que colidisse com os interesses arraigados em jogo. O Risorgimento foi uma revolução sem a mudança estrutural da dominação da burguesia. A mudança política foi realizada sem nenhuma mudança substantiva no modo de produção, mantendo intacta a velha formação econômico-latifundiária no Sul e econômico-industrial no Norte, sujeitas a todo tipo de corrupção. Gramsci relata que o Sul continuava reduzido a um mercado semicolonial e era mantido disciplinado através de medidas de repressão com os massacres periódicos de camponeses, paternalismo, favorecimento pessoal ao grupo de intelectuais dirigentes (entre eles Croce e Fortunato) através de empregos na administração pública, licenças de saques, privilégios judiciários e burocráticos. De outro lado, o Norte defendia formas de protecionismo que favorecesse os industriais em detrimento dos operários, reforçasse a economia no sentido de manutenção da hegemonia e criasse uma forma corporativa de relacionamento do Estado com a sociedade, modernizando o capitalismo do Norte. O fato, segundo Gramsci, que a Itália tornou-se independente e unificada, mas não mudou substantivamente seu modo de produção em função de problemas na direção do movimento. Não havia na Itália, naquele momento, um partido revolucionário, um príncipe moderno, que, na visão de Gramsci, seria o centro de uma ampla rede de instituições sociais e políticas que comporia a sociedade civil e superaria os resíduos corporativos (que o pensador italiano define como "egoístico-passionais") da classe operária e contribuísse para a formação de uma vontade coletiva nacional-popular. Enquanto organismo de mediação e de síntese, o partido deve assumir iniciativas políticas que englobem a totalidade dos estratos sociais e vigorem sobre a universalidade diferenciada do conjunto das relações sociais, o que não ocorreu na Itália do Risorgimento, devido à manutenção do status quo e o reforço da dominação burguesa. O Risorgimento foi uma revolução passiva uma vez que as formações sociais tradicionais não desapareceram e as forças produtivas permaneceram na mesma posição original. A explicação seria a fraqueza do elemento dirigente do movimento liberal, que, nos termos de Gramsci, não soube guiar o povo através da paixão, não criou uma classe dirigente difusa e enérgica, não inseriu o povo no quadro estatal, manteve a mesquinha vida política, o grupo dirigente manteve-se cético e covarde e, principalmente, a posição 9 internacional do novo Estado era periclitante, já que não dispunha de autonomia porque era minado no centro pelo papado e pela passividade das massas. O Risorgimento disseminou uma consciência egoísta junto às massas, uma forma racional de justificar a ação humana, que favoreceria a formação burguesa do novo Estado e impediria, por outro lado, a posterior formação da vanguarda da classe operária e a disseminação de uma vontade coletiva diferenciada, pautada por um outro momento histórico e que lançasse bases sólidas de transformação. O Risorgimento foi uma revolução passiva, em que as massas apenas assistiram hipnotizadas um movimento histórico cuja deficiência seria o elemento dirigente. Como massa de manobra dos liberais, faltava a eles um elemento primordial para a reforma intelectual e moral da Itália, que congregasse a formação da vontade coletiva e desse sustentação a mudanças históricas de fato. Como não havia uma direção política eficiente, nos termos da formação de uma vontade nacional-popular, forma-se uma hegemonia fraca, que mais tarde se viu derrotada pelo cesarismo de Mussolini, que equilibrou pessoalmente as forças sociais em conflito latente desde a unificação. O fato é que a mudança fazia os grupos sociais permanecerem no mesmo lugar; os industriais do Norte dominando a população urbana e os latifundiários do Sul cometendo todo tipo de barbárie contra os camponeses. A Itália estaria condenada à corrupção se não insurgisse um novo partido, que regulasse os elementos para a constituição de uma hegemonia com base em uma reforma moral e intelectual, vinculada às bases operárias. Elemento regulador esse que não centralizasse os fatores da mudança na burocracia do partido, tornando-o órgão de “polícia”, mas elemento de mudança concreta, com base numa eticidade renovada que contagiasse a massa e dirigisse a Itália rumo a uma transformação concreta das forças produtivas e das bases materiais da produção. A Itália poderia criar condições para que a existência da divisão do poder entre governantes e governados não seja uma relação necessária. O consenso através da vontade coletiva, condensado mediante o partido político revolucionário, poderia elaborar a capacidade de transformação, através da formação dos dirigentes e da capacidade de direção. O partido político, entendido como o moderno príncipe, é o único elemento capaz de fazer com que o espírito da modernidade se realizasse de modo efetivo, e recuperasse a grandeza romana deveras perdida com a corrupção histórica. 10 III Teorias são constituídas com base em uma visão de futuro, justificando racionalmente determinados valores, que podem ser formados historicamente em uma tradição de pensamento. No caso da teoria de Gramsci, a herança latina é marcante e não é por acaso que ele evoca Maquiavel para pensar uma eticidade transformadora, que fosse capaz de recuperar a grandeza do povo italiano. E também não é por acaso que Gramsci dá tanta atenção para o elemento dirigente da política, acreditando que o príncipe pode ser capaz de institucionalizar os interesses incompatíveis da esfera pública e garantir a liberdade. O “momento maquiaveliano” de Gramsci se explica pela incerteza e descontentamento com as mudanças em tela na sua Itália4. No século em que as mudanças de cunho econômico, no sentido do estabelecimento de um capitalismo e a formação de classes com base na existência material, já se tornavam presentes na Itália, era fundamental realizar a mudança com base numa reforma intelectual e moral, que nutrisse a vita activa no lugar da vita contemplativa. Nutrir uma vontade coletiva que fosse capaz de transformar as pequenas repúblicas fragmentadas em uma comunidade histórica particular, que criasse a história no sentido da busca pela liberdade através da ação política constante. Ao contrário do Risorgimento, em que a passividade da massa e as deficiências na direção minaram a autonomia do Estado italiano, que mais tarde ficou sujeito ao equilíbrio instável do Facismo. Gramsci, obviamente, não é um republicano, mas não consegue prescindir da tradição formada em sua cultura, de realizar uma ordem social integrada na Itália através do domínio político como uma esfera de proeminência legítima. O ponto, é que Gramsci destoa do marxismo vigente na Europa, expondo um contraste dramático com Marx ao celebrar e afirmar as tradições italianas, herdeiras do republicanismo. A semântica dominante na obra de Gramsci é o entendimento do homem moderno como 4 Fazemos uma analogia arbitrária de um momento maquiaveliano na teoria de Gramsci, do mesmo modo como descreve Abensour para o caso de Marx. Gramsci pretende em sua teoria política pensar a transformação da Itália no sentido da (1) da reativação da vita activa, (2) do vivere civile e da exigência de uma historicidade particular e, (3) da inscrição no tempo entendida como forma criadora potencial de história, manifestada enquanto comunidade histórica específica. Para mais detalhes, ver: ABENSOUR, Miguel, A Democracia Contra o Estado, Marx e o Momento Maquiaveliano, Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998. 11 subordinado às forças produtivas, em função da autonomia do econômico em relação ao Estado. Porém, a revolução e a mudança moral apenas ocorrerão através da política e da reforma intelectual, já que a “americanização” moderna implica numa forma de racionalismo nunca antes vista, capaz de sedimentar uma estrutura social individualizada, no sentido do egoísmo, e controladora, capaz de reprimir os indivíduos no sentido da ideologia estatal. As formas econômicas racionais criadas no capitalismo do início do século XX reprimem a animalidade natural do homem, desenvolvendo no operário “atitudes maquinais e automáticas”, desvinculadas da participação ativa da inteligência. A teoria de Gramsci dirige-se para um futuro em que os operários podem encontrar sua verdadeira liberdade, não aquela no sentido liberal, mas no sentido da autonomia política, da liberdade política através da formação de uma vontade coletiva, que tornasse o indivíduo livre através da própria ordem social. Não através do mundanismo e da apatia diante do público, mas mediante o apego à glória na guerra contra o capitalismo e a atividade política intensa, capaz de formar um consenso mediante o qual a emancipação de fato pode ser alcançada através da autodeterminação da massa através do partido político.