CAPÍTULO II – MORAL E HISTÓRIA SANCHEZ VAZQUEZ, Adolfo. ÉTICA. 18ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira Síntese elaborada por Luiz Gilberto Kronbauer Caráter Histórico da Moral. Definindo a moral como sendo o conjunto de normas que regulam as relações dos indivíduos entre si e destes com a sociedade, o autor conclui que a função da moral é, principalmente, a de harmonizar os interesse de cada indivíduo com os da sociedade. Como as sociedades humanas são históricas, mutáveis, também a moral muda com as mudanças da sociedade. Fato é que podemos falar de moral na sociedade antiga, moral feudal, moral moderna, etc. Há diversas morais de acordo com a diversidade de sociedades. Outro argumento do autor é o da historicidade do ser humano, isto é, a tese de que o ser humano não é um ente pronto por natureza, ele é aquilo que faz de si mesmo fazendo história; ele se auto-produz. Se o ser humano é histórico também a moral é histórica. Houve, contudo, ao longo da história três formas de fundamentação a-histórica da moral, que o autor considera falsas. • A primeira e mais difundida coloca Deus como origem e fundamento da moral, considera que as normas morais foram legadas por Deus, conseqüentemente, não estariam à mercê das mudanças históricas. • A segunda considera que a natureza é a origem e fonte da moral. As qualidades morais seriam instintivas, sendo comum aos humanos e animais. • A última afirma que o homem é a origem e o fundamento da moral. Homem entendido como uma essência universal, eterna e imutável, presente em cada ser humano. Origens da Moral. A moral surge com a passagem da forma natural de vida para o convívio social, que implica um distanciamento da natureza e o seu domínio mediante o trabalho social. Isso significa que Sanchez Vazquez vincula a relação dos homens entre si com a relação que eles estabelecem com a natureza, de que continuam fazendo parte. Na perspectiva marxista do caráter coletivo do trabalho, e da predominância das relações de trabalho como fator determinante da cultura e da moral, retoma a finalidade da moral: assegurar a concordância do comportamento de cada indivíduo com os interesse coletivos. Nas sociedades primitivas isso significava a absorção do indivíduo pelo coletivo, isto é, não havia possibilidade de manifestação da individualidade porque ela já se constituía em função do interesse coletivo. Na sociedade primitiva é o caráter coletivo da vida social que determina o que mais tarde se denominará de virtude ou vício: Valor é a valentia, a coragem para enfrentar os desafios da natureza e os inimigos do grupo; a covardia é o vício por excelência. A justiça é a repartição igual entre todos, por um lado, e a vingança coletiva por outro, sempre com a finalidade de fortalecer os laços que unem os membros da comunidade. Em não existindo a propriedade privada dos meios de produção não existem ainda as classes sociais, de modo que há uma única moral para todos os membros do grupo. Mudanças Histórico-Sociais e Mudanças da Moral. A passagem para novas formas de moral repousa sobre o aparecimento da propriedade privada e da divisão social do trabalho, possibilitados pelo aumento da produtividade e o aparecimento das condições de armazenamento do excedente. O aparecimento da classe dos escravos marca o aparecimento de duas morais: a dos proprietários e senhores de escravos, livres da necessidade de trabalhar e a dos escravos, imposta a eles pelos primeiros. Sanchez Vazquez afirma que a moral dos senhores não era somente a moral efetiva, mas que, pela fundamentação filosófica, legitimava a sociedade de classes argumentando que os escravos eram tais por natureza, considerando-os propriedade dos senhores. Os escravos, por sua vez, introjetando a moral que lhes era imposta, tinham poucas condições de recobrarem a sua consciência, o que garantia a estabilidade social. Os grandes teóricos da ética ateniense consideravam a ética dentro de uma perspectiva maior: a Política como técnica de dirigir e organizar as relações entre os membros da comunidade sobre bases racionais em vista do “bem do todo”, condição para o bem dos indivíduos. Embora sob este aspecto da sobreposição da política à ética se pudesse concluir que o indivíduo não é considerado, acontece uma modificação com relação às sociedades primitivas: “O indivíduo se sente membro da comunidade, sem que, de outro lado, se veja absorvido totalmente por ela”, abrindo espaço para o surgimento da consciência e da responsabilidade pessoais, imprescindíveis à conduta moral. O surgimento da sociedade Feudal é acompanhado pela substituição da escravidão pela servidão. Os servos, considerados presos a uma gleba do feudo, tinham pelo menos o direito de permanecer nela e aí produzir sua sobrevivência e, embora também estivessem sujeitos a arbitrariedades e violências, eram formalmente considerados seres humanos, pelo menos “em Cristo Jesus todos são iguais e livres, não importando se na vida presente estão na função de senhores ou de servos”. Na seqüência o autor descreve o sistema de vassalagem, na forma de pirâmide social, que culmina no Senhor Supremo ao qual todos devem obediência e cujo representante sobre a Terra é a Igreja. O sistema feudal continua com a atitude do desprezo ao trabalho, própria da antigüidade clássica, justificando-a religiosamente no sentido da contraposição entre o profano e o sagrado o mundano e o divino. A nobreza exalta o ócio, enquanto, do outro lado, os servos desenvolvem valores morais como a solidariedade, a ajuda mútua entre os iguais e, o amor pelo trabalho que lhes proporcionava o sustento, e apreço pela igualdade e a liberdade abstratas, no plano espiritual. Com as cruzadas e o ressurgimento do comércio, dentro da sociedade feudal, surgem aos poucos as condições para a liberação da mão-de-obra, processo que se consolidará efetivamente apenas com a revolução industrial no século XVIII, substituindo a primazia da propriedade fundiária feudal, como condição de poder, pelo lucro, o dinheiro, desenvolvendo o espírito de posse, o individualismo e a competição como valores morais, transformando a sociedade num campo de guerra de todos contra todos (p. 36). Nessa passagem o pensamento burguês vai transformando alguns vícios da aristocracia medieval em virtudes: a laboriosidade do ser humano, a igualdade de direitos, a liberdade, mas enquanto a burguesia ia se consolidando no poder tais virtudes são substituídas pelo parasitismo social, a dissimulação, o cinismo, etc. “Contudo, apesar das mudanças, conserva-se o cerne do sistema: a exploração do homem pelo homem e o lucro como lei fundamental” (p. 37) Como forma de harmonizar os interesses antagônicos entre as classes, a burguesia faz o discurso da elevação das condições materiais de vida dos trabalhadores, efetivamente conquistadas por estes, e acrescenta a idéia da colaboração de todos uma vez que “cada um faz parte da empresa”, mesmo que isto custe o rompimento de vínculos solidários para com os colegas. O autor aborda também a questão do colonialismo, que hoje se denomina maquiadamente de globalização ou de economia de mercado, com suas leis independentes dos indivíduos, para aparentar imparcialidade diante das sociedades excluídas pelo próprio processo. No final do item o autor aposta em uma nova moral, resultante obviamente de transformações radicais na relação homem-natureza-homens. Uma moral que considere o “ser humano sempre e ao mesmo tempo como fim em si mesmo e nunca apenas como meio”, isto é, que pratique o imperativo kantiano. O Progresso Moral Sanchez Vazquez argumenta que as mudanças qualitativas ocorridas no processo descrito no item anterior mostram que houve um progresso nas atividades humanas fundamentais e nas formas de relação e de organização das atividades práticas e espirituais. Fiel ao princípio marxista de que as mudanças da moral, dentro do âmbito maior da cultura, devem-se às mudanças nas formas de produção material da vida, afirma a existência de um progresso histórico-social, condição para o progresso moral e indica critérios para se verificar esse progresso, embora reconheça que tal progresso não resultou de uma ação planejada, livre e consciente da humanidade: - “O progresso moral se mede pela ampliação da esfera moral na vida social”, isto é, pela ampliação de situações diante das quais não há solução pré-estabelecida, diante das quais os indivíduos precisam decidir. - “O progresso moral se determina pela elevação do caráter consciente e livre do comportamento dos indivíduos e grupos sociais”, critério intimamente relacionado com o primeiro. - “Índice e critério de progresso moral é, em terceiro lugar, o grau de articulação e de coordenação dos interesses coletivos e pessoais”, isto é, a superação das contradições entre os interesses dos indivíduos e as necessidades coletivas ou a gradativa harmonização de tais interesses.