1 CONJUNTURA JURÍDICA – 2015/33 A titularidade do serviço público de abastecimento de água Embora os Estados da Federação possuam, via de regra, Companhias Estatais de Saneamento Básico, a titularidade municipal dos serviços de abastecimento de água potável já é questão pacífica no Direito Brasileiro. Entenda mais. Vitor Amuri Antunes AAA-SP – [email protected] O Estado de São Paulo vivencia, atualmente, crise hídrica jamais antes vista. Com o nível dos reservatórios caindo a cada dia, teme-se pelo desabastecimento de água na Capital – o que, aliás, já é uma realidade em diversos Municípios do interior do Estado. Com a questão da água na pauta principal da mídia e da sociedade paulista, verifica-se, com certa frequência, confusão quanto à titularidade deste serviço público, se estadual ou municipal. Ou seja, em qual esfera da Federação residiria o dever de organizar e prestar os serviços públicos de abastecimento de água? A origem da dúvida certamente guarda relação com o fato de que, via de regra, os Estados da Federação atuam no setor por meio de Companhias Estatais – constituídas, na maior parte dos casos, sob a forma de Sociedade de Economia Mista – incumbidas da prestação dos serviços públicos de abastecimento de água. É o caso da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (SABESP), responsável, atualmente, pelo fornecimento de água potável a inúmeros Municípios paulistas, dentre os quais a Capital, São Paulo. Ao mesmo tempo em que SABESP, COPASA (MG), CORSAN (RS), CASAL (AL), entre outras empresas estaduais, prestam os serviços de abastecimento de água em inúmeros 2 Municípios de seus respectivos Estados, não é raro encontrar Municípios em que o fornecimento de água se dá sem qualquer envolvimento do Estado ou de empresa estadual. Nestes casos, são frequentes duas situações: na primeira, o Município atua por meio de autarquia ou empresa municipal, com o emprego de recursos públicos e o atendimento aos usuários por meio de servidores públicos, contratados por concurso; já no segundo cenário – também frequente –, tem-se a Concessão (Comum ou PPP) dos serviços a um privado que, em sede de Licitação, haja demonstrado condições e expertise para prestação dos serviços e realização dos investimentos. Mas, afinal, seria o abastecimento de água um serviço estadual (como, por exemplo, o fornecimento de gás), ou estaria, sob nosso ordenamento jurídicoconstitucional, reservado aos Municípios? Vejamos. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 23, inc. IX, expressamente atribuiu à União, Estados e Municípios a competência comum para promoção de melhorias nas condições de saneamento básico – conceito que abrange água, esgoto, gestão de resíduos sólidos e drenagem de água de chuva. A opção constitucional pela inserção dos serviços de saneamento básico no âmbito de atuação das três esferas federativas bem ilustra a relevância atribuída pelo constituinte de 1988 à regular prestação destes serviços. Em verdade, à época da Assembleia Constituinte de 1988, a situação do atendimento à população quanto ao chamado ciclo de saneamento básico – que vai desde a captação e atribuição de potabilidade à água até a coleta e tratamento de esgotos sanitários – ainda era bastante precária, ao passo que os direitos sociais e de dignidade da pessoa humana consolidavam seu caráter constitucional e de fundamento do Estado Democrático. 3 De fato, sob a ótica constitucional da promoção do bem-estar social como dever estatal, os serviços de saneamento básico possuem notória relevância, tendo em vista que, quando efetivamente prestados e em níveis satisfatórios, possuem, comprovadamente, impacto direto na redução de doenças e das taxas de mortalidade. Porém, no que atine à questão da titularidade dos serviços, necessário mencionar que, não obstante a "promoção de melhorias" no sistema de saneamento básico consista em competência comum a todas as esferas da Federação (art. 23, IX da CF), não há, na Constituição Federal, expressa designação da titularidade destes serviços – o que foi alvo, por muitos anos, de intensa divergência doutrinária e jurisprudencial. A tese da titularidade municipal dos serviços de saneamento básico resulta de interpretação do art. 30, inc. V da Constituição Federal, segundo o qual "compete aos Municípios organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial". O entendimento de que o saneamento básico constituiria "serviço público de interesse local", portanto, conduzia boa parte da doutrina e da jurisprudência a sustentar sua titularidade municipal. Para outros, porém, seria defensável a titularidade estadual dos serviços, principalmente (ou, para alguns, somente) nos casos de instituição de Região Metropolitana, a partir de interpretação do art. 25, § 3.º da Constituição Federal de 1988. Ademais, o aparelhamento, nas décadas de 1970 e 1980, das Companhias Estaduais de Saneamento Básico, derivada da política instituída pelo PLANASA ("Plano Nacional de Saneamento" – Lei Federal n.º 6.528/78), que condicionava o repasse de recursos da União para saneamento à existência de Companhia Estadual, reforçava a tese da possível titularidade estadual destes serviços. 4 A questão foi pacificada quando da decisão, pelo Supremo Tribunal Federal, da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1.842/RJ. Na ocasião, decidiu-se que (i) a titularidade dos serviços de saneamento básico é, de fato, municipal (confirmando julgados anteriores do próprio Supremo), e (ii) somente no caso das Regiões Metropolitanas há o compartilhamento da titularidade entre o Estado e os Municípios, a ser exercida de forma "colegiada", em Assembleias que congreguem a participação de todos os Prefeitos e do Governador do Estado. Ou seja, não se estando diante de Região Metropolitana, a atuação dos Estados no campo do abastecimento de água somente é possível mediante a delegação municipal destes serviços à Companhia Estadual (via "Contrato de Programa", figura equiparada a um Contrato de Concessão). É sabido, entretanto, que, em razão das dificuldades orçamentárias que permeiam a rotina dos Municípios brasileiros, em inúmeros casos sequer há estrutura, na Administração Pública Municipal, para a adequada formatação dos Contratos de Programa e/ou Contratos de Concessão (quando celebrados junto a particulares), o que conduz, por vezes, à prestação dos serviços pela Companhia Estadual sem qualquer amparo contratual – conduta expressamente vedada pela Lei Nacional de Saneamento Básico, n.º 11.445/07. Existem, porém, em nosso ordenamento jurídico, valiosos mecanismos à disposição dos Municípios, tendentes a viabilizar o efetivo exercício de sua titularidade quanto aos serviços de abastecimento de água. O principal deles consiste no Consórcio Público, por meio do qual Municípios de pequeno ou médio porte podem, de modo cooperativo, organizar a prestação dos serviços de abastecimento de água de modo unificado, de modo a gerar economias de escala ao prestador (seja ele empresa pública ou privada) e viabilizar eventual subsídio cruzado entre regiões superavitárias e deficitárias.