CULTURA MATERIAL: O DESENVOLVIMENTO TÉCNICO DA GUITARRA Roger Renilto Diniz Costa - UNIPAR1 1. INTRODUÇÃO A música... esta arte de produzir sons harmonicamente agradáveis (ou não necessariamente agradáveis, considerando padrões estéticos)... ou seria apenas a habilidade técnica do instrumentista em conduzir melodias e ritmos com seus aparatos materiais? A pergunta não é exatamente o que pretendemos abordar neste trabalho, contudo, a impossibilidade de respondê-la suscita outras mais, anteriores e posteriores à esta, que nos levam a refletir e compreender um pouco mais sobre como podemos apreender as relações humanas e suas nuanças no meio social a partir desta arte, de suas práticas e representações. Por que produzir sons mais elaborados e complexos que os sons corporais? Por que utilizar instrumentos para isso? Por que sons cada vez mais elaborados? De onde vêm os instrumentos que utilizamos na atualidade? Ou, mais precisamente, de onde vem o mais popular instrumento musical do ocidente, e com a globalização, do mundo: a guitarra? Nos parágrafos que se seguem, buscaremos abordar estas e outras questões relativas à prática musical, em seu aspecto físico, material de fato, traçando uma construção histórica que permita compreender como a guitarra, em sua versão primeiramente acústica, de som amplificado em seu próprio corpo de ressonância; e posteriormente elétrica, ligada à tecnologias sintéticas e eletrônicas, chegou à configuração (ou configurações) que hoje se apresenta no mercado e na música. Por fim, na última parte do artigo, estaremos considerando qual foi a repercussão que este instrumento trouxe para a cultura e a arte ocidental moderna, quais foram os produtos do 1 Roger Renilto Diniz Costa é graduado em História pela Universidade Paranaense de Cascavel (2012), atualmente é aluno do curso de pós-graduação lato sensu “História, Arte, Cultura e Sociedade Brasileiras” da mesma instituição. Contato: [email protected] desenvolvimento da guitarra, em quê ela resultou e a quê deu ensejo. Para tanto faremos uso de alguns teóricos da cultura (História Cultural) e da arte, contemporâneas e históricas. 2. A CULTURA MATERIAL EM QUESTÃO A História Cultural, campo historiográfico que ganha especial evidencia principalmente a partir das últimas décadas do século XX (mas que seguramente tem uma trajetória antecedente que, partindo principalmente dos estudos de Peter Burke sobre a cultura clássica européia do século XIX, remonta ao Renascimento), é uma dimensão especialmente prolífica pela gama de possibilidades de estudo que proporciona ao historiador, aproximandoo de outras ciências, trazendo-lhe as mais diversas fontes, como, por exemplo, a arte. Com a gama de possibilidades de fontes trazida pelos Annales e seu legado de continuidade na Nouvelle Historie, concomitantes à Nova Esquerda Inglesa, o historiador da cultura pode trabalhar desde imagens que o homem produz de si mesmo, de seu meio social, de seu mundo particular, até as condições de produção, disseminação e recepção dos produtos das mais diversas práticas da cultura – bem como de suas representações. Para além dos objetos culturais reconhecidos há séculos como “cultura” (desde as concepções de cultura do oitocentos, quando a cultura era vista como um grau de civilização superior, letrado, erudito), como objetos mais recentes na abordagem cultural, como a cultura material e as produções oriundas do que vem sendo referido como cultura popular, produzida no patamar e padrão de vida das massas – dos “não eruditos”, como eram tratados pela historiografia tradicional. A História Cultural que vem sendo produzida a partir dos paradigmas trazidos pala Nova História e pela Nova Esquerda Inglesa, que recentemente culminaram na Nova História Cultural como que em operação de somatória, interessa-se pelos sujeitos e pelos produtos em seu aspecto cultural, seja como produtores, seja como receptores de cultura. Esta noção de sujeito, bastante trabalhada por Edward Thompson, abarca tanto “intelectuais” e “artistas” como o público receptor, leitor, ouvinte, consumidor, e vem, de certa forma, complementar o que Adorno e Horkheimer chamaram de industria cultural, em seus vários níveis e padrões. A partir das décadas de 1980 e 1990, alguns historiadores anteriormente dedicados à história das mentalidades e à história psicológica principalmente voltaram-se aos estudos culturais, e assim se aproximaram de arqueólogos, museólogos, antropólogos, especialistas em história da moda e afins, que anteriormente vinham dedicando-se à esta área que até então era pouco abordada pelos historiadores profissionais. Parte destes passou ao enfoque específico da dita cultura material, de modo que “Os historiadores da religião, por exemplo, têm dado maior atenção às mudanças no mobiliário das igrejas como indicadores de transformação nas atitudes religiosas.” (BURKE, 2008, p.91). Principalmente a partir de Braudel, os Annales passaram a debruçar-se mais intensamente sobre os fenômenos e processos do que ele chamou longa duração, aumentando assim o interesse e a importância de elementos que, em seu contexto, expressam as relações entre as classes sociais e suas condições materiais de existência e produção. Estes aspectos já eram a muito abordados pelos marxistas, através da importância dada às “forças produtivas” e às relações de produção, como explica Francisco Falcon (2002, p.82). Daí, por exemplo, Eric Hobsbawm salientar o advento de invenções tecnológicas como o tear mecânico e o motor hidráulico durante as fases da Revolução Industrial em seu clássico Era das Revoluções2. Assim, os historiadores da literatura que se voltaram à cultura material passaram a estudar também a história do livro; historiadores da arte passaram a abordar particularmente as técnicas de pintura, escultura, artesanato etc.; historiadores da economia puderam abordar também a cunhagem de moedas e impressão de cédulas, cheques, notas promissórias e assim por diante. Mesmo os agentes de difusão e propaganda dos produtos materiais também se encontram passiveis desta abordagem cultural neste sentido, como sistemas educacionais desenvolvedores de materiais didáticos, gravadoras de música que produzem mídias digitais, produtoras de cinema que vendem filmes em DVDs e afins, organizações religiosas com seus produtos e seu mercado peculiares. Estes inúmeros objetos têm constituído um foco especial de interesses de vários historiadores de destaque internacional da atualidade, e têm influenciado o trabalho de muitos outros. O enfoque específico deste detalhe da história da música que pretendemos desenvolver neste trabalho, que é o desenvolvimento do instrumento musical, partilha destas possibilidades de abordagem, e procura trazer alguma importância para a compreensão de como a música foi elaborada e variou ao longo dos séculos, influenciada por todas as facetas da conjuntura, principalmente, neste caso, as sociais e, especificamente, culturais. 3. O INSTRUMENTO NA MÚSICA 2 HOBSBAWM, Eric. Era das Revoluções – 1789-1848. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. O surgimento da música na história da humanidade está direta e necessariamente associado à utilização da linguagem, embora seja consenso a impossibilidade de datações exatas para precisar o momento exato em que isto se deu. A partir do momento em que a linguagem transcende a sua função de informação prática e comunicação imediata, adquirindo assim outras profundidades, ela se associa, entre outras coisas, ao canto, pois com a ajuda da musicalidade a mensagem poderá ser transmitida com maior clareza e, então, atingir um público mais vasto e chamar atenção quando se pretende. Assim, “a palavra falada pode, através das notas, melodias, harmonias, ter o seu sentido verbal intensificado, permitindo-nos atingir uma compreensão que extrapola a simples lógica” (HARNONCOURT, 1998, p.23). Contudo, o efeito da música, a partir de seu surgimento, não se manteve ligado apenas à sua função junto à linguagem oral, e imediatamente esta habilidade (musical) associou-se à estética que melhor agradava os grupos humanos que dela então se utilizavam. Daí a noção de belo no sentido de agradável ao ouvinte; daí também a necessidade/vontade de que sons mais trabalhados e, então, agradáveis, fossem produzidos: surge daí a utilização de objetos para a produção de sons diferentes dos que o homem é capaz de produzir apenas com seu corpo, os instrumentos musicais. E, mesmo que talvez a afirmação soe óbvia, é importante lembrarmos que a música não é intemporal ou extemporânea em sua gestação, a composição é produto do gosto de seu contexto – ainda que hoje possamos tocar repertórios e composições históricas, de outros momentos – assim como os instrumentos e demais aparatos e roupagens que envolvem o meio artístico musical. A necessidade por novos sons, às vezes a fim de que sejam aprimorados, refinados, ou divididos entre diferentes instrumentos para maior precisão leva os luthiers (artesãos fabricantes de instrumentos) e os músicos à constante mudança e transformação dos aparelhos e mecanismos musicais. Portanto, o instrumento, como manifestação material da cultura, tanto no sentido de estar associado à arte musical, quanto pelo simples fato de sua utilização por grupos específicos (classes) é prática, sendo fabricado em um (ou por um) contexto, e ao mesmo tempo representação da cultura que o produz, pois traz consigo também valores, pretensões e padrões que extrapolam a subjetividade e manifestam-se fisicamente. É claro que o músico de cada época, o instrumentista ou compositor da musica que lhe é contemporânea, sente-se (sentia-se ou sentir-se-á) tão à vontade e confortável com a música de seu tempo que pode chegar a crer na possibilidade de representar a musica de cada época através da linguagem da música de seu tempo; mas seria um anacronismo insistir nesta opinião, pois estaríamos nos esquecendo (de certa forma negligenciando) das idiossincrasias sensíveis (mentais e emocionais) do espírito do tempo, em cada tempo e, no que aqui estamos preocupados, das limitações e particularidades dos instrumentos de cada época, de sua fabricação e das técnicas de execução das composições que são mais praticadas em cada momento – das características práticas e materiais dos contextos no que concerne à relação do instrumentista e do compositor com o material produtor dos sons, o instrumento musical. Quando se examina o instrumentarium e se acompanha a historia de cada instrumento, se percebe que não existe praticamente nenhum instrumento de fato moderno, que quase todos possuem uma história de vários séculos. Reconstruir a história de cada instrumento, estudar as relações entre cada particularidade técnica e os dados históricos, é uma tarefa do mais alto interesse e da maior importância para todos os que se ocupam seriamente da música histórica. (HARNONCOURT, 1998, p.130) Conforme nos explica o musicólogo francês, Nikolaus Harnoncourt (1998, p.75), de todos os instrumentos formais que são utilizados na composição da música dita “moderna”, a música do século XX e XXI, os instrumentos de corda são certamente os que menos sofreram variações em seu formato externo e na maneira como são tocados. Os demais, como os de percussão, os de fole (sopro mecânico), os instrumentos de sopro e os de tecla precisaram ser substituídos por novos modelos que, em geral, apresentavam algum tipo de mudança crucial em sua estrutura. Lembrando a contribuição decisiva de Roger Chartier para a História Cultural, a produção de bens culturais, em seu aspecto material, como no caso tratamos do instrumento musical, está necessariamente inscrita em um universo sistematicamente conduzido pelos pólos das práticas e das representações. A partir disto, podemos compreender o alaúde, as violas, a vihuela, a guitarra barroca, a guitarra neoclássica, a guitarra elétrica, como prática da indústria (de luteria) e do público musical dos períodos em que foram desenvolvidos e utilizados; e, ao mesmo tempo, também representações mentais e culturais de sua época, em função da arte produzida e consumida em cada contexto. 4. ANCESTRAIS HISTÓRICOS DA GUITARRA É praticamente impossível para qualquer um que se disponha a tanto, como vários já o fizeram, precisar a inserção, a evolução e a expansão dos cordofones3 na Europa. Remontar a chegada dos instrumentos de corda no continente, para uma posterior exportação para às colônias, como o foi com o Brasil, é uma tarefa que não dispõe de registros precisos e objetivos o bastante para tal empresa; apenas resquícios e vestígios de períodos em que estes instrumentos já eram razoavelmente conhecidos e disseminados permitem uma noção de tais informações – a partir de anais religiosos, pinturas e da literatura medievais. Sabe-se, contudo, que o alaúde, ancestral antiquíssimo da guitarra, adentrou a Europa pela península ibérica, tendo sido importado pelos sarracenos que havia ocupado o sul da Espanha. Como já dito, as origens do alaúde são por demais incertas e de difícil acesso mesmo para o historiador, pois, como é de consenso entre os estudiosos da música, ele adentrou ao continente europeu com os árabes durante a expansão do Império Árabe, a partir do século VIII, e deste período não restam grandes fontes documentais produzidas pelos mouros; contudo sabe-se que neste momento o alaúde já era um instrumento elaborado e dominado com maestria. Antes disto, vários tipos de alaúdes já eram há muito conhecidos, e é sabido que estavam presentes nas antigas civilizações da Antiguidade, como a egípcia, a grega, hitita, turca e mesmo chinesa. Há suspeitas de que tenha sido desenvolvido no extremo oriente, onde, além das cordas esticadas teve o acréscimo da caixa de ressonância para a amplificação de seu som. Assim, há registros de que os búlgaros trouxeram uma variante do instrumento para a região dos Bálcãs ainda no inicio do século VI, mas foi pouco difundida e não chegou a tomar o lugar da lira (pequena harpa) em recitais de poemas e peças teatrais. Raízes européias ou árabes para a guitarra? Ambas. Muito provavelmente pela convivência obrigada entre cristãos, muçulmanos e judeus, o a circulação de pessoas de um reino a outro. Duas possíveis procedências: o sul da Europa, como a cítara ou fidícula que os romanos tomaram da kithára grega, e do norte da África, com o ud árabe. (GALILEA, 2012, p.44) Para os fins deste estudo, consideraremos o adentrar do al’ud mouro na Europa pela primeira hipótese acima mencionada, pois foi a partir deste e da forma como era utilizado que os ibéricos desenvolveram seus sucessores, chegando à guitarra que hoje temos. 3 Cordofone, segundo Márcia Taborda, são os “instrumentos de uma ou mais cordas esticadas entre pontos fixos, entre os quais se incluiu o violão. São divididos em simples e compostos” (2011, p.35) “Por volta do século XIV, havia na Europa, entre tantos outros, dois tipos de instrumentos da família do alaúde que adquiriram particular importância: a guitarra mourisca e a guitarra latina” (TABORDA, 2011, p.24). Segundo a historiadora e musicóloga Márcia Taborda, a distinção entre estes dois instrumentos, então já descendentes do alaúde, era que a guitarra mourisca, ainda de formato ovalado, de sonoridade mais aguda e gritante, era tocada de forma rasgueada, com os dedos da mão direita unidos e movimentados de forma perpendicular às cordas, de modo a rasgá-las, como o nome da técnica sugere; a guitarra latina, diferentemente, com cordas de tripa de carneiro mais delgadas, o que lhe proporcionava uma sonoridade mais aveludada, tinha suas notas tocadas individualmente e não em acordes rasgados pela mão direita, mas pinçadas com os dedos, soando com mais doçura. Estes instrumentos eram complementares, e em geral tocados de forma conjunta, complementando-se: a mourisca desempenhando a sustentação harmônica do fundo ambiente, e a guitarra latina cantando a melodia solista sobre a anterior. Estes dois instrumentos evoluíram tecnicamente e transformaram-se na vihuela (no espanhol significa “viola”) e na guitarra. Tiveram seus corpos acústicos de ressonância aumentados, de modo a soarem mais preciso e com maior intensidade. Especialmente após a Guerra de Reconquista dos reinos mouros pelos cristãos (1492), a cultura popular espanhola apropriou-se do alaúde mouro, modificando-o tecnicamente (no formato e técnica de manuseio) até chegar às derivações da viola e do violão. No século XVI, segundo Márcia Taborda, já constam registros escritos e pictográficos de que estes instrumentos aproximavam-se de seu formato de “oito”, tendo a caixa de ressonância aumentada em relação ao alaúde, que era circular e côncavo, mas ainda não tinham suas cavidades (a “cintura” do instrumento, a parte mais fina do seu corpo) tão destacadas e côncavas quanto o violão do século XX (2011, p.30). Este detalhe ergonômico foi acrescentado para o melhor encaixe do instrumento na perna do instrumentista, e foi sendo aumentado com o tempo, proporcionando-lhe melhor conforto e a possibilidade de tocar sentado, para melhor execução das peças entoadas. Ao longo do século XIV, o alaúde foi popular em outros países do continente europeu, mas foi certamente na Espanha que ele teve maior aceitação e popularização. Como coloca Carlos Galilea, o alaúde foi apropriado pela aristocracia espanhola como uma forma de sobrepujar a cultura moura e ao mesmo tempo uma resistência a esta, pois o instrumento foi modificado evidentemente na tentativa de melhorá-lo, da mesma forma que os espanhóis, portanto cristãos, viam-se como melhores que os “infiéis invasores” (2012, p.54) – como eram vistos os sarracenos pela Cristandade4. A nova guitarra, hoje classificada como guitarra renascentista pelos músicos e estudiosos da música, surgiu da tentativa de aprimorar a música mourisca nos finais do século XV, e teve também o acréscimo de mais uma ordem de corda, contando agora com cinco cordas. Durante o Renascimento, alguns alaúdes5 já dispunham de 7 e 8 ordens de cordas, simples ou duplas, mas estes eram manuseados por raros músicos, que eram então tidos como eruditos, e sua sonoridade não era harmonicamente superior à das guitarras e violas mais simples – fator que também contribuiu para que este perdesse espaço e popularidade nas cortes e entre a plebe para os instrumentos que foram desenvolvidos a partir dele. O século XVII vivencia o apogeu da guitarra espanhola, agora com cinco pares de cordas, instrumento que se manteve em voga por 200 anos e que alcançou todas as classes sociais: preferido de amadores, artistas e nobres das principais cortes européias. (TABORDA, 2011, p.38) A principal distinção entre os dois instrumentos em questão, como explica Taborda, é que “enquanto a guitarra tornou-se confidente das emoções da plebe, a vihuela foi instrumento palaciano, veículo para composição de obras que viriam a enriquecer enormemente a música instrumental do período” (2011, p.25). A partir desta configuração, a viola disseminou-se pelo continente, popularizando-se em cortes de vários países, como a Itália, a Alemanha e em maior grau Portugal. Até o século XVIII, a viola e a guitarra mantiveram-se praticamente sem grandes mudanças em sua estrutura material e sua configuração harmônica, mantendo o mesmo número de ordens de cordas, cinco ordens para a viola e quatro ou cinco para a guitarra. Neste período, com o apogeu do movimento barroco (que floresceu entre o final do século XVI e meados do século XVIII), cresceu o número de peças compostas para ambos 4 Ao afirmar que a apropriação consiste no que os indivíduos fazem com o que recebem – ou que, no caso, têm contato –, e que esta é uma forma de invenção, de criação e de produção desde o momento em que se apoderam dos objetos recebidos – no caso, do alaúde – Roger Chartier proporciona compreender que a guitarra é então produto de um processo de apropriação cultural, produzido pelo choque de culturas que sem dúvidas influenciou toda a cultura ibérica posterior, que assim traz consigo um histórico de hibridismo (CHARTIER, 2001). 5 Uma importante variação do alaúde foi a Teorba. Criado na Itália, este instrumento muito parecido com seu antecessor (“pai”, o alaúde) contava com uma quantidade maior de cordas, variando entre 8 e 14 cordas, em pares, então duplas, ou simples; onde algumas destas eram mais graves, tendo a função de baixo na música, tocadas soltas, sem ser pressionadas nos trastes. Consequentemente possuía um corpo maior, na caixa de ressonância e na dimensão da aste do braço. Em geral, a teorba era, e ainda é pelos que executam a música histórica em suas peculiaridades, executada sem acompanhamento de outros instrumentos, desenvolvendo sozinha toda a melodia. Para mais informações, recomendamos a leitura de: LÚCIO, José. Cordofones Portugueses. Lisboa: Areal, 2002. os instrumentos, várias das quais chegaram aos nossos dias sem autoria e são entoadas com créditos anônimos e consideradas folclóricas dos países de toda a Europa, como Greensleeves, Romanza Española e muitas outras. Com a popularização das violas, outros instrumentos cordofones surgiram: os de fricção, a viola de gamba (do italiano, “perna”) e a viola de bracio (“braço”). Enquanto a viola de braccio ocupava a função de solista na execução das peças barrocas, produzindo as notas mais agudas e de maior quantidade nas linhas melódicas (fazendo a voz soprano, conforme a escala tônica modal), outros instrumentos era necessários para preencher a harmonia das demais vozes musicais (que são contralto, tenor e baixo, respectivamente do som agudo ao grave), proporcionando melhor harmonização e completude das peças. Apesar da quantidade de modelos diferentes – seja em sua estética, nos elementos que o compõem, produzidos a partir de diferentes materiais, da sonoridade, características que muitas vezes diferem substancialmente umas das outras –, o violino, manteve-se até o fim do século XVIII também sem profundas modificações em sua estrutura. Contudo, especialmente na França e na Alemanha (onde vários compositores barrocos e posteriormente neoclássicos tiveram destaque, como Bach, Monteverdi, Vivaldi e muitos outros) as violas de fricção tomaram lugar nas cortes, lugar que anteriormente era dedicado quase exclusivamente à viola e à guitarra vindas da Espanha. Em função disso, a guitarra passou a ser ainda mais associada às classes populares, e as violas de percussão tornaram-se instrumentos da aristocracia. Posteriormente, estes dois cordofones de fricção teriam seus trastes (marcações precisas para as notas) retirados e sofreriam ainda outras adaptações, como a utilização de diferentes tipos de arcos de fricção, de peso balanceado e curvaturas que proporcionaram mais confortável ângulo de contato com as cordas. Com isto, e gradativas mudanças na configuração da silhueta do instrumento, a gambá tornou-se o atual violoncelo, e a de brazzo se converteu no atual violino, instrumentos utilizados em orquestras ou tocados separadamente, ambos ainda bastante semelhantes ao sistema de amplificação acústica da guitarra. A prodigiosa virada histórica que influenciou e transformou toda a vida européia no fim do século XVIII teve evidentemente repercussões na arte. Tal como as composições de um Beethoven, por exemplo, traziam para a música um espírito inteiramente novo, a que muitos contemporâneos resistiam, por medo ou por recusa, da mesma forma, seguindo este espírito, todo o corpo sonoro da música ocidental se viu profundamente transformado. A escala dinâmica dos instrumentos devia ser estendida ao extremo. (HARNONCOURT, 1998, p.130) “O século XVIII, na Europa, foi para a guitarra uma época de escasso progresso musical, porém foi um período de transformações físicas do instrumento visando as melhores condições técnicas e qualidade sonora” (ALFONSO, 2009, p.23). Em função das exigências da música que se tornava mais séria e complexa6 (por conta da preocupação teórica musical asseverada pelo barroco) com o neoclassicismo: as cordas, que anteriormente eram fabricadas apenas com tripas de animais, passaram a ter este material envolto e arames, fator que lhe conferiu maior amplificação das notas entoadas e maior clareza de seu som. As guitarras também perderam as suas cordas duplas, pois receberam a sexta corda (a mais grave), que proporcionava mais completa harmonização sem a duplicidade. A cintura da caixa de ressonância do instrumento passou por um estreitamento que lhe conferiu um formato exatamente de oito, ergonomicamente mais confortável ao guitarrista, que agora precisava executar sentado as complexas peças do período (este último incremento se deu também com as violas, ou vihulas). A esta configuração do instrumento chamaram de “guitarra romântica”, por acompanhar também receitais de poesias, e neste período o romantismo na literatura era concomitante ao neoclassicismo na musica. A partir do final do século XVIII, a guitarra se torna o que conhecemos atualmente no Brasil como “violão”, evidentemente no sentido aumentativo do nome viola. Contudo, a vihuela española não foi fundida a este, mas manteve sua semelhança e deu origem à atual viola e às suas múltiplas configurações, como a viola de cocho, a viola caipira, viola de arame, etc. 5. O “VIOLÃO” O dito “violão” é um instrumento de grande dificuldade técnico, certamente mais complexo do que seus antecessores. Seu principal diferencial de outros cordofones está no fato de que nele pode-se fazer soar várias vozes dentro da harmonia abordada pelo instrumentista, ou como se costuma dizer várias partes da música: são emitidos sons agudos, que desenvolvem a voz soprano; sons médios, fazendo os contraltos; e sons mais graves, os 6 A expressão “música erudita” remonta a esta época. baixos, quase que independendo de sua afinação – afinal quando se muda a afinação mudamse os tons, mas mantém o timbre das cordas. Então desta forma o violão pode funcionar como se fosse mais de um instrumento, e quando nele entoam-se peças mais complexas, não é raro que o ouvinte leigo se confunda e identifique o som de dois instrumentos tocados ao mesmo tempo. [...] Embora não seja possível conferir certidão de nascimento ao violão atual, acredita-se que este tenha surgido em algum lugar fora da Espanha. É importante observar que embora na Espanha a divulgação do instrumento de seis cordas simples tenha sido superior, o país por certo lhe conferiu certidão de batismo, ao desenvolver com extremo apuro técnicas de luteria que viriam a estabelecer padrões de construção aceitos por todos e ainda hoje vigentes. (TABORDA, 2011, p.68). Como explica Márcia Taborda, as variações que ocorrem na configuração física do instrumento ao longo dos séculos em que este se adolesceu não podem ser atribuídas apenas a uma pátria, podendo ter sido resultado de modificações que ocorrem (e foram aceitas, popularizadas) em várias regiões do continente europeu ao mesmo tempo – como trabalhamos nos tópicos anteriores deste trabalho. Algumas dessas mudanças, bem como o fato de o violão ter sido socialmente diferenciado de outros dos “parentes” de sua família musical são fatores que devem ser considerados também na dinâmica social. Eric J. Hobsbawm, na introdução da sua História Social do Jazz, declarou: A história das artes não é uma única história, mas, em cada país, pelo menos duas: aquela das artes enquanto praticadas e usufruídas pela minoria rica, desocupada ou educada, e aquela das artes praticadas ou usufruídas pela massa de pessoas comuns. Quando se lê ‘cultura’ ou ‘artes’ em um livro, se está falando da cultura da minoria e da arte de poucos. Esta observação de Hobsbawm pode ser aplicada também à história da guitarra, inclusive no Brasil, e nos auxilia a compreender porque durante tanto tempo o instrumento ao qual hoje nos referimos “violão” foi estigmatizado e posto à margem da música destinada à apreciação artística. Até poucas décadas o violão era tido como um instrumento vulgar, inculto e não digno de ser executado em ambientes frequentados pelas elites econômicas que tinham contato com a cultura européia – também ainda há pouco tida como superior. Era associado à vagabundagem e ao perfil do malandro, de modo a não ser considerado digno dos grandes salões onde os compositores clássicos do século XVIII eram conjurados pelas grandes orquestras. Também E. P. Thompson pode ser trazido à conversação para um melhor entendimento da variação e dinâmica social da cultura. Sua compreensão da cultura como uma categoria construída também pela/dentro da dinâmica social nutrida pela relação das classes – e entre as classes – lembra- nos fundamentalmente que a classe social é de fato a grande construtora da cultural. Para este historiador inglês, classe social não é apenas uma “coisa”, como era vista por uma geração de historiadores marxistas anterior, uma categoria histórica que auxilia a compreensão das estruturas sociais, mas uma “relação” constituída em um processo histórico e cultural; e na medida em que acrescentou a cultura como uma dimensão histórica em sua obra, transcendendo a organização social proposta por Marx (base/superestrutura, ainda que o próprio Thompson tenha afirmado que esta já estava presente na concepção marxiana original), o conceito de classe ganhou uma nova caracterização, passando a ser visto não mais apenas como um componente econômico, mas também como uma construção social e cultural – o que vem complementar a ideia de “consciência de classe” proposta por Gramsci, obviamente sem negá-la7. Assim, a dicotomia social proletariado/burguesia pode ser compreendida como sinônimo de erudito/popular no aspecto cultural, e ambas as produtoras de cultura na visão de Thompson. Isto explica também a situação e a mudança do lugar do violão na sociedade, tanto no Brasil quando na Europa dos séculos XVIII, XIX e XX. Contudo, como já mencionamos ao citar Ginzburg, acima, estes pólos não são estanques ou isolados, mas relacionam-se, ligam-se em uma relação intima que desfigura supostas fronteiras entre erudito e popular. Portanto, se na Espanha da idade moderna a guitarra, era considerada como um instrumento da plebe, vulgar no sentido pejorativo do termo, incapaz de acompanhar canções e peças dignas dos salões nobres e reais, no Brasil não foi diferente. Até o final do século XIX, o violão brasileiro não teve prestígio: “A música feita no Brasil pela elite era música européia, e o violão era um instrumento acompanhador de modinhas que estava presente nas serestas e serenatas” (ALFONSO, 2009, p. 34) apenas. Embora desde a independência do Brasil houvesse algum apelo pela valorização do que seria de fato o nacional, em detrimento do europeu, em função da busca pela essência 7 “Existe atualmente uma tentação generalizada em se supor que classe é uma coisa. Não era esse o significado em Marx, em seus escritos históricos, mas o erro deturpa muitos textos 'marxistas' contemporâneos. 'Ela', a classe operária, é tomada como tendo uma existência real, capaz de ser definida quase matematicamente -- uma quantidade de homens que se encontra numa certa proporção com os meios de produção. [...] Mas um erro semelhante é cometido diariamente do outro lado da linha divisória ideológica. Sob certa forma, é uma negação pura e simples” (A Formação da Classe Operária Inglesa, vol. I, p.10). nacionalmente brasileira, apenas a partir dos anos de 1920 os estilos de fato nascidos no Brasil começaram a ter algum prestígio por ouvintes intelectualizados – que também tinham contato com a cultura erudita européia – membros da geração modernista. Então com a chegada dos discos de vinil long-play (o famoso LP) e das vitrolas no Brasil, os sambas, choros, maxixes e xotes (schottisches) que já eram populares entre o povo, passaram a adentrar também as residências e círculos da elite. “O violão foi ganhando prestígio e penetrando nos salões ditos “cultos” e sendo executado principalmente por mulheres da destes grupos. Passou a despertar interesse não só como instrumento acompanhador, mas também como violão solista” (ALFONSO, 2009, p.43). Na primeira metade do século XX, no Brasil, tanto músicos como Garoto, Canhoto, João Pernambuco e Pixinguinha passavam a ter destaque e boa aceitação no cenário nacional, não mais como músicos vulgares, animadores de bar somente, mas adquirindo reconhecimento como músicos sérios – principalmente pelo fato de agora estarem gravando álbuns –; quanto eruditos como o maestro Heitor Villa-Lobos e o paraguaio Agustin Barrios, tido como pai do violão erudito por adaptar peças clássicas para o instrumento. Este especial caráter de duplicidade em torno da cultura violonística, que a fazia orbitar tanto a roda de choro quanto, agora, os salões mais requintados, fez com que o instrumento passasse a representar tanto uma ponte entre os dois pólos da cultura e das classes da sociedade, quanto um item, portanto, aglutinador, por ser um elemento comum a todos estes. Assim, o violão acabou sendo também uma representação da subjetiva identidade nacional, mesmo que não se trate de uma identidade única, mas multifacetada e fragmentada em identidades regionais, o instrumento se faz presente em quase todos os estilos musicais regionalistas. Já que aqui focamos também as mudanças físicas de nosso objeto de estudo, uma importante mudança no violão que ocorreu no século XX e precisa ser mencionada foi a mudança do material das cordas. Até o início do século XX, suas cordas eram de tripa de carneiro ou de aço, sendo as de tripa mais utilizadas para a execução de peças eruditas ou canções dedilhadas mais suavemente, e o aço para músicas populares de estilos de ritmo mais marcado que em geral não possuíam passagens de solos elaborados, apenas acordes batidos com as unhas. O nylon foi inventado apenas em 1938, e revolucionou a história dos cordofones em geral. Então a pedido do consagradíssimo violonista espanhol Andrés Segóvia (1893-1987), protótipos de cordas desse material foram testados no pinho, e adotados por vários instrumentistas (ALFONSO, 2009, p.40). Hoje é o principal material empregado em cordas de instrumentos acústicos, embora os metais também sejam utilizados como: o aço inoxidável; o cobre, que tem uma sonoridade mais aveludada, embora tenha vida útil mais curta por ser mais maleável e menos resistente; e o níquel, principalmente em guitarras elétricas, por ter a capacidade de captação eletromagnética mais forte, potencializando os efeitos eletrônicos e a duração do som da nota tocada. O início do século passado apresenta um panorama diferente e novo para o violão. O instrumento continua popular, de fácil manuseio e aquisição – obviamente dependendo da qualidade e raridade da peça adquirida –, mantendo-se ainda presente nos ambiente da vida cotidiana privada, sem com isso deixar de se fazer presente também nos salões de concertos, onde melodia peças das mais variadas, de Johann Sebastian Bach a Arnold Schöenberg. Contudo, algumas das facetas de vivacidade que a ele eram referidas quase que com exclusividade, hoje se destinam a outros instrumentos, de história concomitante ou derivada do pinho, como, por exemplo, a guitarra elétrica, da qual trataremos agora. 6. A ELETRIFICAÇÃO E OS EFEITOS: SURGE O ROCK A partir daqui abordaremos a guitarra no Rock and Roll. Portanto nosso trabalho focará o Rock enquanto estilo musical, sem suas implicações filosóficas, mercadológicas ou comportamentais no sentido de compor também um grupo social (tribo ou qualquer outro termo que o valha), portanto, grosso modo, artísticas apenas. Contudo, em função de não ser nosso objetivo a empresa de conceituá-lo, analisá-lo em si mesmo ou abordar sua importância e repercussão nas estruturas sociais, econômicas ou mesmo culturais de forma mais ampla, faremos breves considerações sobre que é o Rock e como este se desenvolveu. É consenso tanto entre os que se dedicam a estudar o Rock quanto entre os que o apreciam e idolatram que o estilo surgiu nos Estados Unidos da América sobre o tripé de influências do rhythm and blues, da country music e a partir da nova concepção de música trazida pelo jazz. Tanto fruto de um contexto sociocultural e histórico quanto dos aparatos tecnológicos que a indústria colocava à disposição dos músicos no século XX, sem dúvida o estilo fez-se um marco na história da música mundial, de impacto comparável ao barroco: profundo e denso, e rearranjaria totalmente a forma de tocar e compor. Segundo Montanari, a guitarra elétrica surgiu no final dos anos de 1930, no contexto de formação das grandes bandas de jazz estadunidenses. A principal inovação em relação ao violão era que o novo modelo de cordofone proporcionava uma amplitude de som muito maior, quase infindável, pois não dependia mais de uma caixa de ressonância embutida em seu corpo: possuía captadores magnéticos (imãs, de fato) que recebiam o som da vibração das cordas. Evidentemente, por conta deste esquema de captação de som, as cordas da guitarra elétrica tiveram de ser confeccionadas sempre em materiais metálicos, nunca sintéticos como o nylons; então agora a indústria passaria a explorar novos metais para as cordas. E, consequentemente, a duração das notas, seu tempo de sustentação, seria muito maior do que no violão de cordas de naylon ou ainda de aço. Neste momento, o jazz, que nascera algumas décadas antes como música popular, mesclando as influencias da percussão de origem africana, vinda à América com os escravos, à tradição musical européia, com o sistema de notas de tons e semitons e os padrões harmônicos utilizados desde a Idade Moderna, ganhava incrível popularidade, saindo dos bairros suburbanos donde viviam seus criadores, para ser tocado nas vitrolas das classes mais altas da sociedade estadunidense. O jazz surge então como musica para piano, mas tocada com intervalos de tempo e compassos diferenciados da estética perfeccionista do classicismo europeu, de modo a trabalhar principalmente com improvisações imediatas, proporcionando ao músico a possibilidade de desprendimento de escalas e harmonias estáticas e trabalhar sua criatividade mais livremente. “Essa característica é tão marcante que nos dias de hoje certas bandas exageram na concepção e realizam improvisações coletivas que despertam no leigo um sentimento de insanidade” (MONTANARI, 1988, p.61). Assim o jazz criou um novo conceito de música, mais despojada e menos conservador, mais vívido do que singelo, no qual a sonoridade da guitarra elétrica se encaixaria perfeitamente, e alguns anos depois se tornaria o instrumento central das composições e das apresentações das bandas e conjuntos. “Em linhas gerais, a música contemporânea é marcada por uma ruptura generalizada em relação à música européia que imperou até o século passado [XIX]. Certamente, a Europa não perdeu sua importância, mas viuse obrigada a dividir o terreno com a música americana, e inclusive assimilou dela alguns ingredientes notáveis.” (Idem, p.57) Contudo, neste contexto, com a inflação advinda da Segunda Grande Guerra, ainda que com a vitória, as bandas se tornam um luxo caro, difícil de ser mantido por seus maestros ou donos, e os pequenos conjuntos de jazz aumentam em detrimento disso. E algumas dessas bandas, compostas apenas por instrumentistas negros, eram depreciadas pela sociedade wasp (branca, anglo-saxônica e protestante) dos Estados Unidos; e neste clima surge do jazz um estilo ainda mais despojado e desprendido do conservadorismo estético, mais focado nos cordofones, no qual os sopros eram quase inexistentes: o blues. Executado em bandas de no máximo sete artistas, o blues era completamente focado nas guitarras e no contrabaixo, cordofones, inicialmente acústicos, mas que rapidamente aceitaram e aderiram o incremento da eletrificação. Este importante detalhe potencializou o som mais pesado das cordas mais graves, marca inquestionável do blues, e possibilitou no estilo a exacerbação do apelo sexual nas apresentações e letras; e em razão da guerra seguinte, a violentíssima Guerra da Coréia (1950-1953), a juventude dos EUA passava a repudiar cada vez mais o conservadorismo presente na sociedade, e o blues ganhava popularidade neste cenário, passando a representar o pensamento de repúdio de toda uma geração (CHACON, 1982, p. 24). A influência do Country foi seguramente a mais modesta, e se fez presente principalmente pelo fato de marcar alguns (nem tantos) músicos que tiveram grande sucesso a partir dos anos 50, como Bob Dylan e Johnny Cash. Ideologicamente e em termos de identidade, a música country era a musica do interior, dos trabalhadores do campo, e expressava o sofrimento dos pequenos camponeses, e mesmo que ora fosse apropriada pelos pequenos proprietários brancos, era também uma “música negra”, pois o trabalhador rural era descendente do ex-escravo da plantation. Este fator conferia ao estilo um tom de resistência pacífica, ainda que modesta, mas ainda assim por vezes possibilitando uma forma de protesto, que teria voz principalmente nas vertentes hippies dos anos 60, derivadas também do Rock, e onde o violão retornaria – seguramente nunca tendo saído por completo, estando ainda presente em baladas e canções menos agitadas – com força. Portando, tendo se formado por influência estes diferentes estilos musicais, o Rock and Roll tornou-se um estilo abrangente e popular, pois além de atingir a juventude em sua revolta, acabava por trazer algo do country, do blues e do jazz, estilos que já eram apreciados por ouvintes de faixa etária mais avançada. E assim, a geração que ouvia e assistia shows dos primeiros músicos “roqueiros” manteve-se fiel a estes, mesmo que evidentemente não consumisse apenas produtos musicais relacionados ao estilo, e as gerações seguintes, mantendo algo desta influência, deram origem a novas vertentes dentro do próprio Rock, subgêneros que, cada um a sua maneira, o manteriam ativo. Podemos perceber que todos estes gêneros musicais tem a guitarra (ou o violão) como principal solista, sendo o fundamental instrumento melódico em praticamente todos os conjuntos e grupos, o que elucida o espaço que o instrumento teria no Rock. A guitarra, que já era tida como instrumento central no blues desde que o estilo surgiu, e que era também muito bem recebida pelas improvisações jazzísticas – embora o jazz não tenha sido criado para ela ou por ela –, tornou-se o estandarte do Rock já com a primeira geração de rockers. A primeira leva, na qual se destacaram Chuck Berry e Little Richards, já abusava dos acordes da guitarra de modo a fazê-la soar parecida com a forma como era trabalhada no blues, porém agora em compassos mais rápidos e arranjos mais elaborados, pautados em escalas mais longas e palhetadas mais violentas, fatores somados, é claro, à sonoridade cortante que veio com a eletrificação. Estas características faziam com que a guitar dos anglófonos soasse deveras “agressiva” no rock, não apenas como o instrumento central, de destaque, mas como o elemento responsável por empolgar e agitar os ouvintes e entusiastas com maior intensidade. E com o tempo, se por inevitável, automático ou apenas por consequência da popularidade do estilo e, concomitante, do instrumento, a guitarra tornou-se quase um sinônimo de rock. Os primeiros modelos de guitarra que eram utilizados por músicos deste período eram os chamados semi-acústicos, e consistiam em uma guitarra com uma caixa de ressonância, tal qual no violão, mas agora com as cavidades laterais e não um circulo de abertura em seu centro, mas já contavam com a captação magnética acima comentada. Seus sucessores, ainda hoje utilizados, deixariam esta característica para ter um corpo inteiriço e maciço, possibilitado pelo desenvolvimento de captadores cada vez melhores, e que tornava os instrumentos mais pesados, porém possibilitava notas mais limpas e mais duradouras. Foram desenvolvidos principalmente pelas empresas Fender e Gibson (que havia comprado a gigante Epiphone após a Segunda Guerra Mundial), e sucedidas por outras, ainda hoje no mercado. E é sabido também, mesmo pelo senso comum, que muito embora os Estados Unidos seja o país de origem do rock não é (e nunca foi) o único pólo expoente do estilo, e compartilha espaço com seus colonizadores europeus. A Inglaterra despontou no estilo principalmente a partir dos meados dos anos 60, quando diversas bandas explodiram em repercussão mundial, como os Beatles e os Rolling Stones. Estes já trabalhavam com o estilo em si, independente de suas relações com o blues e os demais componentes matrizes, eram roqueiros e tocavam apenas rock, sem demais pretensões. Evidentemente enalteciam a guitarra e, a partir deste ponto cada vez mais, os solos deste instrumento se tornaram a essência musical do estilo, seu cerne. Os anos de 1970 foram uma das décadas mais criativas de história da música popular. Seja pela explosão de novos gêneros populares no mundo todo, com a facilitação do acesso à música pela explosão da indústria fonográfica ou pela ramificação que o Rock and Roll sofreu neste período (em estilos diferentes dentro do próprio rock), a criatividade explodiu e artistas com características próprias e inéditas, como os Pink Floyd e o Rock Psicodélico, ou os Punks, fizeram do rock um portal para inovações e experimentações técnicas na musica. Especialmente as distorções e efeitos para a guitarra e sintetizadores (instrumento eletrônicos de teclas semelhantes ao piano) foram popularizados neste período, sendo muitíssimo utilizados – agora sem o preconceito que inicialmente recebiam por de fato “poluir” as notas que eram dedilhadas. Os grandes disseminadores dos efeitos de distorção para a guitarra foram os solistas Jimmy Hendrix (do grupo The Jimmy Hendrix Experience) e Eddie Van Halen (do grupo Van Halen), que além de trabalharem-nos tecnicamente, representaram marcos para a história da guitarra, revolucionando a concepção que se tinha do instrumento até então. CONSIDERAÇÕES O violão é um instrumento complexo, mas que ao mesmo tempo pode ser trabalhado com simplicidade. Desta forma se faz versátil, adaptável, logo capaz de expressar o homem em suas tantas facetas. Simples para o solo, pois funciona no sistema de tons e semitons, é ao mesmo tempo complexo, pois tendo várias cordas, todas sobre dezenas de trastes, possibilita harmonizações e arranjos pautados em várias vozes dentro da harmonia. Elaborado, ancestral da guitarra elétrica, ainda sobrevive ao lado de seu sucessor, simplesmente como o instrumento musical mais popular do terceiro planeta solar. Tal qual o conhecemos, tem um passado medievalesco que lhe trouxe um soar essencialmente ibérico. Embora provavelmente tenha vindo da Ásia, derivado de cordofones muito mais simples, desenvolveu-se em formato de 8 e teve suas seis, sete ou oito cordas acrescentadas na Europa, e foi nacionalizado pela Espanha. Entre estigmas e preconceitos elitistas, foi acolhida pelas classes populares durante a Idade Moderna, em oposição à viola. Contudo, posteriormente popularizado, o violão passou adentrar a todos os ambientes musicais, de orquestras eruditas à botequins. No Brasil, enraizou-se, e contribuiu para o desenvolvimento de todos os estilos que nasceram no país, sem mencionar seu uso nos estilos importados dos quais já fazia parte. O violão explodiu. Posteriormente, no século XX, já consolidada a Revolução Industrial, a também sofreu acréscimos metálicos, sintéticos e eletrônicos; e deste incremento nasceu a guitarra elétrica. Inicialmente advindo da tentativa de melhorar a amplificação sonora do violão, a chamada exclusivamente guitarra – a partir deste momento – teve-se no resultado de uma sonoridade própria, diferente de tudo até então, portanto única, e tão grande foi sua inovação que possibilitou a criação de um estilo musical principalmente centrado em seu potencial, o Rock and Roll. Nascido em um momento de crise social e moral, em tempos de revolta e insatisfação, de gritos de protesto e de tentativas de escape do Real, o Rock emergiu da fusão de elementos sociais e musicais constantemente em fusão, constantemente também fundindo elementos de outros estilos e de diversas classes sociais. Assim o Rock sempre gerou polêmica, impactou, libertou instintos e vontades humanas que eram reprimidas pela ética coletiva da sociedade; e, como arte, trouxe aos espetáculos públicos algumas características humanas que por séculos eram reprimidas e impensáveis, inaceitáveis. Como arte, o Rock ao mesmo tempo liberta e expressa. Contudo, o Rock tornou-se também um estilo musical dos mais ambíguos da história da música. Por um lado, cresceu sobre uma proposta de rebeldia contra os valores de uma sociedade conservadora que promove guerras em nome do progresso e da “civilização”; e por outro entra nos jogos desta mesma sociedade, engordando suas contas bancárias e deixando-se apropriar pelos mesmos valores. De certa forma, o Rock se torna o que originalmente critica, um produto cultural vendável e vendido pelo mundo ocidental, disseminador de sua ética. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALFONSO, Sandra Mara. O Violão, da marginalidade à academia: trajetória de Jodacil Damaceno. Uberlândia (MG): UDUFU, 2009. BURKE, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Zahar, 2008. CHACON, Paulo. O que é rock. São Paulo: Brasiliense, 1982. CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. 2CHARTIER, Roger. 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