O “TIRADENTES” DE JOÃO TURIN Roger Renilto Diniz Costa1 (Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE) Resumo: Este trabalho visa analisar historicamente a escultura estatuária Tiradentes, localizada no centro da Praça Tiradentes, em Curitiba, PR. A obra de arte é de autoria de João Turin (1878-1949), e foi produzida em Paris, durante estudos do artista na Europa. Para tanto nos utilizaremos dos procedimentos sugeridos por Nadia Seremetakis e do conceito de Representação, conforme é trabalho por Roger Chartier e Sandra J. Pesavento. A estátua, fundida em bronze, foi trazida da Europa por navio, em 1922, e exposta na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, donde foi doada à colônia italiana de Curitiba, e então colocada na praça em 1927. A obra traz em si sentidos representativos que, se compreendidos em seu contexto de produção, fazem referência a um artista engajado num movimento artístico que visava a tentativa de construção de uma identidade regional, o Paranismo. O Paranismo, por sua vez, foi um movimento que procurou elaborar uma visão simbólica diferenciada da província em relação às outras regiões do Brasil, e que se definia também por uma interpretação particular das formas modernas de arte. Neste momento também o Brasil passava por engajamento geral dos artistas de destaque em uma tentativa de enaltecimento do passado nacional, de modo a fomentar heróis nacionais e a união do povo; buscavase de fato, elaborar uma identidade brasileira para um povo desatado, na República recém proclamada. Tiradentes foi eleito herói nacional por relacionar-se ao perfil salvacionista humilde cristão, compartilhado pela maioria da população brasileira; contando com uma versão na arte paranaense. Palavras-chave: Tiradentes; João Turin; História da Arte Paranaense; Paranismo. 1 Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação stricto sensu em História da Universidade Estadual do Paraná na linha de pesquisa Praticas Culturais e Identidades. É bolsista da CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior. Contato: [email protected] 1613 Introdução João Turin foi um dos mais celebrados escultores paranaenses. Ligado ao movimento paranista, estudou na Bélgica e retornou ao Brasil já com certo apreço da crítica artística do país, de modo que muitas das suas obras ainda figuram expostas publicamente em várias cidades do Paraná. Foi influenciado pelo realismo e pelo modernismo, e teve uma carreira de fato produtiva como artista, da qual renderam dezenas de esculturas, dentre as quais algumas ainda figuram nas praças e museus curitibanos, como é o caso de Tiradentes, que buscaremos analisar nas páginas deste texto. Turin viveu a virada do século XIX para o XX, momento duplamente importante: em escala nacional o período era de fazimento da República, momento de formulação da nacionalidade brasileira; e em escala regional (paranaense) um momento em que muitos tentavam salientar as características da província que há pouco tempo havia sido reconhecida pela União. Foi portanto um momento histórico no qual tentavam se firmar identidades: a identidade nacional em um país cujo Estado se tornava complexo sem que existisse uma nação coesa para legitimá-lo; e uma identidade regional, para uma província recentemente independente que tentava se diferenciar culturalmente das demais que compunham o território da pátria. Tanto o Paraná quanto o Brasil eram então palco dos discursos criadores de identidade, formulações dos sentimentos de pertença em um povo diverso que ainda não se fundira – como pressupunha necessário o Estado-nação moderno aos moldes europeus. E como é de praxe em momentos de rupturas e de transição política, as artes tiveram papel importante no engajamento em causas ou movimentos, principalmente em um país cuja grande maioria de sua população era de analfabetos – a arte assume papel pedagógico. Assim, a arte de Turin se inscreve entre estes discursos, e procuraremos assim tomá-la ao entender. Vida e obra de João Turin Filho de imigrantes italianos, João Turin nasceu em 28 de setembro de 1878, na cidade de Porto de Cima, Paraná. Em decorrência climática, a família logo se mudou para Curitiba, onde passou a adolescência. Devido a situações financeiras, 1614 Turin passou a trabalhar logo cedo, foi aprendiz de ferreiro, de torneiro, entalhador e marceneiro, funções estas que o auxiliaram a desenvolver habilidade nos trabalhos manuais e a sensibilidade do tato, que foram características essenciais para sua produção artística. Aos 13 anos de idade, trabalhando como entalhador na movelaria de Henrique Henke, João produzia seus primeiros bustos em móveis planejados ao estilo Luís XV. Neste emprego, teve oportunidade de desenvolver seu gosto artístico, inspirando-se em peças movelares e projetos que vinham da Europa. Apaixonado pela caça desde criança, nesta idade Turin já demonstrava o gosto por entalhar animais; gosto este que perpassaria toda sua vida. Em Curitiba, frequentou a Escola de Belas-Artes e Indústrias do Paraná, onde foi aluno de destaque: “em 1896, aparece nas atas da escola o nome de João Turin como aluno-professor” (TURIN, 1998, p. 24). Nestes estudos, Turin recebeu subsídios do Estado para o custeio de estudos a nível superior na Academia de Belas-Artes, em Bruxelas (Bélgica), onde se especializou em escultura. Porém, antes de ingressar na escola de Bruxelas aprimorou seus conhecimentos gerais no Seminário Episcopal de Curitiba, a fim de tornar-se apto a desempenhar com melhor aproveitamento os estudos no exterior. No Seminário, então, fez amizade com João Zaco Paraná, outro jovem artista plástico, com quem manteria longa amizade e faria parcerias artísticas no auge de sua carreira. Juntos, alguns anos depois os dois se filiariam ao movimento paranista. Em Bruxelas, Turin permaneceu por cerca de quatro anos, dos quais se dedicou integralmente aos estudos. Logo conquistou o prêmio de mestre da estatuária Van der Stappen (1909), recebendo um espaço para a organização de um ateliê próprio para melhor dedicar-se à sua atividade, bem como material para trabalhar. Então Turin realizou diversas obras, dentre as quais ganhou destaque Exílio (de 1910), escultura humana de mais de dois metros de altura que lhe conferiu Menção Honrosa em Paris, em 1912. Com inspiração acumulada pelos passeios ao longo do continente Europeu, Turin e Zaco não cessaram de trabalhar, produzindo obras que eram comercializadas na Europa mesmo, em moldes ou já fundidas e prontas para serem expostas, ou em última situação, como aconteceu com algumas estátuas de Turin, eram encaminhadas ao Brasil. Assim aconteceu com uma das mais famosas obras, o Tiradentes. 1615 Permanecendo na Europa de 1905 à 1922, o escultor retornou ao Brasil aos 44 anos de idade. Sua chegada ao Brasil foi marcada pelas comemorações nacionais do Centenário da Independência, detalhe que seria fundamental para que sua produção seguisse tendo sucesso e reconhecimento: algumas de suas obras seriam expostas justamente por conta de tal ocasião, e não apenas em contexto regional. Sua vinda, porém, não foi influenciada diretamente pelas complicações da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que havia desequilibrado econômica e socialmente todo o continente colonialista. Neste momento, toda a produção material e o comércio dos países envolvidos é direcionada à indústria e à produção bélica; assim, luxos como o cultivo das artes são deixados em segundo plano. Durante o resto de sua vida, já no Brasil, Turin não cessou de produzir, tanto na escultura quanto na pintura, embora a última fosse tratada por ele singelamente apenas como hobbie. Este recebeu diversas honrarias, principalmente no Rio de Janeiro: recebeu em 1947, a medalha de ouro no Salão Nacional de Belas-Artes, com a obra Luar no Sertão, estátua de um tigre (ou um puma, o “leão guará” paranaense) em tamanho natural; em 1948, recebeu a medalha de ouro do Salão Paranaense pelo busto do mestre Dário Vellozo; e, no mesmo ano, sua obra intitulada Onça foi escolhida para exposição em Bogotá2. Durante a década de 40 atuou como membro da Congregação de Professores da Escola de Música e Belas-Artes do Paraná, em Curitiba, sendo membro fundador e professor de Arte Decorativa. Em 1948 participou também de associações e eventos artísticos no Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul. Aos 71 anos de idade, em decorrência de complicações cardíacas, faleceu em 1949. Características artísticas Em um artigo dedicado à estatuária de João Turin, Fernando A. F. Bini, (1998), considera que suas esculturas apresentavam inicialmente tendências realistas e neobarrocas. Inquestionavelmente o realismo tem tom não apenas influente, mas constante em Turin: suas obras estatuárias buscam sempre 2 Para maiores informações sobre a trajetória e produção, vide TURIN, Elisabete. A Arte de João Turin. Campo Largo-PR: Ingra, 1998. A autora da obra desta obra, sobrinha de Turin, procura salvaguardar a memória e a arte deste artista paranaense. 1616 representar os bustos, corpos, humanos ou animalescos, e posturas tal qual in natura se apresentam3. “A escultura, inicialmente de tendências realista e neobarroca, será dominada de um lado pelas teorias clássicas de Adolf von Hildebrand, que era também escultor, e de outro pela tendência impressionista influenciada pela obra de Auguste Rodin” (BINI, 1998, p. 139). O citado Rodin foi um artista do século XIX que viveu pouco antes de Turin, cuja obra era centrada em detalhes de efeitos de luz e sombra, uma escultura cheia de movimentos, viva, mas que não deixava de provocar reações contrárias, marcada também por um temperamento sério e taciturno. A influência de Rodin também está presente nas obras de Turin: em via de regra, suas estátuas trazem seres humanos em posturas épicas, figurando movimentos complexos, como se percebe facilmente em Hérculos e Anteu, em Fogo Sagrado e até em monumentos públicos, como o Monumento aos Brandeirantes (1926) e no Monumento ao General Gomes Carneiro (de 1927, em Lapa); mas as posições, ditas épicas, são igualmente estáveis, de modo que as cavidades dos entalhes lhes confiram um contraste de sombras que assevera suas poses firmes. Quando Turin retorna ao Brasil, em 1922, admira-se, ainda que de longe, das disposições nacionalistas do movimento modernista. Percebemos tal admiração a partir das temáticas que se mantiveram presentes em sua produção: em paralelo aos personagens históricos que não deixou de esboçar e dos bustos que sempre talhou, são as alegorias a índios, que eram heroizados como nunca pelo modernismo; as onças e “leões” (o puma, também chamado suçuarana) da fauna brasileira. Até mesmo em sua arte decorativa são frutos americanos que se destacam em seus capitéis, como abacaxis e pinhas, e enfeites com penachos. Este entusiasmo pelo modernista não está distante da relação do artista com o movimento paranista. Segundo Camargo, o Paranismo foi “um processo persistente que procurou elaborar uma visão simbólica diferenciada da nova província em relação às outras regiões do Brasil e que se define também por sua interpretação das formas modernas em arte” (2007, p. 08). Foi um movimento artístico, de inspiração moderna, frisamos, que se ocupou de criar uma imagem do 3 O mesmo talvez não possa ser pensado com relação aos painéis e pilares decorativos confeccionados sob encomenda em Curitiba, pois estes trazem figuras em alto relevo – e não estátuas – nas quais os desenhos entalhados, mais singelos, não são feitos tentando destacar, mas embelezar apenas. Portanto é difícil situar o artista dentro de um estilo único 1617 que seria “autenticamente paranaense”, de modo a suscitar uma identidade essencial, uma tentativa de preencher a lacuna aberta com a emancipação política na separação do província de São Paulo e, também, de unir mais fortemente os tantos imigrantes europeus à massa de gentes que se denominaria paranaense. Camargo constata então que no Paraná da primeira metade do século XX, “uma produção de um lado ligada às formas das artes decorativas, produzida por artistas com formação técnica nas artes gráficas locais ou européias, e por outro, a um paisagismo de teor simbolista, em que verdadeiros „logotipos‟ regionalistas, como a imagem do pinheiro paranaense, são temas dominantes” (Opus cit., p. 10). A partir destas considerações do estudo específico e aprofundado de Camargo sobre o movimento paranista, podemos compreender também a origem das influências mencionadas por Fernando Bini na arte de João Turin: as semelhanças de Rodin e Hildebrand, ou mesmo os mestres de Zaco e Turin, em função dos estudos e viagens pela Europa, são somadas ao simbolismo regionalista presente até mesmo nas obras decorativas. Outro elemento que não pode ser desconsiderado na obra de Turin é a quantidade de personagens de destaque na história do Brasil retratados, sobretudo em monumentos e bustos. Se sua influência modernista se constata facilmente, há um nacionalismo que também está presente em suas esculturas, mas um nacionalismo diferente do modernista, que exaltava o nacional em sua fauna e sua flora, em busca de uma suposta essência natural da nacionalidade brasileira: um nacionalismo que se pauta também na história conforme é concebida pelo Positivismo, tão influente neste momento – seja nas ciências sociais, seja nos modelos de sociedade tidos como ideais. Para melhor compreendermos o papel que as artes ocupam na produção dos discursos que visavam instaurar um imaginário nacionalista nas primeiras décadas do século XX, pensemos então em como estas se apresentavam neste momento em que a República recém-proclamada lutava para consolidar-se. O momento da Proclamação da República foi palco de disputas simbólicas e discursivas no que diz respeito à consolidação de uma identidade nacional, travadas por literatos, intelectuais e artistas das elites. Ainda que para muitos esta suposta identidade nunca tenha se consolidado de fato como única, é inegável que muitos foram os empreendimentos neste sentido. Memória e esquecimento, a crença no devir e as 1618 identificações patrióticas foram os elementos mais fundamentais utilizados nas campanhas nacionalistas para fomentar um imaginário brasileiro coeso, que pudesse fortalecer a República recém-nascida – em detrimento de uma antiga fé no caráter sagrado do imperador. Selecionado no passado o que deveria ser lembrado e o que deveria ser esquecido, o mesmo aconteceu em relação aos homens que deveriam ser consagrados como figuras extraordinárias que, por pressuposto mérito, viriam a compor o panteão de heróis nacionais4. Sendo a maioria da população cristã, podese falar sem exageros em até uma “canonização” destas personagens. Para José Murilo de Carvalho, havia no Brasil das últimas décadas do XIX, pelo menos três correntes políticas que disputavam pela definição da natureza do novo regime: o liberalismo, entusiasmado com o modelo econômico estadunidense; o jacobinismo, mais modesto, de inspiração francesa; e o positivismo dos que compactuavam com os ideais ordenadores de Alguste Comte. “As três correntes combateram-se intensamente nos anos iniciais da República, até a vitória da primeira delas, por volta da virada do século” (1990, p. 9). Carvalho considera que os heróis e os símbolos nacionais estão presentes em todos os Estados, e não apenas pela tradição heráldica medieval europeia. Para este, os heróis são símbolos poderosos que encarnam ideias e personificam aspirações coletivas (ou direcionadas à coletividade), tornando-se referências e esteios de identificação, e se tornaram fundamentais para a organização nacional; os heróis são instrumentos “capazes de atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da legitimação dos regimes políticos. [...] Herói que se preze tem de ter, de algum modo, a cara da nação. Tem de responder a alguma necessidade ou aspiração coletiva” (Idem, p. 55). Desta forma, a insistência dos letrados (jornalistas, escritores, etc.) e dos artistas da época em apontar estes heróis brasileiros históricos pode ser compreendida como uma forma de compensação da elite pela ausência de participação política do povo na ruptura com a monarquia e, automaticamente, na consolidação da República. Mas, por conta das dissidências entre as elites (que 4 O panteão brasileiro é chamado Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves. Foi inaugurado em 7 de setembro de 1986, localizado na praça dos Três Poderes, em Brasília, como homenagem à aos que se destacaram em prol da pátria brasileira. Tiradentes é primeiro membro da lista de heróis que figura no Livro de Aço dos Heróis da Pátria no Panteão 1619 participavam da política e controlavam as mídias e a produção artística do país neste período), emergem dificuldades nesta seleção do elenco que ocuparia os lugares no panteão cívico nacional, de acordo com as preferências de cada grupo. O mito de origem da República, principalmente, foi caro alvo destas disputas simbólicas: cada corrente tinha suas preferências, de acordo com suas intenções próprias: Marechal Deodoro da Fonseca, como líder do movimento que levou ao golpe; Floriano Peixoto, sendo veterano da Guerra do Paraguai, era aclamado pela popularidade entre os militares envolvidos; Benjamin Constante, por ter sido um dos mais destacados ideólogos do novo regime, foram os principais cogitados, entre outros. Mas, como aponta Carvalho, nenhum destes apresentava consistência suficiente para comover as multidões em uma profissão de fé na República e na pátria. O consenso, segundo José Murilo de Carvalho, veio em torno de um mártir revoltoso, o inconfidente José Joaquim da Silva Xavier, vulgo Tiradentes, que posteriormente se tornou maior herói nacional e passou a liderar a galeria dos grandes homens5 (Opus cit., p. 57). Tiradentes Seria exagerado de nossa parte situar o escultor entre outros artistas que trabalhavam com dedicações exclusivas às finalidades políticas encomendadas pelas elites cariocas e paulistas do período. A arte de Turin não se inscreve em um estilo que se entusiasma essencialmente pela política, como o neoclassicismo de Jean-Baptiste Debret ou Jacques-Louis Davis, ou ainda como seus entusiastas brasileiros, dos quais se destacaram Pedro Américo e Décio Villares. Se com algumas de suas obras Turin se aproxima de posturas nacionalistas, como já mencionamos acima, a exemplo do modernismo, ou se em partes se entusiasma com as figuras mais valorizadas da história oficial do Brasil, precisamos considerar que tal tendência não é uma vinculação particular ou adesão declarada a movimentos de caráter político, mas convergência que se verificava em todo o contexto artístico nacional do período. Erro crasso seria igualmente tentar taxar o 5 Tiradentes é primeiro membro da lista de heróis que figura no Livro de Aço dos Heróis da Pátria no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, monumento público inaugurado em 1986 em reconhecimento à memória dos “heróis” nacionais brasileiros, em Brasília-DF. 1620 artista de jacobino, positivista, conservador ou qualquer outra posição política por verificar que algumas de suas obras tendem a exaltar de alguma forma figuras de heróis nacionais ou elementos nativos. Se a algum movimento Turin pode ser mencionado como mais próximo, este seria sem dúvida o Paranismo. Desta maneira, devemos ponderar também a relação entre o contexto nacional e o contexto regional. O pano de fundo nacional, sobre o qual os artistas paranistas pintavam suas telas e talhavam suas esculturas, foi o ambiente político e ideológico do Brasil na virada do século XIX para o XX, nutrido pelas discussões sobre a criação da identidade nacional. Tanto o Brasil, tensionado entre os polos dos regimes autoritários europeus no período entre guerras, e as construções populares institucionalizadas pelo regime de Getúlio Vargas; quanto o Paraná, emancipado da província de São Paulo em 18536, são alvos e motivos para que as artes sejam empenhadas na produção dos discursos identitários. Esta relação entre os dois contextos é fundamental para que, não somente a obra de João Turin, mas todo o movimento paranista seja entendido em suas nuances ideológicas, sem que sejam confundidos com os partidarismos divergentes que se digladiavam nas capitais. Tomando a escultura a partir de Nadia Seremetakis, compreendemos qual a função deste tipo de representação dos personagens que se querem heróis nos discursos históricos nacionalistas – oficiais –, sendo retratados de forma demasiado dramática, como é comum perceber nas obras neoclássicas do séculos XVII e XVIII, quando da consolidação das nações: do Vercingetórix francês, líder dos povos “bárbaros” da atual região da França, que é imortalizado por Frédéric Bartholdi brandindo sua espada tão ferozmente sobre um alazão na Praça de Jaude, em Clermont-Ferrand; o Frederico II, o Grande, da Prússia, por Christian Rauch em Berlin, em face marcial de quem esmaga as trevas do passado social e conduz o povo às luzes do progresso e da cultura hoje reconhecidas universalmente em Berlin, ou, como é o caso, das tradicionais representações do Tiradentes inconfidente, momentos antes de sua execução, exposto “à imagem e semelhança” de Cristo interrogado por Pilatos, “jesusificado”. A imagem escultural do drama do heroico, retratando o momento em que a figura histórica ultrapassa as limitações da 6 Inicialmente parte da província de São Paulo, mesmo reconhecida a Comarca de Paranaguá e Curitiba desde o século XVII, e posteriormente povoado por migrantes de outros estados do Brasil e imigrantes vindos principalmente da Europa, a (atual) província do Paraná foi reconhecida como independente de São Paulo apenas em 1853, tardando a se consolidar em uma unidade regional. 1621 condição humana e externa sua suposta natureza parte humana e parte divina, não é acidente natural ou ensaio de verossimilhança histórico e artística, é arma sensível e fulminante que atinge diretamente os corações dos que a ela se dirigem, tal qual a Medusa da mitologia helenística: petrifica os homens em suas feições de espanto e júbilo, vincula as intencionais sensações dos observadores a um ideal passadista do que deve ser lembrado. Resultado: a lembrança do que deve ter acontecido, entre as características onírica e crédula da mitificação do passado, já que se trata de uma figura histórica esculpida, se torna memória. Neste viés, a memória está também nas imagens materializadas, objetos concretos. Mas a memória não é simples acúmulo de lembranças compartilhadas pela nação, pelo povo. Como nos lembra Todorov (2002), a memória constrói-se, resgata-se e mantém-se a partir de discursos, discursos que, sendo formulados de determinados lugares sociais, alimentam as pretensões e as intencionalidades dos que os professam. O autor defende que o elogio incondicional da memória e a condenação do esquecimento são igualmente problemáticos, porque, em verdade, não existe antagonismo entre esses dois elementos diferentes, aparentemente opostos. Assim, os discursos que tentam trazer lembranças elogiosas do passado são condenáveis, para Todorov, porque o passado se torna assim utilizável pelos produtores destes discursos, e os elogios se tornam complacentes com suas expectativas, de modo que a memória, narrada na história, é transformada em ferramenta política para legitimações e justificativas parciais, particulares. Sem perder de vista estas contribuições de Todorov sobre os usos da memória social, e também as reflexões de Nadia Seremetakis são pertinentes. Compreendendo que o uso da imagem também pode ser conduzido para o mnemônico por meio dos sentidos despertados pela imagem, Seremetakis teorizou a imagem pensando na “memória sensorial”. Para ela as narrativas e as imagens têm muito a ver com a memória sensorial: a sociedade organiza (e assim também se organiza por meio de) hierarquizações de caráter sensorial, construções sensitivas que se dão pelos modos de representação. Segundo esta autora, a memória não pode ser reduzida somente ao subjetivo, ideia que tradicionalmente a mantém enclausurada no plano mental; principalmente a chamada memória coletiva (ou social): ela consiste também de práticas objetivas e materiais, mediadas 1622 culturalmente, e que são corporificadas em objetos, determinadas imagens (MENESES, Ulpiano T. Bezerra de apud CARDOSO, et al., 2012, p. 249). Pensando nesta direção, a escolha da personagem que seria mitificada, as alegorias às quais seria relacionado e demais detalhes que seriam lembrados, não é outra coisa senão uma tentativa de elaborar uma memória que dê conta das aspirações pretendidas pelos que a desenvolvem. O discurso que se produz na órbita de Tiradentes como herói nacional máximo, representante da República, mártir que se sacrifica por ideais que têm por base as liberdades populares (democráticas), principalmente ao relacioná-lo ao sacrossanto salvador cristão, Jesus Cristo, tem como seu maior objetivo construir uma memória republicana e, mais do que nacional, nacionalizadora, fazendo com que a história do Brasil seja pensada e lembrada à luz de heróis (especificamente este) que derramaram seu sangue para que a pátria se tornasse o que ela veio a ser, e assim, não por menos, comover em júbilo o seu povo. José Murilo de Carvalho analisa o processo de construção do mito de Tiradentes na historiografia, nas artes plásticas, e sobretudo na associação alegórica à sacralidade de Jesus Cristo. Destaca ele que a batalha historiográfica em torno da personagem histórica foi intensa e contínua, havendo ainda hoje disputas sobre seu verdadeiro papel na Inconfidência Mineira, sobre sua personalidade, suas convicções, e até sobre sua aparência física. José Murilo relaciona ainda a figura do inconfidente a outras que foram alvo das tentativas históricas de heroificação, sendo a principal delas a de D. Pedro I: “a luta entre a memória de Pedro I, promovida pelo governo, e a de Tiradentes, símbolo dos republicanos, tornou-se aos poucos emblemática da batalha entre Monarquia e República” (Opus cit., p. 61). Sobre as diferentes imagens pictográficas que buscaram representar Tiradentes, Carvalho destaca ainda que “nenhum retrato de Tiradentes foi feito por quem o tivesse conhecido pessoalmente” (idem, p. 65). O autor nos lembra ainda que o real culto cívico à imagem do inconfidente ganhou força realmente após a Proclamação destacando que no desfile de 15 de novembro de 1890, Décio Villares distribuía panfletos com o desenho que se tradicionalizaria com a “barba e cabelos longos, ar sereno, olhar no infinito” (Ibidem). Carvalho lista cronologicamente as representações que associavam o inconfidente ao messias: a pintura a óleo de 1623 Décio Villares (1928); o Martírio de Tiradentes (1893), de Pedro Américo, que o autor considera que “a alusão a cristo é inescapável”, mostrando os pedaços como sobre um altar. E é neste sentido que a escultura de Tiradentes da autoria de João Turin se inscreve também no contexto de culto cívico e aclamação a referida representação do Tiradentes “jesusificado”. O leigo, analfabeto e religioso, como os tantos milhões de brasileiros que ainda nos constam, e que seguramente eram muitos milhões a mais no período em que tais obras foram elaboradas, não saberia distinguir da imagem medieval do Jesus Cristo germanizado – alegoria clássica criada para a conversão dos povos da Europa, dando a Jesus traços étnicos do “homem branco”, desconsiderando as origens palestinas do messias, e permanecendo ainda hoje fortemente arraigada no imaginário cristão ocidental – do que seria o Tiradentes inconfidente, seja lá como fosse. Tal representação, que mesmo não sendo de autoria de João Turin é também por ele propagada, é portanto compromisso duplo: cívico e religioso. O inconfidente aí aparece de alvas vestes a caminho da forca, mas, ao mesmo tempo, mantém a atitude desafiadora e rebelde de um revoltoso, ainda que em expressão serena, qual o Cristo que tranquilamente aceita sua sentença de crucificação diante de Herodes. Então trazemos outra categoria à nossas observações, a de representação. Como é trabalhada por Roger Chartier e difundida no Brasil por Sandra Jatahy Pesavento, “representação”7 é grosso modo compreendida de fato como uma reapresentação: um apresentar novamente, mas não somente no sentido etimológico, mais que um estar no lugar daquilo que, não podendo se fazer completamente presente, é de outra forma apresentado; no sentido então de uma substituição, uma permuta que recoloca uma ausência e torna sensível uma presença outra; não criando uma cópia do real, mas expondo-o em uma perspectiva própria, e por conseguinte única. Via de regra, os adeptos desta noção consideram o real como impossível de ser tratado em sua totalidade, daí o pesquisador submeter à sua 7 Representação é uma noção que ganha espaço na historiografia durante o decênio de 1980 após revisões de apropriações entre a História e a Sociologia, principalmente a pelas “representações coletivas”, tomada de Marcel Mauss e Émile Durkheim por Marc Bloch para a formulação de sua noção de mentalité, como é desenvolvida pelos Annales, é central para os historiadores da cultura da atualidade. Roger Chartier situa a representação em uma dinâmica conceitual que a opõe às práticas. Esta categoria de análise é amplamente discutida em sua obra A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. 1624 observação apenas certos discursos, parcialidades do real, e então trabalhar com representações do real frente à sua limitação. Para Sandra Pesavento, [...] as representações são também portadoras do simbólico, ou seja, dizem mais do que aquilo que mostram ou enunciam, carregam sentidos ocultos, que, constituídos social e historicamente, se institucionalizam no inconsciente coletivo e se apresentam como naturais, dispensando reflexão. Há, no caso do fazer ver por uma imagem simbólica, a necessidade da decifração e do conhecimento de códigos de interpretação, mas eles revelam coerência de sentido pela sua construção histórica e datada, dentro de um contexto dado no tempo (2012, p. 41). Nesta perspectiva, as fontes imagéticas e iconográficas precisam ser também concebidas como objetos muito maiores do que meramente conjugados de técnicas e métodos de produção; nos revelam muito sobre seus autores, sobre seu contexto de entorno, sobre os motivos que levaram à sua produção, dentre outros aspectos políticos, ideológicos, sociais e culturais. Desta forma, esta tentativa de re-apresentar, reproduzindo este perfil da personagem Tiradentes, de um salvador messiânico, é elaborada a partir de um discurso8 que perpassa e antecede os que o professam, uma ideia para além das obras de arte (representativas) e que as antecede, mesmo que nem sempre os autores destas sejam claramente adeptos da ideologia que formula tal discurso (no caso o pensamento positivista). Associada a política ao poder de fazer crer da religiosidade, brilhantemente impactada por meio do potencial sentimental da arte, imagem do inconfidente tornado cristo enraíza-se no imaginário de tal forma que sua reprodução se dá sem que haja plena adesão ao positivismo por parte dos que o fazem. Tiradentes é canonizado e cultuado, literalmente, em praça pública. Considerações finais Era preciso inventar o Brasil e também seu passado, e esta invenção se deu, em grande parte, pelas pinceladas dos exímios artistas que produziram nossas 8 Mencionamos discurso em sua concepção foucaultiana. Segundo Michel Foucault “O discurso nada mais é do que o reflexo de uma verdade que está sempre a nascer diante dos seus olhos; e por fim, quando tudo pode tomar a forma do discurso, quando tudo se pode dizer e o discurso pode dizer a propósito de tudo, é porque todas as coisas que manifestaram e ofereceram o seu sentido podem reentrar na interioridade silenciosa da consciência de si.” (1971). Nesta perspectiva, o discurso transcende e antecede o locutor, o que faz com que possa ser professado sem a devida adesão. 1625 fontes. Malgrado a beleza e a refinada técnica da obra que pinçamos, consideramos assim como fosse qualquer outra, não pode ser tomada como retrato da realidade. Mas isso não faz dela menos importante ou reduz o que tenha a dizer sobre a conjuntura de início do período republicano, não a torna desprezível. Pelo contrário, trata-se de registro riquíssimo sobre as intenções oficiais, de se inventar uma nação, criar uma identidade histórica para a jovem República, que se tornara independente dos colonizadores poucas décadas antes. O discurso histórico deste momento foi elaborado em torno de mitos e de um passadismo heroico, gerenciado e defendido por homens que, tão importantes teriam sido, extrapolariam dimensão e condição humana. Foi deste ponto específico que tentamos olhar para o Tiradentes de João Turin, considerando-a historicamente, sem nos esquecermos de seu contexto de produção, da trajetória e experiência de seu autor – sem com isso tentarmos arguir a obra em uma desconstrução parcial. Se exageramos em desconfiar de um artista que não demonstrava tendências políticas exacerbadas, as escusas são sinceras. Tentamos compreender como a estátua de Turin se inscreveu em um contexto que, mais que político, foi também artístico e cultural, inclinando-se, sem perder sua maestria, a vontades de ser povo, de ser gente, de ser nação, vontades que, se pensadas simplesmente como buscas por controle e hegemonia de poucos, seriam podadas e horrendamente distorcidas. Referências Bibliográficas BINI, Fernando A. F. João Turin, Entre o Real e o Imaginário. In: TURIN, Elisabet. A Arte de João Turin. Campo Largo, PR: INGRA, 1998, p. 137-157. CAMARGO, Geraldo Leão Veiga de. Paranismo: arte, ideologia e relações sociais no Paraná (1853-1953). Tese de doutoramento. Curitiba: UFPR, 2007. CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Paris: 1971. MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. 13 - História e imagem: iconografia/iconologia e além. In: CARDOSO, Ciro Flamarion S.; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). 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