RODAS DE LEITURA EM BIBLIOTECAS PÚBLICAS: ESPAÇOS DE (AUTO) CONHECIMENTOS 1. Introdução Conhecer-se é “nascer com” o mundo e os outros. O homem contém o mundo inteiro. “Ars totum requirit hominem”. A arte requer o homem em sua inteireza. Michel Maffesoli Se até a Renascença, grande parte das bibliotecas estava fechada para o indivíduo que não possuía autorização oficial para frequentá-las, hoje talvez sejam as pessoas que não se sintam motivadas a conhecê-las. Séculos se passaram e as condições se inverteram. Mas talvez o ponto em comum, em ambas as situações, seja o fato do número reduzido de seus usuários. A concepção de leitor, como entendemos hoje, não havia na Antiguidade, visto o número significativo de pessoas que não sabiam ler e escrever, mesmo entre as classes nobres. A leitura era algo reservado a poucos, e o acesso aos seus meios era ainda mais restrito. Sem mencionarmos a importância da oralidade, cujo caráter prático facilitava um alcance maior às pessoas, ao diálogo e, sobretudo, à discussão de ideias. Esse contexto também favorecia a inexistência de bibliotecas públicas na cultura grega. A modernização das bibliotecas, do século XVII ao XXI, vem sendo desenvolvida buscando não mais “servir” somente de um lugar em que habitam os livros, cujo acesso e leitura eram para privilegiados, mas ao contrário, a demanda por uma especialização e socialização do conhecimento fez e continua fazendo dela um ambiente verdadeiramente democrático. No Brasil, a Biblioteca Nacional e Pública do Rio de Janeiro, hoje conhecida como Fundação Biblioteca Nacional (FBN), foi o primeiro espaço oficial dedicado à coletividade (em 1810, mas aberta ao público somente quatro anos depois). Contudo, apenas no século passado o número de bibliotecas passou a ser considerável. Embora haja muita coisa ainda a se fazer quando nos referimos às bibliotecas públicas. Em uma pesquisa realizada pelo IBGE/INL1 e publicada em 1980, com dados referentes ao ano de 1976, podemos perceber que o grande número de bibliotecas presentes no país se referia a bibliotecas escolares (60%) e pública ou popular (21,9%). Em outra pesquisa, de 1993, realizada pela Folha de São Paulo, investigou-se a questão do hábito de leitura dos paulistanos, em que 71% dos entrevistados, no momento da pesquisa, não estavam lendo nenhum livro, alegando falta de tempo ou, ainda, “por não gostar” de ler. Esses dados nos interessam, assim como o brevíssimo panorama do surgimento das bibliotecas públicas, para acompanharmos e refletirmos sobre a função social que esse espaço possui. Já em uma pesquisa recente e mais abrangente, realizada pelo Instituo Pró-Livro (IPL)2, podemos vislumbrar em que passos estão o caminhar da leitura na vida do cidadão. A terceira edição da pesquisa, publicada em 2012, refere-se a dados coletados em meados de 2011, em todo território nacional. Na pesquisa anterior, realizada em 2008 e publicada em 2009, sobre a avaliação das bibliotecas, 73% disseram não frequentar esse espaço. Já nesta terceira edição, três 1 MARTINS, Wilson. A palavra escrita: historia do livro, da imprensa e da biblioteca. 3. Ed. São Paulo: Ática, 2002, p. 377-380. 2 http://www.prolivro.org.br/ipl/publier4.0/texto.asp?id=4095 Acessado em 8 de abril de 2014 anos depois, o número aumentou para 76%. E, ainda, destes 76%, 67% sabem da existência de uma biblioteca pública próxima, no bairro em que reside, ou que seja acessível. Diferentemente da segunda edição, nesta pudemos contar com outra pergunta sobre as bibliotecas, em que o entrevistado era solicitado a falar do uso que se faz deste espaço. 71% considerou que a biblioteca representa um lugar para estudar; 61% para pesquisa; 28% um local voltado para estudantes, e apenas 17% para empréstimos de livros literários. Vemos como a biblioteca é, ainda, associada diretamente à Escola, tão somente extensão dela, cujo interesse não advém do seu conteúdo, mas de uma utilidade meramente prática de suprir uma necessidade peremptória, com prazo de validade determinado pelo fim dos estudos. Assim como a leitura, apontada segundo a pesquisa como a 7ª opção de atividade no tempo livre do cidadão, apesar de todos atribuírem um valor positivo ao hábito de ler. Parece contraditório, mas não é. A resposta está no desinteresse, segundo 78% dos entrevistados, desinteresse que abrange “falta de tempo; preferência por outras atividades; não tem paciência ou só lê quando exigido”. 2. Justificativa Não necessariamente pensando em mudar essa imagem, mas nem por isso deixando de ter seus méritos, em 2010 iniciou-se no Rio de Janeiro a implementação das bibliotecas-parque, vinculadas ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), como uma proposta de enfretamento à violência dentro e no entorno das favelas. A primeira, chamada Biblioteca Parque de Manguinhos, localizada no bairro de mesmo nome, trouxe a essência das bibliotecas-parque da Colômbia, construídas a partir de 2006, com o mesmo projeto: localizadas dentro ou próximas às favelas. Logo depois vieram a revitalização da Biblioteca Pública de Niterói, que apesar de não se encontrar dentro de uma favela, mas sim no centro do município, recebe moradores de algumas comunidades do entorno. Em seguida, a Biblioteca Parque da Rocinha, localizada dentro da favela e, no início deste ano, a reabertura da Biblioteca Pública Estadual do Rio de Janeiro, localizada em uma das principais avenidas do centro da cidade. O conceito dessas bibliotecas ultrapassa o que conhecemos de uma biblioteca tradicional, porque além dos livros, há vários computadores e notebooks acessíveis aos usuários, além de contar com DVDs, salas temáticas (Literaturas, Ciências, Ludoteca, Meu Bairro, entre outras), ainda oferecem serviços públicos, como mediação social, encaminhamento para cursos profissionalizantes, para o mercado de trabalho, oficinas, palestras, cursos, lançamento de livros, recitais, saraus e, finalmente, rodas de leituras, que será o tema no qual as próximas palavras se seguirão. Antes, convém dizer, que os serviços citados não compõem a programação de todas as bibliotecas-parque, cada uma delas, nas suas especificidades geográficas, espaciais e de demanda, oferecem suas atividades de forma autônoma. As rodas de leitura, as quais eu mediava, eram realizadas somente na Biblioteca Pública de Niterói, e duraram dois anos (2012-2014). Sua periodicidade era semanal, com duração de aproximadamente duas horas. No primeiro ano foram divididas por autores e, no segundo, por temáticas. As rodas de leitura permitiram discutir a prática de leitura em relação ao texto literário, visto que sua presença é quase exclusivamente vinculada à escola, onde é tida como uma disciplina sujeita a avaliações interpretativas muitas vezes fechadas, culminando em um afastamento do aluno (leitor ou não) da possibilidade de outras leituras. Mesmo com o advento e a acessibilidade da internet, os índices de leitura não aumentaram e, apesar de estarmos no século XXI, com suportes tecnológicos viáveis e uma abertura maior para o diálogo entre as linguagens, sobretudo as visuais, não estamos alcançando o primordial: o desenvolvimento pleno da leitura e, não menos importante, de um texto literário. A potencialidade que esse desenvolvimento crítico pôde oferecer ao participante, leitor ou não, fez das rodas e, consequentemente, da literatura grandes instrumentos para a leitura de mundo, que se necessita ter em qualquer esfera da vida do indivíduo. Por isso a relevância de estabelecermos o vínculo do texto literário com a realidade, suas intervenções e comunicabilidades. Como vimos, transformações sempre acompanharam as bibliotecas, antes passivas por somente guardarem os livros, hoje dinâmicas por oferecerem, além dos empréstimos, uma troca cultural viva e diversificada. As rodas de leitura caminhavam nesta mesma ideia, fazer da biblioteca um espaço possível para a leitura literária, divulgando seu acervo e desenvolvendo a criticidade, por meio de textos literários curtos, sempre discutidos de forma a possibilitar um envolvimento do leitor com a literatura, com a voz do outro e, sobretudo, com as relações possíveis entre ambos. 3. Objetivos As rodas foram organizadas a fim de se desenvolver três importantes objetivos: a) incentivar a leitura literária; b) divulgar o acervo e c) estimular a criticidade. 4. Metodologia A metodologia das rodas foi sendo adaptada durante todos os encontros, já que cada leitura, cada texto, requeria uma abordagem diferente. Entretanto, havia um norte comum: a escolha por textos curtos. Sabemos que o Brasil passou muito rapidamente da tradição oral para a escrita e essa transição ainda não foi, de certa forma, aprimorada. Os índices de leitores que leem no mínimo quatro livros em um ano são baixíssimos, segundo uma pesquisa realizada em 2011, pelo Instituto Pró-Livro. Por isso, pensamos em trabalhar de forma concisa e pontual, para um melhor aproveitamento da leitura e das interpretações suscitadas pelas discussões. Cada mês havia uma ideia, um autor homenageado, um tema, ou um conjunto de textos que se comunicavam entre si, favorecendo a recepção pelos participantes. Por exemplo, no mês de junho de 2013, o tema foi Mitologia e, durante os quatro encontros, conhecemos textos importantes, temáticas fundamentais que formam alguns mitos e que estão presentes no cotidiano do imaginário popular. Desde a criação do mundo, visto no texto bíblico do Gênesis, quanto em uma narrativa egípcia, assim como as mensagens de superação dos Heróis na civilização mesopotâmica e grega e, por fim, o tema da morte na mitologia oriental, especificamente no hinduísmo. Enfim, cada Roda era elaborada tendo em vista o acervo disponível e a relevância do texto para um desenvolvimento expressivo da imaginação e da interpretação. 5. Avaliação Foram lidos cerca de 80 textos, dentre autores nacionais e estrangeiros, clássicos e contemporâneos, com um total de aproximadamente 900 leitores. Muitos assíduos, uns que iam e depois retornavam, outros, ainda, que chegavam pela primeira vez. Houve a participação de alunos do Ensino Médio de um Liceu próximo à Biblioteca, que eram incentivados pela professora de Língua Portuguesa, e que posteriormente iam sozinhos. Como a biblioteca também oferecia outros serviços, os reencontros e as conversas entre os livros se tornaram parte do cotidiano. O que ficava bem delimitado, e a cada encontro se afirmava, tem muito a ver com as palavras de Antonio Cândido, em “O direito à literatura”. O direito que aqueles leitores tinham (e devem ter), iniciantes ou não, era (e deve ser) o ingresso livre à leitura literária, e todos estavam à disposição do texto, assim como nós a ele. A biblioteca, como um espaço democrático, representa também o exercício desse direito, a afirmação de que a arte em suas diversas formas, neste caso, exemplificada pela literatura, é um “bem incompressível, isto é, que não pode ser negado a ninguém.”3 O resultado, sempre em movimento, em um crescendo infinito, foi perceber a cada encontro, a cada página lida, discutida, muitas vezes com encantamento, suspeita, medo, dúvida, condescendência, a expressão máxima de nossa condição humana: a necessidade de expansão, de perceber nas experiências dos personagens sua própria realidade ou, ainda, outra, outras possíveis. Porque, sim, a Literatura não está distante ou fora da vida, pelo contrário, ela pulsa e compreende o complexo processo de busca por um equilíbrio, seja psíquico, moral, social, cultural, em qual esfera for, a leitura literária emana essa dinâmica. Os resultados mais significativos não são palpáveis. Estão expressos em números apenas por uma questão de orientação, que são importantes também para se ter uma dimensão do trabalho realizado. Em 2012, com a participação frequente de duas turmas do Ensino Médio, do Liceu Nilo Peçanha, pudemos observar algumas transformações relatadas no depoimento, por escrito, de uma professora, que os acompanhava até a Biblioteca. Em 2013, o público assíduo se tornou um pouco mais experiente, eram participantes que já tinham concluído o Ensino Médio, ou que cursavam o Ensino Superior, e se apresentava de forma mais crítica em relação às observações e às interpretações dos textos. Contudo, um resultado relevante, para mim, é que este trabalho me ofereceu a possibilidade de desenvolver o projeto de Mestrado em que estou inserida, na Unicamp, em Educação. Iniciei neste ano a pesquisa, baseando-me exclusivamente na experiência vivida e relatada desses dois anos na Biblioteca Pública de Niterói, como funcionária contratada por edital da Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro. Tive de sair por conta do Mestrado, já que estudo em Campinas. Em junho deste ano, participei de um edital divulgado pelo SAE – Ação Cultural, da Unicamp, em que havia um eixo “Educação”, aceitando propostas de intervenção. Enviei o projeto das rodas, no mesmo formato que ocorria em Niterói. Meses depois o resultado saiu e o projeto foi contemplado. Denominado “Rodas Literárias”, está em realização na Biblioteca Pública Professor Ernesto Manoel Zink, no centro de Campinas, ao lado do MACC e atrás da Prefeitura. O projeto vai até dezembro, iniciado em setembro, com rodas semanais de 2h cada, em que ofereço a mim e aos participantes um texto (conto ou poesia) para leituras e discussões durante os encontros. Portanto, finalizando sem concluir, o projeto segue no pensar escrito, na prática cotidiana e no silêncio criativo. Sempre se aperfeiçoando, sempre em busca obstinada. 3 CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 4. Ed. Reorg. pelo autor. São Paulo, SP; Rio de Janeiro: Duas Cidades: Ouro sobre Azul, 2004, p.173.