Título da Obra e Edição
BENCI, Jorge Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos
(livro brasileiro de 1700) (Estudo preliminar) Pedro de Alcântara Figueira;
Claudinei M.M. Mendes. São Paulo: Grijalbo, 1977.
ECONOMIA CRISTÃ DOS SENHORES NO GOVERNO DOS ESCRAVOS
INTRODUÇÃO
1. Que sendo o gênero humano livre por natureza, e senhor não sòmente
de si, senão também de todas as mais criaturas (pois todas elas as sujeitou
Deus a seus pés, como diz David) (a) Omnia subiecisti sub pedibus eius. Psal. 8,8
(p.47).Comentário: A citação literal do texto do salmo 6, 7 e 8, conforme a Bíblia de Jerusalém,
é: “E o fizeste pouco menos do que um deus [anjo], coroando-o de glória e beleza. Para que
domine as obras de tuas mãos sob seus pés tudo colocaste: “ Na tradução grega e latina, ao
invés da palavra deus, se coloca anjo),chegasse grande parte dele a cair na servidão
e cativeiro, ficando uns senhores e outro servos, foi sem dúvida um dos efeitos
do pecado original de nossos primeiros pais Adão e Eva, donde se originaram
todos os nossos males.[[ Com essa primeira premissa, Benci coloca por terra a
legitimidade da escravidão. Para ele a escravidão é consequência do pecado.
A escravidão é um pecado e é efeito de um pecado. A escravidão vai contra a
própria natureza do homem que deve ser senhor de si mesmo e senhor do
meio ambiente, ser criado por Deus para ser dominador e não dominado. A
escravidão viola essa natureza original do homem.]]
2. O certo que se Adão perseverasse no estado da inocência, em que
Deus o criou, não haveria no mundo cativeiro, nem senhorio; porque, como
doutamente discorre S. Tomás, então se entende ser alguém servo, quando as
suas acções se dirigem, não ao bem próprio seu, senão de quem o domina. E
porque cada um naturalmente apetece o bem próprio, e conseguintemente se
entristece, quando vê que o bem, que devia ser seu, passa a ser alheio, Por
isso o tal domínio não pode deixar de ser penoso e molesto aos que servem;
pela qual razão no estado da inocência (estado livre de toda a pena e moléstia)
não podia haver domínio e senhorio de.um homem para com outro homem. (b).
Tunc ergo aliquis dominatur alicui ut servo, quando eum, cui dominatur, ad propriam utilitatem
sui, scilicet dominantis, refert, Et quia unicuique est appetibile proprium bonum, et per
consequens contristabile est unicuique, quod illud bonum, quod deberet esse suun, cedat alteri
tantum; ideo tale dominium non potest esse sine pœna subiectorum; propter quod in statu
innocentiæ non fuisset tale dominium hominis ad hominem. — D. Thom. I. p. q. 96, art. 4, in c
(p. 48). Comentário: A citação que Benci faz é da Summa Theológica, 1ª Parte, Questão 96,
art. IV, nº 3. A tradução portuguesa da Suma Teológica, editada em São Paulo em 1948, vem
assim formulada: “Assim pois quando alguém domina a outrem como servo, fá-lo servir a sua
utilidade. E como todos desejam o bem próprio e, por conseqüencia se contristam quando
cedem a outrem o bem que devera ser próprio, daí vem que tal domínio não pode deixar de
ser acompanhado da pena dos que são sujeitos; e por isso, no estado de inocência, não
existia tal domínio de um homem sobre o outro”. O Artigo IV se intitula “Se um homem no
estado de inocência, tinha domínio sobre outro” (Cf. Suma Teológica, 1ª Parte, Questão 96, Art.
IV, no. 3, p. 176-178). [[ Essa afirmação de que o homem deve ser senhor de si
mesmo vai de encontro à idéia de homem como senhorio de outro homem. Nos
Evangelhos, em nenhuma parte, se encontra algum texto que diga que Jesus
tenha transmitido a autoridade de um homem sobre outro homem. Ele
transmitiu a ‘diaconia’, o serviço. A diferença é que o serviço é de quem é
senhor de si mesmo e espontaneamente serve. A servidão é peculiar a quem
não é senhor de si mesmo e é obrigado a servir. Na servidão o servo aliena a
sua personalidade a outrem. O que deveria ser seu passa a ser alheio.]]
3. Donde vemos que quando deu o supremo Senhor o domínio a Adão e
Eva: Dominamini (c) Gen. I, 28. (p.48). Comentário: A citação por extenso do Gênesis, 1, 28
é: “Deus os abençoou e lhes disse” << sêde fecundos, multiplicai-vos, enchei a Terra e
submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam
sobre a Terra >>. lho restringiu para com os animais: Piscibus maris, et volatilibus
coeli; para que entendessem que o seu domínio não passava dos brutos, e que
não se estendia aos mais homens, que deles haviam de nascer: Rationalem
factum ad imaginem suam noluit nisi irrationabilibus dominari: non hominem
homini, sed hominem pecori – escreveu S. Agostinho: (d) D. Aug. Lib. 29, de Civit.
Dei, c. 15. (p.48). Comentário: A citação é da Civitas Dei, “A Cidade de Deus”, de Santo
Agostinho. Benci não o cita diretamente mas o faz através da citação que Santo Tomás de
Aquino insere em sua Suma Teológica, 1ª Parte, Questão XCVI, Art. IV, no. 1. Mas, na citação
de Santo Thomás figura o Livro 19 e não o 29 da “Cidade de Deus”. (Cf. Santo Agostinho : A
Cidade de Deus Contra os Pagãos. São Paulo, 1990, Parte II, Página 405.). A tradução
portuguesa é a seguinte: “Quis que o homem racional, feito à sua imagem, dominasse
unicamente os irracionais, não o homem ao homem, mas o homem ao irracional”. O Capítulo
15, que aqui é citado, tem como título “A Liberdade Natural e a Servidão do Pecado”.
[[Desdobrando, ainda, a sua idéia central, Benci mostra que o homem, como
senhor de si mesmo, deve dirigir as suas ações para o seu bem, ou seja para a
sua realização pessoal. Benci afirma que Deus deu ordem ao homem para
dominar os animais, mas não deu domínio de um homem sobre outro homem.
Essa idéia de homem superior à natureza existiu desde o Gênesis, segundo o
qual Deus criou todas as coisas dentro da natureza, mas, quis criar um ser
livre, capaz de louvar e servir a Deus, livremente. A escravidão é a negação
dessa liberdade. A importância desse primeiro trecho de Benci é porque ele
está condenando a escravidão pela raiz bíblica. Considerando sua obra como
um documento público da Igreja onde, naquela época, não se encontrava uma
condenação da escravidão como instituto, a obra de Benci condenava a
escravidão pela raiz, por ser perversa e má, não devendo existir. Nesse
sentido, as premissas da obra são bem avançadas.]]
4. 0 pecado, pois, foi o que abriu as portas por onde entrou o cativeiro no
mundo; porque rebelando-se o homem contra seu Criador, se rebelaram nele e
contra ele os seus mesmos apetites. Destes tiveram sua origem as dissensões
e guerras de um povo contra outro povo, de uma nação contra outra nação, e
de um Reino contra outro Reino. E porque nas batalhas, que contra si davam
as gentes, se achou que era mais humano não haver tanta efusão de sangue
introduziu o direito das mesmas gentes que se perdoasse a vida aos que não
resistiam, e espontaneamente se entregavam aos vencedores; ficando estes
com o domínio e senhorio perpétuo sobre os vencidos, e os vencidos com
perpétua sujeição e obrigação de servir aos vencedores. [[Esse segundo
argumento de Benci depois do belo argumento inicial, vai de encontro ao
primeiro, pois, se escravizar era pecado, como dizer que era mais humano? Se
o pecado gerou a dominação do homem sobre o homem, como um pecado, e
se essa dominação é consequência da guerra (outro pecado), como, da guerra,
nascerá o lado o humano da escravidão? Manuel Ribeiro da Rocha, cinquenta
anos depois, escreverá O Etíope Resgatado onde ele contesta essa prática
decorrente da escravidão dos prisioneiros de guerra. Mais tarde vão distinguir
que poderão ser escravizados somente os ‘prisioneiros de guerra justa’. Mas, o
que vem a ser uma guerra justa? Logo, dizer que “era mais humano aprisionar
do que matar”, destoa da argumentação introdutória. No conceito bíblico
original, humano é ser livre, autônomo, e desumano é perder a liberdade no
gesto pecaminoso da guerra. Com esse segundo argumento, Benci se baseia
no ‘direito das gentes’, anterior ao direito romano, válido além do ecumenes
(territórios dominados pelos romanos). Era o direito natural, anterior ao direito
romano. O direito positivo é o direito sistematizado. Isto é, filosoficamente
discutido e oficializado. Esse segundo argumento sugere que a sujeição dos
vencidos em troca de não matar é como a aplicação da máxima “dos males o
menor” só que essa máxima é aplicada negativamente porque o mal é sempre
erro.]]
5. Isto se colhe do mesmo nome de servo, que vale o mesmo que servatus;
porque, como diz o Imperador Justiniano, os servos se apelidam assim do
patrocínio e conservação, com que os Imperadores os livravam da morte. (e)
Servi autem ex eo appellati sunt, quod Imperatores captivos vendere, ac per hoc servare
dicuntur, nec occidere solent. — § Serv. Instit., de iure person. (p. 49). Comentário: Flavius
Petrus Sabbatius Justinianus foi imperador bizantino do ano 527 a 565. Empreendeu ele uma
grande obra de codificação jurídica que foi compendiada no Corpus Juris Civilis que, por sua
vez, compreendia o Codex o Digesto ou Pandectas e as Institutas. A citação, no presente caso,
parece ser do Corpus Juris Civilis, quando ele trata do instituto da servidão (Cf. Noções de
Direito Romano de Magela Cantalice, Salvador, 1977, p. 65-68). Sendo pois o senhorio
filho do pecado: que maravilha (1) No texto: Maraviglha (p.49) que nasçam dele
culpas e resultem ofensas de Deus, pelas sem-razões, injustiças, rigores e
tiranias, que praticam os senhores com os servos? [[ Assim, prevalece a idéia
de que não é humana a escravidão decorrente do direito do vencedor. É
consequência do pecado, pois envolve o senhorio do homem sobre o homem.
Justiniano explica que a palavra servatus significava preservado (preservado
da morte), mas o fato de ter sido preservado não justificaria o fato da
escravidão. Assim, a origem inicial da palavra servo, vem de preservado mas
depois tomou o significado de escravo.]]
6. E para atalhar estas culpas e ofensas, que cometem contra Deus os
senhores, que não usam do domínio e senhorio que têm sobre os escravos,
com a moderação que pede a razão e a piedade Cristã: tomei por assunto, e
por empresa dar à luz esta obra, a que chamo Economia Cristã: isto é, regra,
norma e modelo, por onde se devem governar os senhores Cristãos para
satisfazerem `as obrigações de verdadeiros senhores. [[ Quando Benci diz que
os muitos senhores não usam do domínio e senhorio com moderação, ele
admite o senhorio que era dado pela lei do direito romano que considerava o
escravo como uma res (coisa) da qual o senhor poderia usar e abusar. Contra
esse abuso, ele introduz a idéia cristã de que o escravo era uma pessoa
humana. Só a pessoa humana pode servir, o escravo não pode servir pois a
condição do escravo é de subserviência. Para servir é preciso ser-se Senhor
de si mesmo. Essa moderação de que fala a piedade cristã vai ver o escravo
como uma pessoa humana ]]. Parece que cuidam muitos senhores que, por
razão do senhorio, têm tão livre e absoluto domínio sobre os servos, como se
fossem jumentos; de sorte que assim como ao jumento nenhuma obrigação
deve seu dono, assim também, nenhuma obrigação deve o senhor ao servo.
Mas‚ engano manifesto, diz S. João Crisóstomo, porque também os senhores
são servos dos mesmos que os servem (f) Servorum servus dominus este. D.
Chrysost., hom. 79, in c. Joan. 17.(p.50). Comentário: São João Crisóstomo viveu de 344 a 405
ou 407. Ele figura entre os quatro grandes Padres do Oriente. Deixou uma grande obra escrita
que se divide em três classes: homilias; tratados e cartas. As homilias se dividem em homilias
sobre o Antigo Testamento, sobre o Novo Testamento e homilias dogmáticas e polêmicas. A
citação, no caso, é das homilias do Novo Testamento, sobre o Evangelho de São João.) E a
razão disto é porque senhor e servo são de tal sorte correlativos, que assim
como o servo está obrigado ao senhor, assim o senhor está obrigado ao servo.
[[ A idéia do servus servorum Dei, da qual São Gregório I utilizou como lema
do seu ofício de pontífice romano, e da qual vai falar São João Crisóstomo,
muito tempo mais tarde, é uma idéia evangélica e baseada na mística de
serviço de Cristo: o ‘Grande Servo de Javé. Jesus disse: ‘vim para servir e não
para ser servido’. É toda uma mística do serviço na qual senhor e servo são de
tal forma correlativos, numa comunhão de serviços que, assim como o servo
está obrigado ao senhor, também, o senhor está obrigado ao servo. Com
Cristo, a idéia evangélica veio substituir o conceito de servidão pelo conceito de
serviço, porque permanecendo o conceito de serviço desaparece o conceito de
servidão. A servidão é o serviço violentado e o serviço é para quem é senhor
de si mesmo, obrigado pela lei da caridade.]]
7. Esta mútua e recíproca correspondência de obrigações entre os senhores e
os servos reconhece o Apóstolo na Epístola aos Colossenses. E por isso,
depois de intimar aos servos que se sujeitem em tudo e obedeçam a seus
senhores com simplicidade de coração, não tanto para agradarem aos olhos
dos homens a quem servem, como aos olhos de Deus a quem temem (g) Servi
obedite per omnia dominis carnalibus, non ad oculum servientes, quasi hominibus placentes,
sed in simplicitate cordis, timentes Deum. Coloss. 3, 22. (p.50). Comentário: A citação por
extenso da Epístola aos Colossenses, segundo a Bíblia de Jerusalém, é a seguinte: “ Servos,
obedecei em tudo aos senhores desta vida, não quando vigiados, para agradar a homens, mas
em simplicidade de coração, no temor do Senhor [Cristo]”. No texto bíblico, o Apóstolo, nos
versículos 23, 24 e 25 continua dizendo: “Em tudo o que fizerdes ponde a vossa alma, como
para o Senhor e não para homens, sabendo que o Senhor vos recompensará como a seus
herdeiros: é Cristo o Senhor a quem servis. Quem faz injustiça receberá de volta a injustiça, e
nisso não há acepção de pessoas) passa a falar com os senhores, e lhes
encomenda que se hajam de sorte com os servos, que não faltem às
obrigações da justiça e equidade; (h) Domini, quod justum est, et æquum, servis
præstate. Coloss. 4, 1. (p.50). Comentário: A citação de Benci continua o argumento anterior, já
se dirigindo aos senhores: “Senhores, dai aos vossos servos o justo e equitativo, sabendo que
vós tendes um Senhor no céu.) que foi o
mesmo que dizer-lhes (comenta S.
Anselmo) que lhes guardassem o direito natural e da razão: Quod ius naturae,
vel rationis exigit (i) D. Anselm. Hic. (p.50). De maneira que a diversidade, que há
entre o senhor e o servo, não consiste em que o servo esteja obrigado ao
senhor e não o senhor ao servo; mas na diversidade das obrigações, que
recìprocamente devem um ao outro. [[ Fica posta a idéia de Benci sobre a
servidão. Fica claro que ambos, patrão e escravo, têm obrigação de serviço.
Porém, o tipo de serviço de cada um é que vai ser diferente. Essa noção,
aplicada junto com o entendimento da ‘lei de ouro’, destrói por dentro a idéia de
escravidão. O cristianismo primitivo não pretendeu fazer uma revolução social
a partir de fora. Não era sua pretensão, dentro do Império Romano, destruir as
estruturas mas sim, lançar o fermento e transformar. Assim, a mística do
serviço é transformar. Entretanto, ao mesmo tempo em que Benci fala das
obrigações que são mútuas, e introduz uma lógica humanística, ele sugere
uma lógica desumana posto que na realidade colonial a obrigação do escravo
era trabalhar e a ação do senhor era obrigar o escravo a trabalhar e se
apropriar dos frutos daquele trabalho. Era, portanto, um pensamento
contraditório, mas bem aos moldes daquela realidade colonial. Era um
pensamento revolucionário na sua origem cristã, pois o que está dito destrói a
possibilidade da escravidão. Quando ele diz, citando o Apóstolo, sobre como
os servos devem agradar aos olhos de Deus a quem temem, ele auxilia o
patrão, mas não manda ser subserviente, não manda prestar servidão, manda
servir. Servir é a idéia motriz que está posta. Só serve quem é senhor de si
mesmo. É importante destacar, porque ele está introduzindo uma coisa nova
que é diferente da servidão — é a mística do serviço. O serviço é incompatível
com a servidão. O escravo colonial não prestava serviço, prestava servidão.
Numa situação de subserviência. Introduzindo essa mística do serviço ele
subverte a servidão pois ela envolve uma comunhão de serviços. Segundo a
idéia evangélica, o serviço é inerente à pessoa humana: ‘quem não vive para
servir, não serve para viver’, diz o provérbio... Na história da palavra ficou uma
diferenciação entre o serviço e a servidão: a servidão como coisa compulsória
e o serviço como prática de liberdade. A despeito da mesma origem, a
conotação passou a ser diferente uma vez que servidão subtende o trabalho
compulsório e o serviço subtende a noção de senhorio — isto é, daquele que é
senhor e tem liberdade: só é senhor porque sabe servir, porque pratica o
exercício do serviço. Quando Benci se refere a essa questão e argumenta, ele
não usa a palavra ‘escravo’ e sim, servo que era a palavra clássica, tanto da
tradução latina como no direito romano. ‘Escravo’ é palavra posterior, medieval,
de quando se escravizavam os eslavos. Ele vai usar a palavra escravo
somente quando se refere à situação específica da Colônia.
8. Mas que obrigações pode dever o senhor ao servo? 0 mesmo Espírito
Santo no-las dirá; o qual distinguindo no Eclesiático o trato que se há de dar ao
jumento e ao servo, diz que ao jumento se lhe deve dar o comer, a vara, e a
carga: Cibaria, et virga, et onus asino (1) Eccli. 33, 26 (p.51) Comentário: O versículo 25
do Eclesiástico, na Bíblia de Jerusalém, diz o seguinte: “Para o asno forragem, chicote e carga;
para o servo pão, correção e trabalho”; e que ao servo se lhe deve dar o pão, o
ensino e o trabalho: panis, et disciplina, et opus servo (m) Ibid
Comentário:
Continuando, o Livro do Eclesiástico, no seu versículo 26, diz: “Faze teu escravo trabalhar e
encontrarás descanso; deixa livre as suas mãos e ele procurará a liberdade”. Deve-se (diz o
Eminent¡ssimo Hugo) o pão ao servo, para que não desfaleça, panis, ne
succumbat; o ensino, para que não erre, disciplina, ne erret; e o trabalho, para
que se não faça insolente, opus, ne insolescat (n) Hugo Cardin. In hunc locum. (p.
51). [[Cita Benci o Eclesiástico que vai ser o termo de referência para toda a
sua exposição. Aquela trilogia de procedimento com o escravo, que é pão,
disciplina e trabalho. Para o jumento é o comer, a vara e a carga. Ele cita o
Eclesiástico, mas há uma diferença muito grande entre o Eclesiástico e a
consumação da Revelação em Cristo Jesus, citada pelo Apóstolo Paulo. Não
se pode misturar as duas épocas. O Eclesiástico está ainda em um nível de
evolução anterior, não tendo ainda chegado à plenitude da revelação em Cristo
Jesus. A comparação feita entre o servo e o jumento só faz mostrar que, na
realidade, os dois deveriam ser tratados como iguais. Apesar da idéia de ‘pão,
ensino e trabalho’, como elementos de conotação mais cultural, e de ‘comida,
vara e carga’ como elementos de conotação mais natural, não há basicamente,
diferença nenhuma. No Eclesiástico, a diferença entre o jumento e o escravo
não é fundamental. A diferença vai aparecer com a Revelação em Cristo,
através do Apóstolo Paulo com as palavras de Jesus que disse: ‘no princípio
não era assim’ Deus não criou o homem para que fosse igual ao jumento, mas,
no princípio Deus criou o homem para ser senhor de si mesmo e dos animais.
Assim, o Eclesiástico marca uma época de evolução, diferente do Gênesis, e,
ao mesmo tempo, uma deformação da revelação primitiva. Além disso, o
discurso de Benci não acrescenta, nessa trilogia, um quarto elemento, qualquer
que seja, que diferencie o servo do jumento ou que acrescente mais
humanidade ao servo, como havia, na revelação primitiva, no Gênesis: o ser
humano, como pessoa livre e senhor de si mesmo e que tem o poder de
dominar a criação, e não, de ser dominado.]].
9. Estas mesmas obrigações, que achou nos senhores o Eclesiástico por
instinto do Espírito Santo, alcançou Aristóteles com a luz da razão natural.
Porque, dando as instruções necessárias aos pais de famílias para a boa
administração de suas casas, chegando ao ponto de como se há de haver o
senhor com os servos, diz que lhes deve três coisas, que são o trabalho, o
sustento e o castigo: e que todas três são igualmente necessárias, para que
plena e perfeitamente satisfaça ao que como senhor deve ao servo. Porque
sustentar ao servo sem lhe dar ocupação e castigo, quando o merece, é querêlo contumaz e rebelde; e mandá-lo trabalhar e castigar, faltando-lhe com o
sustento; é coisa violenta e tirana: tria vero curn s¡nt opus, cibus et castigatio;
cibus quidern sine castigatione et opera petulantem reddit; opus vero et
castigatio sine cibo violenta
res est (o) Aristot. Lib. I. Aeconom. Cap.6. (p.51).
Combinai agora um texto com outro texto, o profano com o sagrado; cotejai o
panis com o cibus, o disciplina com o castigatio, e o opus com o opus: e vereis
que ou o Pregador (que isso também quer dizer Eclesiástico) (P) Eccl. Id est,
Concionator, Tirin. in lit. Eccli. (p.52) é filósofo ao divino, ou que o Filósofo, posto que
não é divino, é Pregador. Essas três idéias de Aristóteles são muito
semelhantes às idéias do Eclesiástico. Porém, são bem pobres em relação à
Revelação Crística e também em relação à origem da revelação, contida no
Gênesis. Em a Política...... Por mais que a gente veja em Aristóteles e em
Platão uma elevação do pensamento no que se refere ao ‘humano’ eles estão,
ainda, num estágio anterior à plenitude que viria com Cristo. Igualmente o
Antigo Testamento. Por exemplo, nos Dez Mandamentos, quando se fala em
não desejar a mulher do próximo, está subentendido: a mulher, o jumento, os
bens, os servos todas essas coisas eram as ‘coisas’ do próximo. O servo, bem
como a mulher, era um objeto no meio daqueles objetos. O ser humano ainda
não alcançara a plenificação da condição humana. Só a partir de Cristo que,
referindo-se ao que estava escrito, completava: ‘Eu porém vos digo’, é que vai
haver a dignificação da pessoa humana. Assim, os textos do Eclesiástico, de
Platão e Aristóteles, do direito das gentes e, depois, do direito romano foi o
ensejo necessário para a escravidão. Pela ‘lei de ouro’ não haveria escravidão.
Ao tempo de Cristo os especialistas na lei mosaica conseguiram extrair na
Bíblia 313 mandamentos. Vem Jesus e diz ‘Eu vos dou um novo mandamento’.
Não é o 314°. É um mandamento que contém todos os outros, que envolve
todos os outros: ‘Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si
mesmo’. Quem quer ser escravo? Ninguém. Então, pela ‘lei de ouro’ eu não
posso escravizar ninguém, uma vez que a lei de ouro pode ser considerada
como a essência da revelação cristã: ‘Deus é Amor e quem permanece no
Amor, permanece em Deus’. Assim, procurando interpretar as categorias
‘teóricas’ da pedagogia cristã, que percorreu toda a história do cristianismo,
observa-se que elas foram construídas com base nesse Mandamento que
engloba os demais. O que não leva ao amor, não é cristão, está distorcido e
deve ser reformulado. Portanto, é pena que depois de uma bela argumentação
sobre a dignidade da pessoa humana nas suas origens, na criação, essa
dignidade na sua plenificação em Cristo que o Apóstolo Paulo transmite ele
venha a se deter no estágio de pensamento do Eclesiástico e de Aristóteles.
10. E assim, nestas três palavras, panis, disciplina, opus, se compreendem
todas as obrigações, que não são poucas as que devem os senhores aos
servos. Por isso nelas fundarei os discursos desta Economia Cristã, em que
pretendo instruir aos senhores, e especialmente aos do Brasil, no modo com
que devem tratar os escravos, Para que façam distinção entre eles e os
jumentos; a qual certamente não fazem os que só procuram tirar deles o lucro,
que interessam no seu trabalho. [[Benci diz, explicitamente, que a divisão da
sua obra vai se basear no Eclesiástico. Apesar de todo o preparo que ele tinha
das obras clássicas e do conhecimento das fontes bíblicas, ele se ateve ao
Eclesiástico e a Aristóteles e esqueceu-se de utilizar uma pedagogia,
igualmente religiosa, que já tinha sido preconizada por Jesus Cristo baseada
no mandamento que já contém todos: ‘amar ao próximo como a si mesmo’. Vez
por outra ele cita essa versão mas, fundamentalmente, se baseia no
Eclesiástico, inclusive na divisão dos discursos.
11.Usar o senhor dos escravos como de brutos, é coisa tão indigna, que
Clemente Alexandrino julgou que não podia caber em homem de razão e de
juízo (q). Neque vero tamquam jumentis famulis utendum est ei, Qui fuerit sanæ mentis. —
Clem. Alexand., Lib. 3, Pædag. Cap.11. ( P.52). E se isto não é obra de homem
racional, muito menos o pode ser de homem Cristão, a quem o mesmo Cristo
encomendou tanto o amor e caridade com o próximo.
Panis, et disciplina, et opus servo. Eccli. 33
DISCURSO 1
Em que se trata da primeira obrigação
dos senhores para com os servos
[[Esse discurso abre-se com as palavras do Ecclesiástico, capítulo 33: Panis,
et disciplina, et opus servo. Ou seja para o servo, o pão (o pão do corpo que
é o sustento em geral, a roupa, o abrigo e o pão espiritual), a disciplina
(corretivo) e o trabalho. Esse lema é a fundamentação de toda a exposição
que Benci vai fazer. Todo o tema do livro é discursado a partir desta tríade
pão, disciplina e trabalho ficando o elemento pão desdobrado em dois
discursos: o pão como alimento e o pão da doutrina. Ou seja, o pão do corpo
e o pão espiritual. No pão do corpo ele engloba a roupa, e o sustento em
geral. Essa oração ‘obrigação dos senhores para com os servos’ subtende, à
luz da época, um progresso face ao direito romano onde, praticamente, o
senhor não tinha obrigações para com o servo, que era equiparado com uma
coisa, uma res. O senhor tinha o direito absoluto de usar e abusar do servo.
Com a cristianização do direito romano, se introduziu, em primeiro lugar, a
idéia de que o servo era uma pessoa humana. Hoje se diria, ‘servo como
pessoa com os direitos inerentes à pessoa humana’ mas, naquele contexto,
não se falava em direitos, mas sim, nas obrigações que o patrão tinha.
Quando se fala em ‘obrigações’ é no sentido do direito romano cristianizado,
que toma em consideração os servos que teriam ‘direitos’ acima do patrão.
Assim, o patrão deixaria de exercer direitos absolutos sobre o servo que,
como pessoa humana, passaria a ter um referencial superior ao patrão que é
Deus e sua Revelação e o direito natural.]]
12. A primeira palavra, sobre que havemos de discorrer, é o Pão: panis.
Deve o senhor ao servo o pão, para que não desfaleça: panis, ne succumbat.
E debaixo deste nome de pão, conforme a frase hebreia, se compreende
primeiramente tudo aquilo que conduz para a conservação da vida humana,
ou seja o sustento, ou o vestido, ou os medicamentos no tempo da
enfermidade (r) Panis hoc loco pro re quavis ad vitam necessaria sumitur juxta
Hebraecorum phrasim. — De Pina, Comment. In Eccl. Ethol. — 268, n. 6. (P.53). E isso
mesmo é o que pedimos a Deus na oração do Padre Nosso, dizendo: panem
nostrum. quotidianum da nobis hodie, o pão nosso de cada dia nos dá hoje
(s) Luc. 11, 3. (P.53). Comentário: O Apóstolo se refere a Cristo que ensina os discípulos a
oração do Pai-Nosso dizendo: “o pão nosso cotidiano dá-nos a cada dia...”) In hoc
intelliguntur (diz Lira) peti omnia vitae necessaria (t) Lyra in c. 6. Matth. (P.53). E
que tudo isto devam também os senhores aos servos, eu o mostrarei por
partes.
[[ A roupa, a veste e o medicamento, fazem parte desse sustento que é
simbolizado pelo pão. O pão simboliza algo mais do que simples alimento.
Benci diz que está baseando na frase hebréia, onde nesse caso a palavra
pão talvez tenha esse significado amplo, de sustento, de necessidades
básicas. Nesse momento ele está citando De Piña que comenta o
Eclesiástico. O enfoque maior de Benci é mais no Eclesiástico do que na
plenificação em Cristo. A idéia central é a de que o pão significa as
necessidades vitais, não apenas alimentícias, mas vitais. Ao se referir ao Pai
Nosso ele articula o Eclesiástico com a palavra de Jesus e coloca o servo
também como filho que pede o pão nosso.]]
§1
Do Sustento, que devem os senhores aos servos
13. A primeira obrigação que se inclui no nome de pão, que o senhor
deve ao servo para que não desfaleça, panis, ne succumbat, é o sustento.
Esta obrigação não se funda somente em alguma lei positiva, senão também
na mesma lei natural, que, obrigando a cada um a procurar o sustento da
própria vida; como o servo, por dever a seu senhor todas as obras de seu
serviço, o não possa granjear para si, obriga a que lho dê o mesmo senhor.
[[ Aí, além da Revelação, ele acrescenta um argumento novo que é a lei,
apresentando a distinção entre direito positivo e lei natural. Lei positiva é
aquela que foi estabelecida, promulgada, determinada. Lei natural é aquela
que está na natureza das coisas, na natureza íntima do homem. Para ele a
obrigação do sustento faz parte da própria lei natural. Mesmo que a lei
positiva não a determine, a lei natural a faz. É a lei da sobrevivência. Como o
servo não pode granjear seu próprio sustento, isto obriga a que o senhor o
faça. Assim, o elemento novo que ele traz é a fundamentação na lei natural
que, de acordo com o pensamento da época, vem de Deus que gravou no
coração das coisas, do homem, todos os povos a tinham gravado no
coração, na sua interioridade profunda e, ao mesmo tempo, na natureza das
coisas. Era uma espécie de ‘decálogo’ que todos os povos teriam, da lei
natural. Esse conceito de lei natural, depois, vai ser muito criticada pelos
iluministas e positivistas. A Igreja sempre sustentou radicalmente a existência
de um ‘direito’ natural que era algo de sagrado para ela, mas, na revisão pósconciliar, na revisão da teologia moral do século XVI, e com a consolidação
do Direito Canônico, em vez do direito natural, começou-se a empregar a
palavra normatividade antropológica, sobretudo aplicada à cultura humana.
Porque antes se falava em uma lei natural extensiva aos animais, mas a
expressão normatividade antropológica é uma expressão mais rica e de
significado cultural, que se refere especificamente ao ser humano. Agora, a
maneira como vai se normatizar, vai variar de cultura para cultura. Assim,
pressupõe a comparação entre todas as culturas.]]
14. Reconheceram os legisladores do Direito comum ser tão forçosa esta
obrigação, que acharam que devia ser preferida [[preferida quer dizer
anteposta, prioritária, sendo mais importante do que o pai sustentar o filho ]] à
mesma obrigação tem o pai de sustentar ao filho; pois ainda que o servo
tenha pai livre, determinaram que ao senhor, e não ao pai pertencia alimentálo (u). Text. in L.. Si neget 7, ff. de agnoscend. et allend. lib.(P.54) Comentário: As citações
do texto não são seguidas de referências bibliograficas. Ele cita, supondo a erudição do leitor
da obra) E a razão desta determinação é‚ porque não podendo o pai tirar
proveito algum do filho cativo, não era justo que experimentasse o incômodo
de o sustentar; pedindo a razão natural, e a mesma natureza, que quem tira o
proveito de alguma coisa, esse mesmo e não outro, experimente e padeça
os incômodos dela (x). Reg. 55. Qui sentit de reg. jur. in. 6. (P.54)
[[Ele continua a raciocinar com argumentos jurídicos, se refere ao direito
positivo (comum) e na segunda parte ele se refere à razão natural. O direito
natural era a expressão da razão natural. Benci está concluindo a partir da
própria natureza das coisas, o que se chamava, então, de direito natural e ele
chama de razão natural, mas anteriormente, no item 13, ele falou em uma ‘lei
natural’]]
15. Nem só concorre para declarar a força desta obrigação o Direito
humano, mas também o divino: o qual proibindo severamente no Levítico,
não só que nenhum estrangeiro, mas nem ainda o hóspede ou mercenário do
Sacerdote comesse coisa alguma das que o povo oferecia a Deus (y) Omnis
alienigena non comedet de Sanctificatis: inquilinus Sacerdotis, et mercenarius non vescentur
ex eis. — Levit. 22, 10. (P.55). Comentário: O texto do Levítico está redigido da seguinte
forma: “Nenhum estranho comerá das coisas santas: nem o hóspede do sacerdote e nem o
servo assalariado comerão das coisas santas”); exceptuou desta lei ao servo, que o
Sacerdote comprasse com o seu dinheiro, ou lhe nascesse em casa (z) Quem
autem Sacerdos emerit, et qui vernaculus domus ejus fuerit, hi comedent ex eis. — Ibid. 11.
(P.55). Comentário: Continuando o texto diz, no versículo 11: “Contudo, se um sacerdote
adquire uma pessoa, a dinheiro, esta poderá comer da mesma forma que aquele que nasceu
na sua casa; comem, realmente, do seu próprio alimento” ). Pois o que Deus não
permite aos livres, há-de permiti-lo aos escravos? Sim. E razão, a deu Filo
Hebreu tão própria, que não pode ser melhor ao nosso intento: Quia senus
niffil lucratur, nisi ex domino, cuius ipse est possessio, ut necesse sit ali ex
sacris proventibus (a) Lib. 2, de Monarch. (P.55). Porque como o servo não tenha,
nem possa ter alguma outra coisa, senão o que lhe dá seu senhor e como o
Sacerdote não tivesse outro sustento, senão aquele que lhe vinha das ofertas
e sacrifícios, se o servo não pudesse comer delas, ficava desobrigado o
Sacerdote do débito que tem qualquer senhor de dar o sustento ao escravo.
Porém como esta obrigação nasce da mesma natureza, por isso proibindo
Deus aos mais que não comessem nem das ofertas nem dos sacrifícios, que
lhe faziam, declarou que não compreendia nesta lei aos servos dos
Sacerdotes, por que estes livremente podiam comer e sustentar-se delas:
Quem autem Sacerdos emerit, et qui vernaculus domus eius fuerit, hi
comedent ex eis.
[[Depois de ter argumentado tomando por base o direito positivo e o direito
natural, ele vai agora argumentar tomando por base o direito divino, segundo
o Livro do Levítico. Essa inserção de que as ofertas não podiam ser comidas
por ninguém, exceto pelos servos, evidencia uma relação humanizante na
sociedade bíblica referida. Mostra o direito humano do servo prioritário à
sacralidade das oferendas. No Evangelho, Jesus vai referendar no ato da
cura realizada no dia de sábado, quando Ele pergunta: no dia de Sábado é
lícito fazer o bem ou o mal? o sábado foi feito para o homem, e não o homem
para o sábado. É a prioridade do homem sobre a sacralidade das oferendas
e, mais do que isso, Benci lembra que nesse caso, a exceção é para o menor
dos menores, que é o servo. É como se fosse a restituição de uma
humanidade que lhe está sendo negada.]]
16. Sendo porém a obrigação, que têm os senhores de sustentar os
escravos, imposta pela lei natural, e tão autorizada pelo Direito humano, e
muito mais pelo divino; é contudo tal a crueldade de alguns senhores, que até
o sustento, que tão liberalmente dão aos animais brutos, negam aos cativos.
Quem não vê (diz S. Ambrósio) como nas casas de alguns senhores andam
mui luzidos e gordos os cães; e pelo contrário pálidos e amarelos os servos,
e tão consumidos da fome, que se não podem ter em pé (b) Vides enim in
nonnullorum domibus nitidos, et crassos canes discurrere; homines autem pallidos,
titubantesque incedere. D. Amb., Serm.33. (P.56). Há tal desigualdade! Que seja
possível que se não falte aos brutos com o sustento, ainda à custa do
escravo; e que se não dê ao escravo, que é homem racional e Cristão, o que
se dá aos brutos! E já que aos servos se lhes dá o trabalho, opus, não é
mais que tirana e bárbara injustiça, negar-lhes o sustento do que trabalham?
[[ O que chama a atenção é que ele está mostrando uma norma e uma
realidade que choca com esta norma. Uma norma que procede do direito
natural, do direito positivo e do direito divino, no entanto, a realidade é tão
chocante que o ser humano passa a se parecer com os animais. Santo
Ambrósio foi um dos Padres da Igreja mais preocupados com os problemas
sociais de sua época. Ele foi um cristão tardio e como catecúmeno ainda, foi
proclamado pelos cristãos como bispo, prevalentemente por sua profunda
sensibilidade para com os problemas da escravidão e da pobreza. Tem
textos que ainda hoje são considerados dos mais interpelantes sobre essas
questões. ]]
17. Foi preceito de Deus na Lei velha, e registado no Deuteronómio, o de
que faz menção S. Paulo: Non alligabis os bovi trituranti (c) 1 Cor. 9,9.(P.56).
Comentário: Na Epístola aos Coríntios, segundo a Bíblia de Jerusalém, está dito: “Com
efeito, na Lei de Moisés está escrito: <<Não amordaçarás o boi que tritura o grão>>. Acaso
Deus se preocupa com os bois? Não é, sem dúvida, por causa de nós que ele assim fala?
Sim; por causa de nós é que isso foi escrito, pois aquele que trabalha deve trabalhar com
esperança e aquele que pisa o grão deve ter a esperança de receber a sua parte”., conforme
Benci já havia citado recorrendo à Epístola de São Paulo.) Guarda-te (1 No texto:Guar-te)
(diz Deus) de tapar a boca ao boi, quando na eira debulha o trigo. E porque
proíbe o Senhor o tapar-se nesta ocasião a boca ao boi? A razão é (diz Lira)
porque trabalhando o boi no trigo para dar de comer a seu dono, parecia que
era espécie de injustiça impedir-lhe o comer (d). Ad aliquam enim injustitiam
pertinere videtur irrostrare bovem, ut nom possit de frugibus, in quibus actualiter laborat,
comedere. — Lyra in cap. 25. Deuter. (P.56). Comentário: O versículo 4, do Capítulo 25, do
Deuteronômio diz: “não amordaçarás o boi que debulha o trigo”). E não será manifesta
injustiça, se trabalhando o escravo de sol a sol, para que coma e se regale
seu senhor, não lhe de o mesmo senhor o sustento daquilo mesmo que
trabalha? Quem o duvida? E mais quando o escravo (ainda com ser incapaz
de todo o domínio, porque tudo o que adquire, adquire para seu senhor) tem
rigoroso direito para haver do senhor o sustento do que trabalha, como coisa
própria e sua. [[ Sabe-se de tabus alimentares que eram usuais na época
colonial, e aos quais alguns autores atribuem ao medo incutido nos senhores
para que os escravos não assaltassem as plantações à noite. Outra prática
era a de alguns senhores que permitiam cultivo de pedaços de terra pelos
escravos para as suas subsistência, só que, um grande número deles só
permitia essa licença aos domingos e dias santos de guarda, prejudicando o
escravo nos seus deveres religiosos. A expressão de Benci de que o escravo
trabalha de sol a sol para que coma e se regale o seu senhor, revela como
era típica essa situação naquele contexto, e como era desumano o dia a dia
do escravo. Benci faz menção a São Paulo para mostrar e comparar que se o
boi deveria ter sua ração garantida, mais ainda o escravo, homem. Assim,
indiretamente, o autor está denunciando uma gritante desumanidade em que
até os animais estavam em situação antecedente aos humanos
escravizados.]]
18. Assim o declarou o mesmo Deus a Adão, quando rebelando-se
contra seu Criador, o condenou como vil escravo a trabalhar na terra: In
sudore vultus tui vesceris pane tuo, com o suor do teu rosto comerás o teu
pão (e) Gen. 3, 19 (P. 57). Comentário: O texto bíblico diz: “Com o suor do teu rosto
comerás teu pão”. [[Essa leitura que Jorge Benci faz de que o trabalho é uma
maldição divina, por causa do pecado original, não é uma leitura positiva. O
trabalho no Gênesis é uma benção bíblica, pois Deus, depois de criar a
natureza, concedeu ao homem a faculdade de continuar a sua obra criadora:
‘crescei, multiplicai-vos e dominai toda a natureza’. Portanto, o trabalho não
deve ser considerado como uma maldição bíblica. Maldição bíblica seria o
aspecto doloroso decorrente das circunstancias sociais do trabalho. O
trabalho não deveria ser específico do escravo e sim, específico do filho de
Deus. Porém, no tempo de Benci, a idéia era a de que o trabalho era
degradante, como pode-se observar nas Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia que usam a expressão corriqueira: trabalho ‘vil e
baixo’, numa época em que os clérigos eram proibidos de fazer qualquer
trabalho ‘vil e baixo’, como, por exemplo, cavar a terra, pois, segundo as
Constituições, isso era um ato indigno do ministério do altar. Assim, esse
conceito de trabalho ‘vil e baixo’, como o que era feito pelos escravos, foi
uma deturpação do sentido bíblico do trabalho, em uma leitura feita a partir
do ponto de vista do senhor. O conceito de ‘trabalho’ de Jorge Benci é, neste
texto, um conceito negativo, Outro contexto e outra leitura poderia
compreender que, na verdade, o trabalho é próprio dos homens livres e
originou-se, na leitura bíblica, como uma bênção, como um meio de autorealização do homem, como construção da sociedade e como domínio sobre
as forças da natureza. Com o advento do pecado original entraram alguns
contrapontos ao trabalho como, por exemplo, a ociosidade, ou seja a fuga ao
dever de trabalhar, a instrumentalização do trabalho humano pelos
dominadores e a adoração do produto do trabalho ocupando o lugar de Deus.
Cristo vai recapitular a dignidade do trabalho, quando assume a
personalidade do trabalhador, como trabalhador e filho de trabalhador, um
carpinteiro. ]] Reparo que diga Deus a Adão, que o pão era seu, e que nele
tinha direito, como em coisa sua, pane tuo. Não é Deus o que dá a todos o
sustento, como Senhor universal de todos? Assim é, diz David: Omnia a te
expectant ut des illis escam in tempore (f) Psal. 103, 27. P. 57). Comentário: Na
Bíblia de Jerusalém, a citação de Benci corresponde ao Salmo 104, versículo 27, que canta:
“Eles todos esperam de ti que a seu tempo lhes dês o alimento: tu lhes dás e eles o
recolhem, abres tua mão e se saciam de bens”). Pois se Deus é o que nos dá o pão,
que comemos, como diz a Adão que o pão era seu, pane tuo? Advirtam nas
palavras antecedentes, que nelas descobriremos a razão: In sudore vultus tui
vesceris pane. Havia Adão de trabalhar, havia de cavar a terra, havia de suar
para granjear o sustento; e o que trabalha, o que sua Adão, ainda que Deus,
como Senhor absoluto de tudo, tenha nisso domínio, contudo não o reputa
por seu, mas julga-o por próprio de Adão, que o trabalha e sua: In sudore
vultus rui vesceris pane tuo. [[ Segundo a leitura da época, Deus ‘condenou’
Adão ao trabalho. O trabalho, nesta época, era visto como uma penalidade.
Aos olhos de hoje o trabalho não é uma pena. Naquele contexto, o trabalho,
a labuta, era espinhoso e vil. Porém, no sentido bíblico original, o próprio
Deus ‘trabalhou’ na criação, e ‘descansou’, deixando ao homem a
incumbência de continuar o Seu trabalho: ‘crescei e multiplicai-vos e dominai
a terra’. Nesse sentido, o trabalho era considerado como uma participação do
homem na obra criadora de Deus, devendo, pois, ser considerado como uma
dignidade e não como uma penalidade. A pena é o aspecto doloroso do
trabalho enquanto castigo imposto. Assim, essa leitura do trabalho como
castigo tem que ser compreendida naquela sociedade onde a idéia de
‘castigo’ era decorrente de como vai se dar as condições de trabalho
(trabalho escravo). A frase ‘com o suor do teu rosto comerás o teu pão’
enfoca o direito que o escravo deveria ter ao fruto do seu trabalho. O produto
do seu trabalho deveria ser dele (do escravo). Vieira também vai se referir
aos escravos: ‘vocês são como as abelhas, vocês trabalham mas o fruto do
trabalho não é para vocês’. Isso seria uma inversão de uma lei natural. Todo
o enfoque deste parágrafo, é pois, sobre a inversão do trabalho do africano
escravizado, cujos frutos eram apropriados pelo patrão. No epílogo, Benci irá
dizer que: no cristianismo primitivo os escravos pagãos que eram batizados
adquiriam a liberdade, mas nas circunstâncias em que vivemos [diz Benci] eu
não vou exigir isso de vocês patrões. Mas se vocês fizessem isso: dessem a
liberdade por serem cristãos, não estariam fazendo nada mais do que fizeram
os verdadeiros cristãos. Por outras palavras, esta adaptação, feita na
Colônia, não é uma situação ideal, mas uma situação de cristãos não
verdadeiros. Os verdadeiros cristãos não fariam isso. Voltando-se à preleção
ao leitor, Benci sabia qual era o verdadeiro caminho, quando disse: ‘se és
cristãos e tens escravos...’ A carta magna da liberdade humana, que era o
Evangelho, todos conheciam. O grande problema era definir o que era
possível ser feito naquela realidade. O que Benci não faz é canonizar uma
realidade que deturpa o verdadeiro sentido do cristianismo. Ele tolera, aceita,
sem aprovar.]]
19. Agora argumento assim: Se Deus, quando manda trabalhar a um
servo tão rebelde como Adão, não só não lhe nega o sustento, mas declara
que é seu: pane tuo, como vós, senhores, mandando trabalhar os vossos
escravos, lhes tirais o sustento? Sois por ventura mais senhores ou tendes
mais domínio nos escravos, que o mesmo Deus? Claro está que não. Pois
como dizeis ao escravo: In sudore vultus tui vescar pane tuo? Com o suor do
teu rosto ( no texto: rostro (p.58) hei-de comer ainda o teu pão, ainda o teu
sustento? [[Esse parágrafo contém uma advertência muito importante, pois
se o próprio Deus dá direito ao homem de viver do fruto do seu trabalho,
como pode o homem ter a ousadia de colocar-se acima de Deus que disse
‘comerás o teu pão com o suor do teu rosto’ e dizer eu, patrão, vou comer do
teu pão e o teu sustento. Ainda que fosse impossível para Benci pregar uma
idéia de libertação, seu discurso é avançado e tem germes de libertação. No
entanto, ele lança premissas que levariam a um pensamento libertário.
Haveria, aos poucos, de por por terra o próprio conceito de escravidão que é
a instrumentalização do trabalho do outro. Na forma retórica barroca, auxilia à
sua idéia o contraponto de que, sendo Deus quem é, fazer pelo ser humano o
que ele fez, e sendo o homem quem é, menor do que Deus, querer fazer
diferentemente de Deus. Benci denuncia a ousadia de o patrão querer
colocar-se acima do próprio Deus. Isto ele faz em um estilo que teria muito
mais efeito para aqueles leitores a quem o discurso se destinava do que se
fosse um estilo meramente filosófico.]]
20. E isto é o que dizem com as obras (quando o não digam com as
palavras) os senhores, que não dão o sustento a seus servos, ou lhes não
dão tempo suficiente, em que o possam buscar. Digo que lhes não dão o
sustento ou tempo suficiente, em que o possam buscar; porque eu não
condeno (antes louvo muito) o costume, que praticam alguns senhores neste
Brasil, os quais achando grande dificuldade em dar o sustento aos escravos,
que os servem das portas a fora nas lavouras dos Engenhos, lhes dão em
cada semana um dia, em que possam plantar e fazer seus mantimentos,
com os quais os que se não dão à preguiça têm com que passar a vida. [[
Quando ele diz que não condena, pelo contrário, louva os senhores que
permitem o cultivo, ele mostra que era aquele um momento em que a prática
daqueles que permitiam era uma prática rarefeita. Mas adiante ele vai falar
sobre aqueles que permitiam, porém, no Domingo. Assim, quando ele louva,
ele exclui estes últimos.]]
21. E quem lhes tira esse tempo (me direis vós) se não proibimos a
nossos escravos, que nos domingos e dias santos busquem sua vida e
trabalhem para si? Nos Domingos! Nos dias Santos! Dizei-me, senhores
meus: onde vivemos? Em Berberia entre os Mouros de Argel ou no Brasil
entre os Cristãos da Baía? Já vejo que me respondeis que entre os cristãos.
E haverá algum Cristão, que não saiba que Deus manda santificar as festas
e guardar os dias santos; e que é pecado mortal, fora do necessário e
preciso, mandar que se trabalhe nestes dias? Logo, se por faltar com o
sustento aos escravos, os obrigais a procurá-lo nos domingos e dias santos:
não vedes que pecais gravemente, contra o terceiro Mandamento da Lei de
Deus? [[Aqui ele fala da maioria, aqueles senhores que davam o dia de
Domingo para que os escravos trabalhassem a terra para tirar o sustento,
pondo em prejuízo a guarda do dia santo, como reza o terceiro Mandamento.
Além disso, ele relembra que está falando para cristãos da Bahia em um
tempo onde tudo girava em torno da religião, com prática religiosa obrigatória
e eivada pela fé, apesar das contradições daquela época. Nesse caso, ele
tenta recuperar a condição de cristão daqueles senhores. Ele diz que, na
prática, aqueles são piores do que os da Berbéria. Compreende-se daí, que é
um tempo de muita fé mas uma ‘fé’ que, se por um lado nega o ateismo e a
falta de fé, por outro lado, na prática, se negava completamente o ‘Credo’ que
na missa eles professavam. O fato de ele elogiar aqueles senhores que
davam um dia da semana, sabe-se que os jesuítas praticavam o sustento dos
escravos pelo seu próprio trabalho (Frei Hugo vai dar o texto).
22. Quanto mais que desocupando do serviço os escravos nestes dias, e
dando-lhes liberdade para que trabalhem para si, nem por isso ficais
desobrigados de lhes dar o sustento. E a razão disto é, porque tendes duas
obrigações mui distintas e mui diversas: a primeira é não ocupar os servos
nos domingos e dias santos; a segunda, dar-lhes o sustento. E assim,
desocupando-os nestes dias do serviço, cumpris com a primeira obrigação;
porém fica ainda em pé a segunda, porque é direito mui claro, que com uma
só paga não se pode satisfazer a duas dívidas totalmente distintas e
diversas. Há-de ser pois uma de duas, se quereis cumprir com a obrigação,
que tendes como senhores: que ou lhes haveis de dar o sustento, ou lhes
haveis de dar tempo suficiente (e esse distinto dos domingos e dias santos)
em que o possam granjear. [[
23. De outra sorte que há-de suceder, senão o que ordinariamente
acontece? Ou morrem os escravos à fome ou furtam o alheio para
sustentarem a vida! E em qualquer caso destes, quem não vê os pecados,
com que agrava o Senhor a sua consciência? Porque se o servo perde a vida
consumido da fome, é o senhor homicida do mesmo servo; pois é direito
expresso, que não só comete homicídio quem mata á espada ou com
qualquer outro instrumento ofensivo tira a vida, mas também quem nega os
alimentos devidos (g). Necare videtur, qui alimoniam denegat. — Lib. 4, ff. de agnoscend.
et alend. lib. (p.59). Pareceu a S. Ambrósio, que quem negava a esmola ao
pobre necessitado, deixando-o perecer, era réu na morte do mesmo pobre (h)
Si non pavisti, occidisti. D. Ambr. apud Gratian. Dist. 76, cap. Pasce. (P.59). Pois se
incorre no homicídio quem nega a esmola ao pobre, faltando somente à
caridade; como não ser homicida o senhor, que negando o sustento ao
servo, não só falta à caridade, mas também à justiça? Com quanta maior
razão se pode dizer deste senhor: Si non pavisti, occidisti! Não destes ao
servo o necessário sustento? Logo mataste-lo e sois homicida. [[ Jorge
Benci, não só por ser italiano, e por isso não submisso aos imperativos da
Coroa Portuguesa, não só por ser jesuíta, mas, por ser jesuíta e por ter tido
uma condição de estudo intelectual que o transformou em um teólogo e
conhecedor da história bíblica, detém uma consciência e um posicionamento
moral que não se limita apenas ao senso comum temporal vigente na Bahia
colonial, porém, trabalha com argumentos que estão além daquela realidade
imediata. Ele vê a história como um grande processo e não apenas
estaticamente no aqui e agora do século XVIII.]]
24. Este é verdadeiramente o caso, em que se verifica um texto mui
dificultoso do Eclesiástico, que diz assim: Quem derrama o sangue do
inocente e quem defrauda ao trabalhador o seu jornal, são como irmãos (i).
Qui effundit sanguinem et qui fraudem facit mercenario, frates sunt: Eccli. 34, 27.(P.60).
Comentário: Esse conteúdo corresponde aos versículos 20 a 23, na tradução da Bíblia de
Jerusalém: “Como o que imola o filho na presença de seu pai, assim é o que oferece um
sacrifício com os bens dos pobres. Escasso alimento é o sustento do pobre, quem dele o
priva é um homem sanguinário. Mata o próximo o que lhe tira o sustento, derrama sangue o
que priva do salário o diarista. Um constrói, outro destrói”). Isto é (dizem Lira e
Rabano) cometem igual crime e semelhante pecado (1). Similes et pene pares in
scelere. — Lyra, et Raban. Hic. (P.60). Mas quem não vê a dificuldade desta
comparação? Quem nega ou diminui o jornal ao jornaleiro tira-lhe a fazenda;
quem derrama o sangue do inocente tira-lhe a vida. Pois se o pecado de tirar
a vida, sem comparação é maior do que o de tirar a fazenda; como diz o
Espírito Santo que são iguais e como irmãos, Fratres sunt? Desfaz
admiravelmente esta dificuldade a versão dos setenta nesta forma: Quem tira
o sustento, de cuja falta se segue a morte do próximo, mata-o; e quem tira o
jornal ao jornaleiro, derrama-lhe o sangue (m). Qui aufert victum occidit proximum; et
qui fraudat mercedem mercenarii, effundit sanguinem. — In Veteri Testamento juxta LXX.
Latine red. et jussu Sixti V edito.(P.60). [[ Ele continua reafirmando, agora mediante
a citação bíblica, que negar o sustento é um verdadeiro assassinato. A
versão dos setenta foi a tradução do Antigo Testamento, feita para o grego,
por setenta padres, em Alexandria, alguns séculos antes de Cristo.............
25. Parece-me que nestas palavras argumenta o Espírito Santo desta
sorte: quem tira o jornal ao jornaleiro (1) No texto: jornaliero, nas diversas vezes que
aqui aparece (p. 60), que disso vive, tira-lhe o sustento; quem tira o sustento,
mata aquele a quem o tira; logo quem falta com o jornal ao jornaleiro, mata-o.
Quem duvida logo que igualmente peca quem não paga ao jornaleiro e quem
tira a vida ao próximo, porque ambos matam, um à espada, e outro à fome?
Pergunto agora. Há jornaleiros mais pobres e necessitados, que os
escravos? Ou h jornal mais justo e mais devido, que o sustento aos servos?
Merces servi
cibus est, diz Aristóteles: 0 sustento ‚ o jornal, que deve ao servo o senhor (n)
Arist. Lib.I Oecon., cap. 5.(P.61). Logo quem pode negar, que negando o senhor o
sustento ao servo, faz o mesmo que se o matara; pois se o não mata ...
espada, mata-o ... fome? Qui aufert victum, occidit proximum; et qui fraudat
mercedem mercenarii, eflundit sanguinem.
26. E se o servo obrigado da necessidade furta para sustentar a vida; ainda
que ele nÆo cometa -pecado, poi como diz o prov‚rbio, a necessidade nÆo
tem lei; quem duvida que peca o senhor, que por faltar ao escravo com os
alimentos necess rios, o necessitou a furtar o alheio? E a razÆo ‚ -evidente.
'Porque, -como diz o Direito, aquele faz o dano, que ‚ ocasiÆo e causa de se
fazer o tal dano: Verum, est, eum, qui causam prœebuit damni dandi,
daninum dedisse (o) L. Pretor. 4 § sed et si quis ff. de vi bonor. raptor.(P.60).. Sendo
pois os senhores, que faltam aos servos com o sustento, a causa dos furtos
que eles cometem; quem duvida que ficam obrigados ... restituição destes
furtos, e a refazer todas as perdas e danos, que deles se seguem; e que não
pode haver confessor, que os absolva destes pecados, sem que restituam
primeiro o que furtaram seus escravos constrangidos da fome? Logo, se não
quereis cair nestes pecados, e na obrigação destas restituições, dai de comer
a vossos servos, ou dar-lhes
tempo conveniente em que o possam
granjear.
27. Senhores h , que não faltam aos escravos com a ração quotidiana; mas
esta ‚ tão limitada e escassa, que mais serve para que não Morram ... fome
do que Para que sustentem a vida. Se ao servo se lhe medisse o trabalho
pela mesma medida, com que se lhe mede o sustento,
calara-me eu
nesse ponto. Por‚m que haja o escravo de trabalhar Como mouro, e comer
como formiga: não sei que direito o permita! 0 que sei ‚ que o sustento do
escavo deve ser em tanta quantidade, que antes lhe sobeje do que lhe falte.
Assim 0 notou S. João Crisóstomo comene
tanto as palavras do Apóstolo,
em que manda aos senhores que guardem aos escravos o que ‚-justo e
racion vel (p) Domini, quod justum est et æquum, servis præstate. — Coloss. 4, 1.(P.62).
Comentário: As palavras do Apóstolo Paulo a que se refere Benci, são as seguintes: “Quem
faz injustiça receberá de volta a injustiça, e nisso não há acepção de pessoas. Senhores, daí
aos vossos servos o justo e eqüitativo, sabendo que vós tendes um Senhor no céu “). Mas
que ‚ o que convém e ‚ justo que guardem os senhores para com os servos?
pergunta S. João Crisóstomo: Quid vero iustum est? Quid xquum? Dar-lhes o
sustento com
tanta abundância, que não necessitem de recorrer a outros.
Omnia abunde (responde o mesmo Santo Doutor) suppeditare, et non ita ut
aliarum ope indigeant (q). Crysost. Hom. 10. in cap. 4. Epist. ad. Coloss.(P.62).
28. Que bem entendeu esta doutrina aquela Mulher forte tão celebrada nos
Provérbios! Por isso as rações que repartia pelas escravas, não as media
pelo singular, senão pelo plural: Et cibaria ancillis suis. Porque não lhes dava
o sustento com mão escassa, mas mui liberal; nem s¢ lhes dava o pão, mas
também o conduto, cibaria ancillis suis (r) Prov. 31, 13) Comentário: O trecho que
fala da prodigalidade da ‘perfeita dona de casa’ diz o seguinte: Noite ainda, se levanta Para
alimentar os criados. E dá ordens às criadas... Estende a mão ao pobre, ajuda o indigente.
Se neva, não teme pela casa, porque todos os criados vestem roupas forradas.... Porque
como ‚ possível que o escravo ou escrava, andando
em contínua lida e
trabalho, sustente a vida com uma ração escassa de farinha de pau, sem
outra coisa que a ajude a levar? Se ‚ verdade que não pode o homem
sustentar a vida unicamente com pão, ainda sendo o pãode trigo: Non in solo
pane vivit horno (s) Matth. 4, 4. Comentário: O texto se refere à resposta de Jesus ao
demônio, no deserto: “Nem só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca
de Deus”); como se há-de sustentar o miserável escravo sem outra coisa mais
que uma triste ração de farinha de pau? Não vedes que isto‚ fazê-los comer
terra? Porque, vendo-se tão perseguidos da fome e do trabalho, a comem, e
acabam miseravelmente a vida (1)
29. E j que estamos neste ponto, não quero deixar de dizer aos
senhores do Brasil, que bem podiam aprender dos antigos Romanos a não
ser tão escassos nas rações que dão aos servos, como o não são nas
distribuições das tarefas. Eram os servos em Roma tratados de seus
senhores com tanta abundância no sustento (como escreve Donato no
comento de Terêncio) que só em pão lhes davam cada mês três medidas de
trigo, a que chamavam módio. Cada módio, pela calculação de Berlinch,
continha dezasseis sextários, e cada sextário quinze onças de trigo (t) Donat.
Apud Berlinch. in Theat. Vit. hum. Lit. S., verb. servor, victus et dicta. Apud. eund. lit. M, verb.
Mensura. (P.63). ; e assim, pela conta dos arráteis de Portugal, cada módio
vinha a
ter quinze libras de trigo.- E dando os senhores aos escravos três
módios de trigo em cada mês, vinham estes a ter quarenta e cinco libras de
trigo, que com o crescimento da água com que se amassa, dão sustento
mui abundante parà qualquer trabalhador.
30. E porque em tempos de Juvenal havia em Roma certo pai, que entre os
mais documentos que dava a um seu filho para que não desperdiçasse a
fazenda era que cortasse Pela ração dos escravas, falsificando a medida;
Ponderou a ambição deste pai o Poeta, e com
liberdade disse assim:
Servorum ventres modio castigar iniquo (u). Juvenal., Sat 14.
Não se hajam desta sorte os senhores do Brasil, e dêem aos escravos o
sustento com tal medida, que não dêem causa a que os ventres dos
mesmos servos famintos e queixosos murmurem da mis‚ria do senhor, e não
cheguem a desfalecer à fome: panis, ne succumbat.
§ II
Do vestido, que devem os senhores aos servos
31. Debaixo do nome de os senhores aos servos pão, que devem os
senhores aos servos, se entende também o vestido, sendo que por
boa
razão parece que deviam andar todos despidos, visto que a servidão e
cativeiro teve sua primeira origem do ludíbrio, que fez Cam, da desnudez de
Noé seu Pai. Sabido é, que dormindo este Patriarca corri menos decência
descoberto, vendo Cam, e escarnecendo desta desnudez a foi publicar logo a
seus irmãos; e em castigo deste abominável atrevimento foi amaldiçoado do
Pai toda a sua descendência, que no sentir de muitos ‚ a mesma geração dos
pretos que nos servem (x) Joan Leo African. in descript. Africæ, lib. I. (P.65).; e
aprovando Deus esta
maldição, foi condenada ... escravidão e cativeiro:
Maladictus Chanaan; servus servarum erit fratribus sitis (Y) Gen. 9, 25.(P.65). Comentário: O
texto se refere à maldição lançada a Cam e a toda a sua descendência, pelo seu pai, Noé,
pelo desrespeito que ele tivera consigo: “Quando Noé acordou de sua embriaguez, soube o
que lhe fizera seu filho mais jovem. E disse: << Maldito seja Canaã! Que ele seja, para seus
irmãos, o último dos escravos! >> E disse também: << Bendito seja Iahwe, o Deus de Sem, e
que Canaã seja seu escravo! Que Deus dilate Jafé, que ele habite nas tendas de Sem, e que
Canaã seja seu escravo! >>”. Justo era logo, que tivessem os escravos, e
singularmente os pretos, em lugar do vestido a desnudez, para ludíbrio seu e
exemplar castigo da culpa cometida por seu primeiro Pai.
32. Mas com parecer isto assim, ‚ verdade indubitável e certa, que não
são menos obrigados os senhores a dar aos servos o alimento, com que se
mantenham e sustentem, do que são obrigados a dar-lhes também o vestido,
com que se cubram. Assim ;:) entendeu Jacob. Espertou
Jacob do
prodigioso sono, em 'que' viu aquela escada composta de mais mistérios que
degraus; e diz o texto, que fizera a Deus este voto: se Deus me der pão para
comer e vestido para me cobrir, prometo de o reconhecer sempre por meu
Deus e meu Senhor (z) Vovit etiam votum, dicens: Si — Deus — dederit mihi panem ad
vescendum, et vestimentum ad induendum, — erit mihi Dominus in Deum. — Gen. 28, 20 et
21. (P.65). Comentário: O texto em português, diz assim: Jacó fez este voto: << Se Deus
estiver comigo e me guardar no caminho por onde eu for, se me der pão para comer e
roupas para me vestir, se eu voltar são e salvo para a casa do meu pai, então Iahweh será
meu Deus >>”. E porque não se contentava Jacob com o sustento, senão que
para ser servo do Deus com quem falava, queria também o vestido? Não
basta que Deus lhe dê pão, para que o reconheça e sirva como a seu
senhor? Não. E porque não? A razão é: porque a obrigação do senhor não é
só dar o sustento ao
servo para se alimentar, mas também o vestido para
se cobrir. Eu faço voto, diz Jacob, Vovit et¡am votum, de reconhecer a Deus
Por meu senhor, erit mihi Dornirtus; porém há-de ser como condição, que me
dê pão para comer, si dederit mihi Panem ad vescendurn; e vestido para me
cobrir, et vestimenturn ad induendum. Assim pacteava Jacob Com Deus; e
assim o executou Deus com Adão.
33. Pelo pecado ficou Adão, de senhor que era, escravo e -bem escravo.
Deu-lhe Deus o sustento, como já disse, in sudore vultus tui vesceris pane
tuo (a) Gen. 3, 19. (P.66). Comentário: O texto se refere à perdição de Adão e ao castigo
que lhe foi dado por Iahweh: “Com o suor do teu rosto comerás teu pão” e, para se
mostrar senhor verdadeiro e perfeito, deu-lhe também, assim a ele como a
sua mulher, o vestido. Fecit quoque
Dorninus Deus Adce et uxori eius
tunicas pelliceas et induit eos (h). Ibid. 21.(P.66). Comentário; “Iahweh Deus fez para
o homem e sua mulher túnicas de pele, e os vestiu”. 0 meu reparo está naquele fecit,
que Deus mesmo com suas mãos lhes fizesse o vestido. Não podia o Senhor
mandar a Adão que matasse algumas feras, e que com as peles delas se
vestisse a si e a sua mulher? Quem
o duvida? Pois porque lhes faz o
mesmo Deus com a sua mão os vestidos, fecit Dorninus Deus? A razão está
naquela palavra Dorninus, Senhor. Porque sendo Deus o verdadeiro
exemplar e norma dos senhores, quis satisfazer cabal e perfeitamente à
obrigação de senhor. Se Adão caçara
as feras, era mostrar que o escravo
devia buscar o com que se vestir. Pois não seja assim; corte-lhe o mesmo
Deus com sua mão o vestido, já que ‚ Senhor - Fecit quoque Dominus Deus
Adae et uxori eius tunicas pelliceas - para que saibam e entendam os
senhores que a eles pertence
dar o vestido aos escravos, e não aos
mesmos escravos o procurá-lo.
34. Sendo pois obrigação precisa do senhores vestir
aos servos:
como se acham senhoras, que não dando com que se vistam ...s escravas,
as querem mui bem trajadas? E de que sorte hão-de buscar elas estes trajos
e estes vestidos? Pedindo-os de esmola? Se vós, que lhos deveis, de
justiça, lhos não dais: como lhos há-de dar por caridade
quem lhos não
deve? Sabeis o que é isto? É querer que
elas o comprem a preço de
pecados. E queira Deus que o não façam melhor, ou pior, do que eu o digo!
Senão, dizei-me: de que e com que se traja a maior parte das
escravas
de todo o Brasil, senão à ousta das ofensas que cometem contra Deus? E
haver senhores e senhoras, que obriguem ou consintam que suas escravas
se trajem com as ofensas de Deus, e façam gala de sua culpa?
Tomara
saber onde está aqui o brio, o timbre e o pundonor dos Portugueses (1)! Em
1700, quando se escreveu este livro, no Brasil chamavam-se Portugueses
não só os nascidos em Portugal, mas todos os nascidos no Brasil, que não
fossem Índios nem Pretos.(P.67).
35. Bem sei que o ornato 'dos servos ‚ crédito dos senhores; porque, como
diz S. João Crisóstomo, o senhor que consente que seus escravos andem
indecentemente despidos, ou tão rotos, que mais serve o vestido de os
descobrir que os cobrir, a si mesmo se desonra (c) Qui servos suos indecore
nudos, ac detritis obsoletisque vestibus esse sinit, sui corporis bonam partem dedecore
afficit. — Chrisost. Apud Salazar. Comment in Prov. Salom. C. 31, v. 21, n. 122. (p.67).
Comentário: São Chrissostomo................ Na tradução usada no presente texto, o trecho dos
contrário, tanto redunda em cr‚dito do
Provérbios diz o seguinte: “. E pela
senhor o bom trajo do servo, que julga o Santo Doutor ser às vezes melhor
vestido do servo a melhor gala do Senhor (d). Ita ut nonnumquam expediat servos,
ac domesticos alios splendidius indui, et conversari, quam dominos. — Ibid.(P.68) .Mas isto
se deve entender, os que lhe dão o vestido. Por sendo o senhor e a senhora
que verdadeiramente não sei que honra seja levar a senhora atrás de si um
grande número de escravas, trajadas todas com a libré do pecado, tão vária
nas sedas, e nas cores, como são várias as mãos de quem a receberam.
36. A libré, há-de dá-la o senhor e a senhora; e se eles é a dão, logo se
divisa pela mesma cor em todos os servos. Dos servos daquela Mulher forte
(que por tais se devem entender os domésticos, na opinião de Jansénio) diz
o texto no original hebreu, que todos se vestiam da mesma cor carmesim (e)
Omnes domestici ejus vestiti sunt coccineis. — Prov. 31, 21, juxta Hebr.(P.68). Comentário:
Na Bíblia de Jerusalém, o versículo (22) completo diz assim: “Se neva, não teme pela casa,
porque todos os criados vestem roupas forradas”. Mas por que razão da mesma
Cor? Porque a todos teceu esta Mulher forte a libré e talhou o vestido com
suas mãos (f) Quæsivit Lanam et linum, et operata est consilio manuum suarum, —
Proverb. 31, 13. (P.68). Comentário: A tradução correspondente diz: “Adquire a lã e o linho, e
trabalha com mãos hábeis”. E como todos estes vestidos vinham da mesma mão,
diz Salazar (g) Ex telis, quas ipsa manibus suis contextuit, vestimenta eisdem partitur. —
Salazar, ubi supra n. 123.(P.68)., por isso todos eram da mesma cor: Omnes
domestici vestiti sunt coccineis. E eis aí a razão porque as vestidos de vossas
escravas são de tão diversas cores, porque saem de diversas mãos.
37. E não vedes que cada cor destas . ‚ urna nódoa, que mancha a
vossa honra? é a morte, cor do vosso brio e a esplêndida mortalha do vosso
cr‚dito; porque estes trajos adquiridos e granjeados com o pecado das
escravas não são vestidos. E porque o não são? Porque não cobrem
nem
encobrem-o que deviam encobrir. 0 principal fim do vestido 'foi para ocultar o
que não era decente que andasse exposto aos olhos de todos. Pois isto ‚ o
que falta a essas galas fabricadas e cortadas na oficina do pecado; que em
lugar de encobrir, manifestam a soltura das escravas, e conseguintemente a
mis‚ria, com que os senhores e as senhoras se fazem cúmplices dos pecados
das servas.
38. Pecou Adão, e tanto que ouviu a voz de Deus que o buscava no Paraíso,
diz o texto, que, fugindo da sua vista se escondeu, abscondit se (h) Gen. 3,8
(P.69). Comentário: A tradução hebraica é a seguinte: “Eles ouviram o passo de Iahweh
Deus que passeava no jardim à brisa do dia e o homem e sua mulher se esconderam da
presença de Iahweh Deus, entre as árvores do jardim”.). Pára, fugitivo, vem cá :
porque te escondes, Adão? Porque me vejo despido e descoberto, diz o
mesmo Adão (i). Timui eo quod nudus essem, et abscondi me. Ibid. 10 (P.69).
Comentário: Continuando, os versículos 9 e 10 dizem: “Ihaweh Deus chamou o homem: <<
onde estás? >> Disse ele. << Ouvi teu passo no jardim >>, respondeu o homem; << tive
medo porque estou nu, e me escondi >>). Aqui reparo. Se Adão e Eva, logo que
pecaram, e se lhes abriram os olhos para verem sua desnudez, se vestiram
com folhas (1) Et aperti sunt oculi amborum cumque cognovissent se esse nudos
consuerunt folia ficus, et fecerunt sibi perizomata. — Ibid. 7.(P.69). como diz Adão que
estava despido? A razão se deve colher da mesma figueira, donde Adão e
Eva colheram as folhas, de que teceram o vestido, com que cobriram sua
desnudez. Esta árvore, ‚ comum parecer, que foi a mesma árvore, por causa
de cujo fruto pecaram, diz Basílio de Selêucia (m)Circa arborem prævaricati, ab ipsa
tegumentum mutuantur. — Orat. 3. In Adamum. (P.69).. E vestido, tirado da árvore
'que foi ocasião do pecado, não encobre, descobre e manifesta mais a
culpa: por isso ainda depois de vestido se achou Adão despido mais do
que era dantes: timui eo quod nudus essem. Logo se as
escravas tiram
os trajos e as galas da ocasião do pecado, por mais vestidas e trajadas que
andem, mais descobrem a sua dissolução e conseguintemente a mis‚ria de
quem, faltando-lhes com o vestido, concorre para as suas dissoluções.
39. Que se h logo de fazer? 0 mesmo que fez Deus com Adão e com Eva.
Vestiu Deus a Adão e Eva, com temos dito, com peles de animais (n) Fecit
quoque Dominus Deus Adæ, et uxori ejus tunicas pelliceas, et induit eos. — Gen. 3, 21.
(P.70). Comentário; “Iahweh Deus fez para o homem e sua mulher túnicas de pele, e os
vestiu”.) E não me admirara eu de que os vestisse, se os achara despidos;
por‚m que os vestisse achando-os vestidos, isso ‚ o que me admira. Se Deus
vestira a Adão e Eva, quando eles se viram despidos logo que se lhes
abriram os olhos depois do pecado, fizera o que devia a Senhor, porém
depois de eles terem feito os seus vestidos de folhas, tomos a vestir e com
vestidos de sua mão -Fecit quoque Dominus- Deus! - parece que satisfaz
mais a sua liberalidade, e excedeu as obrigações de Senhor. Assim parece,
mas não foi assim. Não disse eu já que as folhas, com que Adão e Eva se
vestiram, foram tiradas da árvore que ocasionou a culpa? Pois eis aí a razão,
que teve Deus para vestir de novo a Adão e a sua mulher. Vestidos estavam
Adão e Eva; por‚m esse vestido era tirado da árvore, que havia sido a
ocasião do pecado e ofensa de Deus; e com semelhante vestido não
consente Deus que se trajem Adão e Eva, para que não façam gala de sua
culpa; por isso os despe dessas folhas e lhes d novo vestido à sua custa:
Fecit quoque Dominus Deus Adce et uxori eius tunicas pelliceas.
40. Pergunto agora: que são aquelas holandas, aquelas
telas e
primaveras, aquela redagem (1) Redagem. Como soa: véus, enfeites de redes ou
tecidos de malha; talvez redagem tendo caído o til do e: ornatos opulentos de renda.(P.71).
e oiro, com que se trajam as vossas escravas, senão folhagem de vaidade,
tirada por fruto da ocasião do seu pecado? Tirai-lhes logo todos esses trajos
e dai-lhes o vestido que lhes deveis. Porque se vós-lho não dais, e elas o
granjeiam com ofensas de Deus: por conta de quem correm estes pecados?
Por conta delas e vossa também; pois por lhes faltardes com o vestido,
vindes a ser a principal causa de tantas culpas.
41. A desculpa comua e vulgar dos senhores e senhoras do Brasil nesta
matéria, é dizerem que suas posses não chegam a poder vestir tanto número
de escravos e escravas. Boa razão era esta, se eu obrigasse a dar-lhes
vestidos e galas de grande preço. Mas nem eu, nem Deus
obriga a tanto,
senão só a cobrir de tal sorte os escravos, e principalmente as escravas, que
não andem indecentemente vestidos. E se houver quem diga que nem com
esse vestido, assim decente e de pouco custo, pode acudir aos seus
escravos; eu lhe responderei,. que se não tem posses para os vestir, não
tenha posses para os ter. E senão,
dizei-me: se não tivesseis tom que
pagar ao trabalhador o seu trabalho, havíeis de o alugar? É certo que não.
Pois do mesmo modo: se não tendes com que vestir os escravos, ‚ justo que
os tenhais? Também digo que não;
porque igualmente ‚ devido o vestido
ao escravo, e o jornal ao trabalhador.
42. Além de que os que isto dizem, não são comumente os mais pobres,
porque estes não deixam de acudir aos seus os mais abundantes e ricos, a
quem eu temo muito sejam do número daqueles ricos mentirosos, de que fala
o Eclesiástico no Capítulo vinte e cinco. Três espécies de homens, diz o
Eclesiástico que aborrece Deus e abomina e detesta suas almas (o) Tres
especies odivit anima mea, et aggravor valde animæ illorum. — Eccli. 25, 3.
(P.72).Comentário: A tradução, a partir do texto hebraico é: “Há três coisas que minha alma
deseja, Que são agradáveis ao Senhor e aos homens: a concórdia entre irmãos, a amizade
entre vizinhos, um marido e uma mulher que vivam bem”. Porém, o trecho a que se refere
Benci encontra-se no versículo 2: “Mas minha alma detesta três tipos de pessoa; irrito-me
profundamente com o seu viver” O pobre orgulhoso, o rico mentiroso, o ancião adúltero e
estulto”.). Deixando por agora o primeiro e o terceiro, vamos ao segundo, que ‚
o rico mentiroso, divitem mendacem (p) Ibid., 4 (P.72). Comentário: Benci fala do rico
mentiroso.
43. Mas que rico mentiroso ‚ o de que fala aqui o Espírito Santo? Não ‚ outro
(diz S. Agostinho) senão aquele, que, por não satisfazer a suas obrigações,
diz que não pode; sendo que a verdade ‚ que não quer (q). Potest in iis, quæ vult;
in iis, quæ non vult, non potest. D. Aug. apud in Quadrag. con. 22, § 14. (P.72). Pode
gastar em jogos, pode gastar em galas,, pode gastar no sustento e regalo da
concubina; e tudo pode, por que quer, potest in iis, quec vult, mas não pode
acudir com um retalho de pano ao seu escravo, que anda despido e nu; e a
razão porque não pode ‚ porque não quer, in iis, quce non vult, non, potest.
Entendam pois estes mentirosos ricos que não enganam, nem mentem a
Deus; pois bem conhece que a razão, porque não querem podendo, ‚ o
pouco caso que fazem de que, por falta do vestido, o ofendam os escravos.
44. Direis ainda (e esta ‚ a segunda desculpa, das que costumam alegar
os que buscam pretextos , para não satisfazerem ao que devem) que os
escravos (e com maior razão as escravas) não se contentam com qualquer
sorte de vestidos, porque querem romper sedas e galas de subido preço, e
não podem os cabedais 'dos senhores satisfazer a
este luxo e vaidade
dos servos. Esta razão, ainda que aparente, é indigna de que a profira um
senhor, que tem
obrigação de fazer que os servos se contentem com o
vestido que lhes d . E quando não queiram contentar-se, deve fazer o que
fazia certo senhor bem conhecido nesta
Baía, onde isto escrevo.
Costumava este dar aos seus escravos todo o necessário para andarem
decentemente vestidos; e se acaso sabia que algum ou alguma se trajava
com outra libré, que ele lhe não houvesse dado, além de lha queimar ... sua
vista, mandava que lhe dessem o
merecido castigo.
45. Oh! se quisesse Deus que todos os senhores do Brasil observassem
este bom costume, digno na verdade de que todos o observem! Quantas e
quantas ofensas de Deus se evitariam, principalmente nas escravas! Sejam
pois os senhores tão tementes a Deus, que não facilitem as ofensas do
mesmo Deus aos escravos, negando-lhes o vestido que lhes devem; pois
igualmente com o sustento se compreende o vestido na palavra pão, sem o
qual perecer o servo: panis, ne succumbat.
§ III
Do cuidado, que devem ter os senhores
dos servos em suas enfermidades
46. Ultimamente, debaixo do nome pão, de que os senhores são
devedores aos servos, se incluem também os medicamentos e o cuidado,
com que são obrigados a lhes ssistir no tempo da enfermidade. 0 objecto
mais próprio e para onde mais deve inclinar a piedade Cristã, são os
enfermos, e com singularidade os servos, por ser maior o seu desamparo
nas doenças; pois chegando o escravo ao lamentável estado de enfermo não
há bem algum, de que não fique privado.
47. De todos os bens naturais o único, de que goza o escravo ‚ a saúde. 0
bem da riqueza, não o alcança; porque nada tem de seu, pois pertence a seu
senhor tudo o que lucra. Menos alcança o bem das delícias; pois vive
continuamente entre os trabalhos e penalidades do cativeiro. No bem da
honra não tem parte alguma; porque pelo direito são os servos reputados e
contados entre as pessoas infames. E assim, s¢ lhes resta o bem da saúde.
Mas se este bem único, que possuem, lho tira a enfermidade; quem não vê
que então ficam desamparados de todo o bem e no estado da maior mis‚ria e
desamparo? E se a miséria quanto ‚ maior, merece mais compaixão, sendo
o estado dos servos enfermos mais miserável que o de todos os outros
enfermos (aos quais, quando lhes faltam os mais bens, não falta ao menos o
da liberdade para buscarem o amparo, da Santa Casa da Misericórdia,
cuja porta se não abre aos Escravos) claro está que sobre todos os mais
enfermos, merecem mais os servos que neles se empregue a piedade Cristã.
48. Sendo contudo isto assim; no Brasil (e queira Deus que s¢ no Brasil) se
acham senhores de entranhas tão pouco compassivas e em tanta maneira
duras, que logo que vêem os servos enfermos (principalmente se a doença
pode cura dilatada e custosa) os desamparam, deixando-os
á discrição da
natureza, e indiscrição e rigor da enfermidade. Que entre Cristãos pudesse
haver tirania e crueldade semelhante, eu o não crera, se a experiência não
tivesse manifestado a meus olhos espectácu-los tão lastimosos nesta
matéria, que se podiam avaliar por grande excesso, ainda quando tivessem
acontecido em Berberia nos escravos de Argel ou Tetuão. Que direi pois a
estes senhores tiranos e bárbaros, que com tanta inumanidade tratam aos
servos enfermos? Duas coisas lhes hei-de dizer: a primeira‚ que não são
dignos do poder e domínio, que têm nos
escravos; a segunda, que não
merecem ser contados no número dos Cristãos, senão numerados entre os
Gentios.
49. Digo primeiramente que não são dignos do mando que têm, nem de ser
senhores, os que não cuidam dos servos enfermos; e digo bem. E não sou
eu s¢ o que o digo, porque o dizem comigo as Leis Civil e Canônica; as quais
em pena do grave delito que cometem os senhores desamparando aos
servos no tempo da enfermidade e lançando-os bárbaramente de casa para
os não curarem, decretaram que os mesmos senhores perdessem o domínio
que tinham nos servos desamparados, e estes ficassem livres e forros. Ouvi
como gravemente fala o Direito
Civil: Se alguém lançar de casa ao seu
servo enfermo, e o puser na rua, não tratando de o curar, ou não dando
comissão a outrem para que lhe assista; este tal servo,
ainda contra
vontade de seu senhor, consiga no mesmo ponto a liberdade, e seja tido e
havido por cidadão
romano (r). Siquis servum suum ægritudine periclitantem a
domo sua publice ejecerit, neque ipsum procurans neque alteri commendans: talis itaque
servus libertate necessaria, domino etiam nolente, reipsa donatus, illico fiat civis Romanus.
— L. I § Sed scimus cod. de Latin. Libert. Tollend. (P.75).
50. Nem menos autoridade ‚ a sentença, que dá neste caso o Direito
Canônico; o qual depois de declarar, que o pai que enjeita o filho, perde o
domínio paterno, que nele tinha; e o senhor que enjeita o escravo, perde o
senhorio, que nele tem; acrescenta, que o mesmo se há-de dizer dos filhos e
dos escravos, de qualquer idade que sejam, quando são expostos e
desamparados dos pais, e senhores em suas enfermidades (s) Quod de
prædictis cujuscumque ætatis languidis, si expositi fuerint, dicendum est. — C. unic. de
infant, et languid. expositis.(P.76).. Vede logo se com razão dizia eu, que se fazem
indignos do senhorio os que não tratam da cura dos seus servos enfermos;
pois o
Direito os julga tão indignos do domínio a respeito dos servos, que
lhes tira todo o que neles tinham.
51. Digo mais, que semelhantes senhores devem ser contados entre os
Gentios e não no número dos Cristãos. E assim é; vede-o claramente:
Caminharam os exploradores del-Rei David em seguimento dos amalecitas;
quando lhes apareceu à vista um mancedo de todo já desfalecido e quase
sem vida. Alentaram-no e alimentaram-no com o sustento, que então
puderam haver; e voltando para o Arraial o presentaram ao mesmo David.
Perguntou-lhe este, quem era? e respondeu com estas palavras: Sou um
mancebo natural do Egito, servo de um Amalecita, desamparado de meu
senhor (t) Puer Aegyptius ego sum, servus viri amalecitæ: dereliquit autem me dominus
meus. — I. Reg. 30, 13. (P.76).). Mas que motivo poderia ter seu Senhor para o
deixar em um caminho público, exposto às injúrias do tempo, e às crueldade
das feras? 0 motivo que teve, como disse o mesmo servo, foi adoecer no
caminho: Quia agrotare coepi nudiustertius (u) Ibid.(P.76).
52. Vede, agora, quem são os que desamparam os servos enfermos. São os
Amalecitas, que eram Gentios. E destes Amalecitas, destes Gentios, não
está povoado todo o Brasil? Com quanta maior razão se deve fazer nestas
regiões a exclamação, que fazia em outras um Apostólico Português! Ah.
Deus! E quantos Amalecitas. semelhantes há nesta terra! Ah Amalecitas,
Gentios e Infiéis! Porque o servo adoeceu, por isso o haveis de deixar em um
total desamparo! (x) Oh Deus, et quam similes Amalecitæ sunt in hac regione! Oh
Amalecitæ, Ethnici, et infideles! Quia servus ægrotare cœpit, eum derelinquitis? — Philip.
Dias, Conc. Fer. 5 post. Cineres n. 14. (P.77).
.
53. Mas que digo Gentios, se sois ainda piores que os mesmos Gentios?
Gentio era aquele nobilíssimo Centurião, de que faz menção S. Mateus; e
contudo vede o desvelo, com que tratava da saúde de seu servo; pois ele
mesmo em pessoa lhe buscou o remédio, lançando-se aos pés de Cristo, e
pedindo-lhe com grandes rogos e mui deveras, que o sarasse: Puer meus
iacet in domo paralyticus et male torquetur (y) Matth. 8, 6 (P.77). Comentário: Benci
refere-se ao Evangelho de Sãp Mateus que cita o centurião de Cafarnaum que dizia: ”Senhor
o meu criado está em casa paralítico, sofrendo dores atrozes. Jesus lhe disse: eu irei curá-lo.
Mas o centurião respondeu-lhe: Senhor, não sou digno de receber-te sob o meu teto; basta
que digas uma palavra e o meu criado ficará são”.. Ouvistes (diz Paludano) que não
disse o Centurião: In platea, sicut faciunt mali domini, qui servos reiiciunt,
cum coeperint infirmari (z) Palud enarrat. 2 Dom. 2 post. Epiphaniam. (P.77).. Não
disse: o meu servo está na rua, para onde os maus senhores costumam
mandar os servos, quando adoecem, mas disse: in domo, em minha casa.
Pois na casa de um Gentio acham abrigo os servos enfermos; e não o
acharão em casa de Cristãos?
54. Aprendei, senhores, deste Centurião da coorte
romana, constituído por Deus Capitão da Milícia
Cristã pois por tal o reconhece S. Pedro Crisólogo (a
Cohortis Romanæ Centurio, dux factus est militiæ Christianæ. — Chrisol. Serm. 15. de
Centurione.(P.78). Aprendei,
digo, a misericórdia e compaixão
para Com os servos e servas, e o cuidado e desvelo,
COM que os deveis tratar, quando adoecern, e
enfermam;. e enfermam; Porque assim vo-lo
encomenda Origenes (b) Sic debent omnes, qui famulos et famulas habent,
cogitare: Sic misereri, et condolere eis, suplicare, et curam habere de servis, vel de ancillis
suis, sicut iste beatus Centurio fecit. — Origen., homil. 5. In divers. (P.78).
55, E quando nÆo queirais imitar e seguir os passos
deste bem-aventurado CenturiÆo, cuidando do servo
enfermo com desvelo igual ao seu; porque ao menos
nÆo tratareis da sa£de dos servos com o mesmo
cuidado corri que tratais da dos brutos? Que vos
parece? -pergunta o mesmo VarÆo Apost¢lico e ext
tico Portuguˆs, que pouco h citei(') Filipe Dias, religioso
franciscano, de Bragança, faleceu em Salamanca em 1601. Bom pregador e autor asceta,
deixou obras impressas em espanhol e latim (cf. Grande Enciclopédia Portuguesa e
Brasileira, VIII, 934). (P.78).
Quem ‚ de pior condi‡Æo, o vosso
escravo
Ou 0 vosso ginete? (c). Quis est pejoris conditionis,
servus tuus, an equuos tuus? — Philiph. Dias ubi supra num. 13.(P.78).. Quem
duvida que uni bruto ‚ sem compara‡Æo muito
inferior? Pois Porque se h -de inverter* perverter a
ordem do trato corri um e outro, e avantajar * -bruto
ao racional? Se adoece o ginete, busca-se quem
ocure, e nÆo se perdoa a gasto, para que sare; e se
enferma o escravo, desampara-se, e busque ele o seu
rem‚dio (d).
Si ægrotat equus, veniant qui curent eum, et omnia consumuntur, ut
sanetur. Si infirmatur servus, quærat sibi remedium. — Ibid.(P.78)
56. E com estas obras de miseric¢rdia e com estas
visitas de enfermos haveis de aparecer diante do
tribunalde Cristo no dia do Juizo? Se us sseis desta
inurrranidade com qualquer outro pobre estranho (a
quem £nicamente pede a Caridade que se socoitra na
necessidade extrema,-qual ‚ a de uma grave doen‡a) e
lhe falt sseis com o rem‚dio, nÆo 'hav¡cis de ser
julgados para o Inferno? Quem o d£vida, se um dos '
cargos, que Jesus Cristo far aos r‚probos no dia do
Juizo, ser tamb‚m que estando enfermo na pessoa.
dos pobres o nÆo visitaram (e) Infirmus eram et non visitastis me. —
Math. 25, 43. (P.79). Comentário: O Evangelista se refere ao Juízo Final, quando os homens
serão julgados segundo as suas obras, e o Ffilho do Homem dirá aos malditos: “Fui forasteiro
e não me recolhestes. Estive nu e não me vestistes, doente e preso, e não me visitastes”.
Logo como esperais a salva‡Æo, tratando com tanta
crueldade os servos, a ~quem. sois obrigados acudir
nÆo s¢ por caridade,
mas tamb‚m de justi‡a,
estando eles enfermos? Adverti, pois, que, se nÆo
usais de miseric¢rdia com estes miser veis, que tanto
a merecem, quando estÆo enfermos; tamb‚m Deus
nÆo h -de usar 'de miseric¢rdia convosco, quando
vos julgar; pois assim volo intima com for‡osa consequˆncia o Ap¢stolo Santiago, dizendo: Iudicium sine
misericordia illi, qui non fecit misericordiam (f).Jac. 2,
13). E se h -cle ser julgado sem miseric¢rdia quem
faltou ... miseric¢rdia,quanto mais quem nÆo s¢
faltou ... miseric¢rdia desampa
rando os servos
enfermos, mas,tamb‚m ... justi‡a?
57. -E por ventura ~que nÆo espere Deus -pela outra vida, mas ainda nesta
dˆ o castigo ...queles senhores, que nÆo acodem aos servos,
desamparando-os em suas enfermid des. J dissemos, que os soldados de
David lhe pre
sentaram um mancebo escravo dos Amalecitas, que tinham
acaso encontrado no caminho quase morto e sem alento, porque o havia
desamparado seu senhor vendo-o gravemente enfermo. E oferecendo-se
como guia para lhe
mostrar a derrota, que levava o ex‚rcito dos mesmos
Amalecitas, se p"s ElRei a caminho com seus soldados, e a poucas jornadas
se achou com eles, que se ocupavam entÆo em banquetes e brindes, sem
temor nem receio do que logo experimentaram. Porque mandando David
avan‡ar contra eles, oi com tal sucesso a investida, que de todo o ex‚rcito de
Amalec s¢ ficaram vivos quatrocentos homens, que escaparam montados
nos camelos, que serviam
de levar as bagagens e vitualhas do mesmo
ex‚rcito (9).
58. j vejo, que estais todos admirados, e reparando como pudesse David
com tÆo pequeno n£mero de soldados (pois nÆo passavam, de sei&centos)
destro‡ar e p"r a fio da espada o numeroso ex‚rcito de Arnalec. Adverti,
por‚m, que vit¢ria tÆo memor vel nem ao forte bra‡o de David, nem ao valor
de seus soldados se h -de atribuir, senÆo ao poder e for‡a do bra‡o da
divina Justi‡a, que para castigar aos Amalecitas tomou por instrumento a
David e seus soldados. Mas qual seria o pecado, de que queria Deus tomar
vingan‡a tÆo severamente? NÆo falta quem d iga, que o pecado foi haver
um dos mesmos Amalecitas desamparado ao servo enfermo (de que j fal
mos)
nÆo lhe assistindo com o que devia como a servo, de quem era
senhor (h). E se um s¢ senhor (pesai bem a consequˆncia) se um s¢ senhor,
por desamparar a um servo enfermo, irritou a indigna‡Æo de Deus em tal
maneira,(9) que este s¢ pecado o castigou em todos os Amalecitas: que ser
com os pecados de tantos senhores neste Brasil, que nÆo acudindo nas
enfermidades a seus escravos, os deixam morrer ao desamparo?
59. Olhai bem, senhores, para a vossa obriga‡Æo e vede o que fazeis;
porque faltando com o rem‚dio e medicina ao,vosso servo no tempo da
enfermidade, provocais contra v¢s e conea todos os vossos a -espada e
vingan‡a eterna. E talvez que esta seria a causa e razÆo total, pela qual
experimentou o Brasil tantos e tÆo not veis destro‡os das armas Holandesas
trazidaspor Deus da Europa para ru¡na e destrui‡Æo da Am‚rica. Ainda o
chora Olinda, feita cad ver e sepulcro de si mesma; a quem pode
acompanhar a Ba¡a, pois tamb‚m viu cair por terra, destru¡das ... vio-lˆncia do
fogo, as mais ricas e opulentas f bricas dos ses
a‡£cares. NÆo
obrigueisa Deus com vossas tiranias a desembainhar a espada de sua
indigna‡Æo. NÆo desam- pareis aos vossos servos quando enfermos;
assisti-lhes com o rem‚dio e cura -conveniente, pois lha deveis nÆo menos
que o sustento e o pÆo, para que nÆo pere‡am, panis, ne
succumbat.
a)
Jac. 2,13 (P.79).
b)
Et percussit eos David — et non evasit ex eis quisquam, nisi quadrigenti viri
adolescentes, Qui ascenderant camelos, et fugerant. — I. Reg. 30, 17. (P.80).
c)
Valderama, Exercicio para el Jueves despues de la Ceniza.(P.80).
DISCURSO II
Em que se trate do segundo obrigação
dos senhores para com os servos
60. Como os servos são criaturas racionais, que constam de corpo e alma, não só deve o senhor darlhes o sustento corporal para que não pereçam seus corpos, m s também o espiritual para que não
desfaleçam suas almas, panis, ne succumbat. Debaixo deste nome Pão, na frase hebreia,
não só se
compreende o alimento corporal, mas ainda o espiritual, como notou A Lápide, comentando aquelas
palavras com que pedimos a Deus o sustento de cada dia, panem nostrum quotidianum; e alega por si a S.
Agostinho, a S. João Crisóstomo, a S. Cipriano e outros (i).
61. E se me perguntam em que consiste o alimento espiritual? Digo que em três coisas, que
correspondem ás três vezes que mandou Cristo a S. Pedro que apascentasse as suas Ovelhas: pasce agnos
meos; Pasce agnos meos; pasce oves meas (1). Mas que três coisas são estas? 0 Concílio Tridentino as
declara, e diz que são a Doutrina Cristã, uso dos Sacramentos, e o bom exemplo da vida (m). E, suposto
que neste lugar fala o Concílio particularmente com os Párocos e Pastores de Almas, não deixa contudo de
falar também com os senhores, pois também de algum modo são Curas das almas de seus servos.
Comecemos pela doutrina.
§I
Da Doutrina Cristã, que os senhores
são obrigados [a] ensinar a seus servos
62. Devem primeiramente os senhores alimentar as almas de seus servos com a Doutrina Cristã, para
que saibam os mistérios da Fé, que devem crer, e os preceitos da Lei de Deus, que hão-de guardar: Verbi
divini prcedi catione pascere. Bem sabeis que a maior parte dos servos
deste Brasil vem da Gentilidade
de Guiné [e] mais partes da África, tão rudes nos mistérios de nossa Santa Fé, e tão ignorantes nos
Mandamentos da Lei de Deus, que de Cristãos não têm mais que o Baptismo, sendo que até este falta a
muitos. Pergunto pois: a quem pertence instruí-los nos mistérios da Fé e ensinar-lhes o caminho do céu?
Vós direis que aos Párocos, Curas e mais Pastores de suas Almas. Assim é; mas não só a eles pertence
ensinar os escravos, senão também a vós. A vós, torno a dizer,
porque sois seus senhores; a vós, porque
os tendes mais à mão; e a vós, porque assim, como, tendes obrigação de lhes dar o pão para o corpo, a
tendes também de lho dar para a alma: panis, ne succumbat.
63. Esta obrigação reconhecem nos senhores todos os teólogos que trataram desta matéria. Ouçam ao
Doutor Navarro: Peca mortalmente o senhor, que tendo algum servo convertido de novo à Fé, não trata de
lhe ensinar, ou por si ou por outrem, a Doutrina Cristã, e o que deve e é obrigado saber e obrar qualquer
Cristão (n). O mesmo, e quase pelas mesmas palavras, ensina o nosso Português Fagundes da Companhia
de Jesu. Peca gravemente o senhor, que tem em seu poder algum servo recém-baptizado, se lhe não ensina
a Doutrina Cristã (0). Deixo os mais, para escusar alegações supérfluas.
64. Mas perguntar-me-á alguém: em que se funda esta tão precisa obrigação, que tem os senhores de
catequizar os servos? Digo que no poder e domínio que têm sobre eles; porque o doutrinar aos rudes ‚
conseqüência
de quem tem neles senhorio. Despedindo-se Cristo de seus Discípulos nas últimas horas
de sua partida para o Céu, lhes disse estas palavras: Data est mihi orrinis potestas in coelo et in terra.
Euntes ergo docete ornnes gentes (P). Deu-me meu Eterno Padre todo o domínio, poder e
senhorio
sobre o Céu e sobre a terra, ide pois, e doutrinai a todas as gentes. 0 meu reparo está só, naquele Ergo. 0
Ergo ‚ ilação e conseqüência: A conseqüência e ilação pede antecedente ou premissa donde se possa
deduzir. Pois, qual é o antecedente ou premissa, donde infere Cristo que devem ser doutrinadas todas as
gentes? Euntes ergo
docete omnes gentes? 0 antecedente está bem claro nas palavras antecedentes,
data est mihi omnis potestas. Diz Cristo que tem poder, domínio e senhorio sobre todas as gentes? Pois
deste senhorio, deste domínio e deste poder se tira por legítima conseqüência, que hão-de ser doutrinadas
todas as gentes, euntes ergo docete ornnes gentes. Logo, se
entendeis muito bem, senhores, que tendes
domínio e poder sobre os escravos; entendei também que a conseqüência deste poder e deste domínio é a
obrigação de os ensinar e instruir nos mistérios da Fé e preceitos da Lei de Deus.
65. Nem se desculpam bem os senhores, que se escusam deste santo ministério, dando por causa a
rudeza dos escravos, e dizendo que são brutos, que são boçais, e que são incapazes de perceber o que nos
ensina e manda crer a Fé. Não se desculpam bem, torno a dizer; porque a esses mesmos brutos e boçais, e
(ao que vos parece) incapazes, quer Deus que se ensine e pregue a sua doutrina. Em conseqüência do poder,
que tinha sobre todas as gentes, mandou Cristo (como acima dizíamos) doutrina-las a
todas por meio de
seus Discípulos, docete omnes gentes. A todas as Gentes, Senhor! Entre essas gentes h gente, que mais tem
de bruto, que de gente. Há alarves em Guiné tão rudes e boçais, que s¢ o vosso poder lhes poder meter o
Padre Nosso na cabeça. Há Minas tão brutos e incapazes, que mil vezes nos havemos de benzer deles,
primeiro que eles aprendam a benzer-se. Pois a esses brutos, a esses alarves, a esses boçais se há-de ensinar
a vossa doutrina? Sim, diz Cristo: todas as gentes, por brutas, por boçais e rudes que sejam, todas sem
excepção (1) hão-de ser instruídas nos mistérios de minha Fé e nos Mandamentos de minha Lei: Docete
omnes gentes. Pois se assim o manda Jesus Cristo: porque o não hão-de pôr em execução os senhores com
os escravos, ainda que estes se pareçam na rudeza com os brutos?
66. E sendo certo que tendes, senhores, tão estreita obrigação de ensinar aos escravos, ainda que rudes,
ainda que boçais, e ainda que brutos, os mistérios da Fé e os Mandamentos da Lei de Deus; considerai-vos
como ministros deputados por Cristo para a propagação do seu
Evangelho, que tais vos considera S.
Agostinho. Explicando o Santo Doutor aquelas palavras do mesmo Cristo, em que promete a seus ministros
o mesmo lugar que ele tem, ubi sum ego, illic et minister meus erit (q), falava
assim com o seu povo de
Hipona: Quando ouvis as honras, que fará Cristo a seus ministros, não deveis imaginar que só os Bispos,
Párocos e mais Clérigos são ministros seus; porque também vós, conforme vosso estado, não só podeis,
mas deveis ser ministros de Jesus Cristo (r). E de que modo poder isto ser? Pregando o nome de Cristo, e
ensinando a sua doutrina a todos aqueles que puder (5). Pois com quem melhor o podeis de deveis fazer,
que com aqueles que Deus vos sujeitou, fazendo-os vossos escravos, para que sejais seus Mestres na
Cristandade?
67. Nem deveis imaginar, que fazendo-vos na Doutrina Cristã mestres de vossos escravos, diminuís ou
abateis em coisas alguma a autoridade de senhor, porque não é assim: como entenderam ainda nas trevas
da Gentilidade senhores muito nobres e poderosos. Marco Crasso, um
dos principais senadores de
Roma Gentílica, que no poder das outras e riqueza podia competir com um grande Rei, sustentava das
portas adentro de seu palácio grande número de servos, e para que saissem bem disciplinados e
doutrinados, ele mesmo em pessoa assistia às lições de bem viver, que lhes mandava dar; e não se
contentando com isto, algumas
vezes tomava ele a mão, e fazendo-se Mestre de seus servos, lhes
explicava os preceitos da Filosofia moral, por onde unicamente regulavam suas vidas os gentios, e
costumava dizer, que o principal cuidado de um pai de famílias devia ser o ensino e doutrina dos servos (t)
68. Pois se um gentio, sem mais outra luz que a da razão natural, entende que não se abate a autoridade
senhoril doutrinando aos escravos, e ensinando-lhes as regras de bem viver; como haverá homem Cristão,
que alumiado da Fé tenha por menoscabo do senhorio cooperar para a salvação das almas ermidas com o
precioso Sangue do Filho de Deus, e despreze um ministério, em que se ocuparam os maiores Santos da
Corte do Céu, quais são os Apóstolos, e que por ser o exercício contínuo de Cristo mestre e Senhor nosso,
enquanto viveu na terra, foi avaliado de S. Dionísio Areopagita pela obra mais divina de todas as divinas?
69. E quando não possais ou não queirais doutrina por vós mesmos os vossos escravos: porque os não
trazeis aos Cólegios e Casas de Companhia, e aos mais Conventos das outras famílias Religiosas, onde há
operários, que tem à sua conta ensinar os escravos no seu mesmo idioma: porque desta sorte se suprirá a
vossa falta? É possível que haja Cristão entre Portugueses, que se prezam, e com razão, de ser o povo
escolhido entre todas as mais nações para propaggar e dilatar a Fé de Jesu Cristo; é possível digo, que haja
Cristão, que por não perderem o negro serviço deixem viver os escravos anos e anos gentílicamente, sem
doutrina e sem conhecimento de Deus! É possível que uma alma, que sabemos por fé que coutou a Jesu
Cristo todo seu sangue e sua mesma vida, não merece que perca o senhor por seu respeito alguns dias de
serviços, para que fique bem doutrinada na que há-de crer e obrar para viver conforme manda a Lei de
Deus!
70. Disse alguns dias, e não disse muito; porque não é possível que um escravo boçal, que pouco
há saiu da gentilidade de Guiné, se possa catequizar e instruir nos mistérios de Fé e tão pouco tempo, como
muitos senhores querem; pois apenas o trouxeram aos pés do Instrutor, quando o querem levar ou baptizado
ou confesado. Não sois vós aqueles que dizeis que o escravo é tão rude, como um tronco, e tão duro como
uma pedra?
Ora tomai um tronco informe ou uma pedra tosca, e levando-a a casa de um Imaginário ou
Estatuário, dizei-lhe que desse tronco e dessa pedra vos faça logo logo à vossa vista uma imagem ou
estátua. Não se há-de rir de vós este Artífice? Não vos h de dizer que lhe haveis de dar tempo? Não vos háde pedir dias e meses para a formar? Tudo é verdade. Logo, confessando vós por vossa boca que o escravo
é tronco ou pedra; como pode ser que em poucos instantes se forme dele uma estátua e imagem de Cristão?
71. Porventura para isso não se requer tempo? Tempo,
para se desbastar o mais grosso de
seus erros e superstições á força de grandes marteladas. Tempo, para lhe abrir com o cinzel da doutrina os
ouvidos, para que penetre a palavra de Deus; os olhos, para que conheça os mistérios da Fé; e a boca, para
que saiba orar. Tempo, para lhe tornear o pescoço, para que o sujeite ao suave jugo de Cristo, e os braços,
para que os estenda ás boas obras. Tempo, para lhe dividir nos dez dedos os dez Mandamentos da Lei de
Deus, e para o mais, que concorre a formar um verdadeiro e perfeito Cristão. Pois se para tudo isto se
requer tempo: vede se ‚ possível formar um Cristão em poucas horas! E se não é possível, para que são as
pressas, com que cansais a paciência do instrutor se não para que torne o escravo tão rude para casa como
de lá veio? Deixai pois á discrição do Missionário gastar o tempo, que julgar conveniente, na instrução do
escravo; e dai graças a Deus, de haver quem vos alivie da obrigação que tendes de dar o pão da Doutrina
Cristã ao vosso servo: Verbi divini pradicatione pascere.
§ II
Digressão exortatória aos Párocos para que
ensinem a Doutrina Cristã aos escravos, como
têm de obrigação
72. Que a doutrina e instrução dos escravos no que toca à sua salvação e bem de suas almas, deva
correr por conta de seus Curas e Párocos, só o poderia duvidar quem ignorasse a obrigação precisa, que
têm os Pastores de Almas de dar o pasto espiritual a suas Ovelhas. Sendo
porém certíssimo que estão
obrigados não só pelo Direito Canónico, mas também pelo Divino e natural, à Instrução de seus Fregueses
(x) (pois a eles como pastores, mais principalmente foi dito: Pasce oves meas) (Y); bem se colhe, que
ainda têm maior obrigação de doutrinar aos
escravos, pela maior necessidade que há neles de doutrina,
por causa de sua natural rudeza e ignorância.
73. E se não, pergunto. Quando vos deram o benefício, fizeram-vos somente Pastor dos livres e dos
brancos ou também dos pretos e dos cativos? Já ouço que me respondeis que de todos; porque todos
igualmente somos Ovelhas de Jesu Cristo e remidos todos com seu preciosíssimo sangue. Logo se sois
Pastor também dos pretos e dos cativos; porque sois tão descuidados em os catequizar, sabendo que há
neles tanta ignorância das coisas de Deus? Porventura não o fazeis, porque este ministério não rende, nem
dá lucro algum? Ora guardai esta resposta para a dares no tribunal divino, quando no dia de Juízo vos fizer
Deus cargo. Ouvi porém entretanto o que agora vos direi.
74. Se vós tratais s¢ da doutrina dos brancos e livres,
porque esperais deles a recompensa com as
ofertas e conhecenças, que não podeis ter dos pobres pretos e miseráveis cativos: não vedes que isto não é
tratar de apascentar as Ovelhas de Jesu Cristo com o pasto da doutrina
espiritual, senão de vos
apascentar a vós; e que por isso sobre vós cai aquele tremendo ai, com que Deus ameaça a condenação
eterna aos Pastores de Almas, que só cuidam de se enriquecer a si com lucros e interesses temporais, e não
tratam do pasto espiritual do seu rebanho? Ai de
vós Pastores de Israel, que esquecidos de apascentar as
vossas Ovelhas, s¢ procurais apascentar-vos a vós! E sendo de Deus este ai, que outra coisa prognostica
senão a condenação eterna? (a). Se não quereis pois entrar no número dos Párocos e Pastores, de que
continuamente se
vai povoando o Inferno: nestes pobres e miseráveis cativos deveis empregar o zelo
pastoral (se o tendes), instruindo-os, para que saibam tudo o que devem saber, e tudo o que devem obrar,
para serem verdadeiros e perfeitos Cristãos.
75. Desta sorte mostrareis, que sois verdadeiros Pastores, e não mercenários, que olham somente para o
interesse e conveniência própria e não para o bem de suas Ovelhas: e juntamente seguireis o verdadeiro
exemplar de todos os Pastores, Jesu Cristo, que disse, falando de si
mesmo, que o enviara o Eterno
Padre e mandara ao mundo para doutrinar e evangelizar unicamente aos pobres: Evangelizare pauperibus
misit me (b). Nas quais palavras reparo assim e quisera reparásseis todos comigo.
76. Se Cristo foi constituído Pastor universal de todos e para que a todos, assim ricos como pobres,
ensinasse a doutrina de seu Evangelho, e a todos indiferentemente mostrasse o caminho do Céu e da
salvação: como profere e diz agora o mesmo Cristo, que o Eterno Padre o enviara
para evangelizar e
catequizar somente aos pobres, Evangelizare pauperibus misit me? Direi: Não há dúvida que Cristo foi
mandado de seu Eterno Padre para instrução e doutrina de todos, ou fossem ricos ou pobres; porém porque
doutrinando aos ricos, podia haver alguma presunção de interesse e conveniência própria, a qual não podia
haver em catequizar aos pobres; por isso de tal sorte se considerava Cristo enviado de seu Eterno Padre
para pregar o seu Evangelho a todos, como se fora enviado
para o ensinar somente aos pobres:
Evangelizare pauperibus misit me. Se os Párocos e Curas se despirem de toda a afeição, que podem ter aos
interesses e lucros temporais, logo se hão-de considerar deputados especialmente por Deus para doutrinar
aos pobres, e assim não
deixarão de acudir aos pretos, que entre os pobres são os mais pobres e
miseráveis.
77. Nem cuidem os Párocos que satisfazem à sua obrigação não mais que só com perguntarem pela
Quaresma aos escravos, no tempo da desobriga, se sabem as Orações e os Mandamentos da Lei de Deus; e
vendo que os sabem ou, para melhor dizer, que os rezam (pois muitos os rezam
sem saberem o que
rezam) logo sem mais outra doutrina os admitem aos Sacramentos. Este certamente não ‚ o modo, com que
devem ser doutrinados este rudes; porque não está o ponto em que os escravos digam quantas são
as
Pessoas da Santíssima Trindade e rezem o Credo e os Mandamentos e mais Orações; mas é necessário que
entendam o que dizem, percebam os mistérios que hão-de crer, e penetrem bem os preceitos que hão-de
guardar. E ao Pároco pertence explicar-lhos e fazer-lhos perceptíveis de maneira que os entendam os
escravos.
78. 0 pão da Doutrina Cristã deve-o repartir o Pároco a estes ignorantes, tão bem partido e
esmiuçado, que o possam comer e digerir. Porém a isto faltam ordinariamente os Párocos, como o lamenta
Jeremias. Os pequenos pediram pão, e não houve quem lho partisse, para que o
pudessem comer (c).
Mas que pequenos são estes, e que pão ‚ o que pedem? Os pequenos, na frase da Escritura, não são somente
os de pouca idade, mas também os de muita, quando são novamente convertidos à Fé (d). E o
pão, que
pedem estes pequenos, é o pão da doutrina cristã, diz Hugo (e). Notai agora: Não se queixa o Profeta, que
falte quem. reparta o pão da Doutrina aos pequenos e recém-convertidos; senão, que não haja quem lho
parta: Non erat qui frangeret. Porque não faltam Párocos, que dão o pão da Doutrina Cristã aos Pretos; mas
que monta, se este pão não vai partido de sorte que possa servir de alimento ao escravo? Quero dizer: Que
importa que o Pároco ensine aos escravos as Orações, os mistérios da Fé,
e os preceitos da Lei de Deus,
se os não propõem com palavras acomodadas á rudeza e pouca capacidade de, Negros boçais? Se os não
explica e declara, uma e outra vez, para que o entendam? Se não usa de semelhanças
e exemplos
palpáveis? Se lhes não faz patente aos olhos o mistério, de que não ‚ capaz o entendimento? Porque a todas
estas pensões e explicações estão obrigados os Párocos, pois livremente tomaram à sua conta o cuidado
das Almas das suas Ovelhas. Devem, para não faltarem
a esta obrigação, ensinar uma e muitas vezes a
Doutrina; explicar uma e muitas vezes o mistério; e declarar uma e muitas vezes o que ensinam.
79. Estando Moisés já no último quartel da vida, para que fosse com acerto e proveito o que ensinava,
pediu a Deus que a sua doutrina fosse como a chuva (f). Duas propriedades considero na chuva: a primeira
como se faz; e a segunda o que faz; como se faz para cair, e o que faz caindo. Vamos com a primeira.
Como se faz a chuva? Levantam-se da terra os vapores delgados e subtis, e subindo até à região do ar, aí os
engrossa o calor do Sol, e os converte em chuva. E isto mesmo deve ter quem ensina aos rudes e boçais a
Doutrina. Os mistérios mais
subtis e delgados, deve-os engrossar com as semelhanças e exemplos, e
explicar com palavras acomodadas à capacidade dos ouvintes, para que os entendam: Concrescat, ut pluvia,
doctrina mea. Esta ‚ a primeira propriedade da chuva. Vamos à segunda.
80. Que faz a chuva caindo? Não cai uma só gota, senão muitas e repetidas, uma sobre outra, até regar
e fecundar a terra. Se caísse na terra uma só gota de água, seria sem proveito e sem fruto. E o mesmo passa
na doutrina. Se se, ensinar uma só vez, não há de aproveitar, nem fazer fruto; mas ensinando-se uma e outra
vez, explicando-se e tornando-se a explicar, então regar e fará proveito, ainda nas pedras mais duras, isto é,
nas almas mais rudes. Lá disse o Poeta, que a água abrandava e fazia mossa nas pedras, gutta cavar
lapidem (9). Mas como? Não caindo uma s¢ vez, é mas caindo uma e outra e muitas vezes, saepe
cadendo. Dizeis que escravo é tão rude e tão duro como as pedras. Ensinai-o uma e outra vez; apertai com
ele, não só no tempo da Quaresma, mas em todos os
Domingos e dias Santos, como manda o Concílio
Tridentino; e vereis que com esta continuação, e repetição se há-de abrandar e quebrar a dureza dessas
pedras, e se transformarão em bons e verdadeiros Cristãos.
81. Mas porque os Párocos, Curas e senhores (que aos senhores também compete tudo o que dos
Párocos está dito) não procuram haver-se deste modo, porque não ensinam a doutrina Cristã aos servos; ou
se lha ensinam, quando muito ‚ uma vez no ano, e isto mui à pressa e de
corrida; por isso há tão grande
ignorância das coisas de Deus nos escravos do Brasil, que são a maior parte dos seus habitadores. E desta
ignorância tão geral e comua, que se hà-de seguir, senão que torne a experimentar o Brasil os mesmos
castigos, que já experimentou e que
continuem os que ainda experimenta? Pois estes lhe ameaça Deus
com o mesmo, rigor, com que antigamente os ameaçava pelo Profeta Isaías ao Povo de Israel.
82. Primeiramente lhe ameaçava guerras e cativeiros (h). Estas guerras experimentou já o Brasil no
tempo dos Holandeses (como pouco h dissemos). Depois lhe ameaçava fomes e esterilidades, das quais se
seguiria tanta falta de víveres e mantimentos, que os mesmos nobres
pereceriam de pura necessidade e
falta do necessário para a vida (i). Estas fomes, e esterilidades, não há tantos anos que as padecemos? E
por mais remédios que se apliquem para que haja abundância, não continua a carestia? Ainda mal, que tudo
é verdade. Ultimamente lhe ameaçava
pestes e mortandades tão formidáveis, que o comum cemitério
(chamado vulgarmente inferno) não seria bastante para se sepultarem os corpos dos defuntos (1). E que
destroços e mortes não experimentou a maior parte do Brasil com aquele mortífero contágio da Bicha, cujas
cabeças até agora não estão de tal sorte cortadas, que as não vejamos ainda brotar por vezes em febres e
doenças mortais?
83. E porque culpas havia de mandar Deus ao seu Povo tantos estragos e assolações? A razão dá o
mesmo texto: porque faltou nele a verdadeira ciência (m); isto é (diz Hugo) a doutrina e notícia da Lei de
Deus e seus mistérios: Scientiam Dei (n). Pois se basta esta ignorância
de Deus e dos mistérios de sua
Fé, para que mereça um Povo escolhido ser castigado com guerras, fomes e pestes; por que não atentam os
Párocos e senhores do Brasil, que deixando os escravos naquela ignorância e rudeza, que trouxeram do
Gentilismo, chamam e provocam contra o mesmo Brasil todas essas guerras, todas essas fomes, e todas
essas pestes? Para evitar pois todos estes castigos e gerais destroços, apliquem os Párocos e Senhores o
maior de seus cuidados em dar o pasto espiritual às almas dos Pretos, inculcando-lhes, uma e muitas vezes,
a Doutrina Cristã e os mistérios da Fé, como têm de obrigação: Verbi Divini prxdicatione pascere.
§ III
Como os senhores estão obrigados a
procurar que os servo recebam a seu
tempo os Santos Sacramentos.
84. Devem secundáriamente os senhores dar o pão seu exemplo este grande documento aos mais
senhores, espiritual aos servos, procurando que vivam conforme a Lei de Deus recebendo a seu tempo os
Santos Sacramentos: Sacramentorum administratione pascere. Os sacramentos devem os senhores querer e
buscar para os servos, com o mesmo cuidado e diligência, com que os querem e buscam para si. Grande e
admirável senhor se mostrou nesta
parte Abraão, quando Deus para remédio do pecado original
instituiu a Circuncisão, Sacramento da Lei Velha. Mandou o Senhor ao Patriarca que se circuncidasse a si,
a seu filho, e a todos os de sua família; e diz o texto, que no mesmo dia, em que Abraão recebeu este
preceito, se circuncidou a si, a seu filho Ismael, e a todos os escravos de sua casa (0).
85. Não me admira que o Patriarca se apressasse tanto em circuncidar-se a si e a seu filho, sem pôr
tempo em meio entre o preceito e a execução dele; s¢ reparo que igualasse os servos aos senhores, ficando
todos circuncidados no mesmo dia, eadem die. Não podia Abraão circuncidar-se a si, e a seu filho em um
dia, e no outra
circuncidar os escravos? Pois porque não faz diferença de si aos escravos, senão que os
circuncida juntamente consigo, no mesmo dia: eadem die? Sabeis porquê? Porque Abraão, como senhor
entendido, via que igualmente eram obrigados a receber este Sacramento os servos e os senhores; e que
como não era bem diferir ele para si o recebê-lo,
assim não era bem que o diferisse para os escravos.
Por isso no mesmo dia, em que se circuncidou a si e a seu filho, circuncidou também, aos escravos(1),
dando com seu exemplo este grande documento aos mais senhores, que devem querer e procurar os
Sacramentos para os servos com o mesmo cuidado, com que os devem querer e procurar para si.
86. Se os senhores do Brasil entendessem bem esta verdade, certamente não deixariam
morrer os escravos muitas vezes sem Confissão e muitas mais sem Viático. Que Senhor haverá, que não
deseje morrer Sacramentado? Pois estando o servo gravemente enfermo, porque não lhe da Penitência?
Porque lho dilatais de sorte que, quando chegar o Sacerdote, o acha destituído dos sentidos e talvez já
morto? E se, por causa do vosso descuido se perder a alma do escravo, que clamores e brandos não dará ela
do profundo do Inferno, pedindo a Deus vingança contra seu senhor, que por lhe não acudir com a
Confissão a tempo, e deixou cair naquele abismo de penas?
87. No salmo setenta e oito diz o Santo Profeta e Rei David, que as almas dos justos bárbara e
inumanamente mortos pelos tiranos, estão continuamente no Tribunal Divino pedindo vingança de seu
sangue injustamente (1) derramado (p). E contudo a morte, que receberam, foi para eles princípio de su
eterna vida; donde (prescindindo da ofensa cometida contra Deus) mais devem os Mártires ao ferro dos
Tiranos que lhes tiraram a vida, do que ao mesmo ventre de suas Mães que lha deu. Porque, como
agudamente advertiu S. Agostinho, por mais obséquios que fizessem os Tiranos aos Santos mártires nunca
podiam chegar a fazer-lhes grande bem, como o que lhes deu o ódio e crueldade, com que os mataram (q).
Colhei agora daqui quais serão os brados e clamores daqueles miseráveis escravos, que morreram
sem Confissão, contra os senhores, que foram a ocasião de sua eterna morte. Haverá momento, em que não
clamem vingança contra um senhor tão inumano, que podendo chamar a tempo um Confessor para lhe
granjear a eterna vida no Céu, pelo não chamar os deixou cair nos incêndios do Inferno, em que estarão
eternamente penando?
88. E se por acaso o escravo enfermo não está em estado para ser levado à Igreja a receber o
Santíssimo Viático: porque haveis de fingir inconvenientes para lho mandar vir a casa? Entendei (1),
senhores, que se não é inconveniente levar o Santíssimo Sacramento ao senhor
enfermo, também o não é
levá-lo ao escravo doente. Não é Cristo Pai universal e Redentor de todos? É certo que sim; porque para
com Cristo, diz o Apóstolo, não há servo, nem livre (r), todos somos os mesmos. Pois se Cristo visita aos
livres enfermos, porque não há-de visitar aos cativos doentes? Quando o Centurião buscou a Cristo para
alcançar dele a saúde para o seu servo enfermo, respondeu-lhe benigna e amorosamente o Senhor, que ele
iria a buscar o mesmo servo à sua casa e lá o curaria (5). Pois se Cristo não recusa entrar em casa de um
servo para lhe dar a saúde do corpo, como hà-de recusar buscá-lo para lhe dar a saúde da alma? E se Cristo
o não recusa: porque há-de ser tão pouco Cristão um senhor, que ache inconvenientes onde os não há, e
deixe morrer ao escravo sem
o Santíssimo Viático?
89. Mas não é este o único Sacramento, que os senhores impedem aos escravos; pois também lhes
atalham o Santo Matrimónio. É o estado do Matrimónio tão livre ainda aos Cativos, que não há poder na
terra (diz o
doutíssimo Padre Sanchez) que lho possa impedir (t). E suposto que pelo Direito Imperial
aos livres sómente seja permitido contrair matrimónio; o direito Canónico, revogando nesta parte a
disposição da lei civil, como contrária ao direito divino e natural, que concede aos homens a multiplicação
de sua espécie (u), declara que aos servos se não deve impedir o matrimónio, e que fica válido, ainda
fazendo-se contra a vontade dos senhores (x). Pois o que não podem proibir os Imperadores, poderão
proibi-lo os senhores do Brasil?
90. Pergunto: Para que foi instituído o Santo Matrimónio? Não só para propagação do gênero humano,
senão também (diz o mesmo Sanchez já citado) para remédio da concupiscência e para evitar pecados (Y).
H porventura algum senhor, que tenha poder para enfrear a concupiscência nos escravos de sorte que não
brote em seus efeitos, e os não provoque e estimule a pecar? É certo que não. Pois se não podeis reprimir
nos escravos os efeitos e estímulos da concupiscência, porque lhes haveis de tirar o remédio, que Deus lhes
deu? E não vedes que além de
incorrerdes na excomunhão que contra os que impedem os matrimónios
promulgou o Sagrado Concílio Tridentino, vindes desta sorte a fazer-vos participantes de todos os pecados,
que contra o sexto Mandamento cometem os servos?
91. Dir-me-eis, que para essa gente bruta não são os matrimónios; pois tanto que casaram, deixam,
assim os maridos como as mulheres, de fazer vida entre si, e se entregam a maiores pecados depois de
casados. Mas se vos parece bastante esta razão, respondei-me no que agora
vos quero perguntar.
Quantos senhores há casados com mulheres dotadas assim de honra como de fermosura, e as deixam
talvez por uma escrava enorme, monstruosa, e vil? Logo diremos que não convém que casem também
os brancos e os senhores? Ninguém dirá que é boa esta conseqüência; porque ainda que haja nos senhores
depois de casados estas solturas, nem por isso se lhes há-de negar o matrimónio. Logo, ainda que haja
entre os escravos e pretos, alguns e algumas, que se desmandem depois de casados, nem por isso se segue
que não convêm casá-los. Casai-os vós, querendo eles; que desta maneira satisfareis à vossa obrigação. E
se depois de vinculados com o Santo matrimónio, forem viciosos; a eles tocar , e não a vós, dar conta a
Deus dos pecados, que cometerem.
92. E não devendo os senhores impedir o matrimónio aos servos, também lhes não devem impedir o
uso dele depois de casados apartando o marido da mulher e deixando a um em casa, e mandando vender ou
viver o outro em partes tão removas, que não possam fazer vida conjugal. Porque quando não pequeis
contra a justiça, privando ao servo do que lhe compete por direito natural, como ensina o Padre Sanchez
(z); não se pode negar que pecais ao menos contra a caridade: porque, apartando os servos casados um do
outro, vindes a privá-los do bem do matrimónio, no que lhes causais dano mui grave, que a caridade proíbe
se faça ao próximo sem urgentíssima causa (a).
93. E sendo isto assim, ‚ muito para admirar a. facilidade com que alguns senhores, por qualquer leve
causa, mandam vender a outras terras ou o servo casado ou a serva casada, ou de qualquer outro modo os
apartam um do outro. Quem vos deu poder para fazer estes divórcios, se a Igreja, em quem unicamente se
acha este poder, é tão delicada nesta matéria, que não consente que haja divórcio entre o marido e a mulher,
sem haver causas mui justificadas e urgentes (1)?
94. Bem sei que pode haver caso, em que possam e talvez devam os senhores mandar vender ou viver
em partes remotas os escravos, ainda que casados, principalmente quando de os reter em seu poder se segue
grave
dano ás almas ou dos mesmos escravos ou de seus senhores; porém neste caso não deve o senhor
proceder ex abrupto e com paixão, senão com muita madureza e grande ponderação, consultando primeiro
a Teólogos doutos e timoratos para que vejam e examinem se há causa suficiente para isso. E no caso em
que determinem que há causa bastante, sendo o sido o que merece este degredo; deveis perguntar à mulher
se o quer seguir. E querendo ela acompanhar o marido, vá ela também com ele, e corra a mesma fortuna,
que ele correr; e se o não quiser seguir, por razão do grave incómodo que nisto haja de padecer, então vá
embora a vender só o marido.
E sendo a mulher a delinquente, se há-de proceder com o marido do
mesmo modo, que acabamos de dizer da mulher. Assim deve obrar quem quer obrar o que Deus manda,
para não impedir aos servos os Sacramentos e uso deles, que o senhor lhes deve procurar como pasto
espiritual de suas almas: Sacramentorum administratione pascere.
§ IV
Do bom exemplo
que devem dar os senhores aos servos
95. Ultimamente para darem o alimento espiritual aos servos, devem os senhores ir diante com o
exemplo de virtudes e santos costumes: Bortorum omnium operum exemplo pascere. Pouco aproveita a boa
doutrina, que dão nos servos os senhores, quando falta o bom exemplo dos mesmos senhores. 0 melhor
modo de doutrinar não é com palavras, é com as obras. As obras vêem-se, as palavras ouvem-se: e o que se
ouve talvez entra por um ouvido e sai por outro, e o que se vê entra pelos olhos, e, como não tem Porta para
sair, penetra até o coração. Por isso o mestre, que é mestre, mais há-de ensinar como que faz, do que com o
que diz. De Cristo nosso Mestre disse Isaías que nossos olhos o veriam (b); porque o verdadeiro Mestre
mais ensina visto, do que ouvido. Logo, se quereis que saiam bem doutrinados os escravos, obrai primeiro
o que lhes haveis de ensinar. Assim o fez o mesmo Cristo: Coepit Jesus facere et docere (c). Primeiro
obrou, facere; e depois ensinou o que obrava, et docere.
Mais hão-de aprender os escravos em poucos,
dias da vida exemplar de seu senhor, do que podem aprender em muitos anos de doutrina. Tem muito que
andar, quem caminha para a virtude pelo caminho dos preceitos; e a
poucos passos se acha no- termo
quem toma o caminho pelo atalho dos exemplos (d).
96. A razão desta diversidade é: porque o exemplo tem uma qualidade oculta, com que suavemente
atrai as vontades, para que o imitem; e esta qualidade falta aos preceitos. Por isso, tanto que o escravo vê o
exemplo do senhor, anima-se a segui-lo. Sendo os escravos vagarosos e descansados por natureza em dar à
execução o que se lhes manda; achareis no Gênesis ao servo de Abraão mui acelerado em executar o
mandado de seu senhor: Qui festinavit (e). Não vos espante a pressa do servo à vista de Abraão que se
apressa: Festinavit Abraham (f). Viu o escravo ao senhor apressado para dar agasalho a três hóspedes, que
lhe vieram a casa, e logo lançou de si os vagares de servo e tornou a pressa de seu senhor Qui festinavit.
97. Pouco porém disse, dizendo que o exemplo de senhor que se faz mestre do servo, o atrai, e incita à
imitação; porque havia de dizer que lhe faz força e o obriga. Depois que Cristo lavou os pés a seus
Discípulos, lhes disse que tinham obrigação de fazer o mesmo, e lavar os pés uns aos outros (9). E qual
seria o fundamento da obrigação, que Cristo reconheceu nos Apóstolos, de seguir suas pisadas? 0 mesmo
exemplo que o Senhor lhes havia dado (h).
98. Sondemos bem o fundo destas palavras. Qualquer outro exemplo é somente incentivo e estímulo
para a imitação: logo, que mais tinha o exemplo de Cristo, para passar de estímulo e incentivo a ser
obrigação,
debetis? A razão, o mesmo Cristo a deu: Vós chamais-me Mestre e Senhor: e dizeis bem,
porque na realidade o sou (i). Logo se eu sendo vosso Senhor e vosso Mestre, vos lavei os pés; também vós
deveis, e tendes obrigação,
de lavar os pés uns nos outros (1). Reparai bem. naquelas duas palavras,
Dominus et Magister; porque nelas se encerra todo o fundamento de obrigação, debetis. Era Cristo Senhor,
e era Mestre, Dominus et Magister; e o exemplo de quem ‚ senhor, e juntamente mestre, não só incita, e
estimula, mas quase com força e eficácia de preceito obriga à imitação: Et vos debetis. Esta é uma singular
diferença, que tem o exemplo do senhor, que doutrina aos servos, do exemplo de quem não é senhor e
ensina aos que não são servos; porque nos que não são senhores, é o exemplo incentivo somente e estímulo
para a imitação; e nos que são senhores, não só é estímulo, não só é incentivo, que move, mas é como
preceito, que obriga a que o imitem. Logo, se o senhor se fizer mestre de seus
servos, ensinando-lhes o
caminho do Céu, não só com a doutrina, mas muito mais com o seu exemplo: quem duvida que os há-de
obrigar, e seguir o mesmo caminho?
99. 0h! Se quisesse Deus que não faltasse aos escravos tão importante género de doutrinal Com os
veríamos grandes Cristãos! Que preceito há na Lei de Deus tão dificultoso, que não observassem à risca os
servos, vendo que também o guardavam seus senhores? Mandou Deus a Abraão, que se circundasse com
toda a sua família, para que ele e a sua descendência se diferençasse das mais nações infiéis e bárbaras. Já
reparámos na diligência, com que executou Abraão este preceito; agora reparo na prontidão com que o
aceitaram os escravos, deixando-se todos
circuncidar, sem que houvesse neles a mínima repugnância. 0
preceito era novo e rigoroso, era de opróbrio nos adultos, e de perigo nos meninos; e contudo no mesmo
dia se viu correr o sangue de todos, assim do senhor, como, dos servos: Todos os servos de Abraão, assim
os que lhe haviam nascido em casa, como os que havia comprado, se sujeitaram prontamente ao rigor do
golpe (m). Mas com que os obrigou Abraão à execução de preceito tão rigoroso? Com ameaças de castigo
ou com promessas de prêmio? Nada disto foi necessário; porque por tudo bastou o exemplo do mesmo
Abraão, que em senhor. Viram os servos que seu Senhor Abraão se circuncidou
a si primeiro, no mesmo
dia em que Deus lhe tinha dada o preceito: Eadem die circumeisus est Abraham; e à vista do exemplo de
seu senhor, todos, sem repararem no rigor do preceito, se sujeitaram à Circuncisão: Et omnes viri domus
illíus, tam vernaculi, quam emptiffi, et alienigenae,
pariter circumcisi sunt. Quando o senhor pode dizer
ao servo: segue-me, que eu vou diante; não recusa o servo de o seguir, ainda que seja por feridas e mortes
violentas. Se o senhor vai diante vestido com a púrpura de seu sangue na guarda dos preceitos divinos; não
duvida o servo em
derramar o das próprias veias, para seguir o exemplo de seu senhor. Observem pois
os senhores exactamente os Mandamentos da Lei de Deus; que na observância, ainda dos preceitos mais
rigorosos, não haver servo, que repugne, precedendo com exemplo seu senhor.
100. Pelo contrário, por mais que os senhores inculquem aos escravos a observância dos preceitos da
Lei de Deus; se virem que eles são os primeiros que os quebram, nunca acabarão de se persuadir a guardálos; porque os escravos no governo de suas vidas não atentam para o
que os senhores lhes dizem, senão
para o que obram. Os servos (diz David) põem os olhos nas mãos de seus senhores, e as servas nas mãos de
suas senhoras (mm). Cuidava eu que os escravos, havendo de aplicar algum sentido a seus senhores,
aplicariam os ouvidos, para saberem o que deles querem, sendo sua obrigação executar o que lhes mandam;
e não os olhos, para verem o que eles fazem. Assim havia de ser, se os escravos no governo de suas vidas
se regulassem pelo que lhes dizem seus
senhores. Porém, como se não regulam pelo que lhes ouvem
dizer, senão pelo que os vêem obrar; bem diz David que os servos põem os olhos nas mãos de seus
senhores, sicut oculi servorum iri-manibus dominorum suorum; e as servas nas mãos de suas senhoras,
sicut oculi ancilia ín manibus domime suœe. Donde se segue, que os senhores, que querem persuadir aos
escravos a exacta observântia dos preceitos divinos, devem viver de sorte que vejam neles os mesmos
escravos um exemplo e retrato de verdadeiro cristão.
101. Daqui se pode inferir qual é a principal, causa de escandalosa vida, com que ordináriamente
vivem os escravos e as escravas do Brasil. Mas como não há-de ser assim,, se nos senhores e nas senhoras
não vêem exemplos de Cristãos, senão escândalos próprios de Gentios?
Que importa que se lhes ensine
com palavras o modo com que hão-de viver cristãmente; se a má vida de seu senhor desmente com
costumes viciosos a doutrina, que lhes dá . Se um edifica, e outro de faz o mesmo edifício; que hão-de
tirar ambos (diz o Espírito Santo) senão o
trabalho (n)? E não há-de cansar-se debalde na doutrina dos
escravos o senhor, que tudo o que lhes ensina com as palavras, vai desfazendo tom as obras? É certo.
102. Porque, como há-de crer o escravo, que é pecado
gravíssimo jurar pelo nome de Deus, vendo
que seu senhor jura e perjura a cada passo por Deus e pelos Santos, por mais que o mesmo senhor lhe diga
que Deus proíbe os juramentos? Como h -de acabar consigo de observar
as Festas assistindo ao menos
ao Santo Sacrifício da Missa nos Domingos e dias santos, se vê que seu senhor a ouve de ano em ano, por
mais que o mesmo Senhor lhe iniculque que Deus as manda guardar? Como se há-de capacitar que não é
lícito matar ou ferir para se desagravar das injúrias, vendo que seu Senhor por razões de pouca ou nenhuma
entidade promete feridas e balas, por mais, que o mesmo senhor lhe intime que Deus ordena que se não
cometa homicídio, nem faça outro dano à vida do
próximo? Como se há-de persuadir a viver continente
e casto, vendo que seu senhor sustenta das portas adentro a concubina, por mais que o mesmo senhor lhe
ensine que Deus quer que se guarde castidade? Como há-de
assentar consigo não furtar e contentar-se
com o que lhe, dá seu senhor, vendo que o mesmo senhor não se contenta com o seu, mas busca modos e
traças para enriquecer com o alheio, por mais que lhe pregue que na Lei de Deus estão severamente presos
os furtos? Fique logo assentado, que toda a mais doutrina, que os senhores derem aos servos, se não for
acompanhada do seu exemplo e confirmada com suas obras, não serve de alimento espiritual, que devem
dar ás almas de seus escravos: Bonorum
omnium operum exemplo pascere.
§V
Em que se infere e mostra quão grave
seja o pecado daqueles senhores, que
escandalizam a seus servos, induzindo-os
por qualquer modo ao pecado
103. Se os senhores (como temos visto) pecam tão gravemente faltando à obrigação, que têm, de dar
aos servos o pão e alimento espiritual, sem o qual pereceriam suas almas, panis, ne suecumbat; que pecado
ser o dos mesmos senhores, quando por qualquer caminho lhes
dão a beber o veneno, que lhe traz a
morte eterna? Chamo veneno a tudo aquilo, que induz e convida a pecar, a que os Teólogos vulgarmente
chamam escândalo; e é o mesmo que dar ocasião, ou com palavras ou com obras
mênos rectas, à ruina
espiritual do próximo, como define S. Tomás (o). 0 que suposto: que pecado(torno a dizer) ser o dos
senhores, que dão este veneno a seus servos, induzindo, os a que pequem?
104. A gravidade deste pecado, além de se poder bem inferir do que nos parágrafos atrás está dito, se
prova com a razão. Porque se pecam gravemente os senhores, que negam o alimento espiritual nos servos,
só
porque lhes não fazem a suas almas o bem, que lhes é devido; quanto mais gravemente pecarão
fazendo-lhes positivamente o maior mal, qual ‚ induzi-los ao pecado? Mas, para que melhor se conheça a
deformidade destas
induções ou destes pecados de escândalo, quatro coisas havemos de ponderar neste
parágrafo. 0 dano, que com eles fazem os senhores ás almas dos seus escravos; o grande serviço, que fazem
ao demônio, o mal, que se causam a si mesmos; e a injúria, que fazem a Cristo.
105. 0 dano, que fazem os senhores nos escravos, quando por qualquer modo os induzem a pecar, não
só é o maior, mas é o sumo dano. 0 maior dano, que pode fazer qualquer senhor a um servo, é tirar-lhe a
vida; mas suposto que este é o maior, não é sumo: 0 sumo e maior de todos os danos, que lhe pode fazer, é
induzi-lo a pecar. E a razão é tão natural como certa. E se não, dizei-me: Se vos virdes reduzido a um de
dois extremos, isto é, que ou hajais de perder e vida morrendo, ou a graça de Deus pecando: a qual destes
vos dita a razão que vos
inclineis? Não há dúvida que vos dita que haveis de eleger antes perder a vida
e mil vidas do que pecar; porque de dois males sempre se escolhe o menor. Logo a mesma razão natural
ensina e dita que muito maior mal é o pecado, que a morte.
106. E a última razão é, porque o pecado é ofensa de Deus; e o culto e veneração que devem as
criaturas ao mesmo Deus pede que antes se de perder a vida, do que cometer um pecado. Sendo pois o
pecado maior
mal que a mesma morte; não podem negar os senhores que maior dano fazem aos servos
induzindo-os a pecar, do que tirando-lhes a vida matando-os; porque matando-os, tiram-lhes a vida do
corpo; e induzindo-os a pecar, tiram-lhes a da alma; e quanto vai da, alma ao corpo, tanto vai de dano a
dano, e de pecado a pecado.
107. 0 grande serviço, que fazem ao demônio os senhores induzindo os escravos a pecar, só o pode
entender quem sabe o desvelo e ânsia, com que o demônio solicita e procura a ruína de nossas almas. É tão
ansioso
o demônio em procurar que os homens pequem, que S. Pedro o compara ao leão faminto, que
segue e persegue as feras para as tragar: Adversarius vester Diabolus tanquam leo rugiens circuit, quxrens
quem devoret (P).
Notai muito aquela palavra, circuit, que significa própriamente andar à roda e voltear
uma e outra vez. E assim faz o demônio após de uma alma. Anda continuamente à roda e em seguimento
dela; dá uma volta e outra volta; não, desiste de a tentar freqüentemente, até que ia vence e
rende á sua
vontade, fazendo-a cair na culpa e acrescentar pecados sobre pecados.
108. Colhei agora daqui o grande serviço que faz ao demônio o senhor, que escandaliza aos escravos
induzindo-os a que pequem; pois tira ao mesmo demônio o trabalho de andar tão sem sossego após das
almas,
entregando-lhas (como dizeis) ás mão lavadas, e dando o melhor dia ao Inferno. Quando um
pecador se arrepende e faz penitência, diz Cristo que há grandes festas no Céu (q) . E porque não haverá
no Inferno alegrias,
quando uma alma se arroja ao pecado e perde a graça, sendo tão oposto o inferno ao
Céu?
109. 0 mal que se causam a si os mesmos senhores com os seus escândalos, é o mesmo que o que
causam nos servos; porque assim como aos servas lhes procuram a morte da alma, essa mesma procuram
também para si, e para si sempre certa; porque pode não o servo, ainda que induzido do senhor; e sempre
peca o senhor que induziu ao servo. Mas além de tudo isto se faz digno da maldição tremenda de Deus, por
ser instrumento do demônio, na perdição e ruína das almas.
110. Bem sabem todos o que sucedeu à serpente no Paraíso, quando dela se valeu o demônio para que
tentasse a Eva e a induzisse a comer o fruto vedado. Diz o texto que lhe lançara Deus sua maldição (r).
Onde se
deve muito reparar, que não sendo a Serpente mais que só instrumento do demônio, que usara
dela, e de suas vozes para tentar a Eva, só por isso a amaldiçoou Deus. Mas assim havia de ser; porque não
merece menos castigo,
quem é instrumento do demônio para a perdição das almas, senão que venha
sobre ele a maldição divina: Maledictus es. E notai, que a serpente não foi voluntariamente instrumento do
demônio; porque ele se lhe
introduziu no corpo, e a obrigou a falar, não sabendo ela o que falava nem o
que fazia. E se contudo ainda a amaldiçoou Deus; que fará ao senhor, que se faz instrumento do mesmo
demônio, livre e voluntariamente e sabendo que faz mal quando induz os servos ao pecado?
111. Resta s¢ ponderar por último a ofensa, que fazem a Cristo os senhores, que com seu escândalo
são causa de ruína espiritual a seus escravos. Esta ponderou o Apóstolo na Epístola aos de Corinto, armado
de zelo contra os que escandalosamente, comiam as carnes oferecidas em sacrifício aos ídolos, na presença
dos Neófitos convertidos do Judaísmo á nossa Santa Fé. As suas palavras são estas: Pecando vós desta
sorte, isto é, dando escândalo a vossos Irmãos, e perturbando-lhes as consciências, pecais contra Cristo (s).
E foi o mesmo que se dissesse, comenta S. João Crisóstomo: Não haveis de imaginar, que induzindo vós o
próximo a que peque, e dando-lhe escândalo, para que tomam também as carnes, que foram sacrificadas
aos ídolos, todo o dano, que nisso fazeis, seja só ofender ao próximo, porque não só ofendeis ao próximo
com o vosso escândalo, mas ainda passais a ofender a Cristo, que por todos deu a vida em uma
Cruz
(1). De maneira, que toda a razão, porque encarece o Apóstolo a deformidade do escândalo, não é só
porque com ele se ofende ao próximo, mas porque mais principalmente se ofende a Cristo: Transit enim ad
Christum ipum.
112. Sendo os comentos, que dão os Santos, nos textos, para explicarem o sentido dos mesmos textos e
os darem a entender; eu nem entendo este texto do Apóstolo, nem o comento dele. E senão, vede. Nenhum
gênero de pecado cometem os homens contra o próximo, que não seja
também ofensa de Cristo. Quem
tira ao próximo a vida, ou a honra, ou a fazenda, peca também contra Cristo. Logo, que nos diz de novo o
Apóstolo, e com ele o Santo Doutor, dizendo que o pecado de escândalo não só ofende
ao próximo, mas
também ao mesmo Cristo?
113. Direi. De duas maneiras podem os homens, ofendendo ao próximo, ofender a Cristo; ou o podem
ofender como a Deus e Criador, ou como a Cristo e Redentor. Então o ofendem como a Deus e Criador,
quando ofendem ao próximo nos bens, que receberam do mesmo Cristo como Deus e Criador; e estes são a
vida, a honra, a fazenda e os mais pertencentes ao corpo. Então o ofendem como a Cristo e Redentor,
quando ofendem ao próximo nos bens que de Cristo receberam como Cristo e Redentor, e estes são as
virtudes infusas, a graça, a salvação, e todos os mais dons sobrenaturais. E por que o pecado de escândalo
se ordena directamente (2) a privar o próximo da graça e salvação, por isso este pecado mais
que outro
qualquer, diz o Apóstolo que ofende a Cristo: In Christum peccatis.
114. Ainda não está ponderado. E que mais tem ofender a Cristo enquanto Cristo e Redentor, do que
ofendê-lo enquanto Deus e Criador, para que diga o Apóstolo tão vivamente que quem ofende ao próximo
escandalizando-o, ofende também a Cristo como Cristo e Redentor e não como Deus e Criador: In
Christum peccatis? 0 que tem de mais já (bem se adverte) fica dito acima, mas agora me explicarei melhor.
Os bens,
que nos dá Cristo como Deus e Criador, só lhe custaram uma palavra: fiat. E quanto lhe
custaram os bens, que nos dá como Cristo e Redentor? Custaram-lhe afrontas, custaram-lhe espinhos,
custaram-lhe açoites, custaram-lhe o sangue e custaram-lhe ainda a mesma vida. E como o que
custa
mais, mais se estima; e o que mais se estima, sente-se mais, se se perde: por isso sente mais Cristo e maior
é a ofensa, que se lhe faz induzindo com escândalo ao próximo a que peque e perca a alma, do que sente
ofensa, que se lhe faz danificando ao mesmo próximo nos bens do corpo.
115. E à vista de tantos e tão grandes males, que traz
consigo o escândalo, não é coisa digna de
todo o pasmo e admiração, que haja senhores, que traguem, sem reparo ú sem escrúpulo algum, escândalos
tão multiplicados e enormes? Que haja senhores, que não reparem nem advirtam no grande escândalo, que
dão a suas escravas, consentindo que saiam de casa a quaisquer horas e desoras, ou sejam da noite ou do
dia, sabendo que daí provêm tantas ofensas de Deus! Oh! Se pudessem falar as ruas e becos das Cidades e
povoações do Brasil! Quantos pecados publicariam, que encobre a noite, e não descobre o dia! Mas não
quero individuar, nem dizer o mais, que deste sair das escravas se segue; porque ainda a mesma pena treme
e pasma de os escrever.
116. Que haja senhores, que não reparem no grande escândalo, que dão a suas escrava, ou louvando-as
de industriosas, quando as vêem trajadas com as librés, que adquiriram por meio das ofensas a Deus; ou
dando-lhes em rosto com a sua pouca indústria e menos brio, quando
não fazem o que vêem fazer as
outras de vida estragada e perdida! Que haja, digo, senhores, que nisto não reparem, conhecendo que assim
enfeitam a culpa, para que mais fàcilmente a cometam; e aprovam, como se fosse bom, o que por todos os
títulos é mau; e reprovem, como se fosse
mau, o que por todos os títulos é bom! Vae vobis (ameaçava
Deus pelo Profeta lsaias) qui dicitis malum bonum et bonum malum! Ai de vós, que aprovais o mau, como
se fosse bom; e reprovais o bom, como se fosse mau (u)! E contra quem mais directamente (3) fala este
ameaço, senão contra vós, ó senhores, e com maior razão contra vós, ó senhoras, que aprovais as galas das
vossas servas, ganha, das com o pecado, e reprovais se as não querem ganhar por não ofenderem a Deus?
117. Que haja senhores, que não reparem no grande escândalo, que dão a suas escravas, repartindo por
elas o sustento da casa, e encarregando-lhes a cada uma sua porção! A uma a farinha ou o pão para a mesa;
a outra a carne ou o peixe para o prato; esta há-de pagar os aluguéis das casas; aquela há-de dar o azeite
para a candeia; e todas
hão-de concorrer com o que lhes toca e está taxado. E que isto se faça entre
Cristãos! Que haja tão pouco temor de Deus, que se não atente pelas consequências destes tributos tão
indignos de um católico! Dizei-me, senhores, ou dizei-me senhoras (que convosco principalmente falo):
Onde hão-de ir buscar as vossas escravas, com que satisfazer a estas pensões? Têm porventura algumas
rendas, donde hajam de tirar o que lhes mandais e impondes para pagarem? É certo que não. Pois donde
lhes há-de vir, senão dos pecados e torpe uso de seus corpos? E sustentando-vos
vós e deste mau lucro e
destes pecados; que é o que sois, senão um pecado vivo e animado? Lá disse o Filósofo, que cada um não é
outra coisa, senão aquilo, de que se sustenta (x). E sendo assim que vos não sustentais de outra cousa, senão
do pecado: que haveis de ser, senão o mesmo pecado?
118. Mas ainda não param aqui os escândalos dos senhores do Brasil; porque não contentes com
induzir, aconselhar, consentir, e ainda mandar aos escravos que pequem, passam muito mais avante,
obrigando-os com o castigo ou ameaços dele a ofender a Deus, e faltar à guarda de seus preceitos. E
senão, dizei-me. Não é escândalo, e o mais
execrando e diabólico, obrigar o senhor ao servo a que leve
recados e embaixadas ilícitas, e seja terceiro para o pecado do mesmo senhor? E não é ainda muito maior
mal, e muito mais escandaloso excesso, castigar rigorosamente ao mesmo servo, quando ou repugna a ir ou
não indo (e provera a Deus que nenhum fora!) finge e diz que foi? Assim é.
119. Pois sabei que o senhor, que isto faz (quero dizer, que manda estas embaixadas) não é senhor, é
Lúcifer, e tem domínio nos seus escravos do mesmo modo que o tem Lúcifer nos demónios. Lúcifer, bem
sabem todos que é o príncipe e senhor do Inferno, e tem poder e domínio sobre
os demónios. Mas em
que o exercita? Em os mandar pelo mundo a tentar e solicitar os homens para o pecado. E tal é o domínio
daqueles senhores, que usam dos seus escravos mandando-os no mesmo fim a que manda Lúcifer os seus
demónios. Mas eu prometo que assim aos senhores que mandam a tão mau fim, como aos escravos que lhes
obedecem, não pode faltar o castigo do fogo eterno; pois para uns e outros está aparelhado: Qui paratus est
diabolo et angelis ejus (Y); ou (como lê S. Cirilo) Et nunt s ejus (z).
Para estes Lucíferes da terra, e para
estes seus embaixadores acendeu Deus aquele activo fogo, que os há-de abrasar e consumir por toda a
eternidade! In ignem ceternum (a).
120. Não é escândalo, e o mais abominável nos olhos, de Deus, amigar-se o senhor com n sua
escrava? E não é ainda muito maior e mais abominável obrigá-la á força a consentir neste pecado de seu
senhor, e castigá-la quando repugna e quer apartar-se desta ofensa de Deus? Nenhum
católico o há-de
negar. E espera salvar-se o senhor, que isto faz? Se sucederam estes casos na Mauritânia ou Barbaria, onde
dispensou Mafoma no sexto Mandamento, alguma razão havia com que se desculpassem os senhores,
que cometessem delitos tão profanos e sobre profanos crueis. Mas que sucedam na Cristandade e a Cristãos
tão Cristãos como os Portugueses! Que havemos de dizer senão que, além da eterna pena, com que
merecem ser castigados na outra vida os senhores que assim violentam e obrigam
as suas escravas a
pecarem, ainda nesta merecem a morte temporal, imposta pelo Direito comum, e lei particular de Portugal a
todos aqueles que violentamente, ou de outra maneira forçam e obrigam a pecar as mulheres de qualquer
qualidade que sejam, ainda aquelas, a que vulgarmente
chamamos mundanas?
121. Não é escândalo finalmente (e tanto mais grave,
quanto mais ordinariamente sucede) obrigar o
senhor ainda com castigo que paguem as escravas os furtos, que se fazem em casa ou as perdas, que
sucedem por seus descuidos? Quem o pode negar? E não é isto querer que solicitem pecados para
satisfazerem a essas perdas e a esses furtos? Ainda mal! E que haja senhores tão cegos, que não reparem,
nem advirtam na grande injustiça que cometem obrigando a seus servos a pagar-lhes o que lhes não devem!
Porque: que culpa tem o escravo ou a escrava, quando por acaso se lhe quebrou o cântaro ou a taça ou
qualquer outro móvel deste género? Que culpa tem que entrem os ladrões em casa, e levem o ouro, ou a
prata, ou o que puderam haver ás mãos? E sendo certo em boa Teologia, que não está obrigado a pagar as
perdas e danos aquele que os não causou voluntariamente, ainda que para eles concorresse sem culpa sua;
vede se ‚ injustiça manifesta obrigardes aos vossos escravos a que vos paguem, o que perdestes não por sua
culpa?
122. E tanto mais se devem abominar estas injustiças, quanto são mais leves as perdas, que recebem os
senhores. Dizei-me: Não é a maior indignidade, que por não perder o senhor quatro réis, ponha debaixo
dos pés a honra de Deus e a venda por tão vil e abominável preço? Se para impedir as ofensas de Deus
houvésseis de perder ou grande parte dos bens que possuís ou todos eles: quem não vê que merece Deus,
que antes os perdesseis todos, com o interesse somente de que não seja ele ofendido? E se isto merece Deus
que façais para que o não ofendam os estranhos;
quanto mais merece que o façais, para que o não
ofendam os vossos servos, devendo vós de justiça impedi-los que não ofendam a Deus, e muito mais
quando é tão pouco o que interessais? Mas porque o não fazeis assim, antes fazeis todo o contrário, dais
ocasião a que se diga com muito
maior razão de vós, o que dos Cristãos do seu tempo dizia Salviano:
Solus nobis in comparatione omnium vilis Deus est (b). Teme e treme a pena de escrever, e a boca de
pronunciar e traduzir estas palavras. Fazendo comparação (diz) entre a vileza do mundo, e a grandeza e
majestade
de Deus, têm como por coisa assentada os Cristãos que todas as mais coisas são dignas da
maior estimação, e só Deus ‚ a coisa mais vil. Parece que tinha este grande Padre diante dos alhos os nossos
tempos; pois há senhores, que pela vileza mais vil da terra vendem a grandeza e
majestade de Deus,
não reparando em que por uma pequena quantia permitem e consentem, e ainda mandam fazer, tantas e tão
enormes ofensas ao mesmo Deus.
123. Sendo pois os escândalos, com que os senhores induzem para o pecado aos seus servos, tão graves
e tão frequentes como temos visto, é muito para admirar o pouco caso, que deles fazem os mesmos
senhores para o arrependimento. Vem a confessar-se um destes senhores, ou por
obrigação da
Quaresma, ou por devoção (1) no meio do ano; e vereis, que gastando largo tempo aos pés do confessor em
se acusar de venialidades, destes escândalos não faz menção alguma, como se não fossem pecados. Esta
sem dúvida é a razão daquele tremendo ai de Cristo sobre o mundo, Vax mundo a scandalis (c)! Ai do
mundo, onde tanto reinam os escândalos! Porque sendo tão fáceis os homens em dar escândalos, são tão
difíceis em se arrepender e fazer penitência deles. Vede pois, Senhores, e atentai bem para as vossas
Confissões. Procurai arrancar de todo as raízes destes escândalos. Deixai por uma vez de dar a beber aos
vossos servos este tão mortífero veneno. Vede que assim a eles, como a vós mesmos causais a morte eterna.
Lembrai-vos que tendes obrigação de vos aplicar todos a procurar-lhes o alimento, para a alma, assim como
a tendes de lhes procurar o sustento para o corpo: panis, ne suecumbat.
DISCURSO III
Em que se trata de terceira obrigação
que têm os senhores para com os servos
124. A terceira obrigação dos senhores ‚ dar ao escravo o
castigo, para que se não acostume a errar, vendo que seus erros passam
sem castigo: Disciplina, ne erret (d). Isto quer dizer disciplina, que
vale o mesmo (como notamos intérpretes) que castigatio. Porém porque no
castigo
dos servos sucede haver muitas faltas, é necessário que
saibam os senhores como e quando. se hão-de castigar, para que não
pequem os mesmos senhores ou por defeito ou por excesso; pois qualquer
destes extremos pode ser pecaminoso. Assim como erra o médico, que não
receita a
medicina ao enfermo se a enfermidade a pede; ou a
receita quando fora mais útil que a não receitasse por não ser
necessária à enfermidade; ou sendo necessária lha receita ou
improporcionada para o achaque ou fora da quantidade conveniente; assim
também igualmente erra o senhor, que
não castiga ao servo quando
merece, ou o castiga quando não, merece, ou merecendo lhe não aplica o
castigo acomodado à sua culpa ou com mais excesso do que a culpa
merece. Toda esta doutrina, que é muito importante, declararemos nos
parágrafos seguintes.
§ I
Que os senhores devem castigar aos servos,
merecendo eles o castigo
125. Para trazer bem domados e disciplinados os escravos é
necessário que o senhor lhes não falte com o castigo, quando eles se
desmandam e fazem por onde o merecem. Flagellum equo, et camus asino,
et virga in
dorso imprudentium, diz (1) Salomão(2 ) nos seus
Provérbios (e) Assim como o ginete necessita da espora e o jumento do
freio, para serem governados; assim os imprudentes e maus necessitam da
vara e do castigo, para que sejam morigerados como devem, e não faltem
à sua obrigação. Esta é a genuina e literal exposição deste texto, como
têm concordemente os Expositores. Mas, tornando eu tanto a meu cargo
defender a causa dos escravos, contra os senhores, que os maltratam,
parece que não devia aprovar que se executasse neles gênero algum de
castigo, senão
abominar como crueis e inumanos os senhores, que de
qualquer modo os castigam. Assim havia de ser, se os escravos fossem
de condição tão branda e bem domada, que se acomodassem ao que é razão.
Mas como eles ordináriamente são volumários, rebeldes, e viciosos, não
é possível que saiam bem disciplinados sem a disciplina sem o castigo.
126. Deixar o senhor viver o escravo à sua vontade, e por mais
desordens que faça, dar tudo por em feito ou (quando muito) passar com
uma repreensão; ‚ dar-lhe atrevimento, para que se arroje a todo o
gênero de pecados; pois nenhuma coisa aos homens d mais ousadia para
delinquirem e soltarem a rédea aos vícios, do que saberem que não hãode ser castigados seus delitos. Grave e compendiosamente S. Bernardo. A
impunidade (diz o Santo) ou falta de castigo ‚ filha da incúria, mãe da
insolência, raiz da audácia, e aumentada das transgressões e quebras
das
leis (f). E no Direito Canónico se admite como axioma
infalível, que a facilidade de alcançar o perdão é incentivo para mais
livremente pecar (9).
127. Por isso dizia o Profeta Isaias, que usar de misericórdia
com os maus era querer que não aprendam a ser bons (h) . Pois se isto
se verifica ainda nos livres e brancos, a quem o pejo, o timbre e o
pundonor obriga a fugir dos malefícios: que ser nos pretos e cativos,
que nascendo naturalmente sem pejo e sem timbre algum, únicamente
governam suas acções pelo temor? Logo merecendo o escravo o castigo,
não deve deixar de lho dar o senhor; porque não só não é crueldade
castigar os servos, quando merecem por seus delitos Ser castigados, mas
antes é uma das sete obras de misericórdia, que manda castigar aos que
erram.
128. Digo, quando merecem; Porque não havendo neles falta digna
de castigo, indigna coisa seria castigá-los o senhor. Interpretando a
Glossa o Recrito, do imperador Antonino, que anda na Instituta (i), em
que proíbe aos senhores toda a crueldade e excesso no castigo dos
servos,
excita está questão: Se ser lícito ao senhor castigar ao
escravo sem causa? E responde que sim; não sendo porém o castigo
demasiado (1), Muito melhor sem dúvida e mais, conforme ao direito e
razão natural, falou Plateu, citado da mesma Glossa, dizendo que nenhum
castigo (nem ainda
mais leve) deve dar o senhor ao servo, não
havendo nele falta, pela qual o mereça. E verdadeiramente, se é gênero
de sevicia castigar com excesso ao escravo, ainda cometendo delito
digno de castigo: como o não ser
castigá-lo, ainda levemente, não
havendo nele culpa, que deva ser castigada?
129. 0 castigo e a Pena pressupõem culpa, conforme aquele axioma
de direito, Poena Praesupponit culpam (m); e assim, onde não há culpa
(diz S. Agostinho) não pode
haver própriamente pena e castigo (n).
Pois se a pena e o castigo, quando se não dão por culpa, não são
propriamente pena nem castigo: que podem ser, senão crueldade,
e
sevícia, e ainda e mais que crueldade?
Crueis (diz Séneca) chamo
aqueles, que tendo causa para castigarem, não guardam a moderação, que
devem, no castigo (0). Logo quem castiga sem culpa é mais que cruel;
porque é de natureza totalmente ferina, igual nos tigres e aos leões.
Ao leão compara o Espírito Santo o senhor, que sem haver nos servos
culpa, s¢ porque lhe dá
na vontade, os castiga (P); ou conforme a
versão de Vatablo: não queiras ser em tua casa como, o leão, castigando
aos servos não por razão, se não por fantasia (q).
130. Os leões e outras feras deste gênero, como não têm razão
nem discurso, instigadas de sua natural braveza e fantasia, que bruta e
cegamente as arrebata a derramar sangue, se arremessam a todo o gênero
de crueldades, vomitando, ainda contra os que as não ofendem, a sua
cólera.
Mui parecidos a estas feras são aqueles senhores, que sem
causa alguma, arrebatados só de suas fantasias, castigam e maltratam os
escravos, sem reparar na indignidade de acção tão bárbara e inumana.
131. E quem haverá, que sofra tão crueis e tiranos senhores? Se o
castigo é merecido, anima-se qualquer a sofrê-lo com paciência e
igualdade de ânimo: ver-se porém castigado (e tal vez rigorosamente)
sem culpa, terrível gênero de dor é este e por todos os princípios,
intolerável.
Esta era a causa das lamentações e queixas C) de Enone
escrevendo a Páris:
Leniter ex merito quicquid Patiare, ferendum est:
Quce venit indigne Poena, dolenda venit (r).
Que paciência pois h
mister um 'triste escravo para sofrer os
castigos, que lhe dá o senhor sem razão e sem causa? Parece-me que há
mister uma paciência, não só mais que humana, mas ainda mais que
divina.
132. Em Cristo com as mais virtudes foi também divina a
paciência, a qual mostrou em todo o discurso de sua Paixão; porque por
mais injúrias que lhe fizeram, e por mais tormentos que lhe deram seus
inimigos, se houve sempre como Cordeiro, sem se lhe ouvir em todo este
tempo a mínima queixa. Assim o tinha profetizado Isaias, falando à
letra do mesmo Senhor, quasi agnus coram ton, dente se obmutescet, et
non, aperiet os suum (-1). Contudo esta paciência tão paciente e
sofrida, não pôde tolerar a bofetada, que lhe deram em casa de Anás; e
por essa razão
perguntou ao ministro desta grande afronta o
motivo e causa dela: Quid me caiedis (')? Não há
dúvida que
considerando a injúria, foi esta bofetada injúria gravíssima; e
considerando a pena, foi suma pena; porque não faltam contemplativos,
que digam que a mão deste ministro era armada de ferro. Contudo é
certíssimo que Cristo em sua Paixão padeceu injúrias ainda mais
afrontosas, e penas ainda mais crueis do que esta, como foram as
salivas e escarros, com que lhe afearam o rosto; os açoites, com que
lhe rasgaram as carnes; os espinhos, com que lhe atravessaram a cabeça;
e os cravos, com que lhe abriram os pés e mãos. Pois, se dos mais
ministros quando lhe faziam estas injúrias e lhe davam estes tormentos,
se não queixou o Senhor; porque mais se havia de queixar do ministro,
que lhe deu a bofetada? A razão (pelo que eu entendo) foi porque os
mais ministros podiam alegar alguma razão aparente dessas injúrias e
desses tormentos, dizendo que eram mandados. Porém como este ministro,
atrevido, sem causa alguma, e só por arrojo de sua fantasia, lhe deu a
bofetada, não podia dar razão alguma de tão grande desacato; por isso a
ele só, e não aos mais, perguntou Cristo pela razão de o afrontar e lhe
dar pena: quid me caedis? Para que entendessem todos que não tinha
razão este ministro de usar com ele de tão grande sem razão. De maneira
que sofrendo
Cristo de outros ministros maiores injúrias e
maiores tormentos sem comparação, s¢ deste se queixa; porque não há
paciência, por mais divina que seja, que possa tolerar pena e sofrer
castigo, não havendo causa para se lhe dar: quid me caedis? Como logo
hão, de sofrer os tristes escravos
a tirania de um senhor, que os
castiga sem culpa e sem causa? Averiguem pois os senhores primeiro os
delitos dos servos; e depois deles averiguados, então lhes não faltem
com o castigo.
133. E para averiguar bem o delito do escravo, não deve o senhor
dar logo crédito a tudo o que lhe disserem, mas deve guardar também um
ouvido para o ouvir a ele. É tão contra razão condenar :alguém sem o
ouvir primeiro de sua justiça, que não há na terra poder, que a isto
se estenda. 0 maior poder, que há no mundo é o do Sumo Pontífice da
Igreja Romana, pois o mesmo Deus lho deu amplíssimo, assim para atar,
isto é, para condenar, como para desatar, isto é, para absolver:
Quodcumque ligaveris super terram, erit ligatum et in cmlis et
quodcumque solveris super terram, erit solutum et in coelis disse
Cristo a S. Pedro, e a todos os seus sucessores (u). E contudo o mesmo
Pontífice Romano, com pública declaração enxerida no Corpo do Direito
Canónico, confessa que não tem
poder para determinar coisa alguma
contra a parte, que não foi ouvida (x). Mas que muito não haja poder
para isso na terra, quando o mesmo Senhor do Céu, que o tem por lhe ser
manifesta e patente toda a verdade, o não exercita sem primeiro ouvir
os culpados, antes que chegue a usar com eles do castigo? Assim o
mostrou com Adão (Y), e com Caim (z), aos quais não condenou sem
primeiro lhes fazer cargo e ouvir sua defesa Logo por que se há-de
atrever o senhor a castigar o escravo sem lhe ouvir primeiro a descarga
do delito que se lhe imputa?
134. Nem digais que se abate o senhor e desce de sua autoridade,
entrando em perguntas com o seu servo; porque em ouvir as razões, que
:alega o escravo em favor de sua inocência, não corre risco algum de
menoscabo a autoridade senhoril. Job (que assim como foi o exemplar
melhor da paciência, assim o foi também dos senhores) sendo um senhor e
príncipe tão grande entre todos os do Oriente não tinha por desdouro
perguntar e ouvir as, razões dos seus servos, quando se punham a juízo
com eles. Eu (diz rei paciente) nunca imitei o costume daqueles
senhores,
que se desprezam de ouvir aos servos, e nunca lhes
tolhi que alegassem sua defensa e dissessem em abono de sua causa,
ainda contra mim (a). E com razão o devia fazer assim, diz Olimpiodoro,
porque se por ventura imaginassem que lhes fazia injúria e queria o que
não era razão, ficassem
desenganados e convencidos dele (b).
135. Nem s¢ deve o senhor ouvir aos servos antes de chegar à
execução do castigo; mas se ainda no mesmo tempo, em que os está
castigando, quiserem alegar suas razões e desculpas, não lho deve
tolher o senhor, diz Plutarco (c). Daqui podeis inferir quão grande é a
crueldade daqueles senhores, que, para que os servos não falem por
si, nem ainda dêem gemidos no tempo do castigo, lhes mandam atravessar
um pau na boca; como se desculpar-se e o gemer fosse alguma blasfêmia
contra o mesmo senhor, que os manda castigar; sendo que quando assim
fosse, ainda lho não deviam proibir.
136. É sabido que no Inferno estão continuamente os condenados
blasfemando contra Deus, que com tanto rigor os castiga; sendo que é
certíssimo que os castiga com muito inferior ao que merecem, como dizem
os Teólogos, cujo axioma diz assim: Deus punir infra condignum (d).
Pergunto pois: Porque há-de consentir Deus que os condenados vomitem de
sua impura boca blasfêmias horrendas? Porque não manda aos demónios,
que lhes ponham a todos uma mordaça na boca? Sabem porquê? Porque se os
condenados blasfemam de Deus, é porque se vêem castigados do mesmo
Deus; e Deus quando castiga, não tapa a boca a ninguém: sejam
castigados, e falem o que quiserem. Pois, se Deus assim o faz, porque o
não hão-de
fazer assim os senhores? Não basta que o servo padeça o
castigo, senão ainda lhe quereis tapar a boca, para que não alegue sua
desculpa e não se queixe?
137. Ouvido enfim o escravo, e constando que realmente tem
culpa; não há dúvida que faltaria gravemente o senhor à sua obrigação
faltando-lhe com o castigo, e cometeria um pecado, que nas balanças de
Deus igualmente
pesa, como se o castigasse sendo ele inocente. Qui
justificar impium et qui condemnat justum, abominabilis est uterque
apud Deum, - é sentença de Salomão nos Provérbios (c). A qual traslada
Vatablo por estas palavras: Igualmente aborrece Deus aquele que absolve
do castigo a um mau, como aquele que condena à pena a um inocente e sem
culpa (f). E ainda que estas palavras vão directamente (1) a ferir os
julgadores, que pervertendo as
regras da justiça absolvem culpados e
condenam inocentes;
não deixam contudo de quadrar bem aos
senhores, que não dão o castigo aos escravos criminosos, e castigam aos
que não tem crime. Uns e outros aborrece Deus igualmente:
Ex aequo
abaminatur Dominus.
138. Nem obsta aquela tão sabida regra de Direito, que declara
que é melhor, ou menos mau, livrar a um culpado que castigar a um
inocente (9). Não obsta, digo, porque esta regra s¢ tem lugar nos casos
duvidosos, isto é, quando o julgador não acha tão provado o delito do
réu, que possa formar juízo pleno que o cometeu, mas fica suspenso, ou
com dúvida, se o faria ou não faria. Porém constando certamente ao
julgador, ou do delito, ou da inocência do culpado, igual pecado comete
quem livra da pena ao criminso, como quem condena a castigo ao
inocente. A razão de igualdade destes pecados está clara. Porque se a
justiça tem por objecto dar a cada um o que lhe toca e pertence (h);
devendo ser punido o culpado e absolto da pena o inocente, igualmente
encontra a justiça quem absolve aquele e condena este.
139. Para que pois não cometam os senhores injustiça tão
abominável a Deus não faltem aos escravos delinquentes com o castigo; e
mais principalmente quando o seu delito encontra não tanto a pessoa e
serviço dos mesmos senhores, quanto a majestade e serviço de Deus.
Assim
o pede a razão, não só porque a ofensa, que o escravo faz a
seu senhor, quase não é ofensa em comparação da que faz a Deus (porque
excedendo Deus infinitamente na dignidade a todas as criaturas,
qualquer ofensa sua, por mínima que seja, infinitamente excede todas as
ofensas, ainda as mais atrozes, que se fazem ou podem fazer ás mesmas
criaturas); senão também porque sendo Deus tão zeloso e amante de nosso
bem, que mais severamente castiga as alheias que uma criatura faz
imediatamente á outra, do que as que as mesmas criaturas imediatamente
cometem contra ele: quem não vê que pede a boa correspondência que a
criatura castigue com maior rigor as ofensas feitas contra Deus, do que
as feitas contra essa mesma criatura?
140. E que Deus use de menos rigor no castigo daquelas densas,
que imediatamente se dirigem a ofendê-lo, do que as que se fazem contra
as criaturas, eu o pudera mostrar com muitos e mui singulares,
exemplos.
Baste por todos o de Caim. Dois pecados cometeu Caim, um
contra o primeiro Mandamento, faltando à honra e culto devido a Deus,
pois lhe ofereceu o mais inferior cordeiro do seu rebanho; e outro
contra o quinto, tirando aleivosamente a vida a seu irmão Abel. 0
primeiro pecado,
por ser contra a virtude da Religião, não se
pode negar que ex genere suo era maior que o segundo, e contudo desse
primeiro fez Deus tão pouco caso, que se satisfez não com outro castigo
(diz S. João Crisóstomo) mais que com lançar-lhe em rosto a sua culpa:
Peccasti (i). Vede agora
como castigou o segundo. Lançou
primeiramente sobre Caim a sua maldição (1); e condenou-o a andar
sempre desterrado e fugitivo pelos bosques (m) até acabar a vida com
morte violenta e semelhante à que deu ao irmão. Admira-vos esta
diversidade? Pois não vos admire, diz o Santo Doutor;
porque é o
que Deus ordiriàriamente usa, perdoar com facilidade as ofensas
próprias e castigar severamente as alheias (n). Logo se Deus se há
desta sorte connosco, com quanta mais razão devem os senhores haver-se
da mesma sorte com Deus, castigando nos escravos com maior rigor
as ofensas que cometem contra o mesmo Deus do que as que cometem contra
eles? Armai, senhores, armai a mão de castigo contra as ofensas, que
fazem a Deus os vossos escravos; que nunca pode ser mais bem empregado
o castigo, que em atalhar estes erros, disciplina, ne erret.
§ 11
Que os senhores não hão-de castigar tudo,
mas relevar algumas faltas a seus escravos
141. Temos visto a grande obrigação, que têm os senhores, de não
passar sem castigo pelas culpas e delitos dos escravos. Não quisera
porém que houvesse senhor tão imprudente, que inferisse daqui que não
possa ou não deva relevar falta alguma nos servos, senão levar
igualmente tudo com o rigor do castigo. Todos os extremos são viciosos.
Ne quid nimis, dizia um Sábio (0). Perdoar tudo, é excesso contra a
justiça; e não perdoar nada, é outro excesso contra a misericórdia.
Quem duvida logo, que pode e deve algumas vezes prudentemente
dissimular o senhor as faltas dos escravos? Lá disse o Poeta, que se
todas as vezes que pecam os homens, houvesse Júpiter de lançar raios
contra eles, em breve tempo não teria armas com que os ferir.
Si quotUes peccant homines, sua fulmina mittat
Juppiter, exiguo tempore inermis erit (P).
E se todas as vezes que o escravo falta a alguma de suas
obrigações, houver seu senhor de descarregar sobre ele o castigo, em
breve tempo não ter a quem castigar. 0 castigo é medicina da culpa; e
os medicamentos, para que façam efeito, não hão-de ser mui continuados,
porque a continuação faz que não obrem; pois como ensinam os Filósofos,
o que se faz por costume muito continuado, não faz mossa nem moção: Ab
assuetis non fit passio (q).
142. 0 escravo calejado com o castigo já o não teme; e porque o
não teme, não lhe aproveita. É o castigo como a guerra. A guerra mais
espanta, temida quê experimentada, disse o Trágico (r). Muitos há, que
antes de chegarem à vista do inimigo, temem e tremem de medo; depois
de o avançarem uma vez e experimentarem o que nele tem, lho perdem de
sorte que entram nas batalhas com igual sossego, como se fossem a uma
justa ou torneio. 0 mesmo sucede no castigo, mais pode temido, que
experimentado, pejor est paena timor ipse pence. Enquanto o escravo não
tomou o pulso ao castigo, e não sabe o que pesa, é tal o medo e horror
que lhe tem, que treme e sua só com a consideração que seu senhor o
poder castigar; por‚m depois que o experimenta (e muito mais se é por
costume) pouco apouco lhe perde o medo e temor, e lhe endurece em tanta
maneira a pele como crestada ou calejada, que o mesmo é castigá-lo, que
malhar (como dizeis) em ferro frio.
143. Não temendo pois o servo o castigo, como há-de deixar de
fazer sua vontade? E quando ainda não chegue a despir totalmente o
medo, porque o castigo nunca pode saber bem; da muita continuação dele
nasce outro inconveniente não pequeno. Porque sabendo o escravo que o
senhor lhe não passa em claro falta alguma, e que lhe não valem
padrinhos; em chegando a cometer algum delito, e vendo que não tem
outro remédio para evitar os rigores do mesmo senhor, toma carta de
seguro e foge.
144. Que sabiamente o advertiu Salomão nos Provérbios, dizendo
que quem perturba a sua casa não possuir outra coisa mais que ventos
(s)! Mas quem é este perturbador, de que fala o Espírito Santo? É o
Senhor (diz Salazar) que continuamente faz revoluções em sua casa,
castigando sempre, e por qualquer leve causa, aos servos (1). E quem
são os ventos, com que se há-de achar, senão escravos, que à maneira
de ventos lhe fogem, e se lhe ausentam? - diz o mesmo Expositor (u).
Nas casas, onde o senhor ou a senhora anda em uma contínua guerra com
seus escravos, castigando os sem lei, sem ordem, sem consideração, e
sem modo algum, não param os servos. E por essa razão é necessário que
este tal senhor faça da mesma sua casa cárcere de Éolo senhor dos
ventos, prendendo com grilhões e correntes a estes fugitivos, corno
Éolo aos mesmos ventos; porque se assim o não fizer, qua data porta,
ruunt por qualquer caminho que se lhes abrir a porta, desaparecem logo
(x). Havendo prudência no senhor para fazer
dissimular algumas
faltas aos escravos, tudo se remedeia, e tudo se faz bem.
145. Porém porque nem tudo se deve castigar, nem tudo perdoar,
vejamos que gêneros de culpas são as que pode e deve perdoar o Senhor
aos servos, para que daí se entenda as que se devem castigar. 0
primeiro gênero é o das leves e de pouca entidade, como seria uma
palavra menos sofrida, um tardar pouco mais do que era justo, e
semelhantes outras. Anda em, provérbio, que culpas que não têm
sustância, não devem ser emprego da justiça vindicativa do julgador: De
minimis non curat Prœetor (Y). Funda-se este provérbio, a meu ver,
naquele texto ou axioma de Direito: Que das coisas mínimas não se há-de
fazer caso: Mininia non sunt in consideratione (2). Logo, porque há-de
ser o senhor tão rigoroso, que faça caso de tudo, e não deixe passar a
mínima falta do Servo, que a
não castigue?
146. Não ‚ isto querer ser demasiadamente justo, contra o que
expressamente ordena o Espírito Santo, noli esse justus Multum (a)? Mas
em que consiste a nimiedade da justiça? Em querer levar tudo à virga
férrea; e que quem a fez, a pague logo (diz S. Jerónimo), sem
distinguir
entre culpas e culpas, não passando nem pelas graves,
nem penas leves, sem que de todas tome vingança: Ouçam as palavras do
Doutor máximo, que são admiráveis ao nosso intento: Se vires alguém tão
rigoroso e inexorável para qualquer sorte de pecados que comete o seu
próximo,
que não queira perdoar nem uma palavra que
inconsideradamente lhe saiu da boca, nem uma tardança que
sucede por
descuido e fraqueza natural; sabei que este é mais justo, do que pede a
justiçai porque é inumana toda
a justiça que se não compadece da
fragilidade dos homens (b).
147. Bem sei que falando em rigor, tem o senhor direito para
castigar ao escravo, todas as vezes que falta à sua obrigação; mas sei
também que é certo aquele axioma de Marco Túlio; Sunimum jus summa
injuria (c). Querer usar de todo o seu direito, sem que falte um ponto
nem um
ápice, é suma injustiça. Por isso todos devem estranhar o
costume indiscreto daqueles senhores, ou senhoras, que de maneira de
comitres de galé estão continuamente sobre os escravos com o açoite na
mão, e lhes não deixam passar falta, por leve que seja, sem castigo; e
o que mais é, para terem ocasião de os castigar, lhe imputam como falta
o que não é, nem tem sombra de falta.
148. Pode haver falta menos falta do que mover os
beiços? É
certo que não. Pois nos miseráveis servos de alguns senhores (diz
Séneca) não é lícito nem ainda mover os beiços Para falarem (d). Por
qualquer murmurinho que se lhes sinta, experimentam logo o rigor da
vara (c); e nem
ainda o que sucede naturalmente e acaso, como é o
tossir e o espirrar e soluçar, se lhes perdoa (f). Este costume de não
poderem os escravos abrir boca em presença de seus senhores, que dos
Persas passou nos Romanos, bem mostra que sujeitando Roma os Bárbaros
ao seu império, sujeitou-se, a si à barbaridade deles. Não haja pois,
entre Cristãos, senhores tão inumanos, que por tão leves causas (se é
que se podem dizer causas) usem logo com os escravos
do rigor do
castigo.
149. Outro género de faltas, que os senhores devem tolerar nos
servos, é das que se originam da pouca capacidade e natural rudeza dos
pretos, e não de ânimo rebelde a Deus e a seu senhor. A razão é, porque
o que ‚ digno de castigo não é a acção, senão o dolo e a malícia, com
que se faz. Donde ver naquela tão sabida regra do, Direito que não
havendo dolo não há delito digno de pena (g). E a razão desta razão se
funda em outra regra do mesmo Direito, que diz que o ânimo e o
propósito são os que dão a malícia às acções, que não seriam más, se
não houvesse
mau ânimo e mau propósito (h).
150. Por isso com muita razão se encorporou no Direito comum o
Rescrito do Imperador Adriano, em que declara, que quem matou, porém
sem ânimo de matar, deve ser absolto da Pena devida no homicídio, e
quem
feriu com ânimo de matar, ainda que não matasse, deve ser
punido como homicida (i). Se os senhores atentassem bem que muitas
culpas dos servos não nascem de má vontade, que neles haja, senão de
sua rudeza, que lhes não deixa entender mais, não duvido que não seriam
tão fáceis em os castigar.
151. 0 escravo, quê pecando, por rude, falta ao que deve, não
merece castigo, senão compaixão e ensino. Ensinar aos ignorantes e dar
o castigo aos que erram, ambas estas coisas são obras de misericórdia e
pertencem às sete espirituais; porém de tal sorte que o ensino dos
ignorantes precede ao castigo dos que erram; este está no quarto lugar
e aquele no segundo. E porquê? Porque para fazerdes de misericórdia
castigando os que erram, haveis de primeiro ensiná-los quando
ignorantes. Primeiro se deve instruir o escravo no que pertence à
segunda das obras de misericórdia; e se, depois de instruido nela,
falta ao que deve,
então cabe bem a quarta.
152. Não é pois uma manifesta sem razão, querer o senhor que no
mesmo tempo em que lhe entrou um boçal em casa, ande logo tanto a
ponto, como se estivesse doutorado na arte de servir? E se por algum
caso faltar a ela, ainda levemente, seja logo por isso castigado?
Porque o não ensinais primeiro como vos há-de servir? E se depois de
ensinado não satisfizer à sua obrigação, então tereis razão para lhe
dar o castigo. Que direis do Mestre, se nos
primeiros dias, que lhe
entra o vosso filho na classe, sem lhe dar lição alguma, quisesse
depois que desse conta
daquilo que lhe não tinha ensinado; e por
lha não dar, o mandasse ao castigo? 0 mesmo dizei de vós. Porque como
há o escravo de dor boa conta do vosso serviço, antes de aprender como
se há-de servir? Em conclusão: onde não há erro voluntário não deve
haver castigo; porque este só
é devido àquele que erra, para que
não erre, disciplina, ne erret.
§ III
Que as pragas e nomes injuriosos
não servem para castigo dos escravos
153. Suposto que o senhor deve perdoar algumas faltas aos servos
e forçosamente deva castigar outras, para que sem o freio do castigo se
não façam os escravos mais viciosos do que são e multipliquem culpas
sobre culpas; vejamos agora qual deve ser o castigo. Alguns senhores há
que se satisfazem castigando os servos com palavras; e principalmente
as senhoras, que só então cuidam que ficaram bem vingadas dos desatinos
do escravo ou da escrava, quando desabafaram o coração com palavras
injuriosas, pragas e maldições horrendas, dando-os e suas almas ao
demónio, e imprecando sobre eles o inferno todo. Mas este certamente
não é o castigo, com que se devem disciplinar os servos. Um dos
primeiros preceitos, que deu Platão aos senhores acerca do bom governo
dos servos,
é que os não descomponham e maltratem com palavras
injuriosas (1). E por que não os senhores de descompor com nomes
afrontosos nos escravos, se com eles não deve ser injuriado nem ainda o
mesmo demónio?
154. Entre o Arcanjo S. Miguel e o demónio houve uma porfiada
contenda de parte a parte, sobre o lugar em que havia de ser sepultado
o cadáver de Moisés; e diz S. Tadeu, que se não atreveu o Arcanjo a
blasfemar do mesmo demónio (m). A blasfémia pròpriamente se comete,
quando se diz alguma palavra injuriosa contra Deus, conforme o comum
sentir dos Teólogos e definição de S. Agostinho, que declarando o que
é blasfémia, diz assim: Blasfemar ‚ dizer algum mal dos bons. E como
se
possa duvidar da bondade de qualquer criatura, e só Deus
unicamente seja bom sem controvérsia, daqui vem, que só é tido
vulgarmente por blasfemo aquele que Profere palavras injuriosas contra
Deus (m).
155. Porém se o diabo, ninguém duvida que ‚ sumamente mau, como
Podia blasfemar dele S. Miguel? Logo que blasfémia seria esta, que se
não atreveu a proferir o Arcanjo contra o demónio? A versão Tigurina
diz que
foi maldição (0); e a de Vatablo diz que foi nome ou
palavra injuriosa (P). Tudo isto seria, mas pergunto? Porque se não
havia de atrever S. Miguel a amaldiçoar o demónio, sendo o demónio tão
digno de todas as maldições, nem dizer-lhe uma palavra injuriosa, não
havendo injúria que ele não mereça? Aqui vereis o que são pragas, o que
são maldições e o que são nomes injuriosos; que nem contra o mesmo
demónio se atreve a proferi-los o Príncipe das jerarquias celestes. E
estas pragas, estas maldições, e estes nomes proferis vós tão
facilmente a cada passo contra vossos escravos. Ouvi coimo contra vós
argumenta o Doutor máximo, referido por Graciano: Se o grande Arcanjo
S. Miguel não se atreveu a praguejar, e amaldiçoar ao demónio, sendo
tão digno de maldição e de pragas: quanto
mais nós os Cristãos
havemos de fugir de todas as pragas e maldições (q)!
156. E sendo isto assim, ‚ muito digno de ser notado o abuso dos
senhores, e muito mais das senhoras do Brasil, que sem reparo algum
praguejam e descompõem com palavras injuriosas aos servos e ás servas,
desde que nasce o sol até que se põe, não se ouvindo em vasa todo o dia
mais que nomes afrontosos e pragas medonhas. Este intolerável abuso
nasce, a meu ver, de cuidarem muitos que nisto não pecam; ou se pecam,
é muito levemente; sendo que assim as pragas, como os nomes injuriosos
são de sua natureza pecados mortais, e graves, como ensinam
uniformemente os Teólogos com o Mestre de todos S. Tomás. Ouçam pois,
os que injuriam com palavras afrontosas aos escravos, ouçam o que diz o
Santo Doutor, das contumélias: Como quer que as contumélias e injúrias
de palavra tragam
consigo a desonra daquele contra quem são
proferidas, quando quem as profere intenta por elas tirar a honra ao
próximo, então comete pecado de contumélia, tão grave e mortal, como o
é o furto ou a rapina. Porque qualquer homem não ama menos sua honra,
do que os mais bens da fortuna, que possui (r).
157. Ouçam agora os praguentos o que o mesmo Santo Doutor diz
das imprecações e pragas: As imprecações e pragas, de que falamos, é
pronunciar algum mal contra outro, ou como quem lho deseja, ou como
quem
lho manda. E desejar mal a outro, ou mandar-lho, é coisa
que repugna à caridade, com que se deve amar ao próximo; e por isso em
seu género é pecado mortal (s).
158. Bem vejo que esta doutrina era bastante para vos persuadir
que não é pecado tão leve o praguejar e dizer injúrias aos servos, como
muitos imaginais, se o mesmo Doutor Angélico não ensinasse no mesmo
lugar outra doutrina, com que parece que livra de pecado mortal a quase
todas as palavras injuriosas e pragas. A doutrina é: Que pode haver no
praguejar (o mesmo se há-de entender no dizer nomes afrontosos) pecado
venial, ou por razão de ser leve o mal que se roga, ou por não serem as
pragas proferidas com ânimo de fazer mal (I). Por isso ‚ costume mui
ordinário dos que se confessam, desculparem-se das pragas que rogam, e
dos nomes e conturmélias que disseram aos escravos, dizendo que foi com
paixão e cólera, e não com ânimo de que as pragas tivessem efeito, nem
para que
ficasse afrontada a pessoa do escravo. E dão a razão:
Porque tanto que lhes saiu da boca a palavra injuriosa ou a praga, logo
se arrependem e ficam muito sentidos de a haverem rogado, e dito aquela
injúria.
159. Eu não nego que não possa talvez a paixão de cólera ser tão
arrebatada, que tire totalmente o sentido e advertência, ou a deixe tão
débil e fraca, que no haja, deliberação bastante Para contrair culpa
grave; digo porém que ordiriáriamente não sucede assim, e que, não
obstante a paixão, há
a advertência que basta, e conseguintemente
a deliberação requisita para pecar mortalmente. A paixão é um eclipse
da razão; pois assim como os eclipses não chegam a escurecer o sol de
maneira que do dia façam noite; assim também as paixões e a cólera não
costumam escurecer de sorte a razão, que não fique bastante luz para
discernir o bem e o mal; porque se com a cólera e a paixão, não
houvesse advertência para o pecado, nunca o demónio tentaria com a
paixão e a cólera. Notai:
160. 0 fim, por que o demónio excita as paixões, é para nos
induzir mais facilmente ao pecado. Logo, se qualquer paixão e
indignação escurecesse o entendimento de tal modo que não deixasse
advertência e deliberação bastante para pecar ainda mortalmente: para
que era tentar-nos? Tempera ele os humores de sorte, quando nos provoca
a cólera, que perturbem o entendimento sim, para que não conceba tão
vivamente o mal que faz, e toda a
deformidade que nele há ; porém
nunca o perturba de
maneira que não conheça a malícia que basta
para pecar gravemente.
161. Para o demónio fazer bem o seu negócio e nos conquistar a
vontade para o consentimento do pecado, no há-de haver dia claro, nem
noite escura; há-de haver um ar pardo; isto é, há de estar o
entendimento nem totalmente claro, nem totalmente escuro. Não há-de
estar
totalmente claro, porque se conhecer clara e vivamente a
deformidade
da
culpa,
hão-de
as
vontades
aborrecê-la
e
fugir dela; nem há-de estar totalmente escuro, Porque se se
não
conhecer a gravidade do pecado, não há-de haver malícia nas vontades,
que o cometem. Diz Job que os olhos do demónio são corno os
resplandores da Aurora (u). Mas qual será
a proporção desta
semelhança? Agora a direi:
Os resplandores da aurora luzem s¢
entre o dia e a noite, quando nem a noite é totalmente noite, nem o dia
total, mente dia. E tais são os olhos do demónio; só se apuram entre o
dia e a noite da razão; quando o conhecimento da malícia da culpa não é
totalmente claro, nem totalmente
escuro, então é que olha o
demónio. E porquê? Porque o demónio só olha para o pecado, e como para
haver pecado, não há-de ser no entendimento nem tudo luzes nem tudo
trevas, senão um claro-escuro, como o tempo da
aurora; por isso
diz Job, que os olhos do demónio se parecem com os resplandores da
aurora: Oculi ejus ut palpebrx diluculi. E por isso, outra vez: ainda
que o demónio excite em nós as paixões, que nos escurecem os
entendimentos, regularmente falando não é de maneira que nos
tire
a luz necessária para pecar gravemente.
162. Nem o arrepender-se logo o senhor, depois de dizer as
pragas e nomes injuriosos aos senhor, é presunção
suficiente para
julgar que faltas-se o desejo de os ofender, diz Soto (x). Quem se
havia de atrever a afirmar certamente que não cometeu pecado mortal
grave, aquele que
tirando ao seu inimigo, diz que logo e quase no
mesmo tempo que deu a arma fogo, teve entranhável arrependimento de o
haver feito? Ninguém: porque o incorrer na
malícia do homicídio não
depende em coisa alguma da
vontade, que imediatamente se lhe
seguiu depois; senão da que houve no instante e actual exercício do
mesmo homicídio. Por isso quem tirou ao seu inimigo com vontade de o
matar no mesmo instante em que fez o tiro, não deixa de pecar
mortalmente, por mais que imediatamente se arrependa depois.
163. 0 mesmo, nem mais nem menos, se deve dizer no nosso caso.
Se naquele momento, em que se proferiu a injúria e praga, houve desejo
de que o escravo ficasse ofendido e injuriado, não deixam de ser
pecados graves, por mais que logo depois de proferidas se arrependesse
quem as proferiu. Logo o arrependimento, que se segue ao proferir os
nomes e as pragas, não é sinal certo de que faltasse o consentimento
necessário para haver pecado. Sabeis de que é indício certo? De
haverdes entrado em vós
e conhecido o mal que fizestes; mas não
de o não haverdes feito. Não é logo tão certo, como por ventura até
agora cuidastes, que as pragas e nomes injuriosos, com que costumais
descompor aos escravos, não cheguem a ter malícia mortal e grave, por
serem proferidas no fervor da cólera,
que vos arrebata e tira do
sentido.
164. E nem por ofenderdes gravemente a Deus, ou vos pordes em
perigo de o ofender praguejando e injuriando de palavras aos servos,
nem por isso (digo) vindes a conseguir o fim, que pretendeis, que ‚
por-lhes medo e
castigá-los, porque os escravos ou pouco ou nenhum
caso
fazem das vossas pragas e das vossas injúrias. E porque o
não fazem? Porque os escravos igualmetne podem castigar corri a língua
aos senhores, como os senhores os castigam a eles. Vós, para vos
vingardes do servo, armais contra ele uma trovoada de nomes e pragas; e
no mesmo tempo descarrega sobre vós o servo outra maior tempestade de
nomes ainda mais injuriosos, e de pragas ainda
mais medonhas; e por
cada uma vossa vos retorna ele muitas mil; e desta sorte se d por bem
pago e satisfeito, e vai por diante em sua rebeldia.
165. Entendam pois os senhores que as palavras, por mais prenhes
que vão de injúrias, maldições e pragas, não
servem para meter a
caminho os servos, porque, corno bem advertiu Salomão: 0 servo não pode
ser ensinado com palavras (Y). Logo com quê? Verberibus ac plagis,
comenta
Salazar: Com o castigo (-). Deixai os nomes, as
maldições, e, as pragas, e dai no servo o merecido castigo; porque com
aquelas o injuriais e pecais não só contra a Caridade, mas também
contra a justiça; e com este, além de fazerdes uma obra de
misericórdia, alcançareis a emenda do escravo, que é o fim pelo qual
se lhe d o castigo: Disciplina, ne
erret.
§ IV
Que no castigo dos servos
não devem usar os senhores de sevícia
166. É a sevícia um monstro tão abominável horroroso e indigno
da natureza humana, que Séneca julgou se não devia contar entre os
vícios dos homens, senão entre as barbaridades das feras. A crueldade
(diz o Estoico) não é vício humano. Alegrar-se com derramar sangue é
próprio e
natural das feras; é lançar de si e degenerar do ser de
homem, e tomar e vestir a natureza dos brutos (a). Por isso julgava eu
que era supérfluo encomendar nos senhores que se guardem de um vício,
que os faz tão semelhantes ás feras. Mas estai nos em tempos que é
necessário lembrar ao senhores e dizer-lhes que advirtam que são
homens; para que no castigo dos escravos não degenerem em brutos, que
arrebatados de sua natural braveza s¢ com derramar o sangue sossegam a
cólera. Deve pois o senhor castigar aos servos (como já disse e agora
torno a dizer), cometendo eles delito, pelo qual mereçam o castigo;
este porém deve ser tão moderado e gizado pela razão, que não passe os
limites de castigo e chegue a ser sevicia ou crueldade.
167. Antigamente podiam os senhores exercitar contra os escravos
os rigores da maior tirania; por que lhes era permitido pelas leis e
direito das gentes, tirar-lhes a vida com qualquer esquisito género de
tormentos, sem que ninguém lhes pudesse ir à mão e pedir conta do
homicídio, que cometiam. Porém com o tempo, vendo os Imperadores
que este domínio tão absoluto, e por isso tão contrário à razão
natural, fazia que os senhores castigassem aos escravos bárbara e
tiranamente, e por qualquer leve causa lhes tirassem a vida;
prudentemente julgaram que se devia
coarctar e restringir. E assim
decretou o Imperador Antonino (que só por isso merecia o título, que
lhe deram, de Pio) que de nenhum modo fosse lícito ao senhor tirar a
vida ao seu escravo; e que tirando-lha, incorresse na mesma pena, que
incorreria se matasse ao servo alheio (b).
168. E para impedir as mais sevícias dos senhores no
castigo
dos servos, decretou o mesmo Imperador, que se os servos cruelmente
castigados de seus senhores recorressem ao sagrado ou à está tua do
Príncipe, implorando o seu patrocínio, fossem obrigados os mesmos
senhores a vendê-los a outros, que os tratassem como pede a razão e
humanidade (c). E a razão, que dá o Imperador para esta determinação,
é verdadeiramente admirável: Porque (diz) convém ao bem público que
ninguém use mal, nem ainda do seu (d).
169.
Mas
ainda
que
o
Imperador
Antonino
fizesse
esta
Constituição e a mandasse guardar por todo o Império Romano, não foi
ele contudo o primeiro que restringiu e limitou em Roma o poder
absoluto dos senhores no castigo
dos servos; porque seu Pai o
Imperador Adriano condenou
a cinco anos de degredo a Umbrícia (que
era das principais matronas de Roma), porque havia por causas muito
leves executado castigos atrozes em suas escravas (e). E já no tempo
em que florescia Séneca. (que foi no Império de Nero) consta que não
havia em Roma este absoluto domínio de poder o senhor tirar a vida e
usar de crueldade com os escravos; porque (como refere o mesmo Séneca)
havia tribuna e julgador para conhecer das injúrias que os Senhores
faziam aos servos, e refrear a tirania com que
os castigavam, e a
avareza com que lhes faltavam ainda com o necessário sustento (f).
170. Nesta parte porém não remos os Portugueses que invejar a
Roma os Adrianos e Antoninos Pios, por ter dado Deus à Coroa de
Portugal um Rei, que esmerando-se em
todas as mais virtudes, é
singularíssimo na piedade. E como esta costuma fazer o maior emprego,
onde mais realça
a miséria e necessidade; por isso vemos, que Sua
Majestade
o Senhor Rei Dom Pedro (que Deus nos guarde) entre os
cuidados que pede tão dilatada Monarquia, parece não tem outro mais que
o com que procura suavizar o jugo da servidão e cativeiro dos escravos,
que vivem nesta e nas
mais Conquistas de Portugal. E no
particular, de que tratamos, é incrível o zelo que mostra, para que não
haja excesso no castigo que dão os senhores aos servos. 0 que bem prova
o parágrafo de uma Carta sua, que me veio à mão, escrita no ano de 1698
ao Governador e Capitão geral Dom João de Lancastro. Fidalgo, que no
heróico de suas acções mostra bem o Real sangue, que por um e outro
lado lhe anima as veias, e no tempo em que isto escrevo governa este
Estado do Brasil, mais com amor de Pai, que com autoridade de Capitão e
General. As palavras de Sua Majestade trasladadas de verbo ad verbum
são estas:
171. Governador e Capitão geral do Estado do Brasil, Amigo. Eu
El-Rei vos envio muito saudar. Sou informado que nessa Capitania
costumam os senhores que têm escravos, Para os castigarem mais
rigorosamente, prendê-los por
algumas partes do corpo com argolas de
ferro, para que assim fiquem mais seguros para sofrerem a crueldade do
castigo, que lhes quiserem dar. E porque este procedimento é inumano e
ofende a natureza e as leis, Vos ordeno, que com prudência e cautela
procureis averiguar o que há nesta matéria exactamente, ‚ que achando
que assim é, o façais evitar pelos meios que vos parecerem mais
prudentes e eficazes. Até aqui o Sereníssimo e zelosíssimio Rei, cujas
palavras deixo à ponderação de cada um, porque quero dar fim ao meu
Discurso.
172. Suposto, pois, que o castigo deve ser moderado pela razão e
não governado pela paixão: pergunto eu agora ao senhores do Brasil, se
é castigo racionável queimar ou atanazar (que tão ímpio e cruel é este
género de castigo) com lacre aos servos; cortar-lhes as orelhas ou os
narizes; marcá-los nos peitos e ainda na cara; abrasar-lhes os beiços
e a boca com tições ardentes? Deixo outros castigos ainda mais
inumanos, que os ciumes do senhor ou da senhora fazem executar nos
escravos ou nas escravas, porque são tão indignos de virem à pena, que
não permite a modéstia
relatá-los neste lugar. Que vos parece, digo,
senhores do
Brasil? Não está claro que são sevícias esta
as mais bárbaras e inumarias, e que s¢ caberiam bem nos ânimos crueis e
feros dos Mezêncios, dos Fálares, e dos Diomedes? E destes rigores
assim exorbitantes, com que os senhores
martirizam os escravos, que
se segue? 0 que vemos suceder
a cada passo. Porque não podendo os
tristes servos sofrer as tiranias do senhor, para se livrarem do
cativeiro tomam por suas mãos a morte; e fazendo-se algozes de si
mesmos, acabam a vida ou às facadas por suas próprias mãos, ou
enforcados nas
árvores, ou afogados nas
águas, ou precipitados das
janelas.
173. Sobre este último género de morte vos quero referir o caso
mais trágico e lamentável, que viu Espanha. Deliberou-se um escravo a
livrar-se do cativeiro, e tomar vingança das tiranias, que com ele
usava seu senhor. E que fez? Esperou que saisse o senhor de casa;
fechou e ferrolhou por dentro as portas, para que se não pudessem abrir
de fora; e tornando pela mão a dois filhos do mesmo senhor ainda
meninos, subiu, e os levou consigo ao eirado da casa. Voltou finalmente
o senhor, bateu à porta; e porque ninguém lhe respondia, começou, como
costumava, a ameaçar ao escravo. Ouviu o escravo, (que para isso estava
à espera), e chegando à janela com um dos meninos nos braços, 'disse ao
senhor, que se queria a seu filho, que aí lho dava, lançando-lho aos
pés feito em pedaços. E logo tomando nas mãos o segundo, perguntou ao
Senhor, que lhe daria pela vida daquele filho, que já era o único. 0
triste senhor e lamentável pai, prostrando-se por terra, e brotando
pelos olhos o coração em lágrimas, lhe pedia que, pois havia morto o
primeiro, não matasse também o segundo; prometendo-lhe não só a
liberdade, mas tudo o mais, que quisesse de sua fazenda. Mas assim como
o senhor se não havia nunca movido ás vozes do servo, quando o
castigava; assim o servo se não moveu agora ás vozes e gemidos do
senhor. Deixa cair das mãos o menino, e após ele se precipita também a
si mesmo, dizendo primeiro estas palavras: Aprende, daqui inumano e
cruel senhor, aprende daqui a tratar com piedade os teus ser vos (g).
Deste exemplo tão raro, e de outros, que cada
dia vemos, bem
podiam aprender os senhores a usar com os servos de castigos mais
moderados do que costumam, e mais sofríveis à fragilidade humana,
deixando todo o género de sevícia e crueldade.
174. E não devendo haver-se o senhor com sevícia e tirania no
castigo dos escravos, ainda quando as culpas são graves e dignas do
maior rigor: que ser é quando a culpa do servo é tão pequena e tão
leve, que quase nem
repreensão merece? Este género de crueldade tão
abominável, se o houvesse entre nós, não era digno da censura e
repreensão, que lá
deu antigamente o Satírico aos que não medem o
castigo pela culpa dos servos?
... Cur non
Ponderibus, modulisque suis ratio utitur? ac res
Ut quceque est, ita suppliciis delicta coercet (h)?
Porque na balança da razão não há-de haver peso e medida para
igualar a culpa ao castigo?
Si quis eum servurn, patinam qui tollere jussus,
Semesos pisces, tepidumque ligurierit jus,
In cruce suffigat, Labeone insanior inter
Sanos dicatur? Quanto hoc furiosius, atque
Majus peccatum est (i)?
Será
bem que mandando o senhor levar da mesa o prato com os
obejos, se o servo ou para satisfazer à gula ou à fome, tomar alguma
parte deles, o mande por isso o mesmo senhor cravar em uma cruz? E se
assim o fizer, não hão de dizer dele que é mais doido que os mesmos
doídos? Julgue-o cada qual; como poder
também julgar de outra sem
razão e crueldade praticada já em Roma.
175. Védio Polião (1), um dos senadores romanos, porque um
escravo seu lhe quebrou um vidro cristalino, o mandou lançar em um
lago, onde sustentava grande
número de moreias, para que fosse delas
comido. E que
crueldades deste género pudera eu relatar dos
senhores do Brasil? Pois por pouco mais de nada chegaram alguns a
lançar vivos nas fornalhas os seus escravos e a tirar-lhes por vários
modos, bárbaros e inumanos, a vida. Castiguem-se, os escravos,
merecendo eles o castigo; seja porém
de sorte que, ou seja grave ou
leve a culpa, nunca chegue o castigo a ser sevícia.
176. E para que o não chegue a ser, que é necessário? Que o
Senhor não se deixe levar da primeira vista do delito e do primeiro
ímpeto da cólera. Os delitos à primeira vista são, mais horrorosos,
espantam mais, e acendem mais a ira. E as paixões, assim como os
ventos, são em
seus princípios mais violentas e arrebatadas. Por
isso se lhes deve pôr tempo em meio, e não executar logo o castigo. Nem
vos admire, que eu queira de homens sujeitos a paixões, mais vagar no
castigo dos servos; pois ainda o mesmo Deus, em quem não pode cair a
mínima sombra de cólera ou de paixão, não se acelera, mas anda passo a
passo, quando se resolve a castigar.
177. Que servo tão rebelde aos mandados de seu
senhor pode
haver, como Adão aos preceitos de Deus? E apressou-se Deus para lhe dar
o merecido castigo? Vede o que diz o texto. Diz que quando Adão ouviu
que Deus vinha a desagravar-se da injúria, que contra o mesmo Deus
tinha cometido, vinha andando como quem passeia e mede os passos (m).
Se houve pecado, que merecesse mais acelerado castigo foi este de Adão,
assim por ser cometido pelo mais sábio e entendido homem, que houve, e
há -de haver, como também por ser a origem de todos os mais pecados.
Logo, porque se há Deus com tanto vagar? Porque não corre e apressa o
passo, para que fique logo castigada tão precipitada desobediência? A
razão (a meu ver) foi porque quis o Senhor ensinar aos senhores a que
não se acelerassem nos castigos dos servos. Não havendo em Deus
paixões, quis obrar para nosso exemplo como se estivesse sujeito a
elas; por isso não corre, passeia, pondo tempo em meio entre a culpa e
o castigo. Imitai, senhores, ao supremo Senhor; e quando houverdes de
castigar o servo, ide devagar, deixai que esfrie o calor da indignação,
e dai tempo para sossegar a paixão e cólera. Quem dá o castigo
apaixonado e colérico, dá
como cego; quem dá como cego, não vê por
onde dá; e por isso não repara em castigar bárbara e cruelmente.
178. Dir-me-eis o que costumam dizer muitos que se castigais os
escravos no calor da cólera, é porque depois de passada a paixão, não
estais capazes de lhes dar o castigo; e se houvésseis de esperar que
ela sossegasse poderiam vossos escravos fazer o que quisessem sem temor
algum
de castigo, por não estar em vossa mão dar-lho depois que
esfriou a indignação. Mas não vedes, que se esta razão fosse
concludente, nenhum criminoso pagaria o seu delito? Que diríeis ao
julgador, se requerendo vós perante ele de vossa justiça contra quem
vos matou o vosso filho, vos
respondesse que ele não fora o
injuriado, e portanto que não tinha paixão alguma contra quem o havia
morto, e que não podia a sangue frio condenar à morte a ninguém?
Parecer-vos-ia boa esta resposta? Pois igualmente é má
a vossa
desculpa.
179. Quem é que manda dar o castigo aos delinquentes? A razão ou
a cólera? Claro está que a razão. Pois se a razão é a que o manda dar,
e a cólera tira a razão; como esperais vós pela cólera para dar o
castigo? Há-de ser homem racional como a víbora, que se não se
enfurece, não
lança de si o veneno? 0 único motivo no castigo dos
escravos deve ser só a emenda de suas vidas; hão-se de castigar, para
que não tornem a cometer os mesmos erros, pelos quais são castigados:
disciplina, ne erret.
§ V
Mostra-se que 0 castigo dos escravos
não deve passar de açoites e prisões moderadas
180. Até agora só dissemos o castigo, que não hão-de dar os
senhores a seus servos, agora direi qual deve ser o que lhes hão-de
dar, para que ponhamos o rematea este discurso. Qual pois deve ser o
castigo que devem procurar saber os senhores, e eu aqui lhes quisera
ensinar?
Já o declarou o Espírito Santo no Eclesiástico, dizendo:
Servo malevolo (ou, como se colhe do texto grego, malefico ou
malitioso) tortura et compedes (n). Tortura flagellorum (comenta Hugo
Cardeal) et compedes vinculorum (o). Tendes algum servo mau, malicioso
e inclinado ao vício?
Castigai-o, mas seja o castigo ou de
açoites ou de ferros. Estes são os castigos próprios dos servos, e de
que usaram sempre os senhores prudentes e discretos de todas as nações
do mundo.
181. Primeiramente, obrando o servo contra o que
deve, deveis
usar dos açoites: Tortura fiagellorum. Não sejam porém estes vais e
tantos, que cheguem a rasgá-lo e feri-lo de sorte que coma em fio o
Sangue, como bàrberamente costumam alguns senhores. Mandava Deus na
Lei Velha, que cometendo-se algum crime, pelo qual o delínquente,
merecesse açoites, os juízes lho mandassem dar, e que a medida deles a
tomariam da qualidade da culpa, contanto que os açoites não passassem
de quarenta (P)
E a razão de taxar este número, a deu o mesmo Deus:
para que não fique o teu irmão feia e indignamente
maltratado, e o
vejas com teus olhos cruelmente chagado e ferido (q).
182. Foram tão exactos na observância desta Lei os Hebreus, que
para que não excedessem o número dos açoites, que estava nela. taxado,
mandando a mesma lei que fossem só quarenta os açoites que se haviam de
dar ao culpado; eles nunca chegavam a. dar os quarenta, sempre os davam
de menos. Daqui se entender
a razão, porque desejando os mesmos
Hebreus tão ansiosamente beber o sangue a S. Paulo, e condenando-o por
vezes a
açoites; confessa contudo e afirma o mesmo Apóstolo na
Epístola Segunda. aos de Corinto, que nunca chegou a receber o número
dos quarenta todo, senão que sempre lhos davam de menos: Quadragena,
una minus, accepi (r),
porque podia mais naquele povo o temor de
não guardar a lei, do que o ódio com que perseguiam ao Apóstolo. E
suposto que esta Lei, como cerimonial, esteja já hoje derrogada, e não
obrigue aos Cristãos, contudo podem bem aprender dos Hebreus a não
castigar os servos com número
excessivo de açoites.
183. Mas, por que pode haver nos escravos delitos tão graves e
atrozes, que mereçam muito maior número impedir aos senhores o direito
e
têm para que lhos hajam de dar. E para procederem como é justo,
devem fazer neste caso o que fazem os médicos, quando receitam a purga
ao enfermo debilitado e fraco. Se a não pode levar toda de um golpe sem
Perigo de maior
dano; dividindo-a em partes, mandam que se lhe dê
assim
dividida, de tal sorte que em um dia tome uma parte, outra
em outro dia; e assim a vem o enfermo a tomar toda. Do mesmo modo se
há-de haver o senhor com o escravo, quando o crime, que cometeu, merece
maior número de
açoites do que acabamos de dizer. Os açoites são
medicina da culpa; e se os merecerem os escravos em maior número do que
de ordinário se lhes devem dar, dêem-se-lhes por partes, isto é, trinta
ou quarenta hoje, outros tantos daqui a dois dias, daqui a outros dois
dias outros tantos; e assim dando-lhes por partes, e divididos poderão
receber todo
aquele número, que se o recebessem por junto em um
dia, chegariam a ponto ou de desfalecer dessangrados, ou de acabar a
vida.
184. Desta sorte, na opinião de Abulense, se houveram os
Hebreus, quando açoitaram a S. Paulo, como também, acabamos de ver (s).
Estava condenado o Apóstolo a ser açoitado com duzentos e tantos
açoites; mas por que a lei defendia que a nenhum réu se dessem mais de
quarenta, dividiram-lhos em cinco partes, dando-lhe por cada vez trinta
e nove. Assim entende este grande Escritor aquelas palavras do mesmo S.
Paulo: Quinquies quadragenas, una minus, accepi.
185. E sendo caso que o escravo assim castigado não se emende e
não deixe a rebeldia, domai-o corri ferros
prendendo-o ou com
grilhões, ou com correntes, compedes vinculorum; porque nenhum castigo
conduz mais para a doutrina e bom ensino dos servos (ainda com vantagem
aos açoites) do que as prisões. Diz o Espírito Santo no Eclesiástico,
que a boa doutrina é o grilhão aos pés dos maus e culpados (1); porque
os ata e prende, para que não façam desatinos. Assim expõem este lugar
os intérpretes; porém a mim me parece que se pode dizer também às
avessas: que as prisões são uma grande doutrina, para que os maus caiam
em si e emendem a vida. 0 que bem se deixa ver em Manassés; o qual
desprezando a doutrina de Isaias, a quem mandou tirar a vida, para lhe
não ouvir
a verdade; e por isso permitindo Deus que fosse levado a
Babilónia cativo e preso com correntes e grilhões (u), vendo-se
angustiado entre ferros, levantou o coração a Deus, e fez penitência
dos pecados passados (x).
186. Haja açoites, haja correntes e grilhões, tudo a seu tempo e
com regra e moderação devida; e vereis como em breve tempo fica domada
a rebeldia dos servos; porque as prisões e açoites, mais que qualquer
outro género de castigos, lhes abatem o orgulho e quebram os brios. E
tanto,
que basta só que os veja o servo, para que se reduza e
meta a caminho e venha à obediência e sujeição de seu senhor. No tempo
em que os Citas andavam ocupados em guerras com seus contrárias (Y),
revelaram-se os servos, e apoderaram-se de toda a Província da Cítia.
Voltando os senhores, foram recebidos de seus servos em tom de batalha,
na qual os mesmos senhores ficaram vencidos, e os servos vencedores; e
tornando por vezes a tentar nova batalha e fortuna, sempre saiam com a
pior. Até que finalmente um deles saiu com notável invento e indústria;
e foi, que
esta guerra servil era mal governada, por se fazer com
armas de ferir, devendo ser com instrumentos de açoitar e prender. E
assim, aprovando todos os mais este parecer, em vez de lanças e setas,
armaram-se todos de correntes, algemas e azorragues, e sairam a campo
contra os servos.
Chegaram os exércitos a avistar-se; e vendo os
servos nas mãos de seus senhores as prisões e mais instrumentos, com
que os costumavam prender e castigar, desmaiaram logo e perderam o
ânimo e o brio; e não havendo já
algum deles, que se atrevesse a
resistir entregaram-se à descrição e vontade dos senhores. Pois se as
prisões e açoites só vistos bastam para refrear a insolência dos
servos, que farão experimentados?
187. E se o escravo chegar a cometer delito, tão grave, que não
sejam castigo suficiente eis açoites nem os ferros, por merecerem o
último suplício: que fará neste caso o senhor? 0 que fará é eu o não
sei; mas direi o que deve fazer, no caso que queira que se lhe dê a
pena de morte. Deve entregá-lo à justiça, para que conhecendo da causa
o castigue conforme o merecimento de suas culpas. Quando José deixou a
capa na mão de sua senhora por não consentir nos amores e afagos, com
que o tentava, julgando ela, que ele sendo seu escravo a desprezava,
para tomar
deste que imaginava crime, a vingança, acusou ao mesmo
José diante de Putífar seu marido, dizendo que a solicitara, mostrando
em testemunho de sua verdade (ou, para dizer melhor, de sua falsidade)
a capa, que José lhe largara nas mãos. Ouvindo esta queixa Putífar, diz
o texto, que se
indignara gravemente (z). E Seria bastante esta
ira para o precipitar à vingança e lavar logo com o sangue do escravo a
mancha, que se persuadiu intentara pôr em sua honra? Se fora tão
arrebatado como os senhores dos nosso tempos,
bastara, e ainda muito
menos. Porém como entendesse
que o senhor não ‚ Senhor da vida do
servo: que fez?
Entregou o escravo á justiça, e mandou-o meter no
cárcere público, para que ventilando-se, a causa no Tribunal de Menfi,
fosse castigado com pena proporcionada ao seu
delito. 0 mesmo
deve fazer qualquer senhor, quando o seu escravo chega a cometer crime,
que não cabe na sua alçada. Quero dizer: quando o senhor quer que o
escravo seja castigado com a pena, que o seu crime merece, e ele lha
não pode dar, deve remetê-lo à justiça; e ela lhe dar é se a merecer, a
sentença de morte.
188. Mas contra isto se me oferece uma forte objecção, a qual
nos Portugueses, que tão amantes são da honra e do pundonor, não pode
deixar e fazer grande impressão e abalo. A objecção é esta: Que
entregar o servo criminoso à justiça, não diz bem com a nobreza e
fidalguia do senhor.
Confesso, que não acabo de entender onde está
aqui o pundonor e o timbre. Basta que não há de ser afronta da nobreza
do senhor tirar a vida ao seu escravo bárbara e inumanamente; e há-de
ser menoscabo seu entregá-lo à justiça, para que o castigue com o rigor
que o crime pede e manda a lei! Basta que quer antes o senhor castigar
ao escravo com a demasia e excesso, a que a sua paixão ou impiedade o
estimula; quer antes parecer verdugo e o ofício de verdugo; e não acha
que é isto ofensa de sua
fidalguia! E se deixar o escravo à
Justiça e arbítrio dos julgadores, há-de ser afronta e menoscabo e
desdoiro de sua pessoa!
189- Tomara saber, em que se funda a maior razão de que, se
entregardes o vosso escravo à Justiça, fiqueis menos airosos; e não
fiqueis, sendo vós mesmos os algozes, que com o castigo demasiado
talvez lhe tirais a vida. Mas já dei na razão, que neste caso pode ser
outra; e antes que chegue a explicá-la, havemos primeiro de supor o
caso.
Supondo que cometeu o vosso escravo um crime, pelo qual não
merece nenhum outro castigo, senão a morte, e só com a morte fica
cabalmente satisfeito, e é bem e quereis que se lhe dê. Suponde depois
disto que vós de nenhuma maneira lha podeis dar, sem pecado, por vos
estar proibido (como acima tenho dito) pelo direito humano e divino,
dardes a morte ao vosso servo. Isto suposto: que fareis neste caso? Se
dais a morte ao vosso escravo, ou lhe deis castigo tal de que se siga a
morte, pecais gravemente contra Deus; se o entregais à Justiça para que
o castigue, dizeis que ficais
menos lustroso. E para que se vos não
siga algum desar na fidalguia, escolheis antes castigar o escravo com
tal excesso, que se lhe siga a morte, do que entregá-lo à justiça;
antes escolheis matá-lo pecando, do que entregá-lo à justiça sem
pecado. E disto qual é a razão, que é a que agora buscamos?
190. A razão não pode ser outra, senão que quereis antes a
ofensa de Deus, contanto que não se vos siga a
mínima nódoa (como
dizeis) no crédito, do que guardar a lei do mesmo Deus e seus
preceitos; antes quereis ficar
honrado e havido por homem timbroso,
dando a morte ao vosso escravo, do que por homem bom Cristão, entre,
gando-o à Justiça. E esta (torno a dizer) é a razão e nenhuma outra.
Vede agora em que pondes a vossa fidalguia: em serdes maus Cristãos e
em ofenderdes a Deus.
E haverá quem diga que a e o ofenda? E se o
disser algum, não direis todos que erra, e está muito longe de toda a
verdade e razão? Pois como não hei-de
dizer eu que errais, e ides
muito longe da verdade, quando
dizeis que quereis antes a ofensa
de Deus, do que faltar ao timbre da fidalguia; como se pudesse haver
fidalguia contra a lei de Deus.
191. Em resolução, senhores: quem diz que entregar o senhor à
Justiça o seu escrevo ‚ contra os timbres e pundonores da nobreza, erra
e diz uma coisa contra toda a razão, porque nenhuma razão e nenhuma lei
condena ao
senhor, que entregar o seu escravo à justiça, para que o
castigue, no caso em que o mesmo senhor lhe não pode
dar o castigo,
que o delito do escravo merece. De mais de que, sendo toda a fidalguia
e todos os mais bens de sursum, como diz Santiago, descendens a Patre
luminum (a), isto é, dados por Deus e vindos do Céu; como pode ser que
entregando o senhor à Justiça o escravo para não ofender a {Deus, se
ofenda- a fidalguia? E assim, deveis ter entendido que o maior timbre
da fidalguia deve será guardar a Lei de Deus e fazer o que mandam os
seus preceitos.
192. Direis: pois, Padre, neste mesmo caso não haver outro meio,
com que se remedeiem as coisas? 0 servo merece a morte; eu não lha
posso dar, nem o quero entregar à Justiça, para que lha dê; pois de
força hei-de ceder do meu timbre e entregar-lho? Não haver
outro
caminho, por onde fique castigado o servo, e eu não ceda do meu
pundonor? Digo que sim há, e é este: se o castigardes com prisões
continuamente por largo tempo, e com açoites interpolados, até que
julgueis prudentemente que está
satisfeito o delito. Ou também
degredando-o vendido para outra parte; mas atendendo sempre às
condições acima ditas, se for casado. E desta sorte, sem ofender a lei
de Deus, podereis emendar o vosso escravo, dando-lhe o castigo
moderado, e só a fim de que se corrija e não erre:
disciplina, ne
erret (1).
DISCURSO IV
De quarta obrigação dos senhores
para com os servos
193. A quarta e última obrigação dos senhores é dar o
trabalho aos servos, para que com o ócio se não façam
insolentes: opus, ne insolescat. Há senhores, que nisto pecam
por
defeito;
porém
os
mais
pecam
por
excesso
Pecam por defeito os que os deixam viver à larga sem ocupação
nem, trabalho. Pecam por excesso os que os
oprimem com
trabalhos superiores a suas forças, ou por excessivos ou por
demasiadamente
continuados.
E
porque
ser
o
trabalho
demasiadamente pouco ou demasiadamente muito, tudo é a meu e
danoso para o servo; por isso veremos primeiro como os
senhores não devem deixar estar ociosos
os escravos, mas
ocupá-los; e depois trataremos da moderação, que devem guardar
no trabalho que lhes dão.
§ I
Que os senhores devem ocupar aos
servos no trabalho, Para que mereçam
o sustento e não se façam insolentes
contra os mesmos senhores
194. No primeiro Discurso mostrei a obrigação precisa,
que têm os senhores de dar o sustento ao servo, para que não
desfaleça: panis, ne sucumbat. Porém assim como é justo que o
senhor não falte a seu escravo com o pão; assim também é
justíssimo que o mesmo escravo não falte a seu senhor com o
serviço, e mereça o pão que come. Mas para que o possa
merecer, deve o senhor aplicá-lo ao serviço. Diz Aristóteles,
(como já
vimos atrás) que o sustento, que o senhor dá
ao
escravo, é como o jornal com que lhe paga (b). Pois se a paga.
se não deve ao jornaleiro, senão depois do trabalho, quem não
vê que o mesmo se há-de dizer do sustento devido ao servo?
195. Esta, a meu ver, é a razão, porque tratando o mesmo
Aristóteles das obrigações dos senhores para com os servos,
deu o primeiro lugar ao trabalho, e o segundo ao sustento,
tria cum sint, opus, cibus, et castigatio (c). Porque suposto
que quem trabalhar, há-de comer para poder resistir ao
trabalho, também quem comer há-de trabalhar
para merecer o
que come. Isto, que ensinou Aristóteles na especulação, seguiu
na praxe aquela Mulher forte, cujas virtudes na opinião de
Salomão não tem preço (d).
196. Desta refere o mesmo Salomão que se levantava
antes de amanhecer (c). E a que fim era tanto madrugar? Para
repartir aos domésticos a presa e o sustento às escravas (1).
Mas que presa era esta, que lhes repartia? Era a ração, que
lhes dava, como se colhe da versão dos Setenta (9). De maneira
que esta Mulher forte (diz
A Lápide) prevenindo
as madrugadas da aurora, repartia aos escravos e às escravas a
ração e as tarefas (h). Agora o meu reparo.
197. 0 sustento que esta Mulher forte dava aos escravos e
escravas, porque se há-de chamar presa, praedam? Se eles elas
o furtassem, como muitos e muitas costumam, bem era que se
chamasse presa; porém se ela lho dava, dedit, porque se há-de
chamar presa, praedam? A razão se há-de tirar do texto hebreu,
onde a palavra,
tareph, que corresponde ao praedam da
Vulgara, e no escas dos Setenta, significa propriamente o
sustento, que buscam as feras com sua indústria e trabalho
(i). E como sustento, que esta Mulher forte dava aos escravos
e escravas, fosse ganhado com o suor de seu rosto, e fosse
paga do seu trabalho (1); por isso com grande propriedade se
chama
este sustento presa, deditque praedarn. Notai agora a
grande providência desta Mulher, a qual entendendo que os
servos e às servas não podiam trabalhar sem comer, e não
deviam comer sem trabalhar, no mesmo tempo
repartia entre
eles a ração e as tarefas: Deditque escas
dornui, et
opera ancillis, para que houvesse mútua correspondência entre
o sustento e o trabalho, de sorte que tendo os servos o
sustento pudessem trabalhar, e tendo o trabalho pudessem
merecer o sustento.
198. Devendo pois os escravos merecer o que comem,
justo é que trabalhem; e sendo justo que eles trabalhem, justo
‚também que o senhor os ocupe e os não deixe andar ociosos;
principalmente no tempo em que isto escrevo, pois tanto nos
aperta a carestia. Que razão pode haver, para que os senhores
do Brasil sustentem das portas a dentro
tão grande
número de ociosos e de ociosas? Porque lhes não hão-de meter
na mão uma enxada, para que plantem mantimentos, e tenham com
quase sustentem os mesmos senhores a si e a quem lhes
trabalha? Basta que as senhoras do Brasil hão-de estar
padecendo há tantos anos os rigores
da fome, sustentando no
estrado as escravas a fazer rendas,
que lhes não rendem
mais que ociosidades; e não hão-de consentir quê os senhores
as mandem para as lavouras a grangear o sustento? Não era mui
justo que a estas senhoras se lhes atalhasse o caminho a todo
o mantimento, e que perecessem à fome, por quererem viver à
dependência do que outros plantam e trabalham, podendo elas
valer-se de suas escravas para se sustentarem? Se os escravos
e escravas não hão-de servir ao menos para ajudar a seus
senhores a sustentar a vida, não sei para que se compram com
tão grande gasto! Só para sustentar o fausto e vaidade, e para
que haja muitos a quem mandar? E parece-vos esta vaidade,
digna de ser comprada não só com dinheiro, mas ainda com as
muitas pensões e pesares que traz consigo o ter muitos servos?
Isto é (diz o Petrarca) muitas dissensões, muitas contendas e
muitas guerras domésticas (m).
199. Mas não é esta a maior razão, porque devem os
senhores ocupar aos servos e não, lhes, permitir que andem
ociosos e vagabundos. A razão mais eficaz e urgente é a que
dizíamos. Para que se não façam insolentes, e para que não
busquem traças e modos com que se livrem da sujeição de seu
senhor, fazendo-se rebeldes e indómitos:
opus, ne
insolescat.
200. Enquanto o senhor traz o servo ocupado, não cuida
esse em outra coisa (diz o Espírito Santo) mais que no
descanso (n). Porém se lhe larga a mão, logo aspira à
liberdade e busca traças para se livrar da sujeição(0). Assim
interpreta este texto Palácio, doutíssimo Expositor das
Escrituras: Se cansardes o servo com o trabalho, desejará
algum descanso, mas não tratar
de deixar a sujeição (P).
Porém se lhes deres larga para que ande ocioso e folgado, logo
há-de maquinar traças para sair do cativeiro (q).
201. 0 trabalho pois é o melhor remédio para trazer os
servos sujeitos e bem domados. Só trabalhando eles, pode viver
descansado o senhor. Assim o dá a entender a Versão dos que
lêem do Grego. Exercitai o vosso servo no trabalho e achareis
descanso (r). 0 trabalho do servo (diz A Lápide) é descanso do
senhor; porque enquanto
o servo fatigado do serviço
anela e aspira a algum repouso, não cuida, nem trata de se
rebelar contra seu senhor (5).
202. E esta é a razão, porque é tão necessário que o
senhor ocupe e faça trabalhar os escravos: para os trazer
sujeitos, sossegados e mansos. Já
disse que os servos não
devem ser tratados como jumentos; contudo não se pode negar
que os escravos, regularmente falando, participam de uma má
qualidade destes animais. 0 jumento, quando está ocioso e sem
trabalhar, faz-se manhoso e rebelão; e se depois
o querem
sujeitar à carga, tira coices e não quer admiti-la.
0
mesmo sucede nos servos, se andam mui folgados; fazem-se
contumazes e rebeldes, e querendo o senhor apertar com eles,
não fazem caso do que se lhes manda. E para que não cheguem a
estes pontos, qual é o remédio?
203. 0 Eclesiástico no-lo dirá . Pois igualmente o
dá
para amansares jumentos e os escravos. 0 jugo e as
rédeas amansam a ferocidade dos brutos; e o serviço contínuo a
contumácia dos servos (t). Toma o Espírito Santo a metáfora
dos animais indómitos, como são os cavalos e os toiros; e diz
que assim como o toiro, por bravo e feroz que seja, posto no
jugo se amansa e aprende a servir a seu dono; e assim como o
cavalo, ainda que indómito, se deixa reger
e governar pelo
freio à vontade do cavaleiro; assim o servo exercitado do
senhor com o trabalho contínuo aprende a se lhe sujeitar e
obedecer. Em próprios termos o disse de Santo Caro (u). Logo
os senhores, que quiserem ter os servos sujeitos, obedientes e
humildes, exercitem-nos
continuamente no trabalho, e não
os deixem viver ociosos e
_dêmasiadamente folgados; porque
só a ocupação e o trabalho faz que não sejam insolentes, opus,
ne insolescat.
§ II
Que devem os senhores dar o trabalho
aos servos, para que não se façam
insolentes contra Deus
204. Muito menos devem consentir os senhores ócio aos
escravos, para que se não façam insolentes contra Deus,
desmandando-se em vícios e pecados. É o ócio (diz S. Bernardo)
mãe de todas as leviandades e ainda das piores, que são os
vícios, e madrasta de todas as virtudes (x). E se isto é o
ócio geralmente em todos, muito mais o é nos
escravos;
porque sendo mau para todos, para os escravos é péssimo, por
ser o único mestre de suas maldades. Daqui vem, que inculcando
o Espírito Santo ao senhor que ocupe e não deixe viver o servo
ocioso (Y); dá por razão que a ociosidade tem ensinado aos
escravos muita malícia, Multam enim malitiam docuit ociositas
(z). Servorum, comenta Lira. De sorte que o ócio é a escola,
onde os escravos aprendem a ser viciosos e ofender a Deus.
205. Bem sei que não só os cativos e os Pretos, senão
também os livres; e os Brancos aprendem a pecar debaixo do
magistério do ócio, acho contudo entre uns e outros grande
diversidade. E qual é? É que os Brancos para serem bons
Mestres da arte de pecar, necessitam de lições mui repetidas,
e por isso, é necessário que frequentem por
largo tempo
as classes do ócio; e os Pretos não necessitam de muito tempo.
Com quatro dias de lição ficam Mestres em artes e Doutores da
malícia. Mas qual é a razão desta diversidade? A razão é a
mesma, porque na mesma classe debaixo da disciplina do mesmo
Mestre, e ainda com igual aplicação, se fazem uns logo
Estudantes da primeira suposição, e outros só depois de muitos
anos. Isto é efeito da
maior ou menor habilidade, que
cada um tem. 0 mais hábil logo aprende, o menos hábil aprende
mais devagar. E como os Pretos são sem comparação mais hábeis
para todo o género de maldadess, que os Brancos, por isso,
eles com menos tempo de estudo saem grandes licenciados do
vício na classe do ócio.
206. Esta grande habilidade para os vícios, com que os
Pretos levam singular vantagem aos Brancos, o mesmo Deus a
declarou por Amós, comparando os filhos de Israel com os
Etíopes. Sois porventura na minha estimação outra coisa mais
que uns Etíopes (a)? Pois em que se pareciam
os filhos de
Israel com os Etíopes? Na corrupção dos costumes, na má vida,
e nos vícios, diz o Padre Gaspar Sanchez,
citando em
abono desta sua exposição a S. João Crisóstomo S. Cirilo e
outros (b). Pergunto agora. Faltavam nações, brancas e
viciosas, com que pudesse comparar Deus os filhos de Israel?
Porque não diz que se pareciam com os povos de Sodoma e
Gomorra, como havia dito por Jeremias (c), ou com os filhos
dos Amorreus e Ceteus, como lhes; lançou em rosto por Ezequiel
(d), senão os filhos de Etiópia: Numquid non ut filii
Aethiopum vos estis mihi, filii Israel?
207. A razão se colhe de S. Jerónimo, o qual diz que
nas Escrituras se chamam Etíopes não, quaisquer pecadores,
senão os que são tintos com a cor preta de todos os vícios
(c). E como não há
nação mais inclinada e entregue, aos
vícios, que, a dos Pretos, por isso a eles compara Deus os
filhos de Israel, para que entendessem que não havia género de
vícios, em que não andassem engolfados: Nun,
quid non ut
filii Aethiopum vos estis mihi, f¡lii Israel?
Dicuntur
Aethiopes,
qui
penitus
in
vitia
dernersi
sunt.
Sendo
pois tão grande a inclinação e habilidade dos Pretos para
tudo o que é vício: que maravilha ‚, que na escola do ócio,
onde se aprende o mesmo vício, saiam eles em breve tempo
Mestres cabais e perfeitos? Logo consentir o senhor ócio aos
escravos, é querê-los mestres em todo o gênero de vícios e
singularmente no vício da desonestidade.
208. Sendo os Africanos tão inclinados por natureza
ao vício da sensualidade, que chegou a escrever Salviano
que do mesmo modo era impossível achar-se um Africano
que não fosse desonesto, como é imóvel que um Africano
não seja Africano (f), não faz dúvida que os Etíopes
excedam na lascívia a todas as mais nações da África, e
se igualam aos brutos mais libidinosos. A razão desta
grande propensão dos Pretos impudicícia não só lhes vem
do clima quente em que nascem, mas muito mais do pouco
temor de Deus e pejo dos homens, que neles há.
209. Assim o lamentava aquele admirável varão, oráculo
de seus tempos, o Padre Frei Luís de Granada; vendo a
liberdade com que viviam em Espanha os escravos vindos de
Guiné. Como quer que os homens (dizia este grande Servo de
Deus) não se acautelem deste vício impuro, senão
ou com
o temor de Deus ou da ignomínia e infâmia; e como na maior
parte
destes
escravos
não
haja
freio
algum,
porque
ordiriàriamente lhes falta o temor de Deus e o pejo dos
homens, e não tratam da honra e reputação própria; por isso
desenfreadamente se precipitam como brutos neste vício (g). E
se à falta destes freios se lhes ajuntam os
estímulos e
(digam assim) a espora do ócio: haver bruto tão precipitado,
que assim se despenhe?
210. Que o ócio seja estímulo e incentivo singularmente
de toda a desonestidade, o confessou um dos maiores mestres
deste abominável vício, qual foi Ovídio (quando, não sei se
por arrependido ou por perseguido de Auguto César, se fez
médico deste achaque) pois chegou
a dizer, que tirado o
ócio do mundo, ficavam totalmente ociosas as armas de Cupido.
Otia si tollas, periere CuPidinis arcus (h)
E o mesmo poeta buscando a razão dos adultérios, que
havia cometido Egisto:
Quaeritur, Aegysthus quare sit factus adulter (i)
não achou outra, senão o deixar-se estar odioso:
In promptu causa est: desidiosus erat.
211. E para atalhar, do modo possível, aos servos a
grande dissolução, com que andam engolfados no vício da
desonestidade, é necessário tirar lhes todo o ócio e trazê-los
continuamente ocupados, porque assim como o ócio os incita e
estimula à impudicícia, para a qual são tão propensos, assim a
ocupação e o trabalho os diverte, para
que não consintam
em suas tentações. De uma e outra coisa temos admirável prova
em um Rei e em um escravo. 0 Rei é David, o escravo é José.
Viu David a Bersabé. E tanto que a viu, ut vidi, ut perii (1),
pode ele também dizer, porque enlaçado de sua formosura
consentiu no adultério. Pelo contrário José. Provocado por
vezes ao mal por sua mesma senhora, sempre lhe resistiu até
largar em suas mãos a capa, por não largar a pureza. Quem não
se admira e pasma da diversidade destes sucessos? Um única
vista basta para derrubar por terra a um varão, que sendo
mancebo tinha derrubado gigantes, e os afagos de uma
senhora não bastam para vencer ao escravo mancebo? Qual pode
ser a razão? Ponderemos os textos, que neles a acharemos.
212. Quando, David se deixou levar da afeição de
Bersabé, diz a Sagrada Escritura que estava ocioso, passeando
pelas galerias do seu Palácio (m); sendo que em tempo (como
adverte a mesma Escritura) em que os Reis não costumam estar
ociosos, se não sair à campanha (n).
E quando José foi
solicitado de sua senhora, diz o texto que andava ocupado no
serviço de seu senhor (o p). Era José mordomo da casa de seu
senhor, e esta ocupação o trazia em uni continuo exercício e
trabalhosa lida.
Por isso caindo David, resistiu José. De
maneira que o ócio fez a um valoroso Rei, escravo vil e
desprezado da incontinência; e o trabalho, a um humilde servo
fez valeroso Rei na pureza.
213. Sendo pois o ócio tão pernicioso à castidade, e o
trabalho pelo contrário tão inimigo da impureza; vede se
convém que os senhores tragam continuamente ocupados seus
escravos, a quem tão facilmente se pega esta peste, pela
natural propensão que têm à incontinência. Lástima é na
verdade, ver como o fogo da lascívia anda ateado nos escravos
do Brasil! Suas labaredas sobem mais ainda do
que as da
fornalha de Babilónia, sendo que, pela medida que tornou o
mesmo Deus, chegavam a quarenta e nove
côvados (q). E quem
há-de dar água, para que ao menos se não aumente tanto este
incêndio, senão os senhores, trazendo bem sopeados com o
trabalho os escravos? Porém
se em lugar de os ocupar, os
deixarem viver folgados no ócio; não ser
isto fomentar com
estopa, pez e alcatrão estas chamas impuras, como faziam lá
em Babilónia os ministros de Nabuco (r), para que sempre mais
cresçam e se aumentem?
214. E que conta tão estreita há-de pedir Deus aos
senhores de tantas impurezas, que não procuraram atalhar aos
escravos, podendo-o fazer ainda com seu proveito! Se eu
dissera que para impedir as ofensas de Deus aos escravos, se
desocupassem de todo o serviço e trabalho, é podiam os
senhores desculpar-se, dizendo que isto em querê-los ver
destituídos do remédio, para que Deus lhes deu os
servos.
Porém como eu digo que se ocupem e divirtam de todo o ócio,
donde se não pode seguir se não proveito para os senhores, não
vejo razão, que possam alegar em sua defensa. Por isso tomo a
inculcar que se não deixem viver ociosos, e que se mandem
trabalhar; pois só desta
sorte se pode evitar que se
façam insolentes contra Deus opus, ne insolescat.
§ III
Que os senhores devem desocupar e não
mandar trabalhar os servos nos domingos e dias santos.
215. Ainda que seja mui conveniente que o senhores
exercitem continuamente no trabalho aos servos, e disto me não
desdiga, nem haja de desdizez; contudo não há-de tomar isto à
carga cerrada e sem limitação alguma senão com a moderação que
pode a razão natural; e é, que o trabalho não seja tão
contínuo e sem interpolação, que exceda os limites do justo. E
sem dúvida os excederia o senhor, que mandasse trabalhar os
servos nos tempos que não são de trabalho, quais são os
domingos e dias santos.
216. Este excesso é mui digno de repreensão, e dele se
devem guardar os senhores, que querem satisfazer à sua
obrigação. Porque se é mau permitir que esteja ocioso o servo
quando é tempo de trabalho, também o é ocupá-lo no trabalho no
tempo em que não devia trabalhar. Antes, regularmente falando,
muito maior mal é ex genere suo mandar trabalhar o servo no
tempo que a natureza e o Autor da mesma natureza lhe dá para o
descanso, que desocupá-lo, quando se podia mandar que
trabalhasse. A razão disto é porque o senhor, que falta
em
dar o trabalho ao servo, quando chegue a cometer pecado, será
contra a caridade; porém faltando-lhe com o descanso e
mandando-o trabalhar nos dias Santos, peca contra a justiça e
religião. Vejamos agora a obrigação, que têm os senhores, de
desocupar do seu serviço aos escravos nos domingos e mais dias
santos.
217. Parece que grande parte dos senhores do Brasil têm
para si que o preceito de guardar os domingos e ar, festas é
só para os livres e forros, e não para os sujeitos e cativos;
pois vemos que muitos, sem fazerem distinção de dias a dias,
em todos igualmente os ocupam e mandam trabalhar. Mas não é
isto um engano manifesto? Quem
o duvida? Porque Deus sem
fazer diferença de senhores a servos, a todos manda que se
desocupem nestes dias das obras servis e mecânicas. Assim o
declarou o mesmo Deus, com palavras mui expressas no Éxodo,
quando intimou aos Hebreus o preceito de guardar o sábado: 0
sétimo dia é sábado dedicado ao Senhor, nele não te ocuparás
em obra
alguma (s). Mas quem é que se não há-de ocupar
neste dia? Tu (diz Deus ao Pai de famílias), o teu filho, e a
tua filha (1). Pois se o Pai de famílias não deve trabalhar
no dia santo, nem seus filhos; poderá ao menos servir-se do
escravo ou da escrava, ocupando-se no trabalho? Não, diz Deus;
porque também eles não hão-de trabalhar neste dia (u). Está
logo visto, que assim como nos dias santos, não devem os
senhores trabalhar, nem mandar trabalhar a seus filhos e
filhas, assim também não devem mandar trabalhar os escravos e
as escravas. E se os ocupam no trabalho ainda que se desocupem
a si, é certíssimo que não guardam as festas e quebram o
terceiro mandamento da Lei de Deus.
218. A razão é manifesta; porque se o servo obrigado do
Senhor trabalha nestes dias, faz o que deve, obedecendo-lhe; e
por isso, se não observa o preceito, esta inobservância é
puramente material. Quem verdadeiramente não observa nem
guarda o preceito, é o mesmo senhor, que ocupa ao servo. Não é
princípio e regra de Direito, tirada
da razão natural,
que quem manda fazer por outrem alguma coisa é o mesmo que se
ia fizesse por si (x)? Logo se o senhor nos domingos e dias
santos manda trabalhar os servos: quem duvida que é o mesmo
que se trabalhasse ele por si? Pois se trabalhando ele por si,
necessàriamente quebra o preceito de guardar às festas, também
o quebra fazendo trabalhar os servos.
219. Assim o dão a entender as mesmas palavras do
preceito: Non facies ornne opus in co, et filius tuus et filia
tua, servus tuus, et ancilla tua. Reparai naquele, non facies,
não farás tu, que é segunda pessoa do singular. Se Deus falara
só como pai de famílias e senhor da casa, e a ele só
obrigasse à observâcia das festas, bem estava que dissesse:
Não farás tu: Non facies. Porém se falava também com
os
filhos e com as filhas, com os escravos e com as escravas,
fillius tuus et tua, servus tuus et ancilla tua, obrigando-os
igualmente a guardar os sábados; parece que havia de dizer no
plural: non facietis, não fareis vós. Pois porque razão usa
Deus do singular, tu, em lugar de plural, vós?
A razão é,
porque quis que entendesse o senhor da casa, que a obrigação
que tinham os servos de guardar as festas, ele é o que a
tinha; e todo o trabalho que fizessem nos
mesmos dias,
ele é que o fazia; e o pecado que cometessem
trabalhando
por seu mandado ele é que o cometia: Non facies. Fica logo o
senhor de casa igualmente obrigado nos domingos e dias santos,
a desocupar-se do serviço a si, aos filhos e aos escravos: Tu,
et filius tuus, et filia tua, servus tuus, et ancil la tua.
220. Disse igualmente, e
não disse muito; porque, se
apurarmos bem este ponto, acharemos que muito maior razão há
para que o Senhor não ocupe no trabalho os servos nestes dias,
do que há para se desocupar a si. Parece isto totalmente fora
de toda a razão; mas ainda que assim pareça não é senão muito
conforme a ela. E porquê?
Porque os mesmos motivos, que
teve Deus para mandar que assim os senhores como os escravos
guardassem as festas, e não trabalhassem nestes dias militam
com muito maior força nos escravos que nos senhores. E como
pode isto ser? Antes que vos dê a resposta, me haveis de
responder primeiro a uma dúvida.
221. Pergunto: que motivos teria Deus para instituir os
dias santos, e mandar que neles não houve obra
servil? Como
Deus em tudo o que obra ad extra tem
sempre os olhos em duas
coisas, isto é, na sua glória e no
bem dos homens; na sua
glória, como em fim primário e
principal; e no bem dos
homens, como em fim secundário e acessório; nestas mesmas duas
coisas os pôs, quando quis que houvesse dias, em que os homens
se desembaraçassem das ocupações mecânicas. Pôs os olhos na
sua glória,
para que desocupados os homens dos mais
embaraços, se
ocupassem rodos em o honrar e servir, e lhe
dar o culto devido a tão supremo Deus e Senhor nosso. Pôs os
olhos no bem dos homens; porque como o trabalho contínuo
quebra as forças e natureza, quis que a refizessem nestes dias
com o descanso. E assim digo que ambos estes motivos, que Deus
teve para determinar e decretar dias santos, têm maior
eficácia para que devam os senhores executar mais nos servos
do que em si leste preceito. Tudo mostrarei com evidência.
222. Teve Deus primeiramente por fim e motivo para
proibir a todos, assim livres como servos, o trabalho nestes
dias, a sua honra, culto e veneração; porque devendo os homens
honrar e reverenciar a Deus, e não podendo eles andar
continuamente em tão justa e santa ocupação, por causa dos
embaraços e lida, que traz consigo o comércio
da vida
humana;
foi
mui
conveniente
que
Deus
assinalasse
e
determinasse tempo particular, em que desimpedidos das mais
ocupações o venerássemos com a adoração e culto devido a tão
Divina Majestade. Por isso na Lei Escrita mandou que se
santificassem os sábados, e na Lei da Graça os domingos e mais
dias santos.
223. E quem não vê que e te motivo ‚ muito mais urgente nos
cativos que nos livres, nos escravos que nos senhores? Se o
senhor quiser em todos ou em qualquer dia da semana entregarse totalmente ao culto de Deus, ouvindo uma e muitas Missas,
visitando as Igrejas, ou
ocupando-se no serviço do mesmo
Deus de outro qualquer modo: quem lho há de impedir? Ninguém;
porque não há
quem tenha sobre ele domínio. Porém se o
escravo quiser fazer o mesmo; não lhe há de ir à mão seu
senhor, obrigando-o a que o sirva e deixe de assistir nas
Igrejas?
Melhor o há-de fazer, do que eu aqui o digo;
pois assim
lho permite o senhorio, que nele tem. Logo, se
Deus não mandara que se guardassem ias festas: quando haviam
os escravos de ter tempo para se encomendarem a Deus e o
venerarem com o culto que deve a seu Criador a
criatura?
Bem se deixa ver logo, que o principal motivo, que Deus teve
na instituição das festas, tem muito maior força nos cativos
que nos livres, nos escravos que nos senhores.
224. Em segundo lugar, teve Deus por motivo, para
mandar que se guardassem as festas,
o descanso dos corpos
fatigados com o trabalho. Este motivo igualmente com o
primeiro tem também nos servos mais força do que nos senhores.
Porque os senhores ou não trabalham, e assim
não necessitam
de descanso; ou se trabalham é por sua livre
vontade, e
assim em sua mão está o descansar quando quiserem; e por isso
não em necessário que Deus lhes determinasse dias particulares
para o seu descanso. Porém para os miseráveis escravos, que
andam em uma roda viva de trabalho, fatigando e cansando o
corpo, gemendo e anelando no serviço dos senhores, foi mui
necessário e preciso que Deus instituísse festas, para que
tivessem dia certo, em que desobrigados da pensão do trabalho
descansassem o corpo enfraquecido com o serviço dos dias de
fazer.
225. Esta maior necessidade das festas nos escravos que
nos senhores, os mesmos gentios a conheceram. E daqui vem, que
Aristóteles nas leis, que deu aos senhores para o bom governo
dos servos, falando das festas da gentilidade em que vivia,
disse que estas foram instituídas mais para os cativos que
para os livres (Y). 0 Padre Silvestre Mauro da Companhia, que
na exposição do Príncipe dos
Filósofos foi o Príncipe
dos Expositores, comentando palavras, diz assim: As festas, em
que param as obras e cessa o trabalho, são mais devidas aos
servos que aos livres; porque a maior parte delas, mais por
causa daqueles, do que destes, foram instituídas; e a razão é,
porque como andam os servos mais ocupados no trabalho,
necessitam
mais de interpolação e de descanso (z). Vede
pois se dizia eu verdade, quando disse que os mesmos motivos,
pelos quais determinou Deus que se guardassem os dias santos,
obrigam mais a que os Senhores nestes dias desocupem do
trabalho aos servos, do que a si mesmos.
226. De tudo o que remos dito, quisera eu que colhessem
os senhores do Brasil a grande sem-razão, que fazem a seus
escravos, quando nos domingos e dias santos os
mandam
trabalhar. E se, quando fossem iguais nos senhores e nos
servos os motivos para não trabalharem nestes dias, ainda fora
contra a razão e contra o preceito
mandá-los trabalhar
então;
com
muito
mais
razão
é
maior
sem-razão,
e
conseguintemente maior pecado, mandar que trabalhem nos tais
dias, sendo mais forçosos os motivos e as razões, pelas quais
devem os servos não trabalhar então. Donde venho a concluir
por último remate que não menos deve o senhor ocupar os servos
nos
dias
de
trabalho
(como
mostrei
nos
parágrafos
antecedentes) do que os deve desocupa-los nestes dias, para
que possam descansar e dar-se a Deus; e deve ocupá-los
naqueles, para que nem contra seu senhor, nem contra o mesmo
Deus se façam insolentes, opus, ne insolescat.
§ IV
Em que se mostra que são de nenhum vigor as
razões, que alegam os senhores, pelas quais
ocupam os servos nos domingos e dias santos
227. Duas razões veio, que podem alegar os senhores,
pelas quais aplicam os servos ao trabalho não só nos dias de
serviço, mas também nos dias santos. A primeira razão é a
necessidade, a qual como não tem lei, não há
dúvida que
desculpa da observância, dos preceitos positivos. Bem sei que
não é pecado trabalhar nos domingos e mais festas, quando a
necessidade assim o pede, mas o ponto está em
que esta
necessidade, que alegam em sua defensa os senhores, seja
verdadeiramente necessidade com as qualidades que se requerem,
para desobrigar da observância das festas. A necessidade (como
dizem os Teólogos com o Padre Suárez) para livrar do pecado,
deve ser tal, que
nem se pudesse prevenir e atalhar
antes, nem suprir e recuperar depois (a). Ponhamos por exemplo
que se areou o fogo nos canaviais, e que fazendo-se-lhe toda a
diligência, não foi possível atalhá-lo. Neste caso, ninguém
duvida que podeis sem escrúpulo algum moer e aproveitar a
vossa cana, e ocupar os vossos escravos nas moendas, ainda que
seja em Domingo ou dia santo; porque já se vê que nem antes
pudestes impedir o fogo para que a não queimasse, e nem depois
podereis recuperar a perda, se a não moerdes logo.
228, Porém podendo os senhores prevenir nos dia de
serviço as coisas, para que as não haja de fazer nos dias
santos deve prevenir e as guardar para o domingo ou qualquer
outro dia festivo, claro está
que esta necessidade o não
livra de quebrar o preceito e de cometer pecado. Quanto mais
que
destas
necessidades
verdadeiramente
graves
poderão
acontecer uma, duas ou três vezes no ano. Logo como podem
deixar de pecar mortalmente os senhores, que em todo o tempo
da safra moem em redondo e
mandam trabalhar os escravos, sem
diferença alguma de dias de fazer a dias santos? É possível
que um Senhor rico e abastado de bens tenha necessidade grave
de ocupar todo o ano os servos sem dar um dia santo! Entrem
por si os senhores do Brasil, e
vejam bem, que a
necessidade, se não for mui justificada, lhes não há -de valer
para os desculpar com Deus, quando no dia do juízo lhes pedir
conta de não guardarem ou
deixarem
guardar a seus escravos
os domingos e as festas!
229- A segunda razão, que por si podem alegar os
senhores, que mandam trabalhar os escravos nos dias proibidos,
se colhe do mesmo que já
atrás dissemos. Dissemos que os
escravos, quando se acham folgados e ociosos, se desmandam em
vícios; o que bem se experimenta. em todo
o ano. Pois
nos domingos e dias santos quando não trabalham: Ou se
entregam ao vinho ou a danças e bailes desonestos ou fazem
pendências, em que ou ferem ou saem feridos, ou cometem outros
semelhantes géneros de maldades.E para evitar estas e outras
desordens, dirão que os mandam trabalhar, e que é bem que
trabalhem nestes dias.
230. Porém esta razão certamente não convence, nem lhes
dá faculdade para os ocuparem no trabalho, quando Deus manda
que se não trabalhe; porque quando Deus mandou que se
guardassem as festas, proibindo nelas o exercício das obras
manuais e mecânicas, bem previu que não só os Pretos e
cativos, mas também os livres e Brancos
se poderiam
entregar todos aos vícios, e usar mal do tempo e do descanso.
Quantos artífices há
muito brancos e muito livres, que
enquanto dura a semana e andam ocupados nas obras de seu
ofício, não cometem um só pecado mortal, e tanto que chega o
domingo ou qualquer outro dia festivo, o profanam com muitas
ofensas de Deus? Não é isto
assim? Assim é. E contudo
não haver quem diga que para evitar essas culpas era bem que
as Justiças Eclesiásticas os obrigassem a trabalhar nas
festas. Logo, porque há-de ser justo, para impedir os pecados
dos Pretos, mandá-los trabalhar nos dias santos? Se Deus em
uns e outros
previu todos esses inconvenientes; e não
obstante o vê-los mandou que todos se desocupassem das obras
servis nos
domingos e mais festas, não é uma sem, razão
querer o senhor que trabalhem os servos, para evitar esses
mesmos inconvenientes, que o Legislador previu e não quis
impedir?
231. Além de que esta razão só poderia ter algum lugar,
quando não houve outro meio para divertir os escravos das
ofensas, que cometem nos dias santos contra Deus. Mas Se o
senhor os pode afastar e desviar dos
pecados, mandando-os à
Missa, à Doutrina, à Pregação,
e a outros exercícios de
piedade e religião, porque os há-de
mandar trabalhar?
Porque há-de fazer mal com
capa de fazer bem, e querendo
evitar uns pecados, cair em outros? Se pode facilmente, evitar
os alheios e mais os seus: Porque há-de fazer com que não
evite os seus e talvez nem os alheios? Enfim, não há entender
alguns senhores, que no mesmo tempo em que se mostram zelosos
da honra de
Deus, e querem impedir suas ofensas, nesse
mesmo tempo ofendem; e procurando que não seja ofendido não
reparam em ofendê-lo.
232. Dirão os senhores que não podem acabar com os
escravos a que vão à Missa, à Doutrina, e à Pregação, porque
ainda que os mandam, eles se divertem por outra parte e não
vão. Mas pergunto: podeis acabar vós com eles que trabalhem
não só nos dias dedicados ao serviço, mas também nos dedicados
a Deus? Pois porque não acabareis com eles que vão antes à
Igreja a ouvir à Missa, à Pregação e à Doutrina? Não há
castigos, não há correntes, não há grilhões em vossa. casa?
Pois para quando os guardais? Se assim como faltam à obrigação
de Cristãos faltassem à obrigação do vosso serviço, ou do
vosso respeito, logo vos não faltariam modos para os reduzir à
devida
sujeição. Porém porque faltando ás obrigações de
Cristãos não vos ofendem a vós, senão a Deus; por isso não e
vos dá de apertar com eles para que dêem o culto a Deus, ao
menos naqueles dias, em que manda o mesmo Senhor que lho demos
assim, Brancos e livres, como Pretos e
cativos.
233. E praza a Deus não haja senhor tão pouco Cristão,
querendo o escravo buscar a Igreja nos domingos e dias santos,
por isso mesmo o mande trabalhar! Se houvesse um senhor
destes, chamar-lhe-íamos Cristão? De nenhuma maneira; porque
s¢ merece que lhe chamem Faraó quem é Faraó na realidade.
Mandava Deus aos Hebreus, no tempo em que viviam cativos no
Egito, que fossem ao deserto e lá lhe oferecessem sacrifício.
E pedindo eles licença a Faraó seu senhor, para fazerem o que
Deus lhes mandava: que lhes diria este Tirano? Ite ad onera
vestra, andai, ide trabalhar (b). Que estes desejos são de
ociosos. Manda Deus por meio da Igreja aos escravos que nos
domingos e dias santos vão ao templo e lá assistam ao
sacrossanto sacrifício do Corpo e Sangue de Cristo. Querendo
os escravos obedecer a tão santo e justo preceito, pedem
licença a seu senhor; e este que lhes diz? Ire ad onera
vestra: Deixai-vos disso, e ide trabalhar. E despedindo a
todos com sua ocupação, estes manda ao pescado, aqueles à
lavoura; estas com a roupa à fonte, aquelas à lenha para o
fogo; o que tudo pudera bem estar feito no dia dantes ou se
podia fazer no dia de depois. E isto não é ser Faraó? Logo não
há desculpa suficiente para ocupar no trabalho geralmente os
servos nos dias santos, como costumam no Brasil alguns
senhores.
234. Mas sendo assim que não há razão alguma, com que
se desculpem os senhores do Brasil, de mandarem trabalhar os
seus escravos ao Domingo e dia santo, e porque
está tão
envelhecido neles este costume, que se não movem por razão
alguma a fazer o contrário, não bastando as ordens dos
Prelados
tão
frequentemente
repetidas,
nem
as
penas
eclesiásticas, que lhes estão impostas, nem as amoestações
quotidianas dos Pregadores e Confessores, para lhes arrancarem
este abuso, por isso, querendo El Rei. Nosso Senhor (que Deus
guarde) que se observasse inviolávelmente a lei, que obriga a
não trabalhar nos domingos e dias santos, mandou ao seu
Governador e Capitão Geral deste Estado, que com todo o
cuidado Procurasse e fizesse observar as
ordens e
decretos dos Prelados com que proibem que os senhores não
mandem trabalhar os seus escravos nos domingos e as festas de
guarda. Diz pois assim o Sereníssimo Rei:
235. Governador e Capitão geral do Estado do Brasil,
Amigo. Eu El Rei vos envio muito saudar. Sou informado que não
basta
o cuidado dos Prelados, nem os provimentos que deixam
nas Vistas para que algumas da pessoas poderosas dessa
Capitania guardem os dias santos da Igreja, como devem a
Cristãos; e que também neles não dão a seus escravos o tempo
necessário para assistirem nas Igrejas e aprenderem a Doutrina
Cristã. E ainda que esta matéria pertence à obrigação dos
Bispos, vos ordeno que procureis ajudá-los, para que as suas
ordens se executem neste particular; e que pelas vossas parte
façais tudo o que puderdes, para que se evite este escândalo e
prejuízo das almas dos pobres escravos. E constando-vos que
algum Ministro, Oficial de Guerra ou pessoa poderosa falta a
esta obrigação de Cristão, o chamareis e repreendereis
severamente. E quando desta advertência não resulte a amenda
necessária, me dareis conta, para que eu possa passar à
demonstração de castigo, que for servido dar-lhes. Esta
matéria vos hei por muito recomendada; e mandareis registrar
esta Carta nos livros dessa Secretaria, para que todos vossos
sucessores a dêem à sua devida execução. Escrita em Lisboa a 7
de Fevereiro d 1698. Rei. Tal é o cuidado da observância, tal
é o zelo deste grande Monarca, e tal o mau vezo dos senhores
do Brasil; quando puderam, por lhe fazerem o devido obséquio,
mostrar-se mais observantes da lei de Deus e da Igreja, já que
por respeito do mesmo Deus e da mesma Igreja o não fazem.
236. Com isto porém não pretendo dizer que não possa o
senhor consentir que o escravo depois de ouvi Missa vá
trabalhar, para si; porque, regularmente falando, é tal a
miséria dos escravos do Brasil, ainda dos que s
mais bem
tratados de seus senhores, que carecem de muita
coisas (as
quais talvez os senhores lhes não podem dar)
que se não
são totalmente necessárias e precisas, ao menos são tão
conducentes para o sustento da vida humana, que sem elas não
podem passar senão com gravíssimo incómodo. Estas, não há
dúvida que lhes é lícito granjeá-las com o seu trabalho nos
domingos e dias santos.
237. Por isso se não hão-de condenar os senhores, que
isto permitem aos escravos, e a isto os exortam; contanto que
os não obriguem ao trabalho por força e contra a sua vontade.
Porque uma coisa é ser lícito ao servo o
trabalho nos dias
festivos, e outra coisa ‚ querê-lo obrigar a isso seu senhor.
Se o escravo quiser antes padecer a penúria de muitas coisas
(como ordináriamente sucede aos
que só vivem com o que
lhes dão seus senhores) a fim de guardar à risca os domingos
e dias de festa, nenhum
senhor lho deve impedir. A razão é
porque o senhor, fora do preciso e necessário serviço, de sua
pessoa e casa, não tem poder para ocupar nestes dias a servo;
pois Deus lho tirou com o preceito, que deu de se guardarem as
festa. Por isso os que antepõem, como devem antepor, os
preceitos da Lei de Deus aos lucros e interesses temporais,
não ocupam os escravos nos domingos e dias santos; porque
sabem que o trabalho só se há-de dar ao escravo
nos dias
da semana, para que não se ensoberbeça e faça
insolente,
opus, ne insolescat.
§ V
Que o trabalho dos servos nos dias de serviço
deve ser interpolado com o descanso necessário
238. Não só devem os senhores desocupar os servos do
trabalho nos dias de festa (como acabamos de dizer), mas ainda
o que lhes mandam fazer nos dias da semana, lho devem
interromper, para que tomem algum descanso. Não há-de ser o
serviço tão continuado, que a um trabalho sucede outro, de
maneira que não possa o escravo
respirar e tomar algum
alento depois de cansado no serviço de seu senhor; porque a
continuação
demasiada
no
trabalho
o
faz
insofrível
e
intolerável aos escravos.
239. Por isso lamentando Jeremias as tiranias, que
padeciam os Hebreus de seus senhores no cativeiro de
Baibilónia, era uma delas o cansarem aos mesmos Hebreus com o
trabalho sem lhes permitirem descanso. Lassis (diz o Profeta)
non dabatur requies (c). Tão inumanos eram os senhores de
Babilónia no trabalho que davam aos servos,
que sobre um
lhes carregavam outro, sem porem em meio tempo algum para
tornarem o necessário descanso. Isto mesmo declarou um moderno
Poeta, reduzindo a metro latino o que lamentou jeremias:
Nulla quies fessis: urgebat pondera pondus:
Curvabatque novus pectora anhela labor (d).
Ainda que cansados, não tinham descanso os tristes no
cativeiro de Babilónia: a um serviço alcançava outro; e
anelando ainda o peito pelo trabalho passado, já se achava
debaixo de outro novo trabalho. E não é esta mesma a tirania,
que exercitam os senhores do Brasil com
seus escravos,
mandando-os trabalhar sucessivamente sem interrupção alguma de
trabalho a trabalho? E isto não só de dia, mas também de
noite, de sorte que não fica aos escravos tempo algum, em que
possam
respirar.
Por
isso
vemos
a
estes
miseráveis
desfalecerem de puro trabalho e acabarem a vida.
240. Por robusto e forte e végeto que seja o escrevo,
se trabalhar de dia e de noite sem descanso, quem não vê que
há-de acabar a ele? Não é robusto o touro? E contudo diz o
Poeta:
Não vedes como com o trabalho contínuo os mesmos
touros desfalecem?
Cernis ut in duris (et quid bove firmius?) arvis
Fortia, taurorum corpora frangat opus (e).
Não é forte o ginete? E contudo, se o cavaleiro o
obrigar a correr na praça sem interrupção e sem descanso, não
há-de cair morto na justa?
Occidet, ad Circi siquis certamina semper,
Non intermissis cursibus, ibit equus (f).
Não é végeta a terra? E contudo, se for contínuamente
lavrada do arado e semeada, cansa em dar novidades e
faz-se
inútil e estéril:
Quce nunquam vacuo solita est cessare novali,
Fructibus assiduis lassa senescit humus (g).
Pois se os brutos mais forres e robustos, e ainda a
terra
mais végeta e fecunda, não podem com o trabalho
demasiadamente continuado e querem algum descaso; como hão-de
poder sem descanso trabalhar os escravos continuamente?
241. Nem faz no caso que o trabalho, que dais ao
escravo, seja leve; Porque, se for continuado com demasia, vem
a ser tão pesado, que merece ser numerado entre os trabalhos
mais penosos do mesmo inferno. Entre as molestas e terríveis
ocupações, que fingiram os Poetas haver no inferno, foi uma a
das quarenta e nove filhas de Dânao
Rei de Argo, chamadas
vulgarmente do nome de seu pai
Danaides, ou Bélides do
nome de seu avô Belo, as quais por matarem em uma noite a seus
maridos, foram condenadas por Radamanto, Julgador do Inferno,
a esgotarem com crivos ou vasilhas abertas e rotas, a água de
um tanque e a passarem a outra parte. Pode haver trabalho
menos
trabalhoso, que tirar água com vasilhas que a não
tiram? Pois a sabedoria dos Poetas e do mesmo Platão (h), que
nesta fábula os seguiu, achou este trabalho digno de ser
numerado, entre as mais penas do Inferno, quais são a de
Tício, a quem o Abutre roi continuamente as entranhas; a de
Sísifo, fatigado em levar sem descanso uma grande
pedra
acima de um alto monte; e a de Tântalo sempre faminto e sempre
sequioso à vista da fonte que lhe corre ao pé, e dos pomos que
no mesmo tempo se lhe representam aos olhos e lhe fogem das
mãos. A razão única que tiveram para numerarem entre as outras
penas este
tormento, ainda que pareça leve, foi a sua
continuação e perpetuidade. Porque não há ocupação, por leve
que sei-a, a qual sendo demasiadamente continuada não traga
consigo excessiva pena e intolerável moléstia. Vede, pois, se
a caga em que os escravos andam continuamente ocupados sem
interrupção e sem descanso, não é totalmente semelhante no
Inferno, havendo nela uma pena tão própria de condenados!
242. Na verdade não sei como possa haver senhores tão
inumanos, que se não compadeçam dos miseráveis escravos,
trazendo-os como a Ixião em uma perpétua roda de serviço, sem
parar nem de dia, nem de noite! Que trabalhem de dia, bem
está; mas que hajam de trabalhar
também de noite, e toda
a noite, quem o poder
sofrer? Porque haveis de ser tão
importunos aos servos, que os não dixeis tomar de noite algum
alívio com sossego por algumas horas? Porque lhes haveis a
cada passo de interromper ou (o que ‚ muito pior) tirar o
sono, rendo-os
toda a noite ao pé da moenda ou da
fornalha, sem que possam dar á natureza algum repouso?
243. Aquele Pai de famílias, de que fala S. Lucas, veio
um amigo seu a desoras a bater-lhe
à porta e pedir-lhe
emprestados três pães: Commoda mihi tres panes (i). E que lhe
responderia o senhor da casa? 0 que lhe respondeu foi que lhe
perdoasse, porque estava já fechado a porta e recolhido ele e
seus escravos (1). Não sei se
reparais nos termos desta
resposta. Que ele não saisse a abrir a porta àquelas horas,
bem está; mas que tendo, ali consigo os escravos, pueri mei
mecum sunt, não mandasse a algum deles a dar o que lhe pedia o
seu amigo! Parece termo menos ajustado às leis da amizade e da
política.
Ora ainda que assim pareça, não é assim. Diz o
texto, que os servos estavam descansando e dando ao corpo o
sono necessário à natureza: In cubili; e não quis este bom
senhor interromper-lhes o descanso. Tinham trabalhado de dia,
e
por
isso
prudentemente
julgou
que
os
não
devia
inquietar de noite, entendeu que assim como para si era coisa
dura levantar-se àquelas horas, non possum surgere, assim
também seria dura coisa que obrigasse os servos a levantar-se
e interromper o sono. Este exemplo devem imitar todos os
senhores, deixando que descansem de noite os servos, não lhes
interrompendo (como fazem comumente) o descanso. E com muito
maior razão os não devem fazer trabalhar toda a noite, depois
de trabalharem todo o dia.
244. Criou Deus o dia e a noite; o dia para o trabalho,
e a noite para o descanso. E há-de haver senhores tão
bárbaros, que troquem esta ordem e queiram que a
noite seja
dia, mandando trabalhar os escravos igualmente de dia e de
noite? Quão intolerável pena seja para um triste escravo fazer
da noite dia; isto ‚, depois de cansar
trabalhando todo
um dia, haver de continuar no trabalho ou toda ou quase toda
uma noite, no a o exemplar da paciêncie, Job. Inumeráveis
foram as penas e tormentos, com que Deus permitiu ao Demónio
que o apurasse; porém entre aquelas de que mais se queixou o
mesmo Job, foi uma delas, que perturbando-lhe o Demónio a
fantasia com importunos pensamentos e imaginações, de
tal
sorte lhe oprimiam. o coração, que lhe trocavam e convertiam a
noite em dia (-). Mas de que modo os pensamentos de Job lhe
convertiam a noite em dia? A comum e literal exposição é que
sendo próprio do dia o velar e trabalhar, era tal o tropel dos
pensamentos com que lidava Job, que lhe não consentia em toda
a noite um mínimo descamo a seu corpo e um leve sono a seus
olhos: Auferentes mihi somnum et inducentes vigilias, sicuti
solet fieri de die, diz Lirano (n). De maneira que pelo
contínuo trabalho e sobressalto, em que traziam a Job os seus
pensamentos, velava de dia, e velava de noite, e por isso a
noite se lhe convertia em dia: Noctem verterunt in diern.
245. A estas mesmas noites, que passava Job sem
descanso,
chamou
ele
mesmo
noites
trabalhosas:
Noctes
laboriosas
enurneravi
mihi
(0);
porque
só
o
velar
continuamente, sem mais outro trabalho, era para ele um grande
e excessivo trabalho. Daqui quisera eu que colhessem os
senhores o grande tormento, que causam aos servos, obrigandoos a que passem as noites não só sem dormir, mas
trabalhando. Porque se a Job, sendo a mesma paciência, se lhe
fazia tão penoso só o velar de noite, sem a pensão do
trabalho, que ser
a quem trabalha velando, e para trabalhar
vela e se desvela? Considerem os senhores o que seria, se lhes
sucedesse o mesmo a cada um; e desta
consideração
aprendam a não dar trabalho tão continuado aos escravos, que
lhes faltem com o descanso necessário à natureza, pois basta
que s¢ trabalhem de dia, para que se não façam insolentes,
opus, ne insolescat.
§ VI
Que o trabalho dos escravos não deve
ser excessivo e superior a suas forças
246. Como as virtudes morais consistam no meio de dois
extremos opostos, como diz o prolóquio comum, tirado da
doutrina de Aristóteles, virtus in medio consistit (P),
havendo neles excesso, isto basta para os tornar viciosos.
Obrigar o senhor a que trabalhe o servo, sendo com a devida
moderação, não faz dúvida que é virtude, porque o obriga a
cumprir com sua obrigação; e por isso no primeiro par grafo
deste Discurso exortei nos senhores a que façam trabalhar os
escravos, e os não deixem viver ociosos. Sendo porém o
trabalho exorbitante, já não é virtude, se não vício, pois o
trabalho quanto aproveita dado em
ma conta, tanto ‚
prejudicial e danoso, sendo fora da justa
medida. Há-se de
dar o trabalho aos servos, como os medicamentos aos enfermos:
isto ‚, em sua medida. Porque assim como a medicina tomada em
sua conte é remédio que cura as doenças e preserva de achaques
e tornada fora dela não deixa de ser perniciosa. e causar
graves danos;
assim também o trabalho dado e tomado em sua
proporção,
purga dos vícios aos servos e os preserva da
rebeldia e insolência contra seu senhor, opus, ne insolescat;
dado porém fora da justa medida, debilita-os, enfraquece-os e
mata-os.
247. Comparou Plutarco o trabalho à água, dizendo que
como as plantas com a
água sendo moderada se alimentam, e
sendo muita se corrompem; assim com o trabalho moderado se
aumenta nos homens o vigor, e com o demasiado se oprime (q) .
Em uma palavra, tudo quer
moderação. A nau, se for
demasiadamente carregada, há-de ir a pique; a trave, se tiver
sobre si demasiado peso, estala; e a corda, sendo muito
estirada, rebenta e quebra. Dois que há-de ser do triste
escravo oprimido com demasiado serviço? Há-de enfraquecer, háde desfalecer, e há-de fenecer.
248. Haja pois no trabalho dos servos a devida
moderação, trabalhem n seu senhor, pois para isso lhos
sujeitou Deus; seja porém o mesmo Senhor tão ajustado com a
razão no repartir o trabalho aos escravos, que os não oprima
com demasias. Não vos pareçaa que vos peço muito, pedindo-vos
que no trabalho dos servos não excedais os limites
da
razão; pois não vos peço mais do que [o que] o justo e recto
dono costuma fazer corn os seus jumentos. Diz Salomão, nos
Provérbios, que o justo conhece as almas de seus
jumentos
(r). E que quis dizer com isto este Rei sábio?
Por ventura
que trazia mui bem contado o número de seus jumentos? Não (diz
Lira, um dos maiores e mais literais intérpretes da Sagrada
Escritura), porque ainda quis dizer mais (s): Ama o justo em
tudo tanto a moderação, que atenta muito que os mesmos
jumentos seus não sejam oprimidos com demasiado trabalho.
249. Pois se o justo guarda esta moderação ainda com os
brutos; muito mais (diz S. João Crisóstomo) a deve guardar com
os homens, que participam a mesma natureza, como a participam
os escravos: Si ergo jumentorum,
multo magis hominum (1). E
para que haja tão necessária
moderação, devem os
senhores pôr os olhos singularmente em duas coisas, nas forças
do servo, e no tempo do trabalho.
250. Deve primeiramente o senhor, que quer guardar a
devida moderação no trabalho dos servos, pôr os olhos nas
forças dos mesmos servos, repartindo-lhes: as tarefas segundo
as forças de cada um. Senhores há, que querem levar a todos
os escravos pela mesma fieira, e medir a todos o trabalho pela
mesma medida, sem considerar que
nem todos podemos o
mesmo: Non omnia possumus omnes (u). Há
escravos, que podem
mais, e há
escravos, que podem menos: em uns há
forças e
talento para resistir a muito; outros a pouco trabalho se
rendem. Sendo pois desiguais nas forças; porque hão-de correr
no serviço a mesma parelha?
251. Mandou Deus aos Hebreus, que não ajuntassem no
mesmo arado o boi e o jumento (x). A razão desta lei (diz A
Lápide) é, porque sendo estes animais desiguais nas forças, e
o boi mais robuto; se ambos se ajuntassem no mesmo jugo, o
triste jumento não podendo acompanhar ao boi, teria maior
trabalho do que era justo (Y). Porém
se o dono era o que
havia de padecer o detrimento, que
tivesse o jumento arando
em companhia do boi; deixe Deus que cada um are como quiser:
que tem Deus que um bruto trabalhe mais ou trabalhe menos (z)?
252. Este precetio (diz Caetano) não se há-de entender
materialmente; porque debaixo da metáfora do boi e do jumento
queria dizer outra coisa mui importante: isto é, que a homens
desiguais nas forças se não há de impor
igual trabalho (a).
Pois se os escravos não são todos iguais nas forças, porque os
haveis de igualar no trabalho? Trabalhem todos os servos; dada
um porém à proporção de suas forças. 0 que for robusto como o
boi, trabalhe como boi; e o que tiver só forças de jumento,
trabalhe como jumento. Querer que o escravo débil e fraco
trabalhe igualmente Como o forçoso e robusto, é querer pôr no
mesmo jugo o boi e o jumento: coisa, que Deus severamente
proibe: non arabis in bove simul et asino.
253. Deve também olhar o senhor para o tempo do
trabalho, para o proporcionar de sorte com ele, que não dê ao
escravo maior tarefa da que pode acabar suavemente no tempo
que tem para o trabalho. Porque querer que o servo faça,
exempli gratia, em um dia o serviço que
ao menos
requeria dois, é tirania própria de senhores crueis e
bárbaros; quais foram os Egípcios para com os Hebreus no tempo
do seu cativeiro.
254. Com obras duras de ladrilhos e adobes, e com todos
os mais géneros de serviço, em que se costuma trabalhar na
terra, os traziam tão fatigados e sobre maneira oprimidos, que
aos tristes se lhes fazia penosa a mesmavida (b). Pois fazer
adobes e tijolos, e cavar ou arar a
terra, não são as
obras, em que andam ordináriemente ocupados os servos? Logo
como diz o texto que eram tão duras para os filhos de Israel,
que os faziam apetecer a morte: Ad amaritudinem perducebant
vitam eorum operibus duris? Em que consistia a dureza destas
obras? 0 Abulense: chamam-se duras estas obras, porque
excediam toda a medida, querendo os Egípcios que os Hebreus
cada dia perfizessem tão grande número de tijolos, que bem
podiam ser racionável tarefa para dois dias (c). De maneira
que o que fazia aborrecível aos Hebreus a mesma vida, não era
o trabalho das obras, em que andavam ocupados; era o excesso
deste trabalho, e o verem-se obrigados a dar em um dia acabada
a tarefa que era para dois.
255. Antes afirma Filo, que pela demasia deste trabalho
e excesso dos calores, muitos deles morriam feridos da peste
(d). E não é isto mesmo, o que sucede a cada passo nos
escravos dos que querem deles em uma hora o serviço que era
para duas, e em um dia o trabalho que era para dois? Ficam os
miseráveis tão debilitados e cansados, que a mesma vida se
lhes faz penosa e molesta : e vivendo desgostosos e
aborrecidos da vida, contraem malignas e outras doenças
mortais, com que em breve tempo se livram do cativeiro com a
morte.
256. Procurem logo os senhores moderar de sorte o
trabalho, que este não exceda as forças dos escravos nem o
tempo do serviço, porque se assim o não fizerem, e os
oprimirem com trabalhos por qualquer caminho exorbitantes,
darão os tristes escravos tais clamores ao Céu, que penetrando
os
ouvidos
e
o
coração
de
Deus,
o
obrigarão
a
descarregar sobre o Brasil os mais rigorosos castigos, como
foram os que experimentou o Egipto pelas tiranias que usava
com os Hebreus no tempo de seu cativeiro.
257. Noventa anos estiveram os filhos de Israel no
cativeiro do Egipto; e no fim deles, diz o texto, que das
obras, em que trabalhavam, subindo ao Céu um grande clamar,
chegara aos ouvidos de Deus (e). Em todos os noventa anos de
seu cativeiro não trabalharam os Hebreus nas obras de Faraó?
Qual seria pois a razão, porque só
agora chegaram os seus
clamores aos ouvidos de Deus? A razão é, porque só neste tempo
chegaram os trabalhos do seu cativeiro a ser excessivos. Em
todo o mais tempo trabalhavam os Hebreus; nas obras e fábricas
do Egipto; mas para isso lhes davam os Egípcias os materiais,
a lenha, a pedra e a palha; e com isto se fazia o trabalho,
por moderado, sofrível. Porém no cabo dos noventa anos
acrescentou Faraó ao trabalho de fabricar, o de cortar a
lenha, tirar a pedra e buscar as palhas palia coserem o
tijolo; pois nem palhas lhes queriam dar (f). 0 que vinha a
ser para os pobres Hebreus tão excessivo, como insofrível.
trabalho. E quando os trabalhos dos cativos chegam a ser
insofríveis, trabalhos; ao Céu e Deus os ouve (9), executando,
grandes castigos nos que desta sorte afligem e maltratam aos
escravos. Assim o experimentou á sua custa
o Egipto, que
depois de ser castigado com dez terríveis
pragas, viu com
seus olhos os filhos de Israel postos em liberdade, e afogado
no Mar Vermelho todo o exército de Faraó.
258. E por ventura não seja esta a principal causa das
grandes calamidades, que tem padecido e está padecendo o
Brasil, e singularmente da praga das bexigas, ateada de uns
anos a esta parte com tão grande incêndio, que lhe tem causado
danos gravíssimos com a muita mortandade de Brancos e Pretos.
Uma das dez pragas, com que Deus
Castigou o Egipto, diz
o texto, que foram bexigas, e ampolas contagiosas, que
alcançaram não só aos homens, mas também aos brutos (h). Foi o
caso, que mandou Deus a Moisés e a Abraão, que tirando às,
mãos cheias a cinza das fornalhas dos Egípcios, a espalhasse
só Moisés pelo ar à vista de Faraó (i). Agora o meu reparo. Se
para os outros castigos, que mandou Deus ao Egipto, ordenou
que usasse Moisés do poder da sua vara, e que, essa vara fosse
o instrumento, de que usasse para os fazer vir, tolle virgam
tuam (1); por que razão no caso que imos ponderando, não foi a
vara o instrumento de que usou Moisés para provocar contra os
Egípcios este contágio, senão ia cinza e cinza das fornalhas:
Cineris de camino? A razão é, porque quis Deus que
entendesse o Egipto, que a causa única desta enfermidade era o
excessivo trabalho, com que afligiam aos Hebreus, obrigando-os
a assistir de dia e de noite nas fornalhas, os adobes para as
obras e fábricas amassando e cosendo de Faraó. Por isso,
deixada a vara de Moisés, escolheu Deus para este: castigo a
cinza, imprimindo nela (diz A Lápide) uma qualidade ígnea e
adustiva, que dos ventos por todo o Egipto e caindo sobre os
homens e sobre os brutos, lhes causasse a peste das Bexigas
(m).
259. Agora ponderai bem esta consequência. Se as cinzas
das fornalhas, em que os Israelitas eram obrigados
por seus
senhores a trabalhar com excesso, foram bastantes para
introduzirem
no
Egipto
esta
terrível
enfermidade,
que
maravilha é que experimente bexigas o Brasil? Que maravilha ‚
que as cinzas d s fornalhas, em que os senhores ocupam com
tanta tirania aos servos, oprimindo-os com tão
excessivo
trabalho, não só de dia, mas também de noite, que maravilha,
digo, é que Deus lhes infunda a mesma
virtude, e que
espalhadas pelos ventos, e inficionados os ares, causem
bexigas, assim nos Brancos e livres, como nos Pretos e
cativos: nos Brancos e livres, que se tratam como
homens; e
nos Pretos e cativos, que são tratados como
brutos:
Factaque sunt ulcera vesicarum turgentium in hominibus et
jumentis?
260. De tudo isto devem os senhores do Brasil aprender
a haver-se de ml sorte com seus escravos, que os não oprimam
com o demasiado trabalho, pois vemos que o trabalho excessivo
é a total causa deste terrível açoite e contágio das bexigas,
com que Deus ainda continua e parece
quer destruir e assolar
rematadamente este Estado, privando aos mesmos senhores dos
escravos, que tão inumana e bárbaramente tratam. Logo, se
querem pôr embargos às execuções da ira divina, suavizem e
moderem o
de maneira que possam com ele os servos; e assim
conseguirão o fim, pelo qual se deve dar aos escravos o
trabalho,
que é, não para os maltratar e lhes acabar a
vida, mas para lhes reprimir e refrear a insolência, opus, ne
insolescat.
§ VII
Conclusão de toda a obra
261. Em todo o discurso desta Obra mostrei aos senhores
(não só aos do Brasil, mas a todos) quais são as obrigações,
que devem guardar no governo dos escravos.
Mostrei em
primeiro lugar que lhes devem dar o pão, assim o corporal
parta sustento dos corpos, como o espiritual
para alimento
das almas, panis, ne succumbat. Em segundo
lugar mostrei
que os devem corrigir e, sendo necessário, castigar com
moderação, para que não vivam erradamente, disciplina, ne
erret. Mostrei últimamente que lhes devem dar o trabalho a seu
tempo, proporcionando-o às suas forças, e atemperando-o com o
descanso, de maneira que sirva, não para lhes oprimir a vida,
mas para lhes reprimir a insolância, opus, ne insolescat. 0
que agora resta, é, que
os mesmos senhores procurem dar
à execução todas estas obrigações, considerando (além do que
tenho dito) a miserável condição de quem é escravo. Porque, se
bem se ponderarem as pensões, que trás consigo o cativeiro,
são eficazes a mover a lástima ainda ao peito mais de bronze.
262. 0 estado mais infeliz, a que pode chegar uma
criatura racional, é o do cativeiro, porque com o cativeiro
lhe vêm como em compêndio as desgraças, as misérias, os
vilipêndios e as pensões mais repugnantes e inimigas natureza.
São João no Apocalipse falando do Anticristo, disse que em
castigo de haver pervertido e reduzido a si
tanto número
de almas, há-de ser cativo: In captivitatem vadet (n); e
comentando este texto o Padre Cornélio A Lápide diz que o
cativeiro, de que fala aqui S. João, é o Inferno (0). Mas se o
Inferno é o lugar, onde estão em
compêndio todas as penas;
porque lhe chama cativeiro,
captivitatem? Porque o mesmo
é dizer cativeiro, que dizer o compêndio de todas as penas; ou
o mesmo é dizer cativeiro que dizer Inferno: In captivitatem
vadet: Rapietur ad Tartara. Mas porque fora nunca acabar, se
houvéssemos de ponderar aqui todas as pensões do cativeiro,
apontarei somente quatro, que julgo por mais pesadas: a
incapacidade de domínio; a falta do uso da razão, a pouca
estimação; e a morte ou quase morte.
263. Comecemos pela primeira. Deu ao homem o Autor da
natureza indústria, com que pudesse trabalhar e adquirir para
si todas aquelas riquezas e possuir todos
aqueles bens, que
lucrasse o seu trabalho. Mas é tal e tão infeliz a sorte dos
cativos, que sendo obrigados toda a vida a trabalhar, nenhuma
coisa adquirem para si; porque o
direito das gentes os
fez incapazes de todo o domínio, pondo
lei, que os servos
tudo quanto adquirissem, por qualquer via que o adquirissem,
não fosse seu, senão de seus senhores: Quicquid servus
acquirit, domino acquirit (P). Que vos parece da triste
condição dos servos? Trabalha o livre e colhe o fruto do que
trabalha: trabalha o servo, e o fruto do que trabalha colhe-o
seu senhor. E pode haver sorte e estado mais lamentável?
264. Dizia Job, que se havia ele cometido mal algum,
Deus lhe desse em castigo, que de tudo quanto trabalhasse,
outros lhe colhessem o fruto (q). Quando queremos afirmar com
encarecimento alguma verdade, dizemos ordinariamente, que, se
não é verdade o que dizemos, venha
sobre nós o maior mal.
E isto mesmo é o que quis dizer Job nestas palavras. Este
mesmo maior mal é o que pedia
sobre si, no caso em que se
achasse nele algum pecado. Mas se são tantos e tão grandes os
castigos, que podia imprecar-se Job; porque mais pede que o
seu castigo seja que outrem comesse o que ele semeasse: Seram,
et alius
comedat? Porque ver eu que outrem come, às mãos
lavadas, o que eu trabalhei e me custou o meu suor, é um
tormento tal e tão sobre os mais tormentos, que entre todos
ele é o maior e o que mais avulta: Si manibus meis adhaesit
macula, seram, et alius comedat.
265. E não é isto, mesmo o que passa com os servos?
Eles o experimentam, e nós o vemos. Passa um dia e outro dia;
passam os meses e os anos, e as tristes servos sempre a
trabalhar, sem sossego, sem descanso, sem alívio: ao sol e à
chuva; de noite sem dormir, e de dia sem cessar. E os frutos
e lucros de todo este trabalho, quem é que os goza e os come?
Não eles, senão outros; não os mesmos servos, senão seus
senhores: seram, et alius comedat.
266. A segunda das pensões, que traz consigo o
cativeiro, é, que o cativo assim como com a liberdade perde o
uso da vontade, assim também perde o do entendimento. É o
entendimento no homem a operação mais nobre, e pelo qual se
distingue dos outros animais; mas pelo cativeiro, de tal sorte
se priva do uso de razão, que se faz mui
parecido e
semelhante ao mais bruto dos brutos. Todos sabem que entre os
brutos o mais bruto é o jumento, e a este comparou o Espírito
Santo, o escravo, no mesmo
Capítulo de que tiramos as
palavras para os Discursos, que, até agora fizemos: Cibaria,
et virga et onus asino: panis, et disciplina et opus servo
(r). Mas em que consiste a
semelhança do servo com o
jumento? Na estolidez e falta do uso da razão, diz A Lápide,
(s). E pode a natureza humana chegar a estado mais lastimoso,
do que a ser comparada com a do bruto mais bruto? Julgue-o
cada qual. Pois a tanto chega aquela criatura racional, que
chegou no estado do cativeiro!
267. 0 vilipêndio e desprezo e pouca estimação, que se
faz dos servos, é a terceira das pensões terríveis do
cativeiro. Querendo explicar lsaias o sumo da vileza, a que
havia de chegar o Sacerdote Sobna debaixo do cativeiro dos
Assírios, disse que seria tratado como pela (t). Como pela?
Sim. Vistes como é tratada péla por aqueles que a jogam?
Todos têm mão para ela, sendo que não tem ela mão para
algum; todos contra ela se armam e ela a nenhum resiste antes
ou pela terra ou pelo ar, vai para onde cada um deles a manda:
ei-la já
aqui, ei-la acolá, sem nunca parar. Enfim, com lhe
chamarmos péla ternos dito tudo: todos a tratam, mas todos
corno jogo. E tal é qualquer escravo, péla e jogo de todos,
quasi pilam mittet te.
268.Mas se isto tem todo o escravo por escravo: que ser
nos
escravos
do
Brasil
(de
quem
em
toda
esta
obra
determinadamente falamos) por serem pretos? Todos os escravos,
só por serem escravos, são tidos em pouco e tratados com o
desprezo que acabamos de ver; mas ainda é mais vil e abatido o
trato que se d aos escravos pretos, só por serem pretos. Os
outros escravos são tratados como a péla; os escravos pretos
como o pião. E aqui vem nascendo a versão dos que, em lugar de
quasi pilam mittet te, lêem: Veluti trochum projiciet te (u).
A diferença que há entre a péla e o pião, é que a péla jogamna também os homens, e o pião só os rapazes, e por isso ‚ jogo
mais vil. Ora considerai agora como tratam os rapazes o pião,
quando o
jogam. Atam-no primeiro com urna e muitas;
voltas. Lançam-no à tema; açoitam-no, para que ande; pisam-no,
para
que páre; e até o ferem com os que eles nesta América
chamam quiles, para o destruirem e acabarem de todo, sendo
tantas as apupadas, quantas as feridas. Não é isto o
que
se, vê pelos adros e pelas ruas, no tempo em que costumam os
rapazes jogar o pião? Todos o vemos. Pois assim mesmo é
tratado o escravo que é preto. Não só os homens, mas os
rapazes e ainda os mais pequenos, se atrevem a mofar e zombar
dele, a descompô-lo de palavra e tratá-lo mal de obra, veluti
trochum projiciet te.
269. A quarta pensão, e última e ainda mais pesada de
todas as que traz consigo o cativeiro, é a morte ou
quase
morte do servo. É a vida do servo tal vida, que mais parece
morte; ainda que natural e fisicamente viva,
política e
civilmente está
morto. Porque assim como a
vida natural do
homem consiste no exercício das acções
naturais e
físicas, como é ver, andar, respirar e outras; assim a vida
política do mesmo homem consiste nas acções políticas e civis,
como são requerer em juízo, o seu direito, ser admitido a dar
testemunhos, ocupar os, ofícios e cargos da República, e
várias outras, que deixo por agora. E, como não seja permitido
ao servo exercer alguma destas acções políticas por firo
proibir o Direito, por isso o mesmo Direito
o trata e
reputa tomo morto civilmente: Servitutem mortalitati fere
comparamus (x). Mas se hei-de dizer o que sinto, esta morte
civil do servo não é inferior à morte natural, antes muito
semelhante a ela, e estou em dizer que a mesma.
270. Depois de vendido José por seus irmãos para o
Egipto, vendo-se estes castigados e oprimidos com vários
géneros de infortúnios e desgraças, dizia Rúbem (que era o
mais velho deles) que Deus os castigava por haverem
morto a
José seu irmão: En sanguis ejus exquititur (Y). Já
suponho
estais na dúvida. Os irmãos de José é certo que o não mataram,
antes pelo não matarem o venderam:
vendiderunt eum (z).
Pois como agora diz Rúbem que o que padeciam, era castigo de o
haverem morto. Sanguis ejus exquiritur? Por isso mesmo. Porque
o venderam para ser cativo, por isso o mataram; porque o
cativeiro é o
mesmo que a morte natural, e o mesmo é ser
cativo, que
ser naturalmente morto: vendiderunt eum; en
sanguis ejus
exquiritur. Tanta e tão penosa é esta
condição do cativeiro! Mas ainda não está
cabalmente
ponderada.
271. A morte natural padece-se por tão breve tempo, que
S. Agostinho duvidou quando se podia dizer pròpriamente que
morria o homem: se antes de expirar, se quando expira, ou se
depois que expirou. Antes de expirar, não, porque antes de
expirar não há
morte; depois que expirou não, porque já
a
morte passou; logo, só se pode dizer que morre, quando expira
(a). Assim é; mas o tempo em que
expira tão breve, que
não é tempo, porque é só um instante. E a morte do cativeiro
é tão dilatada, como é a vida do cativo. Dura anos e anos e só
a morte o acaba. Por isso julgou sabiamente Cícero, que o
cativeiro é tanto mais intolerável que a morte, que antes se
devia aceitar
de boa vontade a morte, por se não vir ao
cativeiro: Servitus postremum malorum omnium, non modo bello,
sed etiam morte repellendum, (b). Cícero, só o disse, porém
Niceias e Demóstenes, dois valorosos Capitães de Atenas, o
comprovaram com o seu exemplo; pois por não sofrerem o
cativeiro dos que os venceram, tomaram por suas próprias mãos
a morte (c). E de certas mulheres troianas conta Filo Hebreu,
que antes que não chegassem seus filhos a ser escravos, os
lançavam às
águas, dizendo que antes os queriam mortos que
cativos (d). E sendo a morte o mal de todos os males:
Terribilium omnium terribilissimum, como diz Aristóteles (e),
comparada com o cativeiro, é
o cativeiro maior mal que a
morte, pois é a morte remédio
do cativeiro: Servitus
postremum malorur omnium, non modo bello, sed etiam morte
repellendum
272. Tal é, senhores, o estado de um cativo. É homem,
mas sem vontade, e sem entendimento; trabalha e trabalha
sempre, mas sem lucro, vive, mas como se não vivesse;
sendo
por natureza igual a seu senhor, porque ‚ homem, pelo
cativeiro se faz muito inferior e como se não fosse homem, é o
mais vil, o mais abatido, e o mais desprezado
de todos
eis homens. Enfim, cativo. E quem não vê que por todas estas
razões deve quem é senhor compadecer-se de quem é escravo?
273. Ne addas afflictionem afflicto, diz o Provérbio:
não acrescenteis nova aflição a quem já está aflito (f). E
sendo tantas e tão duras e pesadas as pensões do cativeiro:
que senhor haver
tão inumano, que com o mau trato dobre o
tormento ao escravo,
e lhe acrescente aflições sobre
aflições? Que senhor haver tão fero e tão tirano, que se não
mova à compaixão dos tristes escravos, considerando que são
escravos, sem liberdade, sem honra, sem gosto, e sem
contentamento algum; sempre em abatimento, sempre em tristeza,
sempre em aflição, sempre em amargura; aflita e amarga a vida;
triste e abatido o estado, aflito e amargo o exercício; triste
e abatida a condição; tudo desconsolção, tudo angústia, tudo
pena, tudo melancolia. Alegra-te, sequer uma vez servo
desgraçado e infeliz! Mas
como há de ter alegria, se é
servo? Lá disseram aos Israelitas no cativeiro de Babilónia,
que cantassem para espalha a tristeza que os consumia. E que
responderam
os
Miseráveis
cativos?
Quomodo
cantabimus?
Disseram: como pode ser que cantemos e tenhamos alegria triste
cativeiro (9)? Terrível, e lastimosa sorte é a de um cativo!
274- Se come, é sempre a pior e mais vil iguaria; se
veste, o pano é o mais grosseiro e o trajo o mais desprezível;
se, dorme; o leito é muitas vezes a terra fria e de ordinária
uma tábua dura. 0 trabalho é contínuo, a lida sem sossego, o
descanso inquieto e assustado, o alívio pouco e quase nenhum;
quando se descuida, teme; quando falta, receia; quando não
pode, violenta-se, e tira da fraqueza
forças. Já
o
vieres em uma parte, já em outra, já nesta
ocupação, já
naquela, ei-lo com o machado nas matais, ei-lo com a enxada
nas lavouras, ei-lo nas moendas moendo-se, ei-lo abrasando-se
nas fornalhas. Não há
Proteu, que variasse tantas vezes a
figura, como a varia e muda o escravo. Há-de ser lince, para
ver o aceno de seu senhor; há-de ser guia, para lhe penetrar
os pensamentos; há-de ser
sátiro, para lhe ouvir as vozes
(h). Na presteza para levar
os recados, há-de ser cervo;
na robustez para resistir ao
trabalho, há-de ser boi; na
paciência para sofrer o castigo, há-de ser Jumento. 'Em duas
palavras: há-de ser tudo, posto, que na estimação de todos
seja nada.
275. Ah! servos! Ah! Senhores! Ah! servos desgraçados!
Ah! senhores inumanos! Que seja tal a vida e condição dos
servos; e que sejam tais os
corações, e crueldade dos
senhores! Que peito de aço e de bronze haver é que à vista de
tanta lástima se não mova à compaixão e não procure, quanto
for de sua parte fazer tolerável aos servos,
e suavizarlhes o trago amargosíssimo do cativeiro? Dizei-me, senhores
(com quem agora falarei), dizei-me: acabastes de entender que
a vida de um cativo é tão cheia de penalidades e tormentos,
que mais é morte que vida? Se depois de me haverdes ouvido,
ainda o não
entendestes, não tenho que esperar de vós,
nem falo convosco, mas se o tendes entendido, bem me posso
persuadir que de hoje em diante sereis outros e mais humanos
para os vossos servos, do que até agora fostes.
276. Já dissemos, e já me confessais, que o estado do
cativeiro é mais morte que vida. E se, além desta morte, lhe
acrescentardes ao servo trabalhos . excessivos e castigos
exorbitantes; se, além desta morte, lhe faltardes com o
sustento, não lhe acudindo com a ração devida; se lhe
faltardes com o vestido, não cobrindo sua desnudez e deixandoo exposto às inclemências do tempo; se lhe faltardes
com as
medicinas no tempo da doença, desamparando-o
e talvez
lançando
o
ìmpiamente
de
casa:
tudo
isto
não
será
acumular penas sobre penas, tormentos sobre tormentos, e
mortes sobre mortes? Ainda mal! Pois, ne addas, afflictionem
afflicto, vos torno a dizer o Provérbio: não acrescenteis a
quem já
está
aflito nova aflição. Baste-lhe ao cativo o
cativeiro.
277. Mas se até agora vos falei como a racionais, quero
acabar falando-vos como a Cristãos. Credes que esses servos
assim tão abatidos e desprezados, são vossos próximos e
Cristãos como vós? Sim, o deveis; crer. E se o credes, porque
não fazeis o que vos manda Deus por S. Paulo, para
satisfazerdes à Lei de Cristãos, que professais?
Alter
alterius onera portate, et sic adimplebitis legem
Christi,
diz S. Paulo. Ajudai-vos uns aos outros, os que sois próximos,
e assim satisfareis à lei de Cristo (i). 0 senhor pode ajudar
no servo a levar a carga, suavizando-lhe e
livrando-lhe o
jugo do cativeiro; logo, para satisfazerdes às leis de
Cristãos, deveis os que sois senhores, não agravar mais o peso
da servidão aos escravos, senão procurar
em tudo, e por
todos os caminhos, aliviá-lo. 0 vosso servo,
não, me
haveis de negar que vos ajuda a passar a vida com descanso,
tomando sobre si o peso que seria vosso, se ele
não fosse
vosso cativo. Pois, porque o não ajudareis vós a levar esse
peso, fazendo com o bom trato, que o leve mais suavemente? Se
quereis que o servo faça o que vos deve: porque não fareis vós
o que lhe deveis? Se quereis que ele faça o que deve a servo;
porque não fareis vós o que deveis a senhor e Cristão?
278. Antigamente os Cristãos da primitiva Igreja, logo
que recebiam o baptismo, davam liberdade a seus servos,
parecendo-lhes que com a liberdade da lei de Cristo não
estava bem o cativeiro. Assim o fizeram os Hermes, os
Cromácios, e outros muitos, de que estão cheias as Histórias
Eclesiásticas (1). Não quero persuadir com isto aos senhores a
que façam o mesmo aos seus escravos. Senhores,
eu não
pretendo que deis liberdade aos vossos servos; que
quando
o
fizésseis,
faríeis
o
que
fizeram
os
verdadeiros
Cristãos. 0 que só pretendo de vós, é que os trateis
a
próximos e como a miseráveis; que lhes deis o sustento para o
corpo e para a alma; que lhes deis somente aquele
castigo,
que pede a razão, e que lhes deis o trabalho tal, que possam
com ele e os não oprima. Isto só vos peço, isto só espero, e
isto só quero de vós: Panis, et disciplina, et opus servo.
F I M
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Título da Obra e Edição BENCI, Jorge Economia Cristã