Título da Obra e Edição BENCI, Jorge Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos (livro brasileiro de 1700) (Estudo preliminar) Pedro de Alcântara Figueira; Claudinei M.M. Mendes. São Paulo: Grijalbo, 1977. ECONOMIA CRISTà DOS SENHORES NO GOVERNO DOS ESCRAVOS INTRODUÇÃO 1. Que sendo o gênero humano livre por natureza, e senhor não sòmente de si, senão também de todas as mais criaturas (pois todas elas as sujeitou Deus a seus pés, como diz David) (a) Omnia subiecisti sub pedibus eius. Psal. 8,8 (p.47).Comentário: A citação literal do texto do salmo 6, 7 e 8, conforme a Bíblia de Jerusalém, é: “E o fizeste pouco menos do que um deus [anjo], coroando-o de glória e beleza. Para que domine as obras de tuas mãos sob seus pés tudo colocaste: “ Na tradução grega e latina, ao invés da palavra deus, se coloca anjo),chegasse grande parte dele a cair na servidão e cativeiro, ficando uns senhores e outro servos, foi sem dúvida um dos efeitos do pecado original de nossos primeiros pais Adão e Eva, donde se originaram todos os nossos males.[[ Com essa primeira premissa, Benci coloca por terra a legitimidade da escravidão. Para ele a escravidão é consequência do pecado. A escravidão é um pecado e é efeito de um pecado. A escravidão vai contra a própria natureza do homem que deve ser senhor de si mesmo e senhor do meio ambiente, ser criado por Deus para ser dominador e não dominado. A escravidão viola essa natureza original do homem.]] 2. O certo que se Adão perseverasse no estado da inocência, em que Deus o criou, não haveria no mundo cativeiro, nem senhorio; porque, como doutamente discorre S. Tomás, então se entende ser alguém servo, quando as suas acções se dirigem, não ao bem próprio seu, senão de quem o domina. E porque cada um naturalmente apetece o bem próprio, e conseguintemente se entristece, quando vê que o bem, que devia ser seu, passa a ser alheio, Por isso o tal domínio não pode deixar de ser penoso e molesto aos que servem; pela qual razão no estado da inocência (estado livre de toda a pena e moléstia) não podia haver domínio e senhorio de.um homem para com outro homem. (b). Tunc ergo aliquis dominatur alicui ut servo, quando eum, cui dominatur, ad propriam utilitatem sui, scilicet dominantis, refert, Et quia unicuique est appetibile proprium bonum, et per consequens contristabile est unicuique, quod illud bonum, quod deberet esse suun, cedat alteri tantum; ideo tale dominium non potest esse sine pœna subiectorum; propter quod in statu innocentiæ non fuisset tale dominium hominis ad hominem. — D. Thom. I. p. q. 96, art. 4, in c (p. 48). Comentário: A citação que Benci faz é da Summa Theológica, 1ª Parte, Questão 96, art. IV, nº 3. A tradução portuguesa da Suma Teológica, editada em São Paulo em 1948, vem assim formulada: “Assim pois quando alguém domina a outrem como servo, fá-lo servir a sua utilidade. E como todos desejam o bem próprio e, por conseqüencia se contristam quando cedem a outrem o bem que devera ser próprio, daí vem que tal domínio não pode deixar de ser acompanhado da pena dos que são sujeitos; e por isso, no estado de inocência, não existia tal domínio de um homem sobre o outro”. O Artigo IV se intitula “Se um homem no estado de inocência, tinha domínio sobre outro” (Cf. Suma Teológica, 1ª Parte, Questão 96, Art. IV, no. 3, p. 176-178). [[ Essa afirmação de que o homem deve ser senhor de si mesmo vai de encontro à idéia de homem como senhorio de outro homem. Nos Evangelhos, em nenhuma parte, se encontra algum texto que diga que Jesus tenha transmitido a autoridade de um homem sobre outro homem. Ele transmitiu a ‘diaconia’, o serviço. A diferença é que o serviço é de quem é senhor de si mesmo e espontaneamente serve. A servidão é peculiar a quem não é senhor de si mesmo e é obrigado a servir. Na servidão o servo aliena a sua personalidade a outrem. O que deveria ser seu passa a ser alheio.]] 3. Donde vemos que quando deu o supremo Senhor o domínio a Adão e Eva: Dominamini (c) Gen. I, 28. (p.48). Comentário: A citação por extenso do Gênesis, 1, 28 é: “Deus os abençoou e lhes disse” << sêde fecundos, multiplicai-vos, enchei a Terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam sobre a Terra >>. lho restringiu para com os animais: Piscibus maris, et volatilibus coeli; para que entendessem que o seu domínio não passava dos brutos, e que não se estendia aos mais homens, que deles haviam de nascer: Rationalem factum ad imaginem suam noluit nisi irrationabilibus dominari: non hominem homini, sed hominem pecori – escreveu S. Agostinho: (d) D. Aug. Lib. 29, de Civit. Dei, c. 15. (p.48). Comentário: A citação é da Civitas Dei, “A Cidade de Deus”, de Santo Agostinho. Benci não o cita diretamente mas o faz através da citação que Santo Tomás de Aquino insere em sua Suma Teológica, 1ª Parte, Questão XCVI, Art. IV, no. 1. Mas, na citação de Santo Thomás figura o Livro 19 e não o 29 da “Cidade de Deus”. (Cf. Santo Agostinho : A Cidade de Deus Contra os Pagãos. São Paulo, 1990, Parte II, Página 405.). A tradução portuguesa é a seguinte: “Quis que o homem racional, feito à sua imagem, dominasse unicamente os irracionais, não o homem ao homem, mas o homem ao irracional”. O Capítulo 15, que aqui é citado, tem como título “A Liberdade Natural e a Servidão do Pecado”. [[Desdobrando, ainda, a sua idéia central, Benci mostra que o homem, como senhor de si mesmo, deve dirigir as suas ações para o seu bem, ou seja para a sua realização pessoal. Benci afirma que Deus deu ordem ao homem para dominar os animais, mas não deu domínio de um homem sobre outro homem. Essa idéia de homem superior à natureza existiu desde o Gênesis, segundo o qual Deus criou todas as coisas dentro da natureza, mas, quis criar um ser livre, capaz de louvar e servir a Deus, livremente. A escravidão é a negação dessa liberdade. A importância desse primeiro trecho de Benci é porque ele está condenando a escravidão pela raiz bíblica. Considerando sua obra como um documento público da Igreja onde, naquela época, não se encontrava uma condenação da escravidão como instituto, a obra de Benci condenava a escravidão pela raiz, por ser perversa e má, não devendo existir. Nesse sentido, as premissas da obra são bem avançadas.]] 4. 0 pecado, pois, foi o que abriu as portas por onde entrou o cativeiro no mundo; porque rebelando-se o homem contra seu Criador, se rebelaram nele e contra ele os seus mesmos apetites. Destes tiveram sua origem as dissensões e guerras de um povo contra outro povo, de uma nação contra outra nação, e de um Reino contra outro Reino. E porque nas batalhas, que contra si davam as gentes, se achou que era mais humano não haver tanta efusão de sangue introduziu o direito das mesmas gentes que se perdoasse a vida aos que não resistiam, e espontaneamente se entregavam aos vencedores; ficando estes com o domínio e senhorio perpétuo sobre os vencidos, e os vencidos com perpétua sujeição e obrigação de servir aos vencedores. [[Esse segundo argumento de Benci depois do belo argumento inicial, vai de encontro ao primeiro, pois, se escravizar era pecado, como dizer que era mais humano? Se o pecado gerou a dominação do homem sobre o homem, como um pecado, e se essa dominação é consequência da guerra (outro pecado), como, da guerra, nascerá o lado o humano da escravidão? Manuel Ribeiro da Rocha, cinquenta anos depois, escreverá O Etíope Resgatado onde ele contesta essa prática decorrente da escravidão dos prisioneiros de guerra. Mais tarde vão distinguir que poderão ser escravizados somente os ‘prisioneiros de guerra justa’. Mas, o que vem a ser uma guerra justa? Logo, dizer que “era mais humano aprisionar do que matar”, destoa da argumentação introdutória. No conceito bíblico original, humano é ser livre, autônomo, e desumano é perder a liberdade no gesto pecaminoso da guerra. Com esse segundo argumento, Benci se baseia no ‘direito das gentes’, anterior ao direito romano, válido além do ecumenes (territórios dominados pelos romanos). Era o direito natural, anterior ao direito romano. O direito positivo é o direito sistematizado. Isto é, filosoficamente discutido e oficializado. Esse segundo argumento sugere que a sujeição dos vencidos em troca de não matar é como a aplicação da máxima “dos males o menor” só que essa máxima é aplicada negativamente porque o mal é sempre erro.]] 5. Isto se colhe do mesmo nome de servo, que vale o mesmo que servatus; porque, como diz o Imperador Justiniano, os servos se apelidam assim do patrocínio e conservação, com que os Imperadores os livravam da morte. (e) Servi autem ex eo appellati sunt, quod Imperatores captivos vendere, ac per hoc servare dicuntur, nec occidere solent. — § Serv. Instit., de iure person. (p. 49). Comentário: Flavius Petrus Sabbatius Justinianus foi imperador bizantino do ano 527 a 565. Empreendeu ele uma grande obra de codificação jurídica que foi compendiada no Corpus Juris Civilis que, por sua vez, compreendia o Codex o Digesto ou Pandectas e as Institutas. A citação, no presente caso, parece ser do Corpus Juris Civilis, quando ele trata do instituto da servidão (Cf. Noções de Direito Romano de Magela Cantalice, Salvador, 1977, p. 65-68). Sendo pois o senhorio filho do pecado: que maravilha (1) No texto: Maraviglha (p.49) que nasçam dele culpas e resultem ofensas de Deus, pelas sem-razões, injustiças, rigores e tiranias, que praticam os senhores com os servos? [[ Assim, prevalece a idéia de que não é humana a escravidão decorrente do direito do vencedor. É consequência do pecado, pois envolve o senhorio do homem sobre o homem. Justiniano explica que a palavra servatus significava preservado (preservado da morte), mas o fato de ter sido preservado não justificaria o fato da escravidão. Assim, a origem inicial da palavra servo, vem de preservado mas depois tomou o significado de escravo.]] 6. E para atalhar estas culpas e ofensas, que cometem contra Deus os senhores, que não usam do domínio e senhorio que têm sobre os escravos, com a moderação que pede a razão e a piedade Cristã: tomei por assunto, e por empresa dar à luz esta obra, a que chamo Economia Cristã: isto é, regra, norma e modelo, por onde se devem governar os senhores Cristãos para satisfazerem `as obrigações de verdadeiros senhores. [[ Quando Benci diz que os muitos senhores não usam do domínio e senhorio com moderação, ele admite o senhorio que era dado pela lei do direito romano que considerava o escravo como uma res (coisa) da qual o senhor poderia usar e abusar. Contra esse abuso, ele introduz a idéia cristã de que o escravo era uma pessoa humana. Só a pessoa humana pode servir, o escravo não pode servir pois a condição do escravo é de subserviência. Para servir é preciso ser-se Senhor de si mesmo. Essa moderação de que fala a piedade cristã vai ver o escravo como uma pessoa humana ]]. Parece que cuidam muitos senhores que, por razão do senhorio, têm tão livre e absoluto domínio sobre os servos, como se fossem jumentos; de sorte que assim como ao jumento nenhuma obrigação deve seu dono, assim também, nenhuma obrigação deve o senhor ao servo. Mas‚ engano manifesto, diz S. João Crisóstomo, porque também os senhores são servos dos mesmos que os servem (f) Servorum servus dominus este. D. Chrysost., hom. 79, in c. Joan. 17.(p.50). Comentário: São João Crisóstomo viveu de 344 a 405 ou 407. Ele figura entre os quatro grandes Padres do Oriente. Deixou uma grande obra escrita que se divide em três classes: homilias; tratados e cartas. As homilias se dividem em homilias sobre o Antigo Testamento, sobre o Novo Testamento e homilias dogmáticas e polêmicas. A citação, no caso, é das homilias do Novo Testamento, sobre o Evangelho de São João.) E a razão disto é porque senhor e servo são de tal sorte correlativos, que assim como o servo está obrigado ao senhor, assim o senhor está obrigado ao servo. [[ A idéia do servus servorum Dei, da qual São Gregório I utilizou como lema do seu ofício de pontífice romano, e da qual vai falar São João Crisóstomo, muito tempo mais tarde, é uma idéia evangélica e baseada na mística de serviço de Cristo: o ‘Grande Servo de Javé. Jesus disse: ‘vim para servir e não para ser servido’. É toda uma mística do serviço na qual senhor e servo são de tal forma correlativos, numa comunhão de serviços que, assim como o servo está obrigado ao senhor, também, o senhor está obrigado ao servo. Com Cristo, a idéia evangélica veio substituir o conceito de servidão pelo conceito de serviço, porque permanecendo o conceito de serviço desaparece o conceito de servidão. A servidão é o serviço violentado e o serviço é para quem é senhor de si mesmo, obrigado pela lei da caridade.]] 7. Esta mútua e recíproca correspondência de obrigações entre os senhores e os servos reconhece o Apóstolo na Epístola aos Colossenses. E por isso, depois de intimar aos servos que se sujeitem em tudo e obedeçam a seus senhores com simplicidade de coração, não tanto para agradarem aos olhos dos homens a quem servem, como aos olhos de Deus a quem temem (g) Servi obedite per omnia dominis carnalibus, non ad oculum servientes, quasi hominibus placentes, sed in simplicitate cordis, timentes Deum. Coloss. 3, 22. (p.50). Comentário: A citação por extenso da Epístola aos Colossenses, segundo a Bíblia de Jerusalém, é a seguinte: “ Servos, obedecei em tudo aos senhores desta vida, não quando vigiados, para agradar a homens, mas em simplicidade de coração, no temor do Senhor [Cristo]”. No texto bíblico, o Apóstolo, nos versículos 23, 24 e 25 continua dizendo: “Em tudo o que fizerdes ponde a vossa alma, como para o Senhor e não para homens, sabendo que o Senhor vos recompensará como a seus herdeiros: é Cristo o Senhor a quem servis. Quem faz injustiça receberá de volta a injustiça, e nisso não há acepção de pessoas) passa a falar com os senhores, e lhes encomenda que se hajam de sorte com os servos, que não faltem às obrigações da justiça e equidade; (h) Domini, quod justum est, et æquum, servis præstate. Coloss. 4, 1. (p.50). Comentário: A citação de Benci continua o argumento anterior, já se dirigindo aos senhores: “Senhores, dai aos vossos servos o justo e equitativo, sabendo que vós tendes um Senhor no céu.) que foi o mesmo que dizer-lhes (comenta S. Anselmo) que lhes guardassem o direito natural e da razão: Quod ius naturae, vel rationis exigit (i) D. Anselm. Hic. (p.50). De maneira que a diversidade, que há entre o senhor e o servo, não consiste em que o servo esteja obrigado ao senhor e não o senhor ao servo; mas na diversidade das obrigações, que recìprocamente devem um ao outro. [[ Fica posta a idéia de Benci sobre a servidão. Fica claro que ambos, patrão e escravo, têm obrigação de serviço. Porém, o tipo de serviço de cada um é que vai ser diferente. Essa noção, aplicada junto com o entendimento da ‘lei de ouro’, destrói por dentro a idéia de escravidão. O cristianismo primitivo não pretendeu fazer uma revolução social a partir de fora. Não era sua pretensão, dentro do Império Romano, destruir as estruturas mas sim, lançar o fermento e transformar. Assim, a mística do serviço é transformar. Entretanto, ao mesmo tempo em que Benci fala das obrigações que são mútuas, e introduz uma lógica humanística, ele sugere uma lógica desumana posto que na realidade colonial a obrigação do escravo era trabalhar e a ação do senhor era obrigar o escravo a trabalhar e se apropriar dos frutos daquele trabalho. Era, portanto, um pensamento contraditório, mas bem aos moldes daquela realidade colonial. Era um pensamento revolucionário na sua origem cristã, pois o que está dito destrói a possibilidade da escravidão. Quando ele diz, citando o Apóstolo, sobre como os servos devem agradar aos olhos de Deus a quem temem, ele auxilia o patrão, mas não manda ser subserviente, não manda prestar servidão, manda servir. Servir é a idéia motriz que está posta. Só serve quem é senhor de si mesmo. É importante destacar, porque ele está introduzindo uma coisa nova que é diferente da servidão — é a mística do serviço. O serviço é incompatível com a servidão. O escravo colonial não prestava serviço, prestava servidão. Numa situação de subserviência. Introduzindo essa mística do serviço ele subverte a servidão pois ela envolve uma comunhão de serviços. Segundo a idéia evangélica, o serviço é inerente à pessoa humana: ‘quem não vive para servir, não serve para viver’, diz o provérbio... Na história da palavra ficou uma diferenciação entre o serviço e a servidão: a servidão como coisa compulsória e o serviço como prática de liberdade. A despeito da mesma origem, a conotação passou a ser diferente uma vez que servidão subtende o trabalho compulsório e o serviço subtende a noção de senhorio — isto é, daquele que é senhor e tem liberdade: só é senhor porque sabe servir, porque pratica o exercício do serviço. Quando Benci se refere a essa questão e argumenta, ele não usa a palavra ‘escravo’ e sim, servo que era a palavra clássica, tanto da tradução latina como no direito romano. ‘Escravo’ é palavra posterior, medieval, de quando se escravizavam os eslavos. Ele vai usar a palavra escravo somente quando se refere à situação específica da Colônia. 8. Mas que obrigações pode dever o senhor ao servo? 0 mesmo Espírito Santo no-las dirá; o qual distinguindo no Eclesiático o trato que se há de dar ao jumento e ao servo, diz que ao jumento se lhe deve dar o comer, a vara, e a carga: Cibaria, et virga, et onus asino (1) Eccli. 33, 26 (p.51) Comentário: O versículo 25 do Eclesiástico, na Bíblia de Jerusalém, diz o seguinte: “Para o asno forragem, chicote e carga; para o servo pão, correção e trabalho”; e que ao servo se lhe deve dar o pão, o ensino e o trabalho: panis, et disciplina, et opus servo (m) Ibid Comentário: Continuando, o Livro do Eclesiástico, no seu versículo 26, diz: “Faze teu escravo trabalhar e encontrarás descanso; deixa livre as suas mãos e ele procurará a liberdade”. Deve-se (diz o Eminent¡ssimo Hugo) o pão ao servo, para que não desfaleça, panis, ne succumbat; o ensino, para que não erre, disciplina, ne erret; e o trabalho, para que se não faça insolente, opus, ne insolescat (n) Hugo Cardin. In hunc locum. (p. 51). [[Cita Benci o Eclesiástico que vai ser o termo de referência para toda a sua exposição. Aquela trilogia de procedimento com o escravo, que é pão, disciplina e trabalho. Para o jumento é o comer, a vara e a carga. Ele cita o Eclesiástico, mas há uma diferença muito grande entre o Eclesiástico e a consumação da Revelação em Cristo Jesus, citada pelo Apóstolo Paulo. Não se pode misturar as duas épocas. O Eclesiástico está ainda em um nível de evolução anterior, não tendo ainda chegado à plenitude da revelação em Cristo Jesus. A comparação feita entre o servo e o jumento só faz mostrar que, na realidade, os dois deveriam ser tratados como iguais. Apesar da idéia de ‘pão, ensino e trabalho’, como elementos de conotação mais cultural, e de ‘comida, vara e carga’ como elementos de conotação mais natural, não há basicamente, diferença nenhuma. No Eclesiástico, a diferença entre o jumento e o escravo não é fundamental. A diferença vai aparecer com a Revelação em Cristo, através do Apóstolo Paulo com as palavras de Jesus que disse: ‘no princípio não era assim’ Deus não criou o homem para que fosse igual ao jumento, mas, no princípio Deus criou o homem para ser senhor de si mesmo e dos animais. Assim, o Eclesiástico marca uma época de evolução, diferente do Gênesis, e, ao mesmo tempo, uma deformação da revelação primitiva. Além disso, o discurso de Benci não acrescenta, nessa trilogia, um quarto elemento, qualquer que seja, que diferencie o servo do jumento ou que acrescente mais humanidade ao servo, como havia, na revelação primitiva, no Gênesis: o ser humano, como pessoa livre e senhor de si mesmo e que tem o poder de dominar a criação, e não, de ser dominado.]]. 9. Estas mesmas obrigações, que achou nos senhores o Eclesiástico por instinto do Espírito Santo, alcançou Aristóteles com a luz da razão natural. Porque, dando as instruções necessárias aos pais de famílias para a boa administração de suas casas, chegando ao ponto de como se há de haver o senhor com os servos, diz que lhes deve três coisas, que são o trabalho, o sustento e o castigo: e que todas três são igualmente necessárias, para que plena e perfeitamente satisfaça ao que como senhor deve ao servo. Porque sustentar ao servo sem lhe dar ocupação e castigo, quando o merece, é querêlo contumaz e rebelde; e mandá-lo trabalhar e castigar, faltando-lhe com o sustento; é coisa violenta e tirana: tria vero curn s¡nt opus, cibus et castigatio; cibus quidern sine castigatione et opera petulantem reddit; opus vero et castigatio sine cibo violenta res est (o) Aristot. Lib. I. Aeconom. Cap.6. (p.51). Combinai agora um texto com outro texto, o profano com o sagrado; cotejai o panis com o cibus, o disciplina com o castigatio, e o opus com o opus: e vereis que ou o Pregador (que isso também quer dizer Eclesiástico) (P) Eccl. Id est, Concionator, Tirin. in lit. Eccli. (p.52) é filósofo ao divino, ou que o Filósofo, posto que não é divino, é Pregador. Essas três idéias de Aristóteles são muito semelhantes às idéias do Eclesiástico. Porém, são bem pobres em relação à Revelação Crística e também em relação à origem da revelação, contida no Gênesis. Em a Política...... Por mais que a gente veja em Aristóteles e em Platão uma elevação do pensamento no que se refere ao ‘humano’ eles estão, ainda, num estágio anterior à plenitude que viria com Cristo. Igualmente o Antigo Testamento. Por exemplo, nos Dez Mandamentos, quando se fala em não desejar a mulher do próximo, está subentendido: a mulher, o jumento, os bens, os servos todas essas coisas eram as ‘coisas’ do próximo. O servo, bem como a mulher, era um objeto no meio daqueles objetos. O ser humano ainda não alcançara a plenificação da condição humana. Só a partir de Cristo que, referindo-se ao que estava escrito, completava: ‘Eu porém vos digo’, é que vai haver a dignificação da pessoa humana. Assim, os textos do Eclesiástico, de Platão e Aristóteles, do direito das gentes e, depois, do direito romano foi o ensejo necessário para a escravidão. Pela ‘lei de ouro’ não haveria escravidão. Ao tempo de Cristo os especialistas na lei mosaica conseguiram extrair na Bíblia 313 mandamentos. Vem Jesus e diz ‘Eu vos dou um novo mandamento’. Não é o 314°. É um mandamento que contém todos os outros, que envolve todos os outros: ‘Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo’. Quem quer ser escravo? Ninguém. Então, pela ‘lei de ouro’ eu não posso escravizar ninguém, uma vez que a lei de ouro pode ser considerada como a essência da revelação cristã: ‘Deus é Amor e quem permanece no Amor, permanece em Deus’. Assim, procurando interpretar as categorias ‘teóricas’ da pedagogia cristã, que percorreu toda a história do cristianismo, observa-se que elas foram construídas com base nesse Mandamento que engloba os demais. O que não leva ao amor, não é cristão, está distorcido e deve ser reformulado. Portanto, é pena que depois de uma bela argumentação sobre a dignidade da pessoa humana nas suas origens, na criação, essa dignidade na sua plenificação em Cristo que o Apóstolo Paulo transmite ele venha a se deter no estágio de pensamento do Eclesiástico e de Aristóteles. 10. E assim, nestas três palavras, panis, disciplina, opus, se compreendem todas as obrigações, que não são poucas as que devem os senhores aos servos. Por isso nelas fundarei os discursos desta Economia Cristã, em que pretendo instruir aos senhores, e especialmente aos do Brasil, no modo com que devem tratar os escravos, Para que façam distinção entre eles e os jumentos; a qual certamente não fazem os que só procuram tirar deles o lucro, que interessam no seu trabalho. [[Benci diz, explicitamente, que a divisão da sua obra vai se basear no Eclesiástico. Apesar de todo o preparo que ele tinha das obras clássicas e do conhecimento das fontes bíblicas, ele se ateve ao Eclesiástico e a Aristóteles e esqueceu-se de utilizar uma pedagogia, igualmente religiosa, que já tinha sido preconizada por Jesus Cristo baseada no mandamento que já contém todos: ‘amar ao próximo como a si mesmo’. Vez por outra ele cita essa versão mas, fundamentalmente, se baseia no Eclesiástico, inclusive na divisão dos discursos. 11.Usar o senhor dos escravos como de brutos, é coisa tão indigna, que Clemente Alexandrino julgou que não podia caber em homem de razão e de juízo (q). Neque vero tamquam jumentis famulis utendum est ei, Qui fuerit sanæ mentis. — Clem. Alexand., Lib. 3, Pædag. Cap.11. ( P.52). E se isto não é obra de homem racional, muito menos o pode ser de homem Cristão, a quem o mesmo Cristo encomendou tanto o amor e caridade com o próximo. Panis, et disciplina, et opus servo. Eccli. 33 DISCURSO 1 Em que se trata da primeira obrigação dos senhores para com os servos [[Esse discurso abre-se com as palavras do Ecclesiástico, capítulo 33: Panis, et disciplina, et opus servo. Ou seja para o servo, o pão (o pão do corpo que é o sustento em geral, a roupa, o abrigo e o pão espiritual), a disciplina (corretivo) e o trabalho. Esse lema é a fundamentação de toda a exposição que Benci vai fazer. Todo o tema do livro é discursado a partir desta tríade pão, disciplina e trabalho ficando o elemento pão desdobrado em dois discursos: o pão como alimento e o pão da doutrina. Ou seja, o pão do corpo e o pão espiritual. No pão do corpo ele engloba a roupa, e o sustento em geral. Essa oração ‘obrigação dos senhores para com os servos’ subtende, à luz da época, um progresso face ao direito romano onde, praticamente, o senhor não tinha obrigações para com o servo, que era equiparado com uma coisa, uma res. O senhor tinha o direito absoluto de usar e abusar do servo. Com a cristianização do direito romano, se introduziu, em primeiro lugar, a idéia de que o servo era uma pessoa humana. Hoje se diria, ‘servo como pessoa com os direitos inerentes à pessoa humana’ mas, naquele contexto, não se falava em direitos, mas sim, nas obrigações que o patrão tinha. Quando se fala em ‘obrigações’ é no sentido do direito romano cristianizado, que toma em consideração os servos que teriam ‘direitos’ acima do patrão. Assim, o patrão deixaria de exercer direitos absolutos sobre o servo que, como pessoa humana, passaria a ter um referencial superior ao patrão que é Deus e sua Revelação e o direito natural.]] 12. A primeira palavra, sobre que havemos de discorrer, é o Pão: panis. Deve o senhor ao servo o pão, para que não desfaleça: panis, ne succumbat. E debaixo deste nome de pão, conforme a frase hebreia, se compreende primeiramente tudo aquilo que conduz para a conservação da vida humana, ou seja o sustento, ou o vestido, ou os medicamentos no tempo da enfermidade (r) Panis hoc loco pro re quavis ad vitam necessaria sumitur juxta Hebraecorum phrasim. — De Pina, Comment. In Eccl. Ethol. — 268, n. 6. (P.53). E isso mesmo é o que pedimos a Deus na oração do Padre Nosso, dizendo: panem nostrum. quotidianum da nobis hodie, o pão nosso de cada dia nos dá hoje (s) Luc. 11, 3. (P.53). Comentário: O Apóstolo se refere a Cristo que ensina os discípulos a oração do Pai-Nosso dizendo: “o pão nosso cotidiano dá-nos a cada dia...”) In hoc intelliguntur (diz Lira) peti omnia vitae necessaria (t) Lyra in c. 6. Matth. (P.53). E que tudo isto devam também os senhores aos servos, eu o mostrarei por partes. [[ A roupa, a veste e o medicamento, fazem parte desse sustento que é simbolizado pelo pão. O pão simboliza algo mais do que simples alimento. Benci diz que está baseando na frase hebréia, onde nesse caso a palavra pão talvez tenha esse significado amplo, de sustento, de necessidades básicas. Nesse momento ele está citando De Piña que comenta o Eclesiástico. O enfoque maior de Benci é mais no Eclesiástico do que na plenificação em Cristo. A idéia central é a de que o pão significa as necessidades vitais, não apenas alimentícias, mas vitais. Ao se referir ao Pai Nosso ele articula o Eclesiástico com a palavra de Jesus e coloca o servo também como filho que pede o pão nosso.]] §1 Do Sustento, que devem os senhores aos servos 13. A primeira obrigação que se inclui no nome de pão, que o senhor deve ao servo para que não desfaleça, panis, ne succumbat, é o sustento. Esta obrigação não se funda somente em alguma lei positiva, senão também na mesma lei natural, que, obrigando a cada um a procurar o sustento da própria vida; como o servo, por dever a seu senhor todas as obras de seu serviço, o não possa granjear para si, obriga a que lho dê o mesmo senhor. [[ Aí, além da Revelação, ele acrescenta um argumento novo que é a lei, apresentando a distinção entre direito positivo e lei natural. Lei positiva é aquela que foi estabelecida, promulgada, determinada. Lei natural é aquela que está na natureza das coisas, na natureza íntima do homem. Para ele a obrigação do sustento faz parte da própria lei natural. Mesmo que a lei positiva não a determine, a lei natural a faz. É a lei da sobrevivência. Como o servo não pode granjear seu próprio sustento, isto obriga a que o senhor o faça. Assim, o elemento novo que ele traz é a fundamentação na lei natural que, de acordo com o pensamento da época, vem de Deus que gravou no coração das coisas, do homem, todos os povos a tinham gravado no coração, na sua interioridade profunda e, ao mesmo tempo, na natureza das coisas. Era uma espécie de ‘decálogo’ que todos os povos teriam, da lei natural. Esse conceito de lei natural, depois, vai ser muito criticada pelos iluministas e positivistas. A Igreja sempre sustentou radicalmente a existência de um ‘direito’ natural que era algo de sagrado para ela, mas, na revisão pósconciliar, na revisão da teologia moral do século XVI, e com a consolidação do Direito Canônico, em vez do direito natural, começou-se a empregar a palavra normatividade antropológica, sobretudo aplicada à cultura humana. Porque antes se falava em uma lei natural extensiva aos animais, mas a expressão normatividade antropológica é uma expressão mais rica e de significado cultural, que se refere especificamente ao ser humano. Agora, a maneira como vai se normatizar, vai variar de cultura para cultura. Assim, pressupõe a comparação entre todas as culturas.]] 14. Reconheceram os legisladores do Direito comum ser tão forçosa esta obrigação, que acharam que devia ser preferida [[preferida quer dizer anteposta, prioritária, sendo mais importante do que o pai sustentar o filho ]] à mesma obrigação tem o pai de sustentar ao filho; pois ainda que o servo tenha pai livre, determinaram que ao senhor, e não ao pai pertencia alimentálo (u). Text. in L.. Si neget 7, ff. de agnoscend. et allend. lib.(P.54) Comentário: As citações do texto não são seguidas de referências bibliograficas. Ele cita, supondo a erudição do leitor da obra) E a razão desta determinação é‚ porque não podendo o pai tirar proveito algum do filho cativo, não era justo que experimentasse o incômodo de o sustentar; pedindo a razão natural, e a mesma natureza, que quem tira o proveito de alguma coisa, esse mesmo e não outro, experimente e padeça os incômodos dela (x). Reg. 55. Qui sentit de reg. jur. in. 6. (P.54) [[Ele continua a raciocinar com argumentos jurídicos, se refere ao direito positivo (comum) e na segunda parte ele se refere à razão natural. O direito natural era a expressão da razão natural. Benci está concluindo a partir da própria natureza das coisas, o que se chamava, então, de direito natural e ele chama de razão natural, mas anteriormente, no item 13, ele falou em uma ‘lei natural’]] 15. Nem só concorre para declarar a força desta obrigação o Direito humano, mas também o divino: o qual proibindo severamente no Levítico, não só que nenhum estrangeiro, mas nem ainda o hóspede ou mercenário do Sacerdote comesse coisa alguma das que o povo oferecia a Deus (y) Omnis alienigena non comedet de Sanctificatis: inquilinus Sacerdotis, et mercenarius non vescentur ex eis. — Levit. 22, 10. (P.55). Comentário: O texto do Levítico está redigido da seguinte forma: “Nenhum estranho comerá das coisas santas: nem o hóspede do sacerdote e nem o servo assalariado comerão das coisas santas”); exceptuou desta lei ao servo, que o Sacerdote comprasse com o seu dinheiro, ou lhe nascesse em casa (z) Quem autem Sacerdos emerit, et qui vernaculus domus ejus fuerit, hi comedent ex eis. — Ibid. 11. (P.55). Comentário: Continuando o texto diz, no versículo 11: “Contudo, se um sacerdote adquire uma pessoa, a dinheiro, esta poderá comer da mesma forma que aquele que nasceu na sua casa; comem, realmente, do seu próprio alimento” ). Pois o que Deus não permite aos livres, há-de permiti-lo aos escravos? Sim. E razão, a deu Filo Hebreu tão própria, que não pode ser melhor ao nosso intento: Quia senus niffil lucratur, nisi ex domino, cuius ipse est possessio, ut necesse sit ali ex sacris proventibus (a) Lib. 2, de Monarch. (P.55). Porque como o servo não tenha, nem possa ter alguma outra coisa, senão o que lhe dá seu senhor e como o Sacerdote não tivesse outro sustento, senão aquele que lhe vinha das ofertas e sacrifícios, se o servo não pudesse comer delas, ficava desobrigado o Sacerdote do débito que tem qualquer senhor de dar o sustento ao escravo. Porém como esta obrigação nasce da mesma natureza, por isso proibindo Deus aos mais que não comessem nem das ofertas nem dos sacrifícios, que lhe faziam, declarou que não compreendia nesta lei aos servos dos Sacerdotes, por que estes livremente podiam comer e sustentar-se delas: Quem autem Sacerdos emerit, et qui vernaculus domus eius fuerit, hi comedent ex eis. [[Depois de ter argumentado tomando por base o direito positivo e o direito natural, ele vai agora argumentar tomando por base o direito divino, segundo o Livro do Levítico. Essa inserção de que as ofertas não podiam ser comidas por ninguém, exceto pelos servos, evidencia uma relação humanizante na sociedade bíblica referida. Mostra o direito humano do servo prioritário à sacralidade das oferendas. No Evangelho, Jesus vai referendar no ato da cura realizada no dia de sábado, quando Ele pergunta: no dia de Sábado é lícito fazer o bem ou o mal? o sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado. É a prioridade do homem sobre a sacralidade das oferendas e, mais do que isso, Benci lembra que nesse caso, a exceção é para o menor dos menores, que é o servo. É como se fosse a restituição de uma humanidade que lhe está sendo negada.]] 16. Sendo porém a obrigação, que têm os senhores de sustentar os escravos, imposta pela lei natural, e tão autorizada pelo Direito humano, e muito mais pelo divino; é contudo tal a crueldade de alguns senhores, que até o sustento, que tão liberalmente dão aos animais brutos, negam aos cativos. Quem não vê (diz S. Ambrósio) como nas casas de alguns senhores andam mui luzidos e gordos os cães; e pelo contrário pálidos e amarelos os servos, e tão consumidos da fome, que se não podem ter em pé (b) Vides enim in nonnullorum domibus nitidos, et crassos canes discurrere; homines autem pallidos, titubantesque incedere. D. Amb., Serm.33. (P.56). Há tal desigualdade! Que seja possível que se não falte aos brutos com o sustento, ainda à custa do escravo; e que se não dê ao escravo, que é homem racional e Cristão, o que se dá aos brutos! E já que aos servos se lhes dá o trabalho, opus, não é mais que tirana e bárbara injustiça, negar-lhes o sustento do que trabalham? [[ O que chama a atenção é que ele está mostrando uma norma e uma realidade que choca com esta norma. Uma norma que procede do direito natural, do direito positivo e do direito divino, no entanto, a realidade é tão chocante que o ser humano passa a se parecer com os animais. Santo Ambrósio foi um dos Padres da Igreja mais preocupados com os problemas sociais de sua época. Ele foi um cristão tardio e como catecúmeno ainda, foi proclamado pelos cristãos como bispo, prevalentemente por sua profunda sensibilidade para com os problemas da escravidão e da pobreza. Tem textos que ainda hoje são considerados dos mais interpelantes sobre essas questões. ]] 17. Foi preceito de Deus na Lei velha, e registado no Deuteronómio, o de que faz menção S. Paulo: Non alligabis os bovi trituranti (c) 1 Cor. 9,9.(P.56). Comentário: Na Epístola aos Coríntios, segundo a Bíblia de Jerusalém, está dito: “Com efeito, na Lei de Moisés está escrito: <<Não amordaçarás o boi que tritura o grão>>. Acaso Deus se preocupa com os bois? Não é, sem dúvida, por causa de nós que ele assim fala? Sim; por causa de nós é que isso foi escrito, pois aquele que trabalha deve trabalhar com esperança e aquele que pisa o grão deve ter a esperança de receber a sua parte”., conforme Benci já havia citado recorrendo à Epístola de São Paulo.) Guarda-te (1 No texto:Guar-te) (diz Deus) de tapar a boca ao boi, quando na eira debulha o trigo. E porque proíbe o Senhor o tapar-se nesta ocasião a boca ao boi? A razão é (diz Lira) porque trabalhando o boi no trigo para dar de comer a seu dono, parecia que era espécie de injustiça impedir-lhe o comer (d). Ad aliquam enim injustitiam pertinere videtur irrostrare bovem, ut nom possit de frugibus, in quibus actualiter laborat, comedere. — Lyra in cap. 25. Deuter. (P.56). Comentário: O versículo 4, do Capítulo 25, do Deuteronômio diz: “não amordaçarás o boi que debulha o trigo”). E não será manifesta injustiça, se trabalhando o escravo de sol a sol, para que coma e se regale seu senhor, não lhe de o mesmo senhor o sustento daquilo mesmo que trabalha? Quem o duvida? E mais quando o escravo (ainda com ser incapaz de todo o domínio, porque tudo o que adquire, adquire para seu senhor) tem rigoroso direito para haver do senhor o sustento do que trabalha, como coisa própria e sua. [[ Sabe-se de tabus alimentares que eram usuais na época colonial, e aos quais alguns autores atribuem ao medo incutido nos senhores para que os escravos não assaltassem as plantações à noite. Outra prática era a de alguns senhores que permitiam cultivo de pedaços de terra pelos escravos para as suas subsistência, só que, um grande número deles só permitia essa licença aos domingos e dias santos de guarda, prejudicando o escravo nos seus deveres religiosos. A expressão de Benci de que o escravo trabalha de sol a sol para que coma e se regale o seu senhor, revela como era típica essa situação naquele contexto, e como era desumano o dia a dia do escravo. Benci faz menção a São Paulo para mostrar e comparar que se o boi deveria ter sua ração garantida, mais ainda o escravo, homem. Assim, indiretamente, o autor está denunciando uma gritante desumanidade em que até os animais estavam em situação antecedente aos humanos escravizados.]] 18. Assim o declarou o mesmo Deus a Adão, quando rebelando-se contra seu Criador, o condenou como vil escravo a trabalhar na terra: In sudore vultus tui vesceris pane tuo, com o suor do teu rosto comerás o teu pão (e) Gen. 3, 19 (P. 57). Comentário: O texto bíblico diz: “Com o suor do teu rosto comerás teu pão”. [[Essa leitura que Jorge Benci faz de que o trabalho é uma maldição divina, por causa do pecado original, não é uma leitura positiva. O trabalho no Gênesis é uma benção bíblica, pois Deus, depois de criar a natureza, concedeu ao homem a faculdade de continuar a sua obra criadora: ‘crescei, multiplicai-vos e dominai toda a natureza’. Portanto, o trabalho não deve ser considerado como uma maldição bíblica. Maldição bíblica seria o aspecto doloroso decorrente das circunstancias sociais do trabalho. O trabalho não deveria ser específico do escravo e sim, específico do filho de Deus. Porém, no tempo de Benci, a idéia era a de que o trabalho era degradante, como pode-se observar nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia que usam a expressão corriqueira: trabalho ‘vil e baixo’, numa época em que os clérigos eram proibidos de fazer qualquer trabalho ‘vil e baixo’, como, por exemplo, cavar a terra, pois, segundo as Constituições, isso era um ato indigno do ministério do altar. Assim, esse conceito de trabalho ‘vil e baixo’, como o que era feito pelos escravos, foi uma deturpação do sentido bíblico do trabalho, em uma leitura feita a partir do ponto de vista do senhor. O conceito de ‘trabalho’ de Jorge Benci é, neste texto, um conceito negativo, Outro contexto e outra leitura poderia compreender que, na verdade, o trabalho é próprio dos homens livres e originou-se, na leitura bíblica, como uma bênção, como um meio de autorealização do homem, como construção da sociedade e como domínio sobre as forças da natureza. Com o advento do pecado original entraram alguns contrapontos ao trabalho como, por exemplo, a ociosidade, ou seja a fuga ao dever de trabalhar, a instrumentalização do trabalho humano pelos dominadores e a adoração do produto do trabalho ocupando o lugar de Deus. Cristo vai recapitular a dignidade do trabalho, quando assume a personalidade do trabalhador, como trabalhador e filho de trabalhador, um carpinteiro. ]] Reparo que diga Deus a Adão, que o pão era seu, e que nele tinha direito, como em coisa sua, pane tuo. Não é Deus o que dá a todos o sustento, como Senhor universal de todos? Assim é, diz David: Omnia a te expectant ut des illis escam in tempore (f) Psal. 103, 27. P. 57). Comentário: Na Bíblia de Jerusalém, a citação de Benci corresponde ao Salmo 104, versículo 27, que canta: “Eles todos esperam de ti que a seu tempo lhes dês o alimento: tu lhes dás e eles o recolhem, abres tua mão e se saciam de bens”). Pois se Deus é o que nos dá o pão, que comemos, como diz a Adão que o pão era seu, pane tuo? Advirtam nas palavras antecedentes, que nelas descobriremos a razão: In sudore vultus tui vesceris pane. Havia Adão de trabalhar, havia de cavar a terra, havia de suar para granjear o sustento; e o que trabalha, o que sua Adão, ainda que Deus, como Senhor absoluto de tudo, tenha nisso domínio, contudo não o reputa por seu, mas julga-o por próprio de Adão, que o trabalha e sua: In sudore vultus rui vesceris pane tuo. [[ Segundo a leitura da época, Deus ‘condenou’ Adão ao trabalho. O trabalho, nesta época, era visto como uma penalidade. Aos olhos de hoje o trabalho não é uma pena. Naquele contexto, o trabalho, a labuta, era espinhoso e vil. Porém, no sentido bíblico original, o próprio Deus ‘trabalhou’ na criação, e ‘descansou’, deixando ao homem a incumbência de continuar o Seu trabalho: ‘crescei e multiplicai-vos e dominai a terra’. Nesse sentido, o trabalho era considerado como uma participação do homem na obra criadora de Deus, devendo, pois, ser considerado como uma dignidade e não como uma penalidade. A pena é o aspecto doloroso do trabalho enquanto castigo imposto. Assim, essa leitura do trabalho como castigo tem que ser compreendida naquela sociedade onde a idéia de ‘castigo’ era decorrente de como vai se dar as condições de trabalho (trabalho escravo). A frase ‘com o suor do teu rosto comerás o teu pão’ enfoca o direito que o escravo deveria ter ao fruto do seu trabalho. O produto do seu trabalho deveria ser dele (do escravo). Vieira também vai se referir aos escravos: ‘vocês são como as abelhas, vocês trabalham mas o fruto do trabalho não é para vocês’. Isso seria uma inversão de uma lei natural. Todo o enfoque deste parágrafo, é pois, sobre a inversão do trabalho do africano escravizado, cujos frutos eram apropriados pelo patrão. No epílogo, Benci irá dizer que: no cristianismo primitivo os escravos pagãos que eram batizados adquiriam a liberdade, mas nas circunstâncias em que vivemos [diz Benci] eu não vou exigir isso de vocês patrões. Mas se vocês fizessem isso: dessem a liberdade por serem cristãos, não estariam fazendo nada mais do que fizeram os verdadeiros cristãos. Por outras palavras, esta adaptação, feita na Colônia, não é uma situação ideal, mas uma situação de cristãos não verdadeiros. Os verdadeiros cristãos não fariam isso. Voltando-se à preleção ao leitor, Benci sabia qual era o verdadeiro caminho, quando disse: ‘se és cristãos e tens escravos...’ A carta magna da liberdade humana, que era o Evangelho, todos conheciam. O grande problema era definir o que era possível ser feito naquela realidade. O que Benci não faz é canonizar uma realidade que deturpa o verdadeiro sentido do cristianismo. Ele tolera, aceita, sem aprovar.]] 19. Agora argumento assim: Se Deus, quando manda trabalhar a um servo tão rebelde como Adão, não só não lhe nega o sustento, mas declara que é seu: pane tuo, como vós, senhores, mandando trabalhar os vossos escravos, lhes tirais o sustento? Sois por ventura mais senhores ou tendes mais domínio nos escravos, que o mesmo Deus? Claro está que não. Pois como dizeis ao escravo: In sudore vultus tui vescar pane tuo? Com o suor do teu rosto ( no texto: rostro (p.58) hei-de comer ainda o teu pão, ainda o teu sustento? [[Esse parágrafo contém uma advertência muito importante, pois se o próprio Deus dá direito ao homem de viver do fruto do seu trabalho, como pode o homem ter a ousadia de colocar-se acima de Deus que disse ‘comerás o teu pão com o suor do teu rosto’ e dizer eu, patrão, vou comer do teu pão e o teu sustento. Ainda que fosse impossível para Benci pregar uma idéia de libertação, seu discurso é avançado e tem germes de libertação. No entanto, ele lança premissas que levariam a um pensamento libertário. Haveria, aos poucos, de por por terra o próprio conceito de escravidão que é a instrumentalização do trabalho do outro. Na forma retórica barroca, auxilia à sua idéia o contraponto de que, sendo Deus quem é, fazer pelo ser humano o que ele fez, e sendo o homem quem é, menor do que Deus, querer fazer diferentemente de Deus. Benci denuncia a ousadia de o patrão querer colocar-se acima do próprio Deus. Isto ele faz em um estilo que teria muito mais efeito para aqueles leitores a quem o discurso se destinava do que se fosse um estilo meramente filosófico.]] 20. E isto é o que dizem com as obras (quando o não digam com as palavras) os senhores, que não dão o sustento a seus servos, ou lhes não dão tempo suficiente, em que o possam buscar. Digo que lhes não dão o sustento ou tempo suficiente, em que o possam buscar; porque eu não condeno (antes louvo muito) o costume, que praticam alguns senhores neste Brasil, os quais achando grande dificuldade em dar o sustento aos escravos, que os servem das portas a fora nas lavouras dos Engenhos, lhes dão em cada semana um dia, em que possam plantar e fazer seus mantimentos, com os quais os que se não dão à preguiça têm com que passar a vida. [[ Quando ele diz que não condena, pelo contrário, louva os senhores que permitem o cultivo, ele mostra que era aquele um momento em que a prática daqueles que permitiam era uma prática rarefeita. Mas adiante ele vai falar sobre aqueles que permitiam, porém, no Domingo. Assim, quando ele louva, ele exclui estes últimos.]] 21. E quem lhes tira esse tempo (me direis vós) se não proibimos a nossos escravos, que nos domingos e dias santos busquem sua vida e trabalhem para si? Nos Domingos! Nos dias Santos! Dizei-me, senhores meus: onde vivemos? Em Berberia entre os Mouros de Argel ou no Brasil entre os Cristãos da Baía? Já vejo que me respondeis que entre os cristãos. E haverá algum Cristão, que não saiba que Deus manda santificar as festas e guardar os dias santos; e que é pecado mortal, fora do necessário e preciso, mandar que se trabalhe nestes dias? Logo, se por faltar com o sustento aos escravos, os obrigais a procurá-lo nos domingos e dias santos: não vedes que pecais gravemente, contra o terceiro Mandamento da Lei de Deus? [[Aqui ele fala da maioria, aqueles senhores que davam o dia de Domingo para que os escravos trabalhassem a terra para tirar o sustento, pondo em prejuízo a guarda do dia santo, como reza o terceiro Mandamento. Além disso, ele relembra que está falando para cristãos da Bahia em um tempo onde tudo girava em torno da religião, com prática religiosa obrigatória e eivada pela fé, apesar das contradições daquela época. Nesse caso, ele tenta recuperar a condição de cristão daqueles senhores. Ele diz que, na prática, aqueles são piores do que os da Berbéria. Compreende-se daí, que é um tempo de muita fé mas uma ‘fé’ que, se por um lado nega o ateismo e a falta de fé, por outro lado, na prática, se negava completamente o ‘Credo’ que na missa eles professavam. O fato de ele elogiar aqueles senhores que davam um dia da semana, sabe-se que os jesuítas praticavam o sustento dos escravos pelo seu próprio trabalho (Frei Hugo vai dar o texto). 22. Quanto mais que desocupando do serviço os escravos nestes dias, e dando-lhes liberdade para que trabalhem para si, nem por isso ficais desobrigados de lhes dar o sustento. E a razão disto é, porque tendes duas obrigações mui distintas e mui diversas: a primeira é não ocupar os servos nos domingos e dias santos; a segunda, dar-lhes o sustento. E assim, desocupando-os nestes dias do serviço, cumpris com a primeira obrigação; porém fica ainda em pé a segunda, porque é direito mui claro, que com uma só paga não se pode satisfazer a duas dívidas totalmente distintas e diversas. Há-de ser pois uma de duas, se quereis cumprir com a obrigação, que tendes como senhores: que ou lhes haveis de dar o sustento, ou lhes haveis de dar tempo suficiente (e esse distinto dos domingos e dias santos) em que o possam granjear. [[ 23. De outra sorte que há-de suceder, senão o que ordinariamente acontece? Ou morrem os escravos à fome ou furtam o alheio para sustentarem a vida! E em qualquer caso destes, quem não vê os pecados, com que agrava o Senhor a sua consciência? Porque se o servo perde a vida consumido da fome, é o senhor homicida do mesmo servo; pois é direito expresso, que não só comete homicídio quem mata á espada ou com qualquer outro instrumento ofensivo tira a vida, mas também quem nega os alimentos devidos (g). Necare videtur, qui alimoniam denegat. — Lib. 4, ff. de agnoscend. et alend. lib. (p.59). Pareceu a S. Ambrósio, que quem negava a esmola ao pobre necessitado, deixando-o perecer, era réu na morte do mesmo pobre (h) Si non pavisti, occidisti. D. Ambr. apud Gratian. Dist. 76, cap. Pasce. (P.59). Pois se incorre no homicídio quem nega a esmola ao pobre, faltando somente à caridade; como não ser homicida o senhor, que negando o sustento ao servo, não só falta à caridade, mas também à justiça? Com quanta maior razão se pode dizer deste senhor: Si non pavisti, occidisti! Não destes ao servo o necessário sustento? Logo mataste-lo e sois homicida. [[ Jorge Benci, não só por ser italiano, e por isso não submisso aos imperativos da Coroa Portuguesa, não só por ser jesuíta, mas, por ser jesuíta e por ter tido uma condição de estudo intelectual que o transformou em um teólogo e conhecedor da história bíblica, detém uma consciência e um posicionamento moral que não se limita apenas ao senso comum temporal vigente na Bahia colonial, porém, trabalha com argumentos que estão além daquela realidade imediata. Ele vê a história como um grande processo e não apenas estaticamente no aqui e agora do século XVIII.]] 24. Este é verdadeiramente o caso, em que se verifica um texto mui dificultoso do Eclesiástico, que diz assim: Quem derrama o sangue do inocente e quem defrauda ao trabalhador o seu jornal, são como irmãos (i). Qui effundit sanguinem et qui fraudem facit mercenario, frates sunt: Eccli. 34, 27.(P.60). Comentário: Esse conteúdo corresponde aos versículos 20 a 23, na tradução da Bíblia de Jerusalém: “Como o que imola o filho na presença de seu pai, assim é o que oferece um sacrifício com os bens dos pobres. Escasso alimento é o sustento do pobre, quem dele o priva é um homem sanguinário. Mata o próximo o que lhe tira o sustento, derrama sangue o que priva do salário o diarista. Um constrói, outro destrói”). Isto é (dizem Lira e Rabano) cometem igual crime e semelhante pecado (1). Similes et pene pares in scelere. — Lyra, et Raban. Hic. (P.60). Mas quem não vê a dificuldade desta comparação? Quem nega ou diminui o jornal ao jornaleiro tira-lhe a fazenda; quem derrama o sangue do inocente tira-lhe a vida. Pois se o pecado de tirar a vida, sem comparação é maior do que o de tirar a fazenda; como diz o Espírito Santo que são iguais e como irmãos, Fratres sunt? Desfaz admiravelmente esta dificuldade a versão dos setenta nesta forma: Quem tira o sustento, de cuja falta se segue a morte do próximo, mata-o; e quem tira o jornal ao jornaleiro, derrama-lhe o sangue (m). Qui aufert victum occidit proximum; et qui fraudat mercedem mercenarii, effundit sanguinem. — In Veteri Testamento juxta LXX. Latine red. et jussu Sixti V edito.(P.60). [[ Ele continua reafirmando, agora mediante a citação bíblica, que negar o sustento é um verdadeiro assassinato. A versão dos setenta foi a tradução do Antigo Testamento, feita para o grego, por setenta padres, em Alexandria, alguns séculos antes de Cristo............. 25. Parece-me que nestas palavras argumenta o Espírito Santo desta sorte: quem tira o jornal ao jornaleiro (1) No texto: jornaliero, nas diversas vezes que aqui aparece (p. 60), que disso vive, tira-lhe o sustento; quem tira o sustento, mata aquele a quem o tira; logo quem falta com o jornal ao jornaleiro, mata-o. Quem duvida logo que igualmente peca quem não paga ao jornaleiro e quem tira a vida ao próximo, porque ambos matam, um à espada, e outro à fome? Pergunto agora. Há jornaleiros mais pobres e necessitados, que os escravos? Ou h jornal mais justo e mais devido, que o sustento aos servos? Merces servi cibus est, diz Aristóteles: 0 sustento ‚ o jornal, que deve ao servo o senhor (n) Arist. Lib.I Oecon., cap. 5.(P.61). Logo quem pode negar, que negando o senhor o sustento ao servo, faz o mesmo que se o matara; pois se o não mata ... espada, mata-o ... fome? Qui aufert victum, occidit proximum; et qui fraudat mercedem mercenarii, eflundit sanguinem. 26. E se o servo obrigado da necessidade furta para sustentar a vida; ainda que ele nÆo cometa -pecado, poi como diz o prov‚rbio, a necessidade nÆo tem lei; quem duvida que peca o senhor, que por faltar ao escravo com os alimentos necess rios, o necessitou a furtar o alheio? E a razÆo ‚ -evidente. 'Porque, -como diz o Direito, aquele faz o dano, que ‚ ocasiÆo e causa de se fazer o tal dano: Verum, est, eum, qui causam prœebuit damni dandi, daninum dedisse (o) L. Pretor. 4 § sed et si quis ff. de vi bonor. raptor.(P.60).. Sendo pois os senhores, que faltam aos servos com o sustento, a causa dos furtos que eles cometem; quem duvida que ficam obrigados ... restituição destes furtos, e a refazer todas as perdas e danos, que deles se seguem; e que não pode haver confessor, que os absolva destes pecados, sem que restituam primeiro o que furtaram seus escravos constrangidos da fome? Logo, se não quereis cair nestes pecados, e na obrigação destas restituições, dai de comer a vossos servos, ou dar-lhes tempo conveniente em que o possam granjear. 27. Senhores h , que não faltam aos escravos com a ração quotidiana; mas esta ‚ tão limitada e escassa, que mais serve para que não Morram ... fome do que Para que sustentem a vida. Se ao servo se lhe medisse o trabalho pela mesma medida, com que se lhe mede o sustento, calara-me eu nesse ponto. Por‚m que haja o escravo de trabalhar Como mouro, e comer como formiga: não sei que direito o permita! 0 que sei ‚ que o sustento do escavo deve ser em tanta quantidade, que antes lhe sobeje do que lhe falte. Assim 0 notou S. João Crisóstomo comene tanto as palavras do Apóstolo, em que manda aos senhores que guardem aos escravos o que ‚-justo e racion vel (p) Domini, quod justum est et æquum, servis præstate. — Coloss. 4, 1.(P.62). Comentário: As palavras do Apóstolo Paulo a que se refere Benci, são as seguintes: “Quem faz injustiça receberá de volta a injustiça, e nisso não há acepção de pessoas. Senhores, daí aos vossos servos o justo e eqüitativo, sabendo que vós tendes um Senhor no céu “). Mas que ‚ o que convém e ‚ justo que guardem os senhores para com os servos? pergunta S. João Crisóstomo: Quid vero iustum est? Quid xquum? Dar-lhes o sustento com tanta abundância, que não necessitem de recorrer a outros. Omnia abunde (responde o mesmo Santo Doutor) suppeditare, et non ita ut aliarum ope indigeant (q). Crysost. Hom. 10. in cap. 4. Epist. ad. Coloss.(P.62). 28. Que bem entendeu esta doutrina aquela Mulher forte tão celebrada nos Provérbios! Por isso as rações que repartia pelas escravas, não as media pelo singular, senão pelo plural: Et cibaria ancillis suis. Porque não lhes dava o sustento com mão escassa, mas mui liberal; nem s¢ lhes dava o pão, mas também o conduto, cibaria ancillis suis (r) Prov. 31, 13) Comentário: O trecho que fala da prodigalidade da ‘perfeita dona de casa’ diz o seguinte: Noite ainda, se levanta Para alimentar os criados. E dá ordens às criadas... Estende a mão ao pobre, ajuda o indigente. Se neva, não teme pela casa, porque todos os criados vestem roupas forradas.... Porque como ‚ possível que o escravo ou escrava, andando em contínua lida e trabalho, sustente a vida com uma ração escassa de farinha de pau, sem outra coisa que a ajude a levar? Se ‚ verdade que não pode o homem sustentar a vida unicamente com pão, ainda sendo o pãode trigo: Non in solo pane vivit horno (s) Matth. 4, 4. Comentário: O texto se refere à resposta de Jesus ao demônio, no deserto: “Nem só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus”); como se há-de sustentar o miserável escravo sem outra coisa mais que uma triste ração de farinha de pau? Não vedes que isto‚ fazê-los comer terra? Porque, vendo-se tão perseguidos da fome e do trabalho, a comem, e acabam miseravelmente a vida (1) 29. E j que estamos neste ponto, não quero deixar de dizer aos senhores do Brasil, que bem podiam aprender dos antigos Romanos a não ser tão escassos nas rações que dão aos servos, como o não são nas distribuições das tarefas. Eram os servos em Roma tratados de seus senhores com tanta abundância no sustento (como escreve Donato no comento de Terêncio) que só em pão lhes davam cada mês três medidas de trigo, a que chamavam módio. Cada módio, pela calculação de Berlinch, continha dezasseis sextários, e cada sextário quinze onças de trigo (t) Donat. Apud Berlinch. in Theat. Vit. hum. Lit. S., verb. servor, victus et dicta. Apud. eund. lit. M, verb. Mensura. (P.63). ; e assim, pela conta dos arráteis de Portugal, cada módio vinha a ter quinze libras de trigo.- E dando os senhores aos escravos três módios de trigo em cada mês, vinham estes a ter quarenta e cinco libras de trigo, que com o crescimento da água com que se amassa, dão sustento mui abundante parà qualquer trabalhador. 30. E porque em tempos de Juvenal havia em Roma certo pai, que entre os mais documentos que dava a um seu filho para que não desperdiçasse a fazenda era que cortasse Pela ração dos escravas, falsificando a medida; Ponderou a ambição deste pai o Poeta, e com liberdade disse assim: Servorum ventres modio castigar iniquo (u). Juvenal., Sat 14. Não se hajam desta sorte os senhores do Brasil, e dêem aos escravos o sustento com tal medida, que não dêem causa a que os ventres dos mesmos servos famintos e queixosos murmurem da mis‚ria do senhor, e não cheguem a desfalecer à fome: panis, ne succumbat. § II Do vestido, que devem os senhores aos servos 31. Debaixo do nome de os senhores aos servos pão, que devem os senhores aos servos, se entende também o vestido, sendo que por boa razão parece que deviam andar todos despidos, visto que a servidão e cativeiro teve sua primeira origem do ludíbrio, que fez Cam, da desnudez de Noé seu Pai. Sabido é, que dormindo este Patriarca corri menos decência descoberto, vendo Cam, e escarnecendo desta desnudez a foi publicar logo a seus irmãos; e em castigo deste abominável atrevimento foi amaldiçoado do Pai toda a sua descendência, que no sentir de muitos ‚ a mesma geração dos pretos que nos servem (x) Joan Leo African. in descript. Africæ, lib. I. (P.65).; e aprovando Deus esta maldição, foi condenada ... escravidão e cativeiro: Maladictus Chanaan; servus servarum erit fratribus sitis (Y) Gen. 9, 25.(P.65). Comentário: O texto se refere à maldição lançada a Cam e a toda a sua descendência, pelo seu pai, Noé, pelo desrespeito que ele tivera consigo: “Quando Noé acordou de sua embriaguez, soube o que lhe fizera seu filho mais jovem. E disse: << Maldito seja Canaã! Que ele seja, para seus irmãos, o último dos escravos! >> E disse também: << Bendito seja Iahwe, o Deus de Sem, e que Canaã seja seu escravo! Que Deus dilate Jafé, que ele habite nas tendas de Sem, e que Canaã seja seu escravo! >>”. Justo era logo, que tivessem os escravos, e singularmente os pretos, em lugar do vestido a desnudez, para ludíbrio seu e exemplar castigo da culpa cometida por seu primeiro Pai. 32. Mas com parecer isto assim, ‚ verdade indubitável e certa, que não são menos obrigados os senhores a dar aos servos o alimento, com que se mantenham e sustentem, do que são obrigados a dar-lhes também o vestido, com que se cubram. Assim ;:) entendeu Jacob. Espertou Jacob do prodigioso sono, em 'que' viu aquela escada composta de mais mistérios que degraus; e diz o texto, que fizera a Deus este voto: se Deus me der pão para comer e vestido para me cobrir, prometo de o reconhecer sempre por meu Deus e meu Senhor (z) Vovit etiam votum, dicens: Si — Deus — dederit mihi panem ad vescendum, et vestimentum ad induendum, — erit mihi Dominus in Deum. — Gen. 28, 20 et 21. (P.65). Comentário: O texto em português, diz assim: Jacó fez este voto: << Se Deus estiver comigo e me guardar no caminho por onde eu for, se me der pão para comer e roupas para me vestir, se eu voltar são e salvo para a casa do meu pai, então Iahweh será meu Deus >>”. E porque não se contentava Jacob com o sustento, senão que para ser servo do Deus com quem falava, queria também o vestido? Não basta que Deus lhe dê pão, para que o reconheça e sirva como a seu senhor? Não. E porque não? A razão é: porque a obrigação do senhor não é só dar o sustento ao servo para se alimentar, mas também o vestido para se cobrir. Eu faço voto, diz Jacob, Vovit et¡am votum, de reconhecer a Deus Por meu senhor, erit mihi Dornirtus; porém há-de ser como condição, que me dê pão para comer, si dederit mihi Panem ad vescendurn; e vestido para me cobrir, et vestimenturn ad induendum. Assim pacteava Jacob Com Deus; e assim o executou Deus com Adão. 33. Pelo pecado ficou Adão, de senhor que era, escravo e -bem escravo. Deu-lhe Deus o sustento, como já disse, in sudore vultus tui vesceris pane tuo (a) Gen. 3, 19. (P.66). Comentário: O texto se refere à perdição de Adão e ao castigo que lhe foi dado por Iahweh: “Com o suor do teu rosto comerás teu pão” e, para se mostrar senhor verdadeiro e perfeito, deu-lhe também, assim a ele como a sua mulher, o vestido. Fecit quoque Dorninus Deus Adce et uxori eius tunicas pelliceas et induit eos (h). Ibid. 21.(P.66). Comentário; “Iahweh Deus fez para o homem e sua mulher túnicas de pele, e os vestiu”. 0 meu reparo está naquele fecit, que Deus mesmo com suas mãos lhes fizesse o vestido. Não podia o Senhor mandar a Adão que matasse algumas feras, e que com as peles delas se vestisse a si e a sua mulher? Quem o duvida? Pois porque lhes faz o mesmo Deus com a sua mão os vestidos, fecit Dorninus Deus? A razão está naquela palavra Dorninus, Senhor. Porque sendo Deus o verdadeiro exemplar e norma dos senhores, quis satisfazer cabal e perfeitamente à obrigação de senhor. Se Adão caçara as feras, era mostrar que o escravo devia buscar o com que se vestir. Pois não seja assim; corte-lhe o mesmo Deus com sua mão o vestido, já que ‚ Senhor - Fecit quoque Dominus Deus Adae et uxori eius tunicas pelliceas - para que saibam e entendam os senhores que a eles pertence dar o vestido aos escravos, e não aos mesmos escravos o procurá-lo. 34. Sendo pois obrigação precisa do senhores vestir aos servos: como se acham senhoras, que não dando com que se vistam ...s escravas, as querem mui bem trajadas? E de que sorte hão-de buscar elas estes trajos e estes vestidos? Pedindo-os de esmola? Se vós, que lhos deveis, de justiça, lhos não dais: como lhos há-de dar por caridade quem lhos não deve? Sabeis o que é isto? É querer que elas o comprem a preço de pecados. E queira Deus que o não façam melhor, ou pior, do que eu o digo! Senão, dizei-me: de que e com que se traja a maior parte das escravas de todo o Brasil, senão à ousta das ofensas que cometem contra Deus? E haver senhores e senhoras, que obriguem ou consintam que suas escravas se trajem com as ofensas de Deus, e façam gala de sua culpa? Tomara saber onde está aqui o brio, o timbre e o pundonor dos Portugueses (1)! Em 1700, quando se escreveu este livro, no Brasil chamavam-se Portugueses não só os nascidos em Portugal, mas todos os nascidos no Brasil, que não fossem Índios nem Pretos.(P.67). 35. Bem sei que o ornato 'dos servos ‚ crédito dos senhores; porque, como diz S. João Crisóstomo, o senhor que consente que seus escravos andem indecentemente despidos, ou tão rotos, que mais serve o vestido de os descobrir que os cobrir, a si mesmo se desonra (c) Qui servos suos indecore nudos, ac detritis obsoletisque vestibus esse sinit, sui corporis bonam partem dedecore afficit. — Chrisost. Apud Salazar. Comment in Prov. Salom. C. 31, v. 21, n. 122. (p.67). Comentário: São Chrissostomo................ Na tradução usada no presente texto, o trecho dos contrário, tanto redunda em cr‚dito do Provérbios diz o seguinte: “. E pela senhor o bom trajo do servo, que julga o Santo Doutor ser às vezes melhor vestido do servo a melhor gala do Senhor (d). Ita ut nonnumquam expediat servos, ac domesticos alios splendidius indui, et conversari, quam dominos. — Ibid.(P.68) .Mas isto se deve entender, os que lhe dão o vestido. Por sendo o senhor e a senhora que verdadeiramente não sei que honra seja levar a senhora atrás de si um grande número de escravas, trajadas todas com a libré do pecado, tão vária nas sedas, e nas cores, como são várias as mãos de quem a receberam. 36. A libré, há-de dá-la o senhor e a senhora; e se eles é a dão, logo se divisa pela mesma cor em todos os servos. Dos servos daquela Mulher forte (que por tais se devem entender os domésticos, na opinião de Jansénio) diz o texto no original hebreu, que todos se vestiam da mesma cor carmesim (e) Omnes domestici ejus vestiti sunt coccineis. — Prov. 31, 21, juxta Hebr.(P.68). Comentário: Na Bíblia de Jerusalém, o versículo (22) completo diz assim: “Se neva, não teme pela casa, porque todos os criados vestem roupas forradas”. Mas por que razão da mesma Cor? Porque a todos teceu esta Mulher forte a libré e talhou o vestido com suas mãos (f) Quæsivit Lanam et linum, et operata est consilio manuum suarum, — Proverb. 31, 13. (P.68). Comentário: A tradução correspondente diz: “Adquire a lã e o linho, e trabalha com mãos hábeis”. E como todos estes vestidos vinham da mesma mão, diz Salazar (g) Ex telis, quas ipsa manibus suis contextuit, vestimenta eisdem partitur. — Salazar, ubi supra n. 123.(P.68)., por isso todos eram da mesma cor: Omnes domestici vestiti sunt coccineis. E eis aí a razão porque as vestidos de vossas escravas são de tão diversas cores, porque saem de diversas mãos. 37. E não vedes que cada cor destas . ‚ urna nódoa, que mancha a vossa honra? é a morte, cor do vosso brio e a esplêndida mortalha do vosso cr‚dito; porque estes trajos adquiridos e granjeados com o pecado das escravas não são vestidos. E porque o não são? Porque não cobrem nem encobrem-o que deviam encobrir. 0 principal fim do vestido 'foi para ocultar o que não era decente que andasse exposto aos olhos de todos. Pois isto ‚ o que falta a essas galas fabricadas e cortadas na oficina do pecado; que em lugar de encobrir, manifestam a soltura das escravas, e conseguintemente a mis‚ria, com que os senhores e as senhoras se fazem cúmplices dos pecados das servas. 38. Pecou Adão, e tanto que ouviu a voz de Deus que o buscava no Paraíso, diz o texto, que, fugindo da sua vista se escondeu, abscondit se (h) Gen. 3,8 (P.69). Comentário: A tradução hebraica é a seguinte: “Eles ouviram o passo de Iahweh Deus que passeava no jardim à brisa do dia e o homem e sua mulher se esconderam da presença de Iahweh Deus, entre as árvores do jardim”.). Pára, fugitivo, vem cá : porque te escondes, Adão? Porque me vejo despido e descoberto, diz o mesmo Adão (i). Timui eo quod nudus essem, et abscondi me. Ibid. 10 (P.69). Comentário: Continuando, os versículos 9 e 10 dizem: “Ihaweh Deus chamou o homem: << onde estás? >> Disse ele. << Ouvi teu passo no jardim >>, respondeu o homem; << tive medo porque estou nu, e me escondi >>). Aqui reparo. Se Adão e Eva, logo que pecaram, e se lhes abriram os olhos para verem sua desnudez, se vestiram com folhas (1) Et aperti sunt oculi amborum cumque cognovissent se esse nudos consuerunt folia ficus, et fecerunt sibi perizomata. — Ibid. 7.(P.69). como diz Adão que estava despido? A razão se deve colher da mesma figueira, donde Adão e Eva colheram as folhas, de que teceram o vestido, com que cobriram sua desnudez. Esta árvore, ‚ comum parecer, que foi a mesma árvore, por causa de cujo fruto pecaram, diz Basílio de Selêucia (m)Circa arborem prævaricati, ab ipsa tegumentum mutuantur. — Orat. 3. In Adamum. (P.69).. E vestido, tirado da árvore 'que foi ocasião do pecado, não encobre, descobre e manifesta mais a culpa: por isso ainda depois de vestido se achou Adão despido mais do que era dantes: timui eo quod nudus essem. Logo se as escravas tiram os trajos e as galas da ocasião do pecado, por mais vestidas e trajadas que andem, mais descobrem a sua dissolução e conseguintemente a mis‚ria de quem, faltando-lhes com o vestido, concorre para as suas dissoluções. 39. Que se h logo de fazer? 0 mesmo que fez Deus com Adão e com Eva. Vestiu Deus a Adão e Eva, com temos dito, com peles de animais (n) Fecit quoque Dominus Deus Adæ, et uxori ejus tunicas pelliceas, et induit eos. — Gen. 3, 21. (P.70). Comentário; “Iahweh Deus fez para o homem e sua mulher túnicas de pele, e os vestiu”.) E não me admirara eu de que os vestisse, se os achara despidos; por‚m que os vestisse achando-os vestidos, isso ‚ o que me admira. Se Deus vestira a Adão e Eva, quando eles se viram despidos logo que se lhes abriram os olhos depois do pecado, fizera o que devia a Senhor, porém depois de eles terem feito os seus vestidos de folhas, tomos a vestir e com vestidos de sua mão -Fecit quoque Dominus- Deus! - parece que satisfaz mais a sua liberalidade, e excedeu as obrigações de Senhor. Assim parece, mas não foi assim. Não disse eu já que as folhas, com que Adão e Eva se vestiram, foram tiradas da árvore que ocasionou a culpa? Pois eis aí a razão, que teve Deus para vestir de novo a Adão e a sua mulher. Vestidos estavam Adão e Eva; por‚m esse vestido era tirado da árvore, que havia sido a ocasião do pecado e ofensa de Deus; e com semelhante vestido não consente Deus que se trajem Adão e Eva, para que não façam gala de sua culpa; por isso os despe dessas folhas e lhes d novo vestido à sua custa: Fecit quoque Dominus Deus Adce et uxori eius tunicas pelliceas. 40. Pergunto agora: que são aquelas holandas, aquelas telas e primaveras, aquela redagem (1) Redagem. Como soa: véus, enfeites de redes ou tecidos de malha; talvez redagem tendo caído o til do e: ornatos opulentos de renda.(P.71). e oiro, com que se trajam as vossas escravas, senão folhagem de vaidade, tirada por fruto da ocasião do seu pecado? Tirai-lhes logo todos esses trajos e dai-lhes o vestido que lhes deveis. Porque se vós-lho não dais, e elas o granjeiam com ofensas de Deus: por conta de quem correm estes pecados? Por conta delas e vossa também; pois por lhes faltardes com o vestido, vindes a ser a principal causa de tantas culpas. 41. A desculpa comua e vulgar dos senhores e senhoras do Brasil nesta matéria, é dizerem que suas posses não chegam a poder vestir tanto número de escravos e escravas. Boa razão era esta, se eu obrigasse a dar-lhes vestidos e galas de grande preço. Mas nem eu, nem Deus obriga a tanto, senão só a cobrir de tal sorte os escravos, e principalmente as escravas, que não andem indecentemente vestidos. E se houver quem diga que nem com esse vestido, assim decente e de pouco custo, pode acudir aos seus escravos; eu lhe responderei,. que se não tem posses para os vestir, não tenha posses para os ter. E senão, dizei-me: se não tivesseis tom que pagar ao trabalhador o seu trabalho, havíeis de o alugar? É certo que não. Pois do mesmo modo: se não tendes com que vestir os escravos, ‚ justo que os tenhais? Também digo que não; porque igualmente ‚ devido o vestido ao escravo, e o jornal ao trabalhador. 42. Além de que os que isto dizem, não são comumente os mais pobres, porque estes não deixam de acudir aos seus os mais abundantes e ricos, a quem eu temo muito sejam do número daqueles ricos mentirosos, de que fala o Eclesiástico no Capítulo vinte e cinco. Três espécies de homens, diz o Eclesiástico que aborrece Deus e abomina e detesta suas almas (o) Tres especies odivit anima mea, et aggravor valde animæ illorum. — Eccli. 25, 3. (P.72).Comentário: A tradução, a partir do texto hebraico é: “Há três coisas que minha alma deseja, Que são agradáveis ao Senhor e aos homens: a concórdia entre irmãos, a amizade entre vizinhos, um marido e uma mulher que vivam bem”. Porém, o trecho a que se refere Benci encontra-se no versículo 2: “Mas minha alma detesta três tipos de pessoa; irrito-me profundamente com o seu viver” O pobre orgulhoso, o rico mentiroso, o ancião adúltero e estulto”.). Deixando por agora o primeiro e o terceiro, vamos ao segundo, que ‚ o rico mentiroso, divitem mendacem (p) Ibid., 4 (P.72). Comentário: Benci fala do rico mentiroso. 43. Mas que rico mentiroso ‚ o de que fala aqui o Espírito Santo? Não ‚ outro (diz S. Agostinho) senão aquele, que, por não satisfazer a suas obrigações, diz que não pode; sendo que a verdade ‚ que não quer (q). Potest in iis, quæ vult; in iis, quæ non vult, non potest. D. Aug. apud in Quadrag. con. 22, § 14. (P.72). Pode gastar em jogos, pode gastar em galas,, pode gastar no sustento e regalo da concubina; e tudo pode, por que quer, potest in iis, quec vult, mas não pode acudir com um retalho de pano ao seu escravo, que anda despido e nu; e a razão porque não pode ‚ porque não quer, in iis, quce non vult, non, potest. Entendam pois estes mentirosos ricos que não enganam, nem mentem a Deus; pois bem conhece que a razão, porque não querem podendo, ‚ o pouco caso que fazem de que, por falta do vestido, o ofendam os escravos. 44. Direis ainda (e esta ‚ a segunda desculpa, das que costumam alegar os que buscam pretextos , para não satisfazerem ao que devem) que os escravos (e com maior razão as escravas) não se contentam com qualquer sorte de vestidos, porque querem romper sedas e galas de subido preço, e não podem os cabedais 'dos senhores satisfazer a este luxo e vaidade dos servos. Esta razão, ainda que aparente, é indigna de que a profira um senhor, que tem obrigação de fazer que os servos se contentem com o vestido que lhes d . E quando não queiram contentar-se, deve fazer o que fazia certo senhor bem conhecido nesta Baía, onde isto escrevo. Costumava este dar aos seus escravos todo o necessário para andarem decentemente vestidos; e se acaso sabia que algum ou alguma se trajava com outra libré, que ele lhe não houvesse dado, além de lha queimar ... sua vista, mandava que lhe dessem o merecido castigo. 45. Oh! se quisesse Deus que todos os senhores do Brasil observassem este bom costume, digno na verdade de que todos o observem! Quantas e quantas ofensas de Deus se evitariam, principalmente nas escravas! Sejam pois os senhores tão tementes a Deus, que não facilitem as ofensas do mesmo Deus aos escravos, negando-lhes o vestido que lhes devem; pois igualmente com o sustento se compreende o vestido na palavra pão, sem o qual perecer o servo: panis, ne succumbat. § III Do cuidado, que devem ter os senhores dos servos em suas enfermidades 46. Ultimamente, debaixo do nome pão, de que os senhores são devedores aos servos, se incluem também os medicamentos e o cuidado, com que são obrigados a lhes ssistir no tempo da enfermidade. 0 objecto mais próprio e para onde mais deve inclinar a piedade Cristã, são os enfermos, e com singularidade os servos, por ser maior o seu desamparo nas doenças; pois chegando o escravo ao lamentável estado de enfermo não há bem algum, de que não fique privado. 47. De todos os bens naturais o único, de que goza o escravo ‚ a saúde. 0 bem da riqueza, não o alcança; porque nada tem de seu, pois pertence a seu senhor tudo o que lucra. Menos alcança o bem das delícias; pois vive continuamente entre os trabalhos e penalidades do cativeiro. No bem da honra não tem parte alguma; porque pelo direito são os servos reputados e contados entre as pessoas infames. E assim, s¢ lhes resta o bem da saúde. Mas se este bem único, que possuem, lho tira a enfermidade; quem não vê que então ficam desamparados de todo o bem e no estado da maior mis‚ria e desamparo? E se a miséria quanto ‚ maior, merece mais compaixão, sendo o estado dos servos enfermos mais miserável que o de todos os outros enfermos (aos quais, quando lhes faltam os mais bens, não falta ao menos o da liberdade para buscarem o amparo, da Santa Casa da Misericórdia, cuja porta se não abre aos Escravos) claro está que sobre todos os mais enfermos, merecem mais os servos que neles se empregue a piedade Cristã. 48. Sendo contudo isto assim; no Brasil (e queira Deus que s¢ no Brasil) se acham senhores de entranhas tão pouco compassivas e em tanta maneira duras, que logo que vêem os servos enfermos (principalmente se a doença pode cura dilatada e custosa) os desamparam, deixando-os á discrição da natureza, e indiscrição e rigor da enfermidade. Que entre Cristãos pudesse haver tirania e crueldade semelhante, eu o não crera, se a experiência não tivesse manifestado a meus olhos espectácu-los tão lastimosos nesta matéria, que se podiam avaliar por grande excesso, ainda quando tivessem acontecido em Berberia nos escravos de Argel ou Tetuão. Que direi pois a estes senhores tiranos e bárbaros, que com tanta inumanidade tratam aos servos enfermos? Duas coisas lhes hei-de dizer: a primeira‚ que não são dignos do poder e domínio, que têm nos escravos; a segunda, que não merecem ser contados no número dos Cristãos, senão numerados entre os Gentios. 49. Digo primeiramente que não são dignos do mando que têm, nem de ser senhores, os que não cuidam dos servos enfermos; e digo bem. E não sou eu s¢ o que o digo, porque o dizem comigo as Leis Civil e Canônica; as quais em pena do grave delito que cometem os senhores desamparando aos servos no tempo da enfermidade e lançando-os bárbaramente de casa para os não curarem, decretaram que os mesmos senhores perdessem o domínio que tinham nos servos desamparados, e estes ficassem livres e forros. Ouvi como gravemente fala o Direito Civil: Se alguém lançar de casa ao seu servo enfermo, e o puser na rua, não tratando de o curar, ou não dando comissão a outrem para que lhe assista; este tal servo, ainda contra vontade de seu senhor, consiga no mesmo ponto a liberdade, e seja tido e havido por cidadão romano (r). Siquis servum suum ægritudine periclitantem a domo sua publice ejecerit, neque ipsum procurans neque alteri commendans: talis itaque servus libertate necessaria, domino etiam nolente, reipsa donatus, illico fiat civis Romanus. — L. I § Sed scimus cod. de Latin. Libert. Tollend. (P.75). 50. Nem menos autoridade ‚ a sentença, que dá neste caso o Direito Canônico; o qual depois de declarar, que o pai que enjeita o filho, perde o domínio paterno, que nele tinha; e o senhor que enjeita o escravo, perde o senhorio, que nele tem; acrescenta, que o mesmo se há-de dizer dos filhos e dos escravos, de qualquer idade que sejam, quando são expostos e desamparados dos pais, e senhores em suas enfermidades (s) Quod de prædictis cujuscumque ætatis languidis, si expositi fuerint, dicendum est. — C. unic. de infant, et languid. expositis.(P.76).. Vede logo se com razão dizia eu, que se fazem indignos do senhorio os que não tratam da cura dos seus servos enfermos; pois o Direito os julga tão indignos do domínio a respeito dos servos, que lhes tira todo o que neles tinham. 51. Digo mais, que semelhantes senhores devem ser contados entre os Gentios e não no número dos Cristãos. E assim é; vede-o claramente: Caminharam os exploradores del-Rei David em seguimento dos amalecitas; quando lhes apareceu à vista um mancedo de todo já desfalecido e quase sem vida. Alentaram-no e alimentaram-no com o sustento, que então puderam haver; e voltando para o Arraial o presentaram ao mesmo David. Perguntou-lhe este, quem era? e respondeu com estas palavras: Sou um mancebo natural do Egito, servo de um Amalecita, desamparado de meu senhor (t) Puer Aegyptius ego sum, servus viri amalecitæ: dereliquit autem me dominus meus. — I. Reg. 30, 13. (P.76).). Mas que motivo poderia ter seu Senhor para o deixar em um caminho público, exposto às injúrias do tempo, e às crueldade das feras? 0 motivo que teve, como disse o mesmo servo, foi adoecer no caminho: Quia agrotare coepi nudiustertius (u) Ibid.(P.76). 52. Vede, agora, quem são os que desamparam os servos enfermos. São os Amalecitas, que eram Gentios. E destes Amalecitas, destes Gentios, não está povoado todo o Brasil? Com quanta maior razão se deve fazer nestas regiões a exclamação, que fazia em outras um Apostólico Português! Ah. Deus! E quantos Amalecitas. semelhantes há nesta terra! Ah Amalecitas, Gentios e Infiéis! Porque o servo adoeceu, por isso o haveis de deixar em um total desamparo! (x) Oh Deus, et quam similes Amalecitæ sunt in hac regione! Oh Amalecitæ, Ethnici, et infideles! Quia servus ægrotare cœpit, eum derelinquitis? — Philip. Dias, Conc. Fer. 5 post. Cineres n. 14. (P.77). . 53. Mas que digo Gentios, se sois ainda piores que os mesmos Gentios? Gentio era aquele nobilíssimo Centurião, de que faz menção S. Mateus; e contudo vede o desvelo, com que tratava da saúde de seu servo; pois ele mesmo em pessoa lhe buscou o remédio, lançando-se aos pés de Cristo, e pedindo-lhe com grandes rogos e mui deveras, que o sarasse: Puer meus iacet in domo paralyticus et male torquetur (y) Matth. 8, 6 (P.77). Comentário: Benci refere-se ao Evangelho de Sãp Mateus que cita o centurião de Cafarnaum que dizia: ”Senhor o meu criado está em casa paralítico, sofrendo dores atrozes. Jesus lhe disse: eu irei curá-lo. Mas o centurião respondeu-lhe: Senhor, não sou digno de receber-te sob o meu teto; basta que digas uma palavra e o meu criado ficará são”.. Ouvistes (diz Paludano) que não disse o Centurião: In platea, sicut faciunt mali domini, qui servos reiiciunt, cum coeperint infirmari (z) Palud enarrat. 2 Dom. 2 post. Epiphaniam. (P.77).. Não disse: o meu servo está na rua, para onde os maus senhores costumam mandar os servos, quando adoecem, mas disse: in domo, em minha casa. Pois na casa de um Gentio acham abrigo os servos enfermos; e não o acharão em casa de Cristãos? 54. Aprendei, senhores, deste Centurião da coorte romana, constituído por Deus Capitão da Milícia Cristã pois por tal o reconhece S. Pedro Crisólogo (a Cohortis Romanæ Centurio, dux factus est militiæ Christianæ. — Chrisol. Serm. 15. de Centurione.(P.78). Aprendei, digo, a misericórdia e compaixão para Com os servos e servas, e o cuidado e desvelo, COM que os deveis tratar, quando adoecern, e enfermam;. e enfermam; Porque assim vo-lo encomenda Origenes (b) Sic debent omnes, qui famulos et famulas habent, cogitare: Sic misereri, et condolere eis, suplicare, et curam habere de servis, vel de ancillis suis, sicut iste beatus Centurio fecit. — Origen., homil. 5. In divers. (P.78). 55, E quando nÆo queirais imitar e seguir os passos deste bem-aventurado CenturiÆo, cuidando do servo enfermo com desvelo igual ao seu; porque ao menos nÆo tratareis da sa£de dos servos com o mesmo cuidado corri que tratais da dos brutos? Que vos parece? -pergunta o mesmo VarÆo Apost¢lico e ext tico Portuguˆs, que pouco h citei(') Filipe Dias, religioso franciscano, de Bragança, faleceu em Salamanca em 1601. Bom pregador e autor asceta, deixou obras impressas em espanhol e latim (cf. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, VIII, 934). (P.78). Quem ‚ de pior condi‡Æo, o vosso escravo Ou 0 vosso ginete? (c). Quis est pejoris conditionis, servus tuus, an equuos tuus? — Philiph. Dias ubi supra num. 13.(P.78).. Quem duvida que uni bruto ‚ sem compara‡Æo muito inferior? Pois Porque se h -de inverter* perverter a ordem do trato corri um e outro, e avantajar * -bruto ao racional? Se adoece o ginete, busca-se quem ocure, e nÆo se perdoa a gasto, para que sare; e se enferma o escravo, desampara-se, e busque ele o seu rem‚dio (d). Si ægrotat equus, veniant qui curent eum, et omnia consumuntur, ut sanetur. Si infirmatur servus, quærat sibi remedium. — Ibid.(P.78) 56. E com estas obras de miseric¢rdia e com estas visitas de enfermos haveis de aparecer diante do tribunalde Cristo no dia do Juizo? Se us sseis desta inurrranidade com qualquer outro pobre estranho (a quem £nicamente pede a Caridade que se socoitra na necessidade extrema,-qual ‚ a de uma grave doen‡a) e lhe falt sseis com o rem‚dio, nÆo 'hav¡cis de ser julgados para o Inferno? Quem o d£vida, se um dos ' cargos, que Jesus Cristo far aos r‚probos no dia do Juizo, ser tamb‚m que estando enfermo na pessoa. dos pobres o nÆo visitaram (e) Infirmus eram et non visitastis me. — Math. 25, 43. (P.79). Comentário: O Evangelista se refere ao Juízo Final, quando os homens serão julgados segundo as suas obras, e o Ffilho do Homem dirá aos malditos: “Fui forasteiro e não me recolhestes. Estive nu e não me vestistes, doente e preso, e não me visitastes”. Logo como esperais a salva‡Æo, tratando com tanta crueldade os servos, a ~quem. sois obrigados acudir nÆo s¢ por caridade, mas tamb‚m de justi‡a, estando eles enfermos? Adverti, pois, que, se nÆo usais de miseric¢rdia com estes miser veis, que tanto a merecem, quando estÆo enfermos; tamb‚m Deus nÆo h -de usar 'de miseric¢rdia convosco, quando vos julgar; pois assim volo intima com for‡osa consequˆncia o Ap¢stolo Santiago, dizendo: Iudicium sine misericordia illi, qui non fecit misericordiam (f).Jac. 2, 13). E se h -cle ser julgado sem miseric¢rdia quem faltou ... miseric¢rdia,quanto mais quem nÆo s¢ faltou ... miseric¢rdia desampa rando os servos enfermos, mas,tamb‚m ... justi‡a? 57. -E por ventura ~que nÆo espere Deus -pela outra vida, mas ainda nesta dˆ o castigo ...queles senhores, que nÆo acodem aos servos, desamparando-os em suas enfermid des. J dissemos, que os soldados de David lhe pre sentaram um mancebo escravo dos Amalecitas, que tinham acaso encontrado no caminho quase morto e sem alento, porque o havia desamparado seu senhor vendo-o gravemente enfermo. E oferecendo-se como guia para lhe mostrar a derrota, que levava o ex‚rcito dos mesmos Amalecitas, se p"s ElRei a caminho com seus soldados, e a poucas jornadas se achou com eles, que se ocupavam entÆo em banquetes e brindes, sem temor nem receio do que logo experimentaram. Porque mandando David avan‡ar contra eles, oi com tal sucesso a investida, que de todo o ex‚rcito de Amalec s¢ ficaram vivos quatrocentos homens, que escaparam montados nos camelos, que serviam de levar as bagagens e vitualhas do mesmo ex‚rcito (9). 58. j vejo, que estais todos admirados, e reparando como pudesse David com tÆo pequeno n£mero de soldados (pois nÆo passavam, de sei¢os) destro‡ar e p"r a fio da espada o numeroso ex‚rcito de Arnalec. Adverti, por‚m, que vit¢ria tÆo memor vel nem ao forte bra‡o de David, nem ao valor de seus soldados se h -de atribuir, senÆo ao poder e for‡a do bra‡o da divina Justi‡a, que para castigar aos Amalecitas tomou por instrumento a David e seus soldados. Mas qual seria o pecado, de que queria Deus tomar vingan‡a tÆo severamente? NÆo falta quem d iga, que o pecado foi haver um dos mesmos Amalecitas desamparado ao servo enfermo (de que j fal mos) nÆo lhe assistindo com o que devia como a servo, de quem era senhor (h). E se um s¢ senhor (pesai bem a consequˆncia) se um s¢ senhor, por desamparar a um servo enfermo, irritou a indigna‡Æo de Deus em tal maneira,(9) que este s¢ pecado o castigou em todos os Amalecitas: que ser com os pecados de tantos senhores neste Brasil, que nÆo acudindo nas enfermidades a seus escravos, os deixam morrer ao desamparo? 59. Olhai bem, senhores, para a vossa obriga‡Æo e vede o que fazeis; porque faltando com o rem‚dio e medicina ao,vosso servo no tempo da enfermidade, provocais contra v¢s e conea todos os vossos a -espada e vingan‡a eterna. E talvez que esta seria a causa e razÆo total, pela qual experimentou o Brasil tantos e tÆo not veis destro‡os das armas Holandesas trazidaspor Deus da Europa para ru¡na e destrui‡Æo da Am‚rica. Ainda o chora Olinda, feita cad ver e sepulcro de si mesma; a quem pode acompanhar a Ba¡a, pois tamb‚m viu cair por terra, destru¡das ... vio-lˆncia do fogo, as mais ricas e opulentas f bricas dos ses a‡£cares. NÆo obrigueisa Deus com vossas tiranias a desembainhar a espada de sua indigna‡Æo. NÆo desam- pareis aos vossos servos quando enfermos; assisti-lhes com o rem‚dio e cura -conveniente, pois lha deveis nÆo menos que o sustento e o pÆo, para que nÆo pere‡am, panis, ne succumbat. a) Jac. 2,13 (P.79). b) Et percussit eos David — et non evasit ex eis quisquam, nisi quadrigenti viri adolescentes, Qui ascenderant camelos, et fugerant. — I. Reg. 30, 17. (P.80). c) Valderama, Exercicio para el Jueves despues de la Ceniza.(P.80). DISCURSO II Em que se trate do segundo obrigação dos senhores para com os servos 60. Como os servos são criaturas racionais, que constam de corpo e alma, não só deve o senhor darlhes o sustento corporal para que não pereçam seus corpos, m s também o espiritual para que não desfaleçam suas almas, panis, ne succumbat. Debaixo deste nome Pão, na frase hebreia, não só se compreende o alimento corporal, mas ainda o espiritual, como notou A Lápide, comentando aquelas palavras com que pedimos a Deus o sustento de cada dia, panem nostrum quotidianum; e alega por si a S. Agostinho, a S. João Crisóstomo, a S. Cipriano e outros (i). 61. E se me perguntam em que consiste o alimento espiritual? Digo que em três coisas, que correspondem ás três vezes que mandou Cristo a S. Pedro que apascentasse as suas Ovelhas: pasce agnos meos; Pasce agnos meos; pasce oves meas (1). Mas que três coisas são estas? 0 Concílio Tridentino as declara, e diz que são a Doutrina Cristã, uso dos Sacramentos, e o bom exemplo da vida (m). E, suposto que neste lugar fala o Concílio particularmente com os Párocos e Pastores de Almas, não deixa contudo de falar também com os senhores, pois também de algum modo são Curas das almas de seus servos. Comecemos pela doutrina. §I Da Doutrina Cristã, que os senhores são obrigados [a] ensinar a seus servos 62. Devem primeiramente os senhores alimentar as almas de seus servos com a Doutrina Cristã, para que saibam os mistérios da Fé, que devem crer, e os preceitos da Lei de Deus, que hão-de guardar: Verbi divini prcedi catione pascere. Bem sabeis que a maior parte dos servos deste Brasil vem da Gentilidade de Guiné [e] mais partes da África, tão rudes nos mistérios de nossa Santa Fé, e tão ignorantes nos Mandamentos da Lei de Deus, que de Cristãos não têm mais que o Baptismo, sendo que até este falta a muitos. Pergunto pois: a quem pertence instruí-los nos mistérios da Fé e ensinar-lhes o caminho do céu? Vós direis que aos Párocos, Curas e mais Pastores de suas Almas. Assim é; mas não só a eles pertence ensinar os escravos, senão também a vós. A vós, torno a dizer, porque sois seus senhores; a vós, porque os tendes mais à mão; e a vós, porque assim, como, tendes obrigação de lhes dar o pão para o corpo, a tendes também de lho dar para a alma: panis, ne succumbat. 63. Esta obrigação reconhecem nos senhores todos os teólogos que trataram desta matéria. Ouçam ao Doutor Navarro: Peca mortalmente o senhor, que tendo algum servo convertido de novo à Fé, não trata de lhe ensinar, ou por si ou por outrem, a Doutrina Cristã, e o que deve e é obrigado saber e obrar qualquer Cristão (n). O mesmo, e quase pelas mesmas palavras, ensina o nosso Português Fagundes da Companhia de Jesu. Peca gravemente o senhor, que tem em seu poder algum servo recém-baptizado, se lhe não ensina a Doutrina Cristã (0). Deixo os mais, para escusar alegações supérfluas. 64. Mas perguntar-me-á alguém: em que se funda esta tão precisa obrigação, que tem os senhores de catequizar os servos? Digo que no poder e domínio que têm sobre eles; porque o doutrinar aos rudes ‚ conseqüência de quem tem neles senhorio. Despedindo-se Cristo de seus Discípulos nas últimas horas de sua partida para o Céu, lhes disse estas palavras: Data est mihi orrinis potestas in coelo et in terra. Euntes ergo docete ornnes gentes (P). Deu-me meu Eterno Padre todo o domínio, poder e senhorio sobre o Céu e sobre a terra, ide pois, e doutrinai a todas as gentes. 0 meu reparo está só, naquele Ergo. 0 Ergo ‚ ilação e conseqüência: A conseqüência e ilação pede antecedente ou premissa donde se possa deduzir. Pois, qual é o antecedente ou premissa, donde infere Cristo que devem ser doutrinadas todas as gentes? Euntes ergo docete omnes gentes? 0 antecedente está bem claro nas palavras antecedentes, data est mihi omnis potestas. Diz Cristo que tem poder, domínio e senhorio sobre todas as gentes? Pois deste senhorio, deste domínio e deste poder se tira por legítima conseqüência, que hão-de ser doutrinadas todas as gentes, euntes ergo docete ornnes gentes. Logo, se entendeis muito bem, senhores, que tendes domínio e poder sobre os escravos; entendei também que a conseqüência deste poder e deste domínio é a obrigação de os ensinar e instruir nos mistérios da Fé e preceitos da Lei de Deus. 65. Nem se desculpam bem os senhores, que se escusam deste santo ministério, dando por causa a rudeza dos escravos, e dizendo que são brutos, que são boçais, e que são incapazes de perceber o que nos ensina e manda crer a Fé. Não se desculpam bem, torno a dizer; porque a esses mesmos brutos e boçais, e (ao que vos parece) incapazes, quer Deus que se ensine e pregue a sua doutrina. Em conseqüência do poder, que tinha sobre todas as gentes, mandou Cristo (como acima dizíamos) doutrina-las a todas por meio de seus Discípulos, docete omnes gentes. A todas as Gentes, Senhor! Entre essas gentes h gente, que mais tem de bruto, que de gente. Há alarves em Guiné tão rudes e boçais, que s¢ o vosso poder lhes poder meter o Padre Nosso na cabeça. Há Minas tão brutos e incapazes, que mil vezes nos havemos de benzer deles, primeiro que eles aprendam a benzer-se. Pois a esses brutos, a esses alarves, a esses boçais se há-de ensinar a vossa doutrina? Sim, diz Cristo: todas as gentes, por brutas, por boçais e rudes que sejam, todas sem excepção (1) hão-de ser instruídas nos mistérios de minha Fé e nos Mandamentos de minha Lei: Docete omnes gentes. Pois se assim o manda Jesus Cristo: porque o não hão-de pôr em execução os senhores com os escravos, ainda que estes se pareçam na rudeza com os brutos? 66. E sendo certo que tendes, senhores, tão estreita obrigação de ensinar aos escravos, ainda que rudes, ainda que boçais, e ainda que brutos, os mistérios da Fé e os Mandamentos da Lei de Deus; considerai-vos como ministros deputados por Cristo para a propagação do seu Evangelho, que tais vos considera S. Agostinho. Explicando o Santo Doutor aquelas palavras do mesmo Cristo, em que promete a seus ministros o mesmo lugar que ele tem, ubi sum ego, illic et minister meus erit (q), falava assim com o seu povo de Hipona: Quando ouvis as honras, que fará Cristo a seus ministros, não deveis imaginar que só os Bispos, Párocos e mais Clérigos são ministros seus; porque também vós, conforme vosso estado, não só podeis, mas deveis ser ministros de Jesus Cristo (r). E de que modo poder isto ser? Pregando o nome de Cristo, e ensinando a sua doutrina a todos aqueles que puder (5). Pois com quem melhor o podeis de deveis fazer, que com aqueles que Deus vos sujeitou, fazendo-os vossos escravos, para que sejais seus Mestres na Cristandade? 67. Nem deveis imaginar, que fazendo-vos na Doutrina Cristã mestres de vossos escravos, diminuís ou abateis em coisas alguma a autoridade de senhor, porque não é assim: como entenderam ainda nas trevas da Gentilidade senhores muito nobres e poderosos. Marco Crasso, um dos principais senadores de Roma Gentílica, que no poder das outras e riqueza podia competir com um grande Rei, sustentava das portas adentro de seu palácio grande número de servos, e para que saissem bem disciplinados e doutrinados, ele mesmo em pessoa assistia às lições de bem viver, que lhes mandava dar; e não se contentando com isto, algumas vezes tomava ele a mão, e fazendo-se Mestre de seus servos, lhes explicava os preceitos da Filosofia moral, por onde unicamente regulavam suas vidas os gentios, e costumava dizer, que o principal cuidado de um pai de famílias devia ser o ensino e doutrina dos servos (t) 68. Pois se um gentio, sem mais outra luz que a da razão natural, entende que não se abate a autoridade senhoril doutrinando aos escravos, e ensinando-lhes as regras de bem viver; como haverá homem Cristão, que alumiado da Fé tenha por menoscabo do senhorio cooperar para a salvação das almas ermidas com o precioso Sangue do Filho de Deus, e despreze um ministério, em que se ocuparam os maiores Santos da Corte do Céu, quais são os Apóstolos, e que por ser o exercício contínuo de Cristo mestre e Senhor nosso, enquanto viveu na terra, foi avaliado de S. Dionísio Areopagita pela obra mais divina de todas as divinas? 69. E quando não possais ou não queirais doutrina por vós mesmos os vossos escravos: porque os não trazeis aos Cólegios e Casas de Companhia, e aos mais Conventos das outras famílias Religiosas, onde há operários, que tem à sua conta ensinar os escravos no seu mesmo idioma: porque desta sorte se suprirá a vossa falta? É possível que haja Cristão entre Portugueses, que se prezam, e com razão, de ser o povo escolhido entre todas as mais nações para propaggar e dilatar a Fé de Jesu Cristo; é possível digo, que haja Cristão, que por não perderem o negro serviço deixem viver os escravos anos e anos gentílicamente, sem doutrina e sem conhecimento de Deus! É possível que uma alma, que sabemos por fé que coutou a Jesu Cristo todo seu sangue e sua mesma vida, não merece que perca o senhor por seu respeito alguns dias de serviços, para que fique bem doutrinada na que há-de crer e obrar para viver conforme manda a Lei de Deus! 70. Disse alguns dias, e não disse muito; porque não é possível que um escravo boçal, que pouco há saiu da gentilidade de Guiné, se possa catequizar e instruir nos mistérios de Fé e tão pouco tempo, como muitos senhores querem; pois apenas o trouxeram aos pés do Instrutor, quando o querem levar ou baptizado ou confesado. Não sois vós aqueles que dizeis que o escravo é tão rude, como um tronco, e tão duro como uma pedra? Ora tomai um tronco informe ou uma pedra tosca, e levando-a a casa de um Imaginário ou Estatuário, dizei-lhe que desse tronco e dessa pedra vos faça logo logo à vossa vista uma imagem ou estátua. Não se há-de rir de vós este Artífice? Não vos h de dizer que lhe haveis de dar tempo? Não vos háde pedir dias e meses para a formar? Tudo é verdade. Logo, confessando vós por vossa boca que o escravo é tronco ou pedra; como pode ser que em poucos instantes se forme dele uma estátua e imagem de Cristão? 71. Porventura para isso não se requer tempo? Tempo, para se desbastar o mais grosso de seus erros e superstições á força de grandes marteladas. Tempo, para lhe abrir com o cinzel da doutrina os ouvidos, para que penetre a palavra de Deus; os olhos, para que conheça os mistérios da Fé; e a boca, para que saiba orar. Tempo, para lhe tornear o pescoço, para que o sujeite ao suave jugo de Cristo, e os braços, para que os estenda ás boas obras. Tempo, para lhe dividir nos dez dedos os dez Mandamentos da Lei de Deus, e para o mais, que concorre a formar um verdadeiro e perfeito Cristão. Pois se para tudo isto se requer tempo: vede se ‚ possível formar um Cristão em poucas horas! E se não é possível, para que são as pressas, com que cansais a paciência do instrutor se não para que torne o escravo tão rude para casa como de lá veio? Deixai pois á discrição do Missionário gastar o tempo, que julgar conveniente, na instrução do escravo; e dai graças a Deus, de haver quem vos alivie da obrigação que tendes de dar o pão da Doutrina Cristã ao vosso servo: Verbi divini pradicatione pascere. § II Digressão exortatória aos Párocos para que ensinem a Doutrina Cristã aos escravos, como têm de obrigação 72. Que a doutrina e instrução dos escravos no que toca à sua salvação e bem de suas almas, deva correr por conta de seus Curas e Párocos, só o poderia duvidar quem ignorasse a obrigação precisa, que têm os Pastores de Almas de dar o pasto espiritual a suas Ovelhas. Sendo porém certíssimo que estão obrigados não só pelo Direito Canónico, mas também pelo Divino e natural, à Instrução de seus Fregueses (x) (pois a eles como pastores, mais principalmente foi dito: Pasce oves meas) (Y); bem se colhe, que ainda têm maior obrigação de doutrinar aos escravos, pela maior necessidade que há neles de doutrina, por causa de sua natural rudeza e ignorância. 73. E se não, pergunto. Quando vos deram o benefício, fizeram-vos somente Pastor dos livres e dos brancos ou também dos pretos e dos cativos? Já ouço que me respondeis que de todos; porque todos igualmente somos Ovelhas de Jesu Cristo e remidos todos com seu preciosíssimo sangue. Logo se sois Pastor também dos pretos e dos cativos; porque sois tão descuidados em os catequizar, sabendo que há neles tanta ignorância das coisas de Deus? Porventura não o fazeis, porque este ministério não rende, nem dá lucro algum? Ora guardai esta resposta para a dares no tribunal divino, quando no dia de Juízo vos fizer Deus cargo. Ouvi porém entretanto o que agora vos direi. 74. Se vós tratais s¢ da doutrina dos brancos e livres, porque esperais deles a recompensa com as ofertas e conhecenças, que não podeis ter dos pobres pretos e miseráveis cativos: não vedes que isto não é tratar de apascentar as Ovelhas de Jesu Cristo com o pasto da doutrina espiritual, senão de vos apascentar a vós; e que por isso sobre vós cai aquele tremendo ai, com que Deus ameaça a condenação eterna aos Pastores de Almas, que só cuidam de se enriquecer a si com lucros e interesses temporais, e não tratam do pasto espiritual do seu rebanho? Ai de vós Pastores de Israel, que esquecidos de apascentar as vossas Ovelhas, s¢ procurais apascentar-vos a vós! E sendo de Deus este ai, que outra coisa prognostica senão a condenação eterna? (a). Se não quereis pois entrar no número dos Párocos e Pastores, de que continuamente se vai povoando o Inferno: nestes pobres e miseráveis cativos deveis empregar o zelo pastoral (se o tendes), instruindo-os, para que saibam tudo o que devem saber, e tudo o que devem obrar, para serem verdadeiros e perfeitos Cristãos. 75. Desta sorte mostrareis, que sois verdadeiros Pastores, e não mercenários, que olham somente para o interesse e conveniência própria e não para o bem de suas Ovelhas: e juntamente seguireis o verdadeiro exemplar de todos os Pastores, Jesu Cristo, que disse, falando de si mesmo, que o enviara o Eterno Padre e mandara ao mundo para doutrinar e evangelizar unicamente aos pobres: Evangelizare pauperibus misit me (b). Nas quais palavras reparo assim e quisera reparásseis todos comigo. 76. Se Cristo foi constituído Pastor universal de todos e para que a todos, assim ricos como pobres, ensinasse a doutrina de seu Evangelho, e a todos indiferentemente mostrasse o caminho do Céu e da salvação: como profere e diz agora o mesmo Cristo, que o Eterno Padre o enviara para evangelizar e catequizar somente aos pobres, Evangelizare pauperibus misit me? Direi: Não há dúvida que Cristo foi mandado de seu Eterno Padre para instrução e doutrina de todos, ou fossem ricos ou pobres; porém porque doutrinando aos ricos, podia haver alguma presunção de interesse e conveniência própria, a qual não podia haver em catequizar aos pobres; por isso de tal sorte se considerava Cristo enviado de seu Eterno Padre para pregar o seu Evangelho a todos, como se fora enviado para o ensinar somente aos pobres: Evangelizare pauperibus misit me. Se os Párocos e Curas se despirem de toda a afeição, que podem ter aos interesses e lucros temporais, logo se hão-de considerar deputados especialmente por Deus para doutrinar aos pobres, e assim não deixarão de acudir aos pretos, que entre os pobres são os mais pobres e miseráveis. 77. Nem cuidem os Párocos que satisfazem à sua obrigação não mais que só com perguntarem pela Quaresma aos escravos, no tempo da desobriga, se sabem as Orações e os Mandamentos da Lei de Deus; e vendo que os sabem ou, para melhor dizer, que os rezam (pois muitos os rezam sem saberem o que rezam) logo sem mais outra doutrina os admitem aos Sacramentos. Este certamente não ‚ o modo, com que devem ser doutrinados este rudes; porque não está o ponto em que os escravos digam quantas são as Pessoas da Santíssima Trindade e rezem o Credo e os Mandamentos e mais Orações; mas é necessário que entendam o que dizem, percebam os mistérios que hão-de crer, e penetrem bem os preceitos que hão-de guardar. E ao Pároco pertence explicar-lhos e fazer-lhos perceptíveis de maneira que os entendam os escravos. 78. 0 pão da Doutrina Cristã deve-o repartir o Pároco a estes ignorantes, tão bem partido e esmiuçado, que o possam comer e digerir. Porém a isto faltam ordinariamente os Párocos, como o lamenta Jeremias. Os pequenos pediram pão, e não houve quem lho partisse, para que o pudessem comer (c). Mas que pequenos são estes, e que pão ‚ o que pedem? Os pequenos, na frase da Escritura, não são somente os de pouca idade, mas também os de muita, quando são novamente convertidos à Fé (d). E o pão, que pedem estes pequenos, é o pão da doutrina cristã, diz Hugo (e). Notai agora: Não se queixa o Profeta, que falte quem. reparta o pão da Doutrina aos pequenos e recém-convertidos; senão, que não haja quem lho parta: Non erat qui frangeret. Porque não faltam Párocos, que dão o pão da Doutrina Cristã aos Pretos; mas que monta, se este pão não vai partido de sorte que possa servir de alimento ao escravo? Quero dizer: Que importa que o Pároco ensine aos escravos as Orações, os mistérios da Fé, e os preceitos da Lei de Deus, se os não propõem com palavras acomodadas á rudeza e pouca capacidade de, Negros boçais? Se os não explica e declara, uma e outra vez, para que o entendam? Se não usa de semelhanças e exemplos palpáveis? Se lhes não faz patente aos olhos o mistério, de que não ‚ capaz o entendimento? Porque a todas estas pensões e explicações estão obrigados os Párocos, pois livremente tomaram à sua conta o cuidado das Almas das suas Ovelhas. Devem, para não faltarem a esta obrigação, ensinar uma e muitas vezes a Doutrina; explicar uma e muitas vezes o mistério; e declarar uma e muitas vezes o que ensinam. 79. Estando Moisés já no último quartel da vida, para que fosse com acerto e proveito o que ensinava, pediu a Deus que a sua doutrina fosse como a chuva (f). Duas propriedades considero na chuva: a primeira como se faz; e a segunda o que faz; como se faz para cair, e o que faz caindo. Vamos com a primeira. Como se faz a chuva? Levantam-se da terra os vapores delgados e subtis, e subindo até à região do ar, aí os engrossa o calor do Sol, e os converte em chuva. E isto mesmo deve ter quem ensina aos rudes e boçais a Doutrina. Os mistérios mais subtis e delgados, deve-os engrossar com as semelhanças e exemplos, e explicar com palavras acomodadas à capacidade dos ouvintes, para que os entendam: Concrescat, ut pluvia, doctrina mea. Esta ‚ a primeira propriedade da chuva. Vamos à segunda. 80. Que faz a chuva caindo? Não cai uma só gota, senão muitas e repetidas, uma sobre outra, até regar e fecundar a terra. Se caísse na terra uma só gota de água, seria sem proveito e sem fruto. E o mesmo passa na doutrina. Se se, ensinar uma só vez, não há de aproveitar, nem fazer fruto; mas ensinando-se uma e outra vez, explicando-se e tornando-se a explicar, então regar e fará proveito, ainda nas pedras mais duras, isto é, nas almas mais rudes. Lá disse o Poeta, que a água abrandava e fazia mossa nas pedras, gutta cavar lapidem (9). Mas como? Não caindo uma s¢ vez, é mas caindo uma e outra e muitas vezes, saepe cadendo. Dizeis que escravo é tão rude e tão duro como as pedras. Ensinai-o uma e outra vez; apertai com ele, não só no tempo da Quaresma, mas em todos os Domingos e dias Santos, como manda o Concílio Tridentino; e vereis que com esta continuação, e repetição se há-de abrandar e quebrar a dureza dessas pedras, e se transformarão em bons e verdadeiros Cristãos. 81. Mas porque os Párocos, Curas e senhores (que aos senhores também compete tudo o que dos Párocos está dito) não procuram haver-se deste modo, porque não ensinam a doutrina Cristã aos servos; ou se lha ensinam, quando muito ‚ uma vez no ano, e isto mui à pressa e de corrida; por isso há tão grande ignorância das coisas de Deus nos escravos do Brasil, que são a maior parte dos seus habitadores. E desta ignorância tão geral e comua, que se hà-de seguir, senão que torne a experimentar o Brasil os mesmos castigos, que já experimentou e que continuem os que ainda experimenta? Pois estes lhe ameaça Deus com o mesmo, rigor, com que antigamente os ameaçava pelo Profeta Isaías ao Povo de Israel. 82. Primeiramente lhe ameaçava guerras e cativeiros (h). Estas guerras experimentou já o Brasil no tempo dos Holandeses (como pouco h dissemos). Depois lhe ameaçava fomes e esterilidades, das quais se seguiria tanta falta de víveres e mantimentos, que os mesmos nobres pereceriam de pura necessidade e falta do necessário para a vida (i). Estas fomes, e esterilidades, não há tantos anos que as padecemos? E por mais remédios que se apliquem para que haja abundância, não continua a carestia? Ainda mal, que tudo é verdade. Ultimamente lhe ameaçava pestes e mortandades tão formidáveis, que o comum cemitério (chamado vulgarmente inferno) não seria bastante para se sepultarem os corpos dos defuntos (1). E que destroços e mortes não experimentou a maior parte do Brasil com aquele mortífero contágio da Bicha, cujas cabeças até agora não estão de tal sorte cortadas, que as não vejamos ainda brotar por vezes em febres e doenças mortais? 83. E porque culpas havia de mandar Deus ao seu Povo tantos estragos e assolações? A razão dá o mesmo texto: porque faltou nele a verdadeira ciência (m); isto é (diz Hugo) a doutrina e notícia da Lei de Deus e seus mistérios: Scientiam Dei (n). Pois se basta esta ignorância de Deus e dos mistérios de sua Fé, para que mereça um Povo escolhido ser castigado com guerras, fomes e pestes; por que não atentam os Párocos e senhores do Brasil, que deixando os escravos naquela ignorância e rudeza, que trouxeram do Gentilismo, chamam e provocam contra o mesmo Brasil todas essas guerras, todas essas fomes, e todas essas pestes? Para evitar pois todos estes castigos e gerais destroços, apliquem os Párocos e Senhores o maior de seus cuidados em dar o pasto espiritual às almas dos Pretos, inculcando-lhes, uma e muitas vezes, a Doutrina Cristã e os mistérios da Fé, como têm de obrigação: Verbi Divini prxdicatione pascere. § III Como os senhores estão obrigados a procurar que os servo recebam a seu tempo os Santos Sacramentos. 84. Devem secundáriamente os senhores dar o pão seu exemplo este grande documento aos mais senhores, espiritual aos servos, procurando que vivam conforme a Lei de Deus recebendo a seu tempo os Santos Sacramentos: Sacramentorum administratione pascere. Os sacramentos devem os senhores querer e buscar para os servos, com o mesmo cuidado e diligência, com que os querem e buscam para si. Grande e admirável senhor se mostrou nesta parte Abraão, quando Deus para remédio do pecado original instituiu a Circuncisão, Sacramento da Lei Velha. Mandou o Senhor ao Patriarca que se circuncidasse a si, a seu filho, e a todos os de sua família; e diz o texto, que no mesmo dia, em que Abraão recebeu este preceito, se circuncidou a si, a seu filho Ismael, e a todos os escravos de sua casa (0). 85. Não me admira que o Patriarca se apressasse tanto em circuncidar-se a si e a seu filho, sem pôr tempo em meio entre o preceito e a execução dele; s¢ reparo que igualasse os servos aos senhores, ficando todos circuncidados no mesmo dia, eadem die. Não podia Abraão circuncidar-se a si, e a seu filho em um dia, e no outra circuncidar os escravos? Pois porque não faz diferença de si aos escravos, senão que os circuncida juntamente consigo, no mesmo dia: eadem die? Sabeis porquê? Porque Abraão, como senhor entendido, via que igualmente eram obrigados a receber este Sacramento os servos e os senhores; e que como não era bem diferir ele para si o recebê-lo, assim não era bem que o diferisse para os escravos. Por isso no mesmo dia, em que se circuncidou a si e a seu filho, circuncidou também, aos escravos(1), dando com seu exemplo este grande documento aos mais senhores, que devem querer e procurar os Sacramentos para os servos com o mesmo cuidado, com que os devem querer e procurar para si. 86. Se os senhores do Brasil entendessem bem esta verdade, certamente não deixariam morrer os escravos muitas vezes sem Confissão e muitas mais sem Viático. Que Senhor haverá, que não deseje morrer Sacramentado? Pois estando o servo gravemente enfermo, porque não lhe da Penitência? Porque lho dilatais de sorte que, quando chegar o Sacerdote, o acha destituído dos sentidos e talvez já morto? E se, por causa do vosso descuido se perder a alma do escravo, que clamores e brandos não dará ela do profundo do Inferno, pedindo a Deus vingança contra seu senhor, que por lhe não acudir com a Confissão a tempo, e deixou cair naquele abismo de penas? 87. No salmo setenta e oito diz o Santo Profeta e Rei David, que as almas dos justos bárbara e inumanamente mortos pelos tiranos, estão continuamente no Tribunal Divino pedindo vingança de seu sangue injustamente (1) derramado (p). E contudo a morte, que receberam, foi para eles princípio de su eterna vida; donde (prescindindo da ofensa cometida contra Deus) mais devem os Mártires ao ferro dos Tiranos que lhes tiraram a vida, do que ao mesmo ventre de suas Mães que lha deu. Porque, como agudamente advertiu S. Agostinho, por mais obséquios que fizessem os Tiranos aos Santos mártires nunca podiam chegar a fazer-lhes grande bem, como o que lhes deu o ódio e crueldade, com que os mataram (q). Colhei agora daqui quais serão os brados e clamores daqueles miseráveis escravos, que morreram sem Confissão, contra os senhores, que foram a ocasião de sua eterna morte. Haverá momento, em que não clamem vingança contra um senhor tão inumano, que podendo chamar a tempo um Confessor para lhe granjear a eterna vida no Céu, pelo não chamar os deixou cair nos incêndios do Inferno, em que estarão eternamente penando? 88. E se por acaso o escravo enfermo não está em estado para ser levado à Igreja a receber o Santíssimo Viático: porque haveis de fingir inconvenientes para lho mandar vir a casa? Entendei (1), senhores, que se não é inconveniente levar o Santíssimo Sacramento ao senhor enfermo, também o não é levá-lo ao escravo doente. Não é Cristo Pai universal e Redentor de todos? É certo que sim; porque para com Cristo, diz o Apóstolo, não há servo, nem livre (r), todos somos os mesmos. Pois se Cristo visita aos livres enfermos, porque não há-de visitar aos cativos doentes? Quando o Centurião buscou a Cristo para alcançar dele a saúde para o seu servo enfermo, respondeu-lhe benigna e amorosamente o Senhor, que ele iria a buscar o mesmo servo à sua casa e lá o curaria (5). Pois se Cristo não recusa entrar em casa de um servo para lhe dar a saúde do corpo, como hà-de recusar buscá-lo para lhe dar a saúde da alma? E se Cristo o não recusa: porque há-de ser tão pouco Cristão um senhor, que ache inconvenientes onde os não há, e deixe morrer ao escravo sem o Santíssimo Viático? 89. Mas não é este o único Sacramento, que os senhores impedem aos escravos; pois também lhes atalham o Santo Matrimónio. É o estado do Matrimónio tão livre ainda aos Cativos, que não há poder na terra (diz o doutíssimo Padre Sanchez) que lho possa impedir (t). E suposto que pelo Direito Imperial aos livres sómente seja permitido contrair matrimónio; o direito Canónico, revogando nesta parte a disposição da lei civil, como contrária ao direito divino e natural, que concede aos homens a multiplicação de sua espécie (u), declara que aos servos se não deve impedir o matrimónio, e que fica válido, ainda fazendo-se contra a vontade dos senhores (x). Pois o que não podem proibir os Imperadores, poderão proibi-lo os senhores do Brasil? 90. Pergunto: Para que foi instituído o Santo Matrimónio? Não só para propagação do gênero humano, senão também (diz o mesmo Sanchez já citado) para remédio da concupiscência e para evitar pecados (Y). H porventura algum senhor, que tenha poder para enfrear a concupiscência nos escravos de sorte que não brote em seus efeitos, e os não provoque e estimule a pecar? É certo que não. Pois se não podeis reprimir nos escravos os efeitos e estímulos da concupiscência, porque lhes haveis de tirar o remédio, que Deus lhes deu? E não vedes que além de incorrerdes na excomunhão que contra os que impedem os matrimónios promulgou o Sagrado Concílio Tridentino, vindes desta sorte a fazer-vos participantes de todos os pecados, que contra o sexto Mandamento cometem os servos? 91. Dir-me-eis, que para essa gente bruta não são os matrimónios; pois tanto que casaram, deixam, assim os maridos como as mulheres, de fazer vida entre si, e se entregam a maiores pecados depois de casados. Mas se vos parece bastante esta razão, respondei-me no que agora vos quero perguntar. Quantos senhores há casados com mulheres dotadas assim de honra como de fermosura, e as deixam talvez por uma escrava enorme, monstruosa, e vil? Logo diremos que não convém que casem também os brancos e os senhores? Ninguém dirá que é boa esta conseqüência; porque ainda que haja nos senhores depois de casados estas solturas, nem por isso se lhes há-de negar o matrimónio. Logo, ainda que haja entre os escravos e pretos, alguns e algumas, que se desmandem depois de casados, nem por isso se segue que não convêm casá-los. Casai-os vós, querendo eles; que desta maneira satisfareis à vossa obrigação. E se depois de vinculados com o Santo matrimónio, forem viciosos; a eles tocar , e não a vós, dar conta a Deus dos pecados, que cometerem. 92. E não devendo os senhores impedir o matrimónio aos servos, também lhes não devem impedir o uso dele depois de casados apartando o marido da mulher e deixando a um em casa, e mandando vender ou viver o outro em partes tão removas, que não possam fazer vida conjugal. Porque quando não pequeis contra a justiça, privando ao servo do que lhe compete por direito natural, como ensina o Padre Sanchez (z); não se pode negar que pecais ao menos contra a caridade: porque, apartando os servos casados um do outro, vindes a privá-los do bem do matrimónio, no que lhes causais dano mui grave, que a caridade proíbe se faça ao próximo sem urgentíssima causa (a). 93. E sendo isto assim, ‚ muito para admirar a. facilidade com que alguns senhores, por qualquer leve causa, mandam vender a outras terras ou o servo casado ou a serva casada, ou de qualquer outro modo os apartam um do outro. Quem vos deu poder para fazer estes divórcios, se a Igreja, em quem unicamente se acha este poder, é tão delicada nesta matéria, que não consente que haja divórcio entre o marido e a mulher, sem haver causas mui justificadas e urgentes (1)? 94. Bem sei que pode haver caso, em que possam e talvez devam os senhores mandar vender ou viver em partes remotas os escravos, ainda que casados, principalmente quando de os reter em seu poder se segue grave dano ás almas ou dos mesmos escravos ou de seus senhores; porém neste caso não deve o senhor proceder ex abrupto e com paixão, senão com muita madureza e grande ponderação, consultando primeiro a Teólogos doutos e timoratos para que vejam e examinem se há causa suficiente para isso. E no caso em que determinem que há causa bastante, sendo o sido o que merece este degredo; deveis perguntar à mulher se o quer seguir. E querendo ela acompanhar o marido, vá ela também com ele, e corra a mesma fortuna, que ele correr; e se o não quiser seguir, por razão do grave incómodo que nisto haja de padecer, então vá embora a vender só o marido. E sendo a mulher a delinquente, se há-de proceder com o marido do mesmo modo, que acabamos de dizer da mulher. Assim deve obrar quem quer obrar o que Deus manda, para não impedir aos servos os Sacramentos e uso deles, que o senhor lhes deve procurar como pasto espiritual de suas almas: Sacramentorum administratione pascere. § IV Do bom exemplo que devem dar os senhores aos servos 95. Ultimamente para darem o alimento espiritual aos servos, devem os senhores ir diante com o exemplo de virtudes e santos costumes: Bortorum omnium operum exemplo pascere. Pouco aproveita a boa doutrina, que dão nos servos os senhores, quando falta o bom exemplo dos mesmos senhores. 0 melhor modo de doutrinar não é com palavras, é com as obras. As obras vêem-se, as palavras ouvem-se: e o que se ouve talvez entra por um ouvido e sai por outro, e o que se vê entra pelos olhos, e, como não tem Porta para sair, penetra até o coração. Por isso o mestre, que é mestre, mais há-de ensinar como que faz, do que com o que diz. De Cristo nosso Mestre disse Isaías que nossos olhos o veriam (b); porque o verdadeiro Mestre mais ensina visto, do que ouvido. Logo, se quereis que saiam bem doutrinados os escravos, obrai primeiro o que lhes haveis de ensinar. Assim o fez o mesmo Cristo: Coepit Jesus facere et docere (c). Primeiro obrou, facere; e depois ensinou o que obrava, et docere. Mais hão-de aprender os escravos em poucos, dias da vida exemplar de seu senhor, do que podem aprender em muitos anos de doutrina. Tem muito que andar, quem caminha para a virtude pelo caminho dos preceitos; e a poucos passos se acha no- termo quem toma o caminho pelo atalho dos exemplos (d). 96. A razão desta diversidade é: porque o exemplo tem uma qualidade oculta, com que suavemente atrai as vontades, para que o imitem; e esta qualidade falta aos preceitos. Por isso, tanto que o escravo vê o exemplo do senhor, anima-se a segui-lo. Sendo os escravos vagarosos e descansados por natureza em dar à execução o que se lhes manda; achareis no Gênesis ao servo de Abraão mui acelerado em executar o mandado de seu senhor: Qui festinavit (e). Não vos espante a pressa do servo à vista de Abraão que se apressa: Festinavit Abraham (f). Viu o escravo ao senhor apressado para dar agasalho a três hóspedes, que lhe vieram a casa, e logo lançou de si os vagares de servo e tornou a pressa de seu senhor Qui festinavit. 97. Pouco porém disse, dizendo que o exemplo de senhor que se faz mestre do servo, o atrai, e incita à imitação; porque havia de dizer que lhe faz força e o obriga. Depois que Cristo lavou os pés a seus Discípulos, lhes disse que tinham obrigação de fazer o mesmo, e lavar os pés uns aos outros (9). E qual seria o fundamento da obrigação, que Cristo reconheceu nos Apóstolos, de seguir suas pisadas? 0 mesmo exemplo que o Senhor lhes havia dado (h). 98. Sondemos bem o fundo destas palavras. Qualquer outro exemplo é somente incentivo e estímulo para a imitação: logo, que mais tinha o exemplo de Cristo, para passar de estímulo e incentivo a ser obrigação, debetis? A razão, o mesmo Cristo a deu: Vós chamais-me Mestre e Senhor: e dizeis bem, porque na realidade o sou (i). Logo se eu sendo vosso Senhor e vosso Mestre, vos lavei os pés; também vós deveis, e tendes obrigação, de lavar os pés uns nos outros (1). Reparai bem. naquelas duas palavras, Dominus et Magister; porque nelas se encerra todo o fundamento de obrigação, debetis. Era Cristo Senhor, e era Mestre, Dominus et Magister; e o exemplo de quem ‚ senhor, e juntamente mestre, não só incita, e estimula, mas quase com força e eficácia de preceito obriga à imitação: Et vos debetis. Esta é uma singular diferença, que tem o exemplo do senhor, que doutrina aos servos, do exemplo de quem não é senhor e ensina aos que não são servos; porque nos que não são senhores, é o exemplo incentivo somente e estímulo para a imitação; e nos que são senhores, não só é estímulo, não só é incentivo, que move, mas é como preceito, que obriga a que o imitem. Logo, se o senhor se fizer mestre de seus servos, ensinando-lhes o caminho do Céu, não só com a doutrina, mas muito mais com o seu exemplo: quem duvida que os há-de obrigar, e seguir o mesmo caminho? 99. 0h! Se quisesse Deus que não faltasse aos escravos tão importante género de doutrinal Com os veríamos grandes Cristãos! Que preceito há na Lei de Deus tão dificultoso, que não observassem à risca os servos, vendo que também o guardavam seus senhores? Mandou Deus a Abraão, que se circundasse com toda a sua família, para que ele e a sua descendência se diferençasse das mais nações infiéis e bárbaras. Já reparámos na diligência, com que executou Abraão este preceito; agora reparo na prontidão com que o aceitaram os escravos, deixando-se todos circuncidar, sem que houvesse neles a mínima repugnância. 0 preceito era novo e rigoroso, era de opróbrio nos adultos, e de perigo nos meninos; e contudo no mesmo dia se viu correr o sangue de todos, assim do senhor, como, dos servos: Todos os servos de Abraão, assim os que lhe haviam nascido em casa, como os que havia comprado, se sujeitaram prontamente ao rigor do golpe (m). Mas com que os obrigou Abraão à execução de preceito tão rigoroso? Com ameaças de castigo ou com promessas de prêmio? Nada disto foi necessário; porque por tudo bastou o exemplo do mesmo Abraão, que em senhor. Viram os servos que seu Senhor Abraão se circuncidou a si primeiro, no mesmo dia em que Deus lhe tinha dada o preceito: Eadem die circumeisus est Abraham; e à vista do exemplo de seu senhor, todos, sem repararem no rigor do preceito, se sujeitaram à Circuncisão: Et omnes viri domus illíus, tam vernaculi, quam emptiffi, et alienigenae, pariter circumcisi sunt. Quando o senhor pode dizer ao servo: segue-me, que eu vou diante; não recusa o servo de o seguir, ainda que seja por feridas e mortes violentas. Se o senhor vai diante vestido com a púrpura de seu sangue na guarda dos preceitos divinos; não duvida o servo em derramar o das próprias veias, para seguir o exemplo de seu senhor. Observem pois os senhores exactamente os Mandamentos da Lei de Deus; que na observância, ainda dos preceitos mais rigorosos, não haver servo, que repugne, precedendo com exemplo seu senhor. 100. Pelo contrário, por mais que os senhores inculquem aos escravos a observância dos preceitos da Lei de Deus; se virem que eles são os primeiros que os quebram, nunca acabarão de se persuadir a guardálos; porque os escravos no governo de suas vidas não atentam para o que os senhores lhes dizem, senão para o que obram. Os servos (diz David) põem os olhos nas mãos de seus senhores, e as servas nas mãos de suas senhoras (mm). Cuidava eu que os escravos, havendo de aplicar algum sentido a seus senhores, aplicariam os ouvidos, para saberem o que deles querem, sendo sua obrigação executar o que lhes mandam; e não os olhos, para verem o que eles fazem. Assim havia de ser, se os escravos no governo de suas vidas se regulassem pelo que lhes dizem seus senhores. Porém, como se não regulam pelo que lhes ouvem dizer, senão pelo que os vêem obrar; bem diz David que os servos põem os olhos nas mãos de seus senhores, sicut oculi servorum iri-manibus dominorum suorum; e as servas nas mãos de suas senhoras, sicut oculi ancilia ín manibus domime suœe. Donde se segue, que os senhores, que querem persuadir aos escravos a exacta observântia dos preceitos divinos, devem viver de sorte que vejam neles os mesmos escravos um exemplo e retrato de verdadeiro cristão. 101. Daqui se pode inferir qual é a principal, causa de escandalosa vida, com que ordináriamente vivem os escravos e as escravas do Brasil. Mas como não há-de ser assim,, se nos senhores e nas senhoras não vêem exemplos de Cristãos, senão escândalos próprios de Gentios? Que importa que se lhes ensine com palavras o modo com que hão-de viver cristãmente; se a má vida de seu senhor desmente com costumes viciosos a doutrina, que lhes dá . Se um edifica, e outro de faz o mesmo edifício; que hão-de tirar ambos (diz o Espírito Santo) senão o trabalho (n)? E não há-de cansar-se debalde na doutrina dos escravos o senhor, que tudo o que lhes ensina com as palavras, vai desfazendo tom as obras? É certo. 102. Porque, como há-de crer o escravo, que é pecado gravíssimo jurar pelo nome de Deus, vendo que seu senhor jura e perjura a cada passo por Deus e pelos Santos, por mais que o mesmo senhor lhe diga que Deus proíbe os juramentos? Como h -de acabar consigo de observar as Festas assistindo ao menos ao Santo Sacrifício da Missa nos Domingos e dias santos, se vê que seu senhor a ouve de ano em ano, por mais que o mesmo Senhor lhe iniculque que Deus as manda guardar? Como se há-de capacitar que não é lícito matar ou ferir para se desagravar das injúrias, vendo que seu Senhor por razões de pouca ou nenhuma entidade promete feridas e balas, por mais, que o mesmo senhor lhe intime que Deus ordena que se não cometa homicídio, nem faça outro dano à vida do próximo? Como se há-de persuadir a viver continente e casto, vendo que seu senhor sustenta das portas adentro a concubina, por mais que o mesmo senhor lhe ensine que Deus quer que se guarde castidade? Como há-de assentar consigo não furtar e contentar-se com o que lhe, dá seu senhor, vendo que o mesmo senhor não se contenta com o seu, mas busca modos e traças para enriquecer com o alheio, por mais que lhe pregue que na Lei de Deus estão severamente presos os furtos? Fique logo assentado, que toda a mais doutrina, que os senhores derem aos servos, se não for acompanhada do seu exemplo e confirmada com suas obras, não serve de alimento espiritual, que devem dar ás almas de seus escravos: Bonorum omnium operum exemplo pascere. §V Em que se infere e mostra quão grave seja o pecado daqueles senhores, que escandalizam a seus servos, induzindo-os por qualquer modo ao pecado 103. Se os senhores (como temos visto) pecam tão gravemente faltando à obrigação, que têm, de dar aos servos o pão e alimento espiritual, sem o qual pereceriam suas almas, panis, ne suecumbat; que pecado ser o dos mesmos senhores, quando por qualquer caminho lhes dão a beber o veneno, que lhe traz a morte eterna? Chamo veneno a tudo aquilo, que induz e convida a pecar, a que os Teólogos vulgarmente chamam escândalo; e é o mesmo que dar ocasião, ou com palavras ou com obras mênos rectas, à ruina espiritual do próximo, como define S. Tomás (o). 0 que suposto: que pecado(torno a dizer) ser o dos senhores, que dão este veneno a seus servos, induzindo, os a que pequem? 104. A gravidade deste pecado, além de se poder bem inferir do que nos parágrafos atrás está dito, se prova com a razão. Porque se pecam gravemente os senhores, que negam o alimento espiritual nos servos, só porque lhes não fazem a suas almas o bem, que lhes é devido; quanto mais gravemente pecarão fazendo-lhes positivamente o maior mal, qual ‚ induzi-los ao pecado? Mas, para que melhor se conheça a deformidade destas induções ou destes pecados de escândalo, quatro coisas havemos de ponderar neste parágrafo. 0 dano, que com eles fazem os senhores ás almas dos seus escravos; o grande serviço, que fazem ao demônio, o mal, que se causam a si mesmos; e a injúria, que fazem a Cristo. 105. 0 dano, que fazem os senhores nos escravos, quando por qualquer modo os induzem a pecar, não só é o maior, mas é o sumo dano. 0 maior dano, que pode fazer qualquer senhor a um servo, é tirar-lhe a vida; mas suposto que este é o maior, não é sumo: 0 sumo e maior de todos os danos, que lhe pode fazer, é induzi-lo a pecar. E a razão é tão natural como certa. E se não, dizei-me: Se vos virdes reduzido a um de dois extremos, isto é, que ou hajais de perder e vida morrendo, ou a graça de Deus pecando: a qual destes vos dita a razão que vos inclineis? Não há dúvida que vos dita que haveis de eleger antes perder a vida e mil vidas do que pecar; porque de dois males sempre se escolhe o menor. Logo a mesma razão natural ensina e dita que muito maior mal é o pecado, que a morte. 106. E a última razão é, porque o pecado é ofensa de Deus; e o culto e veneração que devem as criaturas ao mesmo Deus pede que antes se de perder a vida, do que cometer um pecado. Sendo pois o pecado maior mal que a mesma morte; não podem negar os senhores que maior dano fazem aos servos induzindo-os a pecar, do que tirando-lhes a vida matando-os; porque matando-os, tiram-lhes a vida do corpo; e induzindo-os a pecar, tiram-lhes a da alma; e quanto vai da, alma ao corpo, tanto vai de dano a dano, e de pecado a pecado. 107. 0 grande serviço, que fazem ao demônio os senhores induzindo os escravos a pecar, só o pode entender quem sabe o desvelo e ânsia, com que o demônio solicita e procura a ruína de nossas almas. É tão ansioso o demônio em procurar que os homens pequem, que S. Pedro o compara ao leão faminto, que segue e persegue as feras para as tragar: Adversarius vester Diabolus tanquam leo rugiens circuit, quxrens quem devoret (P). Notai muito aquela palavra, circuit, que significa própriamente andar à roda e voltear uma e outra vez. E assim faz o demônio após de uma alma. Anda continuamente à roda e em seguimento dela; dá uma volta e outra volta; não, desiste de a tentar freqüentemente, até que ia vence e rende á sua vontade, fazendo-a cair na culpa e acrescentar pecados sobre pecados. 108. Colhei agora daqui o grande serviço que faz ao demônio o senhor, que escandaliza aos escravos induzindo-os a que pequem; pois tira ao mesmo demônio o trabalho de andar tão sem sossego após das almas, entregando-lhas (como dizeis) ás mão lavadas, e dando o melhor dia ao Inferno. Quando um pecador se arrepende e faz penitência, diz Cristo que há grandes festas no Céu (q) . E porque não haverá no Inferno alegrias, quando uma alma se arroja ao pecado e perde a graça, sendo tão oposto o inferno ao Céu? 109. 0 mal que se causam a si os mesmos senhores com os seus escândalos, é o mesmo que o que causam nos servos; porque assim como aos servas lhes procuram a morte da alma, essa mesma procuram também para si, e para si sempre certa; porque pode não o servo, ainda que induzido do senhor; e sempre peca o senhor que induziu ao servo. Mas além de tudo isto se faz digno da maldição tremenda de Deus, por ser instrumento do demônio, na perdição e ruína das almas. 110. Bem sabem todos o que sucedeu à serpente no Paraíso, quando dela se valeu o demônio para que tentasse a Eva e a induzisse a comer o fruto vedado. Diz o texto que lhe lançara Deus sua maldição (r). Onde se deve muito reparar, que não sendo a Serpente mais que só instrumento do demônio, que usara dela, e de suas vozes para tentar a Eva, só por isso a amaldiçoou Deus. Mas assim havia de ser; porque não merece menos castigo, quem é instrumento do demônio para a perdição das almas, senão que venha sobre ele a maldição divina: Maledictus es. E notai, que a serpente não foi voluntariamente instrumento do demônio; porque ele se lhe introduziu no corpo, e a obrigou a falar, não sabendo ela o que falava nem o que fazia. E se contudo ainda a amaldiçoou Deus; que fará ao senhor, que se faz instrumento do mesmo demônio, livre e voluntariamente e sabendo que faz mal quando induz os servos ao pecado? 111. Resta s¢ ponderar por último a ofensa, que fazem a Cristo os senhores, que com seu escândalo são causa de ruína espiritual a seus escravos. Esta ponderou o Apóstolo na Epístola aos de Corinto, armado de zelo contra os que escandalosamente, comiam as carnes oferecidas em sacrifício aos ídolos, na presença dos Neófitos convertidos do Judaísmo á nossa Santa Fé. As suas palavras são estas: Pecando vós desta sorte, isto é, dando escândalo a vossos Irmãos, e perturbando-lhes as consciências, pecais contra Cristo (s). E foi o mesmo que se dissesse, comenta S. João Crisóstomo: Não haveis de imaginar, que induzindo vós o próximo a que peque, e dando-lhe escândalo, para que tomam também as carnes, que foram sacrificadas aos ídolos, todo o dano, que nisso fazeis, seja só ofender ao próximo, porque não só ofendeis ao próximo com o vosso escândalo, mas ainda passais a ofender a Cristo, que por todos deu a vida em uma Cruz (1). De maneira, que toda a razão, porque encarece o Apóstolo a deformidade do escândalo, não é só porque com ele se ofende ao próximo, mas porque mais principalmente se ofende a Cristo: Transit enim ad Christum ipum. 112. Sendo os comentos, que dão os Santos, nos textos, para explicarem o sentido dos mesmos textos e os darem a entender; eu nem entendo este texto do Apóstolo, nem o comento dele. E senão, vede. Nenhum gênero de pecado cometem os homens contra o próximo, que não seja também ofensa de Cristo. Quem tira ao próximo a vida, ou a honra, ou a fazenda, peca também contra Cristo. Logo, que nos diz de novo o Apóstolo, e com ele o Santo Doutor, dizendo que o pecado de escândalo não só ofende ao próximo, mas também ao mesmo Cristo? 113. Direi. De duas maneiras podem os homens, ofendendo ao próximo, ofender a Cristo; ou o podem ofender como a Deus e Criador, ou como a Cristo e Redentor. Então o ofendem como a Deus e Criador, quando ofendem ao próximo nos bens, que receberam do mesmo Cristo como Deus e Criador; e estes são a vida, a honra, a fazenda e os mais pertencentes ao corpo. Então o ofendem como a Cristo e Redentor, quando ofendem ao próximo nos bens que de Cristo receberam como Cristo e Redentor, e estes são as virtudes infusas, a graça, a salvação, e todos os mais dons sobrenaturais. E por que o pecado de escândalo se ordena directamente (2) a privar o próximo da graça e salvação, por isso este pecado mais que outro qualquer, diz o Apóstolo que ofende a Cristo: In Christum peccatis. 114. Ainda não está ponderado. E que mais tem ofender a Cristo enquanto Cristo e Redentor, do que ofendê-lo enquanto Deus e Criador, para que diga o Apóstolo tão vivamente que quem ofende ao próximo escandalizando-o, ofende também a Cristo como Cristo e Redentor e não como Deus e Criador: In Christum peccatis? 0 que tem de mais já (bem se adverte) fica dito acima, mas agora me explicarei melhor. Os bens, que nos dá Cristo como Deus e Criador, só lhe custaram uma palavra: fiat. E quanto lhe custaram os bens, que nos dá como Cristo e Redentor? Custaram-lhe afrontas, custaram-lhe espinhos, custaram-lhe açoites, custaram-lhe o sangue e custaram-lhe ainda a mesma vida. E como o que custa mais, mais se estima; e o que mais se estima, sente-se mais, se se perde: por isso sente mais Cristo e maior é a ofensa, que se lhe faz induzindo com escândalo ao próximo a que peque e perca a alma, do que sente ofensa, que se lhe faz danificando ao mesmo próximo nos bens do corpo. 115. E à vista de tantos e tão grandes males, que traz consigo o escândalo, não é coisa digna de todo o pasmo e admiração, que haja senhores, que traguem, sem reparo ú sem escrúpulo algum, escândalos tão multiplicados e enormes? Que haja senhores, que não reparem nem advirtam no grande escândalo, que dão a suas escravas, consentindo que saiam de casa a quaisquer horas e desoras, ou sejam da noite ou do dia, sabendo que daí provêm tantas ofensas de Deus! Oh! Se pudessem falar as ruas e becos das Cidades e povoações do Brasil! Quantos pecados publicariam, que encobre a noite, e não descobre o dia! Mas não quero individuar, nem dizer o mais, que deste sair das escravas se segue; porque ainda a mesma pena treme e pasma de os escrever. 116. Que haja senhores, que não reparem no grande escândalo, que dão a suas escrava, ou louvando-as de industriosas, quando as vêem trajadas com as librés, que adquiriram por meio das ofensas a Deus; ou dando-lhes em rosto com a sua pouca indústria e menos brio, quando não fazem o que vêem fazer as outras de vida estragada e perdida! Que haja, digo, senhores, que nisto não reparem, conhecendo que assim enfeitam a culpa, para que mais fàcilmente a cometam; e aprovam, como se fosse bom, o que por todos os títulos é mau; e reprovem, como se fosse mau, o que por todos os títulos é bom! Vae vobis (ameaçava Deus pelo Profeta lsaias) qui dicitis malum bonum et bonum malum! Ai de vós, que aprovais o mau, como se fosse bom; e reprovais o bom, como se fosse mau (u)! E contra quem mais directamente (3) fala este ameaço, senão contra vós, ó senhores, e com maior razão contra vós, ó senhoras, que aprovais as galas das vossas servas, ganha, das com o pecado, e reprovais se as não querem ganhar por não ofenderem a Deus? 117. Que haja senhores, que não reparem no grande escândalo, que dão a suas escravas, repartindo por elas o sustento da casa, e encarregando-lhes a cada uma sua porção! A uma a farinha ou o pão para a mesa; a outra a carne ou o peixe para o prato; esta há-de pagar os aluguéis das casas; aquela há-de dar o azeite para a candeia; e todas hão-de concorrer com o que lhes toca e está taxado. E que isto se faça entre Cristãos! Que haja tão pouco temor de Deus, que se não atente pelas consequências destes tributos tão indignos de um católico! Dizei-me, senhores, ou dizei-me senhoras (que convosco principalmente falo): Onde hão-de ir buscar as vossas escravas, com que satisfazer a estas pensões? Têm porventura algumas rendas, donde hajam de tirar o que lhes mandais e impondes para pagarem? É certo que não. Pois donde lhes há-de vir, senão dos pecados e torpe uso de seus corpos? E sustentando-vos vós e deste mau lucro e destes pecados; que é o que sois, senão um pecado vivo e animado? Lá disse o Filósofo, que cada um não é outra coisa, senão aquilo, de que se sustenta (x). E sendo assim que vos não sustentais de outra cousa, senão do pecado: que haveis de ser, senão o mesmo pecado? 118. Mas ainda não param aqui os escândalos dos senhores do Brasil; porque não contentes com induzir, aconselhar, consentir, e ainda mandar aos escravos que pequem, passam muito mais avante, obrigando-os com o castigo ou ameaços dele a ofender a Deus, e faltar à guarda de seus preceitos. E senão, dizei-me. Não é escândalo, e o mais execrando e diabólico, obrigar o senhor ao servo a que leve recados e embaixadas ilícitas, e seja terceiro para o pecado do mesmo senhor? E não é ainda muito maior mal, e muito mais escandaloso excesso, castigar rigorosamente ao mesmo servo, quando ou repugna a ir ou não indo (e provera a Deus que nenhum fora!) finge e diz que foi? Assim é. 119. Pois sabei que o senhor, que isto faz (quero dizer, que manda estas embaixadas) não é senhor, é Lúcifer, e tem domínio nos seus escravos do mesmo modo que o tem Lúcifer nos demónios. Lúcifer, bem sabem todos que é o príncipe e senhor do Inferno, e tem poder e domínio sobre os demónios. Mas em que o exercita? Em os mandar pelo mundo a tentar e solicitar os homens para o pecado. E tal é o domínio daqueles senhores, que usam dos seus escravos mandando-os no mesmo fim a que manda Lúcifer os seus demónios. Mas eu prometo que assim aos senhores que mandam a tão mau fim, como aos escravos que lhes obedecem, não pode faltar o castigo do fogo eterno; pois para uns e outros está aparelhado: Qui paratus est diabolo et angelis ejus (Y); ou (como lê S. Cirilo) Et nunt s ejus (z). Para estes Lucíferes da terra, e para estes seus embaixadores acendeu Deus aquele activo fogo, que os há-de abrasar e consumir por toda a eternidade! In ignem ceternum (a). 120. Não é escândalo, e o mais abominável nos olhos, de Deus, amigar-se o senhor com n sua escrava? E não é ainda muito maior e mais abominável obrigá-la á força a consentir neste pecado de seu senhor, e castigá-la quando repugna e quer apartar-se desta ofensa de Deus? Nenhum católico o há-de negar. E espera salvar-se o senhor, que isto faz? Se sucederam estes casos na Mauritânia ou Barbaria, onde dispensou Mafoma no sexto Mandamento, alguma razão havia com que se desculpassem os senhores, que cometessem delitos tão profanos e sobre profanos crueis. Mas que sucedam na Cristandade e a Cristãos tão Cristãos como os Portugueses! Que havemos de dizer senão que, além da eterna pena, com que merecem ser castigados na outra vida os senhores que assim violentam e obrigam as suas escravas a pecarem, ainda nesta merecem a morte temporal, imposta pelo Direito comum, e lei particular de Portugal a todos aqueles que violentamente, ou de outra maneira forçam e obrigam a pecar as mulheres de qualquer qualidade que sejam, ainda aquelas, a que vulgarmente chamamos mundanas? 121. Não é escândalo finalmente (e tanto mais grave, quanto mais ordinariamente sucede) obrigar o senhor ainda com castigo que paguem as escravas os furtos, que se fazem em casa ou as perdas, que sucedem por seus descuidos? Quem o pode negar? E não é isto querer que solicitem pecados para satisfazerem a essas perdas e a esses furtos? Ainda mal! E que haja senhores tão cegos, que não reparem, nem advirtam na grande injustiça que cometem obrigando a seus servos a pagar-lhes o que lhes não devem! Porque: que culpa tem o escravo ou a escrava, quando por acaso se lhe quebrou o cântaro ou a taça ou qualquer outro móvel deste género? Que culpa tem que entrem os ladrões em casa, e levem o ouro, ou a prata, ou o que puderam haver ás mãos? E sendo certo em boa Teologia, que não está obrigado a pagar as perdas e danos aquele que os não causou voluntariamente, ainda que para eles concorresse sem culpa sua; vede se ‚ injustiça manifesta obrigardes aos vossos escravos a que vos paguem, o que perdestes não por sua culpa? 122. E tanto mais se devem abominar estas injustiças, quanto são mais leves as perdas, que recebem os senhores. Dizei-me: Não é a maior indignidade, que por não perder o senhor quatro réis, ponha debaixo dos pés a honra de Deus e a venda por tão vil e abominável preço? Se para impedir as ofensas de Deus houvésseis de perder ou grande parte dos bens que possuís ou todos eles: quem não vê que merece Deus, que antes os perdesseis todos, com o interesse somente de que não seja ele ofendido? E se isto merece Deus que façais para que o não ofendam os estranhos; quanto mais merece que o façais, para que o não ofendam os vossos servos, devendo vós de justiça impedi-los que não ofendam a Deus, e muito mais quando é tão pouco o que interessais? Mas porque o não fazeis assim, antes fazeis todo o contrário, dais ocasião a que se diga com muito maior razão de vós, o que dos Cristãos do seu tempo dizia Salviano: Solus nobis in comparatione omnium vilis Deus est (b). Teme e treme a pena de escrever, e a boca de pronunciar e traduzir estas palavras. Fazendo comparação (diz) entre a vileza do mundo, e a grandeza e majestade de Deus, têm como por coisa assentada os Cristãos que todas as mais coisas são dignas da maior estimação, e só Deus ‚ a coisa mais vil. Parece que tinha este grande Padre diante dos alhos os nossos tempos; pois há senhores, que pela vileza mais vil da terra vendem a grandeza e majestade de Deus, não reparando em que por uma pequena quantia permitem e consentem, e ainda mandam fazer, tantas e tão enormes ofensas ao mesmo Deus. 123. Sendo pois os escândalos, com que os senhores induzem para o pecado aos seus servos, tão graves e tão frequentes como temos visto, é muito para admirar o pouco caso, que deles fazem os mesmos senhores para o arrependimento. Vem a confessar-se um destes senhores, ou por obrigação da Quaresma, ou por devoção (1) no meio do ano; e vereis, que gastando largo tempo aos pés do confessor em se acusar de venialidades, destes escândalos não faz menção alguma, como se não fossem pecados. Esta sem dúvida é a razão daquele tremendo ai de Cristo sobre o mundo, Vax mundo a scandalis (c)! Ai do mundo, onde tanto reinam os escândalos! Porque sendo tão fáceis os homens em dar escândalos, são tão difíceis em se arrepender e fazer penitência deles. Vede pois, Senhores, e atentai bem para as vossas Confissões. Procurai arrancar de todo as raízes destes escândalos. Deixai por uma vez de dar a beber aos vossos servos este tão mortífero veneno. Vede que assim a eles, como a vós mesmos causais a morte eterna. Lembrai-vos que tendes obrigação de vos aplicar todos a procurar-lhes o alimento, para a alma, assim como a tendes de lhes procurar o sustento para o corpo: panis, ne suecumbat. DISCURSO III Em que se trata de terceira obrigação que têm os senhores para com os servos 124. A terceira obrigação dos senhores ‚ dar ao escravo o castigo, para que se não acostume a errar, vendo que seus erros passam sem castigo: Disciplina, ne erret (d). Isto quer dizer disciplina, que vale o mesmo (como notamos intérpretes) que castigatio. Porém porque no castigo dos servos sucede haver muitas faltas, é necessário que saibam os senhores como e quando. se hão-de castigar, para que não pequem os mesmos senhores ou por defeito ou por excesso; pois qualquer destes extremos pode ser pecaminoso. Assim como erra o médico, que não receita a medicina ao enfermo se a enfermidade a pede; ou a receita quando fora mais útil que a não receitasse por não ser necessária à enfermidade; ou sendo necessária lha receita ou improporcionada para o achaque ou fora da quantidade conveniente; assim também igualmente erra o senhor, que não castiga ao servo quando merece, ou o castiga quando não, merece, ou merecendo lhe não aplica o castigo acomodado à sua culpa ou com mais excesso do que a culpa merece. Toda esta doutrina, que é muito importante, declararemos nos parágrafos seguintes. § I Que os senhores devem castigar aos servos, merecendo eles o castigo 125. Para trazer bem domados e disciplinados os escravos é necessário que o senhor lhes não falte com o castigo, quando eles se desmandam e fazem por onde o merecem. Flagellum equo, et camus asino, et virga in dorso imprudentium, diz (1) Salomão(2 ) nos seus Provérbios (e) Assim como o ginete necessita da espora e o jumento do freio, para serem governados; assim os imprudentes e maus necessitam da vara e do castigo, para que sejam morigerados como devem, e não faltem à sua obrigação. Esta é a genuina e literal exposição deste texto, como têm concordemente os Expositores. Mas, tornando eu tanto a meu cargo defender a causa dos escravos, contra os senhores, que os maltratam, parece que não devia aprovar que se executasse neles gênero algum de castigo, senão abominar como crueis e inumanos os senhores, que de qualquer modo os castigam. Assim havia de ser, se os escravos fossem de condição tão branda e bem domada, que se acomodassem ao que é razão. Mas como eles ordináriamente são volumários, rebeldes, e viciosos, não é possível que saiam bem disciplinados sem a disciplina sem o castigo. 126. Deixar o senhor viver o escravo à sua vontade, e por mais desordens que faça, dar tudo por em feito ou (quando muito) passar com uma repreensão; ‚ dar-lhe atrevimento, para que se arroje a todo o gênero de pecados; pois nenhuma coisa aos homens d mais ousadia para delinquirem e soltarem a rédea aos vícios, do que saberem que não hãode ser castigados seus delitos. Grave e compendiosamente S. Bernardo. A impunidade (diz o Santo) ou falta de castigo ‚ filha da incúria, mãe da insolência, raiz da audácia, e aumentada das transgressões e quebras das leis (f). E no Direito Canónico se admite como axioma infalível, que a facilidade de alcançar o perdão é incentivo para mais livremente pecar (9). 127. Por isso dizia o Profeta Isaias, que usar de misericórdia com os maus era querer que não aprendam a ser bons (h) . Pois se isto se verifica ainda nos livres e brancos, a quem o pejo, o timbre e o pundonor obriga a fugir dos malefícios: que ser nos pretos e cativos, que nascendo naturalmente sem pejo e sem timbre algum, únicamente governam suas acções pelo temor? Logo merecendo o escravo o castigo, não deve deixar de lho dar o senhor; porque não só não é crueldade castigar os servos, quando merecem por seus delitos Ser castigados, mas antes é uma das sete obras de misericórdia, que manda castigar aos que erram. 128. Digo, quando merecem; Porque não havendo neles falta digna de castigo, indigna coisa seria castigá-los o senhor. Interpretando a Glossa o Recrito, do imperador Antonino, que anda na Instituta (i), em que proíbe aos senhores toda a crueldade e excesso no castigo dos servos, excita está questão: Se ser lícito ao senhor castigar ao escravo sem causa? E responde que sim; não sendo porém o castigo demasiado (1), Muito melhor sem dúvida e mais, conforme ao direito e razão natural, falou Plateu, citado da mesma Glossa, dizendo que nenhum castigo (nem ainda mais leve) deve dar o senhor ao servo, não havendo nele falta, pela qual o mereça. E verdadeiramente, se é gênero de sevicia castigar com excesso ao escravo, ainda cometendo delito digno de castigo: como o não ser castigá-lo, ainda levemente, não havendo nele culpa, que deva ser castigada? 129. 0 castigo e a Pena pressupõem culpa, conforme aquele axioma de direito, Poena Praesupponit culpam (m); e assim, onde não há culpa (diz S. Agostinho) não pode haver própriamente pena e castigo (n). Pois se a pena e o castigo, quando se não dão por culpa, não são propriamente pena nem castigo: que podem ser, senão crueldade, e sevícia, e ainda e mais que crueldade? Crueis (diz Séneca) chamo aqueles, que tendo causa para castigarem, não guardam a moderação, que devem, no castigo (0). Logo quem castiga sem culpa é mais que cruel; porque é de natureza totalmente ferina, igual nos tigres e aos leões. Ao leão compara o Espírito Santo o senhor, que sem haver nos servos culpa, s¢ porque lhe dá na vontade, os castiga (P); ou conforme a versão de Vatablo: não queiras ser em tua casa como, o leão, castigando aos servos não por razão, se não por fantasia (q). 130. Os leões e outras feras deste gênero, como não têm razão nem discurso, instigadas de sua natural braveza e fantasia, que bruta e cegamente as arrebata a derramar sangue, se arremessam a todo o gênero de crueldades, vomitando, ainda contra os que as não ofendem, a sua cólera. Mui parecidos a estas feras são aqueles senhores, que sem causa alguma, arrebatados só de suas fantasias, castigam e maltratam os escravos, sem reparar na indignidade de acção tão bárbara e inumana. 131. E quem haverá, que sofra tão crueis e tiranos senhores? Se o castigo é merecido, anima-se qualquer a sofrê-lo com paciência e igualdade de ânimo: ver-se porém castigado (e tal vez rigorosamente) sem culpa, terrível gênero de dor é este e por todos os princípios, intolerável. Esta era a causa das lamentações e queixas C) de Enone escrevendo a Páris: Leniter ex merito quicquid Patiare, ferendum est: Quce venit indigne Poena, dolenda venit (r). Que paciência pois h mister um 'triste escravo para sofrer os castigos, que lhe dá o senhor sem razão e sem causa? Parece-me que há mister uma paciência, não só mais que humana, mas ainda mais que divina. 132. Em Cristo com as mais virtudes foi também divina a paciência, a qual mostrou em todo o discurso de sua Paixão; porque por mais injúrias que lhe fizeram, e por mais tormentos que lhe deram seus inimigos, se houve sempre como Cordeiro, sem se lhe ouvir em todo este tempo a mínima queixa. Assim o tinha profetizado Isaias, falando à letra do mesmo Senhor, quasi agnus coram ton, dente se obmutescet, et non, aperiet os suum (-1). Contudo esta paciência tão paciente e sofrida, não pôde tolerar a bofetada, que lhe deram em casa de Anás; e por essa razão perguntou ao ministro desta grande afronta o motivo e causa dela: Quid me caiedis (')? Não há dúvida que considerando a injúria, foi esta bofetada injúria gravíssima; e considerando a pena, foi suma pena; porque não faltam contemplativos, que digam que a mão deste ministro era armada de ferro. Contudo é certíssimo que Cristo em sua Paixão padeceu injúrias ainda mais afrontosas, e penas ainda mais crueis do que esta, como foram as salivas e escarros, com que lhe afearam o rosto; os açoites, com que lhe rasgaram as carnes; os espinhos, com que lhe atravessaram a cabeça; e os cravos, com que lhe abriram os pés e mãos. Pois, se dos mais ministros quando lhe faziam estas injúrias e lhe davam estes tormentos, se não queixou o Senhor; porque mais se havia de queixar do ministro, que lhe deu a bofetada? A razão (pelo que eu entendo) foi porque os mais ministros podiam alegar alguma razão aparente dessas injúrias e desses tormentos, dizendo que eram mandados. Porém como este ministro, atrevido, sem causa alguma, e só por arrojo de sua fantasia, lhe deu a bofetada, não podia dar razão alguma de tão grande desacato; por isso a ele só, e não aos mais, perguntou Cristo pela razão de o afrontar e lhe dar pena: quid me caedis? Para que entendessem todos que não tinha razão este ministro de usar com ele de tão grande sem razão. De maneira que sofrendo Cristo de outros ministros maiores injúrias e maiores tormentos sem comparação, s¢ deste se queixa; porque não há paciência, por mais divina que seja, que possa tolerar pena e sofrer castigo, não havendo causa para se lhe dar: quid me caedis? Como logo hão, de sofrer os tristes escravos a tirania de um senhor, que os castiga sem culpa e sem causa? Averiguem pois os senhores primeiro os delitos dos servos; e depois deles averiguados, então lhes não faltem com o castigo. 133. E para averiguar bem o delito do escravo, não deve o senhor dar logo crédito a tudo o que lhe disserem, mas deve guardar também um ouvido para o ouvir a ele. É tão contra razão condenar :alguém sem o ouvir primeiro de sua justiça, que não há na terra poder, que a isto se estenda. 0 maior poder, que há no mundo é o do Sumo Pontífice da Igreja Romana, pois o mesmo Deus lho deu amplíssimo, assim para atar, isto é, para condenar, como para desatar, isto é, para absolver: Quodcumque ligaveris super terram, erit ligatum et in cmlis et quodcumque solveris super terram, erit solutum et in coelis disse Cristo a S. Pedro, e a todos os seus sucessores (u). E contudo o mesmo Pontífice Romano, com pública declaração enxerida no Corpo do Direito Canónico, confessa que não tem poder para determinar coisa alguma contra a parte, que não foi ouvida (x). Mas que muito não haja poder para isso na terra, quando o mesmo Senhor do Céu, que o tem por lhe ser manifesta e patente toda a verdade, o não exercita sem primeiro ouvir os culpados, antes que chegue a usar com eles do castigo? Assim o mostrou com Adão (Y), e com Caim (z), aos quais não condenou sem primeiro lhes fazer cargo e ouvir sua defesa Logo por que se há-de atrever o senhor a castigar o escravo sem lhe ouvir primeiro a descarga do delito que se lhe imputa? 134. Nem digais que se abate o senhor e desce de sua autoridade, entrando em perguntas com o seu servo; porque em ouvir as razões, que :alega o escravo em favor de sua inocência, não corre risco algum de menoscabo a autoridade senhoril. Job (que assim como foi o exemplar melhor da paciência, assim o foi também dos senhores) sendo um senhor e príncipe tão grande entre todos os do Oriente não tinha por desdouro perguntar e ouvir as, razões dos seus servos, quando se punham a juízo com eles. Eu (diz rei paciente) nunca imitei o costume daqueles senhores, que se desprezam de ouvir aos servos, e nunca lhes tolhi que alegassem sua defensa e dissessem em abono de sua causa, ainda contra mim (a). E com razão o devia fazer assim, diz Olimpiodoro, porque se por ventura imaginassem que lhes fazia injúria e queria o que não era razão, ficassem desenganados e convencidos dele (b). 135. Nem s¢ deve o senhor ouvir aos servos antes de chegar à execução do castigo; mas se ainda no mesmo tempo, em que os está castigando, quiserem alegar suas razões e desculpas, não lho deve tolher o senhor, diz Plutarco (c). Daqui podeis inferir quão grande é a crueldade daqueles senhores, que, para que os servos não falem por si, nem ainda dêem gemidos no tempo do castigo, lhes mandam atravessar um pau na boca; como se desculpar-se e o gemer fosse alguma blasfêmia contra o mesmo senhor, que os manda castigar; sendo que quando assim fosse, ainda lho não deviam proibir. 136. É sabido que no Inferno estão continuamente os condenados blasfemando contra Deus, que com tanto rigor os castiga; sendo que é certíssimo que os castiga com muito inferior ao que merecem, como dizem os Teólogos, cujo axioma diz assim: Deus punir infra condignum (d). Pergunto pois: Porque há-de consentir Deus que os condenados vomitem de sua impura boca blasfêmias horrendas? Porque não manda aos demónios, que lhes ponham a todos uma mordaça na boca? Sabem porquê? Porque se os condenados blasfemam de Deus, é porque se vêem castigados do mesmo Deus; e Deus quando castiga, não tapa a boca a ninguém: sejam castigados, e falem o que quiserem. Pois, se Deus assim o faz, porque o não hão-de fazer assim os senhores? Não basta que o servo padeça o castigo, senão ainda lhe quereis tapar a boca, para que não alegue sua desculpa e não se queixe? 137. Ouvido enfim o escravo, e constando que realmente tem culpa; não há dúvida que faltaria gravemente o senhor à sua obrigação faltando-lhe com o castigo, e cometeria um pecado, que nas balanças de Deus igualmente pesa, como se o castigasse sendo ele inocente. Qui justificar impium et qui condemnat justum, abominabilis est uterque apud Deum, - é sentença de Salomão nos Provérbios (c). A qual traslada Vatablo por estas palavras: Igualmente aborrece Deus aquele que absolve do castigo a um mau, como aquele que condena à pena a um inocente e sem culpa (f). E ainda que estas palavras vão directamente (1) a ferir os julgadores, que pervertendo as regras da justiça absolvem culpados e condenam inocentes; não deixam contudo de quadrar bem aos senhores, que não dão o castigo aos escravos criminosos, e castigam aos que não tem crime. Uns e outros aborrece Deus igualmente: Ex aequo abaminatur Dominus. 138. Nem obsta aquela tão sabida regra de Direito, que declara que é melhor, ou menos mau, livrar a um culpado que castigar a um inocente (9). Não obsta, digo, porque esta regra s¢ tem lugar nos casos duvidosos, isto é, quando o julgador não acha tão provado o delito do réu, que possa formar juízo pleno que o cometeu, mas fica suspenso, ou com dúvida, se o faria ou não faria. Porém constando certamente ao julgador, ou do delito, ou da inocência do culpado, igual pecado comete quem livra da pena ao criminso, como quem condena a castigo ao inocente. A razão de igualdade destes pecados está clara. Porque se a justiça tem por objecto dar a cada um o que lhe toca e pertence (h); devendo ser punido o culpado e absolto da pena o inocente, igualmente encontra a justiça quem absolve aquele e condena este. 139. Para que pois não cometam os senhores injustiça tão abominável a Deus não faltem aos escravos delinquentes com o castigo; e mais principalmente quando o seu delito encontra não tanto a pessoa e serviço dos mesmos senhores, quanto a majestade e serviço de Deus. Assim o pede a razão, não só porque a ofensa, que o escravo faz a seu senhor, quase não é ofensa em comparação da que faz a Deus (porque excedendo Deus infinitamente na dignidade a todas as criaturas, qualquer ofensa sua, por mínima que seja, infinitamente excede todas as ofensas, ainda as mais atrozes, que se fazem ou podem fazer ás mesmas criaturas); senão também porque sendo Deus tão zeloso e amante de nosso bem, que mais severamente castiga as alheias que uma criatura faz imediatamente á outra, do que as que as mesmas criaturas imediatamente cometem contra ele: quem não vê que pede a boa correspondência que a criatura castigue com maior rigor as ofensas feitas contra Deus, do que as feitas contra essa mesma criatura? 140. E que Deus use de menos rigor no castigo daquelas densas, que imediatamente se dirigem a ofendê-lo, do que as que se fazem contra as criaturas, eu o pudera mostrar com muitos e mui singulares, exemplos. Baste por todos o de Caim. Dois pecados cometeu Caim, um contra o primeiro Mandamento, faltando à honra e culto devido a Deus, pois lhe ofereceu o mais inferior cordeiro do seu rebanho; e outro contra o quinto, tirando aleivosamente a vida a seu irmão Abel. 0 primeiro pecado, por ser contra a virtude da Religião, não se pode negar que ex genere suo era maior que o segundo, e contudo desse primeiro fez Deus tão pouco caso, que se satisfez não com outro castigo (diz S. João Crisóstomo) mais que com lançar-lhe em rosto a sua culpa: Peccasti (i). Vede agora como castigou o segundo. Lançou primeiramente sobre Caim a sua maldição (1); e condenou-o a andar sempre desterrado e fugitivo pelos bosques (m) até acabar a vida com morte violenta e semelhante à que deu ao irmão. Admira-vos esta diversidade? Pois não vos admire, diz o Santo Doutor; porque é o que Deus ordiriàriamente usa, perdoar com facilidade as ofensas próprias e castigar severamente as alheias (n). Logo se Deus se há desta sorte connosco, com quanta mais razão devem os senhores haver-se da mesma sorte com Deus, castigando nos escravos com maior rigor as ofensas que cometem contra o mesmo Deus do que as que cometem contra eles? Armai, senhores, armai a mão de castigo contra as ofensas, que fazem a Deus os vossos escravos; que nunca pode ser mais bem empregado o castigo, que em atalhar estes erros, disciplina, ne erret. § 11 Que os senhores não hão-de castigar tudo, mas relevar algumas faltas a seus escravos 141. Temos visto a grande obrigação, que têm os senhores, de não passar sem castigo pelas culpas e delitos dos escravos. Não quisera porém que houvesse senhor tão imprudente, que inferisse daqui que não possa ou não deva relevar falta alguma nos servos, senão levar igualmente tudo com o rigor do castigo. Todos os extremos são viciosos. Ne quid nimis, dizia um Sábio (0). Perdoar tudo, é excesso contra a justiça; e não perdoar nada, é outro excesso contra a misericórdia. Quem duvida logo, que pode e deve algumas vezes prudentemente dissimular o senhor as faltas dos escravos? Lá disse o Poeta, que se todas as vezes que pecam os homens, houvesse Júpiter de lançar raios contra eles, em breve tempo não teria armas com que os ferir. Si quotUes peccant homines, sua fulmina mittat Juppiter, exiguo tempore inermis erit (P). E se todas as vezes que o escravo falta a alguma de suas obrigações, houver seu senhor de descarregar sobre ele o castigo, em breve tempo não ter a quem castigar. 0 castigo é medicina da culpa; e os medicamentos, para que façam efeito, não hão-de ser mui continuados, porque a continuação faz que não obrem; pois como ensinam os Filósofos, o que se faz por costume muito continuado, não faz mossa nem moção: Ab assuetis non fit passio (q). 142. 0 escravo calejado com o castigo já o não teme; e porque o não teme, não lhe aproveita. É o castigo como a guerra. A guerra mais espanta, temida quê experimentada, disse o Trágico (r). Muitos há, que antes de chegarem à vista do inimigo, temem e tremem de medo; depois de o avançarem uma vez e experimentarem o que nele tem, lho perdem de sorte que entram nas batalhas com igual sossego, como se fossem a uma justa ou torneio. 0 mesmo sucede no castigo, mais pode temido, que experimentado, pejor est paena timor ipse pence. Enquanto o escravo não tomou o pulso ao castigo, e não sabe o que pesa, é tal o medo e horror que lhe tem, que treme e sua só com a consideração que seu senhor o poder castigar; por‚m depois que o experimenta (e muito mais se é por costume) pouco apouco lhe perde o medo e temor, e lhe endurece em tanta maneira a pele como crestada ou calejada, que o mesmo é castigá-lo, que malhar (como dizeis) em ferro frio. 143. Não temendo pois o servo o castigo, como há-de deixar de fazer sua vontade? E quando ainda não chegue a despir totalmente o medo, porque o castigo nunca pode saber bem; da muita continuação dele nasce outro inconveniente não pequeno. Porque sabendo o escravo que o senhor lhe não passa em claro falta alguma, e que lhe não valem padrinhos; em chegando a cometer algum delito, e vendo que não tem outro remédio para evitar os rigores do mesmo senhor, toma carta de seguro e foge. 144. Que sabiamente o advertiu Salomão nos Provérbios, dizendo que quem perturba a sua casa não possuir outra coisa mais que ventos (s)! Mas quem é este perturbador, de que fala o Espírito Santo? É o Senhor (diz Salazar) que continuamente faz revoluções em sua casa, castigando sempre, e por qualquer leve causa, aos servos (1). E quem são os ventos, com que se há-de achar, senão escravos, que à maneira de ventos lhe fogem, e se lhe ausentam? - diz o mesmo Expositor (u). Nas casas, onde o senhor ou a senhora anda em uma contínua guerra com seus escravos, castigando os sem lei, sem ordem, sem consideração, e sem modo algum, não param os servos. E por essa razão é necessário que este tal senhor faça da mesma sua casa cárcere de Éolo senhor dos ventos, prendendo com grilhões e correntes a estes fugitivos, corno Éolo aos mesmos ventos; porque se assim o não fizer, qua data porta, ruunt por qualquer caminho que se lhes abrir a porta, desaparecem logo (x). Havendo prudência no senhor para fazer dissimular algumas faltas aos escravos, tudo se remedeia, e tudo se faz bem. 145. Porém porque nem tudo se deve castigar, nem tudo perdoar, vejamos que gêneros de culpas são as que pode e deve perdoar o Senhor aos servos, para que daí se entenda as que se devem castigar. 0 primeiro gênero é o das leves e de pouca entidade, como seria uma palavra menos sofrida, um tardar pouco mais do que era justo, e semelhantes outras. Anda em, provérbio, que culpas que não têm sustância, não devem ser emprego da justiça vindicativa do julgador: De minimis non curat Prœetor (Y). Funda-se este provérbio, a meu ver, naquele texto ou axioma de Direito: Que das coisas mínimas não se há-de fazer caso: Mininia non sunt in consideratione (2). Logo, porque há-de ser o senhor tão rigoroso, que faça caso de tudo, e não deixe passar a mínima falta do Servo, que a não castigue? 146. Não ‚ isto querer ser demasiadamente justo, contra o que expressamente ordena o Espírito Santo, noli esse justus Multum (a)? Mas em que consiste a nimiedade da justiça? Em querer levar tudo à virga férrea; e que quem a fez, a pague logo (diz S. Jerónimo), sem distinguir entre culpas e culpas, não passando nem pelas graves, nem penas leves, sem que de todas tome vingança: Ouçam as palavras do Doutor máximo, que são admiráveis ao nosso intento: Se vires alguém tão rigoroso e inexorável para qualquer sorte de pecados que comete o seu próximo, que não queira perdoar nem uma palavra que inconsideradamente lhe saiu da boca, nem uma tardança que sucede por descuido e fraqueza natural; sabei que este é mais justo, do que pede a justiçai porque é inumana toda a justiça que se não compadece da fragilidade dos homens (b). 147. Bem sei que falando em rigor, tem o senhor direito para castigar ao escravo, todas as vezes que falta à sua obrigação; mas sei também que é certo aquele axioma de Marco Túlio; Sunimum jus summa injuria (c). Querer usar de todo o seu direito, sem que falte um ponto nem um ápice, é suma injustiça. Por isso todos devem estranhar o costume indiscreto daqueles senhores, ou senhoras, que de maneira de comitres de galé estão continuamente sobre os escravos com o açoite na mão, e lhes não deixam passar falta, por leve que seja, sem castigo; e o que mais é, para terem ocasião de os castigar, lhe imputam como falta o que não é, nem tem sombra de falta. 148. Pode haver falta menos falta do que mover os beiços? É certo que não. Pois nos miseráveis servos de alguns senhores (diz Séneca) não é lícito nem ainda mover os beiços Para falarem (d). Por qualquer murmurinho que se lhes sinta, experimentam logo o rigor da vara (c); e nem ainda o que sucede naturalmente e acaso, como é o tossir e o espirrar e soluçar, se lhes perdoa (f). Este costume de não poderem os escravos abrir boca em presença de seus senhores, que dos Persas passou nos Romanos, bem mostra que sujeitando Roma os Bárbaros ao seu império, sujeitou-se, a si à barbaridade deles. Não haja pois, entre Cristãos, senhores tão inumanos, que por tão leves causas (se é que se podem dizer causas) usem logo com os escravos do rigor do castigo. 149. Outro género de faltas, que os senhores devem tolerar nos servos, é das que se originam da pouca capacidade e natural rudeza dos pretos, e não de ânimo rebelde a Deus e a seu senhor. A razão é, porque o que ‚ digno de castigo não é a acção, senão o dolo e a malícia, com que se faz. Donde ver naquela tão sabida regra do, Direito que não havendo dolo não há delito digno de pena (g). E a razão desta razão se funda em outra regra do mesmo Direito, que diz que o ânimo e o propósito são os que dão a malícia às acções, que não seriam más, se não houvesse mau ânimo e mau propósito (h). 150. Por isso com muita razão se encorporou no Direito comum o Rescrito do Imperador Adriano, em que declara, que quem matou, porém sem ânimo de matar, deve ser absolto da Pena devida no homicídio, e quem feriu com ânimo de matar, ainda que não matasse, deve ser punido como homicida (i). Se os senhores atentassem bem que muitas culpas dos servos não nascem de má vontade, que neles haja, senão de sua rudeza, que lhes não deixa entender mais, não duvido que não seriam tão fáceis em os castigar. 151. 0 escravo, quê pecando, por rude, falta ao que deve, não merece castigo, senão compaixão e ensino. Ensinar aos ignorantes e dar o castigo aos que erram, ambas estas coisas são obras de misericórdia e pertencem às sete espirituais; porém de tal sorte que o ensino dos ignorantes precede ao castigo dos que erram; este está no quarto lugar e aquele no segundo. E porquê? Porque para fazerdes de misericórdia castigando os que erram, haveis de primeiro ensiná-los quando ignorantes. Primeiro se deve instruir o escravo no que pertence à segunda das obras de misericórdia; e se, depois de instruido nela, falta ao que deve, então cabe bem a quarta. 152. Não é pois uma manifesta sem razão, querer o senhor que no mesmo tempo em que lhe entrou um boçal em casa, ande logo tanto a ponto, como se estivesse doutorado na arte de servir? E se por algum caso faltar a ela, ainda levemente, seja logo por isso castigado? Porque o não ensinais primeiro como vos há-de servir? E se depois de ensinado não satisfizer à sua obrigação, então tereis razão para lhe dar o castigo. Que direis do Mestre, se nos primeiros dias, que lhe entra o vosso filho na classe, sem lhe dar lição alguma, quisesse depois que desse conta daquilo que lhe não tinha ensinado; e por lha não dar, o mandasse ao castigo? 0 mesmo dizei de vós. Porque como há o escravo de dor boa conta do vosso serviço, antes de aprender como se há-de servir? Em conclusão: onde não há erro voluntário não deve haver castigo; porque este só é devido àquele que erra, para que não erre, disciplina, ne erret. § III Que as pragas e nomes injuriosos não servem para castigo dos escravos 153. Suposto que o senhor deve perdoar algumas faltas aos servos e forçosamente deva castigar outras, para que sem o freio do castigo se não façam os escravos mais viciosos do que são e multipliquem culpas sobre culpas; vejamos agora qual deve ser o castigo. Alguns senhores há que se satisfazem castigando os servos com palavras; e principalmente as senhoras, que só então cuidam que ficaram bem vingadas dos desatinos do escravo ou da escrava, quando desabafaram o coração com palavras injuriosas, pragas e maldições horrendas, dando-os e suas almas ao demónio, e imprecando sobre eles o inferno todo. Mas este certamente não é o castigo, com que se devem disciplinar os servos. Um dos primeiros preceitos, que deu Platão aos senhores acerca do bom governo dos servos, é que os não descomponham e maltratem com palavras injuriosas (1). E por que não os senhores de descompor com nomes afrontosos nos escravos, se com eles não deve ser injuriado nem ainda o mesmo demónio? 154. Entre o Arcanjo S. Miguel e o demónio houve uma porfiada contenda de parte a parte, sobre o lugar em que havia de ser sepultado o cadáver de Moisés; e diz S. Tadeu, que se não atreveu o Arcanjo a blasfemar do mesmo demónio (m). A blasfémia pròpriamente se comete, quando se diz alguma palavra injuriosa contra Deus, conforme o comum sentir dos Teólogos e definição de S. Agostinho, que declarando o que é blasfémia, diz assim: Blasfemar ‚ dizer algum mal dos bons. E como se possa duvidar da bondade de qualquer criatura, e só Deus unicamente seja bom sem controvérsia, daqui vem, que só é tido vulgarmente por blasfemo aquele que Profere palavras injuriosas contra Deus (m). 155. Porém se o diabo, ninguém duvida que ‚ sumamente mau, como Podia blasfemar dele S. Miguel? Logo que blasfémia seria esta, que se não atreveu a proferir o Arcanjo contra o demónio? A versão Tigurina diz que foi maldição (0); e a de Vatablo diz que foi nome ou palavra injuriosa (P). Tudo isto seria, mas pergunto? Porque se não havia de atrever S. Miguel a amaldiçoar o demónio, sendo o demónio tão digno de todas as maldições, nem dizer-lhe uma palavra injuriosa, não havendo injúria que ele não mereça? Aqui vereis o que são pragas, o que são maldições e o que são nomes injuriosos; que nem contra o mesmo demónio se atreve a proferi-los o Príncipe das jerarquias celestes. E estas pragas, estas maldições, e estes nomes proferis vós tão facilmente a cada passo contra vossos escravos. Ouvi coimo contra vós argumenta o Doutor máximo, referido por Graciano: Se o grande Arcanjo S. Miguel não se atreveu a praguejar, e amaldiçoar ao demónio, sendo tão digno de maldição e de pragas: quanto mais nós os Cristãos havemos de fugir de todas as pragas e maldições (q)! 156. E sendo isto assim, ‚ muito digno de ser notado o abuso dos senhores, e muito mais das senhoras do Brasil, que sem reparo algum praguejam e descompõem com palavras injuriosas aos servos e ás servas, desde que nasce o sol até que se põe, não se ouvindo em vasa todo o dia mais que nomes afrontosos e pragas medonhas. Este intolerável abuso nasce, a meu ver, de cuidarem muitos que nisto não pecam; ou se pecam, é muito levemente; sendo que assim as pragas, como os nomes injuriosos são de sua natureza pecados mortais, e graves, como ensinam uniformemente os Teólogos com o Mestre de todos S. Tomás. Ouçam pois, os que injuriam com palavras afrontosas aos escravos, ouçam o que diz o Santo Doutor, das contumélias: Como quer que as contumélias e injúrias de palavra tragam consigo a desonra daquele contra quem são proferidas, quando quem as profere intenta por elas tirar a honra ao próximo, então comete pecado de contumélia, tão grave e mortal, como o é o furto ou a rapina. Porque qualquer homem não ama menos sua honra, do que os mais bens da fortuna, que possui (r). 157. Ouçam agora os praguentos o que o mesmo Santo Doutor diz das imprecações e pragas: As imprecações e pragas, de que falamos, é pronunciar algum mal contra outro, ou como quem lho deseja, ou como quem lho manda. E desejar mal a outro, ou mandar-lho, é coisa que repugna à caridade, com que se deve amar ao próximo; e por isso em seu género é pecado mortal (s). 158. Bem vejo que esta doutrina era bastante para vos persuadir que não é pecado tão leve o praguejar e dizer injúrias aos servos, como muitos imaginais, se o mesmo Doutor Angélico não ensinasse no mesmo lugar outra doutrina, com que parece que livra de pecado mortal a quase todas as palavras injuriosas e pragas. A doutrina é: Que pode haver no praguejar (o mesmo se há-de entender no dizer nomes afrontosos) pecado venial, ou por razão de ser leve o mal que se roga, ou por não serem as pragas proferidas com ânimo de fazer mal (I). Por isso ‚ costume mui ordinário dos que se confessam, desculparem-se das pragas que rogam, e dos nomes e conturmélias que disseram aos escravos, dizendo que foi com paixão e cólera, e não com ânimo de que as pragas tivessem efeito, nem para que ficasse afrontada a pessoa do escravo. E dão a razão: Porque tanto que lhes saiu da boca a palavra injuriosa ou a praga, logo se arrependem e ficam muito sentidos de a haverem rogado, e dito aquela injúria. 159. Eu não nego que não possa talvez a paixão de cólera ser tão arrebatada, que tire totalmente o sentido e advertência, ou a deixe tão débil e fraca, que no haja, deliberação bastante Para contrair culpa grave; digo porém que ordiriáriamente não sucede assim, e que, não obstante a paixão, há a advertência que basta, e conseguintemente a deliberação requisita para pecar mortalmente. A paixão é um eclipse da razão; pois assim como os eclipses não chegam a escurecer o sol de maneira que do dia façam noite; assim também as paixões e a cólera não costumam escurecer de sorte a razão, que não fique bastante luz para discernir o bem e o mal; porque se com a cólera e a paixão, não houvesse advertência para o pecado, nunca o demónio tentaria com a paixão e a cólera. Notai: 160. 0 fim, por que o demónio excita as paixões, é para nos induzir mais facilmente ao pecado. Logo, se qualquer paixão e indignação escurecesse o entendimento de tal modo que não deixasse advertência e deliberação bastante para pecar ainda mortalmente: para que era tentar-nos? Tempera ele os humores de sorte, quando nos provoca a cólera, que perturbem o entendimento sim, para que não conceba tão vivamente o mal que faz, e toda a deformidade que nele há ; porém nunca o perturba de maneira que não conheça a malícia que basta para pecar gravemente. 161. Para o demónio fazer bem o seu negócio e nos conquistar a vontade para o consentimento do pecado, no há-de haver dia claro, nem noite escura; há-de haver um ar pardo; isto é, há de estar o entendimento nem totalmente claro, nem totalmente escuro. Não há-de estar totalmente claro, porque se conhecer clara e vivamente a deformidade da culpa, hão-de as vontades aborrecê-la e fugir dela; nem há-de estar totalmente escuro, Porque se se não conhecer a gravidade do pecado, não há-de haver malícia nas vontades, que o cometem. Diz Job que os olhos do demónio são corno os resplandores da Aurora (u). Mas qual será a proporção desta semelhança? Agora a direi: Os resplandores da aurora luzem s¢ entre o dia e a noite, quando nem a noite é totalmente noite, nem o dia total, mente dia. E tais são os olhos do demónio; só se apuram entre o dia e a noite da razão; quando o conhecimento da malícia da culpa não é totalmente claro, nem totalmente escuro, então é que olha o demónio. E porquê? Porque o demónio só olha para o pecado, e como para haver pecado, não há-de ser no entendimento nem tudo luzes nem tudo trevas, senão um claro-escuro, como o tempo da aurora; por isso diz Job, que os olhos do demónio se parecem com os resplandores da aurora: Oculi ejus ut palpebrx diluculi. E por isso, outra vez: ainda que o demónio excite em nós as paixões, que nos escurecem os entendimentos, regularmente falando não é de maneira que nos tire a luz necessária para pecar gravemente. 162. Nem o arrepender-se logo o senhor, depois de dizer as pragas e nomes injuriosos aos senhor, é presunção suficiente para julgar que faltas-se o desejo de os ofender, diz Soto (x). Quem se havia de atrever a afirmar certamente que não cometeu pecado mortal grave, aquele que tirando ao seu inimigo, diz que logo e quase no mesmo tempo que deu a arma fogo, teve entranhável arrependimento de o haver feito? Ninguém: porque o incorrer na malícia do homicídio não depende em coisa alguma da vontade, que imediatamente se lhe seguiu depois; senão da que houve no instante e actual exercício do mesmo homicídio. Por isso quem tirou ao seu inimigo com vontade de o matar no mesmo instante em que fez o tiro, não deixa de pecar mortalmente, por mais que imediatamente se arrependa depois. 163. 0 mesmo, nem mais nem menos, se deve dizer no nosso caso. Se naquele momento, em que se proferiu a injúria e praga, houve desejo de que o escravo ficasse ofendido e injuriado, não deixam de ser pecados graves, por mais que logo depois de proferidas se arrependesse quem as proferiu. Logo o arrependimento, que se segue ao proferir os nomes e as pragas, não é sinal certo de que faltasse o consentimento necessário para haver pecado. Sabeis de que é indício certo? De haverdes entrado em vós e conhecido o mal que fizestes; mas não de o não haverdes feito. Não é logo tão certo, como por ventura até agora cuidastes, que as pragas e nomes injuriosos, com que costumais descompor aos escravos, não cheguem a ter malícia mortal e grave, por serem proferidas no fervor da cólera, que vos arrebata e tira do sentido. 164. E nem por ofenderdes gravemente a Deus, ou vos pordes em perigo de o ofender praguejando e injuriando de palavras aos servos, nem por isso (digo) vindes a conseguir o fim, que pretendeis, que ‚ por-lhes medo e castigá-los, porque os escravos ou pouco ou nenhum caso fazem das vossas pragas e das vossas injúrias. E porque o não fazem? Porque os escravos igualmetne podem castigar corri a língua aos senhores, como os senhores os castigam a eles. Vós, para vos vingardes do servo, armais contra ele uma trovoada de nomes e pragas; e no mesmo tempo descarrega sobre vós o servo outra maior tempestade de nomes ainda mais injuriosos, e de pragas ainda mais medonhas; e por cada uma vossa vos retorna ele muitas mil; e desta sorte se d por bem pago e satisfeito, e vai por diante em sua rebeldia. 165. Entendam pois os senhores que as palavras, por mais prenhes que vão de injúrias, maldições e pragas, não servem para meter a caminho os servos, porque, corno bem advertiu Salomão: 0 servo não pode ser ensinado com palavras (Y). Logo com quê? Verberibus ac plagis, comenta Salazar: Com o castigo (-). Deixai os nomes, as maldições, e, as pragas, e dai no servo o merecido castigo; porque com aquelas o injuriais e pecais não só contra a Caridade, mas também contra a justiça; e com este, além de fazerdes uma obra de misericórdia, alcançareis a emenda do escravo, que é o fim pelo qual se lhe d o castigo: Disciplina, ne erret. § IV Que no castigo dos servos não devem usar os senhores de sevícia 166. É a sevícia um monstro tão abominável horroroso e indigno da natureza humana, que Séneca julgou se não devia contar entre os vícios dos homens, senão entre as barbaridades das feras. A crueldade (diz o Estoico) não é vício humano. Alegrar-se com derramar sangue é próprio e natural das feras; é lançar de si e degenerar do ser de homem, e tomar e vestir a natureza dos brutos (a). Por isso julgava eu que era supérfluo encomendar nos senhores que se guardem de um vício, que os faz tão semelhantes ás feras. Mas estai nos em tempos que é necessário lembrar ao senhores e dizer-lhes que advirtam que são homens; para que no castigo dos escravos não degenerem em brutos, que arrebatados de sua natural braveza s¢ com derramar o sangue sossegam a cólera. Deve pois o senhor castigar aos servos (como já disse e agora torno a dizer), cometendo eles delito, pelo qual mereçam o castigo; este porém deve ser tão moderado e gizado pela razão, que não passe os limites de castigo e chegue a ser sevicia ou crueldade. 167. Antigamente podiam os senhores exercitar contra os escravos os rigores da maior tirania; por que lhes era permitido pelas leis e direito das gentes, tirar-lhes a vida com qualquer esquisito género de tormentos, sem que ninguém lhes pudesse ir à mão e pedir conta do homicídio, que cometiam. Porém com o tempo, vendo os Imperadores que este domínio tão absoluto, e por isso tão contrário à razão natural, fazia que os senhores castigassem aos escravos bárbara e tiranamente, e por qualquer leve causa lhes tirassem a vida; prudentemente julgaram que se devia coarctar e restringir. E assim decretou o Imperador Antonino (que só por isso merecia o título, que lhe deram, de Pio) que de nenhum modo fosse lícito ao senhor tirar a vida ao seu escravo; e que tirando-lha, incorresse na mesma pena, que incorreria se matasse ao servo alheio (b). 168. E para impedir as mais sevícias dos senhores no castigo dos servos, decretou o mesmo Imperador, que se os servos cruelmente castigados de seus senhores recorressem ao sagrado ou à está tua do Príncipe, implorando o seu patrocínio, fossem obrigados os mesmos senhores a vendê-los a outros, que os tratassem como pede a razão e humanidade (c). E a razão, que dá o Imperador para esta determinação, é verdadeiramente admirável: Porque (diz) convém ao bem público que ninguém use mal, nem ainda do seu (d). 169. Mas ainda que o Imperador Antonino fizesse esta Constituição e a mandasse guardar por todo o Império Romano, não foi ele contudo o primeiro que restringiu e limitou em Roma o poder absoluto dos senhores no castigo dos servos; porque seu Pai o Imperador Adriano condenou a cinco anos de degredo a Umbrícia (que era das principais matronas de Roma), porque havia por causas muito leves executado castigos atrozes em suas escravas (e). E já no tempo em que florescia Séneca. (que foi no Império de Nero) consta que não havia em Roma este absoluto domínio de poder o senhor tirar a vida e usar de crueldade com os escravos; porque (como refere o mesmo Séneca) havia tribuna e julgador para conhecer das injúrias que os Senhores faziam aos servos, e refrear a tirania com que os castigavam, e a avareza com que lhes faltavam ainda com o necessário sustento (f). 170. Nesta parte porém não remos os Portugueses que invejar a Roma os Adrianos e Antoninos Pios, por ter dado Deus à Coroa de Portugal um Rei, que esmerando-se em todas as mais virtudes, é singularíssimo na piedade. E como esta costuma fazer o maior emprego, onde mais realça a miséria e necessidade; por isso vemos, que Sua Majestade o Senhor Rei Dom Pedro (que Deus nos guarde) entre os cuidados que pede tão dilatada Monarquia, parece não tem outro mais que o com que procura suavizar o jugo da servidão e cativeiro dos escravos, que vivem nesta e nas mais Conquistas de Portugal. E no particular, de que tratamos, é incrível o zelo que mostra, para que não haja excesso no castigo que dão os senhores aos servos. 0 que bem prova o parágrafo de uma Carta sua, que me veio à mão, escrita no ano de 1698 ao Governador e Capitão geral Dom João de Lancastro. Fidalgo, que no heróico de suas acções mostra bem o Real sangue, que por um e outro lado lhe anima as veias, e no tempo em que isto escrevo governa este Estado do Brasil, mais com amor de Pai, que com autoridade de Capitão e General. As palavras de Sua Majestade trasladadas de verbo ad verbum são estas: 171. Governador e Capitão geral do Estado do Brasil, Amigo. Eu El-Rei vos envio muito saudar. Sou informado que nessa Capitania costumam os senhores que têm escravos, Para os castigarem mais rigorosamente, prendê-los por algumas partes do corpo com argolas de ferro, para que assim fiquem mais seguros para sofrerem a crueldade do castigo, que lhes quiserem dar. E porque este procedimento é inumano e ofende a natureza e as leis, Vos ordeno, que com prudência e cautela procureis averiguar o que há nesta matéria exactamente, ‚ que achando que assim é, o façais evitar pelos meios que vos parecerem mais prudentes e eficazes. Até aqui o Sereníssimo e zelosíssimio Rei, cujas palavras deixo à ponderação de cada um, porque quero dar fim ao meu Discurso. 172. Suposto, pois, que o castigo deve ser moderado pela razão e não governado pela paixão: pergunto eu agora ao senhores do Brasil, se é castigo racionável queimar ou atanazar (que tão ímpio e cruel é este género de castigo) com lacre aos servos; cortar-lhes as orelhas ou os narizes; marcá-los nos peitos e ainda na cara; abrasar-lhes os beiços e a boca com tições ardentes? Deixo outros castigos ainda mais inumanos, que os ciumes do senhor ou da senhora fazem executar nos escravos ou nas escravas, porque são tão indignos de virem à pena, que não permite a modéstia relatá-los neste lugar. Que vos parece, digo, senhores do Brasil? Não está claro que são sevícias esta as mais bárbaras e inumarias, e que s¢ caberiam bem nos ânimos crueis e feros dos Mezêncios, dos Fálares, e dos Diomedes? E destes rigores assim exorbitantes, com que os senhores martirizam os escravos, que se segue? 0 que vemos suceder a cada passo. Porque não podendo os tristes servos sofrer as tiranias do senhor, para se livrarem do cativeiro tomam por suas mãos a morte; e fazendo-se algozes de si mesmos, acabam a vida ou às facadas por suas próprias mãos, ou enforcados nas árvores, ou afogados nas águas, ou precipitados das janelas. 173. Sobre este último género de morte vos quero referir o caso mais trágico e lamentável, que viu Espanha. Deliberou-se um escravo a livrar-se do cativeiro, e tomar vingança das tiranias, que com ele usava seu senhor. E que fez? Esperou que saisse o senhor de casa; fechou e ferrolhou por dentro as portas, para que se não pudessem abrir de fora; e tornando pela mão a dois filhos do mesmo senhor ainda meninos, subiu, e os levou consigo ao eirado da casa. Voltou finalmente o senhor, bateu à porta; e porque ninguém lhe respondia, começou, como costumava, a ameaçar ao escravo. Ouviu o escravo, (que para isso estava à espera), e chegando à janela com um dos meninos nos braços, 'disse ao senhor, que se queria a seu filho, que aí lho dava, lançando-lho aos pés feito em pedaços. E logo tomando nas mãos o segundo, perguntou ao Senhor, que lhe daria pela vida daquele filho, que já era o único. 0 triste senhor e lamentável pai, prostrando-se por terra, e brotando pelos olhos o coração em lágrimas, lhe pedia que, pois havia morto o primeiro, não matasse também o segundo; prometendo-lhe não só a liberdade, mas tudo o mais, que quisesse de sua fazenda. Mas assim como o senhor se não havia nunca movido ás vozes do servo, quando o castigava; assim o servo se não moveu agora ás vozes e gemidos do senhor. Deixa cair das mãos o menino, e após ele se precipita também a si mesmo, dizendo primeiro estas palavras: Aprende, daqui inumano e cruel senhor, aprende daqui a tratar com piedade os teus ser vos (g). Deste exemplo tão raro, e de outros, que cada dia vemos, bem podiam aprender os senhores a usar com os servos de castigos mais moderados do que costumam, e mais sofríveis à fragilidade humana, deixando todo o género de sevícia e crueldade. 174. E não devendo haver-se o senhor com sevícia e tirania no castigo dos escravos, ainda quando as culpas são graves e dignas do maior rigor: que ser é quando a culpa do servo é tão pequena e tão leve, que quase nem repreensão merece? Este género de crueldade tão abominável, se o houvesse entre nós, não era digno da censura e repreensão, que lá deu antigamente o Satírico aos que não medem o castigo pela culpa dos servos? ... Cur non Ponderibus, modulisque suis ratio utitur? ac res Ut quceque est, ita suppliciis delicta coercet (h)? Porque na balança da razão não há-de haver peso e medida para igualar a culpa ao castigo? Si quis eum servurn, patinam qui tollere jussus, Semesos pisces, tepidumque ligurierit jus, In cruce suffigat, Labeone insanior inter Sanos dicatur? Quanto hoc furiosius, atque Majus peccatum est (i)? Será bem que mandando o senhor levar da mesa o prato com os obejos, se o servo ou para satisfazer à gula ou à fome, tomar alguma parte deles, o mande por isso o mesmo senhor cravar em uma cruz? E se assim o fizer, não hão de dizer dele que é mais doido que os mesmos doídos? Julgue-o cada qual; como poder também julgar de outra sem razão e crueldade praticada já em Roma. 175. Védio Polião (1), um dos senadores romanos, porque um escravo seu lhe quebrou um vidro cristalino, o mandou lançar em um lago, onde sustentava grande número de moreias, para que fosse delas comido. E que crueldades deste género pudera eu relatar dos senhores do Brasil? Pois por pouco mais de nada chegaram alguns a lançar vivos nas fornalhas os seus escravos e a tirar-lhes por vários modos, bárbaros e inumanos, a vida. Castiguem-se, os escravos, merecendo eles o castigo; seja porém de sorte que, ou seja grave ou leve a culpa, nunca chegue o castigo a ser sevícia. 176. E para que o não chegue a ser, que é necessário? Que o Senhor não se deixe levar da primeira vista do delito e do primeiro ímpeto da cólera. Os delitos à primeira vista são, mais horrorosos, espantam mais, e acendem mais a ira. E as paixões, assim como os ventos, são em seus princípios mais violentas e arrebatadas. Por isso se lhes deve pôr tempo em meio, e não executar logo o castigo. Nem vos admire, que eu queira de homens sujeitos a paixões, mais vagar no castigo dos servos; pois ainda o mesmo Deus, em quem não pode cair a mínima sombra de cólera ou de paixão, não se acelera, mas anda passo a passo, quando se resolve a castigar. 177. Que servo tão rebelde aos mandados de seu senhor pode haver, como Adão aos preceitos de Deus? E apressou-se Deus para lhe dar o merecido castigo? Vede o que diz o texto. Diz que quando Adão ouviu que Deus vinha a desagravar-se da injúria, que contra o mesmo Deus tinha cometido, vinha andando como quem passeia e mede os passos (m). Se houve pecado, que merecesse mais acelerado castigo foi este de Adão, assim por ser cometido pelo mais sábio e entendido homem, que houve, e há -de haver, como também por ser a origem de todos os mais pecados. Logo, porque se há Deus com tanto vagar? Porque não corre e apressa o passo, para que fique logo castigada tão precipitada desobediência? A razão (a meu ver) foi porque quis o Senhor ensinar aos senhores a que não se acelerassem nos castigos dos servos. Não havendo em Deus paixões, quis obrar para nosso exemplo como se estivesse sujeito a elas; por isso não corre, passeia, pondo tempo em meio entre a culpa e o castigo. Imitai, senhores, ao supremo Senhor; e quando houverdes de castigar o servo, ide devagar, deixai que esfrie o calor da indignação, e dai tempo para sossegar a paixão e cólera. Quem dá o castigo apaixonado e colérico, dá como cego; quem dá como cego, não vê por onde dá; e por isso não repara em castigar bárbara e cruelmente. 178. Dir-me-eis o que costumam dizer muitos que se castigais os escravos no calor da cólera, é porque depois de passada a paixão, não estais capazes de lhes dar o castigo; e se houvésseis de esperar que ela sossegasse poderiam vossos escravos fazer o que quisessem sem temor algum de castigo, por não estar em vossa mão dar-lho depois que esfriou a indignação. Mas não vedes, que se esta razão fosse concludente, nenhum criminoso pagaria o seu delito? Que diríeis ao julgador, se requerendo vós perante ele de vossa justiça contra quem vos matou o vosso filho, vos respondesse que ele não fora o injuriado, e portanto que não tinha paixão alguma contra quem o havia morto, e que não podia a sangue frio condenar à morte a ninguém? Parecer-vos-ia boa esta resposta? Pois igualmente é má a vossa desculpa. 179. Quem é que manda dar o castigo aos delinquentes? A razão ou a cólera? Claro está que a razão. Pois se a razão é a que o manda dar, e a cólera tira a razão; como esperais vós pela cólera para dar o castigo? Há-de ser homem racional como a víbora, que se não se enfurece, não lança de si o veneno? 0 único motivo no castigo dos escravos deve ser só a emenda de suas vidas; hão-se de castigar, para que não tornem a cometer os mesmos erros, pelos quais são castigados: disciplina, ne erret. § V Mostra-se que 0 castigo dos escravos não deve passar de açoites e prisões moderadas 180. Até agora só dissemos o castigo, que não hão-de dar os senhores a seus servos, agora direi qual deve ser o que lhes hão-de dar, para que ponhamos o rematea este discurso. Qual pois deve ser o castigo que devem procurar saber os senhores, e eu aqui lhes quisera ensinar? Já o declarou o Espírito Santo no Eclesiástico, dizendo: Servo malevolo (ou, como se colhe do texto grego, malefico ou malitioso) tortura et compedes (n). Tortura flagellorum (comenta Hugo Cardeal) et compedes vinculorum (o). Tendes algum servo mau, malicioso e inclinado ao vício? Castigai-o, mas seja o castigo ou de açoites ou de ferros. Estes são os castigos próprios dos servos, e de que usaram sempre os senhores prudentes e discretos de todas as nações do mundo. 181. Primeiramente, obrando o servo contra o que deve, deveis usar dos açoites: Tortura fiagellorum. Não sejam porém estes vais e tantos, que cheguem a rasgá-lo e feri-lo de sorte que coma em fio o Sangue, como bàrberamente costumam alguns senhores. Mandava Deus na Lei Velha, que cometendo-se algum crime, pelo qual o delínquente, merecesse açoites, os juízes lho mandassem dar, e que a medida deles a tomariam da qualidade da culpa, contanto que os açoites não passassem de quarenta (P) E a razão de taxar este número, a deu o mesmo Deus: para que não fique o teu irmão feia e indignamente maltratado, e o vejas com teus olhos cruelmente chagado e ferido (q). 182. Foram tão exactos na observância desta Lei os Hebreus, que para que não excedessem o número dos açoites, que estava nela. taxado, mandando a mesma lei que fossem só quarenta os açoites que se haviam de dar ao culpado; eles nunca chegavam a. dar os quarenta, sempre os davam de menos. Daqui se entender a razão, porque desejando os mesmos Hebreus tão ansiosamente beber o sangue a S. Paulo, e condenando-o por vezes a açoites; confessa contudo e afirma o mesmo Apóstolo na Epístola Segunda. aos de Corinto, que nunca chegou a receber o número dos quarenta todo, senão que sempre lhos davam de menos: Quadragena, una minus, accepi (r), porque podia mais naquele povo o temor de não guardar a lei, do que o ódio com que perseguiam ao Apóstolo. E suposto que esta Lei, como cerimonial, esteja já hoje derrogada, e não obrigue aos Cristãos, contudo podem bem aprender dos Hebreus a não castigar os servos com número excessivo de açoites. 183. Mas, por que pode haver nos escravos delitos tão graves e atrozes, que mereçam muito maior número impedir aos senhores o direito e têm para que lhos hajam de dar. E para procederem como é justo, devem fazer neste caso o que fazem os médicos, quando receitam a purga ao enfermo debilitado e fraco. Se a não pode levar toda de um golpe sem Perigo de maior dano; dividindo-a em partes, mandam que se lhe dê assim dividida, de tal sorte que em um dia tome uma parte, outra em outro dia; e assim a vem o enfermo a tomar toda. Do mesmo modo se há-de haver o senhor com o escravo, quando o crime, que cometeu, merece maior número de açoites do que acabamos de dizer. Os açoites são medicina da culpa; e se os merecerem os escravos em maior número do que de ordinário se lhes devem dar, dêem-se-lhes por partes, isto é, trinta ou quarenta hoje, outros tantos daqui a dois dias, daqui a outros dois dias outros tantos; e assim dando-lhes por partes, e divididos poderão receber todo aquele número, que se o recebessem por junto em um dia, chegariam a ponto ou de desfalecer dessangrados, ou de acabar a vida. 184. Desta sorte, na opinião de Abulense, se houveram os Hebreus, quando açoitaram a S. Paulo, como também, acabamos de ver (s). Estava condenado o Apóstolo a ser açoitado com duzentos e tantos açoites; mas por que a lei defendia que a nenhum réu se dessem mais de quarenta, dividiram-lhos em cinco partes, dando-lhe por cada vez trinta e nove. Assim entende este grande Escritor aquelas palavras do mesmo S. Paulo: Quinquies quadragenas, una minus, accepi. 185. E sendo caso que o escravo assim castigado não se emende e não deixe a rebeldia, domai-o corri ferros prendendo-o ou com grilhões, ou com correntes, compedes vinculorum; porque nenhum castigo conduz mais para a doutrina e bom ensino dos servos (ainda com vantagem aos açoites) do que as prisões. Diz o Espírito Santo no Eclesiástico, que a boa doutrina é o grilhão aos pés dos maus e culpados (1); porque os ata e prende, para que não façam desatinos. Assim expõem este lugar os intérpretes; porém a mim me parece que se pode dizer também às avessas: que as prisões são uma grande doutrina, para que os maus caiam em si e emendem a vida. 0 que bem se deixa ver em Manassés; o qual desprezando a doutrina de Isaias, a quem mandou tirar a vida, para lhe não ouvir a verdade; e por isso permitindo Deus que fosse levado a Babilónia cativo e preso com correntes e grilhões (u), vendo-se angustiado entre ferros, levantou o coração a Deus, e fez penitência dos pecados passados (x). 186. Haja açoites, haja correntes e grilhões, tudo a seu tempo e com regra e moderação devida; e vereis como em breve tempo fica domada a rebeldia dos servos; porque as prisões e açoites, mais que qualquer outro género de castigos, lhes abatem o orgulho e quebram os brios. E tanto, que basta só que os veja o servo, para que se reduza e meta a caminho e venha à obediência e sujeição de seu senhor. No tempo em que os Citas andavam ocupados em guerras com seus contrárias (Y), revelaram-se os servos, e apoderaram-se de toda a Província da Cítia. Voltando os senhores, foram recebidos de seus servos em tom de batalha, na qual os mesmos senhores ficaram vencidos, e os servos vencedores; e tornando por vezes a tentar nova batalha e fortuna, sempre saiam com a pior. Até que finalmente um deles saiu com notável invento e indústria; e foi, que esta guerra servil era mal governada, por se fazer com armas de ferir, devendo ser com instrumentos de açoitar e prender. E assim, aprovando todos os mais este parecer, em vez de lanças e setas, armaram-se todos de correntes, algemas e azorragues, e sairam a campo contra os servos. Chegaram os exércitos a avistar-se; e vendo os servos nas mãos de seus senhores as prisões e mais instrumentos, com que os costumavam prender e castigar, desmaiaram logo e perderam o ânimo e o brio; e não havendo já algum deles, que se atrevesse a resistir entregaram-se à descrição e vontade dos senhores. Pois se as prisões e açoites só vistos bastam para refrear a insolência dos servos, que farão experimentados? 187. E se o escravo chegar a cometer delito, tão grave, que não sejam castigo suficiente eis açoites nem os ferros, por merecerem o último suplício: que fará neste caso o senhor? 0 que fará é eu o não sei; mas direi o que deve fazer, no caso que queira que se lhe dê a pena de morte. Deve entregá-lo à justiça, para que conhecendo da causa o castigue conforme o merecimento de suas culpas. Quando José deixou a capa na mão de sua senhora por não consentir nos amores e afagos, com que o tentava, julgando ela, que ele sendo seu escravo a desprezava, para tomar deste que imaginava crime, a vingança, acusou ao mesmo José diante de Putífar seu marido, dizendo que a solicitara, mostrando em testemunho de sua verdade (ou, para dizer melhor, de sua falsidade) a capa, que José lhe largara nas mãos. Ouvindo esta queixa Putífar, diz o texto, que se indignara gravemente (z). E Seria bastante esta ira para o precipitar à vingança e lavar logo com o sangue do escravo a mancha, que se persuadiu intentara pôr em sua honra? Se fora tão arrebatado como os senhores dos nosso tempos, bastara, e ainda muito menos. Porém como entendesse que o senhor não ‚ Senhor da vida do servo: que fez? Entregou o escravo á justiça, e mandou-o meter no cárcere público, para que ventilando-se, a causa no Tribunal de Menfi, fosse castigado com pena proporcionada ao seu delito. 0 mesmo deve fazer qualquer senhor, quando o seu escravo chega a cometer crime, que não cabe na sua alçada. Quero dizer: quando o senhor quer que o escravo seja castigado com a pena, que o seu crime merece, e ele lha não pode dar, deve remetê-lo à justiça; e ela lhe dar é se a merecer, a sentença de morte. 188. Mas contra isto se me oferece uma forte objecção, a qual nos Portugueses, que tão amantes são da honra e do pundonor, não pode deixar e fazer grande impressão e abalo. A objecção é esta: Que entregar o servo criminoso à justiça, não diz bem com a nobreza e fidalguia do senhor. Confesso, que não acabo de entender onde está aqui o pundonor e o timbre. Basta que não há de ser afronta da nobreza do senhor tirar a vida ao seu escravo bárbara e inumanamente; e há-de ser menoscabo seu entregá-lo à justiça, para que o castigue com o rigor que o crime pede e manda a lei! Basta que quer antes o senhor castigar ao escravo com a demasia e excesso, a que a sua paixão ou impiedade o estimula; quer antes parecer verdugo e o ofício de verdugo; e não acha que é isto ofensa de sua fidalguia! E se deixar o escravo à Justiça e arbítrio dos julgadores, há-de ser afronta e menoscabo e desdoiro de sua pessoa! 189- Tomara saber, em que se funda a maior razão de que, se entregardes o vosso escravo à Justiça, fiqueis menos airosos; e não fiqueis, sendo vós mesmos os algozes, que com o castigo demasiado talvez lhe tirais a vida. Mas já dei na razão, que neste caso pode ser outra; e antes que chegue a explicá-la, havemos primeiro de supor o caso. Supondo que cometeu o vosso escravo um crime, pelo qual não merece nenhum outro castigo, senão a morte, e só com a morte fica cabalmente satisfeito, e é bem e quereis que se lhe dê. Suponde depois disto que vós de nenhuma maneira lha podeis dar, sem pecado, por vos estar proibido (como acima tenho dito) pelo direito humano e divino, dardes a morte ao vosso servo. Isto suposto: que fareis neste caso? Se dais a morte ao vosso escravo, ou lhe deis castigo tal de que se siga a morte, pecais gravemente contra Deus; se o entregais à Justiça para que o castigue, dizeis que ficais menos lustroso. E para que se vos não siga algum desar na fidalguia, escolheis antes castigar o escravo com tal excesso, que se lhe siga a morte, do que entregá-lo à justiça; antes escolheis matá-lo pecando, do que entregá-lo à justiça sem pecado. E disto qual é a razão, que é a que agora buscamos? 190. A razão não pode ser outra, senão que quereis antes a ofensa de Deus, contanto que não se vos siga a mínima nódoa (como dizeis) no crédito, do que guardar a lei do mesmo Deus e seus preceitos; antes quereis ficar honrado e havido por homem timbroso, dando a morte ao vosso escravo, do que por homem bom Cristão, entre, gando-o à Justiça. E esta (torno a dizer) é a razão e nenhuma outra. Vede agora em que pondes a vossa fidalguia: em serdes maus Cristãos e em ofenderdes a Deus. E haverá quem diga que a e o ofenda? E se o disser algum, não direis todos que erra, e está muito longe de toda a verdade e razão? Pois como não hei-de dizer eu que errais, e ides muito longe da verdade, quando dizeis que quereis antes a ofensa de Deus, do que faltar ao timbre da fidalguia; como se pudesse haver fidalguia contra a lei de Deus. 191. Em resolução, senhores: quem diz que entregar o senhor à Justiça o seu escrevo ‚ contra os timbres e pundonores da nobreza, erra e diz uma coisa contra toda a razão, porque nenhuma razão e nenhuma lei condena ao senhor, que entregar o seu escravo à justiça, para que o castigue, no caso em que o mesmo senhor lhe não pode dar o castigo, que o delito do escravo merece. De mais de que, sendo toda a fidalguia e todos os mais bens de sursum, como diz Santiago, descendens a Patre luminum (a), isto é, dados por Deus e vindos do Céu; como pode ser que entregando o senhor à Justiça o escravo para não ofender a {Deus, se ofenda- a fidalguia? E assim, deveis ter entendido que o maior timbre da fidalguia deve será guardar a Lei de Deus e fazer o que mandam os seus preceitos. 192. Direis: pois, Padre, neste mesmo caso não haver outro meio, com que se remedeiem as coisas? 0 servo merece a morte; eu não lha posso dar, nem o quero entregar à Justiça, para que lha dê; pois de força hei-de ceder do meu timbre e entregar-lho? Não haver outro caminho, por onde fique castigado o servo, e eu não ceda do meu pundonor? Digo que sim há, e é este: se o castigardes com prisões continuamente por largo tempo, e com açoites interpolados, até que julgueis prudentemente que está satisfeito o delito. Ou também degredando-o vendido para outra parte; mas atendendo sempre às condições acima ditas, se for casado. E desta sorte, sem ofender a lei de Deus, podereis emendar o vosso escravo, dando-lhe o castigo moderado, e só a fim de que se corrija e não erre: disciplina, ne erret (1). DISCURSO IV De quarta obrigação dos senhores para com os servos 193. A quarta e última obrigação dos senhores é dar o trabalho aos servos, para que com o ócio se não façam insolentes: opus, ne insolescat. Há senhores, que nisto pecam por defeito; porém os mais pecam por excesso Pecam por defeito os que os deixam viver à larga sem ocupação nem, trabalho. Pecam por excesso os que os oprimem com trabalhos superiores a suas forças, ou por excessivos ou por demasiadamente continuados. E porque ser o trabalho demasiadamente pouco ou demasiadamente muito, tudo é a meu e danoso para o servo; por isso veremos primeiro como os senhores não devem deixar estar ociosos os escravos, mas ocupá-los; e depois trataremos da moderação, que devem guardar no trabalho que lhes dão. § I Que os senhores devem ocupar aos servos no trabalho, Para que mereçam o sustento e não se façam insolentes contra os mesmos senhores 194. No primeiro Discurso mostrei a obrigação precisa, que têm os senhores de dar o sustento ao servo, para que não desfaleça: panis, ne sucumbat. Porém assim como é justo que o senhor não falte a seu escravo com o pão; assim também é justíssimo que o mesmo escravo não falte a seu senhor com o serviço, e mereça o pão que come. Mas para que o possa merecer, deve o senhor aplicá-lo ao serviço. Diz Aristóteles, (como já vimos atrás) que o sustento, que o senhor dá ao escravo, é como o jornal com que lhe paga (b). Pois se a paga. se não deve ao jornaleiro, senão depois do trabalho, quem não vê que o mesmo se há-de dizer do sustento devido ao servo? 195. Esta, a meu ver, é a razão, porque tratando o mesmo Aristóteles das obrigações dos senhores para com os servos, deu o primeiro lugar ao trabalho, e o segundo ao sustento, tria cum sint, opus, cibus, et castigatio (c). Porque suposto que quem trabalhar, há-de comer para poder resistir ao trabalho, também quem comer há-de trabalhar para merecer o que come. Isto, que ensinou Aristóteles na especulação, seguiu na praxe aquela Mulher forte, cujas virtudes na opinião de Salomão não tem preço (d). 196. Desta refere o mesmo Salomão que se levantava antes de amanhecer (c). E a que fim era tanto madrugar? Para repartir aos domésticos a presa e o sustento às escravas (1). Mas que presa era esta, que lhes repartia? Era a ração, que lhes dava, como se colhe da versão dos Setenta (9). De maneira que esta Mulher forte (diz A Lápide) prevenindo as madrugadas da aurora, repartia aos escravos e às escravas a ração e as tarefas (h). Agora o meu reparo. 197. 0 sustento que esta Mulher forte dava aos escravos e escravas, porque se há-de chamar presa, praedam? Se eles elas o furtassem, como muitos e muitas costumam, bem era que se chamasse presa; porém se ela lho dava, dedit, porque se há-de chamar presa, praedam? A razão se há-de tirar do texto hebreu, onde a palavra, tareph, que corresponde ao praedam da Vulgara, e no escas dos Setenta, significa propriamente o sustento, que buscam as feras com sua indústria e trabalho (i). E como sustento, que esta Mulher forte dava aos escravos e escravas, fosse ganhado com o suor de seu rosto, e fosse paga do seu trabalho (1); por isso com grande propriedade se chama este sustento presa, deditque praedarn. Notai agora a grande providência desta Mulher, a qual entendendo que os servos e às servas não podiam trabalhar sem comer, e não deviam comer sem trabalhar, no mesmo tempo repartia entre eles a ração e as tarefas: Deditque escas dornui, et opera ancillis, para que houvesse mútua correspondência entre o sustento e o trabalho, de sorte que tendo os servos o sustento pudessem trabalhar, e tendo o trabalho pudessem merecer o sustento. 198. Devendo pois os escravos merecer o que comem, justo é que trabalhem; e sendo justo que eles trabalhem, justo ‚também que o senhor os ocupe e os não deixe andar ociosos; principalmente no tempo em que isto escrevo, pois tanto nos aperta a carestia. Que razão pode haver, para que os senhores do Brasil sustentem das portas a dentro tão grande número de ociosos e de ociosas? Porque lhes não hão-de meter na mão uma enxada, para que plantem mantimentos, e tenham com quase sustentem os mesmos senhores a si e a quem lhes trabalha? Basta que as senhoras do Brasil hão-de estar padecendo há tantos anos os rigores da fome, sustentando no estrado as escravas a fazer rendas, que lhes não rendem mais que ociosidades; e não hão-de consentir quê os senhores as mandem para as lavouras a grangear o sustento? Não era mui justo que a estas senhoras se lhes atalhasse o caminho a todo o mantimento, e que perecessem à fome, por quererem viver à dependência do que outros plantam e trabalham, podendo elas valer-se de suas escravas para se sustentarem? Se os escravos e escravas não hão-de servir ao menos para ajudar a seus senhores a sustentar a vida, não sei para que se compram com tão grande gasto! Só para sustentar o fausto e vaidade, e para que haja muitos a quem mandar? E parece-vos esta vaidade, digna de ser comprada não só com dinheiro, mas ainda com as muitas pensões e pesares que traz consigo o ter muitos servos? Isto é (diz o Petrarca) muitas dissensões, muitas contendas e muitas guerras domésticas (m). 199. Mas não é esta a maior razão, porque devem os senhores ocupar aos servos e não, lhes, permitir que andem ociosos e vagabundos. A razão mais eficaz e urgente é a que dizíamos. Para que se não façam insolentes, e para que não busquem traças e modos com que se livrem da sujeição de seu senhor, fazendo-se rebeldes e indómitos: opus, ne insolescat. 200. Enquanto o senhor traz o servo ocupado, não cuida esse em outra coisa (diz o Espírito Santo) mais que no descanso (n). Porém se lhe larga a mão, logo aspira à liberdade e busca traças para se livrar da sujeição(0). Assim interpreta este texto Palácio, doutíssimo Expositor das Escrituras: Se cansardes o servo com o trabalho, desejará algum descanso, mas não tratar de deixar a sujeição (P). Porém se lhes deres larga para que ande ocioso e folgado, logo há-de maquinar traças para sair do cativeiro (q). 201. 0 trabalho pois é o melhor remédio para trazer os servos sujeitos e bem domados. Só trabalhando eles, pode viver descansado o senhor. Assim o dá a entender a Versão dos que lêem do Grego. Exercitai o vosso servo no trabalho e achareis descanso (r). 0 trabalho do servo (diz A Lápide) é descanso do senhor; porque enquanto o servo fatigado do serviço anela e aspira a algum repouso, não cuida, nem trata de se rebelar contra seu senhor (5). 202. E esta é a razão, porque é tão necessário que o senhor ocupe e faça trabalhar os escravos: para os trazer sujeitos, sossegados e mansos. Já disse que os servos não devem ser tratados como jumentos; contudo não se pode negar que os escravos, regularmente falando, participam de uma má qualidade destes animais. 0 jumento, quando está ocioso e sem trabalhar, faz-se manhoso e rebelão; e se depois o querem sujeitar à carga, tira coices e não quer admiti-la. 0 mesmo sucede nos servos, se andam mui folgados; fazem-se contumazes e rebeldes, e querendo o senhor apertar com eles, não fazem caso do que se lhes manda. E para que não cheguem a estes pontos, qual é o remédio? 203. 0 Eclesiástico no-lo dirá . Pois igualmente o dá para amansares jumentos e os escravos. 0 jugo e as rédeas amansam a ferocidade dos brutos; e o serviço contínuo a contumácia dos servos (t). Toma o Espírito Santo a metáfora dos animais indómitos, como são os cavalos e os toiros; e diz que assim como o toiro, por bravo e feroz que seja, posto no jugo se amansa e aprende a servir a seu dono; e assim como o cavalo, ainda que indómito, se deixa reger e governar pelo freio à vontade do cavaleiro; assim o servo exercitado do senhor com o trabalho contínuo aprende a se lhe sujeitar e obedecer. Em próprios termos o disse de Santo Caro (u). Logo os senhores, que quiserem ter os servos sujeitos, obedientes e humildes, exercitem-nos continuamente no trabalho, e não os deixem viver ociosos e _dêmasiadamente folgados; porque só a ocupação e o trabalho faz que não sejam insolentes, opus, ne insolescat. § II Que devem os senhores dar o trabalho aos servos, para que não se façam insolentes contra Deus 204. Muito menos devem consentir os senhores ócio aos escravos, para que se não façam insolentes contra Deus, desmandando-se em vícios e pecados. É o ócio (diz S. Bernardo) mãe de todas as leviandades e ainda das piores, que são os vícios, e madrasta de todas as virtudes (x). E se isto é o ócio geralmente em todos, muito mais o é nos escravos; porque sendo mau para todos, para os escravos é péssimo, por ser o único mestre de suas maldades. Daqui vem, que inculcando o Espírito Santo ao senhor que ocupe e não deixe viver o servo ocioso (Y); dá por razão que a ociosidade tem ensinado aos escravos muita malícia, Multam enim malitiam docuit ociositas (z). Servorum, comenta Lira. De sorte que o ócio é a escola, onde os escravos aprendem a ser viciosos e ofender a Deus. 205. Bem sei que não só os cativos e os Pretos, senão também os livres; e os Brancos aprendem a pecar debaixo do magistério do ócio, acho contudo entre uns e outros grande diversidade. E qual é? É que os Brancos para serem bons Mestres da arte de pecar, necessitam de lições mui repetidas, e por isso, é necessário que frequentem por largo tempo as classes do ócio; e os Pretos não necessitam de muito tempo. Com quatro dias de lição ficam Mestres em artes e Doutores da malícia. Mas qual é a razão desta diversidade? A razão é a mesma, porque na mesma classe debaixo da disciplina do mesmo Mestre, e ainda com igual aplicação, se fazem uns logo Estudantes da primeira suposição, e outros só depois de muitos anos. Isto é efeito da maior ou menor habilidade, que cada um tem. 0 mais hábil logo aprende, o menos hábil aprende mais devagar. E como os Pretos são sem comparação mais hábeis para todo o género de maldadess, que os Brancos, por isso, eles com menos tempo de estudo saem grandes licenciados do vício na classe do ócio. 206. Esta grande habilidade para os vícios, com que os Pretos levam singular vantagem aos Brancos, o mesmo Deus a declarou por Amós, comparando os filhos de Israel com os Etíopes. Sois porventura na minha estimação outra coisa mais que uns Etíopes (a)? Pois em que se pareciam os filhos de Israel com os Etíopes? Na corrupção dos costumes, na má vida, e nos vícios, diz o Padre Gaspar Sanchez, citando em abono desta sua exposição a S. João Crisóstomo S. Cirilo e outros (b). Pergunto agora. Faltavam nações, brancas e viciosas, com que pudesse comparar Deus os filhos de Israel? Porque não diz que se pareciam com os povos de Sodoma e Gomorra, como havia dito por Jeremias (c), ou com os filhos dos Amorreus e Ceteus, como lhes; lançou em rosto por Ezequiel (d), senão os filhos de Etiópia: Numquid non ut filii Aethiopum vos estis mihi, filii Israel? 207. A razão se colhe de S. Jerónimo, o qual diz que nas Escrituras se chamam Etíopes não, quaisquer pecadores, senão os que são tintos com a cor preta de todos os vícios (c). E como não há nação mais inclinada e entregue, aos vícios, que, a dos Pretos, por isso a eles compara Deus os filhos de Israel, para que entendessem que não havia género de vícios, em que não andassem engolfados: Nun, quid non ut filii Aethiopum vos estis mihi, f¡lii Israel? Dicuntur Aethiopes, qui penitus in vitia dernersi sunt. Sendo pois tão grande a inclinação e habilidade dos Pretos para tudo o que é vício: que maravilha ‚, que na escola do ócio, onde se aprende o mesmo vício, saiam eles em breve tempo Mestres cabais e perfeitos? Logo consentir o senhor ócio aos escravos, é querê-los mestres em todo o gênero de vícios e singularmente no vício da desonestidade. 208. Sendo os Africanos tão inclinados por natureza ao vício da sensualidade, que chegou a escrever Salviano que do mesmo modo era impossível achar-se um Africano que não fosse desonesto, como é imóvel que um Africano não seja Africano (f), não faz dúvida que os Etíopes excedam na lascívia a todas as mais nações da África, e se igualam aos brutos mais libidinosos. A razão desta grande propensão dos Pretos impudicícia não só lhes vem do clima quente em que nascem, mas muito mais do pouco temor de Deus e pejo dos homens, que neles há. 209. Assim o lamentava aquele admirável varão, oráculo de seus tempos, o Padre Frei Luís de Granada; vendo a liberdade com que viviam em Espanha os escravos vindos de Guiné. Como quer que os homens (dizia este grande Servo de Deus) não se acautelem deste vício impuro, senão ou com o temor de Deus ou da ignomínia e infâmia; e como na maior parte destes escravos não haja freio algum, porque ordiriàriamente lhes falta o temor de Deus e o pejo dos homens, e não tratam da honra e reputação própria; por isso desenfreadamente se precipitam como brutos neste vício (g). E se à falta destes freios se lhes ajuntam os estímulos e (digam assim) a espora do ócio: haver bruto tão precipitado, que assim se despenhe? 210. Que o ócio seja estímulo e incentivo singularmente de toda a desonestidade, o confessou um dos maiores mestres deste abominável vício, qual foi Ovídio (quando, não sei se por arrependido ou por perseguido de Auguto César, se fez médico deste achaque) pois chegou a dizer, que tirado o ócio do mundo, ficavam totalmente ociosas as armas de Cupido. Otia si tollas, periere CuPidinis arcus (h) E o mesmo poeta buscando a razão dos adultérios, que havia cometido Egisto: Quaeritur, Aegysthus quare sit factus adulter (i) não achou outra, senão o deixar-se estar odioso: In promptu causa est: desidiosus erat. 211. E para atalhar, do modo possível, aos servos a grande dissolução, com que andam engolfados no vício da desonestidade, é necessário tirar lhes todo o ócio e trazê-los continuamente ocupados, porque assim como o ócio os incita e estimula à impudicícia, para a qual são tão propensos, assim a ocupação e o trabalho os diverte, para que não consintam em suas tentações. De uma e outra coisa temos admirável prova em um Rei e em um escravo. 0 Rei é David, o escravo é José. Viu David a Bersabé. E tanto que a viu, ut vidi, ut perii (1), pode ele também dizer, porque enlaçado de sua formosura consentiu no adultério. Pelo contrário José. Provocado por vezes ao mal por sua mesma senhora, sempre lhe resistiu até largar em suas mãos a capa, por não largar a pureza. Quem não se admira e pasma da diversidade destes sucessos? Um única vista basta para derrubar por terra a um varão, que sendo mancebo tinha derrubado gigantes, e os afagos de uma senhora não bastam para vencer ao escravo mancebo? Qual pode ser a razão? Ponderemos os textos, que neles a acharemos. 212. Quando, David se deixou levar da afeição de Bersabé, diz a Sagrada Escritura que estava ocioso, passeando pelas galerias do seu Palácio (m); sendo que em tempo (como adverte a mesma Escritura) em que os Reis não costumam estar ociosos, se não sair à campanha (n). E quando José foi solicitado de sua senhora, diz o texto que andava ocupado no serviço de seu senhor (o p). Era José mordomo da casa de seu senhor, e esta ocupação o trazia em uni continuo exercício e trabalhosa lida. Por isso caindo David, resistiu José. De maneira que o ócio fez a um valoroso Rei, escravo vil e desprezado da incontinência; e o trabalho, a um humilde servo fez valeroso Rei na pureza. 213. Sendo pois o ócio tão pernicioso à castidade, e o trabalho pelo contrário tão inimigo da impureza; vede se convém que os senhores tragam continuamente ocupados seus escravos, a quem tão facilmente se pega esta peste, pela natural propensão que têm à incontinência. Lástima é na verdade, ver como o fogo da lascívia anda ateado nos escravos do Brasil! Suas labaredas sobem mais ainda do que as da fornalha de Babilónia, sendo que, pela medida que tornou o mesmo Deus, chegavam a quarenta e nove côvados (q). E quem há-de dar água, para que ao menos se não aumente tanto este incêndio, senão os senhores, trazendo bem sopeados com o trabalho os escravos? Porém se em lugar de os ocupar, os deixarem viver folgados no ócio; não ser isto fomentar com estopa, pez e alcatrão estas chamas impuras, como faziam lá em Babilónia os ministros de Nabuco (r), para que sempre mais cresçam e se aumentem? 214. E que conta tão estreita há-de pedir Deus aos senhores de tantas impurezas, que não procuraram atalhar aos escravos, podendo-o fazer ainda com seu proveito! Se eu dissera que para impedir as ofensas de Deus aos escravos, se desocupassem de todo o serviço e trabalho, é podiam os senhores desculpar-se, dizendo que isto em querê-los ver destituídos do remédio, para que Deus lhes deu os servos. Porém como eu digo que se ocupem e divirtam de todo o ócio, donde se não pode seguir se não proveito para os senhores, não vejo razão, que possam alegar em sua defensa. Por isso tomo a inculcar que se não deixem viver ociosos, e que se mandem trabalhar; pois só desta sorte se pode evitar que se façam insolentes contra Deus opus, ne insolescat. § III Que os senhores devem desocupar e não mandar trabalhar os servos nos domingos e dias santos. 215. Ainda que seja mui conveniente que o senhores exercitem continuamente no trabalho aos servos, e disto me não desdiga, nem haja de desdizez; contudo não há-de tomar isto à carga cerrada e sem limitação alguma senão com a moderação que pode a razão natural; e é, que o trabalho não seja tão contínuo e sem interpolação, que exceda os limites do justo. E sem dúvida os excederia o senhor, que mandasse trabalhar os servos nos tempos que não são de trabalho, quais são os domingos e dias santos. 216. Este excesso é mui digno de repreensão, e dele se devem guardar os senhores, que querem satisfazer à sua obrigação. Porque se é mau permitir que esteja ocioso o servo quando é tempo de trabalho, também o é ocupá-lo no trabalho no tempo em que não devia trabalhar. Antes, regularmente falando, muito maior mal é ex genere suo mandar trabalhar o servo no tempo que a natureza e o Autor da mesma natureza lhe dá para o descanso, que desocupá-lo, quando se podia mandar que trabalhasse. A razão disto é porque o senhor, que falta em dar o trabalho ao servo, quando chegue a cometer pecado, será contra a caridade; porém faltando-lhe com o descanso e mandando-o trabalhar nos dias Santos, peca contra a justiça e religião. Vejamos agora a obrigação, que têm os senhores, de desocupar do seu serviço aos escravos nos domingos e mais dias santos. 217. Parece que grande parte dos senhores do Brasil têm para si que o preceito de guardar os domingos e ar, festas é só para os livres e forros, e não para os sujeitos e cativos; pois vemos que muitos, sem fazerem distinção de dias a dias, em todos igualmente os ocupam e mandam trabalhar. Mas não é isto um engano manifesto? Quem o duvida? Porque Deus sem fazer diferença de senhores a servos, a todos manda que se desocupem nestes dias das obras servis e mecânicas. Assim o declarou o mesmo Deus, com palavras mui expressas no Éxodo, quando intimou aos Hebreus o preceito de guardar o sábado: 0 sétimo dia é sábado dedicado ao Senhor, nele não te ocuparás em obra alguma (s). Mas quem é que se não há-de ocupar neste dia? Tu (diz Deus ao Pai de famílias), o teu filho, e a tua filha (1). Pois se o Pai de famílias não deve trabalhar no dia santo, nem seus filhos; poderá ao menos servir-se do escravo ou da escrava, ocupando-se no trabalho? Não, diz Deus; porque também eles não hão-de trabalhar neste dia (u). Está logo visto, que assim como nos dias santos, não devem os senhores trabalhar, nem mandar trabalhar a seus filhos e filhas, assim também não devem mandar trabalhar os escravos e as escravas. E se os ocupam no trabalho ainda que se desocupem a si, é certíssimo que não guardam as festas e quebram o terceiro mandamento da Lei de Deus. 218. A razão é manifesta; porque se o servo obrigado do Senhor trabalha nestes dias, faz o que deve, obedecendo-lhe; e por isso, se não observa o preceito, esta inobservância é puramente material. Quem verdadeiramente não observa nem guarda o preceito, é o mesmo senhor, que ocupa ao servo. Não é princípio e regra de Direito, tirada da razão natural, que quem manda fazer por outrem alguma coisa é o mesmo que se ia fizesse por si (x)? Logo se o senhor nos domingos e dias santos manda trabalhar os servos: quem duvida que é o mesmo que se trabalhasse ele por si? Pois se trabalhando ele por si, necessàriamente quebra o preceito de guardar às festas, também o quebra fazendo trabalhar os servos. 219. Assim o dão a entender as mesmas palavras do preceito: Non facies ornne opus in co, et filius tuus et filia tua, servus tuus, et ancilla tua. Reparai naquele, non facies, não farás tu, que é segunda pessoa do singular. Se Deus falara só como pai de famílias e senhor da casa, e a ele só obrigasse à observâcia das festas, bem estava que dissesse: Não farás tu: Non facies. Porém se falava também com os filhos e com as filhas, com os escravos e com as escravas, fillius tuus et tua, servus tuus et ancilla tua, obrigando-os igualmente a guardar os sábados; parece que havia de dizer no plural: non facietis, não fareis vós. Pois porque razão usa Deus do singular, tu, em lugar de plural, vós? A razão é, porque quis que entendesse o senhor da casa, que a obrigação que tinham os servos de guardar as festas, ele é o que a tinha; e todo o trabalho que fizessem nos mesmos dias, ele é que o fazia; e o pecado que cometessem trabalhando por seu mandado ele é que o cometia: Non facies. Fica logo o senhor de casa igualmente obrigado nos domingos e dias santos, a desocupar-se do serviço a si, aos filhos e aos escravos: Tu, et filius tuus, et filia tua, servus tuus, et ancil la tua. 220. Disse igualmente, e não disse muito; porque, se apurarmos bem este ponto, acharemos que muito maior razão há para que o Senhor não ocupe no trabalho os servos nestes dias, do que há para se desocupar a si. Parece isto totalmente fora de toda a razão; mas ainda que assim pareça não é senão muito conforme a ela. E porquê? Porque os mesmos motivos, que teve Deus para mandar que assim os senhores como os escravos guardassem as festas, e não trabalhassem nestes dias militam com muito maior força nos escravos que nos senhores. E como pode isto ser? Antes que vos dê a resposta, me haveis de responder primeiro a uma dúvida. 221. Pergunto: que motivos teria Deus para instituir os dias santos, e mandar que neles não houve obra servil? Como Deus em tudo o que obra ad extra tem sempre os olhos em duas coisas, isto é, na sua glória e no bem dos homens; na sua glória, como em fim primário e principal; e no bem dos homens, como em fim secundário e acessório; nestas mesmas duas coisas os pôs, quando quis que houvesse dias, em que os homens se desembaraçassem das ocupações mecânicas. Pôs os olhos na sua glória, para que desocupados os homens dos mais embaraços, se ocupassem rodos em o honrar e servir, e lhe dar o culto devido a tão supremo Deus e Senhor nosso. Pôs os olhos no bem dos homens; porque como o trabalho contínuo quebra as forças e natureza, quis que a refizessem nestes dias com o descanso. E assim digo que ambos estes motivos, que Deus teve para determinar e decretar dias santos, têm maior eficácia para que devam os senhores executar mais nos servos do que em si leste preceito. Tudo mostrarei com evidência. 222. Teve Deus primeiramente por fim e motivo para proibir a todos, assim livres como servos, o trabalho nestes dias, a sua honra, culto e veneração; porque devendo os homens honrar e reverenciar a Deus, e não podendo eles andar continuamente em tão justa e santa ocupação, por causa dos embaraços e lida, que traz consigo o comércio da vida humana; foi mui conveniente que Deus assinalasse e determinasse tempo particular, em que desimpedidos das mais ocupações o venerássemos com a adoração e culto devido a tão Divina Majestade. Por isso na Lei Escrita mandou que se santificassem os sábados, e na Lei da Graça os domingos e mais dias santos. 223. E quem não vê que e te motivo ‚ muito mais urgente nos cativos que nos livres, nos escravos que nos senhores? Se o senhor quiser em todos ou em qualquer dia da semana entregarse totalmente ao culto de Deus, ouvindo uma e muitas Missas, visitando as Igrejas, ou ocupando-se no serviço do mesmo Deus de outro qualquer modo: quem lho há de impedir? Ninguém; porque não há quem tenha sobre ele domínio. Porém se o escravo quiser fazer o mesmo; não lhe há de ir à mão seu senhor, obrigando-o a que o sirva e deixe de assistir nas Igrejas? Melhor o há-de fazer, do que eu aqui o digo; pois assim lho permite o senhorio, que nele tem. Logo, se Deus não mandara que se guardassem ias festas: quando haviam os escravos de ter tempo para se encomendarem a Deus e o venerarem com o culto que deve a seu Criador a criatura? Bem se deixa ver logo, que o principal motivo, que Deus teve na instituição das festas, tem muito maior força nos cativos que nos livres, nos escravos que nos senhores. 224. Em segundo lugar, teve Deus por motivo, para mandar que se guardassem as festas, o descanso dos corpos fatigados com o trabalho. Este motivo igualmente com o primeiro tem também nos servos mais força do que nos senhores. Porque os senhores ou não trabalham, e assim não necessitam de descanso; ou se trabalham é por sua livre vontade, e assim em sua mão está o descansar quando quiserem; e por isso não em necessário que Deus lhes determinasse dias particulares para o seu descanso. Porém para os miseráveis escravos, que andam em uma roda viva de trabalho, fatigando e cansando o corpo, gemendo e anelando no serviço dos senhores, foi mui necessário e preciso que Deus instituísse festas, para que tivessem dia certo, em que desobrigados da pensão do trabalho descansassem o corpo enfraquecido com o serviço dos dias de fazer. 225. Esta maior necessidade das festas nos escravos que nos senhores, os mesmos gentios a conheceram. E daqui vem, que Aristóteles nas leis, que deu aos senhores para o bom governo dos servos, falando das festas da gentilidade em que vivia, disse que estas foram instituídas mais para os cativos que para os livres (Y). 0 Padre Silvestre Mauro da Companhia, que na exposição do Príncipe dos Filósofos foi o Príncipe dos Expositores, comentando palavras, diz assim: As festas, em que param as obras e cessa o trabalho, são mais devidas aos servos que aos livres; porque a maior parte delas, mais por causa daqueles, do que destes, foram instituídas; e a razão é, porque como andam os servos mais ocupados no trabalho, necessitam mais de interpolação e de descanso (z). Vede pois se dizia eu verdade, quando disse que os mesmos motivos, pelos quais determinou Deus que se guardassem os dias santos, obrigam mais a que os Senhores nestes dias desocupem do trabalho aos servos, do que a si mesmos. 226. De tudo o que remos dito, quisera eu que colhessem os senhores do Brasil a grande sem-razão, que fazem a seus escravos, quando nos domingos e dias santos os mandam trabalhar. E se, quando fossem iguais nos senhores e nos servos os motivos para não trabalharem nestes dias, ainda fora contra a razão e contra o preceito mandá-los trabalhar então; com muito mais razão é maior sem-razão, e conseguintemente maior pecado, mandar que trabalhem nos tais dias, sendo mais forçosos os motivos e as razões, pelas quais devem os servos não trabalhar então. Donde venho a concluir por último remate que não menos deve o senhor ocupar os servos nos dias de trabalho (como mostrei nos parágrafos antecedentes) do que os deve desocupa-los nestes dias, para que possam descansar e dar-se a Deus; e deve ocupá-los naqueles, para que nem contra seu senhor, nem contra o mesmo Deus se façam insolentes, opus, ne insolescat. § IV Em que se mostra que são de nenhum vigor as razões, que alegam os senhores, pelas quais ocupam os servos nos domingos e dias santos 227. Duas razões veio, que podem alegar os senhores, pelas quais aplicam os servos ao trabalho não só nos dias de serviço, mas também nos dias santos. A primeira razão é a necessidade, a qual como não tem lei, não há dúvida que desculpa da observância, dos preceitos positivos. Bem sei que não é pecado trabalhar nos domingos e mais festas, quando a necessidade assim o pede, mas o ponto está em que esta necessidade, que alegam em sua defensa os senhores, seja verdadeiramente necessidade com as qualidades que se requerem, para desobrigar da observância das festas. A necessidade (como dizem os Teólogos com o Padre Suárez) para livrar do pecado, deve ser tal, que nem se pudesse prevenir e atalhar antes, nem suprir e recuperar depois (a). Ponhamos por exemplo que se areou o fogo nos canaviais, e que fazendo-se-lhe toda a diligência, não foi possível atalhá-lo. Neste caso, ninguém duvida que podeis sem escrúpulo algum moer e aproveitar a vossa cana, e ocupar os vossos escravos nas moendas, ainda que seja em Domingo ou dia santo; porque já se vê que nem antes pudestes impedir o fogo para que a não queimasse, e nem depois podereis recuperar a perda, se a não moerdes logo. 228, Porém podendo os senhores prevenir nos dia de serviço as coisas, para que as não haja de fazer nos dias santos deve prevenir e as guardar para o domingo ou qualquer outro dia festivo, claro está que esta necessidade o não livra de quebrar o preceito e de cometer pecado. Quanto mais que destas necessidades verdadeiramente graves poderão acontecer uma, duas ou três vezes no ano. Logo como podem deixar de pecar mortalmente os senhores, que em todo o tempo da safra moem em redondo e mandam trabalhar os escravos, sem diferença alguma de dias de fazer a dias santos? É possível que um Senhor rico e abastado de bens tenha necessidade grave de ocupar todo o ano os servos sem dar um dia santo! Entrem por si os senhores do Brasil, e vejam bem, que a necessidade, se não for mui justificada, lhes não há -de valer para os desculpar com Deus, quando no dia do juízo lhes pedir conta de não guardarem ou deixarem guardar a seus escravos os domingos e as festas! 229- A segunda razão, que por si podem alegar os senhores, que mandam trabalhar os escravos nos dias proibidos, se colhe do mesmo que já atrás dissemos. Dissemos que os escravos, quando se acham folgados e ociosos, se desmandam em vícios; o que bem se experimenta. em todo o ano. Pois nos domingos e dias santos quando não trabalham: Ou se entregam ao vinho ou a danças e bailes desonestos ou fazem pendências, em que ou ferem ou saem feridos, ou cometem outros semelhantes géneros de maldades.E para evitar estas e outras desordens, dirão que os mandam trabalhar, e que é bem que trabalhem nestes dias. 230. Porém esta razão certamente não convence, nem lhes dá faculdade para os ocuparem no trabalho, quando Deus manda que se não trabalhe; porque quando Deus mandou que se guardassem as festas, proibindo nelas o exercício das obras manuais e mecânicas, bem previu que não só os Pretos e cativos, mas também os livres e Brancos se poderiam entregar todos aos vícios, e usar mal do tempo e do descanso. Quantos artífices há muito brancos e muito livres, que enquanto dura a semana e andam ocupados nas obras de seu ofício, não cometem um só pecado mortal, e tanto que chega o domingo ou qualquer outro dia festivo, o profanam com muitas ofensas de Deus? Não é isto assim? Assim é. E contudo não haver quem diga que para evitar essas culpas era bem que as Justiças Eclesiásticas os obrigassem a trabalhar nas festas. Logo, porque há-de ser justo, para impedir os pecados dos Pretos, mandá-los trabalhar nos dias santos? Se Deus em uns e outros previu todos esses inconvenientes; e não obstante o vê-los mandou que todos se desocupassem das obras servis nos domingos e mais festas, não é uma sem, razão querer o senhor que trabalhem os servos, para evitar esses mesmos inconvenientes, que o Legislador previu e não quis impedir? 231. Além de que esta razão só poderia ter algum lugar, quando não houve outro meio para divertir os escravos das ofensas, que cometem nos dias santos contra Deus. Mas Se o senhor os pode afastar e desviar dos pecados, mandando-os à Missa, à Doutrina, à Pregação, e a outros exercícios de piedade e religião, porque os há-de mandar trabalhar? Porque há-de fazer mal com capa de fazer bem, e querendo evitar uns pecados, cair em outros? Se pode facilmente, evitar os alheios e mais os seus: Porque há-de fazer com que não evite os seus e talvez nem os alheios? Enfim, não há entender alguns senhores, que no mesmo tempo em que se mostram zelosos da honra de Deus, e querem impedir suas ofensas, nesse mesmo tempo ofendem; e procurando que não seja ofendido não reparam em ofendê-lo. 232. Dirão os senhores que não podem acabar com os escravos a que vão à Missa, à Doutrina, e à Pregação, porque ainda que os mandam, eles se divertem por outra parte e não vão. Mas pergunto: podeis acabar vós com eles que trabalhem não só nos dias dedicados ao serviço, mas também nos dedicados a Deus? Pois porque não acabareis com eles que vão antes à Igreja a ouvir à Missa, à Pregação e à Doutrina? Não há castigos, não há correntes, não há grilhões em vossa. casa? Pois para quando os guardais? Se assim como faltam à obrigação de Cristãos faltassem à obrigação do vosso serviço, ou do vosso respeito, logo vos não faltariam modos para os reduzir à devida sujeição. Porém porque faltando ás obrigações de Cristãos não vos ofendem a vós, senão a Deus; por isso não e vos dá de apertar com eles para que dêem o culto a Deus, ao menos naqueles dias, em que manda o mesmo Senhor que lho demos assim, Brancos e livres, como Pretos e cativos. 233. E praza a Deus não haja senhor tão pouco Cristão, querendo o escravo buscar a Igreja nos domingos e dias santos, por isso mesmo o mande trabalhar! Se houvesse um senhor destes, chamar-lhe-íamos Cristão? De nenhuma maneira; porque s¢ merece que lhe chamem Faraó quem é Faraó na realidade. Mandava Deus aos Hebreus, no tempo em que viviam cativos no Egito, que fossem ao deserto e lá lhe oferecessem sacrifício. E pedindo eles licença a Faraó seu senhor, para fazerem o que Deus lhes mandava: que lhes diria este Tirano? Ite ad onera vestra, andai, ide trabalhar (b). Que estes desejos são de ociosos. Manda Deus por meio da Igreja aos escravos que nos domingos e dias santos vão ao templo e lá assistam ao sacrossanto sacrifício do Corpo e Sangue de Cristo. Querendo os escravos obedecer a tão santo e justo preceito, pedem licença a seu senhor; e este que lhes diz? Ire ad onera vestra: Deixai-vos disso, e ide trabalhar. E despedindo a todos com sua ocupação, estes manda ao pescado, aqueles à lavoura; estas com a roupa à fonte, aquelas à lenha para o fogo; o que tudo pudera bem estar feito no dia dantes ou se podia fazer no dia de depois. E isto não é ser Faraó? Logo não há desculpa suficiente para ocupar no trabalho geralmente os servos nos dias santos, como costumam no Brasil alguns senhores. 234. Mas sendo assim que não há razão alguma, com que se desculpem os senhores do Brasil, de mandarem trabalhar os seus escravos ao Domingo e dia santo, e porque está tão envelhecido neles este costume, que se não movem por razão alguma a fazer o contrário, não bastando as ordens dos Prelados tão frequentemente repetidas, nem as penas eclesiásticas, que lhes estão impostas, nem as amoestações quotidianas dos Pregadores e Confessores, para lhes arrancarem este abuso, por isso, querendo El Rei. Nosso Senhor (que Deus guarde) que se observasse inviolávelmente a lei, que obriga a não trabalhar nos domingos e dias santos, mandou ao seu Governador e Capitão Geral deste Estado, que com todo o cuidado Procurasse e fizesse observar as ordens e decretos dos Prelados com que proibem que os senhores não mandem trabalhar os seus escravos nos domingos e as festas de guarda. Diz pois assim o Sereníssimo Rei: 235. Governador e Capitão geral do Estado do Brasil, Amigo. Eu El Rei vos envio muito saudar. Sou informado que não basta o cuidado dos Prelados, nem os provimentos que deixam nas Vistas para que algumas da pessoas poderosas dessa Capitania guardem os dias santos da Igreja, como devem a Cristãos; e que também neles não dão a seus escravos o tempo necessário para assistirem nas Igrejas e aprenderem a Doutrina Cristã. E ainda que esta matéria pertence à obrigação dos Bispos, vos ordeno que procureis ajudá-los, para que as suas ordens se executem neste particular; e que pelas vossas parte façais tudo o que puderdes, para que se evite este escândalo e prejuízo das almas dos pobres escravos. E constando-vos que algum Ministro, Oficial de Guerra ou pessoa poderosa falta a esta obrigação de Cristão, o chamareis e repreendereis severamente. E quando desta advertência não resulte a amenda necessária, me dareis conta, para que eu possa passar à demonstração de castigo, que for servido dar-lhes. Esta matéria vos hei por muito recomendada; e mandareis registrar esta Carta nos livros dessa Secretaria, para que todos vossos sucessores a dêem à sua devida execução. Escrita em Lisboa a 7 de Fevereiro d 1698. Rei. Tal é o cuidado da observância, tal é o zelo deste grande Monarca, e tal o mau vezo dos senhores do Brasil; quando puderam, por lhe fazerem o devido obséquio, mostrar-se mais observantes da lei de Deus e da Igreja, já que por respeito do mesmo Deus e da mesma Igreja o não fazem. 236. Com isto porém não pretendo dizer que não possa o senhor consentir que o escravo depois de ouvi Missa vá trabalhar, para si; porque, regularmente falando, é tal a miséria dos escravos do Brasil, ainda dos que s mais bem tratados de seus senhores, que carecem de muita coisas (as quais talvez os senhores lhes não podem dar) que se não são totalmente necessárias e precisas, ao menos são tão conducentes para o sustento da vida humana, que sem elas não podem passar senão com gravíssimo incómodo. Estas, não há dúvida que lhes é lícito granjeá-las com o seu trabalho nos domingos e dias santos. 237. Por isso se não hão-de condenar os senhores, que isto permitem aos escravos, e a isto os exortam; contanto que os não obriguem ao trabalho por força e contra a sua vontade. Porque uma coisa é ser lícito ao servo o trabalho nos dias festivos, e outra coisa ‚ querê-lo obrigar a isso seu senhor. Se o escravo quiser antes padecer a penúria de muitas coisas (como ordináriamente sucede aos que só vivem com o que lhes dão seus senhores) a fim de guardar à risca os domingos e dias de festa, nenhum senhor lho deve impedir. A razão é porque o senhor, fora do preciso e necessário serviço, de sua pessoa e casa, não tem poder para ocupar nestes dias a servo; pois Deus lho tirou com o preceito, que deu de se guardarem as festa. Por isso os que antepõem, como devem antepor, os preceitos da Lei de Deus aos lucros e interesses temporais, não ocupam os escravos nos domingos e dias santos; porque sabem que o trabalho só se há-de dar ao escravo nos dias da semana, para que não se ensoberbeça e faça insolente, opus, ne insolescat. § V Que o trabalho dos servos nos dias de serviço deve ser interpolado com o descanso necessário 238. Não só devem os senhores desocupar os servos do trabalho nos dias de festa (como acabamos de dizer), mas ainda o que lhes mandam fazer nos dias da semana, lho devem interromper, para que tomem algum descanso. Não há-de ser o serviço tão continuado, que a um trabalho sucede outro, de maneira que não possa o escravo respirar e tomar algum alento depois de cansado no serviço de seu senhor; porque a continuação demasiada no trabalho o faz insofrível e intolerável aos escravos. 239. Por isso lamentando Jeremias as tiranias, que padeciam os Hebreus de seus senhores no cativeiro de Baibilónia, era uma delas o cansarem aos mesmos Hebreus com o trabalho sem lhes permitirem descanso. Lassis (diz o Profeta) non dabatur requies (c). Tão inumanos eram os senhores de Babilónia no trabalho que davam aos servos, que sobre um lhes carregavam outro, sem porem em meio tempo algum para tornarem o necessário descanso. Isto mesmo declarou um moderno Poeta, reduzindo a metro latino o que lamentou jeremias: Nulla quies fessis: urgebat pondera pondus: Curvabatque novus pectora anhela labor (d). Ainda que cansados, não tinham descanso os tristes no cativeiro de Babilónia: a um serviço alcançava outro; e anelando ainda o peito pelo trabalho passado, já se achava debaixo de outro novo trabalho. E não é esta mesma a tirania, que exercitam os senhores do Brasil com seus escravos, mandando-os trabalhar sucessivamente sem interrupção alguma de trabalho a trabalho? E isto não só de dia, mas também de noite, de sorte que não fica aos escravos tempo algum, em que possam respirar. Por isso vemos a estes miseráveis desfalecerem de puro trabalho e acabarem a vida. 240. Por robusto e forte e végeto que seja o escrevo, se trabalhar de dia e de noite sem descanso, quem não vê que há-de acabar a ele? Não é robusto o touro? E contudo diz o Poeta: Não vedes como com o trabalho contínuo os mesmos touros desfalecem? Cernis ut in duris (et quid bove firmius?) arvis Fortia, taurorum corpora frangat opus (e). Não é forte o ginete? E contudo, se o cavaleiro o obrigar a correr na praça sem interrupção e sem descanso, não há-de cair morto na justa? Occidet, ad Circi siquis certamina semper, Non intermissis cursibus, ibit equus (f). Não é végeta a terra? E contudo, se for contínuamente lavrada do arado e semeada, cansa em dar novidades e faz-se inútil e estéril: Quce nunquam vacuo solita est cessare novali, Fructibus assiduis lassa senescit humus (g). Pois se os brutos mais forres e robustos, e ainda a terra mais végeta e fecunda, não podem com o trabalho demasiadamente continuado e querem algum descaso; como hão-de poder sem descanso trabalhar os escravos continuamente? 241. Nem faz no caso que o trabalho, que dais ao escravo, seja leve; Porque, se for continuado com demasia, vem a ser tão pesado, que merece ser numerado entre os trabalhos mais penosos do mesmo inferno. Entre as molestas e terríveis ocupações, que fingiram os Poetas haver no inferno, foi uma a das quarenta e nove filhas de Dânao Rei de Argo, chamadas vulgarmente do nome de seu pai Danaides, ou Bélides do nome de seu avô Belo, as quais por matarem em uma noite a seus maridos, foram condenadas por Radamanto, Julgador do Inferno, a esgotarem com crivos ou vasilhas abertas e rotas, a água de um tanque e a passarem a outra parte. Pode haver trabalho menos trabalhoso, que tirar água com vasilhas que a não tiram? Pois a sabedoria dos Poetas e do mesmo Platão (h), que nesta fábula os seguiu, achou este trabalho digno de ser numerado, entre as mais penas do Inferno, quais são a de Tício, a quem o Abutre roi continuamente as entranhas; a de Sísifo, fatigado em levar sem descanso uma grande pedra acima de um alto monte; e a de Tântalo sempre faminto e sempre sequioso à vista da fonte que lhe corre ao pé, e dos pomos que no mesmo tempo se lhe representam aos olhos e lhe fogem das mãos. A razão única que tiveram para numerarem entre as outras penas este tormento, ainda que pareça leve, foi a sua continuação e perpetuidade. Porque não há ocupação, por leve que sei-a, a qual sendo demasiadamente continuada não traga consigo excessiva pena e intolerável moléstia. Vede, pois, se a caga em que os escravos andam continuamente ocupados sem interrupção e sem descanso, não é totalmente semelhante no Inferno, havendo nela uma pena tão própria de condenados! 242. Na verdade não sei como possa haver senhores tão inumanos, que se não compadeçam dos miseráveis escravos, trazendo-os como a Ixião em uma perpétua roda de serviço, sem parar nem de dia, nem de noite! Que trabalhem de dia, bem está; mas que hajam de trabalhar também de noite, e toda a noite, quem o poder sofrer? Porque haveis de ser tão importunos aos servos, que os não dixeis tomar de noite algum alívio com sossego por algumas horas? Porque lhes haveis a cada passo de interromper ou (o que ‚ muito pior) tirar o sono, rendo-os toda a noite ao pé da moenda ou da fornalha, sem que possam dar á natureza algum repouso? 243. Aquele Pai de famílias, de que fala S. Lucas, veio um amigo seu a desoras a bater-lhe à porta e pedir-lhe emprestados três pães: Commoda mihi tres panes (i). E que lhe responderia o senhor da casa? 0 que lhe respondeu foi que lhe perdoasse, porque estava já fechado a porta e recolhido ele e seus escravos (1). Não sei se reparais nos termos desta resposta. Que ele não saisse a abrir a porta àquelas horas, bem está; mas que tendo, ali consigo os escravos, pueri mei mecum sunt, não mandasse a algum deles a dar o que lhe pedia o seu amigo! Parece termo menos ajustado às leis da amizade e da política. Ora ainda que assim pareça, não é assim. Diz o texto, que os servos estavam descansando e dando ao corpo o sono necessário à natureza: In cubili; e não quis este bom senhor interromper-lhes o descanso. Tinham trabalhado de dia, e por isso prudentemente julgou que os não devia inquietar de noite, entendeu que assim como para si era coisa dura levantar-se àquelas horas, non possum surgere, assim também seria dura coisa que obrigasse os servos a levantar-se e interromper o sono. Este exemplo devem imitar todos os senhores, deixando que descansem de noite os servos, não lhes interrompendo (como fazem comumente) o descanso. E com muito maior razão os não devem fazer trabalhar toda a noite, depois de trabalharem todo o dia. 244. Criou Deus o dia e a noite; o dia para o trabalho, e a noite para o descanso. E há-de haver senhores tão bárbaros, que troquem esta ordem e queiram que a noite seja dia, mandando trabalhar os escravos igualmente de dia e de noite? Quão intolerável pena seja para um triste escravo fazer da noite dia; isto ‚, depois de cansar trabalhando todo um dia, haver de continuar no trabalho ou toda ou quase toda uma noite, no a o exemplar da paciêncie, Job. Inumeráveis foram as penas e tormentos, com que Deus permitiu ao Demónio que o apurasse; porém entre aquelas de que mais se queixou o mesmo Job, foi uma delas, que perturbando-lhe o Demónio a fantasia com importunos pensamentos e imaginações, de tal sorte lhe oprimiam. o coração, que lhe trocavam e convertiam a noite em dia (-). Mas de que modo os pensamentos de Job lhe convertiam a noite em dia? A comum e literal exposição é que sendo próprio do dia o velar e trabalhar, era tal o tropel dos pensamentos com que lidava Job, que lhe não consentia em toda a noite um mínimo descamo a seu corpo e um leve sono a seus olhos: Auferentes mihi somnum et inducentes vigilias, sicuti solet fieri de die, diz Lirano (n). De maneira que pelo contínuo trabalho e sobressalto, em que traziam a Job os seus pensamentos, velava de dia, e velava de noite, e por isso a noite se lhe convertia em dia: Noctem verterunt in diern. 245. A estas mesmas noites, que passava Job sem descanso, chamou ele mesmo noites trabalhosas: Noctes laboriosas enurneravi mihi (0); porque só o velar continuamente, sem mais outro trabalho, era para ele um grande e excessivo trabalho. Daqui quisera eu que colhessem os senhores o grande tormento, que causam aos servos, obrigandoos a que passem as noites não só sem dormir, mas trabalhando. Porque se a Job, sendo a mesma paciência, se lhe fazia tão penoso só o velar de noite, sem a pensão do trabalho, que ser a quem trabalha velando, e para trabalhar vela e se desvela? Considerem os senhores o que seria, se lhes sucedesse o mesmo a cada um; e desta consideração aprendam a não dar trabalho tão continuado aos escravos, que lhes faltem com o descanso necessário à natureza, pois basta que s¢ trabalhem de dia, para que se não façam insolentes, opus, ne insolescat. § VI Que o trabalho dos escravos não deve ser excessivo e superior a suas forças 246. Como as virtudes morais consistam no meio de dois extremos opostos, como diz o prolóquio comum, tirado da doutrina de Aristóteles, virtus in medio consistit (P), havendo neles excesso, isto basta para os tornar viciosos. Obrigar o senhor a que trabalhe o servo, sendo com a devida moderação, não faz dúvida que é virtude, porque o obriga a cumprir com sua obrigação; e por isso no primeiro par grafo deste Discurso exortei nos senhores a que façam trabalhar os escravos, e os não deixem viver ociosos. Sendo porém o trabalho exorbitante, já não é virtude, se não vício, pois o trabalho quanto aproveita dado em ma conta, tanto ‚ prejudicial e danoso, sendo fora da justa medida. Há-se de dar o trabalho aos servos, como os medicamentos aos enfermos: isto ‚, em sua medida. Porque assim como a medicina tomada em sua conte é remédio que cura as doenças e preserva de achaques e tornada fora dela não deixa de ser perniciosa. e causar graves danos; assim também o trabalho dado e tomado em sua proporção, purga dos vícios aos servos e os preserva da rebeldia e insolência contra seu senhor, opus, ne insolescat; dado porém fora da justa medida, debilita-os, enfraquece-os e mata-os. 247. Comparou Plutarco o trabalho à água, dizendo que como as plantas com a água sendo moderada se alimentam, e sendo muita se corrompem; assim com o trabalho moderado se aumenta nos homens o vigor, e com o demasiado se oprime (q) . Em uma palavra, tudo quer moderação. A nau, se for demasiadamente carregada, há-de ir a pique; a trave, se tiver sobre si demasiado peso, estala; e a corda, sendo muito estirada, rebenta e quebra. Dois que há-de ser do triste escravo oprimido com demasiado serviço? Há-de enfraquecer, háde desfalecer, e há-de fenecer. 248. Haja pois no trabalho dos servos a devida moderação, trabalhem n seu senhor, pois para isso lhos sujeitou Deus; seja porém o mesmo Senhor tão ajustado com a razão no repartir o trabalho aos escravos, que os não oprima com demasias. Não vos pareçaa que vos peço muito, pedindo-vos que no trabalho dos servos não excedais os limites da razão; pois não vos peço mais do que [o que] o justo e recto dono costuma fazer corn os seus jumentos. Diz Salomão, nos Provérbios, que o justo conhece as almas de seus jumentos (r). E que quis dizer com isto este Rei sábio? Por ventura que trazia mui bem contado o número de seus jumentos? Não (diz Lira, um dos maiores e mais literais intérpretes da Sagrada Escritura), porque ainda quis dizer mais (s): Ama o justo em tudo tanto a moderação, que atenta muito que os mesmos jumentos seus não sejam oprimidos com demasiado trabalho. 249. Pois se o justo guarda esta moderação ainda com os brutos; muito mais (diz S. João Crisóstomo) a deve guardar com os homens, que participam a mesma natureza, como a participam os escravos: Si ergo jumentorum, multo magis hominum (1). E para que haja tão necessária moderação, devem os senhores pôr os olhos singularmente em duas coisas, nas forças do servo, e no tempo do trabalho. 250. Deve primeiramente o senhor, que quer guardar a devida moderação no trabalho dos servos, pôr os olhos nas forças dos mesmos servos, repartindo-lhes: as tarefas segundo as forças de cada um. Senhores há, que querem levar a todos os escravos pela mesma fieira, e medir a todos o trabalho pela mesma medida, sem considerar que nem todos podemos o mesmo: Non omnia possumus omnes (u). Há escravos, que podem mais, e há escravos, que podem menos: em uns há forças e talento para resistir a muito; outros a pouco trabalho se rendem. Sendo pois desiguais nas forças; porque hão-de correr no serviço a mesma parelha? 251. Mandou Deus aos Hebreus, que não ajuntassem no mesmo arado o boi e o jumento (x). A razão desta lei (diz A Lápide) é, porque sendo estes animais desiguais nas forças, e o boi mais robuto; se ambos se ajuntassem no mesmo jugo, o triste jumento não podendo acompanhar ao boi, teria maior trabalho do que era justo (Y). Porém se o dono era o que havia de padecer o detrimento, que tivesse o jumento arando em companhia do boi; deixe Deus que cada um are como quiser: que tem Deus que um bruto trabalhe mais ou trabalhe menos (z)? 252. Este precetio (diz Caetano) não se há-de entender materialmente; porque debaixo da metáfora do boi e do jumento queria dizer outra coisa mui importante: isto é, que a homens desiguais nas forças se não há de impor igual trabalho (a). Pois se os escravos não são todos iguais nas forças, porque os haveis de igualar no trabalho? Trabalhem todos os servos; dada um porém à proporção de suas forças. 0 que for robusto como o boi, trabalhe como boi; e o que tiver só forças de jumento, trabalhe como jumento. Querer que o escravo débil e fraco trabalhe igualmente Como o forçoso e robusto, é querer pôr no mesmo jugo o boi e o jumento: coisa, que Deus severamente proibe: non arabis in bove simul et asino. 253. Deve também olhar o senhor para o tempo do trabalho, para o proporcionar de sorte com ele, que não dê ao escravo maior tarefa da que pode acabar suavemente no tempo que tem para o trabalho. Porque querer que o servo faça, exempli gratia, em um dia o serviço que ao menos requeria dois, é tirania própria de senhores crueis e bárbaros; quais foram os Egípcios para com os Hebreus no tempo do seu cativeiro. 254. Com obras duras de ladrilhos e adobes, e com todos os mais géneros de serviço, em que se costuma trabalhar na terra, os traziam tão fatigados e sobre maneira oprimidos, que aos tristes se lhes fazia penosa a mesmavida (b). Pois fazer adobes e tijolos, e cavar ou arar a terra, não são as obras, em que andam ordináriemente ocupados os servos? Logo como diz o texto que eram tão duras para os filhos de Israel, que os faziam apetecer a morte: Ad amaritudinem perducebant vitam eorum operibus duris? Em que consistia a dureza destas obras? 0 Abulense: chamam-se duras estas obras, porque excediam toda a medida, querendo os Egípcios que os Hebreus cada dia perfizessem tão grande número de tijolos, que bem podiam ser racionável tarefa para dois dias (c). De maneira que o que fazia aborrecível aos Hebreus a mesma vida, não era o trabalho das obras, em que andavam ocupados; era o excesso deste trabalho, e o verem-se obrigados a dar em um dia acabada a tarefa que era para dois. 255. Antes afirma Filo, que pela demasia deste trabalho e excesso dos calores, muitos deles morriam feridos da peste (d). E não é isto mesmo, o que sucede a cada passo nos escravos dos que querem deles em uma hora o serviço que era para duas, e em um dia o trabalho que era para dois? Ficam os miseráveis tão debilitados e cansados, que a mesma vida se lhes faz penosa e molesta : e vivendo desgostosos e aborrecidos da vida, contraem malignas e outras doenças mortais, com que em breve tempo se livram do cativeiro com a morte. 256. Procurem logo os senhores moderar de sorte o trabalho, que este não exceda as forças dos escravos nem o tempo do serviço, porque se assim o não fizerem, e os oprimirem com trabalhos por qualquer caminho exorbitantes, darão os tristes escravos tais clamores ao Céu, que penetrando os ouvidos e o coração de Deus, o obrigarão a descarregar sobre o Brasil os mais rigorosos castigos, como foram os que experimentou o Egipto pelas tiranias que usava com os Hebreus no tempo de seu cativeiro. 257. Noventa anos estiveram os filhos de Israel no cativeiro do Egipto; e no fim deles, diz o texto, que das obras, em que trabalhavam, subindo ao Céu um grande clamar, chegara aos ouvidos de Deus (e). Em todos os noventa anos de seu cativeiro não trabalharam os Hebreus nas obras de Faraó? Qual seria pois a razão, porque só agora chegaram os seus clamores aos ouvidos de Deus? A razão é, porque só neste tempo chegaram os trabalhos do seu cativeiro a ser excessivos. Em todo o mais tempo trabalhavam os Hebreus; nas obras e fábricas do Egipto; mas para isso lhes davam os Egípcias os materiais, a lenha, a pedra e a palha; e com isto se fazia o trabalho, por moderado, sofrível. Porém no cabo dos noventa anos acrescentou Faraó ao trabalho de fabricar, o de cortar a lenha, tirar a pedra e buscar as palhas palia coserem o tijolo; pois nem palhas lhes queriam dar (f). 0 que vinha a ser para os pobres Hebreus tão excessivo, como insofrível. trabalho. E quando os trabalhos dos cativos chegam a ser insofríveis, trabalhos; ao Céu e Deus os ouve (9), executando, grandes castigos nos que desta sorte afligem e maltratam aos escravos. Assim o experimentou á sua custa o Egipto, que depois de ser castigado com dez terríveis pragas, viu com seus olhos os filhos de Israel postos em liberdade, e afogado no Mar Vermelho todo o exército de Faraó. 258. E por ventura não seja esta a principal causa das grandes calamidades, que tem padecido e está padecendo o Brasil, e singularmente da praga das bexigas, ateada de uns anos a esta parte com tão grande incêndio, que lhe tem causado danos gravíssimos com a muita mortandade de Brancos e Pretos. Uma das dez pragas, com que Deus Castigou o Egipto, diz o texto, que foram bexigas, e ampolas contagiosas, que alcançaram não só aos homens, mas também aos brutos (h). Foi o caso, que mandou Deus a Moisés e a Abraão, que tirando às, mãos cheias a cinza das fornalhas dos Egípcios, a espalhasse só Moisés pelo ar à vista de Faraó (i). Agora o meu reparo. Se para os outros castigos, que mandou Deus ao Egipto, ordenou que usasse Moisés do poder da sua vara, e que, essa vara fosse o instrumento, de que usasse para os fazer vir, tolle virgam tuam (1); por que razão no caso que imos ponderando, não foi a vara o instrumento de que usou Moisés para provocar contra os Egípcios este contágio, senão ia cinza e cinza das fornalhas: Cineris de camino? A razão é, porque quis Deus que entendesse o Egipto, que a causa única desta enfermidade era o excessivo trabalho, com que afligiam aos Hebreus, obrigando-os a assistir de dia e de noite nas fornalhas, os adobes para as obras e fábricas amassando e cosendo de Faraó. Por isso, deixada a vara de Moisés, escolheu Deus para este: castigo a cinza, imprimindo nela (diz A Lápide) uma qualidade ígnea e adustiva, que dos ventos por todo o Egipto e caindo sobre os homens e sobre os brutos, lhes causasse a peste das Bexigas (m). 259. Agora ponderai bem esta consequência. Se as cinzas das fornalhas, em que os Israelitas eram obrigados por seus senhores a trabalhar com excesso, foram bastantes para introduzirem no Egipto esta terrível enfermidade, que maravilha é que experimente bexigas o Brasil? Que maravilha ‚ que as cinzas d s fornalhas, em que os senhores ocupam com tanta tirania aos servos, oprimindo-os com tão excessivo trabalho, não só de dia, mas também de noite, que maravilha, digo, é que Deus lhes infunda a mesma virtude, e que espalhadas pelos ventos, e inficionados os ares, causem bexigas, assim nos Brancos e livres, como nos Pretos e cativos: nos Brancos e livres, que se tratam como homens; e nos Pretos e cativos, que são tratados como brutos: Factaque sunt ulcera vesicarum turgentium in hominibus et jumentis? 260. De tudo isto devem os senhores do Brasil aprender a haver-se de ml sorte com seus escravos, que os não oprimam com o demasiado trabalho, pois vemos que o trabalho excessivo é a total causa deste terrível açoite e contágio das bexigas, com que Deus ainda continua e parece quer destruir e assolar rematadamente este Estado, privando aos mesmos senhores dos escravos, que tão inumana e bárbaramente tratam. Logo, se querem pôr embargos às execuções da ira divina, suavizem e moderem o de maneira que possam com ele os servos; e assim conseguirão o fim, pelo qual se deve dar aos escravos o trabalho, que é, não para os maltratar e lhes acabar a vida, mas para lhes reprimir e refrear a insolência, opus, ne insolescat. § VII Conclusão de toda a obra 261. Em todo o discurso desta Obra mostrei aos senhores (não só aos do Brasil, mas a todos) quais são as obrigações, que devem guardar no governo dos escravos. Mostrei em primeiro lugar que lhes devem dar o pão, assim o corporal parta sustento dos corpos, como o espiritual para alimento das almas, panis, ne succumbat. Em segundo lugar mostrei que os devem corrigir e, sendo necessário, castigar com moderação, para que não vivam erradamente, disciplina, ne erret. Mostrei últimamente que lhes devem dar o trabalho a seu tempo, proporcionando-o às suas forças, e atemperando-o com o descanso, de maneira que sirva, não para lhes oprimir a vida, mas para lhes reprimir a insolância, opus, ne insolescat. 0 que agora resta, é, que os mesmos senhores procurem dar à execução todas estas obrigações, considerando (além do que tenho dito) a miserável condição de quem é escravo. Porque, se bem se ponderarem as pensões, que trás consigo o cativeiro, são eficazes a mover a lástima ainda ao peito mais de bronze. 262. 0 estado mais infeliz, a que pode chegar uma criatura racional, é o do cativeiro, porque com o cativeiro lhe vêm como em compêndio as desgraças, as misérias, os vilipêndios e as pensões mais repugnantes e inimigas natureza. São João no Apocalipse falando do Anticristo, disse que em castigo de haver pervertido e reduzido a si tanto número de almas, há-de ser cativo: In captivitatem vadet (n); e comentando este texto o Padre Cornélio A Lápide diz que o cativeiro, de que fala aqui S. João, é o Inferno (0). Mas se o Inferno é o lugar, onde estão em compêndio todas as penas; porque lhe chama cativeiro, captivitatem? Porque o mesmo é dizer cativeiro, que dizer o compêndio de todas as penas; ou o mesmo é dizer cativeiro que dizer Inferno: In captivitatem vadet: Rapietur ad Tartara. Mas porque fora nunca acabar, se houvéssemos de ponderar aqui todas as pensões do cativeiro, apontarei somente quatro, que julgo por mais pesadas: a incapacidade de domínio; a falta do uso da razão, a pouca estimação; e a morte ou quase morte. 263. Comecemos pela primeira. Deu ao homem o Autor da natureza indústria, com que pudesse trabalhar e adquirir para si todas aquelas riquezas e possuir todos aqueles bens, que lucrasse o seu trabalho. Mas é tal e tão infeliz a sorte dos cativos, que sendo obrigados toda a vida a trabalhar, nenhuma coisa adquirem para si; porque o direito das gentes os fez incapazes de todo o domínio, pondo lei, que os servos tudo quanto adquirissem, por qualquer via que o adquirissem, não fosse seu, senão de seus senhores: Quicquid servus acquirit, domino acquirit (P). Que vos parece da triste condição dos servos? Trabalha o livre e colhe o fruto do que trabalha: trabalha o servo, e o fruto do que trabalha colhe-o seu senhor. E pode haver sorte e estado mais lamentável? 264. Dizia Job, que se havia ele cometido mal algum, Deus lhe desse em castigo, que de tudo quanto trabalhasse, outros lhe colhessem o fruto (q). Quando queremos afirmar com encarecimento alguma verdade, dizemos ordinariamente, que, se não é verdade o que dizemos, venha sobre nós o maior mal. E isto mesmo é o que quis dizer Job nestas palavras. Este mesmo maior mal é o que pedia sobre si, no caso em que se achasse nele algum pecado. Mas se são tantos e tão grandes os castigos, que podia imprecar-se Job; porque mais pede que o seu castigo seja que outrem comesse o que ele semeasse: Seram, et alius comedat? Porque ver eu que outrem come, às mãos lavadas, o que eu trabalhei e me custou o meu suor, é um tormento tal e tão sobre os mais tormentos, que entre todos ele é o maior e o que mais avulta: Si manibus meis adhaesit macula, seram, et alius comedat. 265. E não é isto, mesmo o que passa com os servos? Eles o experimentam, e nós o vemos. Passa um dia e outro dia; passam os meses e os anos, e as tristes servos sempre a trabalhar, sem sossego, sem descanso, sem alívio: ao sol e à chuva; de noite sem dormir, e de dia sem cessar. E os frutos e lucros de todo este trabalho, quem é que os goza e os come? Não eles, senão outros; não os mesmos servos, senão seus senhores: seram, et alius comedat. 266. A segunda das pensões, que traz consigo o cativeiro, é, que o cativo assim como com a liberdade perde o uso da vontade, assim também perde o do entendimento. É o entendimento no homem a operação mais nobre, e pelo qual se distingue dos outros animais; mas pelo cativeiro, de tal sorte se priva do uso de razão, que se faz mui parecido e semelhante ao mais bruto dos brutos. Todos sabem que entre os brutos o mais bruto é o jumento, e a este comparou o Espírito Santo, o escravo, no mesmo Capítulo de que tiramos as palavras para os Discursos, que, até agora fizemos: Cibaria, et virga et onus asino: panis, et disciplina et opus servo (r). Mas em que consiste a semelhança do servo com o jumento? Na estolidez e falta do uso da razão, diz A Lápide, (s). E pode a natureza humana chegar a estado mais lastimoso, do que a ser comparada com a do bruto mais bruto? Julgue-o cada qual. Pois a tanto chega aquela criatura racional, que chegou no estado do cativeiro! 267. 0 vilipêndio e desprezo e pouca estimação, que se faz dos servos, é a terceira das pensões terríveis do cativeiro. Querendo explicar lsaias o sumo da vileza, a que havia de chegar o Sacerdote Sobna debaixo do cativeiro dos Assírios, disse que seria tratado como pela (t). Como pela? Sim. Vistes como é tratada péla por aqueles que a jogam? Todos têm mão para ela, sendo que não tem ela mão para algum; todos contra ela se armam e ela a nenhum resiste antes ou pela terra ou pelo ar, vai para onde cada um deles a manda: ei-la já aqui, ei-la acolá, sem nunca parar. Enfim, com lhe chamarmos péla ternos dito tudo: todos a tratam, mas todos corno jogo. E tal é qualquer escravo, péla e jogo de todos, quasi pilam mittet te. 268.Mas se isto tem todo o escravo por escravo: que ser nos escravos do Brasil (de quem em toda esta obra determinadamente falamos) por serem pretos? Todos os escravos, só por serem escravos, são tidos em pouco e tratados com o desprezo que acabamos de ver; mas ainda é mais vil e abatido o trato que se d aos escravos pretos, só por serem pretos. Os outros escravos são tratados como a péla; os escravos pretos como o pião. E aqui vem nascendo a versão dos que, em lugar de quasi pilam mittet te, lêem: Veluti trochum projiciet te (u). A diferença que há entre a péla e o pião, é que a péla jogamna também os homens, e o pião só os rapazes, e por isso ‚ jogo mais vil. Ora considerai agora como tratam os rapazes o pião, quando o jogam. Atam-no primeiro com urna e muitas; voltas. Lançam-no à tema; açoitam-no, para que ande; pisam-no, para que páre; e até o ferem com os que eles nesta América chamam quiles, para o destruirem e acabarem de todo, sendo tantas as apupadas, quantas as feridas. Não é isto o que se, vê pelos adros e pelas ruas, no tempo em que costumam os rapazes jogar o pião? Todos o vemos. Pois assim mesmo é tratado o escravo que é preto. Não só os homens, mas os rapazes e ainda os mais pequenos, se atrevem a mofar e zombar dele, a descompô-lo de palavra e tratá-lo mal de obra, veluti trochum projiciet te. 269. A quarta pensão, e última e ainda mais pesada de todas as que traz consigo o cativeiro, é a morte ou quase morte do servo. É a vida do servo tal vida, que mais parece morte; ainda que natural e fisicamente viva, política e civilmente está morto. Porque assim como a vida natural do homem consiste no exercício das acções naturais e físicas, como é ver, andar, respirar e outras; assim a vida política do mesmo homem consiste nas acções políticas e civis, como são requerer em juízo, o seu direito, ser admitido a dar testemunhos, ocupar os, ofícios e cargos da República, e várias outras, que deixo por agora. E, como não seja permitido ao servo exercer alguma destas acções políticas por firo proibir o Direito, por isso o mesmo Direito o trata e reputa tomo morto civilmente: Servitutem mortalitati fere comparamus (x). Mas se hei-de dizer o que sinto, esta morte civil do servo não é inferior à morte natural, antes muito semelhante a ela, e estou em dizer que a mesma. 270. Depois de vendido José por seus irmãos para o Egipto, vendo-se estes castigados e oprimidos com vários géneros de infortúnios e desgraças, dizia Rúbem (que era o mais velho deles) que Deus os castigava por haverem morto a José seu irmão: En sanguis ejus exquititur (Y). Já suponho estais na dúvida. Os irmãos de José é certo que o não mataram, antes pelo não matarem o venderam: vendiderunt eum (z). Pois como agora diz Rúbem que o que padeciam, era castigo de o haverem morto. Sanguis ejus exquiritur? Por isso mesmo. Porque o venderam para ser cativo, por isso o mataram; porque o cativeiro é o mesmo que a morte natural, e o mesmo é ser cativo, que ser naturalmente morto: vendiderunt eum; en sanguis ejus exquiritur. Tanta e tão penosa é esta condição do cativeiro! Mas ainda não está cabalmente ponderada. 271. A morte natural padece-se por tão breve tempo, que S. Agostinho duvidou quando se podia dizer pròpriamente que morria o homem: se antes de expirar, se quando expira, ou se depois que expirou. Antes de expirar, não, porque antes de expirar não há morte; depois que expirou não, porque já a morte passou; logo, só se pode dizer que morre, quando expira (a). Assim é; mas o tempo em que expira tão breve, que não é tempo, porque é só um instante. E a morte do cativeiro é tão dilatada, como é a vida do cativo. Dura anos e anos e só a morte o acaba. Por isso julgou sabiamente Cícero, que o cativeiro é tanto mais intolerável que a morte, que antes se devia aceitar de boa vontade a morte, por se não vir ao cativeiro: Servitus postremum malorum omnium, non modo bello, sed etiam morte repellendum, (b). Cícero, só o disse, porém Niceias e Demóstenes, dois valorosos Capitães de Atenas, o comprovaram com o seu exemplo; pois por não sofrerem o cativeiro dos que os venceram, tomaram por suas próprias mãos a morte (c). E de certas mulheres troianas conta Filo Hebreu, que antes que não chegassem seus filhos a ser escravos, os lançavam às águas, dizendo que antes os queriam mortos que cativos (d). E sendo a morte o mal de todos os males: Terribilium omnium terribilissimum, como diz Aristóteles (e), comparada com o cativeiro, é o cativeiro maior mal que a morte, pois é a morte remédio do cativeiro: Servitus postremum malorur omnium, non modo bello, sed etiam morte repellendum 272. Tal é, senhores, o estado de um cativo. É homem, mas sem vontade, e sem entendimento; trabalha e trabalha sempre, mas sem lucro, vive, mas como se não vivesse; sendo por natureza igual a seu senhor, porque ‚ homem, pelo cativeiro se faz muito inferior e como se não fosse homem, é o mais vil, o mais abatido, e o mais desprezado de todos eis homens. Enfim, cativo. E quem não vê que por todas estas razões deve quem é senhor compadecer-se de quem é escravo? 273. Ne addas afflictionem afflicto, diz o Provérbio: não acrescenteis nova aflição a quem já está aflito (f). E sendo tantas e tão duras e pesadas as pensões do cativeiro: que senhor haver tão inumano, que com o mau trato dobre o tormento ao escravo, e lhe acrescente aflições sobre aflições? Que senhor haver tão fero e tão tirano, que se não mova à compaixão dos tristes escravos, considerando que são escravos, sem liberdade, sem honra, sem gosto, e sem contentamento algum; sempre em abatimento, sempre em tristeza, sempre em aflição, sempre em amargura; aflita e amarga a vida; triste e abatido o estado, aflito e amargo o exercício; triste e abatida a condição; tudo desconsolção, tudo angústia, tudo pena, tudo melancolia. Alegra-te, sequer uma vez servo desgraçado e infeliz! Mas como há de ter alegria, se é servo? Lá disseram aos Israelitas no cativeiro de Babilónia, que cantassem para espalha a tristeza que os consumia. E que responderam os Miseráveis cativos? Quomodo cantabimus? Disseram: como pode ser que cantemos e tenhamos alegria triste cativeiro (9)? Terrível, e lastimosa sorte é a de um cativo! 274- Se come, é sempre a pior e mais vil iguaria; se veste, o pano é o mais grosseiro e o trajo o mais desprezível; se, dorme; o leito é muitas vezes a terra fria e de ordinária uma tábua dura. 0 trabalho é contínuo, a lida sem sossego, o descanso inquieto e assustado, o alívio pouco e quase nenhum; quando se descuida, teme; quando falta, receia; quando não pode, violenta-se, e tira da fraqueza forças. Já o vieres em uma parte, já em outra, já nesta ocupação, já naquela, ei-lo com o machado nas matais, ei-lo com a enxada nas lavouras, ei-lo nas moendas moendo-se, ei-lo abrasando-se nas fornalhas. Não há Proteu, que variasse tantas vezes a figura, como a varia e muda o escravo. Há-de ser lince, para ver o aceno de seu senhor; há-de ser guia, para lhe penetrar os pensamentos; há-de ser sátiro, para lhe ouvir as vozes (h). Na presteza para levar os recados, há-de ser cervo; na robustez para resistir ao trabalho, há-de ser boi; na paciência para sofrer o castigo, há-de ser Jumento. 'Em duas palavras: há-de ser tudo, posto, que na estimação de todos seja nada. 275. Ah! servos! Ah! Senhores! Ah! servos desgraçados! Ah! senhores inumanos! Que seja tal a vida e condição dos servos; e que sejam tais os corações, e crueldade dos senhores! Que peito de aço e de bronze haver é que à vista de tanta lástima se não mova à compaixão e não procure, quanto for de sua parte fazer tolerável aos servos, e suavizarlhes o trago amargosíssimo do cativeiro? Dizei-me, senhores (com quem agora falarei), dizei-me: acabastes de entender que a vida de um cativo é tão cheia de penalidades e tormentos, que mais é morte que vida? Se depois de me haverdes ouvido, ainda o não entendestes, não tenho que esperar de vós, nem falo convosco, mas se o tendes entendido, bem me posso persuadir que de hoje em diante sereis outros e mais humanos para os vossos servos, do que até agora fostes. 276. Já dissemos, e já me confessais, que o estado do cativeiro é mais morte que vida. E se, além desta morte, lhe acrescentardes ao servo trabalhos . excessivos e castigos exorbitantes; se, além desta morte, lhe faltardes com o sustento, não lhe acudindo com a ração devida; se lhe faltardes com o vestido, não cobrindo sua desnudez e deixandoo exposto às inclemências do tempo; se lhe faltardes com as medicinas no tempo da doença, desamparando-o e talvez lançando o ìmpiamente de casa: tudo isto não será acumular penas sobre penas, tormentos sobre tormentos, e mortes sobre mortes? Ainda mal! Pois, ne addas, afflictionem afflicto, vos torno a dizer o Provérbio: não acrescenteis a quem já está aflito nova aflição. Baste-lhe ao cativo o cativeiro. 277. Mas se até agora vos falei como a racionais, quero acabar falando-vos como a Cristãos. Credes que esses servos assim tão abatidos e desprezados, são vossos próximos e Cristãos como vós? Sim, o deveis; crer. E se o credes, porque não fazeis o que vos manda Deus por S. Paulo, para satisfazerdes à Lei de Cristãos, que professais? Alter alterius onera portate, et sic adimplebitis legem Christi, diz S. Paulo. Ajudai-vos uns aos outros, os que sois próximos, e assim satisfareis à lei de Cristo (i). 0 senhor pode ajudar no servo a levar a carga, suavizando-lhe e livrando-lhe o jugo do cativeiro; logo, para satisfazerdes às leis de Cristãos, deveis os que sois senhores, não agravar mais o peso da servidão aos escravos, senão procurar em tudo, e por todos os caminhos, aliviá-lo. 0 vosso servo, não, me haveis de negar que vos ajuda a passar a vida com descanso, tomando sobre si o peso que seria vosso, se ele não fosse vosso cativo. Pois, porque o não ajudareis vós a levar esse peso, fazendo com o bom trato, que o leve mais suavemente? Se quereis que o servo faça o que vos deve: porque não fareis vós o que lhe deveis? Se quereis que ele faça o que deve a servo; porque não fareis vós o que deveis a senhor e Cristão? 278. Antigamente os Cristãos da primitiva Igreja, logo que recebiam o baptismo, davam liberdade a seus servos, parecendo-lhes que com a liberdade da lei de Cristo não estava bem o cativeiro. Assim o fizeram os Hermes, os Cromácios, e outros muitos, de que estão cheias as Histórias Eclesiásticas (1). Não quero persuadir com isto aos senhores a que façam o mesmo aos seus escravos. Senhores, eu não pretendo que deis liberdade aos vossos servos; que quando o fizésseis, faríeis o que fizeram os verdadeiros Cristãos. 0 que só pretendo de vós, é que os trateis a próximos e como a miseráveis; que lhes deis o sustento para o corpo e para a alma; que lhes deis somente aquele castigo, que pede a razão, e que lhes deis o trabalho tal, que possam com ele e os não oprima. Isto só vos peço, isto só espero, e isto só quero de vós: Panis, et disciplina, et opus servo. F I M