Mascara e Coturno A vanguarda dispersa: comunicação estratégica na Itália da década de 19701 Klemens Gruber Prefácio Trinta e três anos depois Na década de 1970, um tempo que antecedeu à época da televisão privada, a piazza italiana ainda era um elemento central do espaço público e a trattoria um ponto de encontro cotidiano. Ainda não se passava as noites na frente dos monitores da televisão, mas as ruas e praças estavam apinhadas de gente cumprindo um ritual secular: marcar encontros, trocar olhares, difundir hábitos. Nesses anos setenta, a Itália se transformou num laboratório social. A matéria-prima que ensejou isso foi a reestruturação da indústria vinculada ao capital, sua irradiação da fábrica sobre todo o organismo da sociedade. Os ingredientes, catalisadores ou subprodutos foram uma política corrupta, instituições desoladas, violência e uma juventude rebelde, que procurava formas de viver situadas além do trabalho assalariado e à margem das duas igrejas do país, a católica e a comunista com suas perspectivas ilusórias 1 Klemens GRUBER. Die zerstreute avantgarde. Strategische Kommunikation im Italien der 70er Jahre [A vanguarda dispersa: comunicação estratégica na Itália da década de 1970]. 2. ed. Wien/Köln/Weimar: Böhlau, 2010, p. IX-XII, 11-30, 101-166. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber1 de um “compromisso histórico”. Por isso mesmo, esse movimento autônomo da juventude não ficou muito impressionado com as escaramuças terroristas, que, desde o início, foram atribuídas aos diversos serviços secretos – era por demais evidente que aquelas ações espetaculares correspondiam às “intrigas palacianas”. Em vista dessa realidade surgiram novas formas de enfrentamento político, uma real poética da transformação, que identificou como seu terreno preferido a linguagem e os comportamentos cotidianos e fez experimentos com meios inovadores de expressão e comunicação. Somou-se a isso que, no início dos anos setenta, o preços das tecnologias de comunicação baixaram consideravelmente, de modo que, em toda parte, floresciam os experimentos com mídias a custos baixos: vídeo, rádio, impressão em offset. No ano de 1975, a sentença de um Supremo Tribunal italiano declarou inconstitucional o monopólio estatal sobre a radiofonia, sem substituí-lo por nova regulamentação. Na lacuna legal que surgiu, formou-se rapidamente uma rede de pequenas estações de rádio “locais”, “livres”, que logo fez ruir de fato o monopólio estatal sobre a informação via mídias radiofônicas: quebra do monopólio estatal sobre o éter por meio da indústria da comunicação. Inversamente a organização de dúzias de rádios autogeridas mostrou duas coisas: ao lado da extensão quantitativa do círculo de pessoas que não se dava mais por satisfeita com a programação oferecida pelas estações estatais de rádio, ficou claro sobretudo como o know-how, o saber técnico se difundiu com o desenvolvimento da indústria do entretenimento e passou a ser usado de maneira nova. É disso que trata este livro e também das hipóteses com que a Rádio Alice em Bolonha, a mais radical e consequentemente a mais famosa das rádios livres, encetou os experimentos visando uma comunicazione sovversiva [comunicação subversiva]. Produção de publicidade e pesquisa da própria mídia, de seus meios de expressão específicos e de seus potenciais: estas são as duas estratégias complementares, ignoradas pelas emissoras estatais e pela política tradicional por burrice e reacionarismo. Ao passo que a vanguarda da primeira fase do século XX ainda procurou estabelecer propriamente uma relação entre as novas mídias – fotografia, filme e rádio – e um público de massa e fazer experimentos midiáticos com as novas necessidades culturais das massas urbanas, trata-se hoje de perturbar, interromper e deslocar essa relação estabelecida entre as mídias de massa e o conjunto da população. No meio dessas duas correntes, a Rádio Alice procurou com grande intuição histórica e habilidade prática um outro caminho para as Índias e descobriu um novo continente, o da “comunicação subversiva”: e mesmo que tenha sido apenas para entrar no ar certo dia com microfones ultrassensíveis para aquela época e, numa transmissão radiofônica surpreendente do seu “estúdio respeitável, sublime, celestial”, fazer com que todos pudessem ouvir a grama crescendo. Em contrapartida, quando hoje se abre os diários italianos, acredita-se às vezes estar segurando falsificações do Il Male: no final da era Berlusconi, a realidade italiana é, em muitos aspectos, mais irreal do que as melhores falsificações. Sou grato a Dieter Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber2 Federspiel, Maria Herzfeld e Ulrich Steger por muitos auxílios de tradução, a Jana Herwig e Gabriele Ruff pela revisão do manuscrito, a David Krems pela edição das imagens, a Michael Tripes pela excelente edição da capa tanto naquela época como hoje, a Ulrike Dietmayer e Michael Rauscher da Editora Böhlau, que com seu experiência profissional assistiram com conselhos e ações também o surgimento desta segunda edição; por fim, a Maurizio Torrealta, que, no verão de 1975, falou-me pela primeira vez do projeto de uma emissora de rádio, sou grato por sua hospitalidade e pela generosidade de suas ideias, a Franco Berardi pela inexpugnabilidade de suas ideias e a Enrico Palandri pela longa amizade e pelo seu jeito inabalavelmente divertido. Viena, na primavera de 2010 Klemens Gruber Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber3 Hoje é muito evidente que alguém pode ser poeta sem jamais ter escrito um único verso, e que o poético se encontra nas ruas mais cotidianas, em peças teatrais vulgares e, de resto, em todo lugar em que há movimento de gente. Tristan Tzara2 Há, porém, uma literatura com profundidade, que constitui luta renhida por um novo modo de ver, com êxitos infecundos, com necessários “erros” conscientes, com rebeliões resolutas, negociações, escaramuças e mortes. Essas mortes, via de regra, são reais, não metafóricas. Mortes de pessoas e geYuri Tinianov3 rações. EM BUSCA DE UMA “POÉTICA DA TRANSFORMAÇÃO” I. “Mao più dada” (“Mao mais dadá”).4 Por estranha que soe a combinação desses dois nomes apesar do seu tom agradável, não é para menos que ela surgiu. “Mao é um velho dadá” dizem os bolonheses, e, de fato, muitos dos seus ditos, só precisando ser acolhidos com a distância que lhes corresponde, têm em si algo totalmente dadaísta. Afinal, quando se põe na boca do grande líder a pergunta “se um dia não se deveria instituir o dadaísmo”,5 então a ironia se volta contra aqueles que nada perceberam das inclinações vanguardistas de Mao; e naturalmente contra a doutrina maoísta muito difundida no hemisfério ocidental no final da década de 1960, segundo a qual a revolução cultural chinesa deveria servir de modelo para toda e qualquer transformação social. Mas, inversamente, o que o dadaísmo tem a ver com Mao? No Congresso de Literatos de Orvieto, em abril de 1976, o Coletivo A/traverso declara o seguinte: 2 Tristan Tzara, “Essai sur la situation de la poésie” (1933), apud Maurice Nadeau, Die Geschichte des Surrealismus, Reinbek, 1965, p. 40. 3 Jurij Tynjanov, “Velemir Chlebnikov”, in: Id., Die literarischen Kunstmittel und die Evolution in der Literatur, Frankfurt a. M., 1967, p. 62s. 4 “mao-dadaismo: scrittura/pratica antiistituzionale”, A/traverso, quaderno 1, out./1975, p. 25. 5 “Vengo al fatto che il marxismo ha anch’esso una nascita, una crescita e una morte. Questo può sembrare assurdo ma dacché Marx ha detto che tutto ciò che sopraggiunge deve morire, perché non applicarlo al marxismo stesso? Dire che non deve morire è metafisico. Naturalmente, la morte del marxismo significa che qualcosa di superiore l’ha sostituito.” Mao tse-tung, “Dovremo un giorno adottare il Dadaismo?”, Conferenza inedita di cui esiste solo questo estratto (vero), Schram, 1975; apud Maria A. Macciocchi, Dopo Marx Aprile, (com uma introdução de Leonardo Sciascia), Milão, 1978, p. 36s. (“Chego agora ao fato de que o próprio marxismo tem um nascimento, um crescimento e uma morte. Isso pode parecer absurdo, mas como Marx disse que tudo que sobrevém também deve morrer, por que não aplicar isso ao próprio marxismo? Afirmar que ele não deve morrer é metafísico. Naturalmente a morte do marxismo significa que ele foi substituído por algo superior.”) Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber4 Hoje aparecemos – aqui –, no recinto da instituição literária, para desaparecer. Dizemos DADÁ e nos referimos à nossa colocação em outro lugar. Hoje proclamamos – fora daqui – [...] o nascimento do MAODADAÍSMO.6 Mais uma infusão7 do dadaísmo? De qualquer modo, deixar o “recinto” da atividade literária e artística estabelecida é uma antiga intenção dadaísta. Os dadaístas haviam declarado guerra à arte – como esfera isolada da vida cotidiana – e submetido essa separação a uma crítica radical que, por vezes, chegou até às vias de fato. A exemplo do Marquês de Sade, ele insistiam no direito de “dizer tudo”, denunciavam a “inocência das palavras” e viam no uso linguístico dominante a pior de todas as convenções. A aversão que sentiam pela linguagem corrente e os ataques sistemáticos que desferiam contra o sentido usual e seus guardiões os levaram a uma linguagem que não mais estava munida da razão. A realização dadaísta propriamente dita foi a substituição do sentido pelo não-sentido: a convicção de que a palavra está acorrentada para sempre a uma ideia e o símbolo a um objeto que o designa foi abalada por dadá8. No escândalo9, sua segunda grande inovação,10 a intenção dos dadaístas de acabar com a arte se intensificou e, ao mesmo tempo, encontrou sua expressão mais apropriada:11 convocava-se 6 “Oggi – qui – nel recinto dell’istituzione letteraria noi compariamo per scomparire. / Diciamo 7 8 9 10 11 DADA ed intendiamo la nostra collocazione altrove. Oggi – fuori di qui – [...] dichiariamo la nascita del MAO-DADAISMO.”, “Scrittura trasversale e fine dell’istituzione letteraria”, in: A/traverso, quaderno 3, jun./1976, p. 4. Cf., por exemplo, Sprache im technischen Zeitalter, caderno 55: Dada – Neodada – Kryptodada – ?, 1975. “O pronome demonstrativo infantilmente repetido, que o dadaísmo elegeu para si.” Theodor W. Adorno, Ästhetische Theorie, Frankfurt a. M., 1973, p. 521. Sobre a vulnerabilidade do teatro pelo escândalo cf. Dietrich Schwanitz, Die Wirklichkeit der Inszenierung und die Inszenierung der Wirklichkeit. Untersuchungen zur Dramaturgie der Lebenswelt und zur Tiefenstruktur des Dramas, Meisenheim am Glan, 1977, p. 10ss. Walter Benjamin apontou para a afinidade entre as técnicas dadaístas e o filme: em virtude de sua “qualidade tátil” ambos provocam um “efeito de coro”, aquelas um efeito “moral”, este um efeito “físico”; cf. Walter Benjamin, Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit, Frankfurt a. M., 1963, p. 42ss. O escândalo não foi só encenado; às vezes ele também foi inventado. Em 1919/20, Walter Serner conseguiu fazer publicar na imprensa diária toda uma série de relatos fingidos sobre certas ocorrências dadaístas. Alguns exemplos ilustrativos encontram-se em: Walter Serner, Hirngeschwuer. Texte und Materialien. Walter Serner und Dada, Erlangen, 1977, p. 57ss. “Novidades sobre o dadá O primeiro Congresso Mundial dos dadaístas, que há semanas se reúne na Grand Salle des Eaux Vives [Grande Sala das Águas Vivas], em Genebra, teve há pouco um fim repentino: ele foi dissolvido pela polícia e sem dúvida resultará num poslúdio judicial para vários dos seus participantes. Ocorre que entre Tristan Tzara, o fundador do dadaísmo, e o conhecido filósofo dadaísta Serner, presidente do Congresso, deu-se uma troca veemente de palavras, no decorrer da qual Serner puxou uma browning e disparou quatro tiros de festim contra Tzara, que teve presença de espírito suficiente para se deixar cair imediatamente da cadeira. No entanto, a consequência foi que a galeria – ocupada por muita gente que não duvidou que os tiros haviam sido de verdade – entrou em pânico, que só pôde ser contido a tempo pela intervenção rápida e precavida de algumas cabeças mais inteligentes. Agentes da polícia que em seguida apareceram no local evacuaram o salão e levaram Serner e Tzara ao comissariado localizado nas proximidades, sendo novamente postos em liberdade após breve interrogatório e carregados nos ombros até o seu hotel pelos dadaístas que os aguardavam na rua. Dias depois apareceu na Tribune de Genève [Tribuna de Genebra], para gáudio geral do público, um artigo mordaz (todavia em forma anúncio pago), em que se comunica ao público que o Congresso, em sessão secreta, teria decidido que a utilização de tiros de festim em discussões dadaístas não só é permitida, mas também desejada por ser reanimadora, impondo, no entanto, a condição de que o atirador deve Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber5 o público unicamente para privá-lo de toda obra de arte e, desse modo, confrontá-lo diretamente com a eliminação da arte. Ainda assim, o espírito desagregador do dadá, cujo niilismo decerto teria sido favorecido por uma vitória dos espartacistas,12 escolheu uma vez mais o terreno da arte: a troca da obra de arte pela ação de destruí-la incluiu um movimento na direção contrária – e manifestou a si próprio como obra de arte. O fato de o dadaísmo ter sido obrigado a retornar à arte passou a ser interpretado pelo A/traverso como a impossibilidade historicamente fundamentável de transformar atividade artística em “práxis de transformação real”. Mesmo que o dadaísmo tenha dado expressão à situação social eruptiva da Europa daquela época, ao “desregramento das massas”13, o experimento da ruptura absoluta e, por conseguinte, abstrata com a arte só poderia dar-se num lugar artificial e deveria forçosamente resvalar para o gueto da utopia. Hoje, contudo, as intenções dadaístas recobram nova vida. “Ripartiamo della lezione del dadaismo [Partamos mais uma vez da lição do dadaísmo]”14, consta no A/traverso: porém, criticar “aquela separação entre arte e vida, que o dadaísmo quer abolir no reino (ilusório) da arte”15 não pode ser coisa de um pequeno grupo de artistas. Pois, em seu lugar, coletivos cada vez maiores se submetem às condições da indústria da cultura e da consciência imposta. A/traverso prossegue dizendo que não se trata mais de declarar fragmentos da vida cotidiana como obras de arte, visando, desse modo, negar a arte como instituição social. Trata-se, muito antes, de aplicar os procedimentos e os estratagemas do dadaísmo na vida cotidiana mesma. Somente uma práxis desse tipo, que não mais procura transformações na arte, mas intervém diretamente aceitar imediatamente uma terceira opinião totalmente nova. De qualquer modo, estamos curiosos para saber qual será a opinião dos tribunais de Genebra.” “Baile dadá em Genebra 12 13 14 15 No dia 10 de março, aconteceu o baile dadá anunciado com enorme publicidade, que, por incrível que pareça, realmente cumpriu as muitas coisas jamais vistas que ele havia prometido. [...] Pouco antes da meia-noite foram vendidas centenas de pequenos apitos dadá e flautas dadá, que emitiram uma chiadeira perfeitamente nova, de modo que, num instante, a música e as conversas foram engolfadas por um ruído ensurdecedor. No mesmo momento, porém, subiu ao pódio em fraque e veste vermelha o organizador do baile, o líder dadaísta Dr. Serner, onde posicionou um cachorrinho de papel machê de tamanho maior que o real, abriu-lhe pessoalmente a boca e deu-lhe um tapa na cabeça, provocando uma detonação no pescoço do amável bichinho que superou todos os demais sons. Imediatamente apareceram três dadaístas fantasiados de policiais e prenderam o Dr. Serner, arrastaram-no para o salão e o condenaram a organizar uma polonesa-dadá, tarefa da qual ele se desincumbiu de uma maneira inusitada, isto é, provocando tantas objeções que a autêntica polícia do salão foi obrigada a intervir e quase susta o baile. Bem, o conflito foi resolvido, o baile continuou e terminou às cinco da madrugada com uma estupenda apoteose-dadá: durante vários minutos, vinte dadaístas dispararam armas de brinquedo contra o Dr. Serner, que gemia sem parar: ‘Ah, c’est bon! Encore! Encore! [Ah, como é bom! Bis! Bis!]’ Isso realmente ainda não havia acontecido.” A relação entre o fracasso do dadaísmo e o malogro da revolução alemã é descrita por J.-F. Dupuis (isto é, Raoul Vaneigem), Der radioaktive Kadaver. Eine Geschichte des Surrealismus, Hamburg, 1979, p. 5-10. “Negli anni venti la sfrenatezza è nelle piazze. [...] Il dadaismo, il futurismo, sono espressione di questa sfrenatezza collettiva”, “informazione e appropriazione”, in: A/traverso, quaderno 2, mar./1976, p. 14. Jean Pierre Faye, Theorie der Erzählung: Einführung in die ‘totalitären Sprachen’, Frankfurt a. M., 1977, analisa como, na “década demasiado longa de Weimar”, o tumulto alemão teve de dar lugar às fórmulas “iluminadas” do Estado Total (p. 156). “scrittura trasversale e fine dell’istituzione letteraria”, in: A/traverso, quaderno 3, jun./1976, p. 4. “Quella separazione fra arte e vita, che il dadaismo vuole abolire nel regno (illusorio) dell’arte”, idem. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber6 no cotidiano com recursos artísticos, “lascia segni nella organizzazione della vita [deixa sinais na organização da vida]”.16 Produção de sinais e transformação da vida devem, portanto, sobrepor-se. Isso traz à memória a exigência benjaminiana de uma “literarização das condições vitais”17. Porém, ao passo que Benjamin visava à possibilidade de uma produção coletiva da arte, trata-se aqui da busca por uma produção de sinais que faz surgir a poesia no sentido mais amplo possível, isto é, novas formas de viver: Assim, convertendo-se em ação mao-dadaísta, a escrita a/travessa as ordens separadas do discurso e do comportamento.18 A função organizadora dessa “escrita”, que em Benjamin ainda não adquire o sentido de uma escola, que visa estimular os demais escritores à produção,19 está se ampliando agora, na era das mídias eletrônicas e sob os pressupostos de uma constelação revolucionada de inteligência e massas. Ela passa a voltar-se também para outras linguagens além da linguagem das palavras, para linguagens que, exatamente como aquela, fazem parte da interação social, ou seja, justamente para o comportamento cotidiano.20 É ali que, para o A/traverso, está o lugar da possível transformação: não nos níveis da política, da disciplina partidária e da verdade, mas no terreno do cotidiano. E Mao, o grande organizador com queda para o vanguardismo, dá bons conselhos: Hoje estamos em busca de uma nova forma. O maodadaísmo é um ponto de vista que o jovem-velho presidente expressa na conversa com sua neta quando lhe recomenda não ir às assembleias e elogia a revolta contra a boa educação civil, contra o dever político e contra a participação institucional.21 16 Idem. 17 Walter Benjamin, “Der Autor als Produzent” (1934), in: Id., Gesammelte Schriften, v. II /2, Frankfurt a. M. 1977, p. 688. 18 “La scrittura a/traversa così, facendosi azione mao-dadaista, gli ordini separati del discorso e del comportamento.”, “Sulla strada di Majakovskij”, in: A/traverso, quaderno 3, jun./1976, p. 3. 19 Walter Benjamin, “Der Autor als Produzent”, p. 696. 20 “Naturalmente ‘escrita’ possui aqui um significado muito amplo. Escreve-se com o rádio ou com 21 o corpo, escreve-se ao dar expressão de todas as maneiras possíveis ao ‘anseio revolucionário’ [...]”, comenta Umberto Eco, “La comunicazione ›sovversiva‹ nove anni dopo il sessantotto”, in: Corriere della Sera, 25 de fevereiro de 1977, p. 3. “Oggi cerchiamo una nuova forma. Mao-dadaismo è il punto di vista che il presidente vecchiobambino esprime nel dialogo con la nipote quando le consiglia di non andare alle assemblee, e fa l’elogio della rivolta contro la buona educazione civile, contro la politica-dovere, contro la partecipazione istituzionale.”, “maodadaismo: scrittura/pratica antiistituzionale”, id., ibid., p. 24s. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber7 No mao-dadaísmo, o programa poético de A/traverso assume sua primeira forma vaga No mao-dadaísmo, o programa poético de A/traverso assume sua primeira forma um tanto vaga. Ao lado do do nãosentido, as técnicas do escândalo e da provocação, igualmente tomadas de empréstimo do dadaísmo, tornam-se seus instrumentos mais importantes. No entanto, seu efeito não deve mais se esgotar em zombar do público apreciador de arte com obras de arte ou justamente com a ausência delas. “Transformação cultural” é o objetivo e o jogo livre com os códigos e significados se converte no terreno que aponta para muito além da moldura da arte institucional. Enunciados mais precisos sobre algumas ações maodadaístas serão feitos mais adiante. Mas primeiro retornemos às experiências da década de 1920 referentes aos jovens bolonheses: Escrever como destruição, escrever como primado da autonomia sobre o institucional, como primado da inteligência criativa sobre a inteligência acumulada e codiProjeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber8 ficada. Essa foi a indicação prefigurativa da vanguarda histórica. Ruptura da relação entre atividade e espetáculo, crítica à espetaculização da obra. Isso é dadá. Reconstrução da relação entre escrita e prática, escrita como prática política. Isso é Maiakóvski, sua refutação da cisão entre movimento social e partido, entre forma cotidiana da existência e política, entre transformação da vida e mudança do mundo.22 II. No grande despertamento cultural que acompanhou a Revolução Russa e que inclusive já a havia precedido, “o poeta do casaco amarelo” assume uma posição especial: não só porque a palavra de Maiakóvski é qualitativamente distinta de tudo que existia antes dele no verso russo”23, mas porque ele queria “empurrar o tempo para diante” com sua poesia. Maiakóvski extrai sua força política das transformações sociais em torno da Revolução de Outubro, e acaba sucumbindo em 1930 em virtude da paralisação das mesmas. Isso talvez seja a razão por que Maiakóvski é tão popular entre a geração jovem da “Bolonha vermelha” – um astro das massas, o que ele sempre tinha desejado ser. Embora ele já estivesse mumificado como herói do socialismo e seu legado há muito jazesse sepultado com todas as honras, conta-se que, durante os eventos bolonheses do ano de 1977, quando demonstrantes se defrontaram com uma falange da polícia, foi ouvido o seguinte slogan mao-dadaísta: “Cara-bi-nieri / non lo-scor-dare / abbiamo Majakovskij / da ven-di-care!”24. Perplexidade de ambos os lados. Revolta das coisas havia sido o título original25 da sua primeira peça teatral. Ele designava veladamente um programa estético que veio à tona já nos primeiros experimentos cubo-futuristas e que dali por diante determinaria o trabalho de Maiakóvski para criar uma linguagem poética. “Enquanto isso, muda se curva a es- 22 “Scrivere come distruzione, scrivere come primato dell’autonomia sull’istituito, come primato 23 24 25 della intelligenza creativa sull’intelligenza accumulata e codificata. Questa l’indicazione prefigurativa dell’avanguardia storica. Rottura del rapporto fra attività e spettacolo, critica della spettacolarizzazione dell’opera. È dada. Ricostruzione del rapporto fra scrittura e pratica, scrittura come pratica politica. È Majakovskij, il suo rifiuto della scissione fra movimento e partito, fra forma quotidiana dell’esistenza e politica, fra trasformazione della vita e cambiamento del mondo.” Idem. Roman Jakobson, “Von einer Generation, die ihre Dichter vergeudet hat”, in: Slavische Rundschau, 2, 1930, p. 481. “Carabineiros / não esqueçam: / temos Maiakóvski / para vingar!” Essa fora a primeira grande obra de Maiakóvski. Como o censor transformou o nome do autor em título, chegou-se à designação Vladimir Maiakóvski, uma tragédia (1913). Essa lenda, no entanto, é no mínimo duvidosa. “Se isso de fato foi assim, então a confusão combinou bem com a intenção do autor: porque o próprio Maiakóvski desempenhou o papel principal na peça.” Marjorie L. Hoover, “Dada und das russische Theater”, in: Wolfgang Paulsen / Helmut G. Hermann (Eds.), Sinn aus Unsinn. Dada International, Bern/München, 1982, p. 217. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber9 trada / falta-lhe a língua para falar, para gritar”26, dizia em 1914, e poucos anos depois, sobre a revolução: “A gíria dos subúrbios espraiou-se pelas avenidas centrais. [...] Essa é a força elementar da nova linguagem.”27 Entre essas duas frases se situaram os anos em que um mundo transformado urgia por uma linguagem, ainda sem dispor de uma linguagem própria; anos em que uma nova realidade, a cidade industrializada com sua tremenda riqueza e sua extrema velocidade28 irrompeu no espaço da poesia, destruindo a organização das palavras e modificando sua verdade. Nas ruas, começouse a falar uma nova linguagem. E subitamente também o texto poético, como o Quadrado vermelho sobre fundo branco de Malevitch, começou a falar aquela linguagem pela qual “ansiava a nervosa vivacidade das cidades”29. Entre esses dois momentos se situam os anos do futurismo.30 Ele proporcionou a essa realidade desconhecida que, partindo da rua, espalhava-se por toda parte e, portanto, também para a linguagem, a sua escrita autêntica. A poesia do futurismo foi a poesia da megalópole moderna, das novas estruturas urbanas.31 A existência frenética da cidade, o movimento das grandes massas citadinas, o enorme aparato produtivo da indústria, o trabalho de milhões de pessoas disciplinadas pelas leis férreas da fábrica. Em seguida, as controvérsias políticas, o partido e a luta pelo comunismo. Isso constituiu um novo ritmo de vida que a poesia queria acolher dentro de si, uma realidade pulsante: “a força elementar da nova linguagem. Como a poesia pode tirar proveito dessa linguagem?”32 A realidade era nova,33 como nova era a relação entre linguagem e realidade. Enquanto a linguagem tradicional instituiu uma relação entre a palavra e a representação que permite usar as palavras de modo totalmente automático, o que então estava acontecendo de novo na linguagem significou para o futurismo antes 26 Wladimir Majakowski, “Wolke in Hosen” (1914/1915), in: Id., Werke (dt. Nachdichtung von 27 28 29 30 31 32 33 Hugo Huppert), v. 2, Frankfurt a. M., 1974, p. 16. [NdT: trad. port. in: http://pt.scribd.com/doc/24830810/Vladimir-Maiakovski-Poemas.] Wladimir Majakowski, “Wie macht man Verse” (1926), in: Id., Vers und Hammer (trad. de Siegfried Behrsing), Zürich, 1959, p. 47ss. (Huppert traduz: “a gíria dos subúrbios começou a pulsar”). “Am stärksten verändert den Menschen die Maschine [...] ein Motor von mehr als vierzig Pferdestärken zerstört die alte Moral [...] Vergessen wir nicht den Beitrag des Automobils zur Revolution [...] Ihr habt die Revolution als Schaum in die Stadt ausgegossen, o ihr Automobile. Die Revolution schaltete den Gang ein und fuhr los.” Viktor Schklowskij, Zoo oder Briefe nicht über die Liebe (1922/23), Frankfurt a. M. 1965, S. 18 ss. Wladimir Majakowski, “Ohne weiße Fahnen” (1914), in: Id., Werke, v. 5, Frankfurt a. M., 1973, p. 35. Cf. Vladimir Markov, Russian Futurism. A History, Berkeley, 1968; ver também Vahan D. Barooshian, Russian Cubo-Futurism 1910–1930. A Study in Avant-Gardism, Den Haag, 1974. Assim escreveram David Burliuk, Alexander Krutchonich, Vladimir Maiakóvski e Velemir Chlebnikov no manifesto intitulado Um tapa na cara do gosto público sobre “todos aqueles Máximo Gorkis, Bloks, Bunins” e outros: “Olhamos para a sua nulidade do alto dos arranha-céus!” In: Wladimir Majakowski, Werke, v. 5, p. 556s. Sobre o tema do urbanismo, que os futuristas converteram em seu credo literário, cf. Assya Humesky, Majakovskij and His Neologisms, New York, 1964, p. 13s.; ver também Victor Erlich, Russischer Formalismus, p. 215; e Roman Jakobson, “‘Die neueste russische Poesie’, Erster Entwurf. Viktor Chlebnikov”, in: Wolf-Dieter Stempel (Ed.), Texte der russischen Formalisten, v. 2, München 1972, p. 41. Wladimir Majakowski, “Wie macht man Verse?”, ibid., p. 47. Em 1920, Maiakóvski quis pagar ao físico que lhe pudesse explicar a teoria da relatividade de Einstein “uma cota acadêmica de mantimentos”, apud Roman Jakobson, Krystyna Pomorska, Poesie und Grammatik. Dialoge, Frankfurt a. M., 1982, p. 147. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber10 de mais nada isto: não voltar a equiparar as palavras às coisas, não encontrar palavras que sejam mais apropriadas às coisas, mas transformar o modo de produção da poesia para ser capaz de captar a realidade transformada. Nisso consistiu o grande poder de atração que o futurismo russo exerceu sobre o coletivo A/traverso, e não seria muito difícil encontrar uma explicação para isso: novas linguagens também em nosso tempo, as linguagens das máquinas “inteligentes”, da automatização do saber, seguidas do “farfalhar branco” das informações e de um novo analfabetismo telemático. “A poesia / – inteira! – / é uma viagem ao desconhecido. / Poetar / é o mesmo que minerar rádio. / Trabalho: um ano. / Rendimento: um grama. / Para inventar uma única palavra, / consome-se / milhares de toneladas / de detritos ou lama.”34 Maiakóvski falou repetidamente desse Trabalho nas palavras, da poesia como produção;35 e no seu famoso artigo “Como fazer versos?” ele fala bem explicitamente do “método correto para aprender em si o processo de produção”36. Essa é a primeira indicação que os bolonheses encontram em Maiakóvski. Mais do que pelo resultado do trabalho poético, também eles se interessam em primeira linha pelo processo, pelo trabalho poético. Pois assim eles conseguem denominar a condição essencial de uma possível transformação desse processo de produção: o sujeito. Nos “detritos ou na lama” verbal intervém um sujeito – aquele que escreve: “Espalhamos ao vento aquele velho pó linguístico e de toda a tralha ficamos só com os pedaços de ferro.”37 Com o trabalho em busca de uma nova linguagem aparece, por trás da fórmula futurista da Arte como um fazer38, também um sujeito, precisamente aquele “nós”. Aliás, a inovação criada pelo futurismo não era só de ordem temática; a importância da lição futurista reside no fato de ter captado o novo ritmo não só como objeto da poesia, como tema com o qual se ocupa o trabalho poético, mas sobretudo também como novo sujeito da linguagem, como novo olho para “examinar” a realidade.39 A escrita passa a aparecer como prática de um sujeito que abriga em si mesmo a possibilidade da transformação e o resultado do 34 Wladimir Majakowski, “Gespräch mit dem Steuerinspektor über die Dichtkunst” (1926), in: Id., Werke, v. 1, Frankfurt a. M., 1973, p. 234. 35 “Fazer poesia é um ato produtivo. Extraordinariamente difícil, extraordinariamente complexo, mas é uma produção.” Wladimir Majakowski, “Wie macht man Verse?”, ibid., p. 82. 36 “Exagero para deixar claro que o essencial do atual trabalho na literatura não consiste na apre37 38 39 ciação deste ou daquele produto pronto do ponto de vista do gosto, mas no método correto [...]”, ibid., p. 52. Wladimir Majakowski, “Wir arbeiten in Worten” (1923), in: Id., Vers und Hammer (übertr. v. Willi Reich), ibid., p. 140. Cf. sobre isso Victor Erlich, Russischer Formalismus, ibid., p. 54, 90 e 107. “L’innovazione compiuta dal futurismo non è soltanto di ordine tematico, del resto; l’importanza della lezione futurista sta non soltanto nell’aver inteso che il ritmo nuovo era oggetto della poesia, il tema di cui occuparsi nel lavoro poetico, ma soprattutto il nuovo soggetto del linguaggio, il nuovo occhio con cui ‘guardare’ la realtà.” Franco Berardi ‘Bifo’, La barca dell’amore s’ è spezzata, Milano, 1978, p. 130. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber11 trabalho poético não como história reiterada da realidade, como uma narrativa a mais, mas como nova realidade, como realidade transformada. Assim sendo, a linguagem surge como um conflito criado pelo sujeito. O texto se converte num lugar de contradições entre as forças que o formam. A escrita se converte em ação. A cidade se expressa no manifesto, mas em seguida o manifesto também passa a criar a cidade, ingressa nela para mudar sua face e as relações reais. Uma realidade escrita com gestos, com ações. A escrita é práxis imediata, uma forma de transformação real.40 O trabalho visando a uma nova linguagem também representa um novo tipo de atividade artística. E, acima de tudo, é possível vislumbrar um deslocamento do lugar em que se dá essa práxis. Esta é a segunda indicação, e talvez a mais importante, que os bolonheses extraem da poesia de Maiakóvski. “Para nós, tudo isso não é um fim em si mesmo estético. [...] Não queremos admitir nenhuma diferença entre a poesia, a prosa e a linguagem da vida real.”41 Pressuposto de uma linguagem como práxis transformada é sua proximidade resoluta com a “vida real”, com o cotidiano42: esse motivo perpassa toda a obra de Maiakóvski. “Incluam na ordem do dia a questão do cotidiano”43 não se cansava de exigir. Enquanto apelos semelhantes dos dadaístas ainda tinham um caráter consideravelmente voluntarista, agora essa exigência ficou totalmente sob o signo da revolução. De fato, revolução social, transformação da vida cotidiana e movimento revolucionário-cultural pareciam coincidir de modo singular. “Pede-se a artistas e escritores que sem demora peguem potes de tinta e com o pincel da sua própria habilidade pintem e, dessa maneira, embelezem os quadris, a testa e os peitos das cidades, das estações e do rebanho de vagões de trem que se encontram em constante fuga” consta no Decreto nº 1 aos artistas democráticos (1918), assinado também por Maiakóvski.44 Tomando a frente de todos, 40 “La città si riflette nel manifesto, ma poi il manifesto fa la città, entra a cambiarla, ed a mutarne 41 42 43 44 la faccia, a mutare i rapporti reali. Una realtà scritta dai gesti, dalle azioni; la scrittura è direttamente una pratica, una forma di mutamento reale.” Franco Berardi “Bifo”, Chi ha ucciso Majakovskij?, Milano, 1977, p. 47. Neste romance, Bifo, cofundador do Coletivo A/traverso, faz Maiakóvski viver, após o seu suicídio – simulado –, na Itália dos anos setenta do século passado. Wladimir Majakowski, “Wir arbeiten in Worten”, ibid., p. 140s. Ou então a veemente oposição ao cotidiano, já que, como Jakobson dá a entender, a palavra byt, que habitualmente é traduzida por “cotidiano”, designa antes as bases apáticas da sociedade russa, que se contrapõem ao impulso criativo; mas designa também o odioso clichê e a banalidade do cotidiano, que têm sua antítese na “avalanche de normas”; cf. Roman Jakobson, “Von einer Generation, die ihre Dichter vergeudet hat”, ibid., p. 484s. Victor Erlich também tenta explicar essa palavra intraduzível: ela não designa “uma ordem social determinada, mas justamente o princípio da ordem ou da estática, ou seja, tudo que cheira a tradição, hábito, rotina; em suma, aquilo que o jovem inglês chamaria de ‘establishment’”; cf. Victor Erlich, “The dead hand of the future: The predicament of Vladimir Mayakovsky”, in: Slavic Review, v. 21, n. 3, 1962, p. 434. Apud Roman Jakobson, “Eine Generation, die ihre Dichter vergeudet hat”, ibid., p. 484. Apud Angelo Maria Ripellino, Majakowskij und das russische Theater der Avantgarde, Köln/Berlin, 1964, p. 84. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber12 Maiakóvski se dedicou à revolução.45 Ele idealizava manifestos, pintava cartazes,46 recitava em toda parte seus poemas. Neles estavam contidas as lutas sociais, a linguagem da rua, a cidade moderna em movimento: “Linguagem da vida real, do cotidiano”47. O que fascinava os jovens bolonheses em Maiakóvski não era tanto sua adesão à revolução, mas o modo como, em seu labor, a busca de toda uma geração por novas formas de expressão e de vida se cruza com a dinâmica da Revolução de Outubro. E naturalmente o fato de Maiakóvski, no mesmo fôlego, falar do amor: Cento e cinquenta milhões e as Cartas a Lilia. É indicação de Maiakóvski, primeiro bolchevista e depois poeta: ele não se ateve a lamentar a separação entre arte e vida, nem a criticar o espetacular do texto, espetaculizando a própria crítica. Maiakóvski participou do processo revolucionário e encontrou ali o lugar em que a separação foi superada na prática.48 O Coletivo A/traverso menciona ainda outra diferença decisiva em relação ao dadaísmo: em contraposição ao isolamento deste nos cafés e nas galerias, os artistas soviéticos que simpatizavam com a revolução faziam questão de que a arte fosse um assunto público.49 Eles tinham a concepção de que as massas, depois que sua situação social começou a mover-se devido às transformações políticas, ao menos deveriam também participar da “produção da arte”. E por um momento histórico, a aliança entre arte e revolução parecia ter se tornado possível, a distância entre artistas de vanguarda e massas parecia ter sido abolida. Logo, porém, o projeto de renovação cultural se mostrou inexequível. Ao período do entusiasmo revolucionário e dos instantes turbulentos repletos de liberdade artística seguiu-se o período da NEP50, da construção, do trabalho incansável no “front cultural” da revolução, a atividade de Maiakóvski na ROSTA51, Nós trabalhamos em palavras, mas também as primeiras querelas com o Partido Comunista. Em 1918, Maiakóvski já escreveu: “Na 45 Duas linhas de um telegrama sejam suficientes: “Concordar ou não concordar? Esta pergunta 46 47 48 49 50 51 não existia para mim (nem para os demais futuristas de Moscou). Era a minha revolução. Fui para o Smolny. Trabalhei. Fiz tudo o que aparecia para fazer.” Wladimir Majakovskij, “Ich selbst. Autobiographie 1922-1928”, in: Id., ICH. Ein Selbstbildnis, Frankfurt a. M., 1973, p. 66. É por isso que Edward J. Brown, o biógrafo de Maiakóvski, intitula o seu estudo Mayakovsky. A Poet in the Revolution [Maiakóvski: um poeta na revolução], Princeton 1973. “É característico que, naquele tempo, surgiu simultaneamente entre os dadaístas franceses e nos futuristas russos a ideia de que a poesia não deveria aparecer em forma de livro, mas em cartazes nas ruas.” Elisabeth Lenk, Der springende Narziß. André Bretons poetischer Materialismus, München, 1971, p. 33. Wladimir Majakowski, “Wir arbeiten in Worten”, ibid., p. 140. “È l’indicazione di Majakovskij, prima bolscevico e poi poeta: lui non è stato tanto a lamentare la separatezza dell’arte dalla vita, nè a criticare la spettacolarità del testo spettacolarizzando la critica stessa. Majakovskij ha preso parte al processo rivoluzionario e là ha trovato il punto in cui la separazione veniva praticamente superata.”, “Sulla strada di Majakovskij”, in: A/traverso, quaderno 3, ibid., p. 2. “Eu, carregador de fezes, / especialista sanitário, / convocado e tomado / pela revolução, / fugi para o front / deixando os jardins senhoriais / da poesia, / essa mulher cheia de caprichos.” Wladimir Majakovskij, “Aus vollem Halse”, in: Id., Aus vollem Halse (trad. alemã por Karl Dedecius), Ebenhausen, 1983, p. 119. Sigla em russo para Nova Política Econômica. ROSTA era a antiga sigla em russo para a “Agência Russa de Telégrafos”, a atual TASS. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber13 arte e na educação só tem puxa-sacos. Teriam preferido me mandar pescar em Astracã”.52 O isolamento das jovens repúblicas soviéticas, a guerra civil e então a industrialização acelerada provocaram uma série de conflitos insolúveis. As transformações sociais foram forçadas a caber no espartilho apertado do plano – com os conhecidos processos da repressão política. A transição do coletivismo da revolução para a coletivização stalinista forçada só podia ser imposta mediante o terror. E paralelamente à decretação de uma identidade de socialismo e aumento de produtividade, desenvolveu-se entre a vanguarda soviética – tolerada, encampada ou impedida e, por fim, liquidada – uma crise de longa duração que desembocou num processo de cisão. Pois quando a realidade elevada à condição de comunismo foi declarada imutável e a ocupação artística deveria limitar-se a glorificar essa única realidade possível, a cultura acabou por submeter-se às normas da produtividade. “Abaixo a poesia! Viva a execução do plano!” decretaram as organizações que deram seguimento53 àquela que um dia fora a vanguarda futurista. O experimento teve um final funestamente produtivista. Ataco o mundo sem temor. Mas é esquisito: as palavras entram de um lado e saem do outro.54 A partir desse curso dos acontecimentos é que A/traverso define a constelação dilacerada em que a vanguarda histórica se moveu: De um lado a vanguarda histórica, de outro tentativas de transcrição coletiva: o culto proletário, os correspondentes operários, a liga dos escritos proletários. Dois fragmentos que não souberam unificar-se, mas que representavam a continuidade da onda revolucionária. [...] Não souberam unificar-se. Não tiveram essa possibilidade histórica. Aquele setor que tentou liberar a criatividade das massas no terreno da escrita não logrou transformar o modo de produção do texto [...]. E a vanguarda histórica não teve a possibilidade de ligar-se com as massas, a não ser por breves instantes ou pela intermediação dos partidos comunistas da Terceira Internacional (pense-se nas experiências do movimento surrealista). Maiakówski representa a consciência dessa fratura e a tentativa ou ao menos a necessidade de superá-la. 52 Wladimir Majakovskij, “Ich selbst”, ibid., p. 66. 53 Maiakóvski – assim diziam em 1929 boatos persistentes – não teria permissão para escrever 54 textos líricos na RAPP (sigla em russo da Associação Russa de Escritores Populares); além disso, ele deveria frequentar “preleções especiais” sobre os princípios poéticos da RAPP. Cf. Vahan D. Barooshian, Brik and Mayakovsky, Den Haag/Paris/New York, 1978, p. 100s. Wladimir Majakowski, “Das bewußte Thema” (1923), in: Id., Werke, v. 2, ibid., p. 220. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber14 Correspondentes operários, mas também transformação do modo de produção do texto; novo ritmo da poesia.55 A impossibilidade de unificar esses dois momentos e superar o isolamento da vanguarda em relação às massas se tornou manifesta no momento em que o processo revolucionário se institucionalizou, se transformou em Estado, interrompeu o fluxo da transformação – contrapôs-se a ele. “O maravilhoso caos da revolução russa”56 foi substituído por uma ordem empunhando uma bandeira vermelha. “Acabou a carnificina […]. Somente no Kremlin, em forma de bandeira vermelha, brilham os farrapos do poeta ao vento.”57 Maiakóvski reconheceu na dupla derrota tanto do movimento revolucionário como da vanguarda artística a sua própria: “O amor definha, / junto com a coragem e a educação, / esta época / entope-nos / os vasos cerebrais”58. E ele se matou com um tiro. “O barco do amor / espatifou-se contra o ser.”59 Ou: “Eles se vingaram de Maiakóvski”60, como Brecht respondeu sem rodeios a pergunta pelo fim do poeta. Caído inicialmente no esquecimento oficial, sendo depois prescrito pelo Estado61 no tempo do “biedermeier stalinista”62, não foi possível, apesar da canonização de sua obra como suprassumo da poesia socialista realmente existente, fazer desaparecer o legado poético de Maiakóvski. Porque sua intenção consistia justamente em atingir aquele ponto, no qual a poesia gera um processo de transformação; no qual ela, através de suas transformações internas, produz um efeito em outra área: a da ação. 55 “Da un lato l’avanguardia storica, dall’altro tentativi di trascrizione collettiva: il proletkult, i 56 57 58 59 60 61 62 corrispondenti operai, la lega degli scrittori proletari. Due spezzoni che non hanno saputo unificarsi, ma che rappresentavano la continuazione dell’ondata rivoluzionaria [...] / Non hanno saputo unificarsi. Non hanno avuto questa possibilità storica. Il settore che faceva uno sforzo per liberare la creatività delle masse sul terreno della scrittura non ha saputo trasformare il modo di produzione del testo [...]. E l’avanguardia storica non ha avuto la possibilità di legarsi alle masse, se non per momenti limitati, o per la mediazione dei partiti comunisti terzinternazionalisti (si pensi all’esperienza del movimento surrrealista). / Majakovskij è la consapevolezza di questa frattura, e il tentativo, o almeno il bisogno di superarla / Corrispondenti operai, ma anche trasformazione del modo di produzione del testo; ritmo nuovo della poesia.”, “mao-dadaismo: scrittura/pratica antiistituzionale”, in: A/traverso, quaderno 1, ibid., p. 28. Jean Pierre Faye, Theorie der Erzählung, ibid., p. 156. Wladimir Majakowskij, Darüber [Sobre isso], apud Roman Jakobson, “Eine Generation, die ihre Dichter vergeudet hat”, ibid., p. 486. (Na edição das obras em alemão, esse poema traz por título “Das bewußte Thema [O tema consciente]”.) Wladimir Majakowski, “Das bewußte Thema”, ibid., p. 220. Wladimir Majakowski, “An alle” (carta de despedida 1930), in: Id., ICH, ibid., p. 215. (Jakobson traduz de modo mais preciso “no cotidiano”, precisamente o termo byt; in: Roman Jakobson, “Eine Generation, die ihre Dichter vergeudet hat”, ibid., p. 490.) Apud Joachim Seyppel, Die Unperson oder Schwitzbad und Tod Majakovskijs, Frankfurt a. M., 1979, p. 68. No XII Congresso dos Sovietes, Stalin por assim dizer providenciou um segundo assassinato de Maiakóvski, ao proclamar: “ Maiakóvski foi e sempre será o melhor e mais talentoso poeta da nossa era soviética” (Pravda, 17.12.1935). Michael Holquist, “Prologue” zu: Michail Bakhtin, Rabelais and His World, Bloomington, 1984, p. xix. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber15 Cento e cinquenta milhões e as Cartas a Lilia Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber16 É com esse Maiakóvski que nos deparamos na Bolonha da década de 1970. Não é só por corporificar a tensão entre felicidade pessoal, transformação da vida e processo revolucionário que ele se converte exatamente ali em figura popular. Também porque a sua linguagem investe maciçamente na ação, que naquela época se liga com a busca por novas formas de expressão fora do quadro institucional da arte: A prática textual de Maiakóvski se converte hoje em atividade de massa: os jovens proletários [...] começaram a escrever: nas grandes cidades, com as sessões maciças de jazz improvisado, com as escritas em murais, com a destruição do mecanismo do espetáculo, com a apropriação das mercadorias. Uma escrita ainda puramente negativa, sintomática; uma linguagem ainda preponderantemente constituída de silêncio.63 Para chegar daquele silêncio até “toda a potência da voz”64 do poeta suicidado, A/traverso se lança “no caminho de Maiakóvski”. Transformação do modo de produção do texto, relação direta da escrita com o cotidiano e conexão com a criatividade das massas: estes são os passos elementares sulla strada di Majakovskij. “Fare poesia e non straordinario [Fazer poesia e não horas extras]”65 é o teor da primeira instrução a ser cumprida nesse caminho. III. Mais um morto no labirinto da vanguarda. Mas nem Artaud matou a si mesmo. Afirma-se que ele estava sentado aprumado quando foi encontrado. A exemplo de Maiakóvski, também Artaud sofreu uma derrota. E de modo semelhante ao que o coletivo bolonhês decifra o suicídio de Maiakóvski,66 ele tenta interpretar também o demorado morrer de Artaud como encarnação daquela exclusão e daquele isolamento a que Artaud foi submetido por ter acolhido o projeto da vanguarda de modo desmedido, por tê-lo levado adiante com coerência, com decisão e com radicalidade existencial. Referindo-se a uma época em que a rejeição da atividade cultural pelos surrealistas perigava tornar-se uma decisão aristocrática, conta-se sobre Artaud a seguinte história: “Trabalhadores do teatro encontram-no estirado no interior do teatro perto da ca63 “L’operatività testuale di Majakovskij diviene oggi attività di massa: i giovani proletari [...] 64 65 66 hanno cominciato a scrivere: scrivere nella metropoli, con le jam-session di massa, con le scritte sui muri, con la distruzione dei meccanismi spettacolari, con l’appropriazione delle merci. Una scrittura ancora soltanto negativa, sintomatica; un linguaggio fatto ancora prevalentemente di silenzio.”, “Sulla strada di Majakovskij”, in: A/traverso, quaderno 3, ibid., p. 2. Wladimir Majakowski, “Mit aller Stimmkraft”, in: Id., Werke, v. 2, ibid., p. 423ss. “Sulla strada di Majakovskij”, ibid., p. 2. A forma mais marcante é a do título do romance de Franco Berardi, Chi ha ucciso Majakovskij? [Quem assassinou Maiakóvski?], ibid. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber17 lefação. Quando Pitoëff67 fica sabendo que Artaud pernoita no teatro, ele lhe providencia um quarto de hotel a preço acessível na Avenida Montaigne. Para não causar suspeita nos locatários – toda a posse de Artaud consistia numa mala que ele carregava com ele o tempo todo –, alguns colegas lhe emprestam uma segunda mala, vazia, para a ‘mudança’.”68 E enquanto os seus amigos surrealistas flertavam com uma aproximação ao Partido Comunista, Artaud desconfiava não só de sua concepção de revolução. A totalidade dos intelectuais lhe é suspeita. Também por isto o Coletivo A/traverso faz referência a Artaud: O homem tratado como um cão de guarda é um cão de guarda. O intelectual é petição, comunicado, exigência impotente, esquema, delegado, não é corpo, nem sujeito, como disse o pobre Antônio: ele é funcionário do consenso.69 Porém, sobretudo porque o abismo que há entre Artaud e os intelectuais, corresponde à sua distância belicosa em relação à cultura ocidental: a revolta contra o signo escrito, que teria se afastado da respiração e da carne, ou seja, da vida real, marca a linha de confrontação traçada por Artaud. No limiar da escrita, que é simultaneamente característica sacralizante dos intelectuais e pedra angular da civilização europeia, ele busca por uma identidade original, que dela foi banida. Nisso se anuncia a originalidade de Artaud frente a toda experiência da vanguarda histórica e em especial frente ao surrealismo francês70. Enquanto as intenções de Artaud oscilam em torno de dois motivos predominantes, a arte e a vida, seu estranhamento recíproco e a revolução como última anulação das contradições, manifesta-se nele um deslocamento global da confrontação.71 Esse tipo de concepções lhe pareceu demasiado acanhado e os que nele se baseavam, demasiado crédulos. Pois, o modo como o papel estável da ideologia na organização cultural de uma sociedade foi subestimado e outros elementos importantes da ruptura foram negligenciados fê-lo temer que, uma vez mais, tudo ficaria como estava. Artaud considerou imprescindível estender o questionamento do existente a todos os âmbitos da existência: em todo lugar em que a linguagem escrita se havia imiscuído, uma ordem hostil ao humano há muito já havia sido posta em movimento.72 67 O seu diretor teatral daquela época. 68 Elena Kapralik, Antonin Artaud – Leben und Werk des Schauspielers, Dichters und Regisseurs, München, 1977, p. 41. 69 “L’uomo trattato come un cane da guardia è un cane da guardia. L’intellettuale è petizione, 70 71 72 comunicato, impotente richiesta, schema, delegato, non corpo, non soggetto, come diceva il povero Antonio: funzionario del consenso.”, “il Rantolo dei Rantoli”, in: A/traverso, quaderno 3, ibid., p. 7. (Sem dúvida, essa passagem também é uma alusão ao panfleto de Paul Nizan Les Chiens de Garde [Os cães de guarda], Paris 1932.) O “último grito do dadaísmo”, Antonin Artaud, apud Elena Kapralik, Antonin Artaud – Leben und Werk des Schauspielers, Dichters und Regisseurs, ibid., p. 49. Cf. sobre isso Jacques Derrida, “Die soufflierte Rede”, in:Id., Die Schrift und die Differenz, Frankfurt a. M., 1972, p. 291s., nota 82. A frase mais famosa, sempre citada, nesse contexto é esta: “Tudo que foi escrito é porcaria.” Antonin Artaud, Die Nervenwaage, Berlin, 1961, p. 34. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber18 Ele queria encontrar o caminho de volta para a originalidade73, o que queria dizer, para a linguagem do corpo, que desde a Renascença estava cada vez mais soterrada. Para o Coletivo A/traverso, esse reinserção do corpo no espaço da linguagem se reveste de importância central. Justamente em sua ausência, o corpo aparece como materialidade oculta da linguagem. A linguagem erige sua ordem convencional sobre a base da dessexualização, do ocultamento da libido textual, da materialidade e sensualidade da operação que consiste na ordenação de sinais.74 Procedendo de modo semelhante ao pensar que oculta sua historicidade – no fim das contas, trazida à luz por Marx –, a linguagem passa tacitamente ao largo de sua dimensão viva, escondendo e, ademais, reprimindo o corpo. Artaud solapa essa tranquilização da linguagem; ele a entrega aos desejos reduzidos ao silêncio, às fibras emudecidas da existência humana. Desse modo, ele realizou – na opinião de A/traverso – uma desmistificação análoga à do materialismo histórico: na sua linguagem vem à luz uma realidade que, até aquele momento, havia se subtraído a qualquer escrita e, em consequência, a qualquer historiografia. Ou seja, quando se redescobre a pulsação, as contradições, o prazer e o desgosto, que estão por trás da produção da linguagem (na medida em que ela é liberta da formalização convencional), torna-se possível descobrir o movimento histórico (não ontológico), que produz a linguagem, que enche de sinais o espaço vazio das relações interpessoais, o espaço em branco da página.75 É disso que falam – de modo tão individualista quanto universal – os textos de Artaud. Suas glossolalias proclamam “qu’il y a / quelque chose / à quoi faire place: / mon corps”76. Prover lugar para o corpo. Para o meu próprio corpo. Como se sabe, Artaud escolheu o teatro como lugar privilegiado para isso – justamente “porque a dança / e consequentemente o teatro / ainda não começaram a existir”77. Para prover lugar para o corpo, deve-se, segundo Artaud, romper com o teatro convencio73 “Ou, até mais simples, para os hábitos de vida da Idade Média”; Antonin Artaud, apud Jacques Derrida, “Die soufflierte Rede”, ibid., p. 292. 74 “Il linguaggio costruisce il suo ordine convenzionale sulla base della de-sessualizzazione, 75 76 77 dell’occultamento della libido testuale, della materialità e sensualità dell’operazione consistente nell’organizzare segni.”, “Leggere nella merda“, in: A/traverso, quaderno 2, mar./1976, p. 15. “Riscoprendo cioè le pulsioni, le contraddizioni, il piacere e il disgusto che sta dietro alla produzione linguistica (nella misura in cui viene liberata dalla formalizzazione convenzionale), è possibile scoprire il movimento storico (non ontologico) che produce il linguaggio, che riempie di segni lo spazio vuoto dei rapporti interpersonali, lo spazio bianco della pagina.” Ibid. “Que / há algo / a que preparar lugar: / ao meu corpo”, Antonin Artaud, apud Tel Quel, n. 20, Paris, 1965, p. 23. Antonin Artaud, “Das Theater der Grausamkeit”, in: Id., Letzte Schriften zum Theater, München, 1980, p. 39. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber19 nal, com aquele teatro da interpretação e da repetição, no qual o não representável permanece oculto e que leva a pessoa a recuar amedrontada para dentro de si mesma.78 A destruição de todo conceito de imitação está ligada com o ataque ao texto. “No teatro, como o concebemos aqui (em Paris, no Ocidente), o texto é tudo.”79 Artaud lutou toda a sua vida contra o teatro de palavras, pela eliminação da “tirania” do texto e contra os sinais escritos, que reprimem o grito e a possibilidade da voz desarticulada: “Quando digo que não encenarei nenhuma peça escrita, quero dizer que não encenarei nenhuma peça baseada na escrita e na palavra [...]; e que até mesmo a parte falada e escrita o terá um novo sentido”.80 Ele quer resgatar a articulação, o som, a intensidade de dentro das masmorras da capacidade de expressão humana lacradas com a escrita. Ir além de sua dominação pelas palavras – pois para ele não está cabalmente provado que a linguagem das palavras é a melhor possível.81 Artaud confronta a arbitrariedade monótona da “linguagem habitual formada de palavras” e do sentido fixado por escrito com a poesia de sua hieroglífica82 é com a consciência mirrada daquilo que não se aquietou na palavra. “Se a confusão é o sinal dos tempos, vislumbro a razão para essa confusão na separação entre as coisas e as palavras, representações e sinais que as significam.”83 O fato de a unidade de palavra, coisa e conceito ter sido perdida significa para Artaud, antes de tudo, isto: parar de transmitir conteúdo, na medida em que este não se esgotar totalmente na presença de sua efetuação. Nesse tocante, o teatro é, para ele, acontecimento imediato. Artaud que erradicar a repetição, toda e qualquer representação. E simultaneamente acabar com todas aquelas diferenciações que conferem à teatralidade clássica sua identidade circunscrita. Representado/representante, significado/significante, autor/diretor/ator/espectador, palco/auditório, texto/interpretação, cada um dos elos nessa interminável cadeia da representação deve ser rompido. Artaud procura fundir na comunicação imediata os diversos momentos que estruturam a representação. “Imbuído da concepção, segundo a qual a massa pensa primeiro só com os sentidos e é absurdo dirigir-se à sua capacidade de compreensão, como no habitual teatro psicológico, o teatro da crueldade estabelece como objetivo retornar aos espetáculo de massa; buscar no movimento das massas expressivas, mas impelidas convulsivamente umas contra as outras, algo daquela poesia que há nos dias hoje tão raros em que o povo sai às ruas, nas festas 78 É uma empresa impossível, querer descrever aqui os ataques de Artaud ao teatro, apresentados com veemência impetuosa; cf., porém, Jacques Derrida, “Das Theater der Grausamkeit und die Geschlossenheit der Repräsentation”, in: Id., Die Schrift und die Differenz, ibid., p. 351-379; ver também Maurice Blanchot, “Die grausame poetische Vernunft”, in: Antonin Artaud, Die Nervenwaage, ibid., p. 9-18. 79 Antonin Artaud, Das Theater und sein Double, Frankfurt a. M., 1969, p. 126. 80 Ibid., p. 119s. 81 Ibid., p. 115. 82 “Com o hieróglifo de um fôlego quero redescobrir a ideia do teatro sagrado.” Ibid., p. 162. Sobre a afinidade entre hieróglifos e linguagem onírica cf. Jacques Derrida, Die Schrift und die Differenz, ibid., p. 295s. e 365ss. 83 Antonin Artaud, Das Theater und sein Double, ibid., p. 10. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber20 e nas multidões de pessoas.”84 A intenção de Artaud de desagregar o teatro tradicional desemboca na visão belígero-harmônica da festa: nela, por fim, será abolida a barreira entre palco e plateia e, junto com ela, a passividade e não participação do público, que passa a ter parte como primeira pessoa, como sujeito da ação, de modo perigoso e ativo, na encenação. “Porém, não é no palco que se deve procurar isso hoje, mas na rua; e quando se oferece à massa de pessoas uma oportunidade para mostrar sua dignidade humana, ela sempre o fará.”85 No “teatro da crueldade”,86 que pretende ser tanto dissolução, ruptura do real, quanto projeção de uma realidade totalmente diferente, não deve mais haver público nem espetáculo, nem texto, nem instruções – o que tem lugar é uma festa, um ato, um gesto definitivo e singular, um acontecimento coletivo. “Romper a barreira da linguagem para abraçar a vida: isto é fazer teatro ou renovar o teatro”, escreveu Artaud em 1936,87 e certamente não é por acaso que o Coletivo A/traverso dedica atenção especial à sua obra numa situação em que as festas e os eventos de massa são parte do cotidiano das grandes cidades italianas e a “multidão que sai às ruas” marca a vida metropolitana. Sintomaticamente, porém, esse interesse por Artaud se volta apenas em segundo plano para o seu projeto de um teatro do futuro; mais importante do que isso parece ser a influência de sua linguagem, que consegue avançar até o limite extremo representado pelo inconsciente. Quando Artaud fala do teatro, o tema sempre é também a linguagem. E sobretudo o corpo. Nas glossolalias de Artaud, em sua pronúncia peculiar e nos hieróglifos, nas anomalias sintáticas, que multiplicam as de Um lance de dados, de Mallarmé, continuamente se expressa em forma de linguagem algo que bagunça toda a sua estrutura. sinais que não obedecem à razão, irrepetíveis, que se desvanecem, polivalentes: sinais não significantes, linguagem no espaço, respiros e gritos. Os bolonheses os leem como intervenção do corpo numa ordem linguística que quer subordinar tudo à compreensibilidade e à univocidade. A libertação do corpo introduz um significante que delira.88 O corpo é o inconsciente. Ele é polissêmico e intenso e se contrapõe à compreensibilidade universal que a linguagem reivindica produzir. 84 Antonin Artaud, “Das Theater und die Grausamkeit”, ibid., p. 90. 85 Antonin Artaud, “Schluß mit den Meisterwerken”, ibid., p. 81. 86 “Todos que quiserem saber o que significa ‘teatro da crueldade’ deveriam se ater aos escritos do 87 88 próprio Artaud.” Peter Brook, Der leere Raum. Möglichkeiten des heutigen Theaters, München, 1975, p. 59. Antonin Artaud, Das Theater und sein Double, ibid., p. 15. “La liberazione del corpo introduce un significante che delira”, “Leggere nella merda”, in: A/traverso, quaderno 2, ibid., p. 15. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber21 A compreensibilidade é, ademais, um fetiche que força a contradição real a entrar nos esquemas de uma relação entre signo e significado mistificadamente dada de uma vez por todas.89 Artaud acaba com esse “de uma vez por todas” da relação estável entre signo e significado. A sua poesia procurar escapar às atribuições comuns de significado. Ela opera com recursos da música, do sonho, do não-sentido, do delírio: “Não se trata de reprimir a palavra articulada, mas de conferir às palavras mais ou menos o significado que têm no sonho”.90 No caso mais extremo, a mensagem intelectual perde sua importância. Nesse caso, surgem efeitos que destroem não só as convicções e os significados convencionais, mas também a própria sintaxe, que é a que garante a consciência de identidade mediante a diferenciação entre o objeto significado e o eu enunciador.91 Embora no ritmo e na entonação92 também atue uma energia formativa, a linguagem glossolálica de Artaud com frequência lembra o balbuciar desarticulado de uma criança ou o tartamudear psicótico. Porém, o contraste em relação ao infantil ou demente consiste justamente na formação arbitrária de sinais “incompreensíveis”, que não são passíveis de tradução para os códigos socialmente reconhecidos. Não obstante, em Artaud, a posição do sujeito muda radicalmente. O fluxo incontido da articulação do inconsciente faz com que ele seja ameaçado pelo colapso da função de atribuir sentido. Porque aquele movimento que tem como ponto de partida a destituição do texto, visando trazer à tona todas as instâncias do inconsciente, inevitavelmente chegará no ponto em que não haverá mais diferença entre a mensagem e sua comunicação – em que a identidade do sujeito e sua diferença em relação ao restante do mundo entra em crise. Artaud tentou – por exemplo, por meio da experiência com o “peyotl” – romper essa distinção, essa identidade separada. E ele conhecia bem a experiência da segregação e marginalização psiquiátricas, a punição que a sociedade do desempenho reserva para quem questiona os limites do sujeito individual.93 89 “La comprensibilità, poi, è un feticcio che costringe la contraddizzione reale entro gli schemi di 90 91 92 93 un rapporto mistificatoriamente dato una volta per tutte fra segno e senso.”, “Soggetto collettivo che scrive A/traverso”, in: A/traverso, abr./1975, p. 3. Antonin Artaud, “Das Theater und die Grausamkeit”, in: Id., Das Theater und sein Double, ibid., p. 100. Cf. Julia Kristeva, “Das Subjekt im Prozeß: Die poetische Sprache”, in: Jean-Marie Benoist (Ed.), Identität. Ein interdisziplinäres Seminar unter Leitung von Claude Lévi-Strauss, Stuttgart, 1980, p. 195ss. Como, por exemplo, na gravação da peça radiofônica Pour en finir avec le jugement de dieu (1947), apresentada pelo próprio Artaud. “Artaud (ad esempio tramite l’esperienza del ‘peyotl’) ha tentato di rompere questa distinzione, questa identità separata. Ed ha ben conosciuto l’esperienza della segregazione e dell’emarginazione psichiatrica, la sanzione che la società della prestazione riserva a chi mette in discussione i limiti del soggetto individuale.”, “Leggere nella merda”, in: A/traverso, quaderno 2, ibid., p. 15. (Cf. sobre isso Antonin Artaud, “Der Peyotl-Ritus der Tarahumaras”, in: Id., Die Tarahumaras. Revolutionäre Botschaften, München, 1975, p. 10-33. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber22 A consciência que Artaud tinha dessa situação era extremamente lúcida e rude – mas também monótona e árida, e isto não só de um jeito desesperadamente individual. Artaud levanta o problema da existência humana sem que lhe tenha sido possível desafiar o inconsciente coletivo.94 Sem conseguir alcançar as forças imaginativas das massas, ele ficou isolado,95 enquanto outros, como Aragon, definharam no Partido Comunista. E a resposta da ordem social a tal procedimento resoluto é bem conhecida. Sempre que alguém expressa seu desejo independentemente dos modelos de satisfação previstos e transforma a defesa dessa expressão em sua forma de vida96, a instituição psiquiátrica comparece para exorcizar aquilo que transgride a norma social: encerrando em instituições e tentando tirar as consciências da cabeça – como aconteceu com Artaud durante anos;97 foram empregados contra ele todos os métodos deploráveis, dos quais a instituição sabe muito bem servir-se, ao interpretar e normalizar a linguagem da transgressão e estigmatizá-la como divergente, psicótica, esquizofrênica, associal. Ou, no caso limítrofe, ela é admitida como arte, como linguagem da obra de arte. A linguagem esquizofrênica, a linguagem da divisão, é a forma em que se expressa a vontade de colocar o corpo novamente em cena, a vontade de prover lugar para o corpo, de afirmar sua irredutibilidade ao desempenho sexual, de liberar o desejo. A divisão fala. A esquizofrenia, a recusa de falar a partir de um único lugar, de falar unicamente como indivíduo, a vontade de interromper a lógica e a linguagem compreensível constitui a tradução linguística e comportamental de uma ruptura das cadeias de significados em todos os níveis. É preciso reconstruir como Artaud implícita e explicitamente perseguiu esse objeti- 94 “É preciso acabar com essa concepção de obras magistrais reservadas a uma assim chamada 95 96 97 elite e que a massa não entende, e dizer para si mesmo que o espírito não toma conhecimento de zonas especiais da cidade, como as que estão reservadas a encontros sexuais secretos. [...] Se Shakespeare e seus epígonos com o tempo nos persuadiram da concepção de uma arte pela arte, estando a arte de um lado e a vida de outro, seria até possível repousar consoladamente sobre essa concepção ineficaz e podre pelo tempo em que a vida lá fora ainda resistisse. Contudo, são demasiado numerosos os indicativos que nos permitem reconhecer que o que até agora nos permitiu viver não resistirá por mais tempo, que estamos todos loucos, desesperados e doentes. E nos conclamo a agir contra isso.” Antonin Artaud, Das Theater und sein Double, ibid., p. 80 ss. “E todos os mendigos, operários e cafetões de Marselha me seguiram, e um motorista de táxi quis me levar de graça, e um homem da multidão me deu um revólver para me defender da polícia” (1945), Antonin Artaud, Briefe aus Rodez/Postsurrealistische Schriften, München, 1979, p. 9. “Porque a vida não é esse tédio destilado, no qual se mortifica nossa alma há sete eternidades; ela não é esse torniquete infernal, no qual mofam as consciências, e que precisa de música, poesia, teatro e amor para explodir de tempos em tempos – mas tão poucas vezes que nem vale a pena falar disso.” Ibid., p. 29. “Eu, eu mesmo, passei nove anos num manicômio e nunca me torturei com a ideia do suicídio, mas ainda sei que eu saía de cada conversa que tive com o psiquiatra nas horas matinais ansioso para me enforcar, pois estava bem consciente de que não poderia cortar-lhe a garganta” (1947/48), Antonin Artaud, Van Gogh, der Selbstmörder durch die Gesellschaft, München, 1977, p. 30. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber23 vo, [...] para sexualizar a linguagem e historicizar a razão.98 Desse modo, Antonin Artaud, que quis devolver à linguagem a sua sexualidade, converteu-se no terceiro ponto de referência na história da vanguarda, por ter sido a terceira e extrema experiência da contradição entre vida e arte. Isolado de todos os públicos e internado até à morte por ter levantado de modo radical a questão da existência, penetrado nas suas zonas obscuras e habitado seus desertos, ele é, para o coletivo bolonhês, um garante secreto. 98 “Il linguaggio schizofrenico, il linguaggio della divisione è la forma in cui si esprime la volontà di riportare il corpo sulla scena, la volontà di fare posto al corpo, di affermare la sua irreducibilità a sesso-prestazione, di liberare il desiderio. / La divisione parla. La schizofrenia, il rifiuto di parlare da un unico luogo, di parlare unicamente come individuo, la volontà di interrompere la logica ed il linguaggio comprensibile, è la traduzione linguistica e comportamentale di una rottura delle catene significanti a tutti i livelli. Occorre ricostruire come Artaud, implicitamente ed esplicitamente abbia perseguito questo obiettivo, [...] per dare un sesso al linguaggio, storicizzare la ragione.”, “Leggere nella merda”, in: A/traverso, quaderno 2, ibid., p. 16. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber24 Só um lance inesperado é capaz de desmontar o plano do adversário. Vladimir Maiakóvski99 A questão sociológica decisiva naturalmente não é como as pessoas podem fazer algo assim, mas como elas o fazem tão raramente. Erving Goffman100 PARÓDIA FALSIFICAÇÃO SIMULAÇÃO I. Há duas espécies de mudança de código: uma que se dá como que naturalmente, na qual a linguagem se modifica em conformidade com a respectiva situação ou tema social, e uma virtual, estratégica. Enquanto a primeira é objeto de pesquisa dos linguistas,101 a segunda faz parte do ofício das sociedades secretas – e é da alçada das vanguardas artísticas. Quando as duas se combinam, a situação gera confusão. Pois foi confusão que promoveu o movimento jovem italiano, que se desenvolveu em meados da década de 1970 sobretudo no triângulo Milão–Bolonha–Roma e que, na luta contra um retrocesso para o ativismo político tradicional, assumiu fortes traços de revolução cultural. Tendo Umberto Eco constatado, logo no início do referido artigo sobre os novos bárbaros102, uma ilegibilidade fundamental desse movimento, ainda assim ele tenta ir atrás das razões para a confluência das correntes revolucionário-sociais e vanguardistas que dele fizeram parte, assim como da incompreensão pública frente a uma situação caracterizada pelo fato de “as anovas gerações falarem e viverem, em sua prática cotidiana, a linguagem (antes, a pluralidade de linguagens) da vanguarda”103. 99 Wladimir Majakowski, “Wie macht man Verse?”, in: Id., Vers und Hammer, ibid., p. 50. 100 Erving Goffman, Das Individuum im öffentlichen Austausch. Mikrostudien zur öffentlichen Ordnung, ibid., p. 378, nota 44. Cf., por exemplo, os trabalhos de John J. Gumperz, “The Sociolinguistic Significance of Conversational Code-Switching”, in: Jenny Cook-Gumperz, John J. Gumperz, Papers on Language and Context (Working Paper No. 46), Berkeley, 1976, p. 1-46; e John J. Gumperz, “Ethnic Style in Political Rhetoric”, in: Id., Discourse Strategies, Cambridge, 1982, p. 187-203. 102 Umberto Eco, “Come parlano i ‘nuovi barbari’”, ibid.; aliás, o conceito “novos bárbaros” não é novo. Benjamin falou, em conexão com a pobreza da experiência, de “introduzir um conceito novo, positivo, do barbarismo”, cujo teor utópico é determinado a partir de um antagonismo em relação ao fascismo. “Pois para onde a pobreza da experiência leva o bárbaro? Ela o leva a começar do início; começar de novo; viver com pouco; construir a partir do pouco”; Walter Benjamin, “Erfahrung und Armut”, in: Gesammelte Schriften, v. II/1, ibid., p. 215. 103 Umberto Eco, “Come parlano i ‘nuovi barbari’”, ibid., p. 55; as observações de Eco lembram em alguns aspectos a análise de Bell em The Cultural Contradictions of Capitalism; em alemão: Daniel Bell, Die Zukunft der westlichen Welt. Kultur und Technologie im Widerstreit, Frankfurt a. M., 1976. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber25 101 É dessa incompreensão que parte Eco. Segundo ele, a “alta cultura” tinha aceito aquela subversão da linguagem como utopia abstrata enquanto fora pronunciada no laboratório da arte e fora capaz de encontrar todas as possíveis explicações para ela: a arte estaria justamente tentando retratar um estado de crise, questionar o sujeito humano etc. etc. Entretanto, enquanto a alta cultura ainda se esforçava para identificar as peculiaridades na linguagem da vanguarda e segui-la para onde ela há muito já tinha se perdido em becos sem saída, os meios de comunicação de massa abriram uma saída para as implicações subversivas dos ensaios vanguardistas que passou pelas edições numeradas, pelas galerias de arte e pelos clubes de cineastas. Desse modo, essa linguagem, essa proliferação de mensagens sem código claro passa a ser entendida e inclusive praticada com perfeição por certos grupos, que se encontravam sempre fora da alta cultura, que – segundo Eco – não leram “Céline nem Apollinaire”, mas só chegaram a fazer isso por meio da música, da festa, do jornal mural e do concerto pop. Porém, essas formas de expressão só são consideradas inaceitáveis porque se constata que a linguagem da vanguarda está no meio das massas, sendo falada pelas próprias massas. No entanto, não interessam aqui tanto as motivações expostas por Eco para tal ignorância; o que interessa mesmo é que o processo de transformação posto em marcha pelos meios de comunicação de massa, que abrange desde a linguagem até os comportamentos, passa a deparar-se “com uma situação econômica e histórica real, na qual o eu dividido, o sujeito dissolvido, a síndrome da apatridia e a perda de identidade deixaram de ser alucinações experimentais ou modelos obscuros e se transformaram em condições sociais e psíquicas da vida de grandes parcelas da juventude”104. Desse modo, a vanguarda incorporada no abstrato, que supostamente sempre servia de modelo só para si mesma, de uma hora para outra readquiriu concretude tangível105. Ela volta a converter-se em modelo de finalidade extraestética: só que dessa vez para a prática de vida dos jovens nas megalópoles italianas.106 II. 104 105 Umberto Eco, “Come parlano i 'nuovi barbari'”, ibid., p. 57. É claro que o problema da diferença entre arte e vida cotidiana sempre foi um problema da vanguarda e imbricar as duas sempre foi o seu propósito mais original. Cf., por exemplo, Burkhardt Lindner, “Aufhebung der Kunst in Lebenspraxis? Über die Aktualität der Auseinandersetzungen mit den historischen Avantgardebewegungen”, in: W. Martin Lüdke (Ed.), “Theorie der Avantgarde”. Antworten auf Peter Bürgers Bestimmung von Kunst und bürgerlicher Gesellschaft, Frankfurt a. M., 1976, p. 72-104. 106 Maurizio Calvesi fala, referindo-se justamente à situação italiana, de uma “vanguarda de massa”: “Tornar-se vanguarda de massa é destino e aspiração contraditória da vanguarda.” Maurizio Calvesi, Avanguardia di massa, Milano, 1978, p. 247. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber26 Essas ponderações correspondiam muito explicitamente aos passos estratégicos do coletivo radiofônico. Não falar nenhuma linguagem incompreensível e, ainda assim, atacar a obviedade da atribuição dominante de sentido, combater as estereotipias, só foi possível “descartando pela intuição a tendência e o processo que de fato se realizou”107: o que a Rádio Alice punha em circulação logo se tornou de conhecimento geral difundido no movimento jovem e muito além dele. Por sua abertura radical a rádio é, num primeiro momento, simplesmente um fórum que não deixa os indivíduos isolados, emudecidos, sem fala ou incapazes de se fazerem compreender, como acontece de resto em toda parte da esfera informativa, que constantemente lhes deixa uma única alternativa: calar-se ou deixar que outros falam por eles. Em suma, a Rádio Alice é um ponto de encontro midiático; como se de repente houvesse uma segunda Piazza Maggiore ao lado da antiga no centro, com sua tradição social vivaz, descrita assim por Enrico Palandri: Quando a Piazza está animada, ela parece um falanstério: lugar de cortejos amorosos, de encontros breves, de olhares furtivos e da perambulagem sem fim, fácil e divertido estar lá; e isto foi em maio, o desejo de encontrar semelhantes e estranhos, apresentar-se com miudezas, pequenos gestos, poucas palavras: uma flor na casa do botão, uma gravata de estudante, um foulard, um ponto de encontro para os vaidosos e para os que não se importam com a aparência.108 Como se a Piazza109 tivesse se expandido tecnologicamente para o éter, aplica-se também à Rádio aquilo que é essencial à praça pública: “que ela mistura as pessoas umas com as outras e atrai uma pluralidade de atividades”110. Um lugar assim é, desde o começo, a Rádio Alice, um entreposto de subjetividade. Porque para os jovens bolonheses informação significa não só falar de tudo o que acontece fora de sua vida cotidiana, mas, ao contrário, sobretudo fazer circular na cidade formas próprias de expressão e de comportamento: 107 “Nello scarto fra intuizione della tendenza e processo che si realizza”, A/traverso, Dez. 1976, p. 4. 108 “Quando è bella la piazza sembra il falansterio: luogo dei corteggiamenti amorosi, dei brevi incontri, degli sguardi o del lungo bighellonare, starci dentro è facile e divertente; e questo era maggio, la voglia di simili e di diversi da te, presentarsi attraverso piccoli segni, piccoli gesti, poche parole: un fiore all’occhiello, una cravatta da studentello, un foulard, un luogo di ritrovo per i vanitosi e i noncuranti delle apparenze.” Enrico Palandri, Boccalone. Storia vera piena di bugie, Milano, 1979, p. 25s. Aliás, Roland Barthes designa o falanstério como o lugar, “cuja primeira característica não é mais a proteção, mas a circulação”; Roland Barthes, Sade Fourier Loyola, ibid., p. 129s. 109 Cuja função social e atmosfera especiais Lewis Mumford descreve de modo menos romântico, mas muito semelhante: “Plaza, campo, piazza e grand’place descendem diretamente da ágora. Na praça aberta com sua guirlanda de cafeterias e restaurantes consumam-se encontros espontâneos, conversas, reuniões e rendez-vous, que, mesmo depois de terem se tornado hábito, continuam informais”; Lewis Mumford, Die Stadt. Geschichte und Ausblick, Köln/Berlin, 1979, p. 177. 110 Richard Sennett, Verfall und Ende des öffentlichen Lebens, Frankfurt a. M., 1986, p. 27. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber27 Marcar encontros, indicar locais de encontro, difundir hábitos...111 Para isso, o modo de funcionamento do meio é modificado de acordo com as próprias intenções e as ideias que lhes ocorrem. A possibilidade constante, por exemplo, de um feedback desrespeitoso abdica das regras de jogo da comunicação de massa, segundo as quais o consumidor não fala:112 quando os ouvintes passam a figurar entre os falantes, o sujeito retorna ao interior do processo informativo. Ao informar(-se), o sujeito se reconhece, se constitui.113 Ademais, a simples oralidade já libera uma subjetividade que não é mais possível encontrar no texto-padrão. Por fim, a improvisação como procedimento expressivo trazer o inconsciente à tona ao atropelar as instâncias internas de controle; na pista de uma criatividade soterrada, a linguagem procura aproximar-se de uma lógica do tipo onírico, um modo de percepção delirante, que não é muito diferente do êxtase provocado por drogas114: “introduzir o delírio na ordem da comunicação”115, diz-se enfaticamente. O apelo ao inconsciente certamente tem como modelo os ensaios surrealistas de uma écriture automatique [escrita automática], sabendo-se, porém, também que, especialmente no caso de uma atividade de transmissão durante as 24 horas do dia, a fantasia inconsciente pode ser pobre e a escrita automática monótona. O fato de que o fluxo informacional na Rádio Alice surge espontaneamentespontan e, por conseguinte, traz consigo todo tipo imaginável de “impurezas”, não significa que ele careça de todo e qualquer cálculo comunicativo. Por um lado, com essa torrente não filtrada de vozes, cheias de lapsos, inseguranças, pausas e coisas sem sentido, repletas de digressões e incongruências, com essa linguagem que perambula livremente, o coletivo radiofônico 111 “Darsi appuntamenti, indicare luoghi di ritrovo, diffondere abitudini...”, Franco Berardi “Bifo”, La barca dell’amore s’ è spezzata, ibid., p. 160. “O consumidor não fala.” Edgar Morin, Der Geist der Zeit. Versuch über die Massenkultur, Köln/Berlin, 1965, p. 57. 113“Informando(si) il soggetto si riconosce, si costituisce.” Franco Berardi “Bifo”, La barca dell’amore s’ è spezzata, ibid., p. 150. 114 O uso de drogas que se generalizou certamente exerceu considerável influência sobre a transformação dos modos de percepção de toda uma geração; é como se a desaceleração e a alucinação se contrapusessem aos ritmos em constante aceleração tanto da vida cotidiana quanto da produção industrial. 115 “introdurre il delirio nell’ordine della comunicazione”, Collettivo A/traverso, Alice è il diavolo, ibid., p. 109 (122). Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber28 112 quer encorajar os próprios ouvintes a tomar a palavra sem pejo. Sobretudo, porém, a intenção é transgredir o uso dominante da linguagem e, através disso, a construção da realidade dos meios de comunicação de massa. Fazer espaço para o sujeito significa, então, também substituir a lógica do inconsciente pela lógica da estratégia: “PASSAGGIO ALL’OFFENSIVA ALICE FASE DUE.”116 A linguagem se transforma em campo de operações estratégicas: Um terreno, no qual se trava uma verdadeira batalha, no qual atuam desejos reais.117 Um campo de batalha, no qual se cruzam visões opostas do mundo social e no qual os contendores dispõem de armamentos muito desiguais. De um lado, uma ordem legítima ou legal, cujo poder não por último está fundado no fato de ser tido como inquestionável. E de outro, a tentativa de fazer esse questionamento, que é significativa menos por seus meios do que pela escolha do ponto de ataque: ele tem como alvo os fundamentos simbólicos da ordem social. Ora, já a possibilidade de tomar a palavra fora da instituição prevista para isso e a capacidade de tornar algo compreensível publicamente com palavras, o que até aquele momento estava restrito ao plano da experiência individual – angústias, esperanças e incertezas –, representa um desafio extraordinário, por não ser legitimado por nada. Mas isso não é tudo. Pois para além da instância institucional a partir da qual se fala, todo discurso postula sua própria institucionalidade ou, se quisermos, uma “ordem do discurso”, um ritual que faz parte dele. Dupla institucionalização: a que procede da situação enunciativa e aquela que procede de uma tipologia do discurso – político, científico, literário etc. – e igualmente lhe confere verdade. O questionamento dessa verdade é a terceira dimensão estratégica na qual opera a Rádio Alice. Ao acontecimento da multivocidade e à revolta contra o sentido fixo das palavras soma-se a ruptura do consenso social. Este não é mais nenhum sonho norteamericano como na década de 1950, nem um anything goes [vale tudo] como na década de 1960, com sua variante contracultural que dizia “do it! [faça!]”. O teor do consenso passou a ser, antes, “se não for democrático, ao menos é científico...”. 116 “PASSAGEM PARA A OFENSIVA ALICE FASE DOIS.”, A/traverso, dez./1976, p. 4. 117 “Un terreno su cui si gioca una battaglia vera, su cui agiscono desideri reali”, Collettivo A/traverso, Alice è il diavolo, ibid., p. 107 (120). Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber29 Portanto, o projeto da comunicação subversiva não aposta só na dialogicidade do meio e numa linguagem “suja”, mas também em técnicas sofisticadas: refutar a exposição oficial da realidade, deslocar a imagem do mundo, confundir o quadro de coordenadas da verdade. Uma vez mais, isso é coisa do sujeito, de uma inteligência liberada – e de uma linguagem que solapa os códigos institucionais. Pois “a melhor subversão não seria desfigurar códigos, em vez de destruí-los”?118 III. “Come s/parla il soggetto?” Portanto, como fala o sujeito, ou melhor, como ele contradiz, como diz grosserias e como se intromete na fala dos outros? O sujeito penetra nas formas da comunicação dominante e as interrompe ironicamente.119 Antes de chegar a esse ponto, pode-se observar perturbações de ordem mais casual, mas sistematicamente propiciadas, que ameaçam puxar o tapete da suposta verdade. Até mesmo nas instituições oficiais ocorrem quase forçosamente panes dessa espécie: no bloco de notícias, uma notícia sobre algum evento local ou sobre a queda do dólar é lida e, alguns minutos depois, a mesma notícia, que acabara de chegar bem fresquinha, é apresentada mais uma vez agora num tom de voz agitado; o mesmo teor, com entonação diferente. Isso ainda não prejudica necessariamente o teor de verdade da notícia. Mas isso acontece quando o locutor da Rádio Alice comenta um texto simplesmente a partir do seu não envolvimento: ele faz pequenas pausas para informar-se sobre o conteúdo, fica murmurando, para no meio da frase, dá uma risada quando acha algo divertido, passa por cima de passagens sem importância acelerando a leitura a ponto de se tornar ininteligível, em seguida tropeça num nome difícil de pronunciar, lê de novo, soletra, resmunga incomodado, busca palavras, fica em silêncio e, por fim, retoma a sua ladainha. O comentário se apossa aqui como que das lacunas do texto comentado e transforma o que nele está implícito, os dados que tacitamente estão contidos nele, em objeto da explicação. Ele procura revelar justamente aquilo que a notícia oculta, tenta ocultar, e obriga o texto a liberar o seu sentido secreto. 118 119 Roland Barthes, Sade Fourier Loyola, ibid., p. 141. “Il soggetto entra nelle forme di comunicazione dominante, le interrompe ironicamente”, “soggetto collettivo che scrive a/traverso”, in: A/traverso, quaderno 2, mar./1976, p. 17. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber30 Ao lado disso, há também as formas simples do comentário crítico: informações são corrigidas, novidades são decifradas, expressões oficiais são traduzidas, por exemplo, quando se lança mão de um “eufemismo social” para dizer que “os salários não conseguem andar no mesmo passo”, ou quando se fala de um “encontro de cúpula” para designar o encontro de dois líderes sindicais. Uma variante mais sutil é proporcionada pelo comentário que consiste numa simples repetição literal daquilo que ele comenta. Ou o locutor cita o seu contraparte profissional, assume o tom de voz formal daquele locutor, a fim de parodiá-lo e, num assomo de ironia, deixá-lo de lado – sinais de tédio e efeito de estranhamento. É possível identificar na Rádio Alice diversas técnicas de paródia e três âmbitos contra os quais elas são dirigidas preferencialmente: a linguagem dos meios de comunicação de massa, o jargão político e a retórica da publicidade. Como Michail Bachtin e outros mostraram, a paródia surge do conflito entre dois estilos linguísticos. Um texto é submetido a uma transformação sistemática, sendo, para isso, retirado do seu contexto original e inserido num novo contexto ou uma parte do texto é substituída, mas a construção geral do texto permanece a mesma. O essencial nesse procedimento é o confronto entre dois sistemas linguísticos, ou seja, a contraposição do original com sua versão distorcida, na qual justamente deve ser possível reconhecer o original e na qual se projeta uma imagem do original que desnuda as convenções do comportamento linguístico que lhe servem de base: a paródia utiliza os princípios de composição, os artifícios, os procedimentos do seu original, desvelando-os, para utilizar um termo dos formalistas russos.120 Por um lado, a paródia se volta contra o que tem caráter de fórmula, o desgastado, contra os estereótipos linguísticos, contra os clichês batidos. Mas por outro o alvo que a paródia tem em sua alça de mira é sobretudo a iluminação dos recursos artísticos, dos procedimentos adotados, das convenções de um gênero.121 Ela não quer somente expor um texto ao ridículo, trazendo à luz o caráter ridículo da linguagem parodiada, mas também forçar o receptor a voltar sua atenção para o texto original e desencadear uma reflexão mais intensa sobre a própria linguagem. Por fim, a paródia leva uma “colisão de duas atribuições de sentido”122: o original é modificado para permitir que se identifique nele um novo sentido. Porém, com a nova postura em relação ao original, descortina-se também uma nova visão da realidade. 120 Cf. Viktor Šklovskij, “Kunst als Verfahren”, in: Jurij Striedter (Ed.), Texte der Russischen Formalisten, v. I, München, 1969, p. 9-35. 121 Cf. Viktor Šklovskij, “Die Parodie auf den Roman: Tristram Shandy”, in: Id., Theorie der Prosa, Frankfurt a. M., 1966, p. 131-162; e Jurij Tynjanov, “‘Dostojevskij und Gogol’ (Zur Theorie der Parodie)”, in: Id., Die literarischen Kunstmittel und die Evolution in der Literatur, ibid., p. 78-133; um bom panorama é proporcionado por Wolfgang Karrer, Parodie Travestie Pastiche, München, 1977; e concisamente Tuvia Shlonsky, “Literary Parody. Remarks on its Method and Function”, in: Actes du IVe Congrès de l’ Association Internationale de Littérature Comparée, v. 2, Den Haag, 1966, p. 797-801. 122 Michail Bachtin, Literatur und Karneval. Zur Romantheorie und Lachkultur, München, 1969, p. 121. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber31 Os métodos de distorção da linguagem usual empregados pela Rádio Alice são extremamente variados. Eles vão de operações minimalistas como a simples troca de uma palavra ou até apenas de uma letra, do alongamento exagerado das sílabas de uma palavra ou da introdução de pausas nos momentos errados até modificações semânticas complexas; da estratégia clássica dos sinônimos – cuja receita não requer nada além de tomar palavras com significado parecido e introduzi-las em um contexto que pela lógica exige a outra palavra – até a repetição interminável de certas formas oficiais de falar, que muitas vezes também são alteradas por deformação ou exageração a ponto de causarem estranheza. O meio de comunicação em questão favorece todos os procedimentos postos à disposição pela palavra falada para não ouvir direito a linguagem: mudança de significado devido à articulação distinta, erros de pronúncia que revelam um sentido mais profundo, mudanças na ênfase, transposição de um comunicado de sua versão original para outro tom de voz. Um locutor pode empregar formas “elevadas” de falar foras dos contextos que os definem como norma, ou inversamente lançar mão de formas “baixas” de falar em contextos formais, ou seja, por exemplo, falar o dialeto em transmissões noticiosas; desse modo, consegue-se produzir efeitos cômicos, surpreendentes, zombeteiros, pois tais variações geralmente são significativas. Nessas tentativas irônicas de desmontar códigos linguísticos e superar hábitos discursivos sempre se trata de brincar/jogar com a linguagem, apropriar-se da palavra e usála de modo não convencional. Há uma transmissão, a “Faixa nº 5, ou seja, do Presidente”, que reúne algumas técnicas da paródia e que, antes de tudo, deixa entrever alguma coisa da diversão123 com a prática da comunicação subversiva:124 -------------------------- nastro n° 5, ovvero del presidente ----------------------123 Seria correto o que Roland Barthes diz? “O texto é (deveria ser) aquela pessoa desinibida que mostra o traseiro para o pai ‘política’.” Roland Barthes, Die Lust am Text, ibid., p. 79. 124 A transmissão se encontra em forma impressa in: Collettivo A/traverso, Alice è il diavolo, ibid., p. 28-31 (39–42); ela é reproduzida aqui em suas passagens essenciais. “Orfeu de Monteverdi, Prólogo – Após o segundo toque de trombeta, entra a voz / Voz 1 – Aqui os reverendos estúdios da Rádio Alice, vocês nos escutam em tantos e tantos supermegahertz de chocolate e pão-de-ló. Recebemos telegramas, cabogramas e afeganogramas, felicitando-nos e congratulando-nos pelos primeiros três séculos de atividade radiofônica. Entre outros um grande elogio do presidente que nos enche de orgulho. Passamos a lê-lo / La guardia rossa (A guarda vermelha) – baixando o volume / Voz 1 – Aqui os celestiais estúdios da Rádio Alice; passamos à leitura da mensagem do presidente / Rufar de tambores – transição para – L’internazionale do Area – baixando o volume / Voz 2 – Aos irmãos da Rádio Alice, saúde e vida longa; vida longa (coro). Ontem à noite, sexta-feira, 13 de janeiro, quando me sobreveio a dor (e minha bem conhecida solidão), a dialética entrou em mim como um escárnio da minha carne, que sofre e não entende / Aumenta o volume da música – transição para – Long live chairman Mao de Cornelius Cardew – baixando o volume / Voz 2 – Espero, encantadores irmãos da Rádio Alice, que tenham a gentileza de confirmar o recebimento desta: passei a madrugada pichando essa congratulação em cada casa de Bolonha [...] / China de Gato Barbieri – baixando o volume / Voz 1 – Aqui como sempre os sublimes estúdios da Rádio Alice, enquanto vocês escutam essa zirudela, continuamos com a leitura da mensagem do presidente [...] Voz 2 – Tenho de admitir que consto no rol dos amigos da Rádio Alice por causa da confiança que ela deposita em mim. Mas não é confiança. Ninguém tem isso. É graça. Desejo-a para vocês. Graça é o que lhes desejo. A fila anda e agora é minha vez de calar. Vosso presidente. / Volunteers de Jefferson Airplane.” Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber32 “L’Orfeo di Monteverdi prologo – dopo il secondo squillo entra il parlato Voce 1 – Qui gli studi reverenti di Radio Alice, ci state ascoltando su un tot di supermegahertz al cioccolato e pandispagna. Ci sono arrivati telegrammi, cablogrammi, afghanogrammi, ci si felicita e congratula per i nostri primi tre secoli di trasmissione. Tra gli altri una summa del presidente che ci inorgoglisce il gargarozzo. Ve ne diamo lettura La guardia rossa sfuma Voce 1 – Qui gli studi cielesti di Radio Alice, diamo lettura del messaggio del presidente Rulli di tamburi – dissolvenza – L’internazionale degli Area – sfuma Voce 2 – Ai fratelli di Radio Alice salute e lunga vita; lunga vita (coro). Ieri sera venerdì 13 gennaio, nell’insediarsi del mio dolore (e della mia ben nota solitudine), la dialettica è entrata in me come derisione della mia carne che soffre e non capisce Risale la musica – dissolvenza – Long live chairman Mao di Cornelius Cardew sfuma Voce 2 – Spero, o deliziosi fratelli di Radio Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber33 Alice, che vogliate gentilmente accusarmi ricevuta: per tutta la mattina ho scritto queste congratulazioni a ogni casa di Bologna […] Cina di Gato Barbieri sfuma Voce 1 – Qui sempre gli studi sublimi di Radio Alice, mentre ascoltate questa zirudela continuiamo la lettura del messaggio del presidente [...] Voce 2 – Debbo ammetterlo, sono tra gli amici di Radio Alice in ragione della fiducia che essa mi accorda. Ma non è fiducia. Nessuno ce l’ha. È una grazia. Ve la auguro. È una grazia che vi auguro. Si fa a turno ed ora è il mio di tacere. Il vostro presidente Volunteers dei Jefferson Airplane” Mesmo que só se possa ter uma vaga ideia do tom de voz empregado, esse exemplo mostra de sobejo como a paródia procede com seus objetos visando provocar estranhamento. E ela mostra a alegria incontida com a autoironia. Logo de início se escarnece a seriedade e autoridade da mídia de massa, zomba-se da grandiloquência em torno da eficiência técnica e expõe-se ao ridículo a autocomplacência motivada pela continuidade digna de jubileus. Em seguida, a fala redundante do locutor se sobrepõe à liturgia esclerosante dos pronunciamentos políticos. À sua seriedade, ou melhor, suportabilidade corresponde um modo de expressão preponderantemente vago, que aqui se torna “perceptível” pelo responsório da reza e levado ao absurdo na continuidade da fala. É que a política obtém seu poder intocável justamente também da abstrusidade e obscuridade de sua linguagem: antes de tudo, essa linguagem não pode ser cotidiana, caso queira impor respeito e aumentar o prestígio daqueles que proferem tais discursos. Isso se aplica igualmente aos dois grandes arraiais políticos da Itália, ou seja, tanto ao Partido Comunista como à Igreja Católica – e de modo bem especial à Nova Esquerda como sua filha desnaProjeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber34 turada. Talvez porque o coletivo radiofônico tenha algo a dizer por experiência própria, essa zirudela125 teve um efeito primoroso: o ritual perde seu efeito, a solenidade se desfaz numa gargalhada e, por fim, quando a retórica da propaganda política de repente se converte em mensagens dadaístas, chega a vez do próprio Grande Presidente calar-se. IV. Mestres da ironia foram, naquela época, os Indiani Metropolitani, os “Índios Metropolitanos”. Não é possível dizer de onde vieram e quando apareceram pela primeira vez. Se tentássemos fazer um traçado histórico do seu surgimento, provavelmente descobriríamos algumas coisas sobre as diversas correntes dentro do movimento jovem italiano, sobre a crise da esquerda marxista em meados da década de 1970 e sobre o caráter antiquado de suas formas de luta. E logo perderíamos o rumo na brenha dessa subcultura. É certo que houve momentos desse comportamento “índio” já em 1975 durante as granes festas do underground italiano, durante as danças do sol no lendário Parco Lambro de Milão e no Festival de Jazz da Úmbria. Em março de 1973, por ocasião da ocupação da fábrica da Fiat Mirafiori de Turim, os jovens trabalhadores supostamente já haviam amarrado fitas vermelhas em volta da cabeça como sinal de sua determinação e substituído os slogans políticos por gritos de guerra, por um “éaéaéaéao” espichado, por buzinaços e barulho de percussão.126 Então, no número de setembro de 1975 de A/traverso, foi publicado um artigo com o título “Notizie dalla riserva”127, que descreveu com linguagem “índia”, com metáforas que, em qualquer faroeste mediano, são postas na boca dos peles-vermelhas,128 as condições alienadas de vida dos jovens nas metrópoles da Itália: como um vegetar em reservas à margem da sociedade. No entanto, sinais de fumaça no horizonte anunciavam grandes transformações. Mas foi só no primeiro semestre de 1977 que os Indiani Metropolitani apareceram publicamente como grupo pela primeira vez, sobretudo em Roma e Bolonha. Com suas caras pintadas, roupas de cores vivas e tomahawks [machadinhas] de plástico imediatamente atraíram a atenção dos meios de comunicação.129 E a imprensa teve todos os motivos para ficar inquieta. Pois além da forma incomum de se apresentar, os 125 126 Dialeto bolonhês: “Poesia lírica de ocasião cantada”. Franco Berardi "Bifo", Angelo Pasquini, “Si fa presto a dire indiano”, in: L’Espresso, n. 16, 24 de abril de 1977, p. 136. 127 “Notícias da reserva”, A/traverso, set./1975, p. 3. 128 Algumas dessas metáforas ingressaram por breve tempo na linguagem política, como, por exemplo, “O PCI fala com língua de cobra”. 129 O papel desempenhado pela imagem do índio da indústria cinematográfica e até mesmo pelos estereótipos do século XIX do selvagem “perigoso” ou então do selvagem “nobre” é analisado, da perspectiva etnológica, por Giorgio Mariani, “‘Was Anybody More of an Indian than Karl Marx?’: The ‘Indiani Metropolitani’ und the 1977 Movement”, in: Christians, Feest (Ed.), Indians and Europe. An Interdisciplinary Collection of Essays, Aachen, 1987, p. 585-598 Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber35 forma incomum de se apresentar, os Indiani tinham um comportamento insubordinado. Eles estenderam o movimento da autoriduzione [autorredução] – conduzido principalmente por donas de casa –, que havia começado com reduções autodeterminadas de preços dos alugueis, das contas de energia elétrica, gás e telefone e havia tomado conta de bairros inteiros,130 também para outros âmbitos da vida pública. Assim, com frequência eles solicitavam ingresso livre nos cinemas chiques do centro da cidade, faziam refeições em restaurantes nobres sem pagar e nem mesmo se furtavam de participar de saques a lojas – todavia, para “apropriar-se” de coisas tão inúteis quanto trajes esportivos, licores ou varas de pescar. 130 Cf. Bruno Ramirez, “The Working-Class Struggle Against the Crisis. Self-reduction of Prices in Italy”, in: Zerowork, n. 1, dez./1975, p. 143-150; Eddy Cherki, Michel Wieviorka, “Auto-reduction Movements in Turin”, in: Semiotext(e), n. 9: Italy: Autonomia. Post-political Politics, 1980, p. 72-78; v. também Dario Fo, Bezahlt wird nicht!, Berlin, 1977; e ainda Martin W. Walsh, “The Proletarian Carnival of Fo’s ‘Non si paga! Non si paga!’”, in: Modern Drama, XXVII, n. 2, p. 211-222. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber36 durante as danças do sol no lendário Parco Lambro de Milão e no Festival de Jazz da Úmbria Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber37 supostamente haviam amarrado fitas vermelhas em volta da cabeça como sinal de sua determinação Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber38 Mas os Indiani Metropolitani se tornaram famosos mesmo por suas aparições públicas, sua linguagem e o clima que espalhavam com suas formas de expressão bem próprias: as festas na Piazza, as apresentações espontâneas, as pinturas murais, a ironia e a poesia do absurdo. O sinal evidente de sua existência “metropolitana” são os graffiti131 e os murais, ou melhor, “imurais”132, por toda a cidade. Como meio, as paredes de casas recobertas de caligrafias de spray funcionavam, de certo modo, como a Rádio Alice. As paredes estão entregues a à espontaneidade da escrita: um espaço aberto, que não admite um discurso privilegiado, que atrai a atenção e a participação comunitária e constantemente oferece a possibilidade da réplica. Os graffiti se multiplicam. Dois deles já causam uma epidemia. Por meio de complementos, inserções e repinturas surgem antologias inteiras de textos e comentários, diálogos, que avançam de uma casa para a outra, uma multiplicação de vozes: os sinais escritos se sobrepõem, são interpretados por outros, seu sentido é invertido ou se perde completamente. Por exemplo, quando a demanda pela liberação Degli Occhi “Degli Occhi libero” degenera para um comunicado do mundo do futebol por meio da paráfrase “Marini stopper”. Ou quando a mensagem original “Fuan” (sigla da organização estudantil do neofascistas) é corrigida por uma segunda mão para “Va Fuan c...” (Va fa’ n culo: Vai tomar no cu), um terceiro afetando indignação acrescenta “Vergogna, leggono anche i bambini! [Que vergonha, as crianças também leem isso!]” e, por fim, um quarto comenta com sarcasmo: “Buoni, i bambini [Comportadas, essas crianças]”.133 Em contraste com os graffiti, a pinturas murais134 quase sempre tratam de temas políticos. Marcados por uma ingenuidade figurativa, eles lembram as pinturas murais de grupos étnicos nos guetos das cosmópoles. Os graffiti são mais ofensivos, mais radicais. Naturalmente alguns deles têm um sentido, querem transmitir uma mensagem. É possível encontrar também palavras de ordem propagandísticas clássicas, mas frequentemente numa formulação extremamente exacerbada: “LAVORO ZERO E REDDITO INTERO / TUTTA LA PRODUZIONE ALL’AUTOMAZIONE [TRABALHO ZERO E SALÁRIO INTEIRO / TODA A PRODUÇÃO POR AUTOMAÇÃO]. Alguns rabiscos brincam com uma referência singular a si próprios. Eles são brincalhões e consistem de uma afirmação minimalista: “QUESTA SCRITTA È BLEU [ESTA ESCRITA É AZUL]”. Um outro graffito existe por pura determinação: “VOGLIO FARE UNA SCRITTA [QUERO ESCREVER ALGO]”. 131“que com frequência revelavam mais pelo lugar em que foram feitos do por seu conteúdo: os anarquistas costumam escolher portas, os marxistas muros, os situacionistas vitrines ou imagens (cartazes, pinturas etc.)”, Paul Virilio, Fahren, fahren, fahren..., Berlin, 1978, p. 65. 132 A expressão é de autoria de Giorgio Celli, La scienza del comico, Bologna, 1982, p. 25. 133 Os exemplos provêm do artigo “Una mano di bianco cancellerà la ‘cultura’-spray”, in: Il Resto del Carlino, Bologna, 11 de junho de 1977, p. 1. 134 Muitos dos graffiti e pinturas murais estão retratados in: Egeria Di Nallo, Indiani in Città, Bologna, 1977. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber39 Porém, os mais interessantes são aqueles graffiti que conseguem confundir os nexos de sentido usuais. Mais absurdos do que irônicos, eles querem provocar um curto-circuito no sistema de sinais da cidade, perturbar a ordem dos sinais. Seu ataque à funcionalidade dos sinais vem acompanhada de um recuo do conteúdo.135 Os conjuntos de palavras, nos quais ainda há reverberações de sua história prévia, recusam a informação, como se a razão – ou a “lógica da economia política” – tivesse se tornado imprestável e vã: “dopo Marx, Aprile [depois de Marx, abril]”, “dopo Mao, Giugno [depois de Mao, junho]”. Muitas vezes, a diversão poética advém da transgressão das leis fundamentais da linguagem humana. Ela perde o seu status referencial, para entrar no jogo como linguagem incerta, como signo escrito e, às vezes, como puro grafismo. “Os muros da cidade se parecem cada vez mais com um quadro de Cy Twombly”, escreveu Umberto Eco.136 Desse modo, ele não só evidencia a diferença em relação às usuais inscrições políticas em paredes, mas assinala a fissura cultural existente. De fato, a rebelião dos Indiani Metropolitani contra a ordem social dos “caras-pálidas” se inflama nas formas tradicionais da política. Para os Indiani, a política sempre é um assunto detestável. Entediados com os lugares-comuns públicos e cansados de repetir a fraseologia do jargão ideológico, eles procuram violar o consenso político e cultural reinante. À sua falta de confiança na retórica radical corresponde o desejo de provocar, surpreender e causar perplexidade. Basta sua presença para transformar manifestações políticas “sérias” em happenings com cantos, danças e outras formas de expressão inabituais para esses eventos sérios. Frente à seriedade da política, sua racionalidade e seu falso páthos histórico, os Indiani apostam na zombaria e na constante inversão da verdade, para tornar visível também o outro lado da realidade, aquele que sempre é dissimulado e ocultado. E, acima de tudo, os Indiani tratam a linguagem como “uma ciência das soluções imaginárias”137. Assim, em muitas assembleias daquela época, em que eles eram incapazes de participar com discursos “razoáveis”, podiam ser ouvidos os seus slogans absurdos e paradoxais. Tornou-se famoso seu hábito de extrapolar de tal modo exigências ditas sem objetividade e irrealistas, que essa avaliação ficava totalmente destituída de fundamento: “Più centrali nucleari / meno case popolari [Mais usinas nucleares / menos casas populares]”. Os Indiani proclamam o que a opinião pública considera impossível. Eles são capazes de produzir imagens sarcásticas de problemas políticos complexos e obrigar os observadores a vê-los sob uma nova luz. Aironia e a autoironia não são, para eles, gestos de superioridade, 135 Cf. o ensaio de Baudrillard sobre os graffiti de New York, que efetuam esse “esvaziamento do sentido” de modo extremado; Jean Baudrillard, Kool Killer oder Der Aufstand der Zeichen, ibid., p. 19-38; sobre os graffiti italianos cf. também Cesare Garelli, Il linguaggio murale, Milano, 1978. 136 Umberto Eco, “Come parlano i ‘nuovi barbari’”, ibid., p. 55. 137 Maurizio Torrealta, “Painted Politics”, in: Semiotext(e), n. 9, 1980, p. 102. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber40 mas uma forma de luta: “Le Radio libere sono un’illusione / tutto il potere alla televisione [As rádios livres são uma ilusão / todo poder para a televisão]”. A respeito de si mesmos, os Indiani afirmam que são assim rebeldes porque quando crianças apanharam muito pouco: “Abbiamo preso poche botte da bambini [Levamos pouca surra quando crianças]”. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber41 Entediados com os lugares-comuns públicos Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber42 Murais, ou melhor, “imurais” por toda cidade Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber43 Trabalho zero e salário inteiro, toda produção por automação Quero escrever algo Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber44 nho” “depois de Marx, abril”, “depois de Mao, ju- Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber45 Por meio de abreviaturas e curto-circuitos, a ironia chega muito rapidamente ao que quer dizer e diz coisas que, de outra forma, só se consegue dizer de modo complicado. Ela vive da curta distância entre a fase da doxa, da opinião, e a fase da paradoxa, da contestação. Mas esse jogo irônico era muito incomum no quadro das concepções políticas convencionais e topou com incompreensão global; é o que relata Umberto Eco:138 numa demonstração, os estudantes declamavam “Gui e Tanassi sono innocenti / siamo noi i veri delinquenti [Gui e Tanassi são inocentes / somos nós os verdadeiros delinquentes]”, para protestar contra a imunidade desses dois políticos envolvidos num escândalo de suborno. A isso respondeu um grupo de operários que se solidarizaram com os estudantes e acolheram o slogan dos mesmos, mas o retraduziram para a sua habitual compreensão da realidade: “Gui e Tanassi sono delinquenti / gli studenti sono innocenti [Gui e Tanassi são delinquentes / os estudantes são inocentes]”. A realidade havia sido posta no seu devido lugar. Outro procedimento muito apreciado, que se encontra também nos graffiti, é a refuncionalização da publicidade. Cada vez mais, a publicidade se torna um ponto de referência cultural. Ela instaura modelos e estilos linguísticos, aos quais a política consegue se subtrair cada vez menos – pois ele tem de vender o seu peixe. O “realismo” da publicidade é levado ao absurdo pela reutilização explícita do seu material linguístico em lugares despropositados: “Bevo Jägermeister perchè a Seveso c’è la diossina [Bebo Jägermeister, porque em Sêveso tem a dioxina]”. Abstraindo do teor e de sua banalização irônica, a irritação que esse trocadilho provoca se deve a uma espécie de dupla exposição à luz. Ele é escandaloso não só porque nele se aplica um outro conteúdo, mas também porque ele mostra algo do mecanismo de funcionamento da publicidade: embora todo mundo saiba que a publicidade mente – e, de certo modo, ela tem como condição ou ao menos como pressuposto o fato de que não se dá crédito a ela –, ela ainda assim consegue gerar efeitos de credibilidade e verdade. A política opera na mesma terra-de-ninguém entre desconfiança e fascinação, entre ceticismo e esperança; e avaliar o jargão político em termos de verdade é tão impossível quanto avaliar nos mesmos termos a linguagem da publicidade.139 Por fim, os Indiani Metropolitani são peritos em outro método de infringir as convenções da comunicação pública, a saber, a detratação de autoridades. Ameaçados de escárnio estão aquelas pessoas e aqueles objetos que reivindicam autoridade e respeito, que em algum sentido são solenes. Porque muitas vezes a distância entre o poder absoluto e a ridicularização total é de apenas um 138 139 Umberto Eco, “Come parlano i 'nuovi barbari'”, ibid., p. 55. Inversamente a linguagem publicitária é frequentemente desviada para a autoexaltação. Tendo o exagero e o superlativo como tom predominante, essa propaganda de si próprio sempre é irônica; ela está sempre rindo de si mesma. Por exemplo, quando o coletivo radiofônico proclama: “Radio Alice è il più grande marxista-leninista della nostra epoca. Essa ha applicato e sviluppato creativamente i principi del marxismo-leninismo [A Rádio Alice é o maior marxistaleninista da nossa época. Ela aplicou e desenvolveu criativamente os princípios do marxismoleninismo]”, in: A/traverso, quaderno 3, jun./1976, p. 10. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber46 palmo. Ser ridicularizado é o medo de todo grande que se leva a sério: sua reputação é arranhada quando ressoam as gargalhadas – despidos do seu status, eles são reduzidos àquilo que todos suspeitam. E a risada é desrespeitosa e chocante: “Viva il compagno Craxi / che picchia i fascisti che scendono dal taxi [Viva o camarada Craxi / que bate nos fascistas que saem do táxi]”. Ao passo que aqui é o absurdo que faz rir, podemos chamar o procedimento seguinte de “glorificação degradante”: “Zangheri, fratello nostro... perdonaci! [Zangheri, nosso irmão... perdoa-nos]” clamaram os Indiani, dirigindo-se ao prefeito comunista de Bolonha após as agitações de março de 1977, ajoelhados imitando a oração dos islâmicos. Na ironia “índia”, é abolido o imperativo moral dos códigos institucionais – situações, papéis, pessoas públicas. A fonte do riso é uma sangria do sentido, uma desagregação dos pressupostos ideológicos que estão na base do uso da linguagem, um vômito do bom tom. Uma ocorrência será descrita mais detidamente neste contexto, porque representa algo como uma ponto de ruptura previsível com a ordem pública em geral e a política institucional em particular: “Este dia ficará por muito tempo na lembrança da história política da Itália; deste dia em diante se derramarão rios de alocuções sobre as novas necessidades das camadas mais jovens da população; a respeito deste dia serão pronunciadas centenas de discursos autocríticos e pesarosos. Os Indiani Metropolitani serão os únicos a ficar em silêncio”.140 O curso dos acontecimentos pode ser rapidamente narrado. No dia 17 de fevereiro de 1977, o secretário sindical comunista Luciano Lama, a figura mais importante da liderança sindical italiana, resolve fazer um pronunciamento na universidade de Roma, ocupada há vários dias, com o intuito de passar uma descompostura nos estudantes. Dias antes, a assembleia estudantil havia decidido deixar que Lama viesse à universidade e impedir a violência física, mas, de qualquer modo, frustrar a tentativa de “introduzir a linha sindical na universidade”. Não viria a ser uma tentativa muito gloriosa. E os atos de violência de modo algum se limitariam ao simbólico. As coisas transcorreram como se os Indiani Metropolitani tivessem estudado cuidadosamente as condições para ter êxito na ação de tornar o adversário desprezível141 e a burocracia sindical não tivesse outra coisa em mente além de tornar-se malquista. Já bem cedo é postado no campus universitário um caminhão equipado com alto-falantes destinado a servir de palanque. Em toda volta se postam algumas centenas de quadros sindicais que foram mandados para lá com a senha “libertar a universidade dos fascistas” e que deveriam zelar por tranquilidade e ordem. Entretanto, ainda antes de Lama aparecer, o clima já está extremamente 140 141 Maurizio Torrealta, “Painted Politics”, in: Semiotext(e), n. 9, ibid., p. 104. E lido com atenção o artigo de Harold Garfinkel, “Conditions of Successful Degradation Ceremonies”, in: American Journal of Sociology, n. 61, 1955/1956, p. 420-424. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber47 tenso. A força da ordem se vê diante de mais de dez mil estudantes, entre os quais os Indiani Metropolitani em pintura de guerra, com machadinhas de plástico, serpentinas, confetes – e seus bordões irônicos. Para entender é preciso saber que o nome “Lama” se presta admiravelmente para diversos jogos de palavras: “L’ama o non L’ama? Non L’ama più nessuno [Ama-o ou não o ama...? Ninguém o ama mais]”; “Nessuno L’ama [Nenhuma lhama, ou: Ninguém o ama]”; “I Lama stanno nel Tibet [O lugar dos Lamas é no Tibete]”; “Attenti: i Lama sputano [Cuidado! Lhamas cospem]”. Ainda outras distorções verbais com “Dalai Lama” ou “Lama Sabachthani” se fizeram ouvir. Porém, os slogans não eram dirigidos somente contra a pessoa do secretário sindical, mas sobretudo contra o programa de austeridade do governo democratacristão, apoiado pelo PCI e propagado por Lama. Quando então Lama finalmente começou a falar, ressoam cantos irônicos na melodia de Jesus Christ Superstar: “Lama star / Lama star / i sacrifici vogliamo far [Lama Star / Lama Star / os sacrifícios queremos ofertar]”. Os Indiani acompanham os cantos com suas danças, brandem os tomahawks de brinquedo e penduram um boneco do líder sindical bem na frente dele, onde ele fica balançando ao vento. Tudo isso somado, a zombaria ferina, o sarcasmo dos slogans, a agressividade do coro irônico e as ações provocadoras desencadearam a ira da força da ordem. Acontecem as primeiras brigas e todos acabaram perdendo os nervos: o conflito que ainda era simbólico descarregou-se numa tremenda confusão. A escalação das armas foi algo singular. Enquanto os Indiani atiram sacos de plástico cheios de água, os sindicalistas respondem com sprays contra incêndio. Por fim, os Indiani dispersam a tropa sindicalista stalinista e os põem a correr sob gritos de escárnio e ofensas: “Ti prego Lama non andare via / vogliamo ancora tanta polizia [Te pedimos, Lama, não vai embora / queremos ainda mais polícia]”.142 Mas – e isso é importante – eles não ocupam a plataforma que ficara sem dono sobre o caminhão nem se apossam do microfone. Maurizio Torrealta interpreta o acontecido como colisão entre duas estratégias linguísticas: de um lado, o argumento absurdo como elemento constitutivo de todo jogo e, do outro lado, a linguagem política, que tem o seu lugar preciso, do qual só pode falar que têm direito de fazer isso. Esse lugar feito sob medida para a linguagem política sempre é um ponto central – nesse caso, um caminhão –, localizado de tal maneira que torna capaz de controlar com um olhar cada um dos demais pontos do terreno no qual se assume essa posição.143 Outro intérprete, Umberto Eco, diz que uma razões que foram decisivas para o desfecho desse evento foi “a oposição de duas concepções de teatro ou de espaço”. Lama se apresentou sobre o pódio, “em conformidade com as regras de uma comunicação frontal, como é típica para a organização do espaço dos sindicatos e das massas operárias”, para falar a estudan142 Esse desejo se cumpriu pouco depois: ainda no mesmo dia, a universidade foi tomada pela polícia. Pode-se falar, portanto, de uma self-fullfilling irony [ironia que se cumpre por si mesma]. 143 Maurizio Torrealta, “Painted Politics”, in Semiotext(e), n. 9, ibid., p. 104. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber48 tes que, em contraste com isso, “desenvolveram outras formas de reunião e interação: formas decentralizadas, móveis, aparentemente desorganizadas. Os estudantes organizaram o espaço de outra maneira, e assim houve naquele dia também um confronto entre duas concepções de perspectiva – digamos: uma segundo Brunelleschi e uma cubista.”144 Mas também poderíamos examinar o incidente, como muitos outros eventos daquela época, a partir de uma outra perspectiva: a do prazer proporcionado pelo ato teatral, pela simples diversão comunitária. V. Muito do que acontece durante os primeiros meses do ano de 1977 nas grandes cidades da Itália apresenta traços carnavalescos. As festas na Piazza, a redescoberta do corpo, a abertura da esfera privada, a acentuação altiva do comportamento desviante, a jovialidade juvenil, tudo isso lembra o carnaval, como descrito por Michail Bachtin: “A vida carnavalesca é uma vida que saiu do trilho do habitual”.145 Il mondo alla rovescia [o mundo ao reverso], o mundo invertido do carnaval abole a “ordem cotidiana das coisas” e inventa, numa supressão radical dos limites e num dispêndio total de forças, os pressupostos para uma “segunda vida”, que se realiza de modo excessivo e igualitário como festa. O carnaval vem à mente na rebelião dos jovens contra a moral social, contra as leis, proibições e restrições do cotidiano; uma sublevação em que sempre se anuncia também o desejo de derrubar a ordem social dominante. Os comportamentos coletivos e as formas de tratamento livres estabelecem um contato interpessoal com ares de família, uma intimidade como que pública. Bachtin chama isso de uma “relação familiar, livre”146 que toma conta de tudo, adentrando os âmbitos proibidos e tabuizados e promovendo uma abolição da hierarquia social. A massa carnavalesca solapa a ordem social, demole todas as estruturas hierárquicas e anula toda e qualquer distância entre as pessoas. O carnaval vem à mente, ademais, pelas formas de expressão lúdicas desenvolvidas pelo movimento jovem, e sobretudo pe144 Umberto Eco, “È bastata una fotografia”, in: L’Espresso, n. 21, 29 de maio de 1977, p. 14; em alemão: “Ein Foto”, in: Umberto Eco, Über Gott und die Welt, ibid., p. 215s. 145 Michail Bachtin expôs suas investigações sobre o carnaval sobretudo no grande estudo sobre Rabelais, intitulado François Rabelais und die Volkskultur des Mittelalters und der Renaissance, Moskau, 1965 (em inglês: Mikhail Bakhtin, Rabelais and His World, Cambridge/Mass., 1968). As citações a seguir foram tiradas de uma seleção muito reduzida em língua alemã: Literatur und Karneval. Zur Romantheorie und Lachkultur, ibid., aqui, p. 48. Corre uma anedota sintomática para o destino adverso desse grande pesquisador russo, que permaneceu desconhecido por décadas: seu livro sobre Dichtung und Wahrheit, de Goethe, depois de muito vai e vem, finalmente foi aceito para publicação, mas uma bomba (alemã!) caiu sobre a editora em Moscou e destruiu todos os papéis. Bachtin tinha ficado com uma cópia em carbono, mas durante a guerra o papel para cigarro escasseou, sendo ele um fumante compulsivo. Nove décimos do manuscrito se desfizeram em fumaça – mas Bachtin havia começado de trás e assim se conservaram as primeiras páginas desse trabalho. Cf. Katerina Clark, Michael Holquist, Michail Bakhtin, Cambridge/Mass., 1984, p. 273. 146 Michail Bachti, Literatur und Karneval, ibid., p. 49. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber49 lo lugar da ação: o espaço citadino, esta ou aquela rua, uma parede, um bairro são animados por eles e retomados como território coletivo. O carnaval é semelhante – já que ele é, em primeiríssimo lugar, um assunto público: seu palco são as ruas e praças da cidade. Trata-se de um lugar social, no qual os encontros humanos ocorrem de modo especialmente intenso. Somente na praça pública torna-se possível aquela “familiarização”147 e a participação de todos no evento. “O carnaval é um espetáculo sem ribalta, sem polarização dos participantes em atores e espectadores. No carnaval, todos os participantes são ativos, cada um é pessoa atuante. Ao carnaval não se assiste e, a rigor, ele tampouco é encenado. O carnaval é vivido”148, escreve Bachtin. Essa vida como peça, na qual todos os participantes são ao mesmo tempo espectadores e atores, confere às concepções soterradas de uma vida em liberdade e igualdade, por um curto lapso de tempo, a aparência de realidade. Ela liberta o indivíduo para as experiências da mudança, para a experiência da “relatividade de todo existente”149 e, desse modo, propicia-lhe não só a concepção, mas também a contemplação viva de um outro mundo, de um mundo melhor. A antecipação utópica, contudo, não é possibilitada por meio da “ilusoriedade” de uma forma estética, mas por meio da atuação concreta. 147 148 149 Ibid., p. 50. Ibid., p. 48. Ibid., p. 51; cf. também p. 27. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber50 Certas ações linguísticas e gestuais Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber51 E o carnaval vem à mente, por fim, pela linguagem suja e pela estratégia da inversão simbólica.150 Trata-se, em primeiro lugar, do falar não regulamentado, que se converte em contestação política e social. Mas, além disso, há também determinadas ações linguísticas e gestuais, atos de um comportamento expressivo, que recusam os códigos culturais universalmente válidos151, solapando-os ou invertendo-os. Destes fazem parte em especial a ironia, a paródia e o paradoxo, a profanação do sublime, os ataques à etiqueta, as libertinagens carnavalescas e a detratação de autoridades, as falas indecentes e os gestos obscenos. Justamente no nível da expressão simbólica há muitos pontos em comum; surpreendente é, por exemplo, a analogia entre as formas de expressão das festas de carnaval da Idade Média152 e a expulsão de Lama de dentro da universidade: o recurso satírico do boneco de carnaval, o brandir encenado das espadas, o emprego de instrumentos ruidosos e cacofônicos como campainhas, apitos e tambores e, por fim, o exorcismo do socialmente perverso mediante escárnio, zombaria e riso. Quando Bachtin diz do carnaval: “uma outra verdade começou a soar: ridente, demente, inconveniente, maldizente, parodiante, travestindo-se”153, isso se aplica, de certo modo, também à prática da comunicação subversiva: a “verdade oficial” é posta de cabeça para baixo quando exposta ao ridículo, convertida em seu contrário e confrontada com outras verdades. 150 Cf. Barbara A. Babcock (Ed.), The Reversible World. Symbolic Inversion in Art and Society, Ithaca, 1978. 151 Em conexão com o carnaval, Peter Burke remete ao conceito da “troca de código”; Peter Burke, Helden, Schurken und Narren. Europäische Volkskultur in der frühen Neuzeit, Stuttgart, 1981, p. 217. 152 Uma análise precisa da linguagem simbólica do carnaval pode ser encontrada em Emmanuel Le Roy Ladurie, Karneval in Romans, Stuttgart, 1982, p. 309ss. e p. 316ss. 153 Michail Bachtin, Literatur und Karneval, ibid., p. 39. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber52 A profanação do sublime, os ataques à etiqueta Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber53 As libertinagens carnavalescas e a detratação de autoridades Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber54 as falas indecentes e os gestos obscenos Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber55 O exorcismo do socialmente perverso mediante escárnio, zombaria e riso Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber56 Cenas familiares, Bolonha, 1977. Mas já houve, em anos anteriores, prenúncios dessa “carnavalização”. Em 1975, pela primeira vez depois de muitos anos, estourou novamente o carnaval – impetuoso, violento e desenfreado. Seus protagonistas, vindos dos subúrbios e da periferias mais extremas, invadiram as ricas ruas do centro. Mascarados como árabes e políticos, travestidos de mulheres e vestindo roupas de sacerdotes, eles dançaram e festejaram durante três dias e três noites nas ruas da cidade. O evento foi caracterizado por escândalo e agressividade.154 A irritação geral pelo renascimento imprevisível e ameaçador dessa festa popular foi grande, não por último porque esse carnaval deixou para trás lá longe o mundo simbólico exaurido por repetições de suas versões modernas com sua mundaneidade e concomitante domesticidade. Portanto, de repente o carnaval estava aí de novo, como festa da crise e contra a crise. Não por acaso ele encontrou no movimento jovem terreno fértil: nele se uniram os dois aspectos do carnaval, o do jogo (de cena), da festa e do riso – e aquele outro da rebeldia e da rebelião contra o vigente.155 “Riprendiamoci la festa [Reapropriemo-nos da festa]”, “Dissolutezza sfrenatezza festa [Devassidão libertinagem festa]”156: assim e semelhantes eram seus lemas. Deixou de existir o limite entre festa e tumulto. Acertadamente o Corriere della Sera falou de uma “jacquerie”157 para caracterizar os excessos violentos diante da Scala milanesa no dia 7 de dezembro de 1976: como descarga da ira dos jovens contra uma burguesia com mania de ostentação, que naquela noite queria comemorar a abertura da temporada.158 Mas mesmo que o movimento jovem frequentemente tenha incorrido numa “mecânica da jacquerie”159, como Eco a chamou, numa revolta destituída de toda e qualquer teoria ou estimativa realista das forças e procurado realizar-se apenas seguindo seus impulsos espontâneos, ele não se restringia a um puro ativismo. A festa como projeto comunitário e como acontecimento utópico sempre esteve no centro das ações 154 Cf. Annabella Rossi, Roberto de Simone, Carnevale si chiamava Vincenzo, Roma, 1977, p. 13. 155 Há interpretações fundamentalmente opostas do carnaval: uma delas enfatiza seu objetivo conservador, a saber, a canalização da insatisfação; por exemplo, Victor Turner, The Ritual Process. Structure and Anti-Structure, Ithaca, 1977, especialmente os cap. 3-5. A outra interpretação, mais ao estilo de Bachtin, vê o carnaval como fonte de libertação, destruição e renovação; cf. sobre isso Natalie Zemon Davis, “The Reasons of Misrule: Youth Groups and Charivaris in Sixteenth-Century France”, in: Past and Present, v. 50, 1971, p. 54ss. (reimpresso in: Id., Society and Culture in Early Modern France, Stanford, 1975, p. 101ss.); dentre a bibliografia sobre Bachtin – entrementes impossível de ser examinada em sua totalidade – seja mencionado aqui apenas um artigo, que ressalta a perspectiva subversiva com a qual Bachtin examina o carnaval: Julia Kristeva, “Bachtin, das Wort, der Dialog und der Roman”, in: Jens Ihwe (Ed.), Literaturwissenschaft und Linguistik, v. 3, Frankfurt a. M., 1972, p. 345-375, especialmente p. 361ss.; abreviado in: Alternative, n. 62/63, dez./1968, p. 199-205. 156 A/traverso, April 1975, p. 1. 157 Levante de camponeses em 1358 no norte de Paris; designação derivada de “Jacques Bonhomme”, o apelido jocoso dos camponeses. A tribo bolonhesa dos “Indiani Metropolitani” retomou essa comparação do Corriere e passou a chamar-se de “Il Collettivo Jacquerie”; cf. Autori Molti Compagni, Bologna Marzo 1977... fatti nostri..., ibid., p. 159-164. Sobre a origem carnavalesca da jacquerie cf. as indicações de Alessandro Fontana, “La scena”, in: Storia d’Italia, v. I (Caratteri Originali), Torino, 1972, p. 157. 158 Cf. Maurizio Torrealta, “Painted Politics”, in: Semiotext(e), n. 9, ibid., p. 157. 159 Umberto Eco, “No, perdio, non mi suicido”, in: L’Espresso, n. 17, 1º de maio de 1977, p. 59. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber57 espontâneas de massa, e isso justamente em Bolonha, no centro da ala creativa, da ala criativa do movimento jovem italiano. Isso é atestado pelos elementos teatrais, que ali marcavam as manifestações, pelos slogans fantasiosos, pelo uso de instrumentos musicais, pelo comportamento mimético e pelas breves situações dramáticas durante as demonstrações, pelas vestimentas e pelas máscaras. Certamente essa ênfase no lúdico tem a ver com o fato de que, em Bolonha, há anos estava sendo realizada uma pesquisa “prática” sobre a festa e o carnaval. Tendo como ponto de partida o instituto teatral DAMS (Discipline Arte Musica Spettacolo)160, o empreendimento, no qual Giuliano Scabia desempenhou papel essencial,161 foi se distanciando cada vez mais da “instituição” teatro. Ele voltou as costas para o espaço fechado do teatro e buscou contato com a cidade e sua população, para reencontrar ou descobrir formas de comunicação elementares e originais. O ponto alto espetacular dessas tentativas seria representado, então, pelo reavivamento do carnaval veneziano: “Há alguns anos, nós, no começo apenas poucas pessoas, mas depois cada vez em maior número, retornamos à origem do carnaval”.162 Muitos dos que haviam participado do movimento jovem, experimentado as novas possibilidades comunicativas e impulsionado um “processo de recarnavalização”163, encontraram-se, como se de algum modo secreto tivessem marcado encontro, no ano de 1980 no carnaval veneziano. “As formas cênicas do palco se misturaram com as de uma festa histórica, há muito esquecida e agora recuperada. […] Naqueles dias, realmente era possível desembarcar do tempo, a realidade parecia ter sido abolida. Tudo foi engolido pela voragem da encenação, da ilusão, do encantamento...”, consta no relato entusiástico de um visitante alemão.164 Contudo, mal havia ressurgido, o carnaval de Veneza degenerou para uma monstruosa atração turística para estrangeiros. A sua funcionalização políticocultural levou a um progressivo distanciamento das bases arcaicas da festa: seu teor crítico e subversivo se foi se tornando cada vez mais tênue, cada vez mais irreal.165 O tom rebelde perdeu-se nos divertimentos deploráveis que a indústria do lazer está disposta a oferecer. 160 Cf. “Le istituzioni: il ‘dams’ tra realtà culturale e sociale”, in: tra, n. 3, jan./fev. 1978, p. 23-31. 161 Cf., por exemplo, Marco de Marinis, “La società delle feste. Utopia festiva e ricerca teatrale”, in: Il Verri, n. 6, jun./1977, p. 23-67, especialmente p. 62s. O dragão da p. 128 foi criado num projeto de Giuliano Scabia com seus estudantes. 162 Giuliano Scabia, “Il racconto delle maschere”, in: Fabio Santagiuliana, Venezia. I Giorni Delle Maschere, Udine, 1980, sem paginação; cf. também o prospecto oficial La Biennale di Venezia (Ed.), Carnevale del Teatro, Venezia, 1980. 163 Wolfgang Greisenegger, “Die Lust der Verwandlung. Venezianische Maskerade”, in: Parnass, Sonderheft 1, 1984, p. 90. 164 Peter Iden, “Die Stadt ist Szene. Venezianischer Theaterkarneval”, in: Theater Heute, Heft 4, abr./1980, p. 20. 165 Peter Burke relata sobre tentativas mais antigas de dar ao carnaval veneziano uma conformação mais decorosa, mais exatamente, pela comercialização. No final do século XVII, teriam estado presentes num dos carnavais mais de 30.000 “turistas” estrangeiros. Peter Burke, “Karneval in Venedig”, in: Id., Städtische Kultur in Italien zwischen Hochrenaissance und Barock, Berlin, 1987, p. 152s. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber58 Nas suas mãos, não se corre o risco de que a ordem pública assim protegida seja ameaçada por alguma irrupção descontrolada do carnaval, nem pela sua tendência de outrora de estender-se per tutta la durata dell’anno [enquanto durar o ano]. Porque ali “não tilinta o boné de guizos do bufão, mas o molho de chaves da razão capitalista”166. 166 Theodor W. Adorno, Max Horkheimer, Dialektik der Aufklärung, ibid., p. 170. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber59 Contra uma burguesia com mania de ostentação Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber60 VI. A Rádio Alice estava organicamente vinculado com os ecos dos acontecimentos mais ou menos significativos, nos quais o movimento jovem tentava virar o mundo de cabeça para baixo. O mesmo tom de voz irônico estava presente também em seus microfones, o mesmo prazer em parodiar, a mesma linguagem desafiadora – uma atmosfera carnavalesca impregnava todas as transmissões.167 Todavia, a de um “carnaval sem ardor”, como diria Umberto Eco,168 pois, em vista do êxtase subjetivista que tomava conta de tudo à sua volta, o Coletivo A/traverso tentava prosseguir com seus exercícios analíticos imparciais. Nessa linha, fez-se uma descoberta significativa: começando com o método do desvio de função169, também conhecido como apropriação indébita, ingressou-se no terreno adjacente da falsificação. A apropriação indébita representa uma das técnicas mais marcantes da inversão simbólica. Como no judô, a melhor reação a uma manobra do inimigo não é recuar, mas aproveitar a força do adversário para a própria ação. Quando apareceram, na parede de uma casa de Bolonha, em letras garrafais, as palavras “Rádio Alice figli di puttana [Rádio Alice filhos da puta]”, isso imediatamente contou com a aprovação entusiástica do coletivo radiofônico. O xingamento foi redirecionado para a função de slogan publicitário: o antigo cartaz da Rádio Alice é reeditado como o complemento “sui muri di Bologna qualcuno ha scritto RADIO ALICE FIGLI DI PUTTANA”170. Porém, o procedimento da apropriação indébita não serve só para repelir ataques ou tornar o adversário desprezível. Pelo reposicionamento arbitrário do contexto pode-se gerar “outras versões” da realidade. Posto num outro contexto, cada palavra pode assumir um novo valor semântico, todo enunciado pode ser enredado em sua própria contraditoriedade, todo evento exposto a interpretações contrapostas. Note-se bem: no caso da disseminação dessas leituras invertidas, não se trata de estabelecer uma verdade válida, mas, muito antes, de questionar a “vontade de buscar a verdade”, aprofundar a crise da verdade, confundir o seu sistema de coordenadas. 167 Aliás, do carnaval como “meio de comunicação de massa alternativo” fala Bob Scribner, “Reformation, Karneval und die ‘verkehrte Welt’”, in: Richard van Dülmen, Norbert Schindler (Ed.), Volkskultur. Zur Wiederentdeckung des vergessenen Alltags, Frankfurt a. M., 1984, p. 143ss. 168 Cf. Umberto Eco, “The Frames of Comic ‘Freedom’”, in: Thomas A. Sebeok (Ed.), Carnival!, Berlin/New York/Amsterdam, 1984, p. 8. 169 Em francês: détournement; foram os situacionistas que elegeram como método esse velho artifício, apreciado também pelos dadaístas, e providenciaram sua renovada disseminação. Cf. Guy-Ernest Debord, Gil J. Wolman, “Gebrauchsanweisung für die Entwendung”, in: Isidore Ducasse (Lautréamont), Poesie, Hamburg, 1979, p. 5-15; e René Vienet, “Die Situationisten und die neuen Aktionsformen gegen Politik und Kunst”, in: Situationistische Internationale 1958– 1969, n. 11, out./1967, Hamburg, 1977, p. 279-284. 170 “Alguém escreveu nos muros de Bolonha RÁDIO ALICE FILHOS DA PUTA”. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber61 Assim vem a público, com o título “Lamaodada”, uma descrição bem peculiar dos acontecimentos que cercaram o comparecimento de Lama171 à universidade de Roma: 171 Cf. acima p. 120s. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber62 No canto inferior diRÁDIO ALICE FILHOS DA reito, consta a seguinPUTA, te citação de Maiakóvski: “Nos primeiros dias da nossa revolução, esse esquecimento foi um fenômeno bastante frequente. Nossa revolução se realizou quando a técnica se encontrava em um estado terrível. […] O primeiro jornal ferroviário, por exemplo, foi escrito a giz na parte externa de um vagão e foi apagado sem dó nem piedade para assegurar a publicação do segundo número. […] O que resultou desse trabalho grosseiro e sem gramática é muito mais interessante do que as elaborações empoladas dos literatos avessos ao Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber63 trabalho, que escrevem sobre a revolução e, ao fazê-lo, continuam bem sentados nos seus gabinetes inacessíveis.” Wladimir Majakowski, “Sammelt die Geschichte” (Bulletin des Pressebüros Nr. 16, Moskau, 1923, 3. März), in: Id., Werke v. 5, ibid., p. 107s.; além dessa, há outra citação nesse cartaz, esta tirada do Primeiro Manifesto do Surrealismo (1924): “Verdadeiramente não é o medo da loucura que nos obrigaria a colocar a bandeira da imaginação a meio mastro.” Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber64 escreveu alguém nos muros de Bolonha Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber65 Roma, 12 de fevereiro. Do nosso correspondente operário. A ação executada hoje pela manhã pelo nosso camarada K. M., conhecido publicamente como Luciano Lama, surtiu um efeito superior às nossas mais róseas previsões. Seguindo os princípios clássicos do maodadaísmo, K. M., hábil e pacientemente infiltrado nas mais altas esferas de comando do sindicato, foi notavelmente bem-sucedido na tentativa de fazer o inimigo cair na armadilha preparada por nós. Como se fosse algo estabelecido, K. M. levou à implosão e ao desmascaramento a natureza delirante e utópica do projeto destinado a criar um consenso em torno da diabólica proposta dos sacrifícios financeiros; comparecendo ao interior uma universidade ocupada com formulações e temáticas mais adequadas a um pronunciamento televisivo, o Nosso Homem evidenciou macroscopicamente o antagonismo total entre os interesses do sindicato e os interesses do movimento. [...] Esta ação representa um salto de qualidade enorme em relação às operações valorosas e qualificadas levadas a cabo por nossos agentes no passado (ver o encontro mao-dadaísta entre Paulo VI e Argan).172 Da situação que de qualquer modo já é grotesca projeta-se, mediante nova exageração, uma imagem absurda pela insinuação de que a realidade teria uma lógica mao-dadaísta. E Giulio Argan, o historiador da arte e prefeito comunista de Roma, aparece como um Buster Keaton em seus melhores dias, quando o encontro com o Papa, encenado como confirmação do Compromisso Histórico, foi reinterpretado como ato dadaísta.173 A ações mao-dadaístas começaram com telefonemas simulados da Rádio Alice. Segundo McLuhan174, o telefone é um “intruso irresistível”. Porque fazer outra coisa em vez de atender um telefone que toca insistentemente significa arriscar-se a perder uma conversa importante. A isso se soma que a “etiqueta ao telefone” realmente favorece os intrusos: é difícil comunicar por telefone 172 “Roma, 17 febbraio. Dal nostro corrispondente operaio. L ’azione compiuta questa mattina dal nostro compagno K. M., conosciuto pubblicamente come Luciano Lama, ha sortito un effetto superiore alle più rosee previsioni. Secondo i classici principi del Maodadaismo, K. M., abilmente e pazientemente inseritosi nelle più alte sfere del comando del sindacato, è riuscito con notevole successo a far cadere il nemico nella trappola che gli avevamo teso. Come si era precentemente stabilito, K. M. ha portato all’esplosione e allo smascheramento la natura delirante e utopistica del progetto teso a creare il consenso intorno alla diabolica proposta dei sacrifici; venendo a proporre all’interno di un’università occupata formule e tematiche più adatte a un discorso televisivo, il Nostro evidenziava macroscopicamente il totale antagonismo fra interessi sindacali e interessi del movimento. [...] Quest’azione rappresenta un salto di qualità enorme rispetto a quelle pure pregevoli e qualificate compiute dai nostri agenti in passato (vedi incontro maodada fra Paolo VI e Argan).” In: Finalmente il cielo è caduto sulla terra: La rivoluzione, n. 1, 7 de março de 1977, p. 4; (essa revista semanal surgiu da cooperação entre A/traverso, de Bolonha, e Zut, de Roma; foi proibida logo após a terceira edição). 173 Sobre o conceito da reinterpretação cf. o capítulo “Die sanfte Kunst des Umdeutens [A suave arte do reinterpretar]”, in: Paul Watzlawick, John H. Weakland, Richard Fisch, Lösungen. Zur Theorie und Praxis menschlichen Wandels, Bern/Stuttgart/Wien, 2. ed. 1979, p. 116-134. 174 Marshall McLuhan, Die magischen Kanäle, ibid., p. 268. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber66 sinais de reconhecimento e símbolos de status, porque a fidelidade da reprodução do som pelo telefone é muito baixa e, com isso, a possibilidade do receptor identificar o aquele que ligou também é limitada. “Ao telefone, só o que conta é a autoridade do saber”, escreve McLuhan175, e D. W. Ball176 define o telefone como instrumento estratégico contra aqueles que costumam ser inacessíveis: ele promove uma “familiarização” por meio da erosão de hierarquias e autoridade. A Rádio Alice valeu-se dessa circunstância para dar telefonemas a diversas personalidades da vida pública que eram transmitidos ao vivo. Um dos mais bem-sucedidos foi uma chamada matinal na casa do naquele tempo primeiro-ministro Andreotti. A pessoa que ligou fingiu ser Gianni Agnelli, o influente presidente da Fiat, queixando-se da falta de disciplina dos seus operários e exigindo auxílio imediato do Estado, que o ainda sonolento Andreotti estava disposto a conceder antes de dar-se conta da mutreta. É claro que o método logo se desgastou. Quanto mais frequentemente tais telefonemas – depois também por outras rádios livres – eram tentados, tanto mais difícil era conseguir falar com as pessoas desejadas; e, por fim, a própria Rádio Alice se viu confrontada com chamadas “índias”. Porém: “IL MAO DADAISMO PROPONE DI FARE LE COSE IN GRANDE” – o mao-dadaísmo propõe fazer as coisas em grande escala.177 Em determinado momento, portanto, chegou-se à seguinte fórmula: informazioni false che producano eventi veri [informações falsas que produzem eventos verdadeiros]: Agora vamos dar um passo adiante. Não basta denunciar a falsidade do poder; é preciso denunciar também a verdade do poder e destruí-la. [...] Pôr a descoberto o delírio do poder. E não só isso. É preciso ocupar o posto do poder, falar com a sua voz. Emitir sinais com a voz e tom de voz do poder. Mas sinais falsos.178 Essa fórmula das informações falsas que devem produzir eventos verdadeiros não só vai decisivamente além dos esforços ingentes da contrainformação e da informação subjetivista forçada pela 175 176 Ibid., p. 264. Donald W. Ball, “Toward a Sociology of Telephones and Telephoners”, in: Marcello Truzzi (Ed.), Sociology and Everyday Life, New York, 1968, p. 65ss. cf. também Emanuel A. Schegloff, “Identification and Recognition in Telephone Conversation Openings”, in: George Psathas (Ed.), Everyday Language. Studies in Ethnomethodology, New York, 1979, p. 23-88. 177 A/traverso, dez./1976, p. 1. 178 “Ora andiamo oltre. Non basta denunciare il falso del potere; occorre denunciare e rompere il vero del potere. [...] / Portare allo scoperto la deliranza del potere. Ma non solo. Occorre prendere il posto del potere, parlare con la sua voce. Emettere segni con la voce e il tono del potere. Ma segni falsi.”, “informazioni false che producano eventi veri”, in: A/traverso, fev./1977, p. 1. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber67 Rádio Alice. Ela também deixa para trás as operações sofistas179 da ironia, da paródia e do paradoxo. Quando os Indiani Metropolitani exigem dos sindicatos jornadas de trabalho mais longas e salários mais baixos, eles querem desafiar seus interlocutores, fazer graça com eles ou driblá-los, como se diz no futebol, e, por fim, derrubar o seu adversário com um jogo de corpo. Passar-lhe a perna com a palavra. O que acabou acontecendo quando uma liderança sindical mal-humorada se deixou levar, num duelo verbalideológico, a dizer aquilo que talvez realmente estivesse pensando e chamou os jovens de “fascistas” – a mais grave das ofensas para as esquerdas italianas. Bastou, portanto, um pequeno ato de apropriação indébita para que o adversário involuntariamente deixasse cair a máscara: como sempre, o sofista não quer ter razão; o que ele quer é provocar o outro, fazê-lo falar, chamá-lo para a polêmica, para a guerra das palavras. 179 Diógenes, todavia, o cínico, ou seja, o “cão”, teve de abandonar Sinope, sua cidade natal, porque seu pai teria falsificado moedas; cf. Klaus Heinrich, “Antike Kyniker und der Zynismus der Gegenwart”, in: Das Argument, Nr. 37, 1966, p. 108. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber68 Foram postas em circulação várias falsificações primorosas Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber69 “4000 pessoas foram mortas no trabalho em 1976” Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber70 Agora, porém, o Coletivo A/traverso propõe disseminar informações falsas, ou seja, transmitir comunicados falsos que “provocam acontecimentos factuais”. Como deve ser entendida essa fórmula?180 Por um lado, pôr em circulação informações com assinatura oficial tão bem imitada que seja capaz de enganar, sendo que tudo é calculado de tal maneira que o receptor, num primeiro momento, tome-as falsamente por comunicados oficiais. Ao mesmo tempo, porém, esses sinais falsificados promovem a sua própria revelação, pois a sua intenção e seu propósito declarado são justamente mais cedo ou mais tarde serem reconhecidos como tais. Resultam daí dois tipos de efeitos: um bem direto, ainda irônico, que geralmente se expressa em gargalhadas quando a falsificação é descoberta. O outro efeito de alcance muito maior consiste no descrédito lançado sobre a linguagem oficial. Esse é o acontecimento propriamente dito181 que os comunicados falsos devem gerar. Eles desagregam a aparência de objetividade e naturalidade que essa linguagem tenta dar a si mesma, desvelam sua subjetividade, ou seja, sua arbitrariedade e, desse modo, questionam radicalmente a sua verdade. Não tanto por confrontá-la com uma inverdade, mas porque põem em movimento um mecanismo de deslize que acaba solapando a credibilidade do conjunto das declarações oficiais: num primeiro passo, põe-se em dúvida algo que, em virtude da sua assinatura, de sua legitimidade, parece ser verdadeiro; poderia ser falso, não obstante a assinatura correta – como provam as informações falsas quando elas estão em sintonia exata com os códigos requeridos. E, uma vez nascida, a desconfiança imediatamente se estende a toda uma série de verdades familiares. Especialmente suscetível é a linguagem da política. Porque ela age segundo o “Princípio da cooperação comunicativa”182, segundo o qual seu sentido não pode ser limitado exclusivamente a certo conteúdo ideológico exposto por ela, mas, muito antes, reside justamente em estabelecer uma relação de confiança. A linguagem política busca uma espécie de crédito. Ela age como se ela fosse o resultado de um armistício: sua verdade depende da existência da não verdade, proclamada pela oposição. De modo correspondente, nessa relação de confiança só há duas variáveis presentes: a possibilidade da anuência e a possibilidade da rejeição. Porém, entre o consenso e o dissenso abre-se um vasto campo para o que poderíamos chamar de momentos de desconfiança declarada. Esse é um terreno ideal para a falsificação. Os comunicados falsos não permitem nem anuência nem rejeição. Ele corroem a relação de confiança que a política – e o mesmo vale para os meios 180 Cf. também – se possível – Piero Lo Sardo, Angelo Pasquini, Notizie false che provocano eventi veri, Torino, 1976. 181 Não se trata, portanto, de efeitos tão palpáveis da informação falsa como aqueles que se deram em Praga, no ano de 1968, quando a população removeu todas as placas com os nomes das ruas ou as trocou de lugar para confrontar os invasores soviéticos com um labirinto. 182 Cf. Lucrezia Escudero Castagnino, “Remarques pour une pragmatique du discours politique”, in: Tasso Borbé (Ed.), Semiotics Unfolding, Berlin/New York/Amsterdam, 1984, v. 1, p. 479s. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber71 de comunicação de massa – tenta instalar. Como falsificações manifestas e reconhecíveis por todos, eles querem dar a impressão de não serem nada além de parte daquele amontoado de inumeráveis inverdades que perfazem o sistema de informação.183 Nesse caso, porém, resta uma única postura adequada: a da recepção não cooperativa.184 Não se trata tanto de desacreditar a política, mas, antes, de redespertar a inteligência crítica: dessa maneira, ao valor como entretenimento associa-se a função educativa das falsificações. Para difundi-las foi fundado na capital o CDNA (Centro di diffusione di notizie arbitrarie)185. Esse clube, que surgiu com o objetivo “de propagar a arbitrariedade em diversos âmbitos da vida civil”186, deu à luz uma série de iniciativas extremamente interessantes na área da informação, que, muitas vezes, porém, foram mal interpretadas e colocaram seus membros em conflito com as leis vigentes. Sendo que eles apenas haviam “encontrado na falsificação o mais fecundo dos solos para a inovação poética”187. Foram postas em circulação várias falsificações primorosas. Em diversas cidades, os jornais locais traziam notícias incomuns. Certa manhã, por exemplo, o diário bolonhês conservador Il Resto del Carlino saiu com a seguinte manchete: “4000 pessoas foram mortas no trabalho em 1976” – “A carne aumenta / Cordeiros com polenta” (Agnelli = cordeiros também é o nome do presidente da Fiat). Ou, em janeiro de 1976, uma “célula mao-dadaísta” distribuiu, num grande evento público do Partido Comunista, um panfleto assinado pela associação dos industriais italianos, no qual esta expressava sua aprovação e até seu entusiasmo pela linha política do PCI. Enquanto os trabalhadores engajados do partido tomaram conhecimento do texto com satisfação tacanha, muitos membros simples reconheceram a ironia e não puderam segurar as gargalhadas. VII. 183 Cf. a análise desse tema em Daniel J. Boorstin, “Vom Sammeln der Nachrichten zum Herstellen von Nachrichten”, in: Id., Das Image oder Was wurde aus dem amerikanischen Traum?, Reinbek, 1964, p. 13-44. 184 Mais uma vez Goffman, agora com seu tema preferido, a espionagem, que por natureza deve levar essa postura ao extremo: “Está aí uma notícia recebida sem interferência, fácil de entender. Sob que luz ela deve ser vista, a que reinterpretação sistemática, palavra por palavra, ela deve ser submetida? A emissora realmente fez o que ela parece ter feito, a saber, transmitiu uma notícia séria e confiável? Ou ela apenas está testando a transmissão? Ou fazendo uma piada? Ou transmitindo uma notícia falsa porque passou a trabalhar para o outro lado? Ou transmitindo com uma pistola apontada para a cabeça e de alguma maneira tentando deixar isso claro para o receptor?” Erving Goffman, Strategische Interaktion, München/Wien, 1981, p. 121. 185 “Centro de Difusão de Notícias Arbitrárias”. 186 Sobre o CDNA informam Angelo Pasquini, Piero Lo Sardo, Giga Melik, Mario Canale, “Il vero/falso del ‘Male’”, in: alfabeta, n. 15/16, jul./ago. 1980, p. 27s. 187 Idem. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber72 Mas o grau máximo de perfeição foi atingida pela arte da falsificação no semanário Il Male (O mal/igno)188, em cujo surgimento alguns membros do CDNA tiveram participação decisiva. Com mais de 100.000 exemplares vendidos semanalmente e uma média considerável de exemplares confiscados – o que, aliás, levou a uma anotação no Relatório Carter sobre os direitos humanos189 – essa Revista de sátira politica – como diz o seu subtítulo – se tornou um sucesso em todos os sentidos. 188 Mas também “ruim”, “desventura”, “desgraça”, “prejuízo”, “desvantagem”, “malfeito”, “sofrimento”, “doença”, “dor”. 189 Ugo Volli, “Mode modi modelli”, ibid., p. 153ss. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber73 Com mais de 100.000 exemplares vendidos semanalmente e uma média considerável de exemplares confiscados Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber74 Seus redatores viam a política italiana como um cenário teatral: “Il Male foi a irrupção do cômico no palco, a voz de Arlequim, que – oriundo do ritmo do diálogo teatral – declara o que os “atores reais” devem dizer no palco”.190 Os “atores reais” da vida pública são tomados literalmente, ou melhor, pegos no lapso, “capaz de iluminar a cena e, desse modo, o sentido mais profundo do texto”. Para chegar a essa iluminação, Il Male recorre à falsificação. As pessoas e sua linguagem são reais, mas o enredo em que elas atuam é montado: “a falsificação como possível cenário, em que os protagonistas continuam a se mover com seus estereótipos, seus tiques e suas obsessões”. Em vista da Terceira Guerra Mundial ou do encontro com extraterrestres nada se modifica na sua linguagem. “A ordem do seu discurso não pode tolerar qualquer interrupção, porque é uma ordem paranoica”. E ela está sempre preocupada com a normalidade, da qual ela quer derivar os acontecimentos mais abstrusos – precisamente falsificados. “Não há lugar para espanto, admiração ou consternação”. Porém, justamente dessa forma nossa linguagem se torna irreal: “O que deveriam ser declarações com sentido, transforma-se em pura coleção de lapsos, de humor involuntário”. A seguir uma pequena seleção de falsificações, principalmente de capas “fac-símiles” de jornais diários italianos, com as quais Il Male fez furor: O primeiro grande sucesso foi uma edição do diário comunista l’Unità, na qual – no ponto alto do Compromisso Histórico – foi dado a público que o PCI havia rompido com os democratas cristãos. “Berlinguer diante de uma massa gigantesca em Gênova: fim com a DC [Democracia Cristã]”, dizia a manchete, e o subtítulo: “Eles desfilaram por 28 horas. Eram 7 milhões”.191 Aliás, com diretor assinou Harpo, como codiretor Zeppo e como diretor responsável Groucho Marx. No entanto, a nova linha teria sido discutida até nas esferas mais altas do partido. Pouco depois e um pouco antes do Natal, apareceu uma estupenda edição extra do Corriere della Sera.192 “O homem não está mais só no universo – De outra galáxia eles chegaram à Terra”, subtítulo: “Ontem às 6:15 h (hora local) uma nave espacial aterrissou no altiplano de Barranca del Cobre no México. Por mais de 18 horas a notícia foi mantida em segredo. Hoje de madrugada, às 4:37 h a confirmação pelo Conselho de Segurança da ONU. Ponto de partida dos viajantes espaciais deve ter sido a Constelação de Sagitário. Primeira troca de mensagens pela emissão de odores. ‘Esse é um acontecimento assombroso. Hoje começa a era da paz galática”, disse Waldheim, secretário das Nações Unidas. Silêncio da TASS. Postura estritamente reservada no Vaticano”. Umberto Eco se manifesta com o comentário: “Quando falar é calar. O marciano ausente”193. Na página 2, constam relatos detalhados, uma 190 Cf. no que segue A. Pasquini, P. Lo Sardo, G. Melik, M. Canale, “Il vero/falso del ‘Male’”, 191 192 193 Il Male, 1º ano, n. 23, 20 de setembro de 1978. Il Male, 1º ano, n. 36, 19 de dezembro de 1978. Uma alusão ao seu livro La struttura assente [A estrutura ausente]. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber75 ibid. poesia de Eugenio Mortale intitulada “O céu”, um artigo “Reações confusas dos políticos italianos” e uma breve nota “No Vaticano aguarda-se um sinal do Espírito Santo”. Mais adiante “Duas perguntas para Michel Foucault”, um relato sobre uma “onda de suicídios em Hollywood”, obituário e pequenos anúncios. A falsificação deve ser crível. E o êxito da falsificação depende decisivamente da sua originalidade.194 Nesse caso, ela repousava sobre um aspecto bastante poético da falsificação, a saber, a nostalgia do futuro; no próximo caso, estava baseada nos temores em relação ao presente. “É a 3ª Guerra Mundial” anunciou a manchete de capa do La Repubblica,195 de Roma, “7 milhões de mortos nas últimas 12 horas” e ao lado a foto de um cogumelo atômico sobre o Lago Baical. O editor Scalfari exorta os leitores a “Manter a calma”, e o colunista dos astros Giorgio Bocca escreve sobre o tema “O homem é uma besta”. No interior do jornal, encontra-se uma lista de regras de comportamento sob o título “Salve-se quem puder!” e, cobrindo toda a segunda capa, publicidade da Firma DIO (DEUS): “Uma empresa quadrada que faz girar o mundo... parece mesmo que sem ele o mundo pararia”. 194 Cf. Andreas Höfele, “Die Originalität der Fälschung. Zur Funktion des literarischen Betrugs in England 1750-1800”, in: Poetica, v. 18, 1986, caderno 1-2, p. 91. 195 Il Male, 2º ano, n. 6, 20 de fevereiro de 1979. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber76 um pouco antes do Natal, apareceu uma estupenda edição extra do Corriere della Sera Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber77 A falsificação deve ser crível Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber78 e, cobrindo toda a segunda capa, publicidade da Firma DIO Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber79 “A partir deste preciso momento haverá poucos motivos para rir” Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber80 La Stampa, de Turim, vê “Luz no fim do túnel” Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber81 “Quanto mais improvável um incidente, mais provável ele é” Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber82 “Sem um Partido Democrata Cristão forte todos os italianos, inclusive nós, sentem-se um pouco órfãos” Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber83 Seus autores chamaram isso de o aspecto “holográfico” da falsificação Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber84 Essa falsificação deu ensejo para uma reportagem zombeteira do New York Times.196 Il Male, porém, respondeu com uma advertência: “Cuida de ti mesmo, New York Times, logo chegará a tua vez!”197 Seguiu-se, então, a falsificação certamente mais famosa de Il Male.198 Fiel à noção formulada pelos dadaístas: “Quanto mais improvável um incidente, mais provável ele é”199, Il Male fez com que vários jornais noticiassem com evidência fotográfica a prisão do ator muito popular Ugo Tognazzi como cabeça das Brigadas Vermelhas. Il Giorno abre a edição com a manchete: “De agora em diante haverá poucos motivos para rir. Tognazzi é o cabeça das BV”. O título do editorial: “Isso era de se esperar”. O “ator louco” teria sido preso durante a madrugada em sua mansão. Ao lado fotos, nenhuma fotomontagem, fotos autênticas em cores de Ugo Tognazzi algemado, vestido com um enorme avental, sobre o qual se sobressaía o emblema dos cigarros Players Navy Cut, e em toda volta os redatores de Il Male disfarçados de carabinieri segurando metralhadoras e com bigodes falsos, que lhes dão um aspecto mais autêntico do que o dos verdadeiros. La Stampa, de Turim, vê “Luz no fim do túnel” e noticia ainda que, graças aos bravos cães da polícia alfandegária, dois traficantes de trufas foram presos no aeroporto. O Paese Sera, por sua vez, noticia que Tognazzi teria se declarado como preso político. “Ele está louco, mas eu o perdoo”, diz um colega antes de ir para a clandestinidade. Por fim, ainda um artigo sobre “Uma carreira sem igual” com comentários de Roberto Benigni e Bettino Craxi. Uma semana depois, pregaram a próxima peça: poucos dias antes das eleições para o Parlamento, jornais falsificados por Il Male anunciaram que os democratas cristãos se retiram “da cruel disputa eleitoral”.200 O Paese Sera de tendência comunista intitula o editorial “A grande solidão das esquerdas” e externa os “Sentimentos de todo o país pelo súbito falecimento desse gigantesco partido”. A direção do PCI publica uma petição pelo retorno da DC ao Parlamento: “Sem um grande partido democrata-cristão, todos os italianos, nós inclusive, sentem-se um pouco órfãos. [...] Sozinhos não somos nada, com a DC somos tudo, tudo, tudo!” Il Popolo, o diário da DC, declara que, após a chocante decisão da direção do partido, os fundos do partido “serão divididos com toda calma entre os membros”. E Il Giornale, por fim, traz na rubrica “A voz do médico” esclarecimentos do diretor da Clínica Universitária de Milão sobre o tema “O que é um colapso”. O anseio do público desempenha um papel decisivo na recepção de falsificações bem-sucedidas, o que demonstra a edição extra do Corriere dello Sport durante o Campeonato Mundial de Futebol de 1978. “Os jogos foram anulados” mancheta Il Male em 196 197 198 199 200 The New York Times, 2 de março de 1979, p. 3. Il Male, 2º ano, n. 11, 27 de março de 1979, p. 4. Il Male, 2º ano, n. 17, 8 de maio de 1979. Walter Serner, Hirngeschwuer, ibid., p. 34. Il Male, 2º ano, n. 18, 15 de maio de 1979. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber85 letras garrafais: teria sido descoberto um doping em massa dos holandeses, que haviam eliminado a Itália da competição. A notícia não só obteve o aplauso entusiástico dos tifosi [fãs, torcedores], mas também fez com que, em pouco tempo, o trânsito de Roma ficasse paralisado por várias horas; no dia seguine, os jornais escreveram: “Si è fermata la città”201. Seus autores chamaram isso de o aspecto “holográfico” da falsificação: “a realização de um espaço multidimensional por meio do evento falsificado – fruto de um curto-circuito da informação”.202 Fazem parte desse aspecto as discussões sinceras sobre a nova linha do Partido Comunista, bem como os telefonemas agitados por ocasião da prisão de Ugo Tognazzi ou as conversas que, após a notícia da chegada dos extraterrestres, aconteceram em toda parte, nos bares, nos ônibus e nas filas de espera diante dos guichês dos bancos; “em lugares, portanto, nos quais normalmente predomina um congestionamento da comunicação ou então ‘a ordem do discurso’”. Causaram sensação no plano internacional duas falsificações de jornais estrangeiros. Por ocasião da primeira visita do Papa à Polônia, em junho de 1979, Il Male saiu com um número da Trybuna Ludu, órgão central do Partido Operário Comunista da Polônia, e distribuiu uma versão polonesa também na pátria do Papa. Nela, comunica-se, tendo como lema “Clima alegre em todo o país”, numa manchete de quatro linhas cobrindo toda a página: “O Primeiro Secretário do Comitê Central do Partido Operário Unificado Polonês, o camarada Edward Gierek, foi demitido. O POUP foi dissolvido. Karol Woityla no trono da Polônia”. A dissolução do partido é exposta como consequência de um esfriamento geral que teria tomado conta dos quadros partidários já há nove anos203 . Sob o título “O bacilo da verdade”, o redator-chefe confessa ter se enganado ao afirmar que o partido gozava de boa saúde: “Como pôde acontecer isso? Talvez porque a verdade não mais seja verdadeira e a falsificação não mais seja falsa? Talvez esteja havendo uma confusão singular desses dois conceitos? E essa confusão poderia minar também a autoridade do marxismo-leninismo e do socialismo científico? [...] Enquanto essas terríveis questões se comprimem no cérebro, aparece uma outra verdade, mais eterna, mais abrangente e imutável (em suma, a verdade religiosa) no topo da grande pirâmide que representa a consciência nacional polonesa. Estamos convictos de que faremos deste nosso Trybuna Ludu o jornal do Novo Partido Operário Unificado Cristão da Polônia. Ele estará a postos, exatamente como ontem, como sempre, para seguir a verdade, isto é, o poder. [...] Esse jornal que estão lendo hoje, esse jornal da transição – jamais o lerão de novo. Boa sorte.” 201 202 “A cidade parou”, slogan clássico dos partidos de esquerda após greves bem-sucedidas. Angelo Pasquini, Piero Lo Sardo, Giga Melik, Mario Canale, “Il vero/falso del ‘Male’”, ibid., p. 28 nota 1. 203 Alusão ao levante dos trabalhadores de Danzig, em 1970. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber86 “Como isso pôde acontecer?” Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber87 Na segunda falsificação perpetrada a nível internacional204 por Il Male, trata-se de um número falso do Pravda, com uma tiragem de 10.000 exemplares distribuídos durante os Jogos Olímpicos de 1980 em Moscou. Para transportá-los até lá, havia sido escolhida a mesma rota pela qual a lendária Iskra de Lênin encontrou seu caminho até seus leitores, a saber, via Istambul. O teor de verdade do Pravda falsificado foi assegurado pela cooperação com um grupo de dissidentes: Vladimir Maximov, Eduard Kusnezov, Vassili Betaki, Violeta Iverni, Natália Gorbanievskaja, Leonid Pliusch e Josip Brodski. O argumento central do falso Pravda, que era tão parecido com o oficial a ponto de poder ser confundido, era simples e o editorial o explana da seguinte maneira: “A União Soviética não existe mais. Acabou do domínio do partido bolchevista. Brejnev, Suslov e camaradas não governam mais, nem na velha e infeliz Rússia, nem em suas gigantescas províncias. [...] Apenas estamos repetindo o que já dissemos há duas semanas, mas ainda há pessoas que escrevem perguntando se isso é mesmo verdade. Pois bem, leitores incrédulos, é verdade, a mais pura verdade, o que já é indicado pelo nome irônico do nosso jornal. Com certeza, quando não é falsificada, a verdade é improvável e estamos convictos de que muitos leitores não acreditam em nada do que dizemos.” Na tradição dessas falsificações, posicionou-se também uma retardatária, uma edição falsificada do jornal das Forças Armadas soviéticas Estrela Vermelha, da qual foram distribuídos, no inverno de 1983/1984, por volta de 30.000 exemplares nos países do Pacto de Varsóvia e 15.000 no Afeganistão. A capa mostrava um soldado jogando fora a sua kalachnikov encimado pelas palavras “Chega de guerra! Todos para casa!”. Em seguida, comunicase aos soldados do Exército Vermelho que a guerra no Afeganistão acabou graças a um complô desferido pelos irmãos Tchonkin205 contra o Comando Central em Cabul. 204 Cf., por exemplo, Jean-Marcel Bouguereau, “‘La Pravda’ en flagrant délit de vérité”, in: Libération, 21 de julho de 1980, p. 14s. 205 O nome sem dúvida foi tomado de empréstimo do escritor soviético exilado Voinovitch, cujo herói romanesco é o soldado Tchonkin: sua tarefa era vigiar um avião enorme, mas ele foi esquecido por sua unidade no cumprimento dessa tarefa. Vladimir Voinovitch, A vida e as extraordinárias aventuras do soldado Ivan Tchonkin, Círculo do Livro, 1991. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber88 “Pois bem, leitores incrédulos, é verdade, a mais pura verdade” Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber89 Eles teriam se infiltrado no Quartel-General e, com o auxílio de cogumelos mágicos, posto todo o comando militar do Exército Vermelho no Afeganistão “para dormir por muito tempo”. Essa operação maldosa – até mesmo na Cabul ocupada foram afixadas algumas centenas de falsificações – surpreendentemente provocou um posicionamento oficial da parte do Estrela Vermelha: “esse tipo de provocação propagandística contradiz fundamentalmente todas as normas não só da ética jornalística, como também da honradez mais elementar”, dizia uma reação raivosa que responsabilizou “Reagan e seus cúmplices” por quatro páginas falsificadas do Estrela Vermelha.206 No entanto, os iniciadores da ação, entre os quais o exdiretor de Il Male, Vincenzo Sparagna, nada queriam além de mostrar que suas invencionices só se diferenciam das do Estrela Vermelha autêntico em um ponto: que, quando dizem a inverdade, não pretendem enganar ninguém. De modo correspondente, o empreendimento se chamou “Operação Tchonkin, ou como se muda o mundo fazendo-o finalmente divertir-se”. Entretanto, em distinção às falsificações anteriores, dessa vez a paródia tomou como referência uma situação tragicamente concreta. Para além da diversão geral proporcionada pelas falsificações e abstraindo do fato de que o trabalho do CDNA ter levado a uma sequência de mal-entendidos, que lançaram sombras sobre a vida de alguns de seus membros207 , é preciso reconhecer a intuição brilhante com que Il Male foi capaz de detectar a confusão entre realidade e representação. Os experimentos com os comunicados falsos que provocam eventos verdadeiros expuseram claramente uma estonteante perda do senso de realidade por parte do público, que tomou as falsificações por verdade literal, sem retoques. É verdade que elas se moveram sempre dentro da ordem do possível: tanto quando eventos realmente ocorridos “rejeitaram o sentido atribuído a eles, resistiram obstinadamente às interpretações correntes e degradaram os donos da linguagem à condição de bufões”208, como na simulação de acontecimentos desejados ou temidos. O fato de um dos seus personagens favoritos ter sido afinal apanhado como cabeça de uma conspiração diabólica deve ter satisfeito os desejos mais secretos do público. De qualquer modo, ficou evidente que havia disposição para acreditar em tudo. 206 Cf. Vincenzo Sparagna, Shavik Shuster, “Operazione Chonkin ovvero Come cambiare il mondo facendolo finalmente divertire II”, in: Frigidaire, n. 38, jan./1984, p. 46. 207 Assim, Angelo Pasquini foi preso durante o sepultamento do seu pai sob as acusações infundadas de “incitação ao crime” e “formação de associação subversiva” e detido por vários meses; “Bifo”, por sua vez, só conseguiu escapar à prisão fugindo para o exterior – ele havia escrito um poema que provocou o desagrado das autoridades... Cf. “Lettera Aperta di un provocatore”, in: Autori Molti Compagni, Bologna Marzo 1977... fatti nostri..., ibid., p. 213s. Também Calogero Venezia, o diretor de Il Male, deveria passar novecentos dias na prisão, exatamente por se o diretor do “Maligno”. 208 A. Pasquini, P. Lo Sardo, G. Melik, M. Canale, “Il vero/falso del ‘Male’”, ibid. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber90 Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber91 Vanguardas o são apenas por breve tempo; e o melhor que pode suceder-lhes é ter preenchido, no sentido pleno da palavra, esse seu tempo. Depois delas têm início as batalhas em campos mais extensos. Guy Debord209 È tempo di migrare, è tempo di restare. Giunta al confine del regno, dove si narrano ambedue le storie; giunta al crocicchio delle separazioni, dove tutti i sentieri divergono, Alice si guardò attorno indecisa sul da farsi. A/traverso210 NOVOS CONTINENTES Essa capacidade de “fazer crer” permitiu obter novas noções a respeito da construção da realidade dos meios de comunicação de massa. Com o auxílio das “informações falsas” não foram só aclaradas na prática certas regras da política bem-sucedida de informação, como, por exemplo, fazer constatações banais e logo depois desmenti-las. Sobretudo, porém, a intenção era mostrar que a mídia cria um mundo essencialmente falso. “Eles não falsificam para que creiamos que alguém disse a verdade”, diz Umberto Eco211 sobre os “falsificadores de hoje”, que tocam seus negócios nas “antessalas dos ministérios, nas salas dos fundos do poder legal ou criminoso”. Em contraste com estes que “falsificam sem parar” e disseminam “mentiras evidentes e que cada um pode identificar”, a intenção das manobras às vezes ousadas do CDNA é estritamente a de promover o esclarecimento. Os comunicados falsos revelam de certo modo o roteiro oculto da realidade. Depois disso, porém, não se podia manter por mais tempo a concepção ainda bastante moderada, de que os acontecimentos sociais não são objetos que já se encontram em algum lugar da realidade, só existindo na medida em que os meios 209 Guy Debord, In girum imus nocte et consumimur igni, Berlin 1985, p. 85. (Note-se o palíndromo.) 210 “É tempo de migrar, é tempo de ficar. Junto aos confins do reino, onde se conta ambas as histórias, junto à encruzilhada das separações, onde todos os caminhos divergem, Alice olhou em volta, indecisa quanto ao que fazer”, “Cloacale”, in: A/traverso, jul./1976, p. 4. 211 Umberto Eco, “Scheinbar echt, also falsch”, in: Die Zeit, n. 52, 19 de dezembro de 1988, p. 59. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber92 de comunicação os noticiam. Fazia-se necessária um adendo radical: Não aceitamos a hipótese, segundo a qual há uma realidade à qual os meios de comunicação sejam exteriores.212 Os meios de comunicação passam a ser vistos como um enorme aparato visando à encenação da realidade. A realidade aparece como um cenário, cujo roteiro já foi escrito e fixado a priori pelos meios de comunicação de massa. Porém, se a relação entre realidade e signo caducou a tal ponto porque os sinais não coincidem mais com ela, então a questão não é querer colocá-los em sintonia com ela para que expressam verdades sobre a realidade, nem manipular a relação para disseminar inverdades. Há, muitos antes, uma constante luta pela verdade dos sinais, que não pode ter mais como critério uma natureza pré-significante do real: é verdadeiro..., é falso..., é um mistério..., é uma ilusão... A realidade nada mais é, então, que um universo de sinais já instalados, possivelmente falsificados, aos quais, todavia, habituamo-nos de tal modo que não se consegue mais identificá-los como tais. Disso se tira uma conclusão estratégica interessante, que é mais do que uma simples renomeação: somente uma realidade que às vezes consegue interferir nos programas dos seus sistemas de sinais ainda merece esse nome: Portanto, chamaremos de real apenas aquela ação que, realizada ad hoc, num kairós, num momento oportuno, consegue modificar os sistemas de simulação já escritos que é a mídia. Falaremos de falsificação sempre que o real for capaz de romper os sistemas de descrição, os roteiros já fornecidos pelo discurso. Chamaremos de falsificação todo o procedimento, toda a ação, que, num kairós, num momento oportuno, num tempo dado, consegue romper os sistemas de descrição, os sistemas de simulação, os roteiros que são produtos do discurso.213 Unicamente na falsificação dos roteiros da mídia ainda temos, portanto, um vislumbre do real. Sendo assim, em vez de continuar 212 “Non accettiamo l’ipotesi per cui c’è una realtà alle quale i media sarebbero in esteriorità.” Alberto Benini / Maurizio Torrealta, Simulazione e falsificazione. II segno come valore: semiotica e lotta di classe, Verona 1981, p. 39. 213 “Chiameremo dunque reale soltanto quella azione che, compiuta ad hoc, con un kairós, a tempo apportuno, riesce a modificare i sistemi di simulazione già scritti che sono i media. Parleremo dunque di falsificazione tutte le volte che il reale riesce a rompere il sistema delle descrizioni, delle sceneggiature già fornite dal discorso.Chiameremo falsificazione ogni procedimento, ogni azione, che in un kairós, in un tempo opportuno, in un tempo dato, riesce a rompere i sistemi di descrizione, i sistemi di simulazione, le sceneggiature che sono prodotte dal discorso.” Ibid. Cf. também a “Introduzione”, um diálogo com P. Fabbri e F. Berardi “Bifo”, ibid. p. 9-26. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber93 a escrever a realidade preparada, trata-se da “simulação de paradigmas semióticos de outros universos sociais, produtivos, informativos, territoriais etc.”214. Isso, porém, sempre já foi o propósito e o ofício das vanguardas artísticas. Na era da comunicação de massa, todavia, a vanguarda perde suas antigas características. “A difusão do sinal como equivalente universal de todas as coisas e a transferência da inteligência produtora de sinais para o interior das máquinas não só traz consigo modificações radicais nas formas da linguagem e do pensamento”.215 Ao mesmo tempo, surge uma nova geração da vanguarda:216 ela provém de uma inteligência sem utilidade social e que, em consequência, tornou-se polivalente. Os procedimentos artísticos da vanguarda histórica são parte da sua vida cotidiana e a mídia lhes é útil para divertir-se e tornar a realidade social paradoxal, ou seja, suportável. “Essa geração tornou realidade o sonho da vanguarda histórica. Elas falavam como Beckett ou Joyce. Mas nenhum grupo pode recriar o seu código dia após dia sem condenar-se, desse modo, à dissolução.”217 Contudo, dissolução no sentido de uma dispersão: uma expulsão do laboratório das belas-artes – um espraiamento sobre toda a superfície do organismo social. Esse é o destino da vanguarda acéfala. 214 215 216 217 Franco Berardi “Bifo”, “Introduzione”, ibid., p. 20. Maurizio Torrealta, ibid. p. 34. Cf. Maurizio Torrealta, “Painted Politics”, in: Semiotext(e), n. 9, 1980, p. 102-106. Umberto Eco, “Die neue Sprache der Liebe”, in: Daniel Rondeau, Trans-Europ-Express, Freiburg, 1985, p. 81. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber94 Franco Berardi “Bifo” Lírico, épico, trágico, irônico e cínico No mês de abril de 1977, quando ainda não haviam cessado as agitações que haviam tomado conta das ruas de Roma e Bolonha desde março, a FIOM [Federazione Impiegati Operai Metallurgici], o sindicato dos metalúrgicos, que naqueles anos assumiu uma postura radical no panorama dos sindicatos italianos, convocou uma assembleia nacional dos conselhos de fábrica para discutir as questões levantadas pelo movimento estudantil e pelos jovens sem emprego. Essa assembleia constituiu um momento decisivo na história dos sindicatos italianos e reforçou a forte postura anticapitalista e antiautoritária dos metalúrgicos, que sempre estiveram na linha de frente do movimento operário italiano. Por ocasião da assembleia que teve lugar no Teatro Lirico de Milão, apareceu um panfleto azul-celeste, sob responsabilidade das redações do A/traverso e do Zut – duas revistas, fanzines, que, naqueles anos, eram publicadas em intervalos irregulares e lidas por estudantes, artistas e ativistas do movimento antiautoritário, cujos baluartes eram as universidades de Roma, Bolonha e Pádua, mas também algumas fábricas em Milão e Turim. O título do panfleto azul-celeste era: “Do lírico ao épico, evitando o trágico”. Naquela época, não perdíamos nenhuma oportunidade de fazer piadas. O que exigia, não por último, uma boa dose de desinibição e imparcialidade. Centenas de pessoas estavam trancadas nas prisões italianas, enquanto o Ministro do Interior italiano, um psicopata chamado Francesco Cossiga, ameaçava com repressão e tanques todos aqueles que ousassem sair à rua para protestar contra a política do governo, e nós mesmos eram procurados pela polícia e tivemos de ir para a clandestinidade, caso não quiséssemos acabar na prisão como os outros. Não obstante, ainda não havíamos perdido a vontade de brincar com as palavras. “Do lírico ao épico, evitando o trágico” foi apenas o título de um panfleto, e não consigo me lembrar quem foi que o divulgou entre o povo, pois quem quer que tenha sido responsável por isso ou estava na prisão ou na clandestinidade. De qualquer modo, o panfleto circulou em grande tiragem, pois, naqueles anos, A/traverso era considerada uma revista que conclamava à revolta, e milhares de jovens nas cidades queriam ter o seu exemplar. O jogo de palavras que estava na base do título pode ser lido de duas maneiras. Em primeira linha, era uma mensagem dirigida aos operários reunidos no Teatro Lirico de Milão. A segunda leitura fornecia uma interpretação do desenvolvimento dos últimos Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber95 anos e predizia o que aconteceria com o movimento que, naqueles meses, havia alcançado o ponto culminante de sua força de expressão e do seu poder político. “Lírico, épico e trágico” tornou-se, assim, o slogan poético de um movimento, cujo alvo se tornou a libertação de toda a sociedade do domínio do capital, bem como da ditadura do sentido e da seriedade. O “lírico” se referia às experiências dos anos passados, quando surgiu o movimento dos desejantes, amantes, ternos, sonhadores, como os descreve Enrico Palandri em seu inesquecível romance Boccalone, que trata das histórias de amor e da rebelião dos estudantes bolonheses. No início da década de 1970, formaram-se na Itália posturas que consistiam na jovial rejeição do trabalho assalariado, do tédio burguês e da sociedade da concorrência, e não por último na recusa da tradição familiar católica e do stalinismo. Líamos o Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, as poesias de Antonin Artaud e Maiakóvski, e, aos nossos olhos, os objetivos do movimento operário andavam de mãos dadas com a política esquizofrênica e as exigências da cobiça liberada. O movimento dos desejantes, contudo, tinha em nossa concepção uma tarefa histórica, ou pelo menos parecia-nos ter tal tarefa naqueles anos de intenso ativismo político e rebelde. Nossa tarefa consistia em passar da autonomia existencial e poética para a conquista dos espaços citadinos, quebrar o domínio da economia e fundar uma sociedade libertada. Revolução é uma palavra de peso, uma palavra que havíamos tomado de empréstimo da tradição do início do século XX. Nós não a levávamos muito a sério, como prova um panfleto que imprimimos em junho de 1977 com o seguinte título irônico: “A revolução acabou; nós vencemos”. Não levávamos a revolução muito a sério porque não acreditávamos na possibilidade de restabelecer o mundo, virá-lo de baixo para cima e de cima para baixo. Não acreditávamos que fosse possível encontrar uma verdade apenas substituindo a ordem do discurso dominante por outra ordem. Não queríamos reconhecer nenhuma espécie de ordem, nem mesmo a da revolução. Acreditávamos antes na revolta dos desejantes, durante a qual cada um poderia andar na direção que preferisse, se ter de aceitar posturas obrigatórias previamente estabelecidas, como haviam sido fixadas pela dialética revolucionária do passado com rigor e convicção. Não levávamos a revolução muito a sério, mas gostávamos da palavra. Por isso, imaginamos a revolução como algo épico, que necessariamente se seguiria ao momento lírico da união de todos, ao momento da nova composição social e política da classe operária e dos intelectuais num movimento de revolta. Na forma de um jogo de palavras, conclamamos o movimento operário que se havia reunido no Teatro Lirico em Milão a passar do momento lírico da nova composição bem-sucedida para o momento épico da subversão duradoura. Estávamos perfeitamente cientes de que, na história, esse caminho sempre havia levado a violência, terror, autodestruição e totalitarismo. Justamente o trágico que queríamos evitar. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber96 E conseguimos evitá-lo realmente? Não, não o evitamos, como prova a história dos anos subsequentes. Devido à repressão estatal e às ideologias vetustas que ainda estavam profundamente enraizadas na realidade cultural e social da Itália, o terrorismo se alastrou cada vez mais. À fase anárquica e bem-sucedida do movimento seguiu-se a fase trágica e totalitária do terrorismo. Porém, naquele momento havíamos decidido passar do lírico para o épico, ou seja, da alegria terna dos desejantes para a explosão épica das forças da libertação. E simultaneamente queríamos evitar o trágico, a violência, a repressão e o terror. Não tivemos êxito completo nisso, o que, no entanto, não dependia só de nós. A história desse movimento e daqueles anos na interseção de Modernidade tardia e Pós-Modernidade dos anos oitenta pode ser examinada com o auxílio da lente de aumento das formas retóricas e poéticas (e éticas): diversos estilos e formas de expressão que corresponderam ao espírito da respectiva época. O lírico, o épico e o trágico certamente constituíram formas de expressão que tiveram grande importância na história do movimento daquela época. Quando a linguagem lírica (íntima, sussurrada e terna) tenta se transformar em uma linguagem épica (histórica, altaneira e agressiva), ela se depara com a tragédia da história, com a tragédia histórica das grandes revoluções do século XX – uma história que ainda estava bem viva nos sentimentos, nos pensamentos e nas expectativas dos rebeldes naqueles anos. Porém, se quisermos fazer justiça ao movimento de 1977, sobretudo ao movimento bolonhês, do qual trata este livro, devemos falar da ironia. O que é ironia? Uma pergunta que dificilmente poderá ser respondida. De acordo com os cientistas literários, a ironia é uma figura retórica que nos permite dizer algo afirmando aparentemente o contrário ou ao menos algo bem diferente. Isso pode até ser correto, mas sem dúvida a definição é muito estreita. Não existe uma definição completa da ironia. A ironia é indefinível. Quando queremos definir a ironia, decididamente nos falta ironia. Eu diria que a ironia é um gesto linguístico que suspende a realidade. Suspender a realidade significa não sentir o seu peso. A ironia é, portanto, um gesto linguístico que possibilita ao falante suspender o peso da realidade, libertar-se do peso da realidade. Onipotência da linguagem, leveza. A ironia extrapola o campo dos significados e possibilita conectar qualquer significado com qualquer significante. Ironia é libertação do peso do significado. Ampliação do campo da interpretação, até libertar-se da realidade. Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber97 Nas décadas de 1960 e 1970, nos anos das grandes revoltas políticas dos operários e dos estudantes, a realidade da exploração e da opressão foi evidenciada e combatida com as armas da hipérbole, da invectiva. Essas armas, no entanto, são tão pesadas quanto a realidade da exploração e da opressão. Vieram, então, os índios metropolitanos, os mao-dadaístas, os de pensamento divergente, os leitores de Deleuze/Guattari, os leitores de Artaud. Em vez de lutar, eles recorreram à ironia. Eles davam de ombros. Frente à opressão pelo Estado, frente à prisão de milhares de pessoas, a revista A/traverso escreveu: “A revolução acabou; nós vencemos”. Ela pura e simplesmente deu de ombros. Um gesto irônico que, no plano da linguagem, dissolve o peso da realidade. Na periferia da tragédia histórica que se anuncia no ocaso da Modernidade, surgiu o movimento de 1977 e deu de ombros. Naquela época, tomamos consciência de que a realidade não tem só um significado, mas um número infinito de significados. E dentre o número infinito de significados que se pode dar a um sinal, elegemos o mais absurdo, o mais ágil, o que se encontrava mais distante da ordem simbólica do poder. A revolução acabou; nós vencemos. Nos anos subsequentes, ficou evidente, contudo, que se tratava de um jogo perigoso. A ironia suspende o peso da realidade, joga o significante contra o significado e escolhe dentre milhares de interpretações possíveis, a mais ágil, a mais fugidia. No solo da ironia, contudo, também cresce um inço chamado cinismo. Como mostra Peter Sloterdijk, em seu livro sobre a razão cínica, ironia nada tem a ver com cinismo. O cinismo é uma variante maligna da ironia; é a ironia a serviço do poder. O fato de que o lugar das rádios livres acabou sendo ocupado por emissoras privadas de televisão, que a Rádio Alice foi substituída pelo Canale 5, a emissora de TV que deu início a marcha triunfal de Berlusconi, significa que a ironia se converteu em cinismo. Como a ironia, o cinismo também sabe que não existe a verdade e que cada sinal pode ser interpretado de mil maneiras diferentes. Contudo, o jogo da ironia consiste em suspender a realidade, torná-la mais leve, enriquecer os pobres e levar felicidade ao mundo dos entristecidos. O cinismo liberta o sinal do significante e, com isso, coloca-se a serviço do poder. Como o irônico, o cínico também conhece muito bem a verdade, a saber, a verdade que consiste na liberdade da interpretação. O cínico, porém, subordina essa liberdade à dominação. O irônico tem um sono feliz porque não há quem possa despertá-lo dos seus sonhos. O cínico tem um sono leve. Ele dorme e sonha, mas desperta imediatamente quando o poder chama por ele. Após o fim do movimento, após o rollback [retrocesso] político e o terrorismo, os intelectuais italianos correram em bandos Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber98 para o poder cínico da televisão e para os sinais sem significado girando loucamente em torno de si mesmos. Tempos difíceis para a ironia, agora que Berlusconi com amplo sorriso na cara ocupou todo o palco político. Mas a ironia sempre se encontra do outro lado, sempre pronta para escapar do terreno cercado da Mediascape, o império de Berlusconi. A ironia, um gesto linguístico (e também ético) que possibilita escapar da ditadura do sentido e da interpenetração de todos âmbitos da vida pelos meios de comunicação de massa poderia ser designada também de media-escape. Tradução de Nélio Schnaide Projeto Revoluções [A vanguarda dispersa] Klemens Gruber99