UNIVERSIDADE DO OESTE DO PARANÁ
CENTRO DE EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E ARTES
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM LETRAS – NÍVEL DE
MESTRADO E DOUTORADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUAGEM E SOCIEDADE
ELISANGELA REDEL
ENTRE A CIÊNCIA, A CRÍTICA E O DRAMA:
O IMIGRANTE ALEMÃO EM CANAÃ,
UM RIO IMITA O RENO E A FERRO E FOGO
CASCAVEL – PR
2014
1
ELISANGELA REDEL
Dissertação apresentada à Universidade
Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE
– para obtenção do título de Mestre em
Letras, junto ao Programa de PósGraduação Stricto Sensu em Letras – nível
de Mestrado e Doutorado – área de
concentração Linguagem e Sociedade.
Linha de Pesquisa: Linguagem Literária e
Interfaces Sociais: Estudos Comparados.
Orientadora: Profª. Drª. Rita das Graças
Felix Fortes
CASCAVEL – PR
2014
2
3
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
R314e
Redel, Elisangela
Entre a ciência, a crítica e o drama: o imigrante alemão em Canaã, Um rio
imita o reno e A ferro e fogo. / Elisangela Redel — Cascavel, 2014.
176p.
Orientadorª: Profª. Drª. Rita das Graças Felix Fortes
Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual do Oeste do Paraná,
Campus de Cascavel, 2014
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras
1. Literatura brasileira. 2. Imigração alemã. 3. Estereótipo. 4. Identidade. I.
Universidade Estadual do Oeste do Paraná. II. Título.
CDD 20.ed. 808.3
Ficha catalográfica elaborada por Helena Soterio Bejio – CRB 9ª/965
4
AGRADECIMENTOS
- À minha orientadora, Professora Rita das Graças Felix Fortes, meu respeito e
admiração pelas encantadoras e sábias orientações, de que só uma grande mestra
é capaz;
- Ao curso de Letras Português-Alemão da Universidade Estadual do Oeste do
Paraná, campus de Marechal Cândido Rondon, em especial aos meus primeiros
orientadores de pesquisa, professores Stéfano Paschoal e Izabel Cristina Souza
Gimenez;
- Ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, da Universidade
Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES) por viabilizarem a realização deste trabalho;
- Ao Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD), pela bolsa concedida para
que eu pudesse realizar parte desta pesquisa na Alemanha;
- À Professora Elise Schmitt (UNIOESTE) e ao Professor Paulo Astor Soethe
(UFPR), pelo carinho e pelo grande apoio durante toda a minha trajetória acadêmica;
- À Franciele Martiny, Deysielle Draeger e à Ana Paula Luchesi, pela amizade e pelo
carinho;
- Aos colegas e amigos Bruna, Job, Elizete, Patricia, Maricélia e Franciele pelo
companheirismo e pelos momentos inesquecíveis;
- À minha família, descendente daqueles que um dia, a ferro e a fogo, também
plantaram suas raízes no Brasil e
- Ao Ilton, pelo seu amor.
5
Quando compreendemos o passado,
o
que
compreendemos
é
a
personalidade humana e é através
da
personalidade
humana
que
compreendemos tudo o mais. E
compreender
uma
existência
humana significa redescobri-la em
nossa própria experiência potencial
(Erich Auerbach – A língua literária e
seu público).
6
REDEL, Elisangela. Entre a ciência, o folclore e o drama: leituras do imigrante
alemão em Canaã, Um rio imita o Reno e A ferro e fogo. 2014. 176 f. Dissertação
(Mestrado em Letras) - Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE,
Cascavel.
RESUMO
A importância da imigração de grupos de diversas nacionalidades para o Brasil está,
dentre outros fatores, em sua contribuição para o processo de mestiçagem,
elemento constitutivo fundamental à identidade pluralista do país. A participação de
alemães e seus descendentes, como comenta Freyre (2004), constitui-se no fato de
que estes não perderam totalmente seus costumes, sua língua e sua cultura, cuja
diferença atuou no sentido de enriquecer a heterogeneidade brasileira. Assim, na
presente pesquisa, tendo como foco os romances Canaã (s/d), de Graça Aranha,
Um rio imita o Reno (1973), de Vianna Moog, e A Ferro e Fogo (1972/1975), de
Josué Guimarães, objetiva-se analisar o modo pelo qual tais romances representam
o imigrante alemão e sua interação e/ou oposição em relação à cultura brasileira.
Sob perspectivas espaciais, históricas e sociais distintas, as obras revelam um
gradativo processo de aceitação e reconhecimento da contribuição destes
estrangeiros para a formação da sociedade brasileira. A partir das análises
realizadas, chega-se à conclusão de que Graça Aranha, Vianna Moog e Josué
Guimarães trazem, respectivamente, um viés cientificista, folclórico e dramático
sobre a temática, contribuindo para um panorama mais aberto, complexo e profundo
sobre a representação do imigrante alemão na literatura brasileira do século XX. A
análise dos três romances é fundamentalmente sociológica e encontra em Homi K.
Bhabha, Walter Benjamin, Aleida e Jan Assmann, Julia Kristeva, Giralda Seyferth,
Stuart Hall, Marie Jeanne Gagnebin, Gaston Bachelard, Sérgio Buarque de Holanda
e Zilá Bernd, dentre outros autores, o principal suporte teórico.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura Brasileira, imigração alemã, estereótipo, identidade.
7
REDEL, Elisangela. Entre la ciencia, el folclore y el drama: lecturas del imigrante
alemán en Canaã, Um rio imita o Reno y A ferro e fogo. 2014. 176 h. Disertación
(Maestría en Letras) - Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE,
Cascavel.
RESUMEN
La importancia de la emigración de grupos de diferentes nacionalidades hacia el
Brasil está, entre otros factores, en su contribución para el proceso de mestizaje,
elemento constitutivo fundamental a la identidad plural del país. La participación de
los alemanes y sus descendientes, como dijo Freyre (2004), constituye el hecho de
que estos no perdieron totalmente sus costumbres, su lengua y su cultura, cuya
diferencia ha actuado para enriquecer la heterogeneidad brasileña. Así, en esta
investigación, que tiene como foco las novelas Canaã (sin fecha), de Graça Aranha,
Um rio imita o Reno (1973), de Vianna Moog, y A Ferro e Fogo (1972/1975), de
Josué Guimarães, se objetiva analizar la forma como estas novelas representan el
imigrante alemán y su interacción y/u oposición con relación a la cultura brasileña.
Bajo perspectivas espaciales, históricas y sociales distintas, las obras revelan un
gradual proceso de aceptación y reconocimiento de la contribución de estos
extranjeros para la formación de la sociedad brasileña. A partir de los análisis
realizados, se llega a la conclusión de que Graça Aranha, Vianna Moog y Josué
Guimarães traen, respectivamente, una tendencia cientificista, folclórica y dramática
sobre el tema, contribuyendo para un panorama más abierto, complejo y profundo
sobre la representación del imigrante alemán en la literatura brasileña del siglo XX.
El análisis de las tres novelas es fundamentalmente sociológico y encuentra en Homi
K. Bhabha, Walter Benjamin, Aleida y Jan Assmann, Julia Kristeva, Giralda Seyferth,
Stuart Hall, Marie Jeanne Gagnebin, Gaston Bachelard, Sérgio Buarque de Holanda
y Zilá Bernd, entre otros autores, el principal aporte teórico.
PALABRAS CLAVE: Literatura brasileña, emigración alemana,
identidad.
estereotipo,
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9
1 BRASIL- ALEMANHA: CINCO SÉCULOS DE HISTÓRIA ................................... 19
1.1 DAS PROJEÇÕES DO ALEMÃO NO BRASIL À MEMÓRIA LITERÁRIA ........... 29
2 RACIALISMO, HUMANISMO E DESENCANTO EM CANAÃ ............................... 37
2.1 O IMIGRANTE ALEMÃO COMO POSSIBILIDADE DE BRANQUEAMENTO ..... 52
2.2 O CASO DE MARIA PERUTZ E O ESFACELAMENTO DA UTOPIA RACIAL ... 59
3 SOLIDÃO E HOSTILIDADE EM UM RIO IMITA O RENO .................................... 69
3.1 IMAGENS E RECURSOS VERBAIS NA CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO DE
BLUMENTAL ............................................................................................................. 78
3.2 CONFLUÊNCIAS DO ESPAÇO/TEMPO EM BLUMENTAL................................ 85
3.3 CORDIALIDADE BRASILEIRA VERSUS AUSTERIDADE ALEMÃ .................... 93
3.4 VIANNA MOOG: UM CRÍTICO DESTEMIDO ..................................................... 98
4 ENTRE A RESISTÊNCIA E A RENDIÇÃO: OS ALEMÃES EM A FERRO E
FOGO ...................................................................................................................... 103
4.1 DE IMIGRANTE A BICHO DO POÇO: A METAMORFOSE DE DANIEL
ABRAHÃO LAUER SCHNEIDER ............................................................................ 115
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 134
APÊNDICE .............................................................................................................. 144
ANEXOS ................................................................................................................. 150
9
INTRODUÇÃO
Na presente pesquisa, tendo como foco os romances Canaã (s/d), de Graça
Aranha, Um rio imita o Reno (1973), de Vianna Moog, e A Ferro e Fogo (1972/1975),
de Josué Guimarães, objetiva-se analisar o modo pelo qual tais romances
representam o imigrante alemão e sua interação e/ou oposição em relação à cultura
brasileira. As obras em análise foram publicadas originalmente em 1902 (Canaã),
1939 (Um rio imita o Reno) e 1972/1975 (A ferro e fogo) e para esta pesquisa serão
utilizadas, apenas, as seguintes edições: Canaã, edição Ediouro, s/d; Um rio imita o
Reno, edição de 1987, da José Olympio, e A ferro e fogo, respectivamente edições
Sabiá Limitada, 1972 e José Olympio, 1975. Josué Guimarães havia previsto que a
obra A ferro e fogo seria composta por uma trilogia, entretanto, foram publicados,
somente, dois volumes, sendo que o primeiro intitula-se A ferro e fogo: tempo de
solidão, e o segundo A ferro e fogo: tempo de guerra.
Naturalmente, além de Graça Aranha, Vianna Moog e Josué Guimarães
outros autores se ativeram em suas obras ficcionais à temática do imigrante alemão
no Brasil, dentre os quais se destacam Visconde de Taunay, Augusto Meyer, Mário
de
Andrade,
Assis
Brasil,
Érico
Veríssimo,
Vivaldo
Coaracy,
e
autores
contemporâneos como Lya Luft, Charles Kiefer, Sérgio Metz, dentre outros.
Os critérios de seleção das obras analisadas no presente estudo justificam-se pelo fato de que, com Graça Aranha, tem-se no início do século XX a primeira
referência efetiva a imigrantes alemães na literatura brasileira, ou seja, trata-se da
primeira tentativa de posicionamento sobre a contribuição, ou não, da vinda de
imigrantes alemães ao Brasil.
Na sequência, Vianna Moog trará à cena, na década de 30, a problemática do
etnocentrismo e do racismo presentes em comunidades alemãs no Brasil. Na
década de 70, Josué Guimarães publica um dos mais significativos romances sobre
a saga dos imigrantes alemães, tendo como foco uma visão dramática e heroica
sobre o assunto. Dado este recorte de tempo de aproximadamente 75 anos, é
possível verificar que houve mudanças na visão dos escritores sobre o imigrante
alemão.
Entretanto, além da intenção de analisar três perspectivas diferentes sobre o
mesmo tema, e como estas se apresentam ao longo do século passado, há também
10
uma motivação pessoal para a presente pesquisa, visto que sou de origem alemã e
o fato de eu ter sido criada em uma comunidade preponderantemente constituída
por descendentes de imigrantes alemães fez com que eu convivesse com o discurso
estereotipado sobre estes. Portanto, subjacente à presente escolha há um
enfrentamento destes estereótipos que, preservados de geração para geração,
foram representados na literatura brasileira e estão presentes na minha trajetória
pessoal.
A literatura escrita possui esta capacidade de expansão e arquivamento dos
textos culturais considerados relevantes (GALLE, 2010), em contraposição à
memória biológica do indivíduo, que se estende, no máximo, a três gerações. Assim,
ao propor esta pesquisa, as recordações de infância se atualizam, pois dizem
respeito, primeiramente, ao desenvolvimento de uma identidade pessoal e, em uma
segunda instância, só se tornam simbólicas pelo distanciamento que se operou em
relação a elas, do qual surge a possibilidade de se construir significações
(ASSMANN, 2011).
A importância da imigração de grupos de diversas nacionalidades para o
Brasil está, dentre outros fatores, em sua contribuição para o processo de
mestiçagem e de identidade do país, o que implicou na sua estrutura pluralista. A
participação de alemães e seus descendentes, como comenta Freyre (2004),
constitui-se no fato de que estes não perderam totalmente seus costumes, sua
língua e sua cultura, cuja diferença atuou no sentido de enriquecer a
heterogeneidade brasileira.
Alguns destes traços culturais dos imigrantes alemães perduraram na região
Oeste do Paraná até o presente momento, visto que muitas famílias ainda falam
usualmente alemão. Isto não implica que a presente pesquisa partiu de uma
premissa etnocêntrica ingênua em relação a esta cultura, mas, do reconhecimento
da participação de alemães – assim como a dos mais diversos povos que imigraram
para o país – na formação da cultura brasileira. A questão da participação dos
alemães na formação do Brasil e das relações históricas entre alemães e brasileiros
é tratada no primeiro capítulo deste estudo, no qual ainda se discute sobre o papel
da literatura enquanto memória cultural.
Canaã, Um rio imita o Reno e A Ferro e fogo são obras que, sob perspectivas
espaciais, históricas e sociais distintas, revelam as mudanças que se operaram ao
11
longo do tempo no processo de integração/resistência dos imigrantes alemães no
contexto brasileiro.
Em Canaã, obra considerada pré-modernista, escrita em 1901 e publicada em
1902, Graça Aranha representa modelarmente o cenário conflituoso de opiniões –
sobretudo do círculo de intelectuais da Escola de Recife – sobre a realidade
brasileira do final do século XIX, ainda sob o domínio do pensamento cientificista tão
marcante naquele período. Tendo como base histórica o contexto do início da
colonização alemã, no Espírito Santo – entre 1859 e a Abolição da Escravidão, em
1888 – no romance há um debate sobre os problemas sociais, econômicos e
culturais brasileiros da época, e como estes tiveram implicações no processo
emigratório, bem como no recrudescimento – entre alguns grupos da elite brasileira
– do ideal eugênico1 de clareamento, em voga no Ocidente.
Estão claramente delimitados no romance dois eixos ideológicos representados
pelos imigrantes alemães Lentz e Milkau. Lentz exige maior profundidade de análise,
ao se constituir enquanto um tipo, um discurso social que representa, para além de
um comportamento etnocêntrico, uma personalidade extremamente autoritária.
Recorrendo ao discurso da raça, Lentz defende que o Brasil, para ser habitável,
deverá ser povoado por uma raça “superior” – a alemã – à qual a personagem se
refere enquanto exemplo de autossuficiência, de competência, de progresso nos
negócios, de facilidade de assimilação e de energia no trabalho. O brasileiro tornase o objeto sobre o qual ele se fixa e sobre o qual reafirma o estereótipo de
pertencimento a uma civilização de mulatos que os tornariam eternos escravos. Ou
seja, para a personagem, a superioridade econômica, social e cultural de um povo
1
Eugenia se refere a um grupo de ideias baseadas na obra de Charles Darwin, A origem das
espécies (1859), criado, em 1883, por Francis Galton. Esta “ciência” diz respeito ao melhoramento da
espécie humana através da seleção genética artificial, visto que o cientista preconizava que as
condições de vida dos indivíduos já estão preconcebidas pelas condições biológicas, ou seja, que a
inferioridade e a superioridade dos povos eram determinadas pela própria natureza. Assim, para
resolver a situação de atraso do Brasil, em vista de seu povo miscigenado e “inferior”, seria
necessário melhorar a raça, objetivo principal do ideal de branqueamento subjacente à emigração ao
longo da segunda metade do século XX. A máxima de tal equívoco científico se revelou com o
nacional-socialismo, a exemplo das experiências de campo em Auschwitz, da higiene racial, dos
campos de concentração, do extermínio em massa de judeus e da “melhoria genética” que tinha
como objetivo final a produção em massa de bebês arianos, superdotados. Sobre eugenia, ver Maciel
(1999) e Pedrosa (2013), “Eugenia: o pesadelo genético do século XX. Parte III: a ciência nazista”.
Disponível
em:<http://www.montfort.org.br/old/index.php?secao=veritas&subsecao=ciencia&artigo=eugenia_cien
cia_nazista&lang=bra>. Acesso em: 11 de jul. de 2013.
12
está baseada na classificação genética e biológica, que determinaria os seus
privilégios e hierarquização social.
Milkau é um idealista que acredita no futuro da nação brasileira e compreende
que seu progresso se encontra potencialmente na fusão das culturas, cujo processo
de miscigenação deve rejeitar a ideia de prevalência de uma raça, de uma língua e
de uma cultura sobre as demais. Não obstante, embora Milkau não compactue com
as teorias de Lentz, nem com sua visão preconcebida sobre as desigualdades
raciais, ele tem traços desta mentalidade arraigados em sua formação cultural,
traços estes que se revelam quando ele classifica os povos em “atrasados” versus
“adiantados”, “selvagens” versus “civilizados” (PAES, 1991). Tal ato falho
compromete seu posicionamento ideológico em relação à miscigenação que ele
defende, uma vez que anula a existência de um entremeio, isto é, de um terceiro
elemento, síntese dos anteriores, capaz de dissolver as fronteiras raciais.
Assim, se por um lado estes traços do perfil de Milkau apontam para o caráter
pré-modernista de Canaã, ao reconhecer a manifestação dos “selvagens” no
processo civilizatório (PAES, 1991), por outro, esta participação é considerada sob a
perspectiva do tipo genético a ser superado e substituído pelos brancos europeus,
de acordo com o ideal do branqueamento – processo também chamado de
arianização –, que foi o objetivo racial de uma elite preocupada com a evolução do
Brasil. É sob esta perspectiva que Milkau reafirma a responsabilidade do branco
europeu na construção da nacionalidade brasileira e o provável destino dos alemães
de substituírem a civilização, a cultura e a língua do povo brasileiro.
O romance abriga ainda, um terceiro eixo a ser analisado, ao desvelarem-se
as tensões sociais de forma cruenta e animalesca, através da personagem Maria
Perutz, filha de imigrantes alemães nascida no Brasil. Sua condição de miséria e
abandono coloca em xeque o mito eugênico da superioridade do povo alemão e
problematiza o paradoxo de que, se a Alemanha era composta, apenas, por uma
raça superior, competente e autossuficiente, conforme defendia Lentz, como
justificar, ao longo de mais de um século, que parte de sua população emigrasse por
falta de condições de sobrevivência? Os imigrantes alemães, da mesma forma que
os demais povos, quando emigram, lutavam por melhores condições de vida. Nesse
sentido, Maria Perutz revela que, independentemente de raça, são as contingências
históricas, econômicas e políticas que determinam a trajetória dos personagens.
13
No segundo capítulo será analisado o romance Canaã, no qual se
estabelecerá a contraposição de dois estereótipos alemães, que são subvertidos
pela trágica condição de Maria Perutz. O primeiro corresponde a Lentz, personagem
que representa o viés racionalista europeu e a defesa do mito da superioridade da
raça ariana e o segundo a Milkau, que representa o viés humanista. Por meio destas
personagens, Graça Aranha procura se posicionar de forma crítica em relação aos
ideais europeus, mas paradoxalmente, deixa ressoar a força da sua formação
cultural, na qual estão cristalizados traços culturais marcantes à época em relação
aos mitos eugênicos. Também é analisada a tragicidade da personagem Maria
Perutz, que revela as reais condições de muitos que emigram e, de modo
conclusivo, analisa-se a inexistência de um diálogo entre o eu e o outro, o alemão e
o brasileiro, aquele recém-inserido em um contexto de mestiçagem ainda incipiente,
marcado por relações de conflito, exclusão e preconceito.
Deslocando-se do contexto do Espírito Santo para o do Rio Grande do Sul –
Estado que recebeu o maior número de imigrantes alemães – a temática da
colonização alemã reaparece na década de 30 na literatura sulista, obscurecendo o
prestígio de relatos ufanistas do/sobre o gaúcho, conforme análise de Zilberman
(1982).
Clodomir Vianna Moog, no romance Um rio imita o Reno, inspira-se nas
comunidades de imigrantes alemães e seus descendentes para desvelar as
alterações,
transformações
e
conflitos
sociais
implícitos
ao
processo
de
adaptação/rejeição destas novas populações ao contexto brasileiro. Na obra –
escrita em 1938 e publicada em 1939 – subliminar à história de amor entre Geraldo
Torres, engenheiro caboclo do Amazonas, e Lore Wolff, filha de imigrantes alemães,
a discussão principal de Moog centra-se no racismo e no nazismo alemão.
O autor trouxe à pauta na imaginária Blumental o etnocentrismo de uma
comunidade de imigrantes alemães e seus descendentes, obcecada pela ideia de
sua superioridade, agravada com os postulados eugênicos apregoados pelo
nazismo.
No capítulo três, cujo principal objeto de análise é o romance Um rio imita o
Reno, partindo da análise do espaço ficcional da imaginária cidade de Blumental, na
qual transcorre a história, ater-se-á aos elementos que compõem tal cenário, dentre
os quais se destacam: a arquitetura germânica, os letreiros do comércio em língua
alemã, pratos típicos, expressões, provérbios, saudações e demais falas corriqueiras
14
em língua alemã. Tais elementos são desvelados através da percepção do entorno
(SOETHE, 1999) do protagonista, Geraldo, cujas percepções – por ser ele um
“estrangeiro” – apontam para a tentativa da comunidade de se manter o mais
próximo possível da “pátria distante”.
Entretanto, esta cidade é, apenas, um simulacro, pois, para além dos seus
limites, o que existe de fato é a vastidão do Brasil, com todos os seus contraditórios
traços culturais. Com o intuito de preservarem seus traços identitários originais, os
habitantes
são
caracterizados
pelo
autor
como
racistas,
nazistas
e,
consequentemente, reacionários em relação à interação com os brasileiros.
Além desta análise da tentativa de se transmigrar a pátria perdida para o
Novo Mundo, também ater-se-á à análise da cidade de Blumental como se esta
fosse uma espécie de grande casa que se contrapõe à vastidão à volta, ou seja,
tudo que extrapola os limites da cidade. Sob esta perspectiva, a cidade será
analisada em analogia ao estudo dos espaços íntimos da casa, conforme analisa
Gaston
Bachelard
(1978),
compreendendo-se
que
Blumental
representa,
simbolicamente, uma grande casa para os alemães e seus descendentes e, como
tal, ameniza o estranhamento e as dificuldades causadas pela imigração.
A análise ater-se-á, ainda, à maneira como os indícios temporais se fundem
aos espaciais, de maneira que Vianna Moog, subliminarmente à frustrada história de
amor entre Geraldo e Lore Wolff, denuncia o racismo e o etnocentrismo de grupos
de imigrantes e descendentes de alemães, contrapondo-se à ideia de superioridade
racial defendida pelos mesmos.
Será discutido, ainda, como o autor abordou a questão da infiltração da
ideologia nacional-socialista entre os imigrantes e como são representadas as
relações entre brasileiros e alemães face ao contexto histórico subjacente ao
romance. O tempo desta narrativa se justapõe ao tempo histórico, visto que o
romance foi escrito no ano anterior ao início da segunda guerra mundial, quando o
nazismo, ao mesmo tempo em que assustava grande parte do Ocidente, também
seduzia e passava a ter muitos simpatizantes, inclusive no Brasil, e quando o Brasil
– em função da ideologia do Estado Novo – impusera o projeto nacionalista
implantado por Getúlio Vargas.
Também será analisado como Vianna Moog se atém aos estereótipos do
homem “cordial” brasileiro e à aversão dos alemães ao sentimentalismo. E, por fim,
tratar-se-á da subversão dos equívocos raciais da pretendida superioridade dos
15
alemães, ao ser revelada a descendência judia da família Wolff, a qual compactuava
com a ideia do extermínio dos judeus e considerava o negro um ser híbrido e
inferior. O amor entre Geraldo e Lore invalida a manutenção do preconceito e das
diferenças, o que também é desvelado, de forma encantadora, pela personagem
Paulchen Wolff que, a despeito da repressão da família, convive harmonicamente,
com absoluta naturalidade, com mulatos, negros e demais grupos não germânicos.
A abordagem dessa temática terá uma perspectiva bem diferente e mais
trágica três décadas mais tarde, com a trilogia inacabada de Josué Guimarães A
ferro e fogo I: tempo de solidão (1972) e A ferro e fogo II: tempo de guerra (1975),
que se atém à saga do imigrante alemão no Sul do Brasil sob a perspectiva
microcósmica da família de Daniel Abrahão Lauer Schneider e Catarina, bem como
da personagem Gründling. Josué Guimarães situa temporalmente a narrativa na
primeira metade do século XIX e faz remissão a episódios históricos importantes à
época e que são fundamentais na construção do enredo e da trajetória das
personagens. Tais episódios históricos estão presentes, sobretudo, em A ferro e
fogo II: tempo de guerra.
A análise de A ferro e fogo tem dois focos principais. O primeiro é a fluidez
das fronteiras espaciais no contexto ao qual se reporta o romance. Trata-se de um
território fronteiriço e aberto às relações transculturais, onde a solidão e a fragilidade
humana transcendem as questões raciais. O segundo foco de análise está centrado
na personagem Daniel Abrahão Lauer Schneider, um seleiro alemão, cujos traumas
advindos com a imigração e da violência de tantas guerras transformaram-no em um
“bicho do poço”. Tais traumas resultarão em um surto psicótico, consequência da
experiência migrante de ruptura de referências, por causa do deslocamento de lugar,
e do confronto com o outro (FERREIRA; GIL, 2007). Através de tal personagem são
tematizados os conflitos advindos com a imigração não só de alemães, como de
diversos povos, responsáveis pelo desbravamento e povoamento de vazios
demográficos, e pelo caráter pluralista do Brasil, do qual participaram as culturas
europeias, africanas, ameríndias e orientais.
Quanto ao suporte teórico que sustenta este estudo como um todo, ele é
eclético e foi se constituindo à medida da necessidade da análise. Ou seja, em cada
romance foram selecionados determinados aspectos que melhor permitem
compreender e analisar a configuração ficcional estética do imigrante alemão. E a
partir desta escolha é que se justifica tal variação teórica. De todo modo, a análise
16
dos três romances está preponderantemente amparada nos seguintes autores: Homi
K. Bhabha, Walter Benjamin, Aleida e Jan Assmann, Julia Kristeva, Giralda Seyferth,
Stuart Hall, Marie Jeanne Gagnebin, Gaston Bachelard, Sergio Buarque de Holanda
e Zilá Bernd, dentre outros.
A partir do desenvolvimento desta pesquisa na Alemanha, através da Bolsa
concedida pelo Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD)2 e do acesso à
Biblioteca Estadual de Munique3 e à Biblioteca Central da Ludwig Maximilians
Universität, um novo aporte teórico foi acrescentado, permitindo, sob a perspectiva
alemã, a ampliação da visão sobre a temática da imigração alemã para o Brasil, das
relações entre Brasil e Alemanha e dos estudos culturais de modo geral. Para tanto,
também contribuiu o acesso a arquivos e livros considerados raros e de difícil
acesso, alguns dos quais se considerou pertinente anexar a esta pesquisa como
forma de exemplificar, ilustrar e difundir materiais originais pouco conhecidos.
A temática explorada permite que se fale de uma dupla comparação na
medida em que não apenas os autores Graça Aranha, Vianna Moog e Josué
Guimarães estão em diálogo, mas também os respectivos romances estabelecem
previamente em seus enredos a comparação entre as culturas alemã e brasileira.
Nebrig e Zemanek (2012, p. 185) ressaltam esta questão ao afirmarem que os
Estudos Comparados devem analisar discursos literários, “que são por si mesmos
globais, por outro lado desenvolvem discursos científicos nacionais que funcionam
como globais, que se desprendem de tradições nacionais científicas e tornam
diferentes práticas científicas compatíveis entre si” 4.
Tendo em vista a história da formação da cultura brasileira, o país
analogicamente se assemelha a um container cultural: ele é hibridamente
constituído, mas ainda pouco participativo das relações literárias internacionais,
apesar de que, como apontou Hall (2003, p. 31), “nossos povos têm suas raízes nos
quatro cantos do globo, desde a Europa, África, Ásia; foram forçados a se juntar no
quarto canto, na ‘cena primária’ do Novo Mundo”.
É relevante ter em vista esta perspectiva do processo de internacionalização
da literatura, posto que um dos maiores problemas que o Brasil ainda enfrenta é a
2
Tradução: Deutscher Akademischer Austauschdienst.
Tradução: Bayerische Staatsbibliothek München
4 Tradução: “die sich selbst als globalen verstehen, andererseits selbst global funktionierende
Wissenschaftsdiskurse entwickelt, die sich von nationalen Wissenschaftstraditionen lösen und
unterschiedliche Wissenschaftspraktiken miteinander kompatibel machen“.
3
17
redução de sua rica heterogeneidade por meio da constante retomada de
estereótipos. No catálogo da Feira do Livro de Frankfurt, realizada em 1994, Affonso
Romano de Sant’ Anna fez uma abertura provocativa nesse sentido, questionando:
O que é afinal a literatura brasileira? O que pode interessar aos
leitores alemães e ao público de outros países em uma cultura
tropical, da qual a imprensa hoje apenas informa, quando se trata de
carnaval e futebol, devastação de floresta, morte de crianças de rua
ou problemas com indígenas?5
Pergunta semelhante foi lançada por Vianna Moog, em 29 de outubro de
1942, na conferência Uma interpretação da literatura brasileira: um arquipélago
cultural. O texto analisa a questão literária, mas também social e cultural do Brasil,
sob a perspectiva de sete ilhas ou núcleos culturais que constituiriam o arquipélago
cultural brasileiro.
De acordo com a publicação na Alemanha, A essência da Literatura
Brasileira6 (s/d), o autor argumenta que, em contraposição a uma leitura cronológica
e homogênea do Brasil, “nós nos encontramos muito mais em um mundo cultural
insular. E este arquipélago é constituído por numerosas ilhas culturais, que são mais
ou menos autônomas e mostram seu próprio perfil” (MOOG, s/d, p. 15)7.
A
despeito
da
internacionalização
da
literatura
brasileira
e
da
heterogeneidade cultural do país, foi somente após a II Guerra Mundial, em virtude
de muitos alemães terem se exilado no Brasil – foi o segundo país a acolher o maior
número de refugiados na América Latina – e das melhores condições do mercado
editorial alemão8, que o Brasil e sua literatura passaram a ter alguma visibilidade na
Alemanha, pois escritores exilados, como Stefan Zweig, Ulrich Becher, Helmut
Gaupp, Frank Arnau, Susi Bach Eisenberg, Carl Fried, Paul Frischauer, Johannes
“was ist eigentlich brasilianische Literatur? Was kann den Deutschen Leser und das
Publikum anderer Länder an einer tropischen Kultur interessieren, von der heute die Presse nur
berichtet, wenn es um Karneval und Fuβball, des Urwaldes, Ermordung von Straβenkindern oder
Probleme mit Indianern geht?“ (SANT’ ANNA, 1994, p. 13).
6 Tradução: Das Wesen der brasilianischen Literatur.
7 Tradução: “Wir befinden uns vielmehr auf einer kulturellen Inselwelt. Und dieses Archipel besteht
aus zahlreichen Kulturinseln, die alle mehr oder minder autonom sind und eine eigene Prägung
zeigen“.
8 As condições favoráveis do mercado editorial alemão se exemplificam com a tradução e publicação
de Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa, na Alemanha, pela editora Kiepenheuer & Witsch,
em 1964, tratando-se do primeiro autor latino americano a ser publicado por esta editora
(CECCHETTA, 2011).
5Tradução:
18
Hoffmann, Paula Ludwig, segundo Cecchetta (2011), passaram a incluir temas sobre
o Brasil em suas produções.
A análise da representação do imigrante alemão na literatura brasileira e de
sua relação com o brasileiro não implica a tentativa ingênua de inverter valores
sociais e ideológicos por outros mais convenientes, mas, como entendeu Bellei
(1992), envolve, senão a interrupção, ao menos a compreensão daquilo que impõe,
manipula e reafirma a resistência e o distanciamento entre polaridades que se
negam. É a oportunidade de mostrar o espaço produtivo que pode ser estabelecido
entre o eu e o outro, entre brasileiros e alemães que, atualmente, trabalham juntos
no sentido de estreitar os laços por intermédio das relações culturais, científicas e da
literatura, que é, por excelência, o espaço mediador do leitor de um país ao outro.
Os exemplos de preconceitos e estereótipos mais evidenciados em Canaã e
Um rio imita o Reno são traços culturais preestabelecidos e dos quais desprender-se
é uma prática complexa. Se a diferença é o signo de revisão e reconstrução do
passado, como propõe Bhabha (2005), deve-se ter a clareza de que traduzir ou
reescrever o imaginário social e negociar ideologias contraditórias é um sacrifício
que demanda o trabalho de gerações, até que novos fenômenos irrompam dos
entre-lugares e provoquem uma ruptura histórica.
Este processo de ressignificação já se verifica através de cooperações
interinstitucionais brasileiras e alemãs e demais órgãos envolvidos e se estende para
a mobilização acadêmica entre estudantes e pesquisadores de ambos os países em
um momento histórico de descentralização e apagamento de diferenças,
cooperando no processo de internacionalização da literatura brasileira na Europa,
implicando, também, na divulgação da literatura alemã no Brasil. Pois é temerário
que, em tempos politicamente corretos, estereótipos e preconceitos persistam nas
gerações mais jovens, já que, além de consolidarem visões equivocadas sobre o ser
humano, inibem a abertura das pessoas para a diversidade cultural e racial, tão
marcante e positiva na formação da variada população brasileira.
19
1 BRASIL- ALEMANHA: CINCO SÉCULOS DE HISTÓRIA
Há um longo lastro de relações entre o Brasil e a Alemanha 9, cujos laços se
intensificaram – seja através da resistência, seja por meio da rendição, ou da troca
cultural – com o processo migratório. O Brasil que, evidentemente, desde o início da
colonização, sempre recebeu imigrantes preponderantemente portugueses, passou
a ser também o destino de imigrantes de vários países da Europa, processo este
que teve início em 1818, ano em que a imigração alemã para o Brasil foi oficialmente
liberada na Alemanha.
Os resultados das primeiras tentativas de colonização foram bastante
efêmeros, aponta Seyferth (2002). De acordo com Neumann (2004, p. 11),
os primeiros emigrantes alemães se estabeleceram em 1818 no
Brasil e fundaram no Estado da Bahia a colônia Leopoldina; seguemse Nova Friburgo, Rio de Janeiro (1819) e São Jorge dos Ilhéus,
também na Bahia (1822). As primeiras tentativas de estabelecer
assentamentos foram realizadas por empresários, quando o Brasil
ainda era colônia de Portugal. Todavia foram organizados sem levar
mais em consideração a cultura, a língua, o clima e o tipo de trabalho
agrícola. Por isso, entre outros fatores, os quatro primeiros
assentamentos, não bem sucedidos, foram desfeitos após um curto
período de tempo10.
O projeto de imigração alemã só foi concretizado com a colônia de São
Leopoldo, em 1824, na qual predominou a instalação de alemães que migraram da
região do Hunsrück, no Sul da Alemanha: na época uma das regiões mais pobres do
país. Trinta e nove imigrantes alemães foram selecionados por Schäffer, os quais
chegaram a Porto Alegre em 25 de julho de 1824 – data até hoje comemorada na
região como o “Dia do Colono” – e foram provisoriamente instalados na Real Feitoria
do Linho Cânhamo, no Faxinal da Courita, atual São Leopoldo.
É importante explicar que a expressão “colônias alemãs”, no contexto da
imigração, não deve ser confundida com o que se entende por possessão e domínio
9
Ver apêndice sobre as primeiras relações travadas entre alemães e brasileiros.
Tradução: “die ersten deutschen Einwanderer haben sich 1818 in Brasilien niedergelassen und die
Siedlung Leopoldina im Bundesland Bahia gegründent; es folgen Nova Friburgo in Rio de Janeiro
(1819) und São Jorge dos Ilhéus, ebenfals in Bahia (1822). Die ersten Versuche, Siedlungen zu
schaffen, wurden von privaten Unternehmern in dem noch vom portugiesischen Königreich
abhängigen Brasilien unternommen. Die wurden jedoch organisiert, ohne gröβere Rücksicht auf
Kultur, Sprache, Klima und Form der Landarbeit zu nehmen. Unter anderem deshalb sind die vier
ersten Siedlungen nach kurzer Zeit ohne Erfolg aufgelöst worden“.
10
20
de terras estrangeiras – como foi o caso do continente americano – pois esta
remete, aqui, aos grupos de migrantes que deixaram sua terra de origem para
povoar e cultivar terras em outro país, as quais, no presente estudo, se denominam
colônias. Tais colônias alemãs:
são divididas na literatura em “velhas colônias” (colônias primárias) e
em “novas colônias” (colônias filha). Aquelas são os assentamentos
que foram diretamente fundados em 1824 por áreas de emigrantes
de língua alemã. Estas últimas são tanto colonizadas por emigrantes
vindos diretamente da Alemanha, assim como por membros de
famílias, que já estavam estabelecidos nas antigas colônias
(BUENO-ANIOLA, 2007, p. 23)11.
Além de São Leopoldo, ainda no século XIX, outras colônias foram fundadas
nos três Estados do Sul, a saber: São Pedro de Alcântara (1829), Santo Ângelo
(1857), Nova Petrópolis (1858), Pomerode (1861), Blumenau (1850), e Dona
Francisca, depois chamada de Joinville (1851). Além destas, também foram
fundadas colônias no Espírito Santo, como Santa Isabel (1847), e no Rio de Janeiro,
como Petrópolis (1845).
A trajetória migratória dos alemães para o Brasil se deu em um contexto
histórico e social ainda profundamente precário, sendo que o maior contingente de
imigrantes europeus se estabeleceu nos Estados Meridionais – Rio Grande do Sul,
Santa Catarina e Paraná –, mas também, em menor escala, no Sudeste – São
Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo – e Nordeste – Bahia e
Pernambuco. Conforme Freyre (1971), este último teria atraído os melhores
marceneiros alemães.
Segundo Willems (1980), a procedência dos imigrantes alemães que
chegaram ao Brasil era heterogênea, embora, como ocorreu no Sul, a variante
dialetal do Hunsrück tenha absorvido, em partes, as demais variantes de alemães de
outras regiões, “[...] deixando assim a impressão de uma homogeneidade que a
princípio não existira” (WILLEMS, 1980, p. 38).
Tradução: “werden in der Literatur in ‚alte kolonien‘ (Primärkolonien) und in ‚neue Kolonien‘
(Tochterkolonien) eingeteilt11. Jene sind Siedlungen, die ab 1824 direkt von Einwanderern aus
deutschsprachigen Gebieten gegründet worden sind. Letztere sind sowohl von direkt aus Deutschland
kommenden Einwanderern als auch von Angehörigen von Familien, die bereits in den ‚alten Kolonien“
ansässig waren, besiedelt worden“
11
21
O autor informa que, das 3.185 famílias que se estabeleceram no Rio Grande
do Sul, 1.186 vieram da Pomerânia – atualmente, localizada no Norte da Polônia –,
Baixa Saxônia e Westfália, e 1.509 da Renânia, Palatinado e Hesse. Com base nos
dados de Willems (1980), o historiador Valdir Gregory (2011) elaborou uma tabela
(Anexo VII), destacando a procedência dos fluxos iniciais de imigrantes para
algumas localidades do Brasil durante o século XIX.
No Espírito Santo, onde Graça Aranha situou espacialmente Canaã, a
colonização alemã parece haver se efetivado somente em 1869 (GROSSELI, 2008).
Em razão da falta de assistência do governo e dos ataques de índios, explica o
autor, muitos alemães da primeira leva de imigrantes, desiludidos com as
adversidades da terra paradisíaca sonhada, retornaram ao país de origem.
A maioria dos imigrantes que se fixou no Espírito Santo era descendente de
pomeranos e Hunsbucklers, ou seja, cujos antepassados vieram do Hunsrück12,
região Sul da Alemanha composta por agricultores hábeis no trabalho agrícola,
conforme postulava o perfil do imigrante ideal. Assim, no relatório do presidente da
Província do Espírito Santo, a classificação dos imigrantes quanto à sua aptidão
para o trabalho na colônia se assemelha às descrições de Seyferth (2002) em
relação às características que o colono ideal deveria ter: ser bom agricultor, trabalhar
em família e se adaptar às dificuldades na nova terra:
[...] a tentativa de colonização nesta província obteve todos os efeitos
desejados; levando-se em conta o breve período de tempo entre esta
data e o seu estabelecimento, foram muito além do esperado. A
melhor garantia de que não são ilusórias as esperanças que nutro, é
a nacionalidade dos colonos. Realmente os alemães, trabalhadores
por índole e hábito, dotados de tenaz perseverança e possuidores ao
máximo grau de amor pela família, que é a única e verdadeira base
do patrimônio, e o apego ao lugar onde um dia se estabeleceram e
fizeram fortuna, serão um dia também cidadãos brasileiros que
contribuíram para a grandeza da pátria (Relatório do Presidente L. A.
Fernandes Pinheiro apud GROSSELLI, 2008, p. 210).
A legislação migratória partiu do princípio civilizatório e de povoamento de
vazios demográficos públicos, uma vez que a população nativa era considerada
nômade e incivilizada (SEYFERTH, 2002). Nos projetos colonizadores a opção por
imigrantes alemães não se originou de premissas raciais, afirma a autora, visto que
12
Willems (1980) explica que, entre os primeiros emigrantes que se estabeleceram no Espírito Santo,
alguns eram provenientes da Renânia, Prússia, Saxônia, Hesse, Palatinado, Holstein e Nassau, mas
que foram absorvidos, principalmente, pelos pomeranos, provenientes de uma região atualmente
situada no Norte da Polônia, conforme já mencionado.
22
estava articulada à classificação do colono alemão como agricultor eficiente,
habilidoso no trabalho com a terra e que emigrava em família.
Tais características positivas dos alemães parecem terem sido confirmadas
pelo governo brasileiro, dados os ótimos resultados e o progresso das colônias por
eles povoadas. Assim se lê no jornal alemão Süddeutsche Auswanderer-Zeitung, de
1921, n.º13 que, conforme publicado no Correio da Manhã em 16 de março de 1921,
o elemento alemão significava uma grande ajuda para o desenvolvimento
econômico do Brasil, dadas sua força e inteligência, a exemplo das colônias do Sul.
Por isso, estes seriam sempre bem-vindos.
Entretanto, quando Seyferth (2002) pondera que havia uma noção hierárquica
de civilização subliminar à simbologia da cor branca enquanto indicativo de
superioridade, compreende-se que havia um intuito racial no projeto de colonização,
embora este não fosse claramente explicitado, pois, deve-se levar em conta a
situação de dependência do Brasil em relação à Europa, naquele contexto e,
certamente, a importação de ideias e teorias, bem como o fato de que, na primeira
metade do século XIX, o continente europeu já discutia há tempos questões de
ordem racial.
Na avaliação do estrangeiro ideal, os alemães ocuparam o topo da lista e a
legislação imigratória deixou ressoar seu critério ambíguo nesta seleção, como notou
Seyferth (2002), uma vez que referências raciais se tornaram visíveis no campo
semântico da palavra imigração, enquanto signo de uma prática voltada
exclusivamente à Europa.
Durante o debate sobre a política migratória, o discurso acerca da
superioridade e da competência germânica fica evidente em 1850, quando teve
início a colonização particular13 de terras públicas, por meio de “[...] relatórios e
escritos de propagandas produzidos por alemães [...]” (SEYFERTH, 2002, p. 122).
Tais documentos se tornaram registros de um contexto histórico e social no
qual as proporções corporais e a cor da pele eram fatores suficientes para justificar a
categorização dos homens em “superiores” e “inferiores”, seguindo a pretensão de
demonstrar que “[...] o desenvolvimento da civilização, o progresso tecnológico e a
própria estratificação social obedeciam a leis naturais” (SEYFERTH, 2002, p. 134).
13
Neste período a colonização passou a ser responsabilidade dos governos provinciais e a iniciativa
privada contribuiu para a fundação de colônias como Blumenau (SC), em 1850, e a Colônia Dona
Francisca (SC), atual Joinville, em 1851.
23
As cartas enviadas da América pelos imigrantes e muitas músicas por eles
escritas e cantadas foram utilizadas na Alemanha, principalmente pelos agentes,
como material de propaganda. Um interessante exemplo é a estrofe abaixo:
Agora eu quero escrever para o meu irmão
Ele não deve permanecer na Alemanha
Ele deve vender o que tem
E vir para a América.
(NEUMANN, 2004, p. 45)14.
A vinda de imigrantes europeus fazia parte do processo de modernização do
Brasil, no qual o negro escravo e o índio estavam associados à degradação do
status quo do país, pois representavam um modelo econômico baseado na mão de
obra escrava e o país, segundo as teorias eugênicas, para progredir deveria,
também, embranquecer. A lei Euzébio de Queiróz, finalmente, interrompeu o tráfico
de escravos para o Brasil, sendo que a Lei de terras15 foi promulgada em 1850, ou
seja, no mesmo ano da lei Euzébio de Queiróz.
Seyferth (2002) assinala, ainda, que os negros foram diagnosticados como
inaptos para o trabalho livre como pequenos proprietários. Por isso, parece que, no
contexto da época, sua substituição por brancos estava vinculada à percepção de
que “[...] o capital investido no tráfico poderia ser usado positivamente, para chamar
a imigração branca livre e industriosa que daria ao país cidadãos exemplares e ao
imperador súditos fiéis [...]” (SEYFERTH, 2002, p. 123).
Um dos fatores que colaborou para a efetiva vinda de imigrantes alemães
para o Brasil foi o casamento de Leopoldina – filha de Francisco II, último imperador
do Sacro-Império Romano Germânico – com D. Pedro I, pois, ela tornou viável que o
país recém-independente recebesse imigrantes alemães.
Leopoldina tinha uma relação muito próxima com o Major Georg Anton von
Schäffer, principal agenciador de imigrantes alemães até 1830, que pertencia ao
Corpo de Guardas de D. Pedro I. Ele foi responsável pelo recrutamento de
Tradução: “Jetzt will ich meinem Bruder schreiben/Er soll nicht in Deutschland bleiben/Er soll
verkaufen, was er hat/Und kommen nach Amerika“.
15 A Lei de Terras, Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, estabelecia que a obtenção de terras
devolutas, a partir de então, se daria somente, pelo título de compra, isto é, a terra se tornou uma
mercadoria, podendo ser vendida ou comprada, e não mais doada. Tal lei visava regulamentar a
estrutura fundiária do país, tendo-se em vista o aumento e avanço das áreas colonizadas e os
conflitos travados entre posseiros, estrangeiros, grandes produtores e o Estado pelo domínio e
expansão das terras. (PODELESKI, 2009).
Disponível em: <http://seer.cfh.ufsc.br/index.php/sceh/article/viewFile/182/157>. Acesso em: 11 jul.
2013.
14
24
imigrantes de diversas regiões da Alemanha, além de soldados necessários para
garantir a segurança do país depois da proclamação da independência, em 1822.
Com a derrota de Napoleão Bonaparte na Batalha de Waterloo, em 1815, D.
João VI voltou para Portugal (1818), o que fez com que o Brasil voltasse à condição
de colônia. Em desacordo com esta medida, em 1822 é proclamada a
independência política do Brasil em relação à metrópole, o que gera conflitos no
país, pois as autoridades da província eram portuguesas e, muitas delas, fieis à
Coroa Portuguesa. Houve, então, a necessidade de formação de uma nova força
militar, que garantisse a independência do país e o defendesse nas posteriores
guerras, como a disputa pela província Cisplatina, que culminou na guerra entre
Brasil e Argentina (1825-1828), na Revolução Farroupilha (1835-1845) e, mais tarde,
na Guerra do Paraguai (1864-1870).
Como amigo da arquiduquesa, Schäffer recebeu pedidos diretos para trazer
muitos soldados para o Brasil, como aponta a seguinte carta, escrita por Leopoldina,
em 16 de maio de 1825:
Excelente Schäffer,
Respondo agora a três de suas cartas, e o senhor já terá recebido
minha carta participando-lhe terem sido atendidos todos os seus
desejos. Como o General Brandt vai chegar agora, quero prepara-lo
bem como o deseja Scheiner – o que se torna absolutamente
indispensável é que me procure 140.000 Florins, para ver-me livre de
todos aqueles pequenos assaltos, o que não será pequena
felicidade. Mande-me bem depressa os livros e muitos – muitos –
soldados, pois acredito que se tornam cada vez mais necessários.
Assegurando-lhe minha eterna amizade e benevolência, continuo
sua bem afeiçoada,
Leopoldina
(VÁRIOS AUTORES, 2006, p. 439 – grifo nosso).
Ou seja, Schäffer teve uma importante participação no processo migratório de
alemães para o Brasil, conforme atesta seu livro, Brasilien als unabhängiges Reich
(1824) – Brasil como Reino independente –, no qual ele descreve as condições
econômicas, climáticas, sociais, políticas e territoriais do Brasil. Tal livro é rico em
informações e, nos últimos capítulos, traz um esboço sobre a facilidade de os
alemães obterem terras no Brasil, sobre as boas condições de viagem e, ainda,
sobre o auxílio do governo brasileiro, através da doação de animais e sementes.
25
Pela importância do documento original, cita-se o trecho que mais diretamente
contribui para esta pesquisa em anexo (Anexo VIII).
Em 1828, o livro Brasiliens gegenwärtiger Zustand und Colonialsystem –
Estado atual do Brasil e o sistema colonial – sem autoria, descreve a população, o
clima, as possibilidades de trabalho para os imigrantes, a existência de animais e
insetos venenosos, a localização das províncias, dentre outros aspectos. Apesar de
tecer comentários sobre os aspectos negativos do Novo Mundo, o autor recomenda
a imigração para aquelas terras, tendo em vista que:
Cada estrangeiro que desejar lá [no Brasil] crescer, recebe de graça
tanta terra quanto ele, para sua manutenção e de sua família,
necessitar; durante dez anos ele está livre de qualquer tarefa e de
todas as obrigações dos antigos moradores; se ele desejar se juntar
às colônias já existentes, ele será até lá levado e apoiado com
dinheiro ou fontes naturais, até que ele estiver em condição de viver
da produção de suas terras (WEECH, JEZIERSKI, VIDAURRE, 1828,
p. 6)16.
Naturalmente, tais publicações de cunho propagandístico tiveram relevante
influência na imigração de alemães para o Brasil, mas, geralmente, são quatro
fatores os que justificam a imigração: religiosos, políticos, sociais e econômicos.
Nos diferentes momentos da imigração alemã para o Brasil, alguns destes
fatores se sobressaíram em relação aos outros, explica Neumann (2004). Por
exemplo, se no início a liberdade e a tolerância religiosa foram os principais motivos,
na metade do século XIX, foi o descontentamento em relação à pressão política que
levou muitos alemães a emigraram para o Brasil.
As consequências da fracassada revolução de 1848 formaram agora
o motivo mais importante para o abandono da pátria. Muitos tiveram
que deixar seu país por causa de perseguição política, outros
queriam experimentar uma real liberdade política no Novo Mundo.
Este tempo leva à emigração de um novo grupo: muitos intelectuais
trocaram sua posição na Europa pela liberdade na América.
Intimamente relacionados entre si estão as causas sociais. A
pobreza prevalece principalmente entre a classe operária:
Tradução: “Jeder Fremdling, der sich dort anzubauen wünscht, erhält unentgeldlich so viel Land, als
er zu seinem und der Seinigen Unterhalt bedarf; er ist während zehn Jahren von jeder Aufgabe und
allen Verpflichtungen früherer Einwohner befreit. Wünscht er, sich den bereits bestehenden Kolonien
anzuschliessen, wird er dahin gebracht, und so lange mit Geld oder Naturallieferungen unterstützt, bis
er selbst im Stande ist, von dem Ertrage seiner Felder zu leben“.
16
26
camponeses e artesãos deixam a Alemanha, porque eles não têm
chance de uma vida melhor em sua terra (NEUMANN, 2004, p. 14)17.
Contudo, os fatores mais relevantes que motivaram tal processo emigratório
sempre foram os econômicos e sociais. “Nos anos trinta do século XIX a pobreza,
em muitas partes da Alemanha, especialmente nas classes mais baixas, é muito
grande” (NEUMANN, 2004, p. 49)18. As guerras napoleônicas entre 1802 e 1815
haviam empobrecido o continente europeu e a mão de obra disponível na Alemanha,
em vista do elevado crescimento demográfico, passou a exceder o que poderia ser
absorvido pelo mercado de trabalho. Nas regiões Sul e Sudoeste da Alemanha, “[...]
depois de cada colheita má, principalmente na Badênia e no Palatinado, a fome
forçava milhares de sitiantes alemães a emigrarem, tornando-os uma presa fácil de
estrangeiros” (GEHSE, 1931 apud WILLEMS, 1980, p. 33).
Os minifúndios, como explica Weissheimer (s/d), decorrentes de ininterruptas
divisões da terra, apresentavam baixas produções devido à excessiva exploração. A
situação se agravara com a falta de emprego nas cidades, pois, a partir da
Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra, no século XVIII, a manufatura, que até
então demandara grande mão de obra, passou à produção em massa, gerando
novas modalidades de trabalho, para as quais os camponeses não tinham
qualificação.
Por fim, sob o regime reacionário da monarquia, a administração de territórios
igualmente contribuiu para o desarraigamento das populações rurais e a imigração
de muitas famílias que, sem condições de pagar os altos impostos, deixavam sua
pátria em busca de novas perspectivas de vida e de ascensão econômica
(WILLEMS, 1980). Assim, o excesso de população, as más colheitas, o rigor do
inverno, o aumento dos preços dos alimentos levou à imigração em massa dos
alemães. Tal processo implicou, inclusive, no melhoramento do setor de transportes
alemão, como a conexão marítima e ferroviária (NEUMMAN, 2004).
Tradução: “Die folgen der gescheiterten Revolution 1848 bilden jetzt das wichtigste Motiv zum
Verlassen der Heimat. Viele müssen wegen politischer Verfolgungen ihr Land verlassen, andere
wollen eine wirkliche politische Freiheit in der Neuen Welt erleben. Diese Zeit bringt die
Auswanderung einer neuen Gruppe: viele Intellektuelle tauschen ihre Lage in Europa gegen die
Freiheit in Amerika. Eng miteinander verbunden sind die soziale Ursachen, die Armut herrscht
besonders in der Arbeiterschicht: Landarbeiter und handwerker verlassen Deutschland, weil sie keine
Chance auf ein besseres Leben in ihrem land haben“.
18 Tradução: “In den dreiβiger Jahren des 19. Jahrhunderts ist die Armut in vielen Teilen
Deutschlands, besonders in den unteren Klassen, sehr gross“.
17
27
Na Alemanha – ou melhor, nos países de língua alemã da Europa – a
imigração funcionava como válvula social para controlar a crise econômica “[...] na
medida em que permitia que, nos momentos de baixa performance econômica e de
crescimento das taxas de desemprego, parte da população afetada deixasse o país,
evitando crises sociais de maior amplitude” (COSTA, 2007, p. 151). Ou seja, a
migração espontânea consistiu em uma das maneiras de controlar dificuldades
econômicas, o que se tornou comum, no século XIX, nos países europeus
(WILLEMS, 1980).
A colonização de alemães no Brasil se constituiu através de quatro
modalidades de colônias: colônias do governo, ou seja, o governo doava aos
imigrantes terras e ferramentas para auxiliar no seu estabelecimento no novo país;
as colônias advindas de uma empresa, isto é, uma empresa brasileira ou estrangeira
adquiria certa quantidade de terra no Brasil, que era posteriormente dividida entre os
alemães, algumas destas eram pagas, outras eram doadas aos imigrantes; a
terceira modalidade eram as colônias privadas, semelhantes à categoria anterior,
mas neste caso uma pessoa comprava ou recebia terras do governo brasileiro, como
foi o caso de Blumenau; por fim, as colônias em parceria, que consistiam no traslado
e estabelecimento dos imigrantes que, uma vez estabelecidos no Brasil, pagariam
com seu trabalho (NEUMANN, 2004).
De acordo com Karl H. Hunsche (1978), o processo migratório alemão para o
Brasil também pode ser dividido em seis etapas, de acordo com a tabela em anexo
(Anexo IX).
Na maioria das vezes, os imigrantes de mesma origem étnica concentravam-se em grupos homogêneos e isolados da sociedade brasileira, o que facilitou a
preservação da sua língua, cultura e tradições.
A fundação de escolas e a circulação da imprensa alemã no Brasil
contribuíram para manter esta resistência em relação à cultura brasileira. Tais
características foram mais intensas antes do advento da República, em 1889, pois, a
partir de então, se intentou formar colônias mistas. Deve-se levar em conta, por
outro lado, que este isolamento se deu enquanto consequência natural da
colonização de vazios demográficos, distantes das capitais e demais centros
urbanos e que, nas palavras de Freyre (1971), em meados do século XIX, já se
verificava indícios de fusão de ambas as culturas.
28
Apesar da importância da imigração alemã para o Brasil e do fato de que os
alemães constituíram a maioria nos núcleos coloniais até a chegada dos imigrantes
italianos, em 1875, os alemães não foram, em questão de números, a maioria. As
estatísticas sobre o contingente de imigrantes divergem de um autor para outro, não
chegando a um resultado comum, como indicou Seyferth (2007).
A despeito desta discrepância, segue-se a assertiva de Seyferth (2011), de
que, dependendo do critério empregado, no período de 1824-1950 registrou-se entre
230 e 360 mil imigrantes. A autora ainda cita os dados do IBGE, segundo os quais
entre 1824-99 chegaram ao Brasil 78.009 alemães; de 1900-39 foram 143.048 e de
1940-69 29.109.
Gregory (2011) também atenta para os números registrados em relação à
vinda de alemães ao Brasil, percebendo que a imigração foi mais intensa de 1872
até 1939, de acordo com o quadro apresentado pelo autor (Anexo X).
A heterogeneidade cultural dos alemães que aportaram no Brasil era bastante
acentuada, levando-se em conta que grande porcentagem de imigrantes deixou a
Europa antes de 1871, ano da Unificação da Alemanha, ou seja, uma época em que
as fronteiras nacionais não estavam delineadas.
Diante desta instabilidade, o que seria o “imigrante alemão” no século XIX?
Pois, tentar definir quem/quantos deles entraram no Brasil é incorrer em terreno
movediço, visto que não há como se obter um número preciso sobre sua
procedência, quando havia grupos populacionais falantes da língua alemã em
diversos países europeus – Áustria, Suíça, Luxemburgo, Polônia, Romênia, Hungria
e outros.
A preocupação com o registro do número de mulheres, homens e crianças
que saíram da Alemanha e com o seu local de destino fica evidente no Jornal Geral
dos Emigrantes19 (1858, n.º 6 p. 25 – Anexo XI). O levantamento de dados
estatísticos sobre o movimento migratório alemão resultou em uma rica produção
documental, tanto na Alemanha como no Brasil, que ainda precisa ser analisada.
Como se sabe, uma parcela significativa de imigrantes alemães que veio ao
Brasil se dedicou à agricultura, mas muitos não se adaptaram ao trabalho no campo
e foram para os centros urbanos, onde desempenharam diversas atividades, com
destaque para a indústria, o comércio e o artesanato.
19
Tradução: Allgemeine Auswanderer Zeitung.
29
Atualmente, as marcas da cultura alemã se fazem presentes nos estilos
arquitetônicos, no emprego da língua alemã, que aos poucos se transformou em um
dialeto teuto-brasileiro, e nas associações culturais – a primeira associação
recreativa fundada no Rio Grande do Sul, em 23 de junho de 1855, chamada
Geselschaft Germania, ou Associação Germânica, existe até os dias atuais, estando
entre as principais do Rio Grande do Sul. Além das marcas arquitetônicas e dos
hábitos alimentares, também deve ser destacada a literatura em língua alemã
produzida pelos imigrantes e seus descendentes, chamada teuto-brasileira, que
despontou na região Sul do Brasil, bem como os anuários, jornais e revistas que
circulavam pelo Brasil a partir de 185220.
1.1 DAS PROJEÇÕES DO ALEMÃO NO BRASIL À MEMÓRIA LITERÁRIA
Ateve-se até aqui a alguns aspectos da história da imigração alemã para o
Brasil por se considerar que a dimensão social, o referente externo, é constituinte da
construção artística enquanto elaboração estética, o que a torna um elemento
interno à sua composição, convertendo-se em interno-externo.
Esta formulação teórica, sobre a qual Antônio Candido se detém em Literatura
e Sociedade (2006), chama a atenção para que a dimensão social não seja
analisada, apenas, como projeção externa, uma vez que valores sociais e
ideológicos se transmutam em conteúdo e forma.
Tendo em vista a assertiva do crítico sobre o rompimento da relação
paralelística entre literatura e sociedade, e sobre o “[...] socialismo crítico, a
tendência devoradora de tudo explicar por meio de fatores sociais” (CANDIDO,
2006, p. 16), analisar a representação ficcional dos imigrantes alemães na literatura
brasileira não se configura no paralelismo comparativo entre ficção e história, ao
modo de um trabalho detetivesco, que verifica a ocorrência desta naquela,
subtraindo o fato de que o romance inaugura um debate sobre si mesmo e sobre
outros textos. Pois, recorrer à memória deixada, atentando àquilo que não foi escrito,
20
Na preservação da história da emigração alemã para o Brasil deve ser destacado, ainda, o trabalho
realizado por institutos, como o Instituto Martius Staden, de São Paulo, e museus de destaque, como
o Museu Histórico Visconde de São Leopoldo, o Museu Nacional da emigração e colonização,
localizado em Joinville, e o Museu da Emigração do Estado de São Paulo.
30
e o modo pelo qual a escrita existente foi concebida, é buscar instrumentos de
análise do dizer literário.
Não se estenderá, aqui, a este respeito, mas isto remete à questão da
mimese, tão discutida pela teoria literária, porque, em consonância com O demônio
da teoria (2001, p. 97), de Compagnon, trata-se do “[...] termo sob o qual se
conceberam as relações entre a literatura e a realidade”, desde Platão a Auerbach.
De que fala a literatura? pergunta o autor. Ela fala do mundo e, por outro lado, fala
de si mesma, dado que existe uma relação arbitrária entre o trabalho artístico e a
realidade e, enquanto realização da linguagem, o que lhe interessa é a sua
composição poética, a sua poiésis.
A obra vem a ser, então, o espaço para o qual enveredam a iniciativa
individual – assim chamada por Candido (2006) – e as condições sociais, que guiam
o artista em diferentes proporções. Pelo viés da mimese moderna, o autor se
apropria do referente, da história e dos aspectos sociais, não para imitá-los, mas
para recriá-los, reinterpretá-los, desestabilizá-los e desautomatizar a percepção do
leitor.
Discussões como estas também não estão longe da questão da crise da
representação, que marca uma era de simulacros que se aproxima – ou já se
aproximou? – a passos largos do momento em que não haverá mais histórias a
serem contadas e experiências a serem narradas, diante do surgimento de um
tempo global, de curto prazo, efêmero e melancólico.
A quem pertence a história? Esta pergunta foi formulada por Aleida Assmann,
em uma conferência intitulada “Fatos e ficções na literatura memorialista
contemporânea” (2013)21, ocasião em que a pesquisadora alemã discutiu o primado
da experiência enquanto matéria-prima do espaço literário.
A temática remete a Walter Benjamin (1987), quando ele afirma que o declínio
da experiência autêntica – Erfahrung – e o enfraquecimento da arte de narrar
nasceram com o desenvolvimento da técnica, da produção industrial e mecânica e,
por conseguinte, da privatização da vida, que suprimiram o modo de produção
21
As citações de Aleida Assmann e Jan Assmann, do ano de 2013, remetem, respectivamente, às
conferências “Fatos e ficções na literatura memorialista contemporânea” e “Fundamentos da memória
cultural”, ministradas no Ciclo de Conferências Estudos Humanísticos e Multidisciplinaridade,
realizadas no dia 17 de maio de 2013, nas dependências da Universidade Estadual do Oeste do
Paraná – por intermédio do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, área de
concentração em Linguagem e Sociedade, nível mestrado e doutorado, em parceria com o Centro de
Cooperação Internacional Brasil-Alemanha (CCIB)/ Associação Latino-americana de estudos
germanísticos (ALEG), da Universidade Federal do Paraná.
31
artesanal/manual e dessacralizaram as experiências, os valores coletivos e a
comunicabilidade.
Isto significa que o empobrecimento das experiências individuais adveio do
da modernidade, marcado pela pressa, pelo tempo vazio, homogêneo e pelo
imediatismo. Ele desponta com o advento da burguesia, no final do século XVIII, e
caracteriza-se pela despersonalização e pela perda das referências coletivas, que
Bertold Brecht tematizou no poema “Apague as pegadas”, abaixo transcrito,
mencionado por Walter Benjamin no ensaio Experiência e pobreza (1986), e citado
por Jeanne Marie Gagnebin, em História e narração em Walter Benjamin (2007).
Apague as pegadas
Separe-se de seus amigos na estação
De manhã vá à cidade com o casaco abotoado
Procure alojamento, e quando se camarada bater:
Não, oh, não abra a porta
Mas sim, Apague as pegadas!
Se encontrar seus pais na cidade de Hamburgo ou em outro lugar
Passe por eles como um estranho, vire a esquina, não os reconheça
Abaixe sobre o rosto o chapéu que eles lhe deram
Não, oh, não mostre seu rosto
Mas sim, apague as pegadas!
O que você disser, não diga duas vezes.
Encontrando o seu pensamento em outra pessoa: negue-o.
Quem não escreveu sua assinatura, quem não deixou retrato
Quem não estava presente, quem nada falou
Como poderão apanhá-lo?
Apague as pegadas!
Cuide, quando pensar em morrer
Para que não haja sepultura revelando onde jaz
Com uma clara inscrição que o denuncie
E o ano de sua morte que o entregue!
Mais uma vez: Apague as pegadas!
(Assim me foi ensinado)
(BRECHT apud GAGNEBIN, 2007, p. 60-61).
A tradição oral, que remonta às histórias preservadas oralmente ao longo do
tempo, perdeu-se na modernidade, pois o substrato da narração – a experiência –
32
foi substituído e ocupado pela vivência – Erlebnis –, no sentido de uma existência
aqui e agora, passageira.
A narrativa, em sua essência, era desenvolvida em torno do trabalho manual
e artesanal, quando interagiam, segundo explica Benjamin (1994), a voz, a mão e a
alma. Por isso, ela se assemelha ao trabalho do oleiro, que precisa do barro para
criar o vaso, tal como o narrador precisa da experiência para narrar. Sobre isso,
Benjamin (1987, p. 119) conclui que: “ficamos pobres. Abandonamos uma depois da
outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-los muitas vezes
a um centésimo de seu valor para recebermos em troca a moeda miúda ‘atual’”.
Esta realidade colocou os novos autores entre o impasse da fragilidade da
memória e, na tentativa de salvar o passado do esquecimento, eles se voltam “[...] a
determinados acontecimentos do passado porque querem ir ao encalço das
repercussões, ou porque têm a necessidade de narrar a história de uma nova
maneira” (ASSMANN, 2013). Tais autores recorrem à memória cultural e canônica
disponível, porque, se o homem moderno não sabe mais contar, parte-se do
pressuposto de que ele tampouco manteve a faculdade do ouvir que, sobretudo,
demanda tempo, já convertido em dinheiro, produção, lucro ou mera sobrevivência.
A retomada salvadora do passado é concebida por Benjamin pelo movimento
da origem – Ursprung – que rompe com a cronologia histórica oficial e resgata o
passado esquecido e mudo. Desta forma, para que um novo fenômeno tenha
origem, é necessário restaurar e reproduzir o passado, que se encontra incompleto e
inacabado para o futuro, pois perpassado no duplo sentido de vergangen – passado
e desaparecido. Tem-se, então, o eterno processo do vir a ser, na medida em que se
constrói o presente por meio do processo de rememoração do passado que permite,
de modo cíclico, a construção do futuro, potencialmente subjacente ao presente. O
que remente às Confissões (1984), de Santo Agostinho, narração autobiográfica
escrita entre 397 e 400. O teólogo discorre sobre a confluência do tempo “presente”
em três perspectivas:
[...] o presente dos fatos passados, o presente dos fatos presentes, o
presente dos fatos futuros. E estes três tempos estão na mente e não
os vejo em outro lugar. O presente do passado é a memória. O
presente do presente é a visão. O presente do futuro é a espera
(AGOSTINHO, 1984, p. 323).
33
O movimento de origem implica não somente a restauração do passado, mas
a transformação do presente e a emergência do diferente. Seguindo este raciocínio,
Aleida Assmann (2013), em diálogo com a teoria de Benjamin, chamou a atenção
para o fato de as representações históricas serem passíveis de infinitas
reconstruções dos acontecimentos, por meio de novas fontes e aproximações ainda
não narradas, cujas lacunas – que a sociedade subtraiu do discurso oficial, ou
deixou de tematizar – poderão, então, ser (re)conhecidas.
Em virtude disso, a aceitação de que os eventos se encontrem em sua versão
definida e fechada, ou de que o tempo seja concebido enquanto cronológico e linear,
significa compactuar e alienar-se aos interesses de uma classe, dado que a história
oficial se construiu pela voz dos vencedores.
Ao criticar a historiografia progressista e burguesa, Benjamin (1987, p. 224 –
grifo nosso) conferiu importância a esta questão, ao afirmar que “[...] nunca houve
um monumento de cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E,
assim como a cultura não é isenta de barbárie, não é, tampouco, o processo de
transmissão da cultura”. Então, se escritos e monumentos permanecem, disso deve
resultar o questionamento sobre o que se buscou preservar do esquecimento, ou
quais foram os critérios da seleção.
Embora a imigração de alemães para o Brasil tenha iniciado efetivamente há
cento e noventa anos, muitos dos seus descendentes, especialmente nas
comunidades mais fechadas, mantiveram preservados traços identitários do país de
origem, que trazem à tona questões tão complexas socialmente como estereótipos,
nacionalismos e preconceitos. Analisá-las, por conseguinte, é sempre perturbador,
porque revira, vasculha e resgata da lata de lixo (ASSMANN, 2011) dos
esquecimentos outrora dispensados, momentos do passado necessários à
compreensão do sujeito atual e da realidade que o circunda. Tal análise implica,
também, perguntar-se, conforme sugere Elias (1997),
[...] se não temos imagens depreciativas ou degradantes de outros
grupos em nossa cabeça e se, quando encontramos indivíduos
desses grupos, não procuramos involuntariamente a prova de que é
correto o quadro estereotipado do grupo que temos em mente
(ELIAS, 1997, p. 28).
Nesta ordem de considerações, e alcançando a reflexão de Gagnebin (1997,
p. 73) sobre a “condição específica de seres que não só nascem, e morrem ‘no’
34
tempo, mas, sobretudo, que sabem que têm consciência dessa sua condição
temporal e mortal”, posso então afirmar que minha memória biológica não tem
alcance sobre os acontecimentos que envolveram, por exemplo, a chegada dos
primeiros imigrantes alemães ao Brasil, nem, tampouco, sobre a ascensão dos
regimes nazifascistas na primeira metade do
século XX, que implicaram duas
guerras e um genocídio. Sendo assim, procura-se a ponta deste novelo em tudo o
que se leu e lê enquanto patrimônio desse passado, ao qual não se tem pleno
alcance, mas do qual chega, certamente, aquilo que se preservou nas gerações
anteriores. E chega porque está mantido na memória-armazém da sociedade
(ASSMANN, 2000) que, por comportar o conteúdo temporalmente mais distante,
pode ser acessado e reativado, seja para negá-lo, ou para reafirmá-lo.
Isto quer dizer que a memória não se restringe ao indivíduo, como já havia
postulado Maurice Halbwachs (1990), de sorte que ela está amarrada ao grupo, à
memória coletiva de uma sociedade.
Para analisar ou retomar determinado acontecimento ou fenômeno, pode-se,
então, recorrer, em primeira instância, à memória biológica ou individual, na qual se
inserem as vivências pessoais que são, neste caso, via de acesso a uma infância
marcada por uma comunidade na qual grande parte dos habitantes é descendente
de alemães e preservou traços da cultura dos antepassados.
Em um segundo momento está a dimensão social, sendo esta a base
comunicativa e social da memória e, por último, e de forma mais complexa,
encontra-se a dimensão cultural, de permanência institucional, codificada nas mais
diversas formas de linguagem, que vai muito além do tempo biográfico 22.
Contudo, deve ser destacado que, a despeito de se estar engajada em
determinados grupos sociais, a memória dos outros não pode mais ser evocada para
completar as lacunas e a inacessibilidades da minha. Até porque, não há mais
testemunhas que auxiliam a recontar uma história por meio da rememoração dos
momentos compartilhados. Nas sociedades contemporâneas, cada vez se ocupa
menos com o lembrar, com o narrar e com a perpetuação da história contada.
Bosi (1994, p. 59) afirma que “[...] um mundo social que possui uma riqueza e
uma diversidade que não conhecemos pode chegar-nos [esse mundo] pela memória
dos velhos”. Todavia, os conselhos, presentes nas narrativas e experiências
contadas, nem aos velhos é mais possível, uma vez que, em sua maioria, quando
22
Segue-se a distinção de memória apresentada por Jan Assmann (2000).
35
dispensáveis ao sistema de produção do capital, são rejeitados pela sociedade e
aguardam seu fim isolados em casa, em asilos e casas de repouso, o que só pode
significar que não há mais “[...] sobrevivência à sua obra” (BOSI, 1994, p. 77). Tais
conselhos os jovens encontram em best sellers e demais demonstrações de
autoajuda da indústria cultural, cuja natureza do gênero já se associa a um monstro
flácido, que absorve todos os demais gêneros23.
Portanto, nesta linha de pensamento, resta voltar-se à memória cultural,
indiscutivelmente pela “[...] mediação do lembrar ou da leitura dos signos e dos
textos” (GAGNEBIN, 2007, p. 14), dado que, ainda segundo as palavras da
autora, “[...] não existem [...] reencontros imediatos com o passado, como se este
pudesse voltar no seu frescor primeiro, como se a lembrança pudesse agarrar uma
substância, mas há um processo meditativo e reflexivo”, que se exemplifica com a
experiência da releitura. Ela pode, apenas, refazer as primeiras impressões, já que
também não se lê um texto, nas mais diversas vezes e ocasiões, da mesma
maneira, relembra Bosi (1994).
Partindo-se da premissa de que “[...] um homem não sabe o que ele é se não
for capaz de sair das determinações atuais” (BOSI, 1994, p. 81), vislumbra-se a
necessidade de retomar as produções, salvaguardadas pela memória cultural, que
abarquem um passado mais distante do que aquele de meus pais e avós. Inserida
nessa memória cultural abrangente, a literatura é um dizer sobre nós mesmos, e
tece, à sua maneira, as redes da história, por mãos de Penélopes. E não se trata de
um trabalho ingênuo, pois, no ir e vir dos fios e do movimento das mãos, salvam-se
determinados
fenômenos
e
acontecimentos,
e
esquecem-se
outros
–
conscientemente, ou não – o que garante o trabalho de “escavação” de
pesquisadores que buscam recuperar fenômenos, encontrar outros e elucidar tantos
mais, trazendo à cena, neste caso, o modo pelo qual os imigrantes alemães foram
representados na literatura brasileira do século XX, com os escritores Graça Aranha,
Vianna Moog e Josué Guimarães, respectivamente em Canaã, Um rio imita o Reno
e A ferro e fogo.
Portanto, buscou-se neste capítulo abordar alguns aspectos sobre o contato
inicial travado entre alemães e brasileiros, sobretudo – mas não exclusivamente –
A referência ao “monstro flácido” faz parte da fala de Miguel Sanches Neto na conferência intitulada
Proposta de leitura do romance contemporâneo, realizada durante o XI Seminário de Estudos
Literários (50 anos do 2º Congresso brasileiro de crítica e história), na Faculdade de Ciências e Letras
da UNESP, campus de Assis-São Paulo, nos dias 24, 25 e 26 de outubro de 2012.
23
36
por intermédio da legislação imigrantista, iniciada no segundo quartel do século XIX.
Partindo desta perspectiva histórica e social, constituinte interna à composição
literária, pretendeu-se discutir a questão do papel da literatura enquanto memória
cultural, muito mais rica e abrangente que a memória pessoal, e que permite que se
tenha acesso à representação do imigrante alemão no Brasil.
Canaã, Um rio imita o Reno e A ferro e fogo são obras que, por remeterem a
momentos e perspectivas históricas e temporais distintas, permitem analisar a
representação do alemão de forma mais ampla e descentralizada. Pensando-se nas
teorias literárias pós-coloniais, tem-se a tarefa de revisitar e questionar o passado, a
hierarquia, o etnocentrismo e o eurocentrismo, não no sentido da inversão de
valores, mas na inclusão de novos olhares, de novas propostas de leituras e
interpretações, “escovando tudo a contra pelos” (BENJAMIN, 1987).
Na sequência, passaremos para a análise de Canaã, no capítulo intitulado
“Racialismo, humanismo e desencanto em Canaã”.
37
2 RACIALISMO, HUMANISMO E DESENCANTO EM CANAÃ
Conforme aponta Mário Luiz Frungillo (2008), mais de um século após sua
publicação, o livro Canaã ainda suscita dúvidas se seria uma obra ficcional, um
ensaio filosófico ou um ensaio sociológico.
Canaã é definido por vários críticos como um romance de tese porque, em
sua composição, há um debate de ideias sobre o atraso social do Brasil, o papel da
imigração no futuro da nação e, por fim, o sentido da vida, é em torno destas
questões que se estrutura o enredo.
Este romance pauta-se em reflexões filosóficas, éticas, religiosas e morais,
que convergem para dois eixos ideológicos: o racionalismo e o humanismo alemão.
Assim, é o caráter moralizador, didático e teórico do romance – haja vista que as
teorizações do narrador desestruturam a progressão da trama – que interfere na
recepção positiva do mesmo pelos críticos.
Segundo Roberto Schwarz, no ensaio sobre Canaã em A sereia e o
desconfiado (1981), as personagens do romance de Graça Aranha parecem
funcionar como marionetes de seu criador, pois elas se configuram enquanto porta-vozes das inquietações do autor e, por isso, são destituídas de vida própria,
enquanto composição ficcional.
Com efeito, o crítico mostra que há uma descontinuidade do universo
imaginário em Canaã, resultante das intervenções teóricas do autor, que transforma
a trama ficcional em pretexto para analisar a realidade brasileira. Por conseguinte,
sua tentativa de organizar esteticamente ficção e realidade – de modo a buscar
“verdades” sobre o Brasil – não se dá a contento.
Entretanto, ao destacar tais apontamentos, a crítica tende a desconsiderar a
qualidade estética da obra. Uma exceção a esta tendência é o estudo de José Paulo
Paes (1992)24, que reavalia positivamente o romance a partir do estilo e das
tendências estéticas da época de sua elaboração, bem como das ideias filosóficas a
ele subjacentes.
A despeito da “artificialidade” das personagens, estas, ao serem analisadas
em sua essência enquanto vozes sociais, desvelam ao leitor atento concepções
discursivas bastante profundas, uma vez que se trata da representação literária de
tipos sociais específicos e historicamente bem situados.
24
Ver: PAES, Jose Paulo. Canaã e o ideário modernista. São Paulo: Edusp, 1992.
38
O discurso de Lentz – um dos protagonistas alemães – por exemplo,
representa em Canaã a memória de um grupo social, seus valores e preconceitos,
que elegeu o povo alemão como superior a todos os outros, e do qual o Brasil
dependeria para construir o que índios, negros e mulatos seriam biologicamente
incapacitados de fazer.
Mas isto é a lei da vida e o destino fatal deste país. Nós
renovaremos a Nação, nos espalharemos sobre ela, a cobriremos
com os nossos corpos brancos e a engrandeceremos para a
eternidade. A velha cidade mineira da sua narração não me
interessa, os meus olhos se projetam para o futuro. Porto do
Cachoeiro tem mais significação moral hoje pela força de vida, de
energia que em si contém do que os lugares mortos de um país que
vai se extinguir... Falando-lhe com maior franqueza, a civilização
dessa terra está na imigração de europeus; mas é preciso que cada
um de nós traga a vontade de governar e dirigir (ARANHA, s/d, p. 22
– grifo nosso).
Na fala de Lentz há uma manobra subliminar que faz referência àqueles que
obnubilaram da história as contingências econômicas e sociais em nome da
pretensão em dominar, explorar e excluir o outro, recorrendo, para tal, à fixação de
tradições e mitos, como o da pureza racial. Ao empregar o pronome pessoal “nós”, a
personagem se inclui na homogeneidade de um grupo, reiterando seu sentimento de
pertencimento. Apregoando o domínio e a expansão do europeu no Brasil, Lentz dá
pistas ao leitor sobre si mesmo, sua personalidade preconceituosa e autoritária, que
é determinante do comportamento etnocêntrico do sujeito.
A expressão “personalidade autoritária” remete ao estudo de campo sobre o
fascismo latente da população norte-americana, realizado por Theodor Adorno e
psicólogos da Universidade da Califórnia, em Berkeley, entre os anos de 1944 a
1947, e que resultou na publicação, em 1950, de A personalidade autoritária:
estudos sobre o preconceito (1950).
Embora o livro de Adorno tenha sido publicado meio século depois de Canaã,
ele fornece orientações importantes para a compreensão do perfil de Lentz ao
mostrar que o preconceito cumpre uma função psicológica, tem motivações
emocionais
irracionais
e
necessidades
inconscientes
internalizadas.
Tais
características são adquiridas por meio da inserção do sujeito em um contexto
histórico e social determinado, sendo, portanto, psicossociais. Destaca-se, apenas,
39
que o estudo de Adorno teve como ponto de partida Psicologia de massas e análise
do eu (1921), de Sigmund Freud.
Veja-se como Lentz, em relação ao brasileiro, traz à tona preconceitos
internalizados, os quais são a matéria-prima do comportamento discriminatório.
Não acredito que da fusão com espécies radicalmente incapazes
resulte uma raça sobre que se possa desenvolver a civilização. Será
sempre uma cultura inferior, civilização de mulatos, eternos escravos
em revoltas em quedas. Enquanto não se eliminar a raça que é o
produto de tal fusão, a civilização sempre será um misterioso artifício,
todos os minutos rotos pelo sensualismo, pela bestialidade e pelo
servilismo inato do negro. O problema social para o progresso de
uma região como o Brasil está na substituição de uma raça híbrida,
como a dos mulatos, por europeus. A imigração não é simplesmente
para o futuro da região do País um caso de simples estética, é antes
de tudo uma questão complexa, que interessa o futuro humano
(ARANHA, s/d, p. 25).
Lentz reproduz eficientemente um percurso teórico racial sobre o negro, do
qual se ocupará mais adiante. No primeiro momento, ressalta-se o fato de a
personagem empregar as expressões “inferioridade”, “incapacidade”, “revoltas em
quedas” e “progresso”, que parecem, a despeito de querer se referir ao outro, dizer
de si mesmo, no sentido de um lapso do inconsciente que diz para além do que se
quis dizer.
Que motivações psicossociais teria Lentz para transformar as “raças
inferiores” em “bodes expiatórios”? Tratar-se-á, talvez, do processo que Freud
(1921) denominou de projeção, ou seja, o ato de projetar no outro a frustração do
indivíduo, seus medos e traumas, transferindo para o outro a responsabilidade pelos
infortúnios de sua vida e da de seu grupo.
Recuando-se consideravelmente no tempo para o desenvolvimento histórico
da nação germânica, se entenderá que a personalidade autoritária de Lentz está
ligada à educação e à estrutura autoritária do Estado alemão, cujo processo de
formação se caracterizou em um quadro de conflitos, humilhações e traumas.
Ao estudar a maneira pela qual ocorreram a ascensão do nacional-socialismo,
as guerras, os campos de concentração e a divisão da Alemanha em dois Estados,
Norbert Elias (1997) cita alguns aspectos que contribuíram para tais consequências
– lembrando que a atual configuração espacial da Alemanha data, apenas, de 1º de
agosto de 1990.
40
Após referir-se à situação instável das tribos de fala alemã, cercadas de
grupos inimigos, o autor cita a fraqueza interna e a falta de unidade do Sacro
Império Romano da Nação Germânica, consequência dos choques internos entre os
vários principados e ducados até a época de Bismarck que, em 1871, unificou-os e
constituiu o Segundo Império. Tais condições deram ensejo às diversas invasões e
ataques de outros povos.
[...] a Alemanha seiscentista tornou-se importante arena de guerra
onde os líderes e os exércitos de outros países católicos e
protestantes travavam suas batalhas pela supremacia. E os exércitos
de magnatas regionais também se guerreavam uns aos outros em
território alemão. Todos eles precisavam de alojamentos e alimentos
provenientes dos campos. A insegurança cresceu. Bandos vagavam
pela terra, pilhando, queimando e matando. Uma elevada proporção
do povo alemão empobreceu. Especialistas calculam que durante a
Guerra dos Trinta Anos a Alemanha perdeu um terço de sua
população (ELIAS, 1997, p. 19).
Somadas a outros acontecimentos que contribuíram para aumentar este
quadro de fraqueza estrutural do Estado germânico – como a invasão da Alemanha,
em fins do século XVII, pelas tropas de Luís XIV, e no início do século XIX pelo
exército de Napoleão Bonaparte, sob a prerrogativa do domínio francês de unificar a
Europa – as experiências negativas desse processo histórico profundamente
violento trouxeram consequências socioeconômicas drásticas, impingindo nos
alemães uma conduta militar e autoritária.
Ao longo dos séculos, segundo Elias (1997), a história de uma nação
sedimenta-se no habitus de seus membros – termo empregado pelo autor e que
corresponde ao sentido de mentalidade – de modo que estes apresentam como
consequência sinais de depressão, humilhação e, sobretudo, perda de identidade.
Assim, do sentimento de que os alemães seriam incapazes de viver sem discórdias
e disputas internas, nasceu o desejo de unidade, tendo como contrapartida a
interiorização exagerada e doentia de grandeza, força e poder da nação alemã
(CARONE, 2002).
Quando Lentz afirma que “a vida é a luta, é o crime. Todo o gozo humano tem
o sabor do sangue, tudo representa a vitória e a expansão do guerreiro” (ARANHA,
s/d, p. 31), supõe-se que é a formação histórica e social que implicou na
mentalidade belicosa, cujos desdobramentos serão tão trágicos ao longo do século
XX. Ou seja, extrapolando o campo literário, o comportamento proceloso de Lentz e
41
sua fidelidade a um ideal germânico se confirmarão historicamente no decorrer do
século XX.
Seguindo esta ordem de considerações, ao se atentar ainda ao emprego do
pronome pessoal “nós” no discurso de Lentz, é válido analisar esta personagem sob
o viés psicológico do grupo que reloca o indivíduo enquanto membro de uma família,
de uma raça e de uma nação, pois, para Freud, os indivíduos, quando
transformados num grupo, numa espécie de mente coletiva, passam a “[...] pensar
e agir de maneira muito diferente daquela pela qual cada membro [do grupo] tomado
individualmente, sentiria, pensaria e agiria, caso se encontrasse em estado de
isolamento”25. Os membros de um grupo se unem sob a força de uma ideia em
comum,
ou
de
um
sentimento
capaz
de
torná-
-los uma só massa homogênea e invencível, conforme afirma Lentz:
[...] o homem levará ainda muito tempo a libertar-se do grupo a que
pertence, a emancipar-se dessa tirania poderosa que lhes anula a
individualidade e lhe traça na fisionomia as linhas de uma máscara
comum e sem distinção própria, ou seja a família, ou seja a classe,
ou seja a raça (ARANHA, s/d, p. 28).
Com efeito, os interesses individuais são, em certa medida, refreados em
nome dos interesses do grupo como um todo, pois a pessoa é impingida a agir da
mesma forma que os demais membros do grupo. Lentz corresponde modelarmente
a este quadro ao expressar o desejo de dominar e conquistar o Brasil. Entretanto, a
personagem não intenta fazer isto sozinha, senão com a vinda em massa de
alemães26.
E Lentz via por toda a parte o homem branco apossando-se
resolutamente da terra e expulsando definitivamente o homem
moreno que ali se gerara. E Lentz sorria com orgulho na perspectiva
da vitória e do domínio de sua raça. Um desdém pelo mulato, em que
ele exprimia o seu desprezo pela languidez, pela fatuidade e
fragilidade deste, turvou-lhe a visão radiosa que a natureza do país
lhe imprimira no espírito. Tudo nele agora era um sonho de grandeza
e triunfo... Aquelas terras seriam o lar dos batalhadores eternos,
25
Psicologia de grupo e a análise do ego. Disponível em:
<http://centropsicanalise.com.br/wpontent/uploads/2012/07/Aulas14sicologiadegrupoeaan%C3%A1lis
edoego..pdf>. Acesso em: jun. de 2013.
26 A referida passagem faz uma analogia à colonização do país pelos portugueses, em 1500, ou à
renovação do contato do Brasil com a Europa, no século XIX, que Freyre (2004) chamou de
reeuropeização e reconquista: isto é, quando o Brasil, em sintonia com a mentalidade cientificista da
época, passa a fazer parte da rota de muitos viajantes, interessados nos aspectos exóticos dos
trópicos, especialmente no que se refere ao clima, à flora e à fauna.
42
aquelas florestas seriam consagradas aos cultos temerosos das
virgens ferozes e louras... Era tudo um recapitular da antiga
Germânia. Ele percebia no seu cérebro exaltado que os alemães
chegariam, não em pequenas invasões humildes de escravos e
traficantes, não para lavrar a terra para recreio do mulato, não para
mendigar a propriedade defendida pelos soldados negros. Eles
viriam agora em grandes massas; galeras imensas e numerosas os
desembarcariam em todo o país. Eles viriam numa ânsia de posse e
de domínio, com sua áspera virgindade de bárbaros, em cortes
infinitas, matando os homens lascivos e loucos que ali se formaram e
macularam com suas torpezas a terra formosa; eles os eliminariam
com o ferro e com o fogo; eles se espalhariam pelo continente;
fundariam um novo império, se revigorariam eternamente na força da
natureza que dominariam como uma vassala, e senhores, e ricos, e
poderosos, e eternos repousariam para sempre na alegria da luz...
Mas no sonho de Lentz sobre as naus que velejavam, sobre os
exércitos que caminhavam, uma massa imensa e preta marchava no
céu qual uma nuvem condutora, e depois se transformava numa
figura estranha e agigantada, cujos olhos penetrantes desciam do
alto, envolvendo as terras e os homens com uma força invencível e
magnética. Então Lentz viu pairar sobre a terra do Brasil a águia
negra da Germânia... (ARANHA, s/d, p. 47 – grifo nosso).
Lentz é porta-voz de uma espécie de delírio segundo o qual os alemães se
apossariam definitivamente das terras brasileiras, não só no sentido físico, mas,
também no simbólico. As virgens louras da mitologia alemã substituiriam as virgens
morenas, como Iracema, que o Romantismo havia moldado no imaginário brasileiro.
Por outro lado, a negatividade com que o alemão é representado aponta para o
temor em relação à sua vinda em massa, ao seu domínio e posse do território
brasileiro, haja vista que, com a imigração, formaram-se grupos étnicos resistentes à
interação com os brasileiros. Veja-se que, na citação acima, a voz é apenas
atribuída a Lentz, mas ela está sendo anunciada por alguém de fora – o narrador –
que repassa a ideia de um profundo conhecimento sobre as características do povo
alemão e, por isso, cogita a hipótese de uma invasão.
No contexto da obra analisada isso faz sentido, pois Graça Aranha, a exemplo
de Silvio Romero, de um germanófilo discípulo de Tobias Barreto na sua mocidade,
tornou-se, em sua idade madura, um germanófobo adepto do “perigo alemão”
(FREYRE, 1971). Tendo em vista que Graça Aranha nasceu em 1868, quando
publicou Canaã já tinha 34 anos, portanto, já estava mais maduro e distante do início
da juventude, quando cursou direito em Recife e fora influenciado “pela maior força
germanizante que já se fizera sentir nas letras brasileiras: a da Escola do Recife
dominada pela figura carismática de Tobias Barreto” (FREYRE, 1971, p. 141).
43
Em 1917 – quinze anos após a publicação de Canaã – no prefácio escrito
para a edição portuguesa do livro O plano pangermanista desmascarado, de André
Chéradame, Graça Aranha deixa evidente seu posicionamento germanófobo, já que
defendeu que os alemães se constituem historicamente em um povo de rapina e de
invasão. Como estava em curso a I Guerra Mundial, Graça Aranha propôs que o
Brasil rompesse imediatamente as relações diplomáticas com a Alemanha, proibindo
a entrada de imigrantes alemães em território brasileiro.
Temos de resolver o povoamento do território dentro das forças da
nossa nacionalidade, e de todas as raças que buscam o Brasil, a
menos assimilável e a mais perigosa pelo seu poder de absorção é a
raça allemã. [...]. O elemento allemão subsiste perigoso e repulsivo.
O futuro da nacionalidade brasileira exige a parada dessa infiltração
allemã [...]. Será uma medida de sabedoria prohibir no Brasil a
invasão teutonica, que se prepara para se espalhar no mundo depois
da guerra (ARANHA, 1917, p. 25 e 26).
Graça Aranha pensava que tal perigo tinha fundamentos, porque qualquer
intento se torna passível de realização sob a atuação do grupo, no qual o sujeito se
rende às forças mais impulsivas e, dir-se-ia, primitivas do ser humano. Este age com
mais violência, como mostra a fala de Lentz, anteriormente citada, de que os
alemães “[...] viriam numa ânsia de posse e de domínio, com sua áspera virgindade
de bárbaros, em cortes infinitas, matando os homens lascivos e loucos que ali se
formaram e macularam com suas torpezas a terra formosa [...]” (ARANHA, s/d, p.
47).
O perigo visto por Graça Aranha nos alemães está simbolicamente manifesto
na visão da águia negra antevista por Lentz ao imaginar a invasão do Brasil pelos
alemães, e que sintetiza o perfil da personagem – “então Lentz viu pairar sobre a
terra do Brasil a águia negra da Germânia...” (ARANHA, s/d, p. 47). Até porque, a
águia simboliza força, coragem e liderança, mas também,
[...] a perversão de sua força, o descomedimento de sua própria
exaltação [...] por causa de seu caráter de ave de rapina que carrega
as vítimas com suas garras para conduzi-las a lugares de onde não
podem escapar, a águia simboliza também um desejo de poder
inflexível e devorador (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2002, p. 25-26).
Seguindo estas considerações, parece que o autor faz de Lentz uma projeção
da nação alemã, conforme demonstra a definição de pátria da personagem: “[pátria]
44
é a raça, uma civilização particular que nos fala no sangue, o nosso eu, a nossa
própria projeção no mundo, a soma de nós mesmos multiplicados ao infinito.”
(ARANHA, s/d, p. 107).
Nota-se que, para Lentz, indivíduo e nação se fundem em um único ser,
refletindo a formação política do país que impinge em seu povo sentimento de
orgulho, implícito à ideia de unidade nacional. Daí o fato de o sujeito utilizar da
identidade nacional para se definir individualmente, conforme indicam expressões
tão corriqueiras como: “sou alemão” ou “sou brasileiro”, por exemplo. Isso acontece
porque a nação, para além de uma entidade política e territorial, também produz
sentidos com os quais as pessoas se identificam. Ela é uma comunidade simbólica
que gera sentimentos de pertencimento, lealdade e identidade. Segundo Hall (2006,
p. 50),
[...] as culturas nacionais são compostas não apenas de instituições
culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura
nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que
influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que
temos de nós mesmos [...]. As culturas nacionais, ao produzir
sentidos sobre a ‘nação’, sentidos com os quais podemos nos
identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas
estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam
seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas.
Portanto, o emprego enfático do pronome “nós” no discurso de Lentz revela o
sentimento de identidade coletiva da personagem, demarcando as fronteiras entre
os alemães como um todo em relação aos demais povos. A distinção entre “nós”, os
falantes de língua alemã, e os outros, estrangeiros, teve seu início em seguida à
fundação do I Reich (962) e remonta à tomada de consciência de uma comunidade
linguística entre diversos Stämme27, e do desprezo pelos welches28 (POLIAKOV,
1974). Poliakov (1974) explica que a importância de tal descoberta fica evidente ao
se considerar que, em geral, as línguas europeias são etimologicamente derivadas
dos nomes dos países, ao passo que, no caso alemão, esta ordem é invertida, já
que o nome da língua comum – theodiscus, diutisk – que surge no tempo de Carlos
27
28
Traduzível como tronco, estirpe, raça ou tribo. (Cf. LANGENSCHEIDT, 2001, p. 1078).
Refere-se, neste contexto, às outras línguas e culturas estrangeiras, sobretudo às latinas.
45
Magno, seria, portanto, muito anterior à denominação Deutsche, que só
posteriormente dará origem a Deutschland29.
Este quadro se aproxima bastante daquele que Benedict Anderson discute
em Comunidades imaginadas (2008), obra na qual o autor afirma que a consciência
nacional teve suas origens com o capitalismo e o desenvolvimento da imprensa
como mercadoria. Isto porque na Europa, antes da invenção da imprensa, havia uma
grande diversidade de línguas faladas e o impacto da Reforma, ao contribuir para a
formação de um público leitor de massa – que passou a ter acesso a textos
importantes como a bíblia, cuja leitura, até então, era outorgada apenas a uma elite
bilíngue, que sabia o latim – mostrou que tais variantes e dialetos poderiam adquirir
valor de unidade através do capitalismo tipográfico.
Como a Alemanha estava dividida em muitos Estados, às vezes
“estrangeiros” entre si, não havia uma padronização da língua até que Martinho
Lutero, ao traduzir a Bíblia – o Novo Testamento em 1521 e o Velho Testamento em
1534 – definiu como padrão linguístico o Hochdeutsch. Em outras palavras, a
consciência nacional nasce, nesse sentido, como consciência sobre uma língua
nacional oficial, gramaticalmente elaborada, por meio da qual os falantes vieram a se
reconhecer enquanto membros de um grande grupo, que participam de uma
identidade étnica comum30. Dessa forma, as pessoas
[...] foram tomando consciência gradual das centenas de milhares, e
até milhões, de pessoas dentro daquele campo linguístico particular,
e ao mesmo tempo percebendo que apenas estas centenas de
milhares, ou milhões, pertenciam a tal campo. Esses companheiros
de leitura, aos quais estavam ligados através da letra impressa,
constituíram, na sua invisibilidade visível, secular e particular, o
29
O primitivismo comunitário dos alemães em torno do princípio da língua se converteu em
pretensões políticas de hegemonia universal nos séculos XV e XVI, como demonstra, entre 1490 e
1510, o Livro dos cem capítulos, de autoria anônima, obra que prefigurou alguns ideais divulgados
séculos depois pelo nacional-socialismo, ao defender a sujeição dos povos não alemães, o massacre
do clero católico e a necessidade de um chefe supremo, que subjugasse o mundo inteiro pela força
das armas (POLIAKOV, 1974).
30 Afora Lutero, também o Sturm und Drang e o Romantismo alemão contribuíram para gerar este
sentimento de germanismo e pertencimento, haja vista que Johann Gottfried Herder passou a
empregar o conceito de Volksgeist – alma ou espírito alemão. Este estilo de época, conforme
relembra Celeste Ribeiro de Sousa, (Literatura brasileira de expressão alemã. Disponível em:
<http://martiusstaden.org.br/files/conteudos/00000010500/69/a64dca980c9180086f181bc840213c31.
pdf>) alimentou a ideia de nacionalismo, pois, naquela época o país vivia a experiência da invasão
napoleônica e necessitava de unidade política. O desejo daquele grupo de intelectuais foi também
ressaltar, segundo a autora, o sentimento de pertença ao grupo, à nação, de modo que as raízes
medievais passaram a ser reavivadas através dos Märchen e cantos populares, transformando, por
exemplo, o rio Reno em símbolo nacional.
46
embrião da comunidade nacionalmente imaginada (ANDERSON,
2008, p. 80).
Portanto, a língua é um dos elementos constitutivos da identidade e, em
Canaã, Lentz faz uma referência modelar a ela, ao afirmar a incapacidade de os
brasileiros imporem a língua portuguesa às comunidades germânicas do Espírito
Santo, ignorando a possibilidade de esta “incapacidade” estar atrelada ao fato de o
Brasil ser, ainda, um país jovem, em processo de formação: “[...] no fundo do
pensamento de Lentz houve um pequeno júbilo por essas confirmações da
insuficiência do meio brasileiro para impor uma língua. Esta fraqueza não seria a
brecha para os futuros destinos germânicos daquela magnífica terra?” (ARANHA,
s/d, p. 37).
Todavia, é preciso aqui destacar que a capacidade de disseminar a língua
portuguesa e de dialogar com diferentes culturas foram elementos fundamentais na
constituição da identidade brasileira e, consequentemente, na manutenção do seu
vasto território. Os portugueses, assim como os alemães, já haviam recorrido à
imposição de sua língua tanto aos povos autóctones quanto aos escravos e demais
imigrantes. Tal mentalidade adviria da predisposição do europeu de colonizar, impor
sua língua, cultura e costumes, como parte do projeto de colonização.
Portanto, é paradoxal na obra em análise a assimilação da língua alemã pelos
mulatos de Porto do Cachoeiro, pois, pelo viés da língua, qualquer comunidade está
aberta a novos falantes, a novos ouvintes, o que faz com que eles transitem pelo
campo nacional alemão, que Lentz julgou fechado à invasão do outro. A tentativa de
preservação da língua alemã nas comunidades de imigrantes só arrefeceu por
intervenção do Estado Novo, durante a II Guerra Mundial, haja vista que, no período
inicial da vinda de imigrantes para o Brasil, a falta de assistência do governo
brasileiro propiciou que os grupos de imigrantes abrissem escolas alemãs, com
vistas a suprir as necessidades elementares de ensino do grupo. Desse modo,
quando em Canaã Lentz questiona o agrimensor Felicíssimo sobre a existência de
professores em Porto do Cachoeiro, este responde que tem “só um, porque a língua
que se ensina por essas matas é o alemão, e os professores são alemães, exceto o
da cidade” (ARANHA, s/d, p. 18).
47
Concomitantemente ao sentimento nacionalista em torno da língua, avulta em
Lentz o racismo31 e o temor de que o contato cultural, social e sexual acabe por
minar a pureza germânica. Tal visão reduz de forma estereotipada toda alteridade a
determinados traços fisionômicos e culturais negativos. Anderson (2008) destaca
que este delírio racista teve origem nas ideologias da classe aristocrática e na
tentativa de legitimar o princípio de que sua superioridade seria inata, herdada32, o
que coaduna com a fala de Milkau – o outro protagonista de Canaã: “um dos erros
dos intérpretes da História está no preconceito aristocrático com que concebem a
ideia de raça. Ninguém, porém, até hoje, soube definir a raça e ainda menos como
se distinguem umas das outras...” (ARANHA, s/d, p. 24 – grifo nosso).
A definição supracitada se aplica à visão da personagem Lentz, oriunda de
uma família importante, filho de um General, o Barão von Lentz, e a quem Milkau
atribui qualidades vinculadas aos indivíduos pertencentes às classes privilegiadas na
Alemanha: “[...] Milkau sentia-se constrangido por ter encontrado naquelas paragens
estranhas e remotas um filho de general alemão, um ser privilegiado na sua pátria...”
(ARANHA, s/d, p.15).
Este constrangimento advém do fato de ele não querer ser reconhecido por
outro compatrício como alguém que também deixou a Alemanha quando esta não
tinha mais condições econômicas de manter sua população e não oferecia a
liberdade individual que Milkau procurava. Assim, ao avistar Lentz, é como se as
condições sociais e econômicas da Alemanha, implícitas à migração, o
perseguissem e se renovassem, gerando sentimentos de mal-estar, culpa e
vergonha, mas, também, certo constrangimento por ver um membro da aristocracia
alemã na condição de mais um imigrante em busca de um lote de terra na América,
ou seja, é constrangedor tanto para o indivíduo quanto para a pátria, da qual ele teve
31
Cabe aqui destacar a distinção terminológica a respeito do vocábulo racismo, visto que o conceito
traz duas acepções muito diferentes: trata-se, por um lado, de um comportamento – em geral de ódio
e de desprezo pelas pessoas que estão fora de seu grupo, possuem outra cor, outras crenças,
costumes, etc., – e, por outro lado, ele diz respeito a uma ideologia, ou seja, uma doutrina referente
às raças humanas (TODOROV, 1993). Esta distinção é relevante, pois, como elucida Todorov (1993),
aquele que é racista não é necessariamente um teórico e não consegue explicar seu comportamento
cientificamente, ao passo que os teóricos que estudam as raças não possuem necessariamente um
comportamento racista. Até porque, tal comportamento é muito antigo e universal, como afirma o
autor, ao passo que o racialismo enquanto doutrina é um conjunto de ideias que nasceu na Europa,
em meados do século XVIII.
32 “[...] do lado da aristocracia fundiária vieram as ideias de uma superioridade intrínseca à classe
dominante, e uma sensibilidade à posição social, traços marcantes que se prolongaram até nos anos
avançados do século XX. Alimentadas por novas fontes, essas ideias depois puderam ser
vulgarizadas [sic] e se tornaram atraentes para o povo alemão como um todo, nas doutrinas da
superioridade racial” (MOORE apud ANDERSON, 2008, p. 2009).
48
que imigrar, a despeito de sua distinção social e familiar. Assim, este exemplo serve
também para refletir sobre a visão “refratada” de Graça Aranha na cisão entre
opositores, que, vez ou outra, solidarizam-se e relativizam o esquematismo de que
se acusa a obra.
O nacionalismo e a primazia da língua alemã são marcantes no discurso de
Lentz. Quando ele afirma que a pátria é “a raça, uma civilização particular que nos
fala no sangue” (ARANHA, s/d, p. 107), ele está remetendo a uma memória social
que alimentou a compreensão equivocada de muitos alemães sobre suas origens.
Trata-se da doutrina do “arianismo”33 e, partindo dela, o povo brasileiro seria inferior,
degenerado pela miscigenação e, por isso, propenso à extinção.
Pensando-se na configuração ficcional de Lentz, além da defesa da
superioridade da língua e do sangue alemão, há outro elemento que ele aciona e
que reacende uma das discussões mais polêmicas sobre a origem da espécie
humana.
A aversão e o desprezo de Lentz pelo mulato, em quem via a fragilidade e a
inferioridade de uma raça a ser dizimada – “Um desdém pelo mulato, em que ele
exprimia o seu desprezo pela languidez, pela fatuidade e fragilidade deste”
(ARANHA, s/d, p. 47) – expressam o narcisismo acentuado e a necessidade de
autoafirmação e preservação dos valores do grupo ao qual pertence. Pois, para os
alemães, mesmo fora da Europa, o sentimento de pertencimento à comunidade de
origem se manteve sob a forte ligação do jus sanguinis, isto é, o direito de sangue,
que fez com que os teuto-brasileiros, a despeito de estarem/nascerem no Brasil,
continuassem se considerando alemães.
É como se Lentz construísse o outro a partir de si mesmo, pois ele depende
da negação da mestiçagem brasileira para afirmar sua identidade “original”.
Conforme Gilberto Freyre (2004), foi o temor do homem branco em relação ao negro
que o levou a tornar o negro um constante alvo de sátiras no mais empedernido
período patriarcal escravista, segundo atestam os preconceituosos ditados
33
Arianos se refere a um subgrupo de europeus que povoou a Península da Índia a.C. e a
designação se estendeu a diversos povos originários da Ásia Central, chamados Indo-Europeus, que
falavam o protoindo-europeu. Ou seja, em nenhum momento o termo “ariano” referiu-se
especificamente a “sangue puro”, “raça branca” ou aos alemães. Entretanto, apesar da desconstrução
científica do mito, este subjazia à cultura de muitos emigrantes alemães que vieram para o Brasil, e
que, para evitar a “degradação” da raça, segundo informa Seyferth (2002), isolaram-se e mantiveram
a homogeneidade étnica como principal característica. Esta teoria foi de transição entre a Bíblia e
Darwin (1809-1882), posta em dúvida em fins do século XIX.
49
populares como: “negro quando não suja na entrada suja na saída”; “negro velho
quando morre, tem catinga de xexéu, permita Nossa Senhora, que negro não vá ao
céu” (FREYRE, 2004, p. 786); “em pé é um vulto, assentado é um toco, deitado é um
porco”; “macaco de luva, sinal de chuva”; “o branco descasca, o mulato raspa e o
negro come com a casca”, dentre muitos outros. Embora hoje estes ditados sejam
abomináveis, eles foram recorrentes no Brasil até a metade do século XX e, apesar
de não se aplicarem diretamente aos imigrantes alemães, apontam para o reiterado
processo cultural branco de depreciação do negro que se assemelha ao discurso de
Lentz.
Do outro lado, em frente a Milkau, estava Felicíssimo, muito nervoso,
a fazer sinais de impaciência. O cearense arregalava os olhos para
os seus amigos do Rio Doce, sacudia a cabeça num gesto de
contrafeita resignação, em caretas sucessivas transformava a sua
móvel fisionomia. Lentz não pôde deixar de murmurar com certo
desdém a Milkau, que seguia complacente o agrimensor. – Que
macaco! (ARANHA, s/d, p. 62 – grifo nosso).
No comentário de Lentz ecoa uma segunda voz, que reflete o percurso
histórico do discurso racial europeu sobre o negro e sobre o mestiço, haja vista que
é sabido da tentativa, com vistas a justificar a escravidão, de se criar, ora teorias
delirantes sobre a maldição bíblica de Cam – o filho de Noé, que teria povoado a
África – ora de tentar comprovar cientificamente que a raça negra seria inferior à
branca. Na afirmação de Lentz “Até agora não vejo probabilidade de a raça negra
atingir a civilização dos brancos...” (ARANHA, s/d, p. 25) ecoa a dialogicidade interna
deste discurso, porque nele está presente a voz daquele que, para além de um
comportamento racista, tem conhecimento das teorias que as justificam, sobretudo
das francesas34.
O fato de Lentz considerar o brasileiro como “macaco” está, portanto,
intimamente ligado aos intentos científicos delirantes apregoados durante os séculos
XVIII e XIX na Europa. Naquele contexto, eram recorrentes as aproximações entre
grupos humanos e animais – principalmente entre negros e símios – para comprovar
as possibilidades de cruzamentos dos quais teriam se originado as pessoas
“inferiores”.
34
Merece destaque o fato de que Graça Aranha, um diplomata de carreira que serviu na França, teve
contato com teorias e influências francesas, difundidas por nomes importantes como Arthur de
Gobineau (1816-1882), Ernest Renan (1823-1892), Gustave Le Bom (1841-1931), etc.
50
Os negros foram diagnosticados como espécie híbrida, não desenvolvida,
intermediária entre macacos e homens, e como tal degenerada, justamente pela
ausência de pureza racial. Tais teorias corroboraram para a exploração advinda do
novo modelo de escravidão durante a colonização da América. As atuais teorias
sobre o surgimento da humanidade que, ao que tudo indica, tiveram origem na
África, fazem com que, da perspectiva atual, as teorias eugênicas sejam ainda mais
absurdas e cruéis.
Nesse sentido, quando Lentz afirma que “o problema social para o progresso
de uma região como o Brasil está na substituição de uma raça híbrida, como a dos
mulatos, por europeus” (ARANHA, s/d, p. 25), a personagem está acionando um
discurso profundamente negativo sobre o mulato, que se solidificou através da
sistematização das raças, enquanto verdade preestabelecida. Tal discurso se
disseminou, embora ele nunca tenha sido consensual.
Portanto, seja por meio de símbolos, da língua ou do sangue, o imigrante
Lentz é a projeção negativa que Graça Aranha faz dos alemães. Da perspectiva
desta personagem, a imigração alemã para o Brasil configura-se pela negação e
choque entre culturas, e não pelo contato e interação mútuas. Pois, para Lentz, o
brasileiro se torna um fetiche (a leitura de Bhabha (2005) sobre o estereótipo é
proposta em termos de fetichismo), isto é, um objeto de fixação que mascara a
diferença, como se ser negro/mulato/mestiço fosse a mesma coisa.
Neste discurso que designa o outro como “macaco” há um jogo de linguagem
baseado na metáfora e na metonímia – são os tropos do fetichismo empregados por
Bhabha (2005). A metáfora implica uma substituição, ou seja, quando Lentz diz
“macaco” para o cearense, a diversidade tão marcante do povo brasileiro sofre um
processo de homogeneização, no qual negro, mulato, índio e mestiço são arrolados
em um arquétipo negativo. A metonímia, por sua vez, é o registro da falta percebida,
pois o todo foi substituído pela parte, em outras palavras, a hibridez do povo
brasileiro é canalizada sob o signo de “macaco”. O que Lentz está negando é,
certamente, aquilo que dá acesso ao reconhecimento da diferença e esta fixação
sobre o negro é resultante da fantasia primária do sujeito que não quer ter a sua
“originalidade” ameaçada pelas “diferenças de raça, cor e cultura” (BHABHA, 2005,
p. 117).
Desta perspectiva,
51
o ato de estereotipar não é o estabelecimento de uma falsa imagem
que se torna o bode expiatório de práticas discriminatórias. É um texto
muito mais ambivalente de projeção e introjeção, estratégias
metafóricas e metonímicas, deslocamento, sobredeterminação, culpa,
agressividade, o mascaramento e cisão de saberes “oficiais” e
fantasmáticos para construir as posicionalidades e oposicionalidades
do discurso racista... (BHABHA, 2005, p. 125).
Por outro lado, a construção ficcional de Lentz é positiva, pois, se o leitor
atentar para o desfecho de Canaã, perceberá que, longe de seu grupo e da sua
terra, na solidão da selva do Espírito Santo, Lentz, independentemente do seu
racionalismo e preconceito, também revela a fragilidade resultante da sua condição
de imigrante. Ao acompanhar Milkau em uma visita a Maria Perutz na prisão, Lentz
se depara com a imagem da miséria, que não é só econômica, mas, também,
existencial e, portanto, diz respeito ao mal-estar e à angústia que atinge todas as
pessoas. A despeito da crença na força e na superioridade dos alemães defendida
por ele até então, a personagem se rende às reais circunstâncias de abandono,
sofrimento e miséria, encarnados em Maria Perutz.
Durante o tempo que aí passaram, Lentz ficou silencioso. Pela
primeira vez se via num cárcere, misturando-se com criminosos e
réprobos. A sua velha alma aristocrática estremecia de repugnância,
e o espírito de sonhador soberano e forte, que não se lhe tinha
extinguido de vez, estranhava o contato da miséria, revoltava-se por
se libertar da moleza, da piedade, ardendo em remontar às alturas
do silêncio e do império. Mas era tarde: a garra da compaixão o
prendia ao mundo, que ele também assim fecundava com o seu
quinhão de sofrimento. Na rua, quando saíram da cadeia, Milkau
ouviu, como um eco do seu próprio coração, estes murmúrios: –
Pobre mulher! Como é triste a vida! (ARANHA, s/d, p. 136 – grifo
nosso).
É a partir do contato com a pobre Maria que ocorre em Lentz um
deslocamento sobre si mesmo, pois neste encontro entre um alemão de origem
aristocrática e uma filha de imigrantes miseráveis, confrontam-se duas visões e
condições sociais opostas, que remetem a um mesmo país de origem. Tal confronto
abala Lentz, pois Maria reflete uma imagem oposta à que ele apregoava e da qual
estava convicto.
A compaixão de Lentz por Maria Perutz é um fator positivo que desvela seu
lado humano, até então escondido sob sua impermeável capa de preconceitos. Tal
processo é contínuo, pois, as pessoas se reinventam, se redescobrem e percebem
novos “eus” a partir do contato com os outros. Assim, a mudança de comportamento
52
de Lentz indica que o homem está inserido num espaço contraditório e ambivalente,
no qual a negociação entre culturas possibilita a criação de um entre--lugar
(BHABHA, 2005).
Através de Lentz, Graça Aranha se atém à questão do isolamento e do
preconceito das colônias germânicas no Brasil em relação à população brasileira,
mestiça desde a sua formação. Por outro lado, ao funcionar como instrumento de
crítica a tal realidade, Lentz não deixa de ser o estereótipo do sujeito alemão que
nunca se mistura, dada sua “superioridade” racial e cultural.
Afora isso, cabe colocar que este imigrante – a despeito do parecer de
Schwarz (1981) sobre a “artificialidade” das personagens de Canaã – não deve ser
considerado como desprovido de vida própria, pois personagens ficcionais não
surgem “do nada”, mas advêm de contextos espaciais, históricos e sociais.
2.1 O IMIGRANTE ALEMÃO COMO POSSIBILIDADE DE BRANQUEAMENTO
A ideia da inferioridade inata dos negros e da superioridade dos brancos foi
aceita pelos brasileiros como um determinismo histórico muito conveniente, pois o
Brasil foi um dos países da América que mais recebeu escravos e foi o último a
abolir a escravidão, portanto, sua economia até o final do século XIX dependia da
mão de obra escrava.
A partir do último quartel do século XIX, este modelo produtivo se tornou
escandaloso, pois, historicamente, a escravidão não se sustentaria por muito mais
tempo e alguns Estados, à revelia do poder central do Império, já a haviam abolido.
Os problemas sociais e humanos implícitos à escravidão, que formou uma
sociedade sádica e violenta (FREYRE, 1980), associado ao discurso eugênico, fica
evidente em Canaã, como exemplifica a fala do agrimensor Felicíssimo ao distinguir
o povo alemão do brasileiro. Segundo ele, os alemães tinham faro para os negócios
e grande dedicação ao trabalho:
estes alemães tem olho... Se fossem brasileiros, estava tudo
arrebentado. E o agrimensor continuava, nesse tom, a fazer o elogio
das virtudes germânicas para os negócios, a economia, a facilidade
de assimilação, a energia no trabalho, dando, como contraste a elas,
as qualidades inferiores dos brasileiros, que ele se comprazia em
proclamar, no gáudio de se mostrar, aos companheiros de passeio...
(ARANHA, s/d, p. 16-17).
53
Isto revela que a ausência de um posicionamento intelectual crítico e
independente no Brasil era o indício de sua condição de ex-colônia, pois, apesar da
imagem negativa lançada sobre a América Latina como um todo, a intelectualidade
europeia era – e ainda é – uma referência para o Brasil e funcionava como um
centro de onde partiam mercadorias e, sobretudo, ideias (RAMOS; MAIO, 2010).
A relação de portugueses com o Brasil foi de ocupação, exploração e
implantação da cultura europeia, escravizando não só fisicamente, mas cultural e
intelectualmente índios e, posteriormente, negros, renegando-os à marginalização e
à invisibilidade. Essa submissão, cabe ressaltar, permitiu a muitos portugueses
enriquecer, pois o que eles vinham buscar na terra de Vera Cruz, por eles
“descoberta”, eram riquezas obtidas com o trabalho escravo de índios e,
posteriormente, de negros: “o que o português vinha buscar era, sem dúvida, a
riqueza, mas a riqueza que custa ousadia, não riqueza que custa trabalho. A
mesma, em suma, que se tinha acostumado a alcançar na Índia com as especiarias
e os metais preciosos ... (HOLANDA, 1995, p. 49).
Assim, se por um lado a abolição da escravatura representou um avanço para
o país, por outro, desconsiderou a inserção do negro na sociedade produtiva
moderna e ele foi relegado por longo tempo à marginalização. Não havia espaço
para ele, pois era negro, não tinha dinheiro, não tinha casa, nem possibilidade de
emprego, visto que, após a abolição, muitos latifundiários optaram pelo trabalho do
imigrante.
O tempo e o contexto de Canaã estão em consonância com este quadro, pois
remetem ao final do século XIX e evidenciam as marcas da abolição recente e seu
complexo processo de substituição pela mão de obra livre. Tais evidências são
apresentadas ao leitor através da personagem Milkau que, ao se dirigir de Queimado
ao Porto do Cachoeiro, descreve o cenário de terras abandonadas que avista. Um
antigo escravo diz para Milkau:
- Ah, tudo isso, meu sinhô moço, se acabou... Cadê fazenda?
Defunto meu sinhô morreu, filho dele foi vivendo até que Governo
tirou os escravos. Tudo debandou. Patrão se mudou com a família
para Vitória, onde tem emprego; meus parceiros furaram esse mato
grande e cada um levantou casa aqui e acolá, onde bem quiseram.
Eu com minha gente vim pra cá, pra essas terras de seu coronel.
Tempo hoje anda triste. Governo acabou com as fazendas, e nos pôs
todos no olho do mundo, a caçar de comer, a comprar de vestir, a
54
trabalhar como boi para viver. Ah! Tempo bom de fazenda! A gente
trabalhava junto, quem apanhava café apanhava, quem debulhava
milho debulhava, tudo de parceria, bandão de gente, mulatas,
cafuzas... que importava feitor? Nunca ninguém morreu de pancada.
Comida sempre havia, e quando era sábado, véspera de domingo,
ah! meu sinhô, tambor velho roncava até de madrugada (ARANHA,
s/d, p. 11).
O discurso de Milkau é a expressão mais otimista sobre o futuro do Brasil, a
ser formado com as novas gerações, que teriam origem na fusão entre as diferentes
raças. Milkau assume posicionamento ideológico contrário ao de Lentz em relação à
definição de raça. Contudo, o ideal de miscigenação de Milkau, longe de ocupar um
espaço intersticial, no qual se vislumbre um elemento intermediário, síntese das
qualidades de brancos, negros, índios e mestiços, evidencia um discurso de
assimilação, cuja ação seletiva ascenderia a uma depuração dos mestiços pelo ideal
do branqueamento. Em outras palavras, se, por um lado, ele não compactua com a
definição preconcebida sobre raça postulada veementemente por Lentz, por outro,
ele se perde em sua fala ao classificar os povos enquanto “atrasados” versus
“adiantados”, de modo que aqueles nada teriam a acrescentar a estes, que, como
tábulas rasas, absorveriam a cultura, a civilização e os progressos impingidos pelos
brancos “puros”.
Se não tivesse havido a fatal mistura de povos mais adiantados com
populações atrasadas, a civilização não teria caminhado no mundo.
E no Brasil, fique certo, a cultura se fará regularmente sobre esse
mesmo fundo de população mestiça, porque já houve o toque divino
da fusão criadora. Nada mais pode embaraçar o seu voo, nem a cor
da pele, nem a aspereza dos cabelos. E no futuro remoto, a época
dos mulatos passará, para voltar a idade dos novos brancos, vindos
da recente invasão, aceitando com o reconhecimento o patrimônio
dos seus predecessores mestiços, que terão edificado alguma coisa,
porque nada passa inutilmente na terra ... (ARANHA, s/d p. 130).
Em todo o período da República Velha que se seguiu à abolição e à
proclamação da república não houve um projeto político e cultural sistemático que se
empenhasse, de fato, a resolver os problemas sociais advindos tanto da abolição da
escravatura quanto da exclusão de parte do trabalhador brasileiro branco e mestiço
que, também, vivia – e ainda vive – à margem do processo de integração
econômica.
Neste aspecto, Milkau se torna profundamente contraditório, pois, ora ele
estende seu discurso humanitário sobre todas as raças, ora identifica e reproduz
55
modelarmente o papel desigual dos povos, concebido pelo discurso elitista de
exploração e interesses. Ao tentar se desvencilhar do ideário europeu e alemão de
superioridade, a personagem apresenta traços que a desmascaram, uma vez que
fica claro que Milkau não se opõe à extinção de negros, índios e mestiços que se
daria através do processo de miscigenação, no qual a raça branca – por ser “pura” –
suplantaria a negra, portanto, “impura”. “[...] por ora nós somos apenas um
dissolvente da raça desta terra. Nós penetramos na argamassa da Nação e a vamos
amolecendo; nós nos misturamos a este povo, matamos as suas tradições e
espalhamos a confusão ...” (ARANHA, s/d, p. 22).
Para assegurar a evolução do país rumo ao progresso, era preciso se
desvencilhar daquele velho modelo colonial e escravocrata e a solução adviera da
imigração branca. Aí está o sentido racista da imigração, segundo o qual se sanaria
a pobreza e a imoralidade do país, diminuindo o elemento negro, “[...] criminoso em
potencial, inimigo da civilização e do progresso, que os discursos imigrantistas
repudiavam abertamente, em uma época que as teorias raciais ainda estavam longe
de cair em desuso” (AZEVEDO, 2004, p. 134).
Tais inquietações são evidentes no diálogo entre Milkau e o juiz Paulo Maciel
(p. 126-130), quando eles discutem sobre o futuro do Brasil, dada sua
heterogeneidade racial e sua falta de patriotismo. Eles se atêm ao caráter infantil do
povo brasileiro, à arbitrariedade dos governantes e à disparidade entre as classes
sociais. Para Maciel,
isso, que chamamos de nação, não é nada, repito; aqui já houve
talvez uma aparência de liberdade e de justiça, mas hoje está tudo
acabado. É um cadáver que se decompõe este pobre Brasil. Os
urubus aí vêm ... [...] – De toda a parte, da Europa, dos Estados
Unidos ... É a conquista (ARANHA, s/d, p. 127).
Os brasileiros seriam impotentes em face de tal processo, dada a realidade
de um país ainda muito jovem, heterogêneo, racialmente “indefinido”, resultante de
uma formação colonial, escravocrata e, portanto, atrasada e miserável. Nisso se
assentaria a diferença entre as terras cultivadas por brasileiros e por imigrantes
europeus, porque estes estavam “civilizadamente” e “culturalmente” mais aptos a se
engajarem no desenvolvimento do Brasil. Ou seja, recai sobre a população a
responsabilidade pelo insucesso do país:
56
é admirável a ordem e o asseio desta colônia [de alemães]. Nada
falta aqui, tudo prospera, tudo nos encanta... Que diferença em viajar
nas terras cultivadas por brasileiros... só desleixo, abandono, e com
a relaxação a tristeza e a miséria. E ainda se fala contra a imigração!
[...] para mim era indiferente que o País fosse entregue aos
estrangeiros que soubessem apreciá-lo mais do que nós...
(ARANHA, s/d, p. 83-84).
Sobre a questão nacional, há os que defendem o país da “invasão” de
estrangeiros, como o escrivão mulato – “os senhores podem querer entregar a Pátria
ao estrangeiro, podem vendê-la, mas enquanto houver um mulato que ame este
Brasil, que é seu, as coisas não vão tão simples, meus doutores” (ARANHA, s/d, p.
84) – em cujo discurso ressoa a voz de Graça Aranha, a lamentar a tacanha
organização do país, e há os que estão a favor da invasão:
diga-me você: onde está a nossa independência financeira? Qual é a
verdadeira moeda que nos domina? Onde o nosso ouro? Para que
serve o nosso miserável papel senão para comprar a libra inglesa?
Onde está a nossa fortuna pública? O pouco que temos, hipotecado.
As rendas das alfândegas nas mãos dos ingleses; vapores não
temos, estradas de ferro também não, tudo do estrangeiro. É ou não
o regímen colonial com o nome disfarçado de nação livre? Escute.
Você não me acredita; eu desejaria poder salvar o nosso patrimônio
moral, intelectual, a nossa língua, enfim, mas a continuar esta
miséria, esta torpeza a que chegamos, é melhor que viesse de uma
vez para cá um caixeiro de Rothschild para governar as fortunas, e
um coronel alemão para endireitar isto (ARANHA, s/d, p. 85).
Trata-se de uma situação cultural na qual a dependência intelectual de países
periféricos em relação à Europa e, atualmente, aos Estados Unidos da América,
abre espaço à imposição de ideias estrangeiras, que intervêm ideologicamente por
intermédio de teorias que operam a favor dos interesses de certa elite privilegiada
social e economicamente. As vozes do escrivão mulato e do juiz Maciel estabelecem
ficcionalmente um confronto de posicionamentos sobre o país. Paradoxalmente, a
mesma sociedade que abandonou os negros à própria sorte, sem prepará-los para
se integrarem à nova realidade econômica e social advinda da abolição, está sendo
defendida por eles na voz do escrivão. Isso mostra que a negação do negro e do
mulato não vem, apenas, do outro, do estrangeiro e imigrante, mas, também, da
sociedade brasileira, cuja mentalidade colonial e senhorial deu continuidade a
práticas racistas de seleção. Se os negros não eram considerados aptos a
trabalharem pelo desenvolvimento do Brasil, isso se deveu ao modelo do regime
escravocrata não ter desaparecido por completo após a Abolição, persistindo na
57
mentalidade e no comportamento da sociedade. Ainda, se os negros não estavam
preparados para competir com os imigrantes europeus, o discurso de Maciel revela
que tampouco o governo e a elite intelectual estavam em condições de perceber o
problema do país, posto que, quem se posiciona a favor dos interesses brasileiros é
o escrivão mulato, que representa aquela pequena parcela negra/mulata da
população que conseguiu conquistar seu espaço na sociedade.
Em sintonia com a mentalidade cientificista do século XIX, parte da elite
brasileira acreditava que o crescimento econômico da Europa se devia a fatores
hereditários e climáticos, e, partindo desta premissa, o Brasil jamais alcançaria a
condição de uma civilização evoluída, pois grande parte dela era negra. Não é à toa
que Arthur de Gobineau – representante da escola histórica de teoria racial – ao
conhecer o Brasil, desprezou-o por conta de sua aparência “preta” e excessivamente
“feia”, fadada ao desaparecimento devido a sua degenerescência genética: “Todo
mundo é feio aqui, mas incrivelmente feio: como macacos” (GOUBINEAU apud
SKIDMORE, 1976, p. 47)35.
Voltando ao perfil de Milkau, este representa o caráter pré-modernista de
Canaã, ao reconhecer a participação dos “selvagens” no processo civilizatório
(PAES, 1991). Entretanto, esta “participação” é considerada sob a perspectiva do
tipo genético a ser superado e substituído pelos brancos europeus. Disso
depreende-se o posicionamento engajado do escritor em trazer à pauta a discussão
sobre o futuro do Brasil, se ele deveria ser entregue aos estrangeiros e ao processo
35Ao
longo do século XIX emergiram três escolas principais de teoria racista. A primeira foi a
etnológico-biológica, sistematizada nas décadas de 1840 e 1850, nos Estados Unidos, que pretendeu
sustentar a criação das raças humanas através da mutação de diferentes espécies. Esta escola
acreditava que havia diferentes espécies humanas e que a diferença entre elas estava diretamente
relacionada aos traços físicos, de modo que os cientistas passaram a rotular, a partir de tabelas e
medidas cranianas e do esqueleto, a raça branca como superior em qualidades mentais e sociais.
Louis Agassiz, um dos principais representantes desta escola, contribuiu para disseminar estas ideias
no Brasil. Ainda nos Estados Unidos, segundo Skidmore (1976), surgiu a escola histórica, cujos
integrantes e simpatizantes divulgavam que a raça era o fator determinante da história humana,
sendo a raça branca superior a todas as outras. A terceira escola de pensamento racista, citada pelo
autor, é o darwinismo social, que despontou com Herbert Spencer (1820 – 1903), o qual defendia que
a evolução da espécie humana prosseguiria sob o impulso da raça mais forte, e com Darwin (18091882), que partilhava da ideia de que a seleção natural obrigaria algumas raças à extinção, pois o
contato entre elas faria com que a mais forte absorvesse as demais inferiores, até exterminá-las. Será
apenas em finais do século XX e início do século XXI que as ciências genéticas chegaram à
conclusão de que as teorias raciais são apropriadas, apenas, para a biologia de espécies animais,
mas inválidas no caso dos seres humanos (MAIO; SANTOS, 2010).
58
de branqueamento, ou se conseguiria se desvencilhar das forças estrangeiras e
buscar sua própria independência.
Esta posição dual reflete as incertezas de um grupo de intelectuais sobre o
futuro do Brasil, num contexto em que a maioria absoluta da população era
analfabeta e vivia à beira da miséria, envolta por uma atmosfera de instabilidade,
que
[...] envolveu todo o período de decadência do Império e
consolidação da República. Uma sensação de fluidez e falta de
pontos fixos de referência se difunde e palpita incessantemente na
profundidade dos textos (SEVCENKO, 2003, p. 106).
Graça Aranha fazia parte deste grupo de intelectuais, pois participava da
Escola de Recife e, inserido em um contexto de modernização da cultura brasileira,
traz em Canaã a discussão sobre a necessidade – ou não – de o país desvencilhar-se do passado e da imperativa influência europeia.
A “Escola de Recife”, ou “Geração de 1871” surgiu na Faculdade de Direito de
Recife – atual Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco – e se
constituiu em um movimento intelectual, filosófico, poético, sociológico e folclórico
liderado por Tobias Barreto entre 1860 e 1880. Além de Graça Aranha, outros
intelectuais faziam parte do grupo, como Silvio Romero, Araripe Júnior, Capistrano
de Abreu, Joaquim Nabuco, Castro Alves, e outros.
A faculdade de direito não atuava, apenas, como centro de formação de
bacharéis, mas servia de espaço para encontros e discussões polêmicas sobre
variados campos do saber que diziam respeito ao futuro do Brasil. O grupo de
liberais, abolicionistas e republicanos defendia o estudo e a investigação sobre o
caráter nacional – a primeira obra de fôlego dedicada à história da literatura
brasileira foi publicada em 1888, por Silvio Romero e fazia parte deste grande
projeto –, o cruzamento das raças, o monismo, o evolucionismo, enfim, diversas
correntes do pensamento europeu. Tobias Barreto36 foi também um dos maiores
divulgadores da língua, cultura e das teorias alemãs no Brasil. No último quartel do
36
Sobre a vida e obras de Tobias Barreto, ver Mostra bibliográfica da exposição Tobias Barreto: as
marcas de um homem: 170 anos de nascimento, 1839-1889. Disponível em:
<http://www.ufpe.br/ccj/images/folder/catalogo_tobias1.pdf>. Acesso em 26 jul. 2013.
Sobre Silvio Romero, ver o artigo de Ana Helena Krause, O gosto pelas coisas intelectuais tedescas:
o pensamento alemão na História da Literatura Brasileira de Sílvio Romero. Disponível em:
<http://seer.ufrgs.br/contingentia/article/view/6505/3873>. Acesso em: 26 jul. 2013.
59
século XIX, auge da influência de Auguste Comte, este grupo de intelectuais
brasileiros buscou ampliar a influência do germanismo como forma de fortalecer, via
tal assimilação cultural, o caráter nacional brasileiro.
Naquele contexto de tomada de consciência sobre a realidade nacional, o real
dilema de Graça Aranha em Canaã foi sintetizado por Skidmore (1976, p. 128) da
seguinte forma: “poderia um país tropical luxuriamente dotado pela natureza, tornar-se um centro de civilização pela fusão de correntes imigratórias formadas de
europeus e mestiços brasileiros?”. Pensando-se no caráter distópico do desfecho do
romance, em que a fuga de Milkau e Maria Perutz para a terra prometida de Canaã
não se concretiza, fica evidente que, como bem apontou Celeste Ribeiro de Souza
(2004), a tarefa de transformar o Brasil numa Canaã só seria alcançada através da
fusão entre brasileiros e imigrantes brancos e do consequente branqueamento da
população.
Da ferrenha tentativa de Graça Aranha em compreender e achar a solução
para os problemas da sociedade brasileira resultou o caráter controverso, teórico e
enfadonho de Canaã, conforme apontou Schwarz (1981). Não obstante, concordase que há um fundamento que percorre toda a narrativa e estabelece uma relação
muito próxima entre a obra literária e o contexto social ao qual ela se reporta, porque
a linguagem do romance é, indiscutivelmente, social e ideologicamente impregnada
(BAKHTIN, 1988).
Por fim, a conclusão dessa emulação literária do debate proposto por Graça
Aranha pode ser, inclusive, a de que as abordagens empregadas é que são o
problema, e daí há a inadequação das conclusões.
2.2 O CASO DE MARIA PERUTZ E O ESFACELAMENTO DA UTOPIA RACIAL
O que move um indivíduo a emigrar? De todos os fatores, as motivações
econômicas se sobressaem, pois implicam a necessidade de sobrevivência e a
busca por melhores condições de vida.
Contudo, há outros fatores que impelem as pessoas a deixarem a sua terra,
dentre os quais se destaca o que em alemão chama-se Fernweh, uma espécie de
saudade projetada no futuro, um desejo de conhecer o diferente, aquilo que não se
tem em casa, o utópico, o edênico, ressalta Celeste Ribeiro de Souza (Literatura
60
Brasileira de Expressão Alemã37. Aos olhos dos imigrantes alemães o Brasil
configurava-se como este refúgio, “seja para ficar rico, seja para fugir da justiça
europeia ou da discriminação social, seja para fugir das guerras”, afirma a autora.
Eles trouxeram para o Brasil a certeza de encontrar um paraíso tropical, fantasia
esta construída no imaginário europeu através das narrativas de viagem, da
literatura e dos relatos de cronistas.
Em Retratos do Brasil: hetero-imagens literárias alemãs (1996), Celeste
Ribeiro de Sousa explica que a primeira imagem do Novo Mundo foi comparada à
tradição judaico-cristã do jardim do Éden e a reprodução de tais mitos tornou-se
conhecida pelo nome de mitos de conquista, ou mitos da conquista da América. Ao
tratar do paraíso, a autora reporta-se mais especificamente ao registro bíblico de
Pentateuco, no livro “Gênesis”, como o primeiro lugar habitado na terra pelo primeiro
homem. A autora ressalta que há, ainda, outras passagens bíblicas nas quais são
feitas referências à terra de Canaã, lugar que ficou aberto às perspectivas de retorno
do homem.
Na representação e interpretação do mito do paraíso, Celeste Ribeiro de
Sousa – com base no estudo de Reinhold Grimm – cita três tendências:
[...] uma tendência estabelece que o paraíso se localiza em um
espaço celestial, além da terra – é uma realidade metafísica; uma
outra tendência interpreta a descrição do paraíso como alegoria de
um estado de alma, portanto, o paraíso seria o interior do homem; e
uma terceira mostra a descrição do paraíso de um espaço físico
existente na terra (SOUSA, 1996, p. 30).
As imagens edênicas sobre o Brasil se fazem presentes nos documentos
sobre a nova terra, desde a Carta de Pero Vaz de Caminha, até as crônicas de Pero
Magalhães Gândavo. Sérgio Buarque de Holanda, em Visão do Paraíso (1977),
afirma que diversos mitos que estavam presentes na tradição literária e no
imaginário do Velho Mundo vieram a se tornar realidade, pois se constituíram nas
ferramentas usadas pelos conquistadores para interpretar e denominar as terras
descobertas, tão diferentes da realidade europeia:
presos como se achavam aqueles homens, em sua generalidade, a
concepções nitidamente medievais, pode supor-se que, em face das
37
Disponível em:
<http://martiusstaden.org.br/files/conteudos/0000001000500/69/a64dca980c9180086f181bc840213c3
1.pdf>. Acesso em: 23 jul. 2013.
61
terras recém-descobertas, cuidassem reconhecer, com os próprios
olhos, o que em sua memória se estampara das paisagens de
sonhos descritas em tantos livros e que, pela constante reiteração
dos mesmos pormenores, já deviam pertencer a uma fantasia
coletiva (HOLANDA, 1977, p. 170).
O autor chega à conclusão de que a visão medieval do paraíso, que os
conquistadores repetidas vezes demonstraram conhecer, alimentava-se de duas
fontes básicas: o texto bíblico do Gênese e a tradição literária greco-latina, composta
de diversos textos, como as narrativas homéricas. Este mito do Novo Mundo como
terra de abundância foi representado por Gottfried em Historia Antipodium, em 1631
(Anexo XII).
Esta fantasia edênica em relação ao Novo Mundo foi atualizada no segundo
quartel do século XIX – quando teve início a imigração alemã para o Brasil – e é
exemplificada por Celeste Ribeiro de Sousa38 por meio de Jedem sein Paradies – A
cada um seu paraíso – de Otto Grellert, texto que exemplifica como falantes de
alemão vieram para o Brasil atraídos por ofertas fantasiosas:
Deutscher! Warum arbeitest du noch als Knecht für fremde
Herren? Warum hungerst du noch auf einer ungenügenden
Landfläche? Mache dich auf nach Brasilien. Das reichste Land
der Welt mit seinen unermesslichen Urwäldern wartet auf dich. Da
kannst du auch Herr werden auf eigenem Grund und Boden. Das
allerbeste Land Brasiliens wird gerade jetzt aufgeteilt und
ausverkauft. Der Platz ist schon abgesteckt, wo die modernste
Stadt gebaut werden soll mit Kirchen, Schulen, Krankenhäusern,
Banken und Geschäften. Der Plan ist schon ganz fertig.
Erstklassige, breite Verkehrsstraßen werden demnächst gebaut,
und auch mit dem Bau der Eisenbahn ist bald zu rechnen. Fast
auf jeder Kolonie steht soviel Nutzholz, daß allein damit der
Kaufpreis bald gedeckt werden kann. Arbeiter! Kleinbauer! Eilt!
Sichert euch und euren Kindern die Zukunft! Sichert euch den
besten Boden Brasiliens! SERRA-POST KALENDER, 1954, p.
173. Disponível em:
<http://martiusstaden.org.br/files/conteudos/0000001000500/69/a
64dca980c9180086f181bc840213c31.pdf>. Acesso em: 23 jul.
2013)39.
38
Literatura Brasileira de Expressão Alemã. Disponível em:
<http://martiusstaden.org.br/files/conteudos/0000001000500/69/a64dca980c9180086f181bc840213c3
1.pdf>. Acesso em: 23 jul. 2013.
39 Tradução de Celeste Ribeiro de Sousa:
Alemão! Por que trabalhas ainda como servo para senhores estranhos? Por que sofres ainda de
fome num pedaço de terra acanhado? Vai para o Brasil! O país mais rico do mundo com suas
florestas virgens incomensuráveis espera por ti. Lá podes, também tu, tornar-te um senhor, em solo e
terra próprios. As melhores terras do Brasil estão sendo divididas e vendidas em nossos dias. Já está
demarcado o lugar onde deve ser construída a cidade mais moderna, com igrejas, escolas, hospitais,
62
Portanto, a ideia de que a América seria um paraíso foi disseminada na
Europa ao longo do tempo e, segundo Holanda (1977), seduziu os imigrantes
enquanto lugar a ser conquistado através do desenvolvimento da civilização, embora
também o fosse o contrário, ou seja, um mundo perigoso, cheio de monstros e
canibais.
Desde a descoberta da América, paralelamente à encantatória ideia de
paraíso, havia também o temor em relação à existência de monstros, antropófagos e
uma série de situações assustadoras. Conforme Bellei (2000, p. 177), “a
antropofagia é essencialmente aquela prática real ou imaginária que marca a
alteridade do bárbaro primitivo que habita o outro lado da linha da fronteira”.
O conceito de “mundo novo” apareceu pela primeira vez em 1503 como título
do caderno de Amerigo Vespucci, no qual ele relatou suas observações durante uma
expedição portuguesa de 1501/1502 à Costa brasileira (KÖNIG, s/d). Como reação
ao estranhamento provocado pelo continente, os descobridores escreviam ou
representavam os monstros, homens selvagens, amazonas e homens sem cabeça
que teriam sido vistos neste “novo mundo”.
Era este cenário que os europeus queriam ver, e não o que realmente viam.
Um repertório muito interessante de monstros e seres estranhos que, supostamente,
faziam parte do Novo Mundo, está presente no Liber Chronicarum (Anexo XIII), o
livro de crônicas sobre a história universal, publicado em 1493 pelo médico,
humanista Hartmann Schedel (1440-1514). O livro, que foi publicado em latim e em
alemão, é também chamado de Nuremberg Chronik – Crônica de Nüremberg – e Die
Schedelsche Weltchronik – A crônica do mundo de Schedel40:
Em grande estilo eles [europeus] coletavam e ilustravam os novos e
velhos relatos sobre a América e com isso concluíam a primeira parte
da descoberta jornalística do Novo Mundo. As representações
ambivalentes do Novo Mundo, por um lado como câmara de
bancos e lojas. O planejamento já está concluído. Estradas largas e excelentes deverão em breve ser
construídas e também se pode contar para logo com a construção da estrada de ferro. Em quase
todas as colônias há tanta madeira disponível, que ela por si só poderá cobrir, em pouco tempo, o
preço da compra. Trabalhador! Pequeno agricultor! Apressai-vos! Assegurai para vós e para vossos
filhos o futuro! Assegurai para vós o melhor solo do Brasil!
40 Decisivo para a disseminação de tais informações, em parte reais e em parte inventadas, foram
dois fatores, segundo Siebenmann (1992), a gráfica de Theodor de Bry (Amerika, 1590-1630) e a de
Levinus Hulsius (Schiffahrten, 1598-1650).
63
horrores, por outro lado, como um paraíso distante para os europeus,
já foram cedo solidificados (SIEBENMANN, 1992, p. 185)41.
Enquanto habitantes naturais do grande continente descoberto, os índios
foram representados como monstros devoradores de pessoas, como exemplifica a
publicação de 1527, de Lorenz Fries, intitulada Uslegung der Mercarthen (Anexo
XIV). A famosa xilografia mostra os canibais no Novo Mundo com cabeça de
cachorro – cinocéfalos – o que remete à ideia de antropofagia do período medieval.
No centro da foto um destes seres está decepando aparentemente uma perna,
enquanto outras partes de corpo humano estão dependuradas na parte superior,
dando a ideia de um açougue.
O título do romance de Graça Aranha, Canaã, faz referência a esta ideia
imemorial do Éden, de um paraíso bíblico abundante e perdido, mas também
selvagem e perigoso. Entretanto, tal referência leva Canaã ao paradoxo de que, se
no Brasil estava a terra prometida, isto quer dizer que a Alemanha não tinha
condições de oferecer a realização econômica e individual ao povo, o que
prontamente anula a ideia de autossuficiência alemã defendida por Lentz. Aquele
país se valeu da imigração como válvula de escape para contornar a situação
econômica de emergência que impedia a sobrevivência da população, mas a
questão econômica como causa da vinda dos imigrantes para o Brasil fica subliminar
em Canaã, de modo que a narrativa é conduzida por Lentz e Milkau: aquele, de
família importante, filho do general Barão von Lentz, e este, filho de um professor
universitário, portanto, de família instruída, de Heidelberg.
A decisão de quem abandona o seu país é sempre corajosa e exige o esforço
da aceitação de uma nova cultura, de uma nova língua e de novos costumes. O
desafio se torna ainda maior ao refletir-se sobre o desespero de quem deixa o seu
país, não por vontade própria, mas tangido por uma força maior: a necessidade de
sobreviver. Entre a utopia de Lentz sobre a vitória do arianismo e o devaneio de
Milkau sobre a integração harmoniosa de todos os povos, Maria Perutz é a
personagem que chama a atenção para as reais condições de muitos daqueles que
emigram, pois ela difere profundamente dos demais colonos abastados do Porto do
Cachoeiro.
Tradução: “In groβem Stil sammeln und illustrieren sie altere und neuere Berichte über Amerika und
schlieβen damit den ersten Abschnitt der publizistischen Entdeckung der Neuen Welt ab. Die
ambivalenten Vorstellungen der Neuen Welt einerseits als Gruselkabinett, anderseits als fernes
Paradies für Europäer hatten sich somit schon früh verfestigt“.
41
64
Tratada com descaso pelos seus patrícios, Maria Perutz vivia em condições
subumanas, dada sua extrema pobreza. Nascida já no Brasil, ela trabalhava na casa
da família Kraus, não conhecera o pai, que morrera durante a viagem e, após a
morte da mãe, permanecera com a família de Augusto Kraus. Ela teve um
relacionamento com Moritz Kraus, o filho dos seus patrões, engravidando do
mesmo.
Entretanto, a despeito de Maria Perutz ter a mesma origem que seus patrões,
sua condição econômica miserável se sobrepõe à racial. Ou seja, cor e raça não
estabelecem vínculos suficientemente estreitos ao ponto de suplantar a exclusão
econômica, social e de gênero, ao contrário, no contexto do romance, a despeito de
sua origem, Maria é o elemento dissonante que desvela para seu grupo a falácia da
superioridade racial ariana. A gravidez de Maria é um acontecimento decisivo na sua
trajetória, uma vez que um filho arruinaria a cepa dos Kraus, cujo objetivo era casar
Moritz com uma moça socialmente bem situada:
Os velhos não tinham mais ilusão sobre o estado da rapariga, e
vendo-a mover-se pela casa, num passo trôpego, com ar
transfigurado que lhe punha a amargurada maternidade, sentiam um
ódio surdo contra ela, erguida ali como um estorvo ao desafogo da
ambição deles. Viam desfeito o casamento do filho com a herdeira
dos Schenker... (ARANHA, s/d, p. 93).
Contrapondo-se aos discursos sobre superioridade racial, são as condições
econômicas que definem a trajetória da personagem. Ela é a sombra de um passado
que deve ser esquecido e apagado da memória dos imigrantes que ascenderam
economicamente. O fantasma da pobreza ainda assombrava alguns deles, e a
presença de Maria Perutz atualizava as contingências adversas vividas na Alemanha
e superadas na nova terra. A miséria de Maria Perutz afronta este processo de
idealização, por isso, ela, que comunga os valores do seu grupo, também tem poder
de revelar sua condição:
[...] era quase sem pudor que pedia trabalho de casa em casa.
Ninguém a queria; repeliam-na, escorraçavam-na, num instinto de
apertada defesa. Ali, na tranquilidade do povoado, na conchegada e
bonançosa vida aldeã, não era ela o estranho fantasma da miséria?
(ARANHA, s/d, p. 99).
A citação acima demonstra claramente que Maria está inserida em uma lógica
de ascensão econômica baseada na lei do mais forte, que privilegia determinados
65
grupos, explora e exclui outros. A tragicidade da personagem remete ao fracasso da
experiência humana, que não se vincula, apenas, a princípios raciais, mas, também,
às estruturas socioeconômicas vigentes.
Após ser expulsa da casa da família Kraus – visto que sua gravidez
comprometeria o futuro dos patrões – e passar por diversos infortúnios, Maria Perutz
dá à luz em uma mata, seu filho é devorado por porcos selvagens e ela é acusada
de ter matado a criança.
Em torno fungavam os porcos, remexendo as folhas secas do
cajueiro, chegando mesmo alguns mais atrevidos, mais vorazes, a
lamber afoitamente o chão... Maria, horrorizada, queria afugentá-los,
mas as dores a retomavam, imperiosas; nem mesmo tinha forças
para um grito agudo, e só podia gemer estrebuchando numa mistura
de sofrimento e de gozo, que a estimulava estranhamente... E os
porcos insistiam sinistros, ameaçadores... Subitamente, ela caiu
extenuada, largando a árvore... Um vagido de criança misturou-se
aos roncos dos animais... A mulher fez um cansado gesto para
apanhar o filho, mas, exangue, débil, o braço morreu-lhe sobre o
corpo. Uma vertigem turbou-lhe a visão, enfraqueceu-lhe os ouvidos
[...]. E os animais sedentos enchafurdavam-se, guinchando,
atropelando-se no sangue que corria. Um novo gemido saiu do peito
de Maria, despertando-a, em sobressalto. Os porcos afastaram-se
espantados, e ela, meio consciente, contorceu-se, mirou atônita a
criança, que vagia estrangulada. Depois, quando um grande vácuo
se lhe fez de todo nas entranhas, a dor cessou e Maria mergulhou
afundada em outra vertigem. Os porcos, sentindo-a sossegada,
precipitaram-se sobre os resíduos sangrentos, espalhados no chão.
Devoraram tudo, sôfregos, tremendos; sorveram o sangue e na
excitação da voracidade arremessaram-se à criança, que às
primeiras dentadas soltou um grito forte, despertando a mãe...
Quando esta abriu os olhos, deu um salto brusco e pondo-se de pé,
lívida, hirta, alucinada, viu o filho aos trambolhões, partilhado pelos
porcos, que fugiam pelo campo afora (ARANHA, s/d, p. 116).
O estado de degradação da personagem demanda refletir sobre as
consequências do poder, da exploração e da desigualdade, ao desnudar de forma
grotesca uma situação de impotência face às condições econômicas. A cena acima
transcrita é chocante pelo fato de o bebê ser estraçalhado pelos porcos – “símbolo
dos desejos impuros, da transformação do superior em inferior e do abismo amoral
da perversão” (CIRLOT, 1984, p. 472) – e o efeito provocado por uma imagem tão
forte implica um renascer mimético, uma forma especial de reflexão sobre a vida.
Trata-se de uma modalidade de crítica que visa desconstruir os estereótipos,
preconceitos e hierarquias sociais que emanam do discurso que busca legitimar a
superioridade alemã e a superioridade humana de sua racionalidade e auto-ilusão
66
quanto à liberdade em relação aos condicionantes naturais: alimentação, segurança,
saúde, civilidade, etc.
Tal episódio desvela que, ao serem deslocados os pressupostos raciais e
etnocêntricos, é o lado mais profundamente humano dos homens que define sua
existência, sendo, também, indiscutível que as contingências econômicas e sociais
se repetem, a seu modo, no velho e no novo mundo.
A desconstrução da ideia de uma superioridade alemã se desvela, ainda, em
outra cena grotesca, cujo foco é a morte de um velho imigrante alemão que vivia
solitário às margens do Rio Doce. A imagem é a do estado de decomposição de seu
corpo que, conforme é devorado por corvos, transforma-se num espectro cadavérico
e monstruoso. Trata-se do grotesco, o extremo, hoje ainda muito em voga em certa
estética de massa.
Os homens [...] entontecidos pelo cheiro sufocante, estacaram
indecisos e apavorados diante de um quadro medonho. Dentro, os
urubus comiam um cadáver humano que jazia por terra, o corpo do
solitário e abandonado imigrante. Os olhos tinham sido devorados e
as cavidades imensas e rubras escancaravam-lhe a testa.
Alucinados em seu gozo satânico, os corvos, sem dar fé da gente,
continuavam a picar, a comer, avidamente, embebidos (ARANHA,
s/d, p. 111).
O corpo, delido pela putrefação e pela voracidade com que os urubus se
debruçam sobre ele, transforma-se em uma espécie de caricatura, cujos traços
horripilantes se convertem em destronamento do discurso oficial. Ou seja, a
condição de miséria, abandono e solidão de Maria Perutz e deste velho imigrante
subvertem ironicamente o discurso apregoado ao longo do romance por Lentz e por
Milkau.
Subliminarmente, a cena descrita discute a questão paradoxal de que o
paraíso edênico idealizado pelo imigrante abaixo da linha do Equador, também pode
ser selvagem. É no avesso desta natureza idílica, pois, que uma criança é devorada
após nascer e os urubus comem o corpo do imigrante em decomposição.
A ideia deste cenário selvagem que a todos devora aparece exemplarmente
em Fliegende[n] Blätter, um folhetim semanal publicado pela primeira vez em 1844,
em Munique. A publicação, de cunho extremamente satírico, criticava a burguesia
alemã da época. Trata-se de um poema no qual alguns países são apresentados
como destino para a imigração alemã, estando entre eles, o Brasil (Anexo XV).
67
Tal imagem do Brasil remete à ideia de um lugar primitivo, selvagem, onde
impera a lei da natureza: o crocodilo devora a mulher inteira e os insetos são
gigantescos. Contudo, os versos abaixo da imagem reiteram que é para o Brasil que
se queria emigrar:
Para o Brasil, Para o Brasil/ Abarcam-me agora meus sentimentos/
Onde o besouro facilmente salta/ Onde o jacaré fica em pé/ onde
ousa o mandril/ entre as raras plantas escorrega/ Para lá, velho,
deixe-me ir!42 (FLIEGENDEN[N] BLÄTTER, 1844, p. 111).
Os dois episódios supracitados de Canaã, além da alusão óbvia à fragilidade
da condição humana em relação à miséria e à morte, também desvelam o lado
infernal do edênico paraíso tropical, onde a população – imigrantes ou não – está
sujeita à própria sorte, dados os desmandos e as contingências da incipiente e
inoperante República Velha.
De modo semelhante a Euclides da Cunha, em Os sertões (1979), Graça
Aranha demonstra preocupação com o papel do brasileiro na construção do país,
mas ele não hesitou em dar a Canaã um cunho contraditório, assim como Milkau
que, apesar de defender o caráter positivo da miscigenação dos povos, não abre
mão de classificá-los como “atrasados” e “adiantados”.
Todavia, invertendo este quadro, a trajetória de Milkau e Lenz aponta para a
revisão e reelaboração dos valores a despeito de suas radicais posturas iniciais,
visto que: o racionalismo radical de Lentz é atenuado pelo sentimento de compaixão
pela desgraçada vida de Maria Perutz e Milkau, o idealista humanista, não alcança a
terra prometida.
A despeito do caráter controverso de Canaã, pode-se concluir que: ao criticar
a tendência germânica ao isolamento e, sobretudo, a ideologia racial de
superioridade dos alemães, fica evidente, também, a carga de preconceitos inerente
a tais estereótipos, que ocorreram reciprocamente entre alemães e brasileiros, na
medida em que defendem o seu próprio grupo, ou seja, “[...] se existem preconceitos
e estereótipos dos brasileiros sobre os imigrantes, a recíproca também é verdadeira,
na medida em que as ideologias étnicas são carregadas de etnocentrismo, isto é,
supõem a superioridade do seu próprio grupo étnico” (SEYFERTH, 1990, p. 81 Tradução: “Nach Brasilien, nach Brasilien/Reissen mich jetzt die Gefühligen/Wo der Käfer leichtend
hüpft/Wo sich bäumt der Krokodile/Wo verwegen der Madrile/Durch die seltnen Pflanzen schlüpfDahin/Alter, lass mich ziehen“.
42
68
grifo nosso); e, ao tentar esboçar um panorama sobre o Brasil, o autor reflete a
imaturidade daquele contexto recém-republicano, não deixando claro se as
implicações do movimento migratório e do processo de branqueamento seriam, com
efeito, positivas ou prejudiciais ao país.
Ao problematizar tais inquietações, Graça Aranha reapresenta para a elite
brasileira – e para outros grupos do exterior, haja vista que esta obra de estreia de
Graça Aranha, um ano depois de publicada no Brasil, foi traduzida na França – as
diversas correntes europeias sobre as doutrinas raciais que legitimaram a
“inferioridade” e a “incapacidade” de o brasileiro “civilizar-se”.
Também o diálogo entre o eu e o outro, o alemão e o brasileiro, e a aceitação
de que a alteridade do branco constitui o negro, e vice-versa, são complexas, porque
estes estão inseridos em um contexto de mestiçagem ainda incipiente, marcado por
relações de conflito, exclusão e preconceito. Não há a negociação das diferenças,
haja vista que os alemães foram subordinados ao caldeamento racial, apenas, com
a implantação do projeto nacionalista de Getúlio Vargas, que propunha a formação
da identidade nacional unitária, unidade esta até então rechaçada pelos imigrantes
alemães e seus descendentes, bem como pela maioria das comunidades de
imigração no contexto do início do século XX.
É importante destacar que a visão preconceituosa dos alemães e seus
descendentes, analisada em Canaã, não significa que, mesmo nas comunidades
germânicas mais fechadas no Brasil, não houvesse pessoas mais abertas e porosas
em relação à miscigenação racial e cultural. Entretanto, esta porosidade não está
presente no contexto ficcionalizado por Graça Aranha no fictício – mas não tanto –
Porto do Cachoeiro.
Entretanto, se a fusão das raças não está representada naquela comunidade,
ela já se esboçava timidamente na fusão das línguas, e na faculdade natural do
brasileiro em dialogar com diferentes culturas: “admirara-se Lentz do modo corrente
por que o mulato falava alemão, apesar de rechear a frase de vocábulos brasileiros.”
(ARANHA, s/d, p. 37). Isto é o indício de que as mudanças se operam com o tempo,
entre idas e vindas, falhas e acertos, que tão bem caracterizam a condição humana.
Na sequência, o capítulo três se aterá à análise do romance Um rio imita o
Reno, de Vianna Moog.
69
3 SOLIDÃO E HOSTILIDADE EM UM RIO IMITA O RENO
Era uma pacata cidadezinha de colonos alemães, onde crianças
louras se misturavam despreocupadamente com seus vizinhos
caboclos, enquanto os adultos se debatiam em surdos conflitos por
questões de raça. Um romance da imigração germânica,
acompanhado com agudo olho crítico a integração de duas culturas
contrastantes.
(VIANNA MOOG, Um rio imita o Reno).
O espaço ficcional de Um rio imita o Reno não se limita a uma categoria
física, social ou geográfica na qual as personagens atuam. Há um conjunto de
elementos que compõe a realidade visual do romance e que funciona como
estruturador de seu meio físico ficcional, a imaginária cidade de Blumental, evidente
alusão a Blumenau.
A apreensão deste espaço é perpassada pelas sensações do protagonista da
obra, o engenheiro sanitário amazonense Geraldo Torres. Dada sua condição de
caboclo da Amazônia, é preponderantemente através do seu olhar que é descrita a
configuração espacial da cidade, na qual ele sente-se, de fato, estrangeiro e é este
olhar de estranhamento que desvela a cidade para o leitor. Neste sentido,
entenderemos por espaço em literatura não a dimensão “concreta”
do texto, nem a representação imitativa e pretensamente neutra do
espaço físico tal como percebido no mundo real, mas sim o discurso
sobre a percepção do entorno na situação específica de sujeitos
ficcionais, e sobre o sentido atribuído e essa percepção... (SOETHE,
1999, p. 20).
Espaço e percepção estão intimamente ligados, tendo-se em vista que o
espaço se constitui simbolicamente através da percepção que se tem dele
(MERLEAU PONTY, 1996). Ou seja, para refletir sobre o mundo à sua volta e sobre
si mesmo, o indivíduo precisa estar inserido em um espaço determinado, de modo
que o corpo e o espaço estabeleçam um diálogo: da mesma forma que o espaço
pode provocar sensações no indivíduo, este pode conferir significados ao espaço no
qual se encontra, de acordo com as suas subjetividades.
Vianna Moog, ao conduzir o leitor a partir da visão de Geraldo em relação à
cidade de Blumental, faz da personagem a porta-voz e os “olhos” do leitor. Ao
caminhar por Blumental, Geraldo se vale de um conjunto de referências discursivas
70
que traduzem suas impressões/percepções sobre a cidade e esta relação entre a
personagem e o espaço faz com que aquele atribua significado a este. Em seu
primeiro dia na cidade, a personagem passeia pelas ruas, que são captadas como
se o fossem pelo olhar de um estrangeiro e não de um brasileiro que conhece uma
cidade da sua terra:
sua atenção se concentrava no estilo das casas. Identificava-as de
acordo com os conhecimentos que guardara de arquitetura [...]. Eram
quase todas de tipo alemão; umas quadradas, lisas, outras com o
telhado em bico e a janelinha encaixada abaixo do vértice; outras
ainda com sacadas de pedra mal entreabertas para a rua. Havia
também algumas construções neutras, sem estilo, afogadas entre as
demais. Nada que pudesse lembrar, senão fugidiamente, os
sobrados do norte ou a arquitetura colonial portuguesa. O conjunto
era tipicamente germânico. Se alguma influência tinha sofrido, que
lhe suavizasse os contornos, essa influência procedia dos estilos
holandês e suíço. Depois a atenção do engenheiro voltou-se para as
placas e letreiros, onde procurava decifrar os dizeres: Apotheke,
Schuhmacher, Bäckerei. No outro lado da rua, tomando todo o
quarteirão, via-se um letreiro muitas vezes repetido: KREUTZER
IRMÃOS. Embaixo sucediam-se grandes armazéns de ferragens, de
fazendas e armarinhos, de jóias e bijuterias, de calçados, amplos
depósitos de fumo, erva-mate, de secos e molhados. Na frente,
cavalos atados à sombra, soltavam longos relinchos. Encostados no
fio da calçada, autos, carroças, aranhas, caminhões... (MOOG, 1973,
p. 7).
Tal descrição de Blumental é intermediada pela voz do narrador, pois não é o
caboclo amazonense quem fala: há outro que enuncia em seu lugar. O discurso, que
não é neutro nem impessoal, sai dos lábios de Geraldo, mas está a “serviço das
intenções de outrem” (BAKHTIN, 1988, p. 100), ou seja, do autor-criador.
De volta ao hotel no qual se estabelecera, Geraldo abre as janelas de seu
quarto e novamente é o narrador quem descreve a vista que a personagem tem da
cidade, bem como sua percepção da mesma:
abriu as venezianas e ficou a olhar para fora. Na frente alargava-se a
praça, com o edifício vermelho da prefeitura, ao centro. Do lado
direito ficava o quiosque, quase oculto nas sombras do denso
arvoredo; ao redor do chafariz, onde a samaritana deitava um filete
d’água no tanque circular, arregimentavam-se geometricamente os
canteiros de rosas vermelhas e brancas, de cravos, de azáleas, de
girassóis e violetas. Os jasmins impregnavam o ar de um perfume
penetrante. Geraldo agora devassava o horizonte. Mais para leste
corria tranquilamente o rio, sereno, sem pressa, entre salgueiros
melancólicos debruçados sobre a corrente. Olhou a serra que servia
de pano de fundo à perspectiva, a torre pontiaguda da igreja
protestante, a ponte que ligava os dois braços de terra, o pesado e
71
soturno monumento do cais, e uma estranha sensação inundou-lhe o
coração. Tinha a impressão de que não fizera uma viagem de sete
horas de trem, de que em sua vida se dera uma brusca parada, cujo
remate era aquele súbito despertar. Parecia-lhe que tinha cruzado os
oceanos e estava longe da pátria. Em vão procurava dentro de si
reminiscências onde ajustar aquela paisagem. Percorreu
mentalmente as cidades que conhecia. Todas elas guardavam entre
si um ar de família. Mal conseguia situar no espaço certos recantos
guardados na memória, recantos de sobrados e mucambos, de
solares batidos de sol e vielas estreitas povoadas de sombras, tanto
essas imagens eram comuns às cidades que conhecia. Mas o que
tinha diante dos olhos era diferente. Onde estaria? Percorreu
novamente os pontos que sua retina acabara de visualizar. Na praça,
ranchos loiros de moças passavam aos pares; no quiosque, ao redor
das mesas, sob os plátanos, rapazes cobertos de bonés
universitários, bebiam descansadamente o seu chope. Pareciam
sentir-se ali tão à vontade, como se estivessem num bar de
Heidelberg ou de Munich. Geraldo então atentou ainda mais para o
quadro, retesando a atenção. Blumental dava-lhe a impressão de
uma cidade do Reno extraviada em terra americana. Desde o gótico
da igreja, até a dura austeridade das fachadas, tudo nela, à exceção
do jardim, era grave, rígido, tedesco. Os sinos plangeram dentro da
noite que se adentrava. Onomatopeia da melancolia. Como se
estivesse ouvindo novamente o prelúdio do piano, um tumulto, uma
angústia interior agarrava-lhe as entranhas. Geraldo teve vontade de
chorar. Sentia saudades do Brasil (MOOG, 1973, p. 13).
O leitor é conduzido pelas ruas e estabelecimentos daquela pequena
Alemanha, compartilhando das percepções que a personagem tem sobre seu
entorno: são imagens, cores, locais, pessoas, sons, memórias evocadas e,
sobretudo, um profundo sentimento de estranhamento.
No entanto, como Blumental é, apenas, um simulacro da arquitetura, da
cultura, da língua e dos costumes alemães, fica evidente a tentativa baldada dos
imigrantes e de seus descendentes de reproduzirem na nova terra uma cópia da
pátria original. Deslocada nos trópicos, esta será, sempre, apenas um arremedo
nostálgico perpetrado pelos primeiros imigrantes que aportaram no Brasil, como uma
cópia fora do lugar. Em vista disso, o estabelecimento de contatos culturais, no
cenário intercultural de Blumental, é sempre perpassado pelo discurso etnocêntrico,
no qual o outro é o não branco, o não europeu, o não alemão, o que evidentemente
reforça os processos de discriminação (BHABHA, 2005).
Nesta fictícia – mas verossímil – cidade, o sentimento de pertencimento ao
Estado alemão toma tal proporção, que Geraldo, apesar de estar no Brasil, sente
saudades da pátria e não apenas do Amazonas. Entretanto, quando se desloca o
foco para a perspectiva dos imigrantes e seus descendentes, fica também evidente
72
que Blumental é uma mera tentativa de eles minorarem seu estranhamento em
relação ao novo mundo à sua volta e, para se sentirem minimamente situados, eles
precisam reproduzir, mesmo que de forma falseada, seu mundo perdido. Neste
sentido, Blumental, além de ser uma cidade, é simbolicamente um lar, um refúgio
protetor em relação ao mundo “selvagem” à volta. Conforme postula Bachelard
(1978):
[...] a casa não vive somente o dia-a-dia, no fio de uma história, na
narrativa de nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas de
nossa vida se interpenetram e guardam os tesouros das antigas.
Quando, na nova casa, voltam as lembranças das antigas moradias,
viajamos até o país da Infância Imóvel, imóvel como o Imemorial.
Vivemos fixações, fixações de felicidade. Reconfortamo-nos
revivendo lembranças de proteção. Alguma coisa fechada deve
guardar as lembranças deixando-lhes seus valores de imagens
(BACHELARD, 1978, p. 201).
Partindo-se desta premissa de Bachelard (1978) em relação aos recantos
íntimos da casa – que ele designa de topo análise – Blumental pode ser investida do
valor simbólico de uma grande casa para os alemães e seus descendentes. Ela
funciona por meio de um processo de duplicação e confluência entre o espaço
interior e exterior, pois as subjetividades e reminiscências simbólicas das
personagens alemãs – interior – são atribuídas ao espaço de Blumental – exterior.
No plano afetivo, é em face do desequilíbrio identitário, da desagregação da
Heimat e da força centrífuga que dissolve os valores do grupo, que a Alemanha é
reavivada no espaço de Blumental. Se tal tentativa, por um lado, ameniza a dolorosa
passagem de um mundo familiar para outro desconhecido e incerto, por outro, ela
revela o estado de alma das personagens, que não conseguem se ajustar às
mudanças provocadas pela imigração, tampouco se adaptar à nova realidade. Elas
se mantêm emparedadas a valores e preconceitos de raça, numa tentativa baldada
de preservar a “pureza” dos “arianos”: postura recorrente nas comunidades de
imigração recente àquele tempo e contra a qual Vianna Moog desfere uma crítica
ferrenha.
Dessa maneira, há que se destacar o vínculo estreito que se estabelece entre
o homem e o espaço que ele habita, pois são tais laços que perpetuam a fixação
dos habitantes alemães e teuto-brasileiros de Blumental pelo país de origem. Esta
ligação emocional se intensifica com a ameaça da perda ou do distanciamento
destes da pátria que lhes conferia identidade. Isto acontece porque, partindo da
73
análise de Mircea Eliade, em O sagrado e o Profano (1992), por mais distante que o
homem moderno possa estar do homem religioso, naquele ainda subsistem traços
imemoriais deste e são estes traços que ainda tornam a relação entre o sujeito e o
espaço mediada por valores simbólicos enquanto reminiscência da imago mundi do
homem primordial.
A ideia da imago mundi, embora esmaecida e há muito deslocada da sua
força simbólica original, aplica-se modelarmente à Blumental, pois, sendo uma
projeção da Alemanha, a cidade se reconfigura enquanto território habitado, que fixa
limites, sacraliza-se e se torna um cosmos para os alemães. Tal espaço passa a se
contrapor ao “outro mundo”, o desconhecido, habitado pelos brasileiros:
o que caracteriza as sociedades tradicionais é a oposição que elas
subentendem entre o seu território habitado e o espaço
desconhecido e indeterminado que o cerca: o primeiro é o “mundo”,
mais precisamente, “o nosso mundo”, o Cosmos; o restante já não é
um Cosmos, mas uma espécie de “outro mundo”, um espaço
estrangeiro, caótico, povoado de espectros, demônios, “estranhos”
[...]. À primeira vista, essa rotura no espaço parece consequência da
oposição entre um território habitado e organizado, portanto
“cosmizado”, e o espaço desconhecido que se estende para além de
suas fronteiras: tem se de um lado um “Cosmos” e de outro um
“Caos” (ELIADE, 1992, p. 21).
Ao se conceber Blumental enquanto uma reminiscência da imago mundi para
as pessoas que nela se inserem, deve-se considerar que aquele espaço foi
consagrado a partir do momento em que foi ocupado pelos imigrantes alemães. Nas
palavras de Eliade (1992, p. 22), “ocupando-o [o espaço] e, sobretudo, instalandose, o homem transforma-o simbolicamente em Cosmos mediante uma repetição
ritual da cosmogonia”.
A aproximação com a imago mundi é, portanto, possível, sob a perspectiva de
que, para os imigrantes transplantados para uma terra distante e selvagem, criar
“seu” espaço remete ao que foi a transformação do caos em cosmos, embora, na
acepção mais profunda, este conceito se aplique literalmente ao homem religioso, do
qual o homem moderno é apenas herdeiro.
[...] o homem profano, queira ou não, conserva ainda os vestígios do
comportamento do homem religioso, mas esvaziado dos significados
religiosos. Faça o que quiser, é um herdeiro. Não pode abolir
definitivamente o seu passado, porque ele próprio é produto desse
passado (ELIADE, 1992, p. 166).
74
Tal relação entre o “nosso mundo” e o “mundo dos outros”, estabelecida pelos
moradores de Blumental, fica evidente no momento em que Karl Wolff revela seu
desinteresse pelo Brasil como um todo, seja pela sua história, seja pelo seu povo:
ambos classificados por ele como caóticos, contrapondo-se à “cósmica” Blumental:
Karl Wolff procurava interessar-se, mas não conseguia. Um Brasil do
Amazonas ao Chuí, limitado ao norte com o Mampituba ou com o
Oiapoque era-lhe indiferente. Ele mesmo não sabia, nem podia
compreender como o Brasil chegava a constituir um Estado
independente. Por mais que revolvesse a memória, esta só lhe
restituía fatos vagos, imprecisos, esfuminhados, coisas da escola,
dispersas, desconexas. Primeiro uma data, 1500, depois um nome,
Pedro Álvares Cabral, o seu Cabral das últimas canções
carnavalescas, algumas guerras sem importância contra os
franceses e os holandeses; o 7 de Setembro, onde aparecia um
príncipe de espada desembainhada, cercado de cavaleiros, à
margem de um riacho [...]; a guerra do Paraguai, que o Brasil não
teria vencido se não fosse a ajuda dos primeiros colonos alemães; o
13 de Maio, que proclamou a liberdade da negrada, uma gente que
podia afinal de contas continuar escrava e não precisava andar por aí
a faltar com o respeito aos arianos. Depois, uma série de revoluções,
de correrias, de requisições que só serviam para atrapalhar o
comércio e a indústria, fruto exclusivo do esforço germânico (MOOG,
1973, p. 60).
Blumental é, portanto, uma cópia mal enjambrada da alhures Alemanha – o
centro do mundo – que se oporia ao caos – Brasil. Daí a dificuldade de seus
habitantes em aceitarem a “invasão” de qualquer estranho, como Geraldo, pois todo
estranho ameaça este simulacro frágil de cosmos, cujo centro situa-se muito distante
no tempo e no espaço.
Esta cidade, concebida enquanto uma grande casa, simboliza o que Fortes
(2010, p. 53) em outro contexto chama de “[...] um abrigo contra a vastidão do
mundo, um limite protetor em relação à amplitude cósmica e um elemento norteador
concreto, para onde convergem as referências do indivíduo”. É marcante no
romance a necessidade humana de demarcar seu espaço de proteção e de refúgio
em face de um mundo às avessas, onde o capitalismo é o causador de constantes
mudanças que tão facilmente dispersam os valores e as referências das pessoas.
Seguindo as considerações abordadas até aqui, o que se intenciona propor é
que Blumental se aplica com justeza à representação simbólica de uma grande
casa, de um canto no mundo, pois, as pessoas mudam de lugar, mas não sua
essência (BACHELARD, 1978).
75
No imaginário dos alemães e seus descendentes daquela fictícia cidade, não
houve o distanciamento ou a perda da lealdade ao país de origem, pois, apesar de
estarem vivendo no Brasil e muitos já terem aqui nascido, eles se identificam, ainda,
como alemães. Manter a arquitetura, a culinária, a língua e demais tradições alemãs
é, então, a tentativa humanamente aceitável de os habitantes amenizarem o
estranhamento e o esfacelamento de suas identidades. As referências espaciais e
as imagens de uma realidade passada ou idealizada, ao serem rememoradas e
transformadas em realidade presente, fazem com que, apesar da distância, a cópia
alemã permaneça ao alcance daqueles que a deixaram ou daqueles que insistem
em senti-la no “sangue”.
Por outro lado, o que se sobressai é a forma fechada e narcisista pela qual a
comunidade estabelece ligação de pertencimento mútuo entre si e o espaço que ele
habita, pois, ao tentarem reestabelecer seu lugar no mundo, os habitantes de
Blumental se isolam, fecham-se e se entocam, o que evoca a ideia primitiva de
refúgio e de habitação. Citado por Bachelard (1978, p. 104), o pintor Vlaminck
afirmou que: “‘o bem-estar que sinto diante do fogo, quando o mal tempo se
desencadeia, é totalmente animal. O rato em seu buraco, o coelho na toca, a vaca
no estábulo devem estar felizes como eu. Assim, o bem-estar devolve-nos à
primitividade do refúgio”. É a este sentimento primordial de construção de um lugar
no mundo que subjaz ao empenho das personagens em demarcarem uma nova
Alemanha nos trópicos.
Em vista deste laço estreito entre o indivíduo e o espaço que ele ocupa, a
participação de Geraldo nos jogos de tênis de Blumental, por exemplo, representa
uma afronta aos seus habitantes, que intervêm prontamente ao considerem-no como
“invasor” de seu espaço e como tal, uma ameaça à homogeneidade e às tradições
do grupo, como atesta a fala de Frau Marta: “–– E vocês vão admiti-lo [Geraldo]
como sócio? Até no tênis os pretos já estão entrando?! Ach! Blumental está ficando
inabitável” (MOOG, 1973, p. 88).
Ao se fazer uma analogia entre a casa e a cidade, esta última torna-se,
também, um estado de alma daqueles que estão em seu interior, segundo
compreendeu Bachelard (1978) a respeito da casa, moldada à proporção do
tamanho de quem nela se abriga. Se a casa é fechada, pode-se depreender que
existe algo a ser protegido, ou que há alguém que se esconde dentro dela. Mas, e o
que os teutos preservam em Blumental, para mantê-la fechada, resguardada da
76
entrada do outro, neste caso, do brasileiro? Eles preservam suas crenças,
lembranças, medos, valores, enfim, seu patrimônio cultural, ou o que ainda sobrou
dele após a imigração.
Assim como a casa tem cômodos, sótão e porão, móveis, objetos,
decorações, portas, também a cidade tem ruas, construções, ornamentos e cenários
que evocam recordações. Os muros de uma cidade podem ser simbolicamente
comparados às portas das casas, sempre fechadas a estranhos. Isso significa que,
se a casa se fecha para proteger a família e sua intimidade, a cidade de Blumental o
faz para se proteger do forasteiro, do intruso e do estrangeiro, pois seriam
estrangeiros todos aqueles que não compartilham da mesma língua, crenças e
experiências que os alemães.
Desta forma, paradoxalmente, a minoria em Blumental é constituída pelos
brasileiros, cuja diferença é reconhecida tão somente em comparação com a cultura
europeia. Edward Said, ao propor uma semiótica do poder orientalista, tinha em
vista, afirma Bhabha (2005), intervir neste regime de verdade, “examinando os
diversos discursos europeus que constituem ‘o Oriente’ como uma zona de mundo
unificada em termos raciais, geográficos, políticos e culturais” (BHABHA, 2005, p.
110).
Filosoficamente, portanto, o tipo de linguagem, pensamento e visão,
que eu venho chamando de orientalismos de modo muito geral, é
uma forma de realismo radical; qualquer um que empregue o
orientalismo, que é o hábito de lidar com questões, objetos,
qualidades e regiões consideradas orientais, vai designar, nomear,
apontar, fixar, aquilo que está falando ou pensando através de uma
palavra ou expressão, que então é vista como algo que conquistou
ou simplesmente é a realidade...o tempo verbal que empregam é o
eterno atemporal (SAID apud BHABHA, 2005, p. 110)43.
Ainda sobre a relação analógica entre a casa e a cidade, a tentativa de
isolamento que se percebe em Blumental é baldada, pois, ao se analisar
simbolicamente a porta da casa, percebe-se que ela serve de entrada e de saída,
propicia a passagem de um local ao outro e, assim, sinaliza para a condição
43
O pertencimento dos alemães à terra de origem recai no mesmo processo descrito por Edward
Said, tendo-se em vista que o Brasil, para os imigrantes alemães, se torna uma zona do mundo
homogênea, onde todos são negros e sem cultura. A explicação que Bhabha (2005) oferece a este
processo de fetichismo como recusa da diferença, é a cena repetitiva e similar em torno da castração,
em termos freudianos: “Todos os homens têm pênis; em nossos termos: ‘todos os homens têm a
mesma pele/raça/cultura’ [...] ainda, para Freud: ‘alguns não tem pênis’; para nós: ‘alguns não tem a
mesma pele/raça/cultura’” (BHABHA, 2005, p. 116).
77
“entreaberta” do homem. As portas de Blumental se fecham para Geraldo, de onde
ele é expulso – “Foi à sua volta da hidráulica, à tarde, que lhe entregaram o
telegrama da Companhia. Era imperativo: ‘Suspenda obras, dispense pessoal,
embarque urgente’” (MOOG, 1973, p. 158). Mas, a despeito de se querer impedir a
miscigenação e o estabelecimento de uma relação harmônica entre as novas
gerações de descendentes de alemães e os brasileiros, tais portas são forçadas a se
abrirem, como exemplifica o amor correspondido entre Geraldo e Lore Wolff.
Moog não ignora que, a despeito da resistência em relação à miscigenação
nas comunidades alemãs, esta já estava em curso entre as pessoas menos
abonadas:
havia ali [em Blumental] casais curiosos: teutos e alemães casados
com cabrochas; alemãs repolhudas casadas com morenos e
mestiços. A garotada que brincava junto às obras afinava pelo
mesmo diapasão: meninos loiros, morenos, tipos claros de cabelo
vermelho, faces cheias de sardas... (MOOG, 1973, p. 20).
A interação entre brasileiros e alemães e/ou descendentes também aparece
de forma encantadora através de Paulchen, filho de Karl Wolff e sobrinho de Lore.
Esta representação remete à possibilidade de se viver interculturalmente, tendo em
vista que não somente ao colonizado, mas também ao colonizador é negado o
acesso ao reconhecimento da diferença, que “liberaria o significante pele/cultura das
fixações da tipologia racial, da analítica do sangue, das ideologias de dominação
racial e cultural ou da degeneração” (BHABHA, 2005, p. 117).
A cena da interação entre Paulinho e os mulatos do Cardoso é extremamente
significativa no romance Um rio imita o Reno. Em outro contexto, Bhabha (2005)
explica que a criança já se defronta com os estereótipos raciais e culturais nas
histórias infantis, nas quais os heróis brancos e os demônios negros funcionam,
como pontos de identificação ideológica e psíquica.
[...] naquele instante Ema entrou na sala alvoroçada e investiu para
Frau Marta:
– Ach! Mein Gott. O Paulinho fugiu de novo, está lá na rua todo
molhado, brincando com os moleques. Com os moleques... Que é
que eu vou fazer? Frau Marta parecia imersa num sono letárgico.
Lore olhou para a rua. No meio das cabeças negras e morenas havia
agora uma loira. Reconheceu o sobrinho. Paulinho pulava e ria no
meio dos moleques, dos mulatinhos do Cardoso e dos pequenos da
vizinhança... (MOOG, 1973, p. 223).
78
A ameaça que vem de fora é, inevitavelmente, o processo de hibridização das
culturas que estão em contato, presente desde os primórdios na formação dos povos
que, até chegar à configuração atual, continuamente se dizimaram, desmembraram
e aglutinaram. Esta seria a causa do estado letárgico de Frau Marta que, frente à
descoberta de seu “sangue judeu”, perdera o alicerce que sustenta as fronteiras
entre “cabeças” negras, morenas e loiras.
Nesse sentido, o medo dos habitantes de Blumental não vem, apenas, de
fora, com a ameaça de um caboclo como Geraldo arruinar o sangue dos Wolff, por
exemplo, mas está, também, dentro deles, em sua formação cultural e identitária.
Não obstante, se o perigo não está do lado de fora, como combatê-lo? Um rio imita o
Reno, para além do isolamento e da atitude racista dos alemães de Blumental,
estende-se às demais culturas e aos tempos atuais que, apesar do controle do
“politicamente correto”, mantêm internalizadas rizomáticas formas de preconceito e
exclusão.
3.1 IMAGENS E RECURSOS VERBAIS NA CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO DE
BLUMENTAL
O cenário e as impressões descritas por Geraldo a respeito de Blumental –
como a arquitetura germânica, a predominância de loiros, o estilo gótico da igreja e o
chope apreciado pela comunidade – não são meros efeitos decorativos ou exóticos,
mas estratégias fundamentais à composição do romance em análise.
Antonio Dimas, em Espaço e romance (1987), chama a atenção para a
questão da utilidade dos recursos empregados pelo narrador com vistas a situar a
ação do romance e para a necessidade de se questionar “até que ponto os signos
verbais utilizados limitam-se apenas a caracterizar ou a ornamentar uma dada
situação ou em que medida eles a ultrapassam, atingindo uma dimensão simbólica
e, portanto, útil àquele contexto narrativo” (DIMAS, 1987, p. 33).
Ora, o leitor, ao se deparar com os letreiros, pratos típicos, provérbios,
expressões, saudações e demais falas corriqueiras em língua alemã, percebe que o
autor faz questão de introduzir estes recursos ao longo do romance, como
elementos relevantes à representação de uma cidade que, conforme o título
prenuncia, seria uma imitação da Alemanha. A língua, associada ao espaço de
79
Blumental, corrobora para o estranhamento de Geraldo, uma vez que também os
alemães de Blumental são representados a partir da ótica central de exclusão e
preconceito em relação aos brasileiros, conforme evidencia o discurso do secretário
ao caboclo Geraldo: “[...] os Kreutzer eram muito germanófilos, só davam emprego a
alemão, só protegiam os teutos. [...] – Ah, filho, aqui é bem assim. Quem não souber
falar alemão come do duro” (MOOG, 1973, p. 8).
O engenheiro é recebido pelo funcionário do hotel da cidade em língua alemã,
“Einen moment, bitte” (MOOG, 1973, p.1), depara-se com um provérbio emoldurado
na parede, que diz: “Grüss Gott!/Tritt ein,/Bring Glück herein” (MOOG, 1973, p. 17) e
experimenta um dos pratos típicos da casa: “Klösse” (MOOG, 1973, p. 17). Afora os
letreiros da cidade, que também estão em língua alemã – “Apotheke, Schuhmacher,
Bäckerei” (MOOG, 1973, p. 7) – Geraldo assiste ao desfile de alunos que, sob o
comando de um orientador, gritavamm: “Eins, zwei, eins, zwei”... Heil Hitler!”
(MOOG, 1973, p. 22). O protagonista, ao participar dos eventos da cidade, como a
festa do Kerb, toma conhecimento de outro provérbio: “Sorg aber sorge nicht zu viel,
es geht doch wie’s Gott haben will” (MOOG, 1973, p. 131) e de trechos de músicas
cantadas pelos alemães: “Trink, trink, Brüderlein trink. Lass doch die Sorgen zu
Haus” e “Dann ist das Leben ein Scherz” (MOOG, 1973, p. 124). Com vistas a
exemplificar e facilitar a compreensão do leitor, elaborou-se uma tabela com as
principais expressões e vocabulário em língua alemã presentes em Um rio imita o
Reno, e a respectiva tradução (Anexo XVI).
Afora isso, também o rio que corta a cidade imita o Reno, como anunciado no
título do romance. “No fundo, para o sul, a planície a perder de vista; para leste, a
serra densa e alcantilada. Geraldo procurava definir a paisagem: era bem como as
paisagens do Reno dos livros de estampa” (MOOG, 1973, p. 90). Além das
construções humanas, tão marcantes no romance, o rio44 é também um elemento
44
Lucien Febvre, em O Reno: história, mitos e realidades (2000) resgata a historiografia do Reno:
“Renos, o primeiro nome do Reno, encontra um sentido nas línguas célticas: água corrente ou
mesmo [...] torrente ou mar” (FEBVRE, 2000, p. 73). O Reno teve, e ainda tem, importante papel
econômico, histórico, político e geográfico no contexto europeu e, por isso, é compreensível que a
região tenha sido marcada para transações comerciais, demarcação natural de fronteiras, de políticas
internacionais, guerras, etc. O rio, também, serviu de símbolo a lendas, como é o caso de Loreley.
Segundo o mito, Loreley vivia num penhasco localizado no Vale do Reno e, ao pentear seus longos
cabelos loiros, ela atraía e hipnotizava os tripulantes das embarcações com sua voz. Esta lenda foi
relatada em 1801, por Clemens Brentano, que escreveu a história da bela jovem durante uma viagem
pelo Reno. Também Heinrich Heine contribuiu para popularizá-la.
80
com o qual os alemães se identificam, já que ele atualiza o poder simbólico do rio
Reno europeu.
Em Blumental o rio é, simultaneamente, um marco de divisão e união, pois à
medida que ele une os alemães e teuto brasileiros, também os separa dos “outros”,
os brasileiros, funcionando como uma fronteira que demarca o limite entre nós – os
alemães – e os outros – os brasileiros. Contudo, o rio, ao imitar o Reno, longe de
fazer reviver a sensação de estar e se sentir na Alemanha, transforma-se em um
elemento de evocação que, mais que suprir a nostalgia pela pátria perdida, acentua
a vacuidade e a perda do Reno original.
Todos estes aspectos dizem respeito ao cotidiano da cidade imaginária em
análise e são homólogos a seus habitantes, que se empenham em preservar a
língua e a cultura, a comida, as danças, crenças, religião, enfim, tudo que lhes foi
legado pelo país de origem.
Vianna Moog faz com que o leitor penetre nesta cidade através da visão e da
percepção de Geraldo, ou seja, pela perspectiva do distanciamento de quem vem e
olha de fora. Ao valer-se do discurso de Geraldo, o narrador – para o qual confluem
as experiências do autor – consegue transitar entre o olhar de fora e o de dentro da
comunidade de Blumental, pois, a despeito de o autor ter acompanhado de perto a
vida dos alemães no Rio Grande do Sul, ele não se absteve de suas próprias
conclusões enquanto brasileiro.
Com efeito, Vianna Moog traz duas etnias em sua origem, a lusa e a alemã e,
segundo afirma Dreher (2006, p. 4 apud AQUINO, 2007, p. 129), o romancista teria
dito em 1976 que queria ser mais “Vianna” do que “Moog”: “no enredo do livro
dedicado a Marcos Moog e a Maria da Glória Vianna Moog, seus pais, o autor deixa
claro que, pessoalmente, está entre o Vianna e o Moog, mas pende em sua
propaganda pró Estado Novo para suas raízes Vianna”.
Esta condição de um autor que fala com propriedade, a partir de suas
vivências pessoais, sobre o conflituoso processo de imigração alemã, permite-lhe
distanciar-se do objeto narrado, dando mais visibilidade e criticidade em relação à
realidade representada: o isolamento, o etnocentrismo e o preconceito de imigrantes
alemães e seus descendentes estabelecidos no Brasil.
Além da remissão à cultura alemã original, congelada no tempo e na forma de
viver pelos que emigraram, também os descendentes de imigrantes já nascidos em
Blumental, apesar de já serem brasileiros, colocam-se na condição de alemães. Isso
81
faz com que os demais brasileiros que não sejam origem alemã se tornem
estrangeiros em seu próprio país, e, como tais, devem ser evitados e mantidos à
distância da vida familiar e doméstica dos alemães.
A narrativa transita pela perspectiva de Geraldo, por exemplo, ao visitar o
Salão da Sociedade Ginástica de Blumental, e da de Lore, em sua casa
marcantemente germânica. Em tais espaços são evocados valores de intimidade,
porque a pátria dos imigrantes alemães e de seus antepassados está fisicamente
inscrita nas habitações de Blumental. Como afirma Bachelard (1978), no texto
literário tais espaços constituem um conjunto de imagens que acolhem o leitor como
a um hóspede, provocando no mesmo a ilusão de estar percorrendo uma casa, uma
rua, uma cidade etc.
Na perspectiva de Bachelard (1978), as pessoas e as imagens da casa
confluem e uma se entranha na outra. Isso acontece porque, naturalmente, a casa
implica o sentido primitivo do habitar, é o canto das pessoas no mundo, seu espaço
vital, como atesta a descrição de Lore, circunscrita ao seu espaço familiar.
Lore evitava encarar a mãe e passeava os olhos pela sala. Era uma
peça ampla, com o teto de estuque pintado de branco; nas paredes
grená enfileiravam-se cabeças de cervos, chifres de veados nórdicos
em todas as extensões. Num lado, o velho e pesado bufete de cedro,
entre dois pratos de cerâmica, encimado por custosa poncheira de
prata. Perto do relógio de parede, uma vista de Heidelberg, formada
de fotografias justapostas, enquadradas na moldura longitudinal. Por
cima do divã, forrado de almofadas e recoberto de uma fazenda de
veludo, o panneau representando um moinho de largas asas e um
grupo bucólico de camponeses com compridos cachinhos em torno
da carreta de feno. Junto ao divã, lá estava o ninho da Páscoa do
sobrinho: um belo castelo de barba de pau, com ramos de macela a
ornamentar lhe as torres. Havia ainda uma estante de livros,
sopesando a Bíblia, volumes de Goethe e Lessing, ricamente
encadernados. E, dominando tudo, perto do abajur, no ângulo da
sala, sobre a cantoneira de adorno, a figura imperiosa de Bismarck,
no seu uniforme prussiano, numa magnífica reprodução em bronze
(MOOG, 1973, p. 84).
O aposento mostra como os espaços são criados de forma a remeter à
Alemanha. É extremamente exótico que, em uma casa situada nos trópicos, onde a
força e a violência da natureza – fauna e flora – abundam, a decoração remeta a
uma cabana de caça europeia, inclusive com cabeças de animais empalhados da
fauna de parte da Europa. A imagem do relógio remete ao tempo passado alemão,
irremediavelmente perdido, mas que permanece enquanto lembrança e uma
82
saudade imemorial, mesmo para aqueles que nunca a vivenciaram. Também os
livros, a imagem do feno e todos estes elementos fora de lugar são dominados pela
imperiosa figura de Bismarck. Tais adereços, revestidos das lembranças do perdido
– para os que emigraram – e imaginados – para aqueles que já nasceram no Brasil –
remetem às lembranças e revivem a antiga moradia/casa/pátria. Todos estes
elementos, além da evidente nostalgia, reveem a lealdade e o culto à pátria perdida
e à memória do grupo e dos antepassados.
A família Wolff vive a casa e a cidade de Blumental em sua realidade, mas,
também, em sua virtualidade, numa integração entre rememoração, recordação e
sonho. Pois, o espaço pode “recuperar” o tempo perdido, tornar imóveis as
lembranças que, quanto mais espacializadas – veja a descrição do quadro de
Bismarck, dos livros de Goethe e Lessing, das fotos da cidade alemã, Heidelberg,
por exemplo – mais se solidificam. Entretanto, estes elementos são, apenas,
lembranças deslocadas, já destituídas da força vital que ataviava o grupo à
Alemanha.
Se, como afirma Bachelard (1978, p. 243), “toda grande imagem é reveladora
de um estado de alma. A casa, mais ainda que a paisagem, é ‘um estado de alma’”,
os livros, também, revelam as características, escolhas ou a personalidade de quem
os lê. No espaço do salão da Sociedade Ginástica, através de Geraldo, o narrador
descreve a biblioteca do local:
[...] Geraldo [...] espera encontrar ali a coleção dos livros de Heine, o
lírico alemão de sua preferência. Nada. As estantes embutidas estão
cheias de publicações recentes da Nova Alemanha: desde o Mein
Kampf, de Adolf Hitler, ao Das dritte Reich, de Moeller van den
Bruck; desde o Staat, Bewegung, Volk, de Hans F. K. Günther, ao
Praktische Kulturarbeit im dritten Reich, de Hans S. Ziegler. Já
desistiu de encontrar Heine entre eles. Ainda bem – reflete Geraldo –
que colocaram Goethe e Schiller num lugar à parte. Corre agora
ansiosamente as prateleiras do último armário, em busca de autores
portugueses e brasileiros, na vaga esperança de deparar alguma
raridade clássica, como as que surgem imprevistamente nas
bibliotecas do interior. Anima-se ao ver nas duas últimas fileiras
alguns títulos em português entre romances de Marlitt e CourthsMahler. Decepção: são romances de Perez Escrich, Paulo de Kock e
George Ohnet. Mas lá na última prateleira encontra afinal o que
procurava: um pequeno volume de capa branca e o título gravado na
lombada: PORQUE ME UFANO DO MEU PAÍS (MOOG, 1973, p. 44
– grifos do autor).
83
As obras citadas são representativas do contexto e do momento histórico de
Um rio imita o Reno, visto que revelam a inclinação dos habitantes de Blumental às
novas tendências políticas defendidas pelo partido nacional-socialista. Não é por
acaso que o único livro brasileiro encontrado seja o de Affonso Celso, editado em
1900, que se tornou instrumento de fortalecimento da identidade nacional brasileira
em razão de sua função patriótica, cívica e moralizadora. O fato de não haver
nenhum livro de Heinrich Heine – poeta judeu alemão do século XIX, de clara
tendência política progressista à esquerda – na biblioteca é o indício mais expressivo
da mentalidade dos membros daquela associação: odiavam os judeus, pois o
antissemitismo era um dos princípios centrais da ideologia nazista.
Transpassando os meandros da ficção, a crítica de Vianna Moog faz sentido
quando se tem em vista que, entre 1932 e 1941, circulava, por exemplo, no Brasil o
jornal Deutscher Morgen45 – Aurora alemã – periódico publicado em São Paulo e
que foi considerado a folha oficial do Partido nazista no Brasil. Este jornal, que era
dirigido por Hans Henning von Cossel, estava voltado para a divulgação de fatos
ligados ao III Reich, pronunciamentos de Hitler, além de relatar o que acontecia na
filial do partido nazista no Brasil. A simbologia nazista – águia e suástica – são
identificadas já na capa do jornal (Anexo XVII) que, com a campanha de
nacionalização imposta por Getúlio Vargas, passou primeiramente por um processo
de abrasileiramento – Departamento de Imprensa e propaganda (DIP) – vindo a
chamar-se, em 1941, Aurora Ilustrada, deixando de circular em dezembro do mesmo
ano.
A mesma empresa responsável pelo Deutscher Morgen publicava em São
Paulo o almanaque Povo e pátria: almanaque para os alemães no Brasil46, que
Ana Dietrich afirma que, “um dos indícios de que boa parte da comunidade alemã no Brasil estava
envolvida com o Partido Nazista, mesmo que indiretamente, era a quantidade de anúncios presentes
no jornal. Alfaiatarias, relojoarias, clínicas dentárias, confeitarias, restaurantes, bares, tinturarias,
livrarias, bancos e cervejarias – como a Brahma e a Antarctica – eram anunciantes fiéis”. Além do
Deutscher Morgen, que teve maior periodicidade, também outros periódicos circulavam no Brasil,
como
O
Nazista
(RJ)
e
Para
o
terceiro
Reich
(RS).
Disponível
em:
<http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/porta-vozes-de-hitler-1>. Acesso em 06 mar. 2014.
45
46
Tradução: Volk und Heimat: kalender für das Deutschtum in Brasilien.
Fotos e discursos de Hitler, proferidos durante os congressos do partido nacional-socialista na
Alemanha, além de seus aforismos, são exemplos do conteúdo que o almanaque reproduzia.
Também artigos, crônicas e poemas eram publicados, em cujo gênero a escritora alemã Maria Kahle
ocupou lugar de destaque no trabalho de reprodução e manutenção do sentimento de germanidade e
de pertencimento à Alemanha. A circulação deste almanaque foi ampla, chegando a várias
localidades do Rio Grande do Sul e de outros Estados do país.
84
circulou de 1935 a 1939. Tais almanaques constituíram-se a partir da segunda
metade do século XIX, segundo Grützmann (2005), em umas das principais
produções culturais impressas em língua alemã no Brasil e era destinada
exclusivamente aos imigrantes e seus descendentes. O Volk und Heimat funcionava
como instrumento de transmissão dos ideários nazistas no Brasil e da trajetória dos
principais dirigentes do partido em congressos, festividades e encontros (Anexo
XVIII).
Voltando à obra ficcional, Blumental é um mundo à parte, uma cidade do
Reno extraviada no Sul da América. As formas sensoriais que Blumental provoca em
Geraldo são de estranhamento, desorientação e perturbação. Aqui, espaço e
memória se interpõem, pois, ao tentar familiarizar-se com Blumental, a personagem,
na maioria das vezes, evoca episódios de sua vida no Amazonas, bem como
lembranças de referências espaciais que amenizam o embaraço provocado por uma
realidade tão diferente da que ele conhecia: quando, por exemplo, ele toma banho
de rio, é como se fosse um estrangeiro saudoso ao reencontrar um recanto de sua
pátria.
Era uma alegria física incomparável. Dava grandes nadadas e
mergulhos, tornava depois ao barranco para novos saltos, o seu
prazer predileto. Ali se sentia bem. Encantado, acompanhava de
longe os movimentos da gurizada. [...]. Naquele ambiente voltava aos
tempos de menino, junto ao igarapé, perto da casa do seringal, pelas
férias grandes. O rio aqui era mais manso. Na margem direita
coberta pela mata rasteira, via Geraldo uma miniatura da muralha de
verde das margens amazônicas. Bastava-lhe essa sugestão para
considerar aquele lugar, um lugar amigo. Já começava a amar
aquele rio (MOOG, 1973, p. 16).
Para Geraldo a natureza é o veículo através do qual ele se reencontra com a
pátria e consigo mesmo, pois o Reno – mero simulacro do original deslocado para a
América – é para ele uma reminiscência do Amazonas. Estas justaposições de
tempo e espaço que conduzem o leitor de um lado para outro, de um tempo para
outro, contrapõem o contexto amazônico, portanto tipicamente brasileiro, ao de
Blumental.
A história pessoal de Viana Moog respalda tal contraposição entre os
imigrantes de alemães do Sul e o os caboclos do Norte, pois ele foi fiscal do imposto
de consumo em Porto Alegre, e foi transferido para o Amazonas. Sua experiência no
85
Amazonas lhe revelou ser aquela região uma das mais interessantes do Brasil,
conforme ele explica em entrevista a Homero Senna:
ora, desde que desembarquei em Manaus e, por dever do ofício ou
por simples curiosidade, passei a viajar pelo Estado, comecei a
sentir-me inclinado a escrever alguma coisa sobre aquele mundo
novo com o qual estava travando relações. Aliás, é conhecida a
fascinação que o Inferno Verde exerce sobre os viajantes nacionais e
estrangeiros: veja Euclides, Inglês de Sousa, Tavares Bastos, Alberto
Rangel, Gastão Cruls... Sem falar em Wallace e Humboldt. Também
eu, portanto, não pude deixar de pagar meu tributo ao sentimento
cósmico que inspira aquela região, que, como uma vez já disse, a
gente não sabe direito se é o primeiro ou o último capítulo do
Gênese... Comecei, então, a escrever, para um jornal de Porto
Alegre, uma série de artigos sobre a realidade amazônica, artigos
esses que vieram a constituir mais tarde o meu livro O Ciclo do Ouro
Negro. Qual não foi, porém, minha surpresa quando, por cartas
recebidas do Rio Grande, fui informado de que meus artigos estavam
agradando... Continuei, porque aquele era um novo meio de ganhar
dinheiro e eu não me achava, em absoluto, em boa situação
financeira no Amazonas, e quando dei por mim estava feito escritor.
(Disponível
em:
<http://www.tirodeletra.com.br/entrevistas/VianaMoog.htm>. Acesso
em: 19 ago. 2013).
Por meio da personagem Geraldo, Vianna Moog denuncia como este apego
dos imigrantes à pátria perdida contribuiu para o racismo isolacionista e etnocêntrico
dos grupos alemães. Ao enfocar o imigrante sob tal aspecto, o escritor o representa
sob uma perspectiva negativa, mas, por outro lado, a positividade do texto está na
revisão crítica que o autor faz do equívoco de tais ideais, e no destemor com que ele
enfrenta o problema em questão, visto que ele desfere uma contundente, mas
realística crítica ao germanismo existente no Sul do Brasil, no momento em que as
ideias defendidas pelo Nacional Socialismo alemão estavam em alta e contavam
com muitos simpatizantes no Brasil, dentre os quais havia, inclusive, brasileiros de
velha cepa. A maioria destes simpatizantes só reviu esta posição após o descalabro
provocado pela II Guerra Mundial e pela barbaridade do holocausto.
3.2 CONFLUÊNCIAS DO ESPAÇO/TEMPO EM BLUMENTAL
Um rio imita o Reno foi um romance à frente de seu tempo por enfrentar e
afrontar o isolamento dos imigrantes alemães e por denunciar ecos que os
86
problemas provocados pelo nazismo trouxeram para os imigrantes e seus
descendentes no Brasil. Vianna Moog transformou este cenário social, político e
cultural em ficção, mas são evidentes as referências à cidade de São Leopoldo nas
décadas de 1920-1930, segundo afirma o historiador Martin N. Dreher (2006, apud
AQUINO, 2007, p. 126):
Vianna Moog leva-nos para Blumental, indiscutivelmente, São
Leopoldo. Aqui há uma hidráulica em construção, um Seminário de
Formação de Professores protestantes, uma igreja protestante de
interior lúgubre, com relógio que bate de quinze em quinze minutos,
pastores protestantes, uma Sociedade Ginástica, indústrias alemãs.
Dessa forma, a construção da hidráulica de Blumental, motivo da vinda do
protagonista Geraldo Torres para a cidade sulina, não é alheia à realidade, já que,
de fato, em 15 de novembro de 1925, teve início a construção da Hidráulica de São
Leopoldo (GERTZ apud AQUINO, 2007).
Conforme já abordado por Aquino (2007), quando lançado, Um rio imita o
Reno resultou num grande sucesso de venda, visto que a primeira edição esgotou-se em apenas três semanas. Contribuiu para este sucesso o fato de a Secretaria da
Educação do Rio Grande do Sul ter adquirido grande parte da publicação para
distribuí-la às escolas do Estado.
Não se pode esquecer que a publicação do romance Um rio imita o
Reno, em 1939, teve um sucesso estrondoso, que fez com que o
livro tivesse esgotado sua primeira edição em alguns dias e, assim,
servisse à causa da campanha de nacionalização, umas das
principais metas do governo de Cordeiro de Farias. O fato de que a
Secretaria de Educação tenha adquirido duzentos exemplares para
distribuição às bibliotecas escolares do Estado, demonstra a simpatia
que as autoridades tributavam ao livro (GERTZ apud AQUINO, 2007,
p. 128).
O caráter engajado de Um rio imita o Reno serviu de estímulo ao
nacionalismo brasileiro, dado seu teor nacionalista ao criticar os alemães. Tal
posicionamento de Vianna Moog causou polêmica e o Consulado da Alemanha
interviu na circulação do livro, dispondo-se a comprar todos os exemplares. Esse
fato, segundo Aquino (2007), veio a colaborar para que autor e obra ganhassem
destaque, o que resultou no Prêmio Graça Aranha de Romance, em 1939: o maior
prêmio nacional na época.
87
Portanto, há correlação entre o espaço ficcionalizado e a inserção social do
romance, até porque as categorias tempo-espaço não podem ser separadas. Como
afirma Zubiaurre (2000, p. 17), “el espacio, pues, no implica ausência de tiempo, sino
todo lo contrario. Sólo através del espacio logra el tiempo convertirse en entidad
visible y palpable47”.
Um rio imita o Reno situa seu enredo temporalmente durante o Estado Novo
(1937-1945), marcado pelo projeto nacionalista implantado por Getúlio Vargas,
quando, no contexto europeu, estava em curso a II Guerra Mundial, a partir de 1939.
A campanha de nacionalização imposta pelo Estado fez ressurgir o confronto entre
jus soli e jus sanguinis48, num processo de abrasileiramento forçado, dada a
relutância de muitos imigrantes e seus descendentes – sobretudo os alemães, que
eram mais resistentes – em aceitarem a nova cultura. Tais grupos eram “[...]
portadores de identidades étnicas fundamentadas em práticas culturais específicas e
no pertencimento primordial às nacionalidades de origem, com base no direito do
sangue” (SEYFERTH, 1997, p. 98).
Naquele período houve uma grande pressão do Estado para impor a língua
portuguesa e, com isso, quebrar a hegemonia linguística e cultural das comunidades
imigrantes, ainda muito fechadas à mescla cultural e à miscigenação racial.
A
comunicação em língua estrangeira foi proibida e, como parte deste abrasileiramento
forçado, as escolas dos imigrantes foram fechadas.
Além desta quebra dos núcleos culturais, também a estrutura econômica e
social foi patrulhada com a proibição dos estabelecimentos comerciais, quase que
exclusivamente estrangeiros, bem como das associações esportivas. Segundo
Seyferth (1991), impôs-se o emprego da língua portuguesa a todos os
“desnacionalizados”, pois se acreditava que a brasilidade só seria atingida por
intermédio da educação: “os alienígenas podiam nascer brasileiros, mas não
pertenciam à nação brasileira” (SEYFERTH, 1997, p. 101).
A assimilação forçada pretendia, portanto, não a troca e interação entre as
culturas em contato, mas a imposição de uma sobre a outra, através da extinção da
alteridade. Os resultados traumáticos causados por esta campanha ficam evidentes,
em Um rio imita o Reno, na fala de Marta Wolff ao relembrar a destruição que os
47
Tradução: O espaço, pois, não implica ausência de tempo, mas exatamente o contrário. Somente
através do espaço o tempo pode converter-se em entidade visível e palpável.
48 Expressões latinas empregadas por Seyferth (1997) que significam, respectivamente, direito de
solo e direito de sangue.
88
militares causaram na colônia. Atenta-se, não obstante, ao fato de que as memórias
daquele tempo não saem pelo discurso da personagem, mas, novamente, pela voz
do narrador:
Protestante casar com católico ainda tolerava. Mas uma alemã com
um negro? ... era demais. Uma afronta ao espírito da raça. Pena não
poder dizer em voz alta o que pensava, para todos ouvirem. Seria
imprudente. Depois da guerra as coisas desgraçadamente tinham
mudado bastante. Agora Frau Marta, com arrepio de horror,
lembrava o tempo em que os principais da terra tiveram de comprar
às pressas bandeiras verde-amarelas para colocá-las no frontispício
de suas casas de comércio. Arrepiava-se só de pensar naquelas
noites de incêndios e depredações, em que ela, o Paul e os
pequenos abandonaram a cidade, para se refugiarem em casa de
um colono, no alto do Wintenberg, de onde se via o fogo devorando
lá embaixo o edifício da Germânia e do Kolonie-Zeitung [jornal da
colônia]. Parecia o fim de tudo, de Blumental, da Alemanha, da
civilização (MOOG, 1973, p. 87 – grifo nosso).
Na conturbada década de 1930, quando a II Guerra Mundial se prenunciava
como inevitável, não só os alemães, mas todos os grupos mais fechados,
resultantes da imigração, foram alvo de desconfiança face à alteridade cultural.
A despeito da gravidade de tais fatos, Um rio imita o Reno serviu de
instrumento à campanha de nacionalização dos grupos estrangeiros existentes no
interior do Estado brasileiro49. De modo diferente do que se viu em Canaã, onde os
protagonistas são imigrantes alemães, Vianna Moog dá voz a Geraldo, caboclo do
Amazonas, e a outras personagens brasileiras, para mostrar as implicações da
imigração de alemães para o Brasil sob o outro ângulo.
Assim, a necessidade de uma campanha em prol da nacionalização das
colônias alemãs ressoa pelo discurso da personagem Cordeiro, que, durante um
A ideologia do Deutschtum – germanidade – defendida pelos alemães e seus descendentes que
estavam estabelecidos em colônias no Rio Grande do Sul, segundo analisa Vogt (2007), se
contrapunha à construção de uma identidade nacional, preocupação esta do governo e de grupos de
intelectuais brasileiros. A resistência dos alemães à assimilação deu origem ao mito do perigo
alemão, analisado por Gertz (1991), que se baseava num “real ou hipotético patrocínio, por parte do
imperialismo germânico, de uma secessão de territórios do Brasil Meridional, que deveriam ficar como
área de influência econômica ou de dominação direta da Alemanha.” (VOGT, 2007, p. 226). Silvio
Romero – na primeira década do século XX – foi um dos intelectuais brasileiros que mais defendeu a
tese do “perigo alemão”. Afora isso, havia a disseminação de notícias que afirmavam que o perigo
alemão colocava em risco o desmembramento das terras da região Sul brasileira, seguindo um
projeto de criação de uma Alemanha sul-americana. Estas ideias, para René Gertz, em O perigo
alemão (1991), precisam ser revisadas com maior cautela, pois, apesar de o partido nazista ter
angariado a simpatia de muitos brasileiros, em todo o território brasileiro o número de filiados chegou
a 2.903, porcentagem quase insignificante se comparada ao número de emigrantes alemães vindos
ao Brasil entre 1824 e 1969, aproximadamente 250 mil (DIETRICH, 2007).
49
89
discurso político proferido pelo deputado Eumolpo Peçanha, pede a palavra para
dizer que:
– saibamos dizer aos descendentes de raça germânica – continua o
velho Cordeiro – que fazem das lendas do Reno o motivo exclusivo
dos seus devaneios, aos que de origem italiana, polonesa ou lusa,
que só estremecem de civismo com as epopeias dos seus
antepassados, saibamos dizer aos representantes de todas as
correntes humanas a quem o Brasil tem dado agasalho, que é
preciso, de uma vez por todas, varrer essa errônea concepção de
pátria, para se firmar para sempre no Brasil a unidade nacional, pela
identidade de tradições, pela unidade da língua, de cultura e de
educação, coisas todas do mundo moral, asseguradoras da paz
dentro da nação (MOOG, 1973, p. 142).
Ora, tal discurso, indiscutivelmente, é bivocal (BAKHTIN, 1988), visto que nele
ressoam as intenções do autor de apontar para o problema da resistência dos
alemães à interação com os brasileiros. A bivocalidade pode ser percebida na
linguagem daquele que está falando: um velho, filho de fazendeiros do interior do
Rio Grande do Sul, a discursar em um comício sobre concepções tão complexas
como pátria e unidade nacional.
A personagem, ao se apropriar do discurso da intelectualidade e do governo
brasileiro, preocupados com a identidade/hegemonia do país, faz ressoar a voz, a
consciência e intenção do autor ao criticar e denunciar uma realidade de
preconceitos e conflitos. Esta é uma das características essenciais do gênero
romance, seguindo os pressupostos teóricos de Bakhtin (1988), dado que as
linguagens sociais dos gêneros, das profissões, etc., penetram no romance
materializando-se nas diversas vozes que nele ecoam. Ou seja, ao se repetir o
discurso do outro, não obstante o acento pessoal de quem o está repetindo, aquele
discurso continuará remetendo à visão de mundo do outro.
O fato é que – a despeito do reduzido número de filiados – o movimento
nazista50 se desenvolveu e expandiu no Brasil, o que confere certa fidedignidade ao
50
De acordo com Dietrich (2007), para compreender como que o nazismo se estendeu às colônias de
emigrantes alemães no Brasil é válido ressaltar que este, enquanto partido, esteve presente em 83
países do mundo, e a intensidade do movimento em cada um destes países esteve atrelada ao
número de alemães presentes, como foi o caso dos países que receberam levas significativas de
emigrantes. Ademais, parece que o governo brasileiro, durante a era Vargas, teria se silenciado em
relação à atuação nazista no Brasil, posto que, inicialmente, havia uma relação amigável entre ambos
os países, baseada em interesses comerciais, visto que a Alemanha representava um importante
comprador das matérias-primas brasileiras: “como maneira de otimização e mesmo como variável de
negociação entre Brasil e Alemanha, foi possível ao partido nazista funcionar de1928 a 1938, oito
anos durante a chamada Era Vargas (1930-1945). Só depois de uma década – quando a existência
90
romance de Vianna Moog. Apesar dos riscos que a discussão e a denúncia do
racismo e do isolacionismo dos grupos germânicos poderiam acarretar naquela
época, esta questão é tratada com propriedade pelo autor que, ao criticar a
tendência ao isolamento dos imigrantes e seus descendentes, contrapõe-se à
ideologia da superioridade racial germânica, que Zilberman (1982) afirma ter sido
muito forte na época com a ascensão do fascismo da Europa e do integralismo no
Brasil.
O partido nacional-socialista se disseminou pelo Brasil, através de reuniões,
dos jornais, da literatura, das associações esportivas etc. Lopez (1992) analisa que a
ascensão do nazismo foi vista com simpatia na zona de colonização alemã, mas não
só nestas regiões. Entretanto, o autor cita que nunca houve nenhum projeto
consistente de expansão do Reich na América do Sul, visto que o nazismo tinha
interesses em estabelecer e manter um intercâmbio comercial com o Brasil, bem
como preservar a cultura germânica.
Nas comunidades de origem germânica o nacionalismo nazista reacendeu o
sentimento de preservação de tradições culturais ancestrais, o que torna verossímil
a crítica do médico Stahl à filiação da Associação de Ginástica de Blumental à
Alemanha nazista, a fim de que fossem beneficiados com revistas, aparelhos de
ginástica, barracas para acampamento etc.:
[o médico] disse que o preço exigido era muito caro. A Ginástica
sempre fora independente e por tão alto preço não deviam comprar
um arrependimento. Pagaria do bolso dele as tais vantagens. Se não
houvesse gato escondido, deviam aceitar. Mas ele não se enganava.
Já tinha percebido o que passava. Tudo obedecia aos planos da
Verband Deutscher Vereine im Ausland, de Berlim, com o fim de
introduzir nas colônias alemãs o espírito nacional-socialista, por meio
de escolas, sociedade e igrejas, sob a direta orientação do Reich...
Intercâmbio cultural, remessa de instrutores de ginástica, era só para
uso externo... (MOOG, 1973, p. 153)
Em Nazismo tropical? O partido nazista no Brasil (2007), Dietrich analisa que
o partido nazista se “tropicalizou”, haja vista que houve modificações de conteúdo e
de ideologia com vistas a se adaptar ao contexto brasileiro. Desta forma, no Brasil o
deste partido entrou em confronto com as diretrizes nacionais que proibiam atividades políticas
estrangeiras e, ao mesmo tempo, procuravam “nacionalizar” as minorias estrangeiras, intervindo em
escolas, clubes, bancos e demais associações estrangeiras, proibindo o uso de outros idiomas em
público – o partido nazista se tornou alvo de investigação e controle e foi finalmente proibido em
1938” (DIETRICH, 2007, p. 119-120).
91
judeu se transfigurou no negro e no mestiço, cuja diversidade racial confrontava os
fundamentos da raça pura, baseada na doutrina do arianismo.
Vianna Moog se ateve à questão da infiltração nazista através da atitude de
Karl Wolff em relação à vinda repentina de seu primo da Alemanha:
e se primo Otto trouxesse uma missão do governo alemão? Sim, era
bem possível. Havia colônias alemãs em todo o sul do Brasil. Era
preciso organizá-las, levar para a Grande Pátria documentos que
dessem ao Führer uma ideia das possibilidades da colônia. Primo
Otto... Missão secreta... Havia de lhe contar coisas, dar-lhe-ia
informações preciosas (MOOG, 1973, p. 169).
Entretanto, subliminar à história de amor entre Geraldo e Lore Wolff está a
discussão central do autor rio-grandense sobre o racismo e o nazismo alemão. Em
relação a esta questão devem ser levados em conta dois aspectos importantes
sobre a visão do outro: como o alemão via o brasileiro? Como o brasileiro reagia a
esta visão? Os nazistas que se encontravam no Brasil consideravam a população
brasileira inferior pelo seu caráter mestiço, sendo frequente o emprego de
classificações pejorativas como “macacos”, conforme se evidenciou no capítulo
anterior.
nas veias de Frau Marta não corria sangue nobre, mas ela tinha
orgulho de sua raça, orgulho de descender de alemães, de haver
casado com um filho de alemão. Ela mesma se considerava alemã. A
raça nada tinha a ver com o lugar de nascimento. Não, não havia de
tolerar a ameaça de um intruso na família, um negro. Para Frau
Marta quem não tivesse sangue ariano puro estava
irremediavelmente condenado: era negro. Lore havia de se casar
com um filho de alemão, se possível com um alemão (MOOG, 1973,
p. 85).
Institucionalmente, o casamento com pessoas mestiças fora proibido pelo
partido, explica Dietrich (2007), e muitos descendentes de alemães se mantiveram
fiéis a esta ideologia. Se por um lado Hitler atuou através de um partido extremista,
antissemita e fantasista, por outro, correspondia ao líder capaz de construir a
unidade desejada pelos alemães, capaz de representar o povo e de compartilhar
com ele as mesmas necessidades emocionais implícitas à formação do estado
alemão. É a tais ideais que Marta Wollf, mãe de Lore, é leal: ela desprezava os
judeus, os negros e o Brasil, e não admitiria que a filha, uma alemã de raça “pura”,
92
se casasse com um negro, “cuja cor é como signo cultural/político de inferioridade ou
degeneração, a pele como sua identidade natural” (BHABHA, 2005, p. 123).
Embora o sujeito negro e/ou mestiço se torne invisível para o homem branco,
a sua pele, como significante da discriminação, é processada como visível. Trata-se
de um esquema epidérmico, assim chamado por Franz Fanon, e não é, como o
fetiche sexual, um segredo, explica Bhabha (2005). Pelo contrário, ele é visível,
“reconhecido como ‘conhecimento geral’ em uma série de discursos culturais,
políticos e históricos, e representa um papel público no drama racial que é encenado
todos os dias nas sociedades coloniais” (BHABHA, 2005, p. 121). Portanto, há
sempre uma relação com a cor da pele, e esta relação está fixada como racismo e
estereótipo, de modo que sempre se “sabe”, de antemão, “que os negros são
licenciosos e os asiáticos dissimulados” (BHABHA, 2005, p. 117) e os alemães,
nazistas.
Com o projeto nacionalista de Vargas, o preconceito evidente dos alemães
em relação aos brasileiros precisou ser dissimulado. Entretanto, esta contenção em
relação à discriminação não significa que o preconceito havia enfraquecido, pois
este não é neutralizado a curto prazo nas estruturas psíquicas do indivíduo.
Em vista disso, em Um rio imita o Reno Viana Moog insere no romance um
caboclo que tem voz, que compartilha com o leitor a discriminação e a opressão que
sofre em Blumental em função da sua condição de mestiço tipicamente brasileiro. É
em função desta mescla de povos que, desde o início da colonização, constituiu o
que veio a ser o povo brasileiro. Ou seja, Geraldo seria um brasileiro típico e, como
tal, é classificado por Frau Marta como negro e como índio selvagem por Karl Wollf,
irmão de Lore, num processo de anulação das diferenças à medida que ser mulato,
negro, mestiço ou índio daria no mesmo, ou seja, era impuro.
Tais classificações preconceituosas e redutoras tendem a desestabilizar os
indivíduos que as sofrem, e é por isso que Geraldo passa a duvidar de seu próprio
valor e a se resignar à inferioridade com que o outro o tipifica, como bem descreve o
narrador. “Não havia dúvida. Eles o desprezavam. Eram brancos, louros, tinham os
olhos azuis, o corpo esbelto, o sangue puro. Raça de guerreiros e artistas” (MOOG,
1973, p. 145). Segundo Bhabha (2005), é extremamente relevante observar como
são construídas, no sistema textual, as diferenças nacionais e culturais a partir do
uso de semas como “mistura”, “impureza” e “estrangeiro”.
93
Blumental anula a individualidade e as diferenças das pessoas, as quais
parecem sofrer um processo de canalização: ou se é branco, ou se é negro, dado
que “As lendas, estórias, histórias e anedotas de uma cultura colonial oferecem ao
sujeito um ‘ou/ou’ primordial” (BHABHA, 2005, p. 117).
No entanto, ainda de acordo com Bhabha (2005), não basta reconhecer as
imagens positivas e negativas que o texto traz, pois julgar a imagem estereotipada a
partir de uma normatividade política significa, segundo o autor, apenas descartá-la,
mas não implica necessariamente seu deslocamento.
3.3 CORDIALIDADE BRASILEIRA VERSUS AUSTERIDADE ALEMÃ
Geraldo foi expulso de Blumental, o que ocorreu através do “jeitinho
brasileiro”, associado ao “você sabe com quem está falando?”, expressões estas
analisadas em outro contexto por Damatta (1990). Paradoxalmente, a despeito de
estas características negativas remeterem à cultura brasileira, é delas que Frau
Marta se vale para afastar de Lore o engenheiro: “entre o major e Herr Wolff
estabelecera-se um pacto sujo, sórdido, ignóbil. Herr Wolff daria seu apoio ao
prefeito, desde que esse fizesse com que o engenheiro fosse compelido a
abandonar Blumental para sempre” (MOOG, 1973, p. 159-160).
Conforme analisa Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil (1995), é
característico do homem cordial estabelecer uma relação promíscua entre o público
e o privado, ou seja, o brasileiro compreenderia tudo o que é público como extensão
da sua casa, portanto, como seu.
Aqui está o sentido que o estudioso conferiu à cordialidade, enquanto
característica marcante do modo de ser brasileiro: a dificuldade de cumprir ritos
sociais, ou seja, a quebra da formalidade, a prevalência de relações intermediadas
pela gentileza e pela afetuosidade, o uso exagerado de diminutivos, o
estabelecimento precoce de amizade entre as pessoas, enfim, a predominância da
informalidade e da pessoalidade nas relações que demandam formalidade. Tal
cordialidade não deve ser confundida com bondade, uma vez que, embora o
brasileiro seja identificado como “bonzinho” e “pacífico”, isso não significa que ele
94
tenha sempre e em qualquer situação boas maneiras e civilidade51, segundo
Holanda (1995). Isto se aplica com justeza à fala de Armando que, assim como
Geraldo, fora expulso de Blumental, neste caso, por não atender aos favores
pessoais que o prefeito da cidade lhe pedira:
imagina você que o homenzinho [o prefeito de Blumental] entendeu
novamente de manobrar comigo. Queria que eu sapecasse multas
nos inimigos dele e poupasse os amigos. Estrilei... Com jeito, claro,
mas estrilei. E o homenzinho não descansou enquanto não
conseguiu a minha transferência (MOOG, 1973, p. 201).
Portanto, Moog não se atém, apenas, aos aspectos negativos da cultura
alemã, mas também, e de forma muito pertinente, a alguns vícios entranhados na
cultura brasileira desde o início da sua formação. O prefeito busca através do
“jeitinho” impor seus interesses pessoais, tornando-os superiores ao que seria legal
e justo. Para tanto, ele se vale da hierarquia social para, em nome do “Você sabe
com quem está falando?”, transferir Armando de cidade devido ao fato de ele não ter
acatado sua ordem, camuflada por um aparente pedido cordial. Nesse sentido,
“Você sabe com quem está falando?” é um instrumento social, uma resposta à
tentativa de imposição da lei impessoal, numa sociedade em que a estrutura e a
hierarquia sociais estão baseadas nas relações pessoais, na intimidade e ou
intimidação social.
Assim, por meio do comportamento do prefeito, Vianna Moog apresenta
ironicamente o ritual brasileiro de autoridade, baseado nas hierarquias sociais. Até
porque, como compreendeu Damatta (1990), no Brasil, os conflitos são evitados
para não alterar os lugares sociais, já que o lugar que cada um deve ocupar já está
predeterminado em uma sociedade que pretende ser igualitária, mas que permite
que as leis, que deveriam ser isentas, sejam aplicadas de forma personalista,
dependendo de a quem ela se aplica.
Nas palavras do autor, “a lhaneza no trato, a hospitalidade, e generosidade, virtudes tão gabadas
por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na
medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio
humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam
significar ‘boas maneiras’, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo
extremamente rico e transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo – ela pode exprimir-se em mandamentos e sentenças” (HOLANDA, 1995, p. 146).
51
95
São traços como estes que Geraldo volta a criticar no desfecho do romance,
pois estes seriam a causa da falta de apreço dos alemães de Blumental pelos
brasileiros, com cujo posicionamento a personagem se vê obrigada a concordar:
– Aí tens... Só mesmo por um milagre de boa vontade poderiam [os
alemães] ter apreço por nós. Mas, como podem nos estimar, que
respeito podem ter por nós, quando examinam o elemento humano
de que é composta a nossa gente? Atenta para a figura mais
representativa de Blumental: o prefeito – um pulha. Olha o promotor
– outro pulha. O secretário – talvez um bom sujeito, mas uma
cavalgadura [...]. [personagens brasileiras] – Que antro indecente de
jogatina [o Grêmio cívico 15 de novembro]! Que espelunca sórdida!
Dali só saía dinheiro para o major manter a capangada... Ora, você
compreende... que respeito podem ter por nós, vendo essas coisas,
eles [os alemães] que são educados no culto da probidade e do
respeito às leis? Terão lá seus defeitos, mas neste ponto não vejo
por onde atacá-los. Que juízo poderão fazer dos brasileiros? (MOOG,
1973, p. 202-203).
Revertendo este quadro, a representação dos alemães de Blumental retoma o
estereótipo da rudeza, da frieza e da aversão deles ao sentimentalismo. No plano
afetivo, a comparação entre brasileiros e alemães é desvelada por Lore ao comparar
o comportamento de sua mãe ao dos pais brasileiros: “como era bonito o abraço
brasileiro, um pai acariciando a cabeça da filha. Sua mãe era diferente. Nunca lhe
dera um beijo. Não que não a amasse. Mas era o jeito dela. Horror ao
sentimentalismo” (MOOG, 1973, p. 79).
Vianna Moog deixa entender que tais traços seriam inatos aos alemães, ou
que estariam consolidados na formação cultural daquele povo, conforme os
aspectos citados no capítulo anterior sobre a educação e a estrutura autoritária do
Estado. A despeito da construção da personalidade e da dificuldade de transformá-la, Karl Wolff confirma que sua rudeza estava internalizada de modo que não
conseguia se desvencilhar desse modo de ser.
Amava Lore, à sua maneira. Sempre fora rude para com ela. De
resto, era brusco e rude para com toda a gente – o pai, os
empregados, os amigos, a sua própria mulher. Só ele sabia os
esforços que já fizera para não ser assim, para tratar os outros com
delicadeza. Mas nunca acertara em ser agradável. Era-lhe uma
impossibilidade física, congênita, orgânica, mais forte que ele. Via
que só conseguia magoar, mesmo quando sua intenção era agradar.
Como é que os outros poderiam ser naturalmente amáveis? (MOOG,
1973, p. 183).
96
Tais características estariam anulando a diferença entre as pessoas, tendo-se
se em vista que, na trajetória das personagens de Um rio imita o Reno, nem todos
os alemães são avessos ao sentimentalismo, como Lore, por exemplo.
A cozinha alemã também é um libelo contra os alemães e, para tanto,
estabelece-se na obra um diálogo intertextual entre o pensamento de Geraldo – que
é desvelado pelo narrador – e a crítica que Nietzsche lançou sobre os hábitos
alimentares dos alemães:
Estar à mesa é um verdadeiro pecado contra o Espírito Santo... A
sopa antes das refeições: a carne demasiado cozida; os legumes
fervidos com muita gordura e farinha; os doces, duros como ladrilhos;
a necessidade verdadeiramente bestial dos alemães de beber
cerveja... é de onde provém o espírito alemão: dos intestinos
empanturrados (MOOG, 1973, p. 124).
Há, portanto, a reprodução de um discurso que rejeita as tradições culinárias
da cultura alemã, reduzindo-as a um conjunto limitado de características que
reafirma o estereótipo do alemão que “come e bebe exageradamente”: “todo o Ecce
Homo, partindo da cozinha alemã, era afinal um libelo contra os alemães. ‘Quando
pretendo imaginar um homem que repugne a todos os meus instintos, surge-me logo
à mente um alemão’” (MOOG, 1973, p. 135).
É natural que os hábitos alimentares variem de uma nação para outra, dado
que o seu gosto está condicionado a uma série de aspectos naturais – visto que os
alimentos disponíveis em cada região moldam o paladar e a cultura alimentar –
culturais, históricos, econômicos e religiosos que definem o que é bom ou ruim, o
que pode, ou não, ser ingerido. Por conseguinte, as diferenças culinárias de uma
cultura para a outra geram estranhamentos, de modo que os alemães se
comprazem com a carne de porco, que os judeus, por sua vez, não consomem.
Os hábitos culinários de uma nação não decorrem somente do mero
instinto de sobrevivência e da necessidade do homem de se
alimentar. São expressão de sua história, geografia, clima,
organização social e crenças religiosas. Por isso, as forças que
condicionam o gosto ou a repulsa por determinados alimentos
diferem de uma sociedade para a outra. O gosto, que muitos
acreditam ser próprio, é uma constelação de extrema complexidade
na qual entram em jogo, além da identidade idiossincrática, fatores
como: sexo, idade, nacionalidade, religião, grau de instrução, nível
de renda, classe e origem sociais. O gosto é, portanto, moldado
culturalmente e socialmente controlado (FRANCO, 2001, p. 23-23).
97
Em vista disso, quando Geraldo rememora passagens do Ecce homo nas
quais a culinária alemã é achincalhada, é evidente a contraposição e o confronto de
tradições, valores e gostos condicionados pela cultura de cada povo. É por isso que,
na primeira refeição de Geraldo e de Armando Seixas, no restaurante do hotel em
que estavam hospedados, Armando rejeita o prato do dia, que era Klösse: “eles
usavam isso na guerra como granada de mão e querem agora dar pra gente comer”
(MOOG, 1973, p. 17).
Para além das considerações de Nietzsche sobre os alemães, Geraldo
consegue sistematizar suas conclusões sobre aquele povo quando volta de um
Kerb: “primeira realidade: povo de boa-fé, sempre à procura de um Führer, capaz de
ser conduzido para o bem ou para o mal [...]; Terceira realidade: povo sem senso
político...” (MOOG, 1973, p. 135-136). Esta afirmação remete à história da formação
do Estado alemão, segundo a qual os alemães seriam incapazes de viver sem
discórdias e disputas entre si. Da falta de senso político – que Geraldo também
menciona – resultou o desejo de unidade e de ser conduzido por um chefe, desejo
este que influenciou diretamente na ascensão de Adolf Hitler ao poder. Em outra
ocasião, esta questão é reafirmada pelo médico alemão Stahl, durante sua conversa
com Frau Marta: “desde que leram o Velho Testamento [os alemães] ficaram
malucos. Andam sempre à procura de um Moisés e com essa mania de
superioridade de raça...” (MOOG, 1973, p. 108).
Afora isso, Geraldo reconhece características muito positivas nos alemães:
“segunda realidade: povo inteligente, de inteligência lógica, metafísica [...]; Verbotten
[proibido], palavra sagrada para os alemães [...]; Quinta realidade: povo de instinto
musical e poético (MOOG, 1973, p. 135-136)”. Tais considerações desvelam que
Geraldo não se limitou a um olhar estereotipado e negativo sobre o outro, pois ele
não busca a autoconfirmação de pré-julgamentos, mas, ao contrário, tenta entender
a diversidade cultural do outro em seus aspectos positivos e negativos. Esta forma
de ver o outro é muito importante, porque, como percebeu Ina Ulrike Paul,
historiadora que está desenvolvendo um estudo sobre estereótipos, ligados ao
julgamento de alemães “o observador tem certas expectativas e deixa que elas
determinem sua percepção", afirma. "Ou seja, nossas impressões pessoais são a
98
exceção: mesmo não tendo visto nenhum alemão bêbado, eles bebem demais –
como todos sabem"52.
São as diferenças e estereótipos representados em Um rio imita o Reno que
atuam como fatores de rejeição e exclusão entre alemães e brasileiros: a rudeza, a
superioridade, a inteligência, o progresso, a ordem e a frieza constituem o
estereótipo dos alemães, ao passo que o brasileiro é o estereótipo da inferioridade,
da incapacidade, da “cordialidade” e da submissão. Desconstruir tal visão que falseia
e limita a realidade é tarefa complexa, quando se percebe que a trajetória das
personagens está determinada por estereótipos profundamente arraigados na
personalidade e no imaginário e quando estereótipos são empregados para justificar
as circunstâncias nas quais grupos marginalizados se encontram. O estereótipo é “o
desejo de uma originalidade que é de novo ameaçada pelas diferenças de raça, cor
e cultura” (BHABHA, 2005, p. 117).
3.4 VIANNA MOOG: UM CRÍTICO DESTEMIDO
A oposição de Lore Wolff e do médico Stahl em relação aos brasileiros mostra
que nem todos os imigrantes eram avessos à interação e à miscigenação com
outros povos. Da página 108 à 111 há uma quebra na progressão do enredo,
quando o narrador se atém à postura do médico Stahl, que tem uma acalorada
discussão com Frau Marta e Karl a respeito da legitimidade dos princípios raciais de
pureza:
– Essas ideias são ideias de judeu. Nem parece que o doutor acaba
de receber da Alemanha a sua árvore genealógica.
– Atirei ao lixo o papel que aqueles idiotas me mandaram. Que me
adianta saber que tenho sangue alemão desde o século XV?
– Deixa, Karl. No fundo ele está bem faceiro – afirmou Frau Marta.
– Ora, falar de raça pura na Alemanha e na Itália! A Itália, um ninho
de úmbrios, vênetos, árabes, norte-americanos, judeus, turcos, tudo.
A Alemanha, o ponto de passagem de todas as invasões bárbaras do
Oriente para o Ocidente, o cadinho de cruzamento de bretões,
germanos, de chineses, tártaros, mongóis [...]. Aliás, os nossos
melhores pensadores e artistas, os Bach, os Händels, os Nietzsches,
tinham sangue de eslavo ou de judeu nas veias... (MOOG, 1973, p.
109).
52
Disponível em: <http://www.dw.de/a-for%C3%A7a-dos-estere%C3%B3tipos-na-imagem-dasna%C3%A7%C3%B5es/a-16829694>. Acesso em: 08 de set. 2013.
99
Veja-se que é da perspectiva de um alemão que parte a crítica e o
enfrentamento da ideia de pureza e superioridade racial dos alemães, pois, se os
judeus, por exemplo, eram inferiores, conforme assegurava Frau Marta, como
explicar a genialidade de Bach, Händel e Nietzsche? Sobre a “inferioridade inata”
dos negros, o médico explica para Frau Marta que ela provém da escravidão –
portanto, de contingências econômicas e sociais – não podendo ser justificada pela
raça.
– Mas na Alemanha não há negros – contraponteou Frau Marta. – O
doutor vai querer nos convencer que um negro é igual a um branco?
– E por que não? Se vocês pensam que a inferioridade deles vem da
raça, estão enganados. Vem da escravidão, do regime em que
viviam.
– O doutor conhece algum negro que preste?
– Uma infinidade. Os Estados Unidos estão cheio deles. Grandes
escritores, grandes músicos, grandes cantores... (MOOG, 1973, p.
109).
Ao mesmo tempo em que Viana Moog traz à tona estereótipos e preconceitos
tão arraigados em relação à população negra no Brasil, há outra linha que entrecorta
o romance e enfrenta de forma contundente tais discursos. Ao fazer isso, o autor
mostra que subverter preconceitos raciais, legitimados por teorias delirantes e
arraigados na estrutura psíquica das pessoas, demanda grande empenho, conforme
se depreende da fala do médico:
– O senhor casaria com uma preta? – pergunta Karl.
– Não, não gosto de negros. Mesmo que o quisesse, por um ato de
vontade, não podia. Fui educado já com preconceitos raciais. Nesse
tempo a Alemanha andava maluca com as teorias de Chanberlain e
Gobineau. Agora seria difícil desintoxicar-se por completo.
Infelizmente, não há purgativos espirituais para lavar a gente por
dentro.
– Não, essa repulsa é inata no branco.
– Absolutamente. Agora mesmo encontrei aí na calçada o Paulinho
brincando com os mulatinhos do Cardoso... Estava alegre e não me
parecia repugnado. Pelo contrário: nunca o vi tão contente... (MOOG,
1973, p. 110-111 – grifo nosso).
O médico Stahl não discrimina os negros, ou melhor, não apresenta
comportamento discriminatório, mas isto não significa que ele consiga se livrar
totalmente dos preconceitos que lhe foram inculcados. E, como a personagem
100
deixou claro, uma vez entranhado, o preconceito passa a fazer parte da
personalidade das pessoas e se exterioriza nas mais diversas situações como, por
exemplo, na aversão pela escolha de uma parceira negra. Dessa maneira, o que
Vianna Moog quer mostrar é que não basta, apenas, enfrentar os preconceitos,
porque a prova da sua inverdade ou a inversão do seu conteúdo é totalmente
ineficaz face à estrutura psicológica já determinada por crenças, valores e atitudes.
Seguindo tais considerações, Vianna Moog, ao invés de mostrar a inverdade
dos preconceitos de Marta Wolff, desloca-os para a estrutura interna da
personagem, num doloroso processo de desconstrução de suas referências e
crenças. A família Wolff, no período em que Lore adoecera, recebera a visita
inesperada do primo Otto: um genuíno alemão. Entretanto, ao invés das notícias
esperadas sobre os avanços e a modernização da Alemanha em função do
nacional-socialismo, Otto revela que tal realidade não existia: “a realidade cotidiana
é negra: os campos de concentração... aperturas de toda a sorte, perseguições,
barbaridades, banimentos, assassínios...” (MOOG, 1973, p. 177).
Otto descreve para a família Wolff a censura, a miséria, o exílio dos maiores
pensadores da Alemanha, até chegar a sua revelação final: “Depois que
descobriram que nós temos sangue judeu, não duvido de mais nada [...]
Descobriram que nosso bisavô, de Francforte, tinha sangue judeu. Coisa que
nenhum de nós sabia... Vi os documentos... Não há dúvida...” (MOOG, 1973, p. 191192). É inquestionável que Vianna Moog foi certeiro ao subverter o olhar depreciador
e racista de Marta Wolff sobre o outro, o negro, o judeu, o não ariano. Como num
jogo de espelhos, o olhar lançado pela personagem, ao refletir no outro, retorna para
si e para os demais alemães que se consideravam arianos e odiavam judeus e
negros.
Se o inimigo estava do lado de fora da casa – cidade – dos alemães, a partir
da vinda de Otto ele passa a estar dentro, e então se torna impossível combatê-lo. A
revelação do sangue judeu de Marta é fatal, é um libelo modelar contra as
pretensões de classificação racial e de privilégios, pois volta “o feitiço contra o
feiticeiro”. Apesar da expulsão do intruso Geraldo – cujo sangue “impuro” macularia
a pureza ariana – o estrangeiro, o outro, já estava dentro da casa e nela adentrou de
forma irremediável pelas vias do sangue judeu.
Vianna Moog compreendeu que o problema do outro e da relação conflituosa
que se estabelece entre os sujeitos não se resolve pelo enfrentamento das
101
diferenças, mas pelo desdobramento e descentramento da verdade preestabelecida
(BHABHA, 2005). O autor mostra que o outrem, o estranho que se revelou para
Marta, é a manifestação da invalidade de se querer defender uma identidade pura e
fechada.
Primo Otto chegara como um cataclismo que tudo destrói, transforma
e subverte. A revelação de que os Wolffs tinham sangue judeu
deixara Frau Marta de tal modo abalada que ela parecia ter
envelhecido muitos anos naqueles poucos dias. Já não mantinha a
mesma rigidez dos velhos tempos. Andava taciturna, perdera o ar
autoritário, a postura orgulhosa, já não gostava de dar ordens com
voz de comando. Frequentava ainda mais a igreja e, quanto à
Alemanha, ao arianismo e à pureza racial, ninguém lhe ouvira mais
nenhuma palavra. Não se pronunciara mais o nome de Geraldo
naquela casa (MOOG, 1973, p. 195).
Neste capítulo, portanto, analisou-se como a configuração do espaço de
Blumental, a partir da percepção do protagonista Geraldo, revela uma comunidade
de imigrantes e descendentes alemães que busca reatualizar e reviver a pátria
distante e há muito transformada em um ideal e imaginário, preservando sua
identidade e tornando mais suportáveis as mudanças e o estranhamento causado
pela imigração.
Desta perspectiva, Blumental representa simbolicamente a casa dos alemães.
Entretanto, mostrou-se que naquela fictícia cidade o sentimento de pertencimento ao
Estado alemão toma dimensões trágicas, resultando no seu isolamento e
preconceito em relação aos brasileiros.
O autor aponta, também, a invalidade de preconceitos e estereótipos, pois
nas novas gerações a sua permanência estava ameaçada: ainda que Lore e
Geraldo não tenham ficados juntos, visto que os preconceitos ainda prevalecem
sobre os laços afetivos e sociais, o amor entre ambos foi recíproco.
Embora exista na obra analisada o discurso opressor que se fixa sobre o
outro e o enclausura a estereótipos e a tradições ideológicas, Lore e Geraldo, bem
como o pequeno Paulchen – promessa de futura integração cultural – mostram o
espaço produtivo que se estabelece entre o eu e o outro, bem como a invalidade da
busca por uma identidade pura e fechada, que não contenha como condição de sua
própria existência as marcas do outro (BHABHA, 2005). Quando há encontros
culturais, todos os envolvidos são afetados “[...] pelas estranhas forças da raça, da
102
sexualidade, da violência, das diferenças culturais e até climáticas [...]” (BHABHA,
2005, p. 164).
A articulação social da diferença, por conseguinte, é uma negociação
complexa, que permite a emergência de hibridismos culturais em momentos de
transformação histórica (BHABHA, 2005, p. 21).
Na sequência, o capítulo quatro se aterá à análise do romance A ferro e fogo,
de Josué Guimarães.
103
4 ENTRE A RESISTÊNCIA E A RENDIÇÃO:
OS ALEMÃES EM A FERRO E
FOGO
Esta história começa com a chegada, no Rio Grande do Sul do
bergantim Protetor, em 1824, trazendo no seu precário bojo de
madeira 38 colonos alemães destinados à extinta Real Feitoria do
Lingo Cânhamo, no Faxinal da Courita, hoje São Leopoldo. Depois
deles, outros tomaram o mesmo caminho, trazidos a tanto por
cabeça, por um aventureiro internacional, o Major Jorge Antônio
Schaeffer. Muitos conseguiram sobreviver. Bem, mas então temos a
história de homens e mulheres em solidão que plantaram as suas
raízes, a ferro e a fogo, nas fronteiras movediças dominadas por
castelhanos, índios, tigres, caudilhos e portugueses (GUIMARÃES,
1972, p. 01).
É assim que Josué Guimarães inicia a trilogia inacabada – visto que o terceiro
volume, que seria sobre os Muckers, não foi concluído – A ferro e fogo I: tempo de
solidão (1972) e A ferro e fogo II: tempo de guerra (1975), sobre a temática da saga
da imigração alemã para o Rio Grande do Sul. O autor situa a narrativa inicialmente
em 1824, ano em que teve efetivamente início o processo migratório alemão para o
Brasil, com a fundação da colônia de São Leopoldo. A obra foi escrita em Portugal,
quando o autor estava exilado em razão do Golpe Militar no Brasil, de 1964, e narra
a trajetória da família de imigrantes alemães Daniel Abrahão Lauer Schneider e sua
esposa Catarina.
Nos moldes do romance histórico, a narrativa faz remissão a episódios reais,
como a Guerra Cisplatina (1825-1828), a Revolução Farroupilha (1835-1845) e a
Guerra do Paraguai (1864-1870). Entretanto, as referências a estes fatos históricos e
a outros fatos regionais e biográficos se dão com a liberdade de uma obra ficcional,
portanto, não têm compromisso factual com a história.
Josué Guimarães, ao situar a saga do imigrante alemão no Rio Grande do
Sul, busca criar no leitor a ilusão de tratar-se de uma história real. Sob a perspectiva
microcósmica do cotidiano da família do seleiro Daniel Abrahão Lauer Schneider, o
autor faz uma desconstrução do discurso historiográfico e literário sobre a temática
da imigração alemã. Para tanto, de maneira dialógica, vozes sociais diversificadas
104
se imbricam à narrativa com vistas a desconstruir qualquer visão ufanista tanto em
relação à nova terra quando ao país de origem dos protagonistas.
O escritor soube construir uma visão dialética da realidade, posto que funde
com muita propriedade as adversidades de uma região praticamente desabitada e
os conflitos do indivíduo em sua relação com o outro, com a sociedade e consigo
mesmo. A preocupação de Josué Guimarães, para além de dados históricos
regionais e da manutenção de um discurso estereotipado sobre o imigrante alemão,
está centrada no homem e na sua trágica existência. Tal como Simões Lopes Neto,
Josué Guimarães trabalha com a matéria regional, mas supera a ficção regionalista:
não tive maiores influências de autores gaúchos. Para citar alguns,
prefiro lembrar Graciliano Ramos, Machado de Assis e o próprio
Jorge Amado, pela temática popular. Além, é claro, dos grandes
nomes do romance francês, dos contemporâneos norte-americanos e
dos latino-americanos desse século [...]. Não posso me considerar
um escritor regional, meus temas giram em torno do homem, seus
conflitos e contradições: a paisagem quando existe, vale apenas para
dar acabamento à pintura. Minha linguagem não é gaúcha, esforço-me para que não seja, morei muitos anos fora daqui (GUIMARÃES,
2006, p. 13-14- grifo nosso).
Por conseguinte, o discurso literário de A ferro e fogo, ao se ater às relações
históricas e culturais entre o Brasil e outros países, neste caso, sobretudo a
Alemanha, traz uma importante contribuição para o processo de internacionalização
das tradições literárias brasileiras.
O caráter global da obra é evocado pela temática da dinâmica migratória, que
é uma das condições de definição sócio-histórica da humanidade, levando-se em
conta que “bem antes da expansão europeia [...] a migração e os deslocamentos
dos povos têm constituído mais a regra que a exceção, produzindo sociedades
étnica ou culturalmente ‘mistas’” (HALL, 2003, p. 55).
A trama de A ferro e fogo está pautada tanto nas dificuldades reais sobre o
início da imigração quanto nos conflitos entre o eu e o outro, muito diverso
culturalmente. Josué Guimarães resgata a saga do imigrante alemão para o Sul do
Brasil e confere lugar mais descentralizado – se comparado às obras Canaã e Um
rio imita o Reno, nas quais ora os imigrantes alemães são representados como
superiores pela raça, ora desprezíveis por serem germanófilos – às personagens
alemãs, cujas trajetórias oscilam entre exemplos de negação e preconceito, mas,
105
também, de enfrentamento das adversidades, de luta pela sobrevivência, de
coragem e de resistência face aos grandes desafios na nova terra.
Tal descentralização se opera, primeiramente, pelo fato de o romance se
situar espacialmente em uma zona de fronteiras movediças, cercada por diversos
grupos culturais em contato: índios, portugueses, castelhanos, negros e imigrantes
europeus. A ficcionalização de um espaço cultural e étnico tão diverso e conflitante é
um elemento fundamental em A ferro e fogo e ganha destaque durante um dos
principais momentos de deslocamento da família de Daniel Abrahão na narrativa,
isto é, de São Leopoldo rumo ao Chuí, na estância de Jerebatuba, uma vez que no
caminho percorrido entram em cena, por exemplo, soldados espanhóis. Esta
composição do espaço narrativo reforça a ideia de um território desprotegido em
suas fronteiras, isolado e sem dono, disputado pelas tropas brasileiras e castelhanas
pela delimitação da região.
Quanto mais perto da fronteira, mais cruzavam com espanhóis de
chiripa, pele queimada de sol, olhinhos espremidos de índio. Juanito
apontava para um lado e dizia soletrando as palavras “Lagoa Mirim”.
Apontava para o lado contrário e dizia “Lagoa Mangueira”. Então,
dizia Daniel Abrahão para a mulher, o mar não ficava bem ali. Mas o
cheiro que o vento trazia era de mar, se não ficava perto era coisa de
pouco além. As carroças prosseguiam inventando estradas pelos
campos (GUIMARÃES, 1972, p. 21).
Ao discutir sobre os traços identitários transnacionais, marcantes na cultura
do Rio Grande do Sul, Cicero Galeno Lopes (2010) aponta que a cultura gaúcha foi
se formando entre as linhas fronteiriças atuais da Argentina, do Brasil e do Uruguai.
O transnacionalismo se constitui na premissa principal para a recusa de definições
identitárias fechadas, já que o conceito “implica um processo segundo o qual
formações identitárias tradicionalmente circunscritas por fronteiras políticas e
geográficas vão além de fronteiras nacionais para produzir novas formações
identitárias. [...]” (PETERSON, 2008, p. 96 apud LOPES, 2010, p. 362).
De acordo com Gonzáles (2010), James Clifford, em Itinerarios transculturales
(1999), discute sobre a questão das fronteiras como forma particular de
deslocamento, pois, em zonas de contato, as identidades diaspóricas, fronteiriças e
híbridas “tendem a unir idiomas, tradições, imaginários, sempre de maneira criativa,
‘articulando pátrias em combate, forças da memória, estilos de transgressão, em
ambígua relação com as estruturas nacionais e transnacionais’” (GONZÁLES, 2010,
106
p. 112). Desta perspectiva, também Homi Bhabha (2005) ressalta que, enquanto
inovação teórica e importância política, é necessário “focalizar aqueles momentos ou
processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais. Esses ‘entrelugares’ fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação [...]
que dão início a novos signos de identidade...” (BHABHA, 2005, p. 20).
O que se quer afirmar, portanto, é a localização estratégica das personagens
de A ferro e fogo no espaço geográfico do pampa, transnacional, propício a trocas
culturais. A partir do momento em que Josué Guimarães olha esta região sob a
perspectiva das fronteiras territoriais, linguísticas e culturais que lhe são inerentes,
ele representa um modelo de nação interculturalizado.
Afora o espaço ficcional transnacional, a representação estereotipada e
fechada do imigrante alemão é deslocada através do caráter dialético que constitui
as personagens de A ferro e fogo, pois, com elas – sobretudo com Daniel Abrahão,
Catarina e Gründling – abre-se espaço para a “encenação de a que ponto de
penúria e grandeza podem chegar as sociedades e os homens na luta pela
sobrevivência dos sonhos, ideais e ambições mais dignos ou comezinhos”
(MARTINS, 1997, p. 46).
Gründling se aproxima muito do perfil de Lentz, de Canaã, e de Frau Marta,
de Um rio imita o Reno, por ser um sujeito emparedado a preconceitos raciais, e que
se mantinha no Brasil com o propósito explícito de exploração e de enriquecimento:
“[...] é preciso que a gente que vem da civilização abra bem os olhos e trate de
ganhar dinheiro. É o que importa, meu caro, ganhar dinheiro.” (GUIMARÃES, 1972,
p. 16).
O comportamento de Gründling em relação aos negros e aos índios é de
exclusão e frieza, visto que ele os descreve como “bastos” para o trabalho braçal e
os compara aos animais, reproduzindo o discurso socialmente construído que
buscou justificar a relação de opressão e exploração do colonizador europeu em
relação ao colonizado e do senhor em relação ao escravo: “digo a vocês agora que
Deus inventou o negro para derrubar mato, cavar terra e carregar água. Não há sol
que consiga queimar a sua pele, as patas e as mãos deles tem mais casco que
fazem inveja de quanta mula existe por aí [...].” (GUIMARÃES, 1972, p. 7). E
acrescenta: “para domar cavalo xucro, camperear, marcar boi, castrar bicho e servir
mate, que vocês pensam que o diabo inventou? [...] que para isso o diabo inventou o
índio, o bugre, que forma com o cavalo um só corpo...” (GUIMARÃES, 1972, p. 8).
107
Tal discurso respalda-se na ideologia colonial, cujo objetivo é “apresentar o
colonizado como uma população de tipos degenerados com base na origem racial
de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e
instrução” (BHABHA, 2005, p. 124). Tendo-se em vista o contexto histórico e social
representado por Josué Guimarães – quando a escravidão ainda estava totalmente
legitimada pelo discurso oficial nas colônias – as diferenças de raça, cor e cultura
são anuladas num processo automático de recusa por Gründling, que vê o índio e o
negro como animais. Estes traços remetem às relações que, desde o início do
“descobrimento do Novo Mundo”, foram estabelecidas e institucionalizadas pela
Europa em relação à América, definindo o que era civilização, cultura ou barbárie.
“No ‘novo’ mundo a atividade do descobrimento esteve, desde o início, ligada à da
conquista. Reconhecer o outro em sua estranheza era impensável”53 (RINKE, 2008,
p. 47 – grifo nosso).
Neste sentido, a fala de Gründling alude à posse violenta da terra e à
submissão dos índios ao colonizador. Posteriormente, também os negros foram
trazidos para a América e submetidos a tal jugo por um processo de escravidão
totalmente distinto daquele que imperara até então. Ao se afirmar a incapacidade
racial e cultural dos “selvagens” e dos negros escravos, está-se afirmando que eles
não têm o direito de possuir a terra, tampouco alçam à plena condição humana.
O discurso de Gründling, ao se referir à cultura local brasileira como bárbara,
diz respeito à questão da sobrevivência cultural e racial em que, conforme afirma
Bellei (2000, p. 129) em outro contexto, “se torna imperativo ativar narrativas que
venham atender ao desejo branco de autoafirmação”. Apenas recentemente é que a
análise crítica e desconstrucionista do discurso eurocêntrico encontrou lugar de
destaque, principalmente com o estudo de Edward W. Said sobre o orientalismo
enquanto construção do discurso ocidental, uma vez que “como parte da história da
colonização, a história dos não europeus foi explicada como a de ‘povos sem
cultura’”54 (RINKE, 2008, p. 45).
Josué Guimarães se atém a vários aspectos do processo de transferência
cultural dos grupos de imigrantes com a cultura local, como mostra a assimilação do
hábito do chimarrão, do churrasco e do charque pelos alemães, como exemplifica a
Tradução: “In der ‘neuen’ Welt war die Aktivität des Entdeckens des Fremden von Beginn an mit der
des Eroberns verbunden. Das Andere in seiner Fremdheit anzuerkennen war undenkbar“.
54 Tradução: “als integraler Bestandteil der Kolonisierung wurde die Geschichte der nicht
europäischen ‚Völkern ohne Geschichte‘ erklärt”.
53
108
fala de Catarina: “Queres alguma coisa mais? - Unglaubich55, mas sinto vontade de
tomar um mate. A gente se acostuma com tudo. Minutos depois Catarina fazia
descer no balde uma cuia já preparada e uma pequena chaleira de água quente...”
(GUIMARÃES, 1972, p. 43).
Através de tais exemplos o autor mostra como a necessidade de
sobrevivência, a despeito das diversidades culturais, acaba por atenuar as fronteiras
e diferenças sociais e culturais que separa alemães, índios, negros e castelhanos.
Ou seja, para parte dos imigrantes, estas barreiras são transponíveis e as diferenças
não são absolutas. Isto indica que a distância que se estabelece entre o eu e o
outro, o alemão e o índio não é demarcada tão somente pelas suas diferenças
étnicas e culturais, uma vez que é por meio do movimento de aproximação e de
familiarização que o outro perde aos nossos olhos sua estranheza: “a relação entre
o familiar e o estranho é determinada pela dinâmica distância e aproximação”56
(BOSSE, 2013, p. 69).
Além disso, não são todos os imigrantes que têm a visão ideológica de
Gründling, como exemplificava a relação de amizade entre Catarina e o índio Juanito
– que lhe foi “dado” por Gründling quando ela e o marido se mudaram de São
Leopoldo para a Estância de Jerebatuba – cuja convivência é harmônica e de
aceitação.
No entanto, deve-se destacar que, da perspectiva de Catarina, sua relação
com Juanito está claramente pautada na visão de que a cultura indígena não possui
história própria ou religião, pois Juanito, ao se integrar à família Schneider, é
cooptado pela visão eurocêntrica dos alemães. Tanto é assim que ele e sua
companheira, para serem plenamente aceitos pela família, precisaram casar-se,
portanto, tornarem-se cristãos. Catarina “havia levado Juanito até o padre da
paróquia de Santa Vitória e lá tratara de fazer o casamento com Ceji, passando o
índio e a mulher a formar um novo casal Schneider, que era preciso um sobrenome
cristão” (GUIMARÃES, 1972, p. 115).
Esta passagem não é, apenas, uma convenção, mas – pelo menos da
perspectiva de Catarina – uma mudança de condição de gentio a “civilizado” que
deve prevalecer, inclusive, na morte, como atesta a postura de Catarina no enterro
55
Tradução: Inacreditável.
Tradução: “die Relation zwischen Vertrautem und Fremdem ist bestimmt durch die Dynamik
zwischen Distanz und verstehender Annäherung“.
56
109
de Ceji. Trata-se de uma transferência cultural em que a cultura dominante “A”
transfere parte de seus costumes, crenças e tradições para a cultura “B”, sem que o
processo inverso ocorra.
Quero enterro de cristão para ela – disse Catarina. O Pastor
Klinglhöefer quis saber se ela era batizada. Não importa, disse
Catarina, mesmo não batizada ela será enterrada como cristã.
Sofrera muito, era de bom sentimento, quem dera que muito cristão
fosse como a indiazinha. [...] Bem-aventurados os mortos que desde
agora morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que descansem
das suas fadigas, pois as suas obras os acompanham. O reverendo
não conseguiu, naquele instante, imaginar quais as obras que um
gentio poderia levar para a eternidade; as obras da indiazinha eram
tão fracas para serem notadas pelo Senhor (GUIMARÃES, 1972, p.
199-200 – grifo nosso).
O ritual cristão e ocidental é imposto como pré-requisito para o
reconhecimento do homem bom e civilizado. Até porque, embora a imigração de
alemães para o Brasil tenha uma de suas origens na crise econômica europeia, por
outro lado, a sua relação com a nova terra foi, também, a de agente civilizador e
conquistador.
As tradições e crenças indígenas não são, portanto, reconhecidas e aceitas
pelo discurso oficializado, que se respalda numa ideologia eurocêntrica e hierárquica
de sociedade. Tal nível ideológico evidencia-se pelo casamento entre o abastado
Gründling e Sofia Spannenberger, uma jovem alemã órfã, abandonada, violentada e
miserável – que muito se aproxima das condições de Maria Perutz, de Canaã – que,
apesar de sua condição econômica, social e moral degradante, é branca e alemã, ou
seja, ela se equipara a Gründling, ao contrário dos negros, índios e demais
habitantes que não os imigrantes.
[Sofia Spannenberger] viera de São Borja para onde a família fora
levada dos Sete Povos das Missões. Seu pai, Spannenberger,
morrera degolado por gente de guerra. A mãe desaparecera e ela
fora carregada por um gaúcho de quem não sabia o nome. Depois
um outro homem ficara com ela, andando de povoado em povoado.
Um dia fora deixada na casa de um velho e lá morara muito tempo.
Não sabia quanto tempo. O velho morrera assassinado e um rapaz
de nome Pedro ficara com ela e depois os índios o mataram e ela
ficou vivendo entre os índios – um mês, um ano, não sabia bem;
como os bugres andavam em guerra conseguira fugir até ser
encontrada por um outro homem de melenas grandes e pretas, para
quem trabalhava e com quem dormia... (GUIMARÃES, 1972, p. 72).
110
Entretanto, retoma-se aqui novamente a ideia da perspectiva descentralizada
que as personagens ocupam em A ferro e fogo, porque elas não são representadas
apenas sob este viés negativo citado.
Veja-se primeiramente que, em vista das condições de miséria em parte da
Europa entre os anos de 1816/17, a América foi celebrada – também por escritores
alemães como Goethe57 e outros – como o “novo mundo” de esperança, de
liberdade religiosa, de tolerância, com melhores condições de vida, enfim, de
recomeço.
Além do trabalho de propaganda realizado por agentes, os alemães eram
influenciados por amigos, parentes e conhecidos que já haviam atravessado o
oceano e relatavam, através de cartas, sobre as vantagens de sair da Europa e
recomeçar a vida no Brasil.
No jornal Allgemeine Auswanderungszeitung, de 1859, nº37 (Anexo XIX),
encontra-se a publicação de uma carta escrita na Colônia Santa Izabel, no Espírito
Santo, na qual o autor confirma a existência de muito trabalho nas colônias alemãs
do Brasil, ressaltando que as pessoas que lá vivem têm motivos para estarem
satisfeitas. Dever-se-ia tributar àqueles que estavam insatisfeitos a responsabilidade
por tal insatisfação, que adviria da falta de vontade para o trabalho, afirma o autor,
pois sem trabalho e esforço não se alcança nem no Brasil, nem em qualquer outra
parte do mundo uma propriedade, sendo que o grande erro dos agentes europeus
seria o de mandarem pessoas para a América que não podem e muito menos
querem trabalhar.
A carta provoca o efeito de sentido desejado no leitor: encoraja-o ao trabalho,
à luta e à construção de seu futuro em outras terras que devem ser cultivadas por
imigrantes. Tal efeito se potencializa ainda mais quando dados concretos sobre a
produção e os resultados das colônias alemãs são publicados na Alemanha. O
Allgemeine Auswanderungszeitung (1859, nº5) (Anexo XX) publicou uma matéria
cujo objetivo era descrever e compartilhar com os alemães os resultados já
alcançados na colônia de São Leopoldo. A partir de dados fornecidos pelo governo
municipal de São Leopoldo, o autor afirma que – embora isso não tenha ocorrido
O nome “Brasil” apareceu pela primeira vez em 23 de dezembro de 1814 no diário de Goethe, cujo
interesse maior eram os estudos botânicos, a mineralogia e geologia. O mais famoso poema de
Goethe sobre a emigração está no romance Wilhelm Meisters Wanderjahren. O poema, segundo
Neumann (2004), não foi escrito especificamente para o contexto imigratório, mas traz a
representação da temática da emigração alemã (NEUMANN, 2004, p. 173).
57
111
imediatamente: todos os colonos já possuíam suas terras demarcadas e que a
diversidade industrial e manufatureira permitiu, no ano anterior (1858), a exportação
de 25.000 sacas de feijão, 25.000 sacas de aveia, 16.000 sacas de farinha de
mandioca, 17.416 sacas de batata, 42 pipas de cachaça, 375 sacas de trigo, 25.000
frangos, 50.000 dúzias de ovos, 366 arrobas de manteiga e 3.780 arrobas de bacon.
Além disso, o autor cita o número de lojas de alfaiates, casas comerciais, moinhos
de cereais, ou seja, o crescimento da indústria e do comércio de São Leopoldo.
Portanto, o que se percebe é que a imigração alemã para o Brasil é
apresentada como uma escolha vantajosa, que exige, apenas, o trabalho e o esforço
daquele que quer e precisa encontrar novas alternativas de sobrevivência fora da
Europa. Nesse sentido, é muito pertinente a escolha do título do romance A ferro e
fogo, pois este prenuncia as adversidades e a superação dos primeiros imigrantes. A
despeito das grandes adversidades iniciais, estas foram muitas vezes sublimadas.
Por outro lado, o discurso sobre o trabalho do imigrante adquiriu, ao longo do tempo,
caráter ufanista, passando a ser associado à figura do desbravador, ou seja, aquele
que “doma” a selvageria da terra ainda não explorada, que vence os obstáculos e
inicia uma civilização.
No entanto, a grande maioria dos imigrantes não estava preparada para
enfrentar as dificuldades que a vida no Brasil implicava. Como se lê na carta em
anexo
(Anexo
XXI),
publicada
no
ano
de
1858
no
Jornal
Allgemeine
Auswanderungszeitung, nº 1, na Alemanha, a imigração alemã para a província do
Rio Grande do Sul seria recomendável, apenas, àquelas pessoas que realmente
padecessem de miséria na Alemanha e que estivessem acostumadas ao trabalho
braçal pesado. Às outras, recomenda o autor, seria melhor ficarem onde estavam.
As dificuldades tinham início durante a viagem para a América, que era
realizada sem as mínimas condições de conforto e de higiene, provocando a morte
de muitos imigrantes. “Nos breves momentos de sono profundo sonhava sempre
com o São Francisco de Paulo, durante aqueles meses de mar. Voltava ao nariz,
forte e acre, o fedor dos porões superlotados, as noites de amor coletivo...”
(GUIMARÃES, 1972, p. 47).
As péssimas condições de viagem se tornaram traumáticas para os
imigrantes, como relembra Catarina ao seu esposo Daniel que, como muitos outros
imigrantes, buscava na bebida esquecer o sofrimento e a decepção: “atravessar
todo o oceano nos porões de um navio-gaiola, feito bicho ou negro escravo, para
112
enfiar nas bebedeiras em vez de amanhar a terra, plantar, colher, encher a burra –
isso não era próprio de um Lauer Schneider” (GUIMARÃES, 1972, p. 11). Henker
(2009, p. 108) comenta que „nos navios de carga foi puxado um convés, em cujo
espaço apertado e sem suficiente ventilação a massa de emigrantes foi acomodada.
A falta de higiene e a má alimentação custaram a vida de muitos emigrantes”
58
(Anexo XXII).
Depois da viagem, a vida daqueles que conseguiram chegar ao seu destino
final, neste caso, a região Sul do Brasil, foi marcada pelo abandono do governo. Em
Die Deutsche Einwanderung nach Südbrasilien bis zum Jahre 1859 – A imigração
alemã para o Brasil até o ano de 1859 – Ferdinand Schröder (1930, p. 32) cita um
exemplo das promessas feitas pelo império brasileiro para os imigrantes. Trata-se do
contrato mais antigo, assinado por D. João VI, em 1818, para a colônia Nova
Friburgo, no Rio de Janeiro. Naturalmente, depois disso as condições oferecidas aos
imigrantes passaram por constantes modificações.
Viagens marítimas e terrestres gratuitas para o Brasil; uma área de
terra com uma casa provisória de graça; para uma família com 3-4
cabeças, um boi ou cavalo para criação, duas vacas leiteiras, quatro
ovelhas, duas cabras, dois porcos, sementes de trigo, feijão, arroz,
milho, linho, cânhamo, óleo de rícino (óleo combustível); a famílias
maiores correspondia mais. Para a subsistência no primeiro ano, por
cabeça e por dia, 160 Reis, no segundo ano 80 Reis; os emigrantes
deveriam trazer um cirurgião e um farmacêutico junto, também 2-4
clérigos, que deveriam servir como os brasileiros. Para a construção
e equipamento da capela-mor na praça da cidade, o rei teria se
comprometido59.
O império brasileiro não cumpriu, ao menos não de imediato, o que
assegurava o regulamento imigratório da época, de modo que a citação acima não
condiz com a realidade da família de Daniel Abrahão, ficionalizada por Josué
Guimarães, que aguardava ao lado de outros alemães o recebimento de sementes,
ferramentas, animais e terras: “Há mais de um ano que não vemos a cor do dinheiro
“in die Frachtschiffe wurde ein Zwischendeck eingezogen, in dem fortan die Masse der
Einwanderer auf engstem Raum und ohne hinreichende Belüftung befördert wurde. Unzureichende
Hygiene und die schlechte Verpflegung kosteten vielen Auswanderern das Leben“.
59 Tradução: „freie See- und Ueberlandreise in Brasilien;ein freies Stück Land mit vorläufigem Haus;
für eine Familie mit 3-4 Köpfchen ein Ochse oder Pferd zum Zug, zwei Milchkühe, vier Schafe, zwei
Ziegen, zwei Schweine, Samen von Weizen, Bohnen, Reis, Mais, Lein, Hanf, Ricinusöl (zu Brennöl),
Grössere Familien entsprechend mehr. Zum Unterhalt im ersten Jahr pro Kopf und Tag 160 Reis, im
zweiten Jahr 80 Reis; die Einwanderer einen Wundarzt und Apotheker mitbringen, ferner 2-4
Geistliche, die wie die brasilianischen gestellt werden sollten. Für den Bau und die Ausstattung der
Hauptkapelle am Statplatz wollte der König sorgen”.
58Tradução:
113
que nos foi prometido na Alemanha. Queremos a demarcação das terras, até hoje
adiada para a próxima semana, que nunca chega. Queremos os animais domésticos
que constam dos nossos contratos...” (GUIMARÃES, 1972, p. 172).
Outro problema enfrentado pelos alemães que Josué Guimarães recupera é a
forçada participação dos mesmos em revoluções em defesa do Brasil, levando-os a
lutarem por um país do qual, de fato, ainda não faziam parte e em nome de causas
que desconheciam.
trinta e sete colonos [alemães] marchariam como voluntários para os
campos de batalha. O presidente achou pouco. Finalmente havia
cinquenta deles, treze dos quais no laço, arrancadas das suas mãos
as enxadas e colocadas no lugar delas velhas espingardas de
carregar pela boca. [...] Eles não entendiam as ordens dadas em
português. Meia-volta-volver, eles parados, vendo primeiro o que os
outros faziam [...] Recebiam ordens e não cumpriam. Como castigo,
vinte chibatadas no lombo, na frente das tropas (GUIMARÃES, 1972,
p. 53).
Portanto, Josué Guimarães se refere às adversidades enfrentadas no Novo
Mundo ao mostrar que o estabelecimento de imigrantes no Brasil se deu a ferro e a
fogo. Nesse sentido, pode-se dizer que A ferro e fogo é uma narrativa de resistência,
uma obra contra o discurso pejorativo e estereotipado sobre este estrangeiro. Tal
resistência se percebe, por exemplo, através da ironia, do tom satírico do narrador
ao descrever as primeiras impressões que a nova pátria causara nos imigrantes:
uma realidade sem volta.
[...] os pretos largando o trabalho para olhar espantados aquela leva
de gente branca como leite, o vento pampeiro varrendo os telhados,
a rua principal atravancada de feirantes. A mesma conversa da nova
pátria, os irmãos chegando, aqui vai ser o nosso lar. E aqueles
horrendos pretos de olhos de gato, caras ferozes, entre eles índios
bravios, cabelos compridos, negros e estorricados. À noite, na certa,
andariam de arcos e flechas, tacapes e azagaias. Bem-vindo à terra
da fartura. Semente cuspida, no outro dia o broto furando o chão, o
arbusto verde e gordo, a árvore. O povaréu formando alas, gaúchos
mirando os recém-chegados do alto dos seus cavalos, os soldados
molambentos e a mão macia do senhor presidente. [...] Daniel
Abrahão experimentando o chimarrão dos outros, a cuia e a mesma
bombilha de boca em boca [...] Só então se apercebiam de que o
Novo Mundo começava a ficar irreversível (GUIMARÃES, 1972, p. 10
– grifo nosso).
114
A família de Daniel Abrahão foi submetida a contingências trágicas como
estas destacadas, que rompem, de forma cruenta, com o desejo de ascendência
econômica e social e que trazem à cena a imagem do imigrante alemão também,
como vítima desse contexto. Conforme analisa Gerson Neumann em Brasilien ist
nicht weit von hier! (2004), „os emigrantes alemães pertencem aos pioneiros da
emigração no Brasil [...] e a todos os problemas iniciais que lhe fazem parte:
interesses políticos e pessoais, financeiros, culturais, e – para não esquecer – as
dificuldades climáticas60“.
As condições de sobrevivência da família de Daniel Abrahão no Brasil eram
miseráveis, o que os levou a aceitar a proposta de trabalho de seu conterrâneo
Gründling, o abastado comerciante, amigo do Major Jorge Antonio Schaeffer,
instalado em Porto Alegre, que lhes ofereceu terras na Estância de Jerebatuba, em
troca de receber e armazenar mercadorias. “A terra da zona da Feitoria era pocilga
para negro, e até então só negro vivera ali, muito justo, o que não tinha explicação
era ele, um Schneider, mais a mulher e o filho, confinados naquele estábulo, bem
que mereciam um destino melhor” (GUIMARÃES, 1972, p. 13).
Daniel Abrahão e Catarina fugiram de São Leopoldo, mas depois descobriram
que foram enganados, pois as mercadorias eram armas contrabandeadas da Banda
Oriental, em um momento conturbado de guerra entre Brasil e Argentina pela posse
da Província Cisplatina – atual Uruguai (HUNSCHE, 1977). Assim, quando a tropa
castelhana invade a fazenda dos alemães, Catarina esconde seu marido dentro de
um poço, onde a personagem permanecerá durante anos para não ser morta pelos
soldados brasileiros e/ou castelhanos: “no meio deles, entre eles, esmagado por
eles, o velho poço com Daniel Abrahão prisioneiro, entocado, já conhecendo gringos
e brasileiros pelo pipocar surdo das patas dos cavalos” (GUIMARÃES, 1972, p. 46).
Nesse sentido, a imigração de alemães para o Brasil passa a ser
representada enquanto experiência traumática, dado o surto psicótico provocado em
Daniel Abrahão por causa da violência à qual ele e sua família foram expostos.
O que se quis mostrar até aqui é que a forma descentralizada de Josué
Guimarães representar o imigrante alemão se dá por meio do espaço no romance,
situado em um território fronteiriço e aberto às relações transculturais, e das
60
Tradução: "die deutsche Immigranten gehören zu den Pioneren der Einwanderung in Brasilien [...]
mit allen Anfangsschwierigkeiten, die dazu gehören: Politische und persönliche Interessen, finanzielle,
Kulturelle, und – nicht zu vergessen – klimatische Schwierigkeiten“.
115
personagens que não são totalmente más ou boas, fechadas ou abertas à interação,
mas transitam entre os extremos do paradoxo humano: se Gründling reproduz a
imagem do colonizador muito bem sucedido, Daniel Abrahão, inversamente, traz à
tona a figura do colonizado. Além de abordar um tema cujo discurso já é global, a
ficção de Josué Guimarães contempla um sentido universal ao ter sempre em vista a
natureza humana, ou seja, a solidão e a fragilidade do homem diante da vida para
além de qualquer diferença.
Partindo desta perspectiva, o próximo tópico centra-se na análise das
consequências provocadas pela imigração em Daniel Abrahão, isto é, como as
adversidades encontradas no Brasil provocam um desdobramento psicológico na
personagem, transfigurando-a em um duplo estrangeiro: enquanto alemão que
emigrou para outro país e enquanto desconhecido de si mesmo (KRISTEVA, 1994).
Em consonância com Bhabha (2005, p. 36), “talvez possamos agora sugerir que
histórias transnacionais de migrantes, colonizados ou refugiados políticos – essas
condições de fronteira e divisas – possam ser o terreno da literatura mundial, em
lugar da transmissão de tradições nacionais...”.
4.1 DE IMIGRANTE A BICHO DO POÇO: A METAMORFOSE DE DANIEL
ABRAHÃO LAUER SCHNEIDER
Enquanto componente de um universo ficcional, a personagem Daniel
Abrahão Lauer Schneider é reprodução e invenção, porque a personagem, de modo
geral, não corresponde a um retrato mimético da realidade: ela distorce, reinventa e
traz à cena múltiplos ângulos dessa realidade (BRAIT, 1985). Isto acontece devido
ao fato já apontado na Poética de Aristóteles, de que a personagem implica o reflexo
da pessoa humana, mas, também dela se desvencilha ao constituir um signo, uma
instância da linguagem, um elemento específico do texto ficcional que está de
acordo com a verossimilhança interna da obra, não estando, portanto, sujeita ao
modelo humano social.
Partindo da pergunta de Beth Brait “de onde vêm esses seres”, Moacir J.
Scliar respondeu que:
os personagens vêm da imaginação do escritor. De muitos lugares,
isto é certo. Da infância. Do dia-a-dia. De um encontro casual na rua.
De uma foto ou notícia de jornal. Das páginas da História. De um
116
sonho ou de um pesadelo. De uma associação de ideias. De um
desejo de se auto-retratar [...] mas isso se refere à origem mais
remota. Em última análise, os personagens de ficção vêm da
imaginação do escritor. Não é a capacidade de bem retratar que faz
um escritor de ficção, mas sim a capacidade de imaginar
personagens e de criar situações... (SCLIAR apud BRAIT, 1985, p.
84-85).
A transcrição de parte do depoimento de Moacir J. Scliar não é gratuita, com
ela quer se chegar à questão do lócus de enunciação da personagem citada, ou
seja, de onde ela fala no texto literário, que é seu espaço de existência. O lugar de
enunciação de Daniel Abrahão está entre o deslocamento e a fixação do imigrante,
cuja experiência complexa de perdas e ganhos o interpõe entre a terra matricial e a
terra de acolhida, a memória e o esquecimento, o passado e o presente.
A temática da errância, da migração, do nomadismo e do exílio foi moldada
pela história e pela literatura, começando com a narrativa bíblica, que registrou o
êxodo de um povo em busca da terra prometida. Entretanto, o que deve ser frisado é
a ambivalência presente em todas as variedades de deslocamento, porque ele
implica, além do movimento exterior e físico, a mudança ontológica e interior, que diz
respeito ao estrangeiro que nos habita, à alteridade e às subjetividades do sujeito:
daí decorre a ambivalência da imagem da errância: positiva, como
aventura voluntariamente assumida que, em algumas narrativas pósmodernas, evolui no sentido de desterritorialização de
pertencimentos, como viagem iniciada à descoberta de si mesmo e
dos outros; negativa como desenraizamento involuntário, enfocando
a violência das travessias impostas de territórios, representadas
pelas figuras do imigrante, do refugiado, do exilado, do marginal,
errantes excluídos (OLIVIERI-GODET, 2010, p. 189).
Talvez seja a partir deste deslocamento ontológico que desestabiliza o eu,
que se deve começar a analisar a personagem Daniel Abrahão. Ele não é, apenas,
um sujeito que sai do seu país, mas aquele que rompe com suas raízes em busca
“desse território invisível e prometido, desse país que não existe mas que ele traz no
seu sonho e que deve realmente ser chamado de um além” (KRISTEVA, 1994, p.
13). Em anexo (Anexo XXIII), a obra de arte de Antonie Volkman, Despedida dos
emigrantes61, de 1860, exposta no museu Deutsches Historisches Museum de
61
Tradução: Abschied der Auswanderer.
117
Berlin, traz à cena a melancolia e o sofrimento causado pela despedida da terra
natal.
De acordo com a análise da obra Estrangeiro para nós mesmos (1994), de
Kristeva, embora influenciado por uma lógica edênica de imigração, a solidão e a
rejeição no país estrangeiro reportam Daniel Abrahão ao que já lhe é inacessível: o
retorno. Nesse sentido, a imigração da personagem a comprime entre a coragem de
desprender-se de suas origens e raízes, e a humilhação no país estrangeiro, que a
deixa à mercê da sorte, sem dinheiro e sem possibilidade de trabalho, onde a
igualam – e a tornam – um animal, uma toupeira.
À noite, sonhava com o cheiro de pão fresco da Europa, com o
perfume das cucas açucaradas, com a fritura das grossas salsichas e
do chucrute conservado na vinha d’alhos. De madrugada, estrelas
ainda no céu, enquanto enfiava as botinas de sola de madeira, jurava
para si mesmo que um dia, um dia não muito distante, ainda plantaria
sementes de trigo na sua terra, terra de papel passado, e das
sementes tiraria a farinha. Catarina e Philipp comeriam com ele o
pão, um cesto deles, com o mesmo aroma que teimava em não
esquecer. Que as barrigas estourassem de tanto prazer. Catarina,
tenho pensado no nosso pão da Alemanha, nas cucas estufadas
extravasando das formas. Sonhei com Jesus multiplicando os pães
(GUIMARÃES, 1972, p. 11 – grifo nosso).
O fato de Daniel Abrahão não esquecer o gosto dos pães da Alemanha e
querer produzir trigo para dele fazer o mesmo pão é representativo do seu entre-lugar no mundo, uma vez que a personagem está entre a pátria perdida e a
frustação de um sonho não alcançado. E assim, „o que no início era condição
necessária para sobreviver, com o tempo transforma-se em uma reminiscência
nostálgica à cultura dos antepassados62” (HENKER, 2009, p. 119).
A problemática da migração, dos deslocamentos culturais e do confronto com
a alteridade, ao colocar o sujeito em confronto com outros mundos, reaviva o
sentimento de pertencimento, que é reconstruído através da memória. Esta
reatualiza o território de origem, o cotidiano do país natal e as tradições, mas, por
outro lado, idealiza o passado em face da realidade que se oferece a seus olhos: “a
nostalgia do país de origem é uma armadilha da memória afetiva que captura o
sujeito num passado imóvel que lhe dá segurança” (OLIVIERI-GODET, 2010, p.
204).
Tradução: “was in den Anfängen noch notwendige Voraussetzung für das überleben war, wandelte
sich im Lauf der Zeit in eine nostalgische Reminiszenz an die Kultur der Vorfahren“.
62
118
A saudade da personagem traz à cena as relações subjetivas e afetivas
presentes na vida do migrante, o que é humanamente natural, sobretudo quando se
tem em vista que, pelo menos até o início do século XX, para a maioria dos pobres,
a despedida da pátria significava uma despedida para sempre. “Para visitas mútuas
a viagem era - ao menos no século XIX - muito cara e penosa. Nas canções de
despedida [os alemães] muitas vezes expressam a decepção e a raiva sobre as
condições sociais e políticas, que os forçaram a emigrar”63 (HENKER, 2009, p. 105).
Também para as primeiras gerações de descendentes dos imigrantes
alemães estabelecidos no Brasil, a saudade da terra matricial parece ter sido um dos
traços mais recorrentes, como mostra o poema “Ich habe Heimweh, Mutter”,
publicado no Brasil em 1935, no calendário Kalender für das Deutschtum in Brasilien
(Anexo XXIV). Nele o eu lírico evoca a Mutter64 para dar vazão à sua Heimweh65, ou
seja, sua saudade de casa, como um filho que é arrancado dos braços de sua mãe,
mas que se mantém ligado a ela pelos fortes vínculos afetivos e de pertencimento.
A imigração leva à conscientização da pluralidade cultural, tornando-se, desta
perspectiva, uma experiência positiva. Josué Guimarães desenvolve uma reflexão
diferente sobre a problemática migratória, assumindo uma postura crítica em relação
à visão que escamoteia a experiência dolorosa e traumática do sujeito migrante,
pois, apesar de o imigrante ser significativo/representativo para o discurso do entrelugar, desconsidera-se que ele, muitas vezes, não habita lugar nenhum social e
psiquicamente.
Olivieri-Godet (2010), ao se ater ao ensaio Réflexions sur l’exil, de Edward
Said, afirma que a cultura moderna elegeu a migração, o exílio e a errância como
temas enriquecedores, banalizando as mutilações causadas às vítimas. De acordo
com a leitura da autora, se a dimensão estética de tais temáticas fascina, ela não
pode apagar a experiência trágica de deslocamentos abruptos e violentos de
populações: “a dimensão estética do exílio não apaga a angústia, o sofrimento da
perda, o horror a que estão sujeitas as massas humanas expatriadas, desenraizadas
em nosso tempo” (OLIVIERI-GODET, 2010, p. 196-197).
“Für gegenseitige Besuche war – zumindest im 19. Jahrhundert – die Reise zu teuer und
zu beschwerlich. In den Abschiedslidern drücken sich oft Enttäuschung und Zorn auf die sozialen und
politische Verhältnisse aus, die zur Auswanderung zwingen“.
64 Tradução: mãe.
65 Tradução: saudades de casa, do lar ou pátria.
63Tradução:
119
Para além de descrever a saga dessa imigração, Josué Guimarães denuncia
a condição trágica de miséria, violência e abandono de tais estrangeiros, numa
conturbada época de revoluções, conflitos e lutas pela demarcação de fronteiras
nacionais. Como afirma Octavio Paz, em Signos em rotação (1996, p. 126), “uma
literatura nasce sempre frente a uma realidade histórica e, frequentemente, contra
essa realidade”.
Dessa forma, Josué Guimarães trabalha com muita propriedade a passagem
de uma concepção utópica de superioridade germânica para a “dimensão do
precário que retira da saga a sanha da valentia e da virilidade grandiloquentes”
(HELENA, 1997, p. 49):
Daniel Abrahão sabia que não adiantava reclamar. O capataz não
entendia uma palavra de alemão. E quando desconfiava, pelos
gestos e pelas caras, que eles estavam dizendo algum palavrão,
ameaçava-os com o chicote ou com os punhos; sem ir além, pois
que não eram escravos, mas loiros patrícios de Dona Leopoldina,
embora pagos como os negros, a tanto por cabeça (GUIMARÃES,
1972, p. 11).
A personagem Daniel Abrahão é emblemática desta passagem de uma
concepção utópica de povo “superior” para a de igualdade entre as culturas que,
apesar de suas diferenças, têm as mesmas necessidades. Isto porque a resistência
de Daniel Abrahão não é pela aceitação da outra cultura, no caso, a brasileira, mas
em relação à violência e à iminência da morte.
Graças aos cuidados da mulher Catarina, Daniel se escondeu num poço para
não ser morto pelos soldados, ora castelhanos ora brasileiros. Entretanto, de
esconderijo o poço se transformou na morada definitiva para a personagem, que
passa por um processo gradativo de despersonalização e de loucura, dado o tão
humano medo do homem em relação à morte, e à tortura psicológica ao
assistir/ouvir impotente ao sofrimento da família, sobretudo, o de sua mulher sendo
violentada por soldados.
Daniel Abrahão aperfeiçoou a toca de maneira a passar nela o resto
da vida. Gostava da sua solidão, muito mais do que das vezes em
que era chamado para sair do poço, nas breves e inesperadas
ausências de soldados. Estava numa terra de ninguém, espremido
por dois inimigos, ambos querendo o seu pescoço para ornar um
galho de árvore ou sua carótida [...]. Acostumara-se à escuridão. Ela
era a mãe dos seus devaneios. A luz do dia feria os seus olhos
congestionados e sensíveis, mesmo ao cair da tarde, quando não
120
havia mais sol no céu. Numa furna onde quase não conseguia
sentar-se, ganhava uma sensação de segurança que lhe escapava
quando sobre a terra. O horizonte livre e infinito representava para
ele um constante perigo. O céu aberto, as nuvens e o próprio vento,
podia ser uma leve brisa, passaram a ser uma permanente ameaça.
A amplidão era a sua cadeia. Liberdade, para Schneider, deveria ter,
para ser completa, uma tampa rústica de tábuas; sobre ela, ainda,
pedras e lenha (GUIMARÃES, 1972, p. 96 – grifo nosso).
Para além do território fronteiriço habitado, o poço se torna uma alegoria da
passagem intersticial, um local excêntrico, deslocado e intermediário, que interliga o
presente a um mundo desconhecido, e que permite à personagem Daniel Abrahão
residir onde ninguém mais reside.
A submersão cada vez mais profunda do imigrante nas profundezas do poço
e de si mesmo é, simbolicamente parte de uma tarefa revisionária, porque a cada
retorno à superfície – o presente – a personagem reestabelece a ordem do mundo,
pois se nega a aceitá-la tal qual ela é (BHABHA, 2005). Como explica Bhabha
(2005, p. 28 – grifo nosso), “residir ‘no além’ é [...] ser parte de um tempo
revisionário, um retorno ao presente para reescrever nossa contemporaneidade
cultural; [...] o espaço intermediário ‘além’ torna-se um espaço de intervenção no
aqui e no agora”.
Tendo em vista o espaço fronteiriço no romance A ferro e fogo, o poço no
qual Daniel Abrahão reside passa a ser, então, uma fronteira dentro da fronteira,
este espaço torna-se uma alegoria de crítica e de denúncia das mazelas sociais.
Dado que as “formas de existência social e psíquica podem ser melhor
representadas na tênue sobrevivência da própria linguagem literária, que permite à
memória falar” (BHABHA, 2005, p. 34), é como se as experiências traumáticas e
conflituosas advindas com a imigração emergissem do buraco, trazendo à tona as
vozes esquecidas e não representadas do passado.
Isso é muito importante de ser percebido, porque a linguagem alegórica à
qual se está referindo é oriunda da imaginação criadora de Josué Guimarães e está
presente em quase toda a obra ficcional do escritor, sendo Os tambores silenciosos
o exemplo melhor arrematado. Quando um autor está engajado em resgatar
ficcionalmente aquilo que comumente os livros de história sonegam, a linguagem
alegórica funciona como um dos principais instrumentos de conscientização das
adversidades. O poço é a imagem discursiva que dá voz ao silêncio de Daniel
Abrahão, é uma forma de expressão do acontecimento histórico da imigração alemã
121
para o Brasil, visto como instância externa – política, social e governamental – mas
também interna, ou seja, subjetiva.
Segundo a teoria de Walter Benjamin (1984), a alegoria revela sempre novas
possibilidades de significação, porque há uma arbitrariedade entre o significante e o
significado, ao contrário do símbolo. O exercício de ressignificação vem a ser o
trabalho do alegorista, que vê na história o despojo para a combinação de
infindáveis mosaicos, na medida em que a morte do símbolo dá vida à alegoria, ou
seja, “[...] o alegorista arranca o objeto do seu contexto. Mata-o. E o obriga a
significar.” (ROUANET – prefácio – apud BENJAMIN, 1984, p. 40).
Nesse sentido, não há um significado único para o significante poço, porque a
alegoria desvaloriza o mundo aparente, anula a garantia de uma interpretação, de
uma verdade:
enquanto o símbolo aponta para a eternidade da beleza, a alegoria
ressalta a impossibilidade de um sentido eterno e a necessidade de
perseverar na temporalidade e na historicidade para construir
significações transitórias. Enquanto o símbolo, como seu nome
indica, tende à unidade do ser e da palavra, a alegoria insiste na sua
não-identidade essencial, porque a linguagem sempre diz outra coisa
que aquilo que visava, porque ela nasce e renasce somente dessa
figura perpétua de um sentido último. A linguagem alegórica extrai
sua profusão de duas fontes que se juntam num mesmo rio de
imagens: da tristeza, do luto provocado pela ausência de um
referente último; da liberdade lúdica, do jogo que tal ausência
acarreta para quem ousa inventar novas leis transitórias e novos
sentidos efêmeros (GAGNEBIN, 2007, p. 38)66.
O poço, portanto, constitui-se em signo alegórico porque é a partir dele que
ocorre a troca da identidade de Daniel Abrahão, sua metamorfose individual em
vários outros eus, enfim, a identidade pessoal, local, nacional são descentradas e
esvaziadas de seu sentido fechado.
Quando já estava abrigado no poço, Daniel Abrahão lembrou-se de
Gründling: “como um bicho. Lembrou-se da frase de Gründling ‘cavar a terra como
um topeira’. Um verme” (GUIMARÃES, 1972, p. 43). Ora, mais do que significar um
esconderijo, o mergulho, a entrada e a fuga de Daniel para dentro da terra aludem
ao movimento de escavação como forma de se aproximar do passado: Josué
66
A ideia de luto e jogo é a dialética imanente à palavra Trauerspiel, traduzida como barroco. Na
formação deste vocábulo, tem-se Trauer, que significa luto, e Spiel, que significa jogo.
122
Guimarães desenterra a saga da imigração alemã para o Brasil, pois é na terra que
se inuma o passado e os escombros.
Cita-se aqui um dos fragmentos da Crônica Berlinense (BENJAMIN, apud
SILVA, 2003, p. 403), no qual Benjamin faz referência ao significado metafórico de
cavar:
quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir
como um homem que escava. Antes de tudo não deve temer voltar
sempre ao mesmo fato, espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê-lo como se revolve o solo, pois “fatos” nada são além de camadas
que apenas à exploração mais cuidadosa entregam aquilo que
recompensa a escavação, ou seja, as imagens que, desprendidas de
todas as conexões mais primitivas, ficam como preciosidades nos
sóbrios aposentos de nosso entendimento tardio, igual a torsos na
galeria do colecionador...
O ato de cavar implica, também, a relação casa/mundo, da qual trata Bhabha
(2005), no sentido de que o indivíduo vai além da sua “casa”, alça voo para fora de
si mesmo, para depois retornar com um novo olhar sobre a realidade que o circunda,
a qual não será mais a mesma.
Portanto, A ferro e fogo é atravessado por uma tensão crítica, que se revela
numa modalidade de resistência metafórica, alegórica, sugerida pelo poço onde
Daniel passa a residir. Com isso, Josué Guimarães não apenas descentraliza a
temática da imigração alemã, mas, também, transforma o próprio lugar de onde o
imigrante fala no romance.
Há de se destacar que o mergulho de Daniel Abrahão para dentro do poço
está ligado à sua salvação e este mergulho se caracteriza pela entrega da
personagem ao messianismo. Dado o sentido religioso que a vida de Daniel
Abrahão adquire a partir do momento em que ele se esconde no poço, é relevante o
fato de que os dois primeiros nomes da personagem, “Daniel” e “Abrahão”, são
elementos intertextuais que remetem à tradição judaica e estão presentes na Bíblia
Sagrada.
Este nível intertextual é profícuo no romance de Josué Guimarães, pois, ao se
reportar ao texto bíblico, o autor leva em consideração que a escritura hebraica é,
também, a história de um povo em eterna busca, à espera de Canaã. O nome da
personagem, Daniel Abrahão, remete a duas importantes personagens bíblicas: o
patriarca da nação judaica, Abrahão, e o profeta interpretador de sonhos, cativo em
123
Babilônia, Daniel. A definição do nome “Daniel” diz respeito àquele que “[...] tornou a
morte inofensiva [...]” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1993, p. 320), pois foi jogado
num poço profundo para ser devorado por leões e o segundo nome, Abrahão,
remete à tradição bíblica sobre o
homem escolhido por Deus para preservar o sagrado repositório da
fé; o homem abençoado por Deus que lhe prodiga as promessas de
numerosa descendência e imensas riquezas; o homem que é
predestinado a um papel universal como um novo Adão e como o
ancestral do Messias; seu nome significará, segundo uma etimologia
popular: pai da multidão. Mas, sobretudo, Abrahão será o símbolo do
homem de fé [...]. No plano psicológico, Abrahão simboliza
igualmente a necessidade de desenraizamento do meio habitual
familiar, social, profissional, para que se realize uma vocação ímpar e
se estenda uma influência além dos limites comuns. [...]. A sabedoria
de Abrahão inspirou-lhe a loucura de ser o aventureiro de Deus
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 1993, p. 7 – grifo nosso).
Com efeito, a personagem ficcional de Josué Guimarães evoca tais
significados, pois ela escapa da morte tal qual a figura bíblica de Daniel o fez. Nesta
ordem de considerações, a figura bíblica de Abrahão e a personagem ficcional de
Josué Guimarães se assemelham quanto às suas condições de estrangeiros: por
volta de 1800 a. C, o patriarca bíblico abandonou a Mesopotâmia e, guiado por
Deus, partiu rumo a terras desconhecidas, Canaã, onde se erradicou como
estrangeiro e perpetuou sua família. De modo análogo, não é Daniel Abrahão o
homem que, crente em Deus, parte para a América em busca de melhores
condições de vida e, diga-se, em busca de “Canaã”?
Daniel seria, como prenuncia seu nome, um patriarca, cuja fé se transforma
em fanatismo, o que fará com que ele, posteriormente, passe a fazer parte de uma
comunidade messiânica no morro do Ferrabrás. Entretanto,
para Daniel Abraão não há esperança, sonhos benéficos ou anjos
descendo em revoada para lhe salvar, como em suas contrapartes
bíblicas. Em A Ferro e Fogo, o homem não é um filho de Deus, é
antes um filho do homem, irmão do homem, escravo do homem,
vítima do homem (TAVARES, 2011, p. 109).
Ou seja, a intertextualidade que Josué Guimarães estabelece com o texto
bíblico funciona, apenas, como ponto de fuga para tratar, sob a perspectiva religiosa,
do sofrimento terreno.
124
Os imigrantes alemães foram caracterizados como inclinados ao misticismo,
como exemplifica a revolta dos Muckers, que seria a temática do terceiro volume da
trilogia A ferro e fogo. A revolta aconteceu entre 1868 e 1874, provocada pelo
fanatismo religioso que se iniciou na comunidade alemã de São Leopoldo, no Morro
do Ferrabrás. Jacobina Mentz, que seria paranormal desde criança, casou-se com o
médico João Jorge Maurer. Após o casamento, João Jorge passou a incorporar aos
seus tratamentos, além do conhecimento médico e de curandeiro, componentes
místicos advindos de Jacobina, que seria “visionária” e “profetisa”. O casal agregou à
sua volta um grupo de fanáticos seguidores que, conforme crescia, passou a
perseguir e a matar todos os que se opusessem à seita. O combate em massa aos
Muckers deslocou tropas do Exército e da Guarda Nacional e, em 1874, grande
parte dos integrantes da seita, inclusive Jacobina, foi morta (SCHUPP, s/d).
Em A Ferro e fogo II: tempo de guerra, Josué Guimarães faz alusão ao início
do que culminaria na revolução dos Muckers, visto que Daniel Abrahão passou a
frequentar a casa de Jacobina Maurer, inicialmente para se tratar com ervas
medicinais e, depois, para permanecer em sua casa e auxiliar nas “curas” e
pregações religiosas. Nesta fase, Daniel Abrahão troca o poço pelo Ferrabraz, junto
a Jacobina, para se dedicar à leitura e à interpretação da bíblia. O mundo fechado
do poço é substituído pelo fanatismo, mas o abandono do poço não representa o
reestabelecimento da saúde mental da personagem, pois tal fanatismo é tão isolante
quanto o buraco.
O fato de Josué Guimarães ter conferido este caráter fanático a Daniel
Abrahão, fazendo, inclusive, uma remissão direta a um episódio histórico, faz sentido
ao levar-se em conta que, segundo o pensamento benjaminiano67, somente o tempo
messiânico pode interromper a linearidade e a homogeneidade da história. Para
Walter Benjamin a violência assume papel positivo e revolucionário, porque
representa o momento necessário à criação de uma nova ordem de valores em favor
do reestabelecimento de uma visão de história que possa reparar as injustiças e os
sofrimentos humanos.
É por meio da religião, esse sentimento denominado por Freud (1978) de
oceano de sensação de graça e eternidade, que Daniel Abrahão bloqueia
67
A teoria de Walter Benjamin está sendo empregada, apenas, como instrumento de interpretação à
questão messiânica, não havendo aqui a pretensão de analisá-la, dado o aprofundamento que esta
requereria.
125
lembranças insuportáveis de serem rememoradas. Por isso, ao abandonar o poço na
Estância de Jerebatuba e retornar a São Leopoldo, Daniel Abrahão não se adaptou
à estranheza da nova casa, que lhe parecia demasiada grande: cavou um novo
buraco, feito um bicho, onde pudesse ficar mais próximo de si e de Deus e,
consequentemente, longe do estranho mundo para o qual ele migrara: “num pedaço
de chão do telheiro, Daniel Abrahão cavou um grande buraco, fez sobre ele uma
cobertura de madeira e bem ao centro engendrou uma porta de alçapão [...]”
(GUIMARÃES, 1972, p. 128).
Para a personagem a religião funciona como uma capa protetora contra o
sofrimento e é graças a ela que ele se reconcilia com a estranheza do outro – seja a
dor, a morte, a angústia ou as lembranças – e de si mesmo.
Muitas noites passei aqui reconstruindo só para mim a figura de
Cristo, enquanto todos dormiam, outros pecavam. Catarina, eu nunca
estou só, nem abandonado. Desentocou de um armário pequeno,
embutido na terra, um embrulho de panos rotos e sujos: “Apenas tu
conhecerás a imagem dele e mais ninguém. O olhar dos profanos
destrói a Graça”. Tirou os panos, surgiu um crucifixo de madeira
entalhada, a figura de Cristo em lavor de artista, as chagas, os
cravos, a cabeça inclinada, cada músculo das pernas, os tendões
dos braços, até a expressão de dor do rosto crispado, parecendo
mover-se pela luz irregular projetada do pavio mergulhado no óleo.
Catarina passou os dedos por toda a imagem, Daniel Abrahão
produzira um milagre, um bicho entocado capaz de lavrar peça tão
bela (GUIMARÃES, 1972, p. 194 – grifo nosso).
O crucifixo de Cristo entalhado na madeira por Daniel Abrahão remete à ideia
judaico-cristã de salvação. No contexto da obra em análise, isto significa que nada
do que aconteceu no passado pode ser soterrado e esquecido, o que exige o
comprometimento daquele que narra e testemunha o que viu. Portanto, Josué
Guimarães faz é um revisionismo crítico, resgatando as condições críticas pelas
quais os alemães passaram para tentarem sobreviver no Brasil:
quando a visibilidade histórica já se apagou, quando o presente do
indicativo do testemunho perde o poder de capturar, aí os
deslocamentos da memória e as indireções da arte nos oferecem a
imagem de nossa sobrevivência psíquica. Viver no mundo estranho,
encontrar suas ambivalências e ambiguidades encenadas na casa da
ficção, ou encontrar sua separação e divisão representadas na obra
de arte, é também afirmar um profundo desejo de solidariedade
social... (BHABHA, 2005, p. 46).
126
O anúncio do fim da Guerra Cisplatina impulsionou Catarina Schneider a
abandonar a Estância de Jerebatuba e a retornar a São Leopoldo, julgado oportuno
o momento de “[...] pôr um ponto final em todas aquelas infâmias que estavam
transformando o seu marido em animal, animal de toca, mente começando a ficar
doente, as crianças sem pai, ou tendo por pai um bicho” (GUIMARÃES, 1972, p. 107
– grifo nosso). Todavia, para Daniel Abrahão, desprender-se do poço, aquele lugar
no qual aprendeu a organizar e reelaborar as suas experiências subjetivas mais
dramáticas, significava voltar a um estágio anterior de melancolia, desespero e de
desapego à vida:
que fariam com o velho poço? Com a toca em forma de galeria,
escorada, protegida, cada coisa em seu lugar, a marca de fuligem de
lampião, as prateleiras para o pão, o charque, para garrafas de
cachaça, as forquilhas onde descansava a espingarda, longe da
umidade, a tampa de caixa onde colocava a velha Bíblia. O tempo
aprisionado ali dentro, naquela pilha de varas aneladas. Cada anel
assinalando um fato, uma hora de terror, posse e vigília, dores e
pesadelos. Ah, os intermináveis pesadelos daqueles dias de
travessia; nos ouvidos, como uma concha, o rosnar do mar bravio. O
tamborilar das patas de cavalo, os gritos dos invasores. Tudo ali
guardado, marcado, gravado. Os bandidos estuprando a sua mulher,
quebrando a coronhadas o ombro do índio, o roubo das espingardas
de contrabando, o eterno galopar dos inimigos na demoníaca rodaviva da guerra sem fim. Lá vinham eles, os ladrões, agora que a paz
começava a reinar; no instante mesmo em que ele tencionava
transformar a toca num profundo lago solitário (GUIMARÃES, 1972,
p. 116 – grifo nosso).
Ou seja, a percepção de mundo desta personagem está condicionada ao
espaço do poço que apreende, somente, a projeção invariável de sua experiência
trágica com o outro, através de novos signos, coerentes apenas à sua experiência
migrante. Por isso, no poço, pedras, varetas, madeiras talhadas e trapos adquirem
valor simbólico para a personagem, e dos quais ela não quer se desfazer. “A noite
inteira de lampião aceso, preparando as suas coisas com minúcias, os feixes de
varas-calendário cuidadosamente amarradas. Um saco de pedras limosas, as que
lhe diziam qualquer coisa, por misteriosas razões” (GUIMARÃES, 1972, p. 116-117 –
grifo nosso).
Também os sonhos de Daniel Abrahão, enquanto atividade inconsciente da
alma, revelam sua natureza subjetiva, essencialmente messiânica e profética. Seus
sonhos e visões do apocalipse e da morte são análogos à sua experiência face ao
127
medo da morte e da violência, que o rondavam e à sua família na Estância de
Jerebatuba, pois o sonho, em primeira instância, diz respeito a nós mesmos: “o
‘outro’ com quem sonhamos, não é nem o nosso amigo, nem o nosso vizinho, é o
outro em nós...” (JUNG, 1975, p. 99 – grifo nosso). Entretanto, o sonho aqui aparece
como forma de resgate inconsciente daquilo a que não se tem mais acesso: o
passado enterrado e esquecido, as cenas que ninguém testemunhou ou pôde
narrar.
Esta noite Harwerther falou comigo. Pobre Frederico. Foi degolado
pelos castelhanos falando de mim. Eu nem queria olhar para a ferida
que tinha no pescoço. Quando o pobre falava, saía sangue pela boca
e pelo talho. E ele ainda me contou que estava ao lado de Mayer
quando o infeliz foi fuzilado na batalha do Passo do Rosário
(GUIMARÃES, 1972, p.133).
Afora isso, o espaço fechado do poço se, incialmente, protegeu a
personagem, garantindo sua sobrevivência, posteriormente transformou-se em uma
prisão que a impediu de se recuperar do trauma que a levou a se entocar como um
bicho acuado. Daí advém o seu silêncio, isto é, Daniel Abrahão é tomado por uma
angústia que congela suas ações como uma camisa-de-força, da qual ele não tem
como se libertar. A resignação de Daniel demonstra uma tentativa brusca de
desprendimento e abnegação do mundo externo, do vínculo com a realidade. A
raiva, o ódio e o medo, dado que não podem ser externalizados naquele momento,
provocam uma profunda implosão na personagem, que a torna indiferente a tudo e a
todos.
quando era dominado pela melancolia, trocava o prato de comida na
borda do poço pela velha e surrada Bíblia que trouxera debaixo do
braço desde a partida da Alemanha. Chamava Catarina, que se via
obrigada a largar dos seus afazeres domésticos, para ouvir trechos
do livro sagrado [...]. Voltava, então, irritada, para o trabalho e ficava
a pensar se o marido não começara a endoidar. Nenhum inimigo à
vista, nem do norte e nem do sul, tampouco do céu, que era mais
fácil o demônio sair de sua morada debaixo da terra, e Daniel
Abrahão ruminando a sua velha Bíblia à luz mortiça do lampião,
detestando o ar puro e o sol, vivendo no seio da terra, morada do
diabo (GUIMARÃES, 1972, p. 98).
A linguagem também pode encontrar o seu limite quando se defronta com a
história, o trauma, o sofrimento de mortos e oprimidos, afinal, como narrar o que
128
muitas vezes é inenarrável? Nestes casos, “só com a arte a intraduzibilidade pode
ser desafiada” (SELIGMANN-SILVA, 2001, p. 47), porque ela auxilia os homens a
lembrar do que as gerações passadas foram capazes de fazer e assim “evitar que a
catástrofe possa ainda eclodir. A arte, neste sentido, pode ser considerada uma
forma de resistência e compreende uma dimensão ética, enquanto manifestação de
indignação radical diante do horror” (FRANCO, 2001, p. 352). Dessa forma, faz
sentido a citação de Vargas Llosa transcrita na introdução de A ferro e fogo, porque
a literatura de Josué Guimarães está orientada pelas influências de sua formação
política, e é através dela, da literatura, que o escritor transcreve seu desejo de
justiça e de mudar o mundo.
escribir novelas es um acto de rebelión contra la realidade, contra
Dios, contra la creación de Dios que es la realidade. Es uma tentativa
de corrección, cambio o abolición de la realidade real, de su sustición
por la realidade fictícia que el novelista crea. Este es um dissidente:
crea vida ilusória, crea mundos verbales porque no acepta la vida y
el mundo tal como son (o como cree que son). La raiz de su vocación
es um sentimento de insatisfacción contra la vida; cada novela es um
deicídio secreto, um asesinato simbólico de la realidade (VARGAS
LLOSA, apud GUIMARÃES, 1972, p. 1).
Daí o desafio de Josué Guimarães ver aquilo que é invisível: a projeção da
alteridade, que liberta a imagem do imigrante alemão da visão estereotipada com
que foi concebido por alguns escritores brasileiros. O mergulho da personagem para
dentro si mesma vai esvaziando a noção de identidade “pessoal, regional, nacional,
antes sugerida como ‘coisa’ plena, mas que pouco a pouco se revela precária e
descentrada, impulsionada pelo jogo das diferenças da personagem consigo
mesma” (HELENA, 1997, p. 50).
Dedicado à representação do desencanto e das experiências dramáticas da
família deste imigrante, o romance de Josué Guimarães coloca a personagem Daniel
Abrahão como central e, a partir dela, a imagem da loucura como estratégia de
questionamento da situação do homem no mundo, de desvelar a verdade mais
profunda do ser humano: é “tentar dizer o indizível nos meandros da ironia” (MARIA,
2005, p. 55-56).
O enfoque que o autor confere à obra permite, naturalmente, muitas
perspectivas de análise e estudo, mas, da perspectiva que se buscou aqui, o que se
sobressai é a atualização da perecível condição humana frente às adversidades
129
econômicas e sociais nos descampados do Chuí. A personagem, ao se tornar
metaforicamente uma toupeira, faz do poço sua morada, seu esconderijo, para não
se sentir estranha aos outros e a si mesmo. Ela rejeita a civilidade e transforma-se
em uma ostra fechada que necessita, para sobreviver, criar outros selfs – para usar
as palavras de Kristeva (1994).
Levando-se em conta o pensamento da época representada por Josué
Guimarães – quando ainda não se discutia sobre fronteira e alteridade – a
problemática da personagem analisada parece estar relacionada ao discurso dos
direitos humanos, consolidados na Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, criada em 1789. O documento, longe de ser a expressão fiel da igualdade
entre os homens, estabelece a dicotomia cidadão versus homem, fazendo com que
o indivíduo se torne mais ou menos homem de acordo com a sua cidadania
(KRISTEVA, 1994), sem a qual ele é subtraído de seus direitos pessoais, de seu
lugar num mundo de fronteiras em que se acentua, cada vez mais, a dificuldade de
viver com o outro e com as adversidades.
130
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Retomando as questões propostas na Introdução deste estudo, o contato
entre alemães e brasileiros na obra de Graça Aranha seria preponderantemente de
estranhamento, rejeição e conflito, já que o romance, ao fazer uma reflexão sobre o
futuro do Brasil e sobre o papel do estrangeiro em seu desenvolvimento, reacende
questões polêmicas como a classificação dos povos em superiores e inferiores, com
base nas velhas teorias raciais de pureza e miscigenação. A partir destas, Canaã,
uma das obras inaugurais da literatura brasileira sobre a temática da imigração
alemã, traz uma visão negativa e pessimista sobre o alemão, cuja relação com o
brasileiro tenderia a ser assimétrica, como se viu a partir das personagens Lentz e
Milkau. Parece haver certa relutância do autor em aceitar a realidade precária e
incerta do Brasil recém-republicano, na qual se fazia necessária a vinda de
estrangeiros, de modo que a trajetória funesta de Maria Perutz talvez funcione como
bode expiatório da aversão que Graça Aranha, em sua maturidade, revelou em
relação aos alemães.
Quase quatro décadas depois de Canaã, se observa no romance Um rio imita
o Reno, de Vianna Moog, uma contundente crítica ao isolamento dos imigrantes
alemães e seus descendentes e sua tendência de rechaçar qualquer integração com
os brasileiros e sua cultura. Tal romance foi escrito e publicado quando na Alemanha
o conceito ariano de pureza foi radicalizado com a ascensão do Nacional Socialismo.
Isto provocou reações absurdas de descriminação, exclusão e violência, que a
folclórica Blumental procura imitar, dando vazão ao preconceito que estaria
entranhado naquela imaginária comunidade desde os primórdios da colonização.
No entanto, além das circunstâncias históricas que drasticamente se alteram
de Canaã para Um rio imita o Reno, a maneira de Vianna Moog se contrapor e
combater as atitudes de hostilidade e preconceito extremado das comunidades de
alemães se dá com mais maturidade e habilidade estética. A preconceituosa
personagem Frau Marta se assemelha a Lentz, mas Moog não critica sua conduta
racista e procelosa com um “contra olhar” também de descriminação e desprezo: o
autor desconstrói o discurso de Frau Marta ao desvelar, através de sua ascendência
judia, que o mito da pureza ariana é uma falácia e que inexiste a propalada pureza
racial.
131
A despeito dos tempos sombrios, o autor, através da imaginária Blumental,
aponta para um futuro mais otimista que o vislumbrado por Graça Aranha, pois, a
tentativa cada vez mais expressiva de rompimento das barreiras da cor e da raça,
como exemplifica o caso apenas ensaiado entre Geraldo Torres e Lore Wollf, talvez
possa se consumar com o pequeno Paulchen: o que prenuncia uma possível
integração da nova geração de descendentes de alemães com os brasileiros, pois,
as tão propaladas diferenças raciais não se sustentariam por muito mais tempo.
A Ferro e fogo, de Josué Guimarães, ao narrar a saga de uma família de
imigrantes nos primórdios da imigração, se distancia não apenas temporalmente em
relação às obras supracitadas, mas principalmente, pela importância que confere à
temática da imigração alemã. Josué Guimarães se atém a uma perspectiva mais
trágica sobre o imigrante enquanto sujeito, pois, o principal foco narrativo centra-se
na representação das fragilidades humanas, seus medos e sua busca pela
sobrevivência e pela salvação espiritual, para além dos estereótipos de raça e cor.
Entretanto, fugindo de uma tipificação simplista, o autor se atém, também, àqueles,
como Gründling, que compactuam das mesmas crenças e comportamentos das
personagens Lentz e Frau Marta, cujo interesse é, apenas, se sobressair e para tal
manipulam todos à sua volta, inclusive, seus patrícios.
Este estudo ateve-se, principalmente, aos aspectos históricos e sociais das
obras em análise com vistas a discutir visões diferentes sobre o imigrante alemão e
como essas diferenças se operam temporalmente, historicamente e socialmente de
Canaã a A ferro e fogo. Quando o romance de Josué Guimarães foi escrito e
publicado a história da imigração alemã para o Brasil já havia completado um ciclo
de aproximadamente 150 anos, tempo suficiente para que boa parte dos alemães e
descendentes já tivessem assimilado a cultura local e para que mais elementos da
saga daquele povo pudessem ser ficcionalizados de uma perspectiva menos
passional que em Canaã e menos assustadora que em Um rio imita o Reno.
Portanto, a partir das análises realizadas, conclui-se que Graça Aranha,
Vianna Moog e Josué Guimarães trazem, respectivamente, um viés científico,
político/folclórico e trágico sobre a temática da imigração alemã para o Brasil. Estes
vieses, apesar de distintos, estão em diálogo e desvelam um panorama mais aberto,
complexo e profundo sobre a representação do imigrante alemão na literatura
brasileira do século XX, de modo que, ao longo do presente estudo, procurou-se
132
responder à pergunta: quem é o imigrante alemão para o escritor brasileiro do século
XX?
Este olhar que é depreciativo em Graça Aranha, crítico em Vianna Moog e
solidário em Josué Guimarães sobre o imigrante alemão é relevante, visto que não
escamoteia a realidade na qual estas obras se pautaram, pois se ativeram a
aspectos negativos e positivos sem recaírem na tentativa ingênua de ignorar o
passado através de uma reconstrução supérflua e não crítica das tramas históricas e
sociais que definiram a trajetória da sociedade.
Assim, se por um lado, as personagens Lentz, Frau Marta e Gründling
reproduzem a imagem dos alemães enquanto sujeitos opressores, fechados à
interação com brasileiros, e obsedados por crenças que estabelecem uma hierarquia
entre as raças, claramente Maria Perutz, Lore Wolff, Daniel Abrahão e Catarina
Schneider se contrapõem a eles, pois representam seres humanos como quaisquer
outros.
Seja na selva do Espírito Santo, no início da República, seja na folclórica
Blumental, às vésperas da II Guerra Mundial, ou nas precárias circunstâncias em
que os primeiros colonos alemães chegaram a São Leopoldo em 1824, não há
apenas alemães totalmente bons ou maus, abertos ou fechados, preconceituosos ou
isentos de preconceitos. Isto significa que, não obstante as motivações históricas,
sociais e ideológicas que impõem o que é certo ou errado, os homens não se
distinguem entre si, dada sua natureza essencialmente contraditória e incompleta.
Para chegar até estes resultados a presente pesquisa ateve-se a alguns
aspectos mais importantes sobre as primeiras relações travadas entre a Alemanha e
o Brasil e a história da imigração alemã para os trópicos, uma vez que esta base
sócio-histórica é fundamental na constituição das obras analisadas. A seguir,
realizou-se uma reflexão sobre o papel da literatura enquanto memória cultural na
temática estudada, na qual se tem acesso à representação do imigrante alemão no
contexto brasileiro. Nos capítulos dois, três e quatro se analisou os romances
Canaã, Um rio imita o Reno e A ferro e fogo, sendo que o que se selecionou dos
romances para este trabalho foram os elementos relevantes para compreender a
representação do imigrante alemão e sua relação com os brasileiros, o que significa
que há muitas outras possibilidades e vieses de análise que poderiam ser
explorados, mas que extrapolariam a presente proposta.
133
Este trabalho trouxe respostas sobre como o imigrante alemão foi
representado na literatura brasileira do século XX, mas ainda persistem outras
questões em aberto, por exemplo, se a partir da obra de Josué Guimarães o
imigrante alemão ainda foi tematizado por escritores brasileiros, por quais, como, e
que mudanças ocorreram neste percurso? A título de exemplo, sobretudo na
produção romanesca sul-rio-grandense, as marcas culturais alemãs continuaram
sendo retomadas por escritores como: Lya Luft, que reflete subliminarmente a
herança da cultura alemã em A asa esquerda do anjo (1981); Charles Kiefer, em A
valsa para Bruno Stein (1986) e A face do abismo (1988); Rui Nedel, em Te arranca
alemão batata (1986); Assis Brasil, em Videiras de Cristal (1990); Pedro Stiehl, em
Bárbaros no paraíso (2001); destacam-se, ainda, Luiz Sérgio Metz, Roberto Velloso
Eifler, Nilson Luiz May, Valeska de Assis, Fernando Neubarth.
Por fim, resta reiterar que com a temática trabalhada teve-se em vista, desde
o início da pesquisa, o fortalecimento, a abertura e o diálogo entre o campo literário
brasileiro e o alemão, com base na valorização do diverso, na troca cultural e no
posicionamento ativo e recíproco por parte dos interlocutores de ambos os países.
Finalmente, encerrando com as motivações pessoais implícitas à opção pelo
presente estudo, ao longo da presente pesquisa pude compreender melhor a origem
dos preconceitos subjacentes em algumas comunidades alemãs, pois, como bem
afirma Guimarães Rosa (2001, p. 80), “o real não está na saída, nem na chegada:
ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”. E é por isso que a memória do
passado não deve ser soterrada, mas resgatada e compreendida, para que as novas
gerações não cometam os mesmos equívocos tão sombrios do passado.
134
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APÊNDICE
As primeiras relações estabelecidas entre Brasil e Alemanha remontam às
expedições ibéricas que levaram à descoberta da terra de Vera Cruz, das quais
também alemães fizeram parte, sobretudo por meio de uma rica produção de
cartografias, mapas e globos (DONATO, 1999/2000).
O astrônomo e cosmógrafo Meister Johann talvez tenha sido o primeiro
alemão a pisar em terras brasileiras. Físico e cirurgião do rei português Dom Manuel,
ele viajou na expedição de Pedro Álvares Cabral, sendo o responsável pelas
primeiras observações astronômicas brasileiras em 27 de abril, e autor da carta 68 a
Dom Manuel, em 1º de maio de 1500, na qual informou sobre as suas observações
e registrou em um desenho o Cruzeiro do Sul.
Naquele contexto de expedições e descobrimento, houve uma polêmica
discussão entre os alemães sobre o direito de terem descoberto o Novo Mundo,
visto que foi o alemão Martin Behaim quem localizou a região conhecida como
Estreito de Magalhães69, no extremo Sul da América, antes de Fernão de
Magalhães, conforme mapa de 1492 do acervo da Biblioteca Estadual de Munique
(Anexo I).
Lindgren (1992) explica que o nome América só foi cunhado por volta de
1507, com o mapa-múndi de Martin Waldseemüller. Considerado o mais antigo da
América, este mapa foi baseado na Cosmografia de Claudius Ptolemaeus e mostra
parte do Norte e do Sul da América. Uma das fontes do conhecimento e das
informações de Waldseemüllers foi Américo Vespucci, bem como as informações
que eram publicadas na Alemanha através de jornais (LINDGREN, 1992).
Ao se ater à imagem da América Latina na historiografia alemã, König (1992)
comenta que há uma produção relevante de textos e materiais cartográficos que
remetem à época do descobrimento da América, pois os alemães estavam de fato
68
Esta carta, datada do mesmo dia da carta de Pero Vaz de Caminha, está disponível na Torre do
Tombo, em Lisboa, e foi publicada pela primeira vez no Brasil, na Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (1843, Tomo V, nº 19, p. 342-344).
69 Ou seja, não se tratava, exatamente, do descobrimento das terras brasileiras, visto que o estreito
de Magalhães localiza-se no extremo Sul da América, separando o continente americano do
arquipélago Terra do Fogo, cuja ponta mais ao Sul é o Cabo Horn. Trata-se de uma passagem de
complicada navegação, que interliga os oceanos Pacífico e Atlântico, e que recebeu este nome pelo
fato de Fernão de Magalhães ter sido o primeiro europeu a navegar pelo estreito, em 1520.
145
interessados na descoberta e conquista do Novo Mundo e no encontro pessoal com
os estrangeiros.
Na época das grandes viagens marítimas, a imprensa alemã tinha boas
relações com o Sul da Europa e, por conseguinte, fácil acesso às informações sobre
o descobrimento do Novo Mundo. Naturalmente, uma das primeiras e mais
importantes fontes de informação sobre o continente descoberto é a carta de
Cristóvão Colombo, de 1493, que teve doze reproduções na Europa entre os anos
de 1493 e 1497, sendo duas delas impressas na Alemanha, uma em latim e outra
em alemão.
Naquela época o interesse da Alemanha estava na impressão e no comércio
deste material. As informações eram publicadas na forma de relatos de testemunhas
oculares, descrições de viagens, crônicas e cosmografias e, sobretudo, folhetos,
panfletos e os chamados Newen Zeytungen, ou seja, novos jornais, que eram
apreciados por um público seleto de leitores que aguardava informações e
atualidades sobre o Novo Mundo e seus habitantes.
Estes jornais continham também xilogravuras (Anexo II), como a retirada do
primeiro documento em língua alemã sobre as terras brasileiras de 1515, intitulado
Newen Zeitung auss Pressilg Landt – Nova gazeta da terra do Brasil – impresso em
Augsburg. Embora muitos destes textos tenham se perdido, uma cópia deste jornal
está disponível na Biblioteca Estadual de Munique.
Em relação ao conteúdo do material que era produzido sobre a América,
König (1992, p. 217) afirma que:
partindo da perspectiva de que eles [europeus] não se ocuparam
especificamente com a América, mas sim, na abrangência das obras
concebidas como história universal, mal versam sobre esse
continente, se comparado à Europa, Ásia e África. Eles descreveram
o povo americano no contexto da descoberta e dos relatos da
conquista, na maioria das vezes, de forma generalizada, quase
sempre com a imagem negativa de cruéis canibais70.
Wolfgang Neuber (1992) escreveu um interessante capítulo intitulado
Amerika in deutschen Reiseberichten des 16. Und 17. Jahrhunderts – América em
Tradução: “abgesehn davon, dass sie sich nicht speziell mit Amerika beschäftigten, sondern im
Rahmen ihrer als Universalgeschichten konzipierten Werke Amerika im Vergleich zu Europa, Asien
und Afrika nur knapp behandelten, beschrieben sie im Kontext der Entdeckungs- und
Eroberungsberichte die amerikanischen Menschen meist generalisierend, oft mit dem Negativbild vom
grausamen Kannibalen“.
70
146
relatos de viagem alemães dos séculos XVI e XVII – trazendo de forma cronológica
alguns exemplos de como o novo mundo foi representado pelos viajantes alemães
que estiveram na América nos séculos XVI e XVII. Naquele contexto inicial de
descobrimento, havia poucas informações concretas sobre o novo continente e „para
a área da língua alemã podia-se se contar, em diferentes edições, com menos de
uma dúzia de textos, os quais foram propagados aqui em latim como também em
Língua alemã” (NEUBER, 1992, p. 37)71.
Entre os aventureiros que alcançaram o Novo Mundo, pode-se citar Titus
Neukomm, Hieronimus Köhler, Phillip von Huten, Hans Staden, Nikolaus Federmann
e Ulrich Schmidel. Hans Staden foi, talvez, uns dos mais conhecidos, pois ele esteve
por duas vezes no Brasil, permanecendo no país por nove meses no ano de 1554
como refém de índios tupinambás.
Em 1557, ao retornar de sua viagem, Hans Staden publicou na Alemanha
Wahrhaftig Historia und Beschreibung eyner Landschaft der Wilden, Nacketen,
Grimmigen Menschenfresser Leuthen, in der Newen Welt America – A verdadeira
história e descrição dos selvagens nus e ferozes, devoradores de homens,
encontrados no Novo Mundo, América – obra que só foi traduzida e publicada no
Brasil em 1892, na Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Conforme Cecchetta (2011), esta obra de Staden foi revisitada por inúmeros autores,
como Monteiro Lobato e, até meados de 1950, representava o texto fundador das
relações entre Brasil e Alemanha.
Evidentemente o relato da exótica fauna e flora brasileira, bem como o de
rituais antropofágicos de tribos indígenas criou prontamente no imaginário europeu a
ideia de um lugar extremamente selvagem e perigoso. “As primeiras imagens
autênticas impressas do Novo Mundo se encontram em Historia de Hans Staden”72,
afirma Neuber (1992, p. 48).
Na capa do livro de Staden supracitado (Anexo III), a figura que está na parte
inferior prenuncia o conteúdo do livro, pois há um homem deitado na rede comendo
um pé humano e, à sua frente, estão sendo assados outros pedaços de carne
humana. O ritual antropofágico é ilustrado exemplarmente em outra imagem (Anexo
“für den deutschen Sprachraum hat man, in verschiedenen Ausgaben, mit weniger als
einem Dutzend Texte zu rechnen, die hier in lateinischer wie auch in deutscher Sprache verbreitet
wurden“.
72 Tradução: “Die ersten im Druck verbreiteten authentischen Bilder der Neuen Welt finden sich in
Hans Stadens Historia”
71Tradução:
147
IV), na qual Hans Staden, enquanto prisioneiro dos índios, é obrigado a assistir à
cena impactante.
Ao longo do século XIX, os relatos de viagens, escritos por alemães
naturalistas que realizaram expedições em várias regiões do Brasil para estudarem a
fauna, a flora, bem como línguas e costumes de algumas tribos indígenas,
reforçaram os laços entre ambos os países.
Ao aportar no Rio de Janeiro, em 1817, a esposa de D. Pedro, a
arquiduquesa Maria Leopoldina, trouxe cientistas e botânicos alemães, dentre os
quais se destacam Karl Friederich von Martius e Johann Baptist Ritter von Spix.
Ambos realizaram grandes incursões pelo Brasil e tanto os dados quanto os
materiais coletados em tais expedições ainda têm grande importância. Embora o
mérito de Spix tenha sido quase suplantado pelo de Martius, ambos são
considerados os mais importantes estudiosos da América do Sul naquela época.
Spix foi o primeiro zoólogo a explorar a região amazônica e o responsável
pelo conhecimento básico que se tem atualmente sobre a fauna do continente. O
texto Como se deve escrever a história do Brasil, de Martius, foi premiado, em 1843,
em um concurso do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, pois colaborava com a
memória nacional através da divulgação de documentos históricos, etnográficos, e
com o estudo da formação brasileira73.
A primeira vinda ao Brasil do naturalista e cientista Georg Heinrich von
Langsdorff74 foi em 1803, quando permaneceu quatro meses. Em 1813 ele retornou
ao Brasil como Cônsul Geral da Rússia e aqui permaneceu por 15 anos, tendo,
inclusive, comprado uma fazenda que se transformou em um ponto de referência
para viajantes e cientistas estrangeiros, dentre os quais Spix e Martius.
A referida fazenda foi visitada, também, por D. Pedro I e pela Princesa
Leopoldina. Publicado no livro Viagem pitoresca através do Brasi75, o desenho
“Mandiocca” (Anexo V) faz menção à fazenda e é de autoria de Johann Moritz
73
A documentação de Martius encontra-se na Biblioteca Estadual de Munique; o material etnográfico
reunido por Spix está no Staatliches Museum für Völkerkunde, na cidade de Munique, e as coleções
zoológicas permanecem no Zoologische Staatssammlung München.
74 Ao lado de Langsdorff devemos citar Alexander von Humbold (1769-1859) pela sua importância e
interesse pelo Brasil. No entanto, ele não chegou a vir ao Brasil para explorar o rio Amazonas, como
pretendia.
75 Disponível em: <http://objdigital.bn.br/acerevo_digital/div_iconografia/icon94994_item1/P66.html>.
148
Rugendas,76 (1802-58) que havia sido contratado por Langesdorff para acompanhálo na sua expedição pelo Brasil. Mas, por ter se desentendido com seu contratador,
Rugendas voltou à Europa com as gravuras e desenhos produzidos.
A Fazenda Mandioca era uma espécie de centro científico no Brasil, visto que
se constituía em um espaço em que reuniões e discussões científicas eram
realizadas. Também nela foi realizada a pouco conhecida experiência de Langsdorff
com imigrantes alemães trazidos por ele em 1822, sobre a qual ele publicou em
Paris em 1820 um livreto intitulado Memórias sobre o Brasil para servir àqueles que
nele se desejam estabelecer, e em 1821, em Weimar e Heilderberg, publicou
Bemerkungen ueber Brasilien: mit gewissenhafter Belehrung fuer auswandernde
Deutsche (1821) – Observações sobre o Brasil: com exatas instruções para
imigrantes alemães. A obra trata das vantagens e desvantagens de se emigrar para
o Brasil, seus custos e condições políticas, geográficas e climáticas. No Brasil a
iniciativa de Langesdorff de incentivar a imigração de alemães foi vista com
desconfiança, pois, à época, o trabalho livre era motivo de estranhamento em um
país cuja produção estava baseada na mão de obra escrava.
Embora tenha permanecido esquecido por muitos anos, Langsdorff produziu
um vasto material sobre suas expedições pelo Brasil, o qual foi redescoberto e em
1990 foi criada a Associação Internacional de Estudos Langsdorff – AIEL, em
Campinas, e em 1997 seus Diários de viagem pelo Brasil foram publicados em três
volumes no Brasil, pela FIOCRUZ.
Quando se trata das relações Brasil-Alemanha, outra figura importante que
não pode deixar de ser citada é Johann Wolfgang von Goethe. O escritor alemão
demonstrou profundo interesse pelo Brasil – o que está também relacionado à
abertura dos portos do Brasil às nações amigas, que representou praticamente uma
segunda “descoberta” do país.
O conhecimento de Goethe sobre a botânica brasileira pode ser explicado por
seu contato pessoal e por correspondência com muitos naturalistas que viajaram
pelo Brasil e demais países da América Latina, como Alexander von Humboldt que,
apesar de nunca ter estado no Brasil, era muito admirado por Goethe. Na lista de
76Alguns
desenhos e aquarelas de Rugendas estão disponíveis para acesso online na página da
Pinacoteca
do
Estado
De
São
Paulo:
<
<http://www.pinacoteca.org.br/pinacotecat/default.aspx?mn=545&c=acervo&letra=J&cd=3572>.
Toda a obra Viagem pitoresca através do Brasil está disponível em língua alemã no seguinte link:
<http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_iconografia/icon94994_item1/P69.html>.
149
contatos de Goethe podem ser citados o chamado “pai da geologia brasileira”,
Wilhelm Ludwig von Eschwege, o qual fundou a primeira usina de ferro no Brasil e
foi nomeado por D. João VI para o cargo diretor de seu gabinete geológico das
minas de ouro (1810). Além de Eschwege, Goethe também se encontrou
pessoalmente com Carl Philipp von Martius.
A biblioteca de Goethe em Weimar confirma esta rede de relações e contém
dezenas de livros sobre temas relacionados ao Brasil, além de outros objetos de
origem brasileira. Ou seja, a viagem de Goethe ao Brasil se deu através dos livros e
das ricas informações que viajantes naturalistas como Martius publicavam na
Europa. Tal interesse foi estudado por Sylk Schneider em Goethes Reise nach
Brasilien: Gedankenreise eines Genies. De acordo com o autor, em 1932, no
bicentenário do nascimento de Goethe, a Academia Brasileira de Letras se
encarregou de homenageá-lo, plantando no jardim do Petit Trianon, no Rio de
Janeiro, uma Goethea das florestas brasileiras, descoberta em 1817 por Maximiliano
de Wied.
No mesmo ano foi inaugurada a segunda Reserva Natural do Brasil, Reserva
da Goethea, na restinha de Itapeba, em Jacarépagua, Rio de Janeiro. Todas estas
informações, bem como a consulta à obra de Martius, Flora Brasiliensis, estão
disponível no link <http://www.goethebrasil.de>. A imagem da Goethea, do gênero
mokoyana, de região próxima a Vitória, extraída da Flora Brasiliensis (vol. XII part.III,
prancha 105) está em anexo (Anexo VI).
Nomes como Meister Johann, Hans Staden, Johan Baptist von Spix, Karl
Friederich Philipp von Martius, Johann Moritz Rugendas, Georg Heinrich von
Langsdorff e Johann Wolfgang von Goethe são aqui rapidamente citados como
referências sobre a presença de alemães no Brasil desde o século XVI, tendo-se em
vista que o número de exploradores, cientistas, viajantes e escritores alemães que
travaram contato com o país é relevante e merece atenção77.
77
Parte das informações aqui citadas também encontram-se na Revista E os alemães descobriram o
Brasil, ano V, nº15, 2011, que trata, sob a perspectiva de diferentes áreas de estudo, das relações
históricas, sociais e culturais entre a Alemanha e o Brasil, desde o descobrimento deste.
150
ANEXOS
151
ANEXO I
Behaim, Martin. Geographische Vorstellung eines Globi welchen Anno 1492, Herr
Martin Behaim im Diametro bey 20. Zollen zu Nürnberg exibiert.
Tradução: Representação geográfica do mundo no ano de 1492, por Martim Behaim.
Fonte:Biblioteca Estadual de Munique.
152
ANEXO II
Copia der Newen Zeytung auss Presillg Landt Nurenberg ca. 1515.
Tradução: Cópia do novo jornal do Brasil (1515).
Fonte: Biblioteca Estadual de Munique
153
ANEXO III
Hans Staden. Wahrhaftig Historia und Beschreibung eyner Landschaft der Wilden,
Nacketen, Grimmigen Menschenfresser Leuthen, in der Newen Welt America (1557).
Tradução: A verdadeira história e descrição dos selvagens nus e ferozes,
devoradores de homens, encontrados no Novo Mundo, América (1557).
Fonte: Biblioteca Estadual de Munique.
154
ANEXO IV
Hans Staden. Dritte Buch Americae, Darinn Brasilia (1593)
Tradução: Terceiro livro América, Brasil (1593).
Fonte: Biblioteca Estadual de Munique.
155
ANEXO V
“Mandiocca”. In: Viagem pitoresca através do Brasil Disponível em:
<http://objdigital.bn.br/acerevo_digital/div_iconografia/icon94994_item1/P66.html>.>.
156
ANEXO VI
Goethea. In: Flora Brasiliensis (vol. XII, part.III, prancha 105). Disponível em:
<http://www.goethebrasil.de>.
157
ANEXO VII
Tabela 1 - Procedência dos fluxos iniciais de imigrantes alemães.
Localidade
Fundação
Origem
São Leopoldo RS
1824
Hunsrück,
Saxônia,
Württemberg,
Saxônia Coburg
Santa Cruz RS
1849
Renânia, Pomerânia, Silésia
Santo Ângelo RS
1857
Renânia, Saxônia, Pomerânia
Nova Petrópolis RS
1859
Pomerânia, Saxônia, Boêmia
Teutônia RS
1868
Westfália
São Lourenço RS
1857
Pomerânia, Renânia
Blumenau SC
1850
Pomerânia,
Holstein,
Hannover,
Braunschweig, Saxônia
Brusque SC
1860
Bade,
Oldenburgo,
Pomerânia,
Renânia,
Schleswig-Holstein,
Braunschweig
Joinville SC
1851
Prússia,
Oldenburgo,
Schleswig-
Holstein, Hannover, Suíça
Joinville SC
1851
Prússia, Oldenburgo
Curitiba PR
1878
Teutos do Volga
Santa Isabel ES
1847
Hunsrück,
Pomerânia,
Prússia, Saxônia
Santa Leopoldina ES
1857
Pomerânia, Renânia, Prússia, Saxônia
Fonte: GREGORY (2011). Informações de WILLEMS (1980, p. 38-39).
Renânia,
158
ANEXO VIII
“Você quer saber, valente homem alemão! o que os seus esperam no Brasil, então ouça.
Primeiro um outro, mesmo no sul, país mais quente, onde há outros costumes, outras
plantas, outros animais, outra vida – tal como atrás do forno europeu, mas onde, assim que
você chega, você e os seus são cuidados. Se você confirmar que está na Europa sob a
proteção de um homem de quem você está convencido de que ele está agindo sob as
ordens do seu imperador e seu governo, assim este, caso você não consiga pagar de todo
ou parcialmente os custos da passagem, garantirá para os seus e o deles livre embarque.
Sobre uma caixa, a qual chamamos de navio, é claro, não tem tanto espaço como em sua
espaçosa casa, mas cada um recebe seu devido espaçozinho, para si mesmo como para a
esposa e filhos, e sobre um navio impera rigorosa ordem, de modo que você não tem nada
a temer, se você é um amigo de ordem e da limpeza. À noite você pode dormir com a sua
mulher no quarto do navio e você não precisa fazer nenhum guarda, pois os maridos são
dispensados em tais navios. A viagem, que demora no máximo dois meses, vai para a
capital do Brasil, para o próprio imperador, que ama todos os seus cidadãos, mas também
seus novos cidadãos, aos quais lhe oferecerá seu coração e tudo voluntariamente, com
cuidado paternal. Os navios brasileiros de colonização estão abundantemente providos com
comida e água. Um tal navio está carregado apenas com pessoas e o que elas precisam; há
um médico, um diligentemente selecionado, graduado médico alemão, juntamente com
vários cirurgiões e uma farmácia à bordo para resolver qualquer caso de emergência [ ...]; 1Você vai ser mantido, durante um ano e meio, sob as custas do governo; 2- Você receberá
gado, cavalos, vacas leiteiras, ovelhas, cabras e porcos [...]; 3- semeadura, de acordo com a
localização do assentamento, ou mudas de café, arbustos de algodão, arroz ou trigo, feijão,
batata, milho, mudas de rícino (para óleo), linho, cânhamo, etc; 4- pertence-lhes a terra, a
qual vocês precisam cultivar e plantar, como herança e peculiar; 6- todos os colonos são
cidadãos brasileiros livres, têm todos os direitos, mas também todas as obrigações dos
cidadãos brasileiros, como vocês podem reler no apêndice da Constituição. Seus filhos
estão submetidos à conscrição, e eles mesmos estão, em caso de necessidade, ligados à
defesa de sua pátria. Cada colônia recebe um médico e um pregador, um dos protestantes
da sua fé, que deve ser pago pelo governo” (SCHÄFFER, 1824, p. 402-405)78.
Tradução: „Willst du, Wacker deutscher Mann! Wissen, was Deiner in Brasilien wartet, so höre. Erst
ein anderes, selbst im Süden, wärmeres Land, wo es anderes Sitten, andere Pflanzen, andere Thiere,
ein anderes Leben gibt – wie hinter dem Europäischen Ofen, wo aber, so wie du landest, für Dich und
Deinigen gesorgt wird. Begibst du dich n Europa unter dem Schtuz eines Mannes von dem du
überzeugt bist, dass er auf Befehl seines Kaisers und seiner Regierung handelt, so wird dieser, im Fall
du die Ueberfahrtskosten gar nicht und noch nicht einmal zum Theil zu bezahlen im Stande bist, für
Deine und Derjenigen freie Einschiffung sorgen. Auf einem solchen Kasten, den man ein Schiff nennt,
ist freilich nicht so viel Platz, als in deinem geräumigen Hause; doch empfängt jeder sein
angemessenes Plätzchen für sich, so wie für Weib und Kinder, und auf einem Schiffe herrscht strenge
Ordnung, so dass du nichts zu besorgen hast, wenn du ein Freund der Ordnung und Reinlichkeit bist.
Nachts kannst du bei deinem Weibchen im Schiffraum schlafen und brauchst keine Wache zu tun,
wovon die Ehemänner auf solchem Schiffe dispensiert sind. [...] Die Fahrt, die höchtens zwei Monate
dauert, geht nach Brasilien nach Brasilien Hauptstadt zu dem Kaiser selbst, der alle seine Bürger liebt,
besonders aber auch seine neuen Bürger, die ihm ihr Herz und ihr Alles freiwillig darbringen, mit
väterlicher Sorgfalt aufnimmt. [...]. Die Brasilischen Kolonistenschiffe sind reichlich mit Lebensmitteln
und Wasser versehn; ein solches Schiff ist nur mit Menschen und mit dem, was sie bedürfen, beladen;
es ist ein Arzt, ein mit Sorgfalt, ausgewählter, graduirter, deutscher Arzt nebst einigen Wundärzten
78
159
ANEXO IX
Tabela 2 – Fases do processo migratório.
Fase 1
1824-1830
Fase 2
1845-1859
Fase 3
1859-1889
Fase 4
1889-1914
Fase 5
1919-1939
Começa com a fundação da colônia de São
Leopoldo sendo interrompido em 1830 com o corte
de recursos para a colonização estrangeira no
país.
Com o fim da Revolução Farroupilha (1835-1845) o
processo
é
retomado.
Neste
período
são
estabelecidos os limites da colonização alemã, desde
o Rio Grande do Sul até Minas Gerais, além da
criação da Lei das Terras (1850), determinando a
venda e não mais a doação de lotes aos colonos.
O fluxo imigratório é afetado por diversos
acontecimentos, como o Restrito de Heydt (1859),
promulgado pela Prússia para dificultar a vinda dos
imigrantes, dado o não cumprimento de acordos e as
más condições de vida dos imigrantes; Guerra do
Paraguai (1864-1870); Guerra Franco Alemã (18701871); abolição da escravatura (1888), que acentuou a
necessidade de mão de obra nas lavouras brasileiras.
Início da Proclamação da República (1889) até o início
da I Guerra Mundial.
Depois da I Guerra Mundial até o início da II.
Fase 6
1945-1976
Depois da segunda Guerra Mundial até o final.
Fonte: HUNSCHE (1978).
und eine Schieffsapotheke an Bord, um jedem Nothfall abzuhelfen. [...] 1- Sie werden anderhalb Jahr
lang auf Kosten der Regierungs verpflecht; 2- Sie erhalten Rindvieh, Pferde, Milchkühe, Schafe, Ziege
und Schweine [...]; 3- Die Aussaat nach Verhältnis der Lage der Ansiedlung, entweder Kaffeepflanzen,
Baumwollenstauden, Reis oder Weizen, Bohnen, Kartoffeln, Mais, Ricinuspflanzen (zu Oel), Lein,
Hanf, etc. 4- Gehört ihnen das Land, welches sie urbar machen und anpflanzen müssen, erb- und
eigenthümlich; [...] 6- Die sämtlichen Kolinisten sind freie Brasilische Bürger, haben alle Rechte, aber
auch alle Verpflichtungen Brasilischer Bürger, wie si in dem im Anhange mitgetheilten
Konstitutionsentwurfe nachzulesen sind. Ihre Söhne sind der Konscription unterworfen, und sie selbst
sind im Nothfall zuer Vaterlandsvertheidigung verbunden. Jede Kolonie erhält eine Arzt und eine
Prediger, die Protestanten einen ihres Glaubens, die von der Regierung besoldet werden“
(SCHÄFFER, 1824, p. 402-405)
160
ANEXO X
Tabela 3 – Número de imigrantes no Brasil.
Período
Total
Médias anuais
1824-47
1848-72
8.17
19.523
6 355
813
1872-79
14.325
2046
1880-89
18.901
2100
1890-99
17.084
1898
1900-09
13.848
1539
1910-19
25.902
2878
1920-29
1930-39
75.801
27.497
8422
3055
1940-49
6.807
756
1950-59
16.643
1849
1960-69
5.659
629
Fonte: Gregory (2011). Baseado em Mauch et al., (1994, p. 165).
161
ANEXO XI
Levantamento de dados estatísticos sobre o movimento migratório alemão. Fonte:
Allgemeine Auswanderer Zeitung (1858, n.º 6 p. 25).
Tradução: Jornal Geral dos imigrantes.
Fonte: Bayerische Staatsbibliothek München.
162
ANEXO XII
Der Reichtum Amerikas. Frontispiz aus Johann Ludwig Gottfrid: Historia Antipodim
(1631).
Tradução: A riqueza da América. Frontispício de Johann Ludwig Gottfried.
Fonte: Knefelkamp; König (1988). Die Neuen Welten in alten Büchern.
Biblioteca Central da Universidade Ludwig Maximilians de Munique.
163
ANEXO XIII
Das Repertoire von Monstern und Fabelwesen.
Tradução: O repertório de monstros e criaturas míticas.
Fonte: SCHEDEL, Hartmann. Liber Chronicarum. 1493
Bayerische Staatsbibliothek München.
164
ANEXO XIV
Uslegung der Mercarthen.
Lorenz Fries (1527).
Bayerische Staatsbibliothek München.
165
ANEXO XV
Fliegende[n] Blätter [Folhas voadoras] um folhetim semanal publicado pela primeira
vez em 1844.
Wanderlust – zum Declamieren für die Deutsche Schuljugend.
Bayerische Staatsbibliothek München.
166
ANEXO XVI
Expressões e vocabulário em língua alemã presentes em Um rio imita o Reno.
Vocabulário em língua alemã
Einen moment, bitte
Grüss Gott!/Tritt ein/Bring Glück
herein
Klösse
Apotheke, Schuhmacher, Bäckerei
Eins, zwei, eins, zwei ... Heil Hitler
Mein Kampf
Das dritte Reich
Staat, Bewegung, Volk
Praktische Kulturarbeit im dritten
Reich
Kerb
Sorg, aber sorg nicht zu viel, es geht
doch wie’s Gott haben will
Trink, trink, Brüderlein trink. Lass
doch die Sorgen zu Haus
Dann ist das Leben ein Scherz
Sehr schön gewesen
Morgenstund hat Gold im Mund
Lied
Gesangverein
Hausfrau
Kolonie Zeitung
Das grosse S
Wie geht’s, Schatz?
Pelznickel
Grossvater
Mein Gott
Meine Herren
Tante Lore
Gemütlich
Verboten
Grüne
Verband Deutscher Vereine im
Ausland
Der mythus des zwangzigsten
jahrhunderts
Doppelgänger
Reichsautobahnen
Deutschland
Reis, Mehl, Bohnen, Salz, Zucker
Familienfreude
p.1
p. 17
p. 17
p. 7
p. 22
p. 44
p. 44
p.44
p.44
Tradução
Um momento, por favor
Cumprimente a Deus, entre e traga sorte
p.171
Nhoque
Farmácia, sapateiro, padaria
Um, dois, um, dois... Salve Hitler.
Minha luta
O terceiro império
Estado, movimento, povo
Prático trabalho cultural no terceiro
império
Festa típica com culto religioso, dança e
comida
Preocupe-se, mas não preocupe-se
muito, as coisas vão como Deus quer
Beba, beba, irmão beba. Deixe as
preocupações em casa
Então a vida é uma piada
Foi muito bonito.
As horas da manhã tem ouro na boca
Canção
Coral
Dona de casa
Jornal da Colônia
O grande „S“
Como vai, tesouro?
Papai Noel
Avô
Meu Deus
Meus senhores
Tia Lore
Confortável
Proibido
[o] Verde
Associação de clubes alemães no
exterior
O mito do século XX
p. 172
p. 175
p. 178
p. 183
p. 200
Duplo
Rodovias do Império
Alemanha
Arroz, farinha, feijão, sal, açúcar
Alegria da família
p. 9
p. 195
p. 195
p.53
p. 77
p. 77
p. 78
p. 82
p. 86
p. 87
p. 118
p. 118
p. 119
p. 112
p. 143
p. 179
p. 168
p. 126
p.130
p.142
Fonte: Elaborado por Elisangela Redel.
167
ANEXO XVII
Deutscher Morgen [Aurora Alemã], São Paulo, 1938.
Fonte: Biblioteca Digital da Universidade Estadual de São Paulo (UNESP):
<http://unesp.br/bibliotecadigital/index.php<. Parceira com o Instituto Martius-Staden
<http://martiusstaden.org.br/>.
168
ANEXO XVIII
Dia do Partido em Nürnberg, 1934.
Fonte: Volk und Heimat: kalender für das Deutschtum in Brasilien (1935, p. 152).
Bayrische Staatsbibliothek München.
169
ANEXO XIX
Carta escrita em alemão na Colônia Santa Izabel, no Espírito Santo.
Fonte: Allgemeine Auswanderungszeitung [Jornal Geral da Imigração], de 1859,
nº37 (p. 148).
Bayerische Staatsbibliothek München.
,
170
ANEXO XX
Dados sobre a produção e os resultados das colônias alemãs no Brasil.
Fonte: Allgemeine Auswanderungszeitung (1859, nº5).
Bayerische Staatsbibliothek München.
171
ANEXO XXI
Carta de nove de agosto de 1857, de São Leopoldo.
Fonte: Allgemeine Auswanderungszeitung, 1858, nº 1.
Bayerische Staatsbibliothek München.
172
ANEXO XXII
Auswanderer auf dem Rheim [Imigrantes sobre o Reno].
Fonte: Jornal "Die Gartenlaube", de 1864.
Bayerische Staatsbibliothek München.
173
ANEXO XXIII
Abschied der Auswanderer [Despedida dos imigrantes], de Antonie Volkman (1860).
Fonte: Arquivo pessoal (fotografia). Deutsches Historisches Museum Berlin.
174
ANEXO XXIV
Poema Ich habe Heimweh, Mutter [Eu tenho saudades de casa, mãe].
Fonte: Kalender für das Deutschtum in Brasilien. 1935.
Bayerische Staatsbibliothek München.
175
Tradução do poema:
Eu tenho saudades de casa, mãe
Oh, dor que queima
Meus olhos se perdem e vagueiam
Até o céu da pátria
E ainda não podem encontrar
A distante, distante terra.
Eu tenho saudade de casa, mãe
Oh, dor tão angustiante
Eu não posso forçá-lo à calma
Todo o coração saudoso
Eu não posso forçá-la à calma
A multidão que insiste pelos seus desejos
Os quais sempre cantam
Do que já se foi
Eu tenho saudade de casa, mãe
Mãe, você me compreende?
Eu não procuro a pátria
Eu procuro a mim mesmo
Eu procuro as sedas marrons
Onde as rosas uma vez floresceram
Eu procuro as verdes florestas
Da luz da noite, brilhantes
Eu estou procurando, mas não a pátria
Eu procuro o passado
Eu tenho tantas saudades de casa, mãe
Mãe, você me compreende?
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