EMENTA. I – PRELIMINAR DE LEGITIMIDADE PASSIVA. VALIDADE DA CITAÇÃO. PESQUISA ENVOLVENDO SERES HUMANOS. LABORATÓRIOS INTERNACIONAIS PATROCINADORES. FORMAÇÃO DE “JOINT VENTURE” PARA A REALIZAÇÃO DO EXPERIMENTO. SUBSIDIÁRIA BRASILEIRA DE UM DOS LABORATÓRIOS PATROCINADORES. CITAÇÃO NA PESSOA DA SUBSIDIÁRIA. VALIDADE. DESNECESSIDADE DE EXPEDIÇÃO DE CARTA ROGATÓRIA. LEGITIMIDADE PASSIVA DOS LABORATÓRIOS INTERNACIONAIS E DA SUBSIDIÁRIA BRASILEIRA PARA RESPONDER À AÇÃO. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 12, INCISO VIII, E PARÁGRAFO 3º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, DO ARTIGO 88, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, DO ARTIGO 75, PARÁGRAFOS 1º E 2º, DO CÓDIGO CIVIL, E DO ARTIGO 28 E PARÁGRAFOS, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. TEORIA DA APARÊNCIA. 1. Tendo a subsidiária brasileira de um dos laboratórios internacionais, GENZYME DO BRASIL LTDA., sido citada em nome dos formadores da “joint venture” BIO MARIN/GENZYME, apresentando vasta e ampla contestação, temse como válida a citação feita. 2. De fato, tem-se como válida a citação de ambas as empresas componentes da “joint venture”, com base na “Teoria da Aparência”, feita na subsidiária brasileira de uma das empresas, porquanto a empresa citada (“GENZYME DO BRASIL LTDA.”), tendo sido a citação determinada com relação a “joint venture” BIOMARIN/GENZYME (“BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC.” e “GENZYME CORPORATION”), apresentou vasta e ampla contestação, onde teve condições de bem representar a defesa da empresa “BIOMARIN/GENZYME”, apresentando os argumentos fáticos (como foi feita a pesquisa, como se desenvolve a empresa, como funciona o programa caritativo, etc.) e jurídicos para que se possa considerar como válida a citação feita. 3. A empresa subsidiária de uma das empresas formadoras de “joint venture” possui legitimidade para representar o conglomerado de laboratórios por atos praticados na vigência da associação, e seus posteriores desdobramentos, sendo válida a citação realizada. 4. Eventual prejuízo à defesa, principalmente no que diz respeito ao “BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC.”, que possa vir a ser alegado, decorreu em razão da inércia da “GENZYME DO BRASIL LTDA.”, que, tendo recebido citação válida, que dizia respeito ao “joint venture” BIOMARIN/GENZYME, deixou, em princípio, de comunicar ao Laboratório patrocinador a existência de ação judicial a respeito de empreendimento em que “BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC.” participou ativamente. 5. Inteligência do artigo 12, inciso VIII, e parágrafo 3º, do Código de Processo Civil, do artigo 88, parágrafo único, do Código de Processo Civil, do artigo 75, parágrafos 1º e 2º, do Código Civil, e do artigo 28 e parágrafos, do Código de Defesa do Consumidor. Teoria da Aparência. Desnecessidade de expedição de carta rogatória. 6. Por essas razões, acrescidas da dificuldade de implementação e cumprimento de rogatórias, e uma vez que a empresa “BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC.” participou em empreendimento de “joint venture” com a “GENZYME CORPORATION”, da qual a “GENZYME DO BRASIL LTDA.” é subsidiária, tendo também participado ativamente da pesquisa em seres humanos, presentes as noções do princípio da boa-fé, tenho por válida a citação da “joint venture”, sendo partes passivas legítimas para figurar na presente ação, ao lado da “GENZYME DO BRASIL LTDA.”, a “joint venture” BIOMARIN/GENZYME, nas pessoas de suas empresas formadoras, quais sejam, a “BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC.” e a “GENZYME CORPORATION”. II – PRELIMINAR DE INTERVENÇÃO DE TERCEIROS. CHAMAMENTO AO PROCESSO. DENUNCIAÇÃO DA LIDE. PRINCÍPIO DA INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO. APLICAÇÃO, POR ANALOGIA, DO PRINCÍPIO DA FUNGIBILDIADE DOS RECURSOS. POSSIBILIDADE. 1. Com a aplicação do princípio da instrumentalidade, cumprindo recordar, também, a aplicação, por analogia, do princípio da fungibilidade recursal, na medida em que o “nomen iuris” dado pela parte à intervenção de terceiros é irrelevante, é recebido o chamamento ao processo como denunciação à lide, haja vista, também, a semelhança existente entre os dois institutos, apontada pela doutrina e pela jurisprudência. Diferenciação que se fez possível apenas com a instrução processual, de difícil constatação pelo Juízo, no momento da contestação do réu Estado do Rio Grande do Sul, tendo em vista as peculiaridades do caso. 2. Na medida em que em toda a sua peça contestacional o réu Estado do Rio Grande do Sul referiu-se à subsidiariedade, não à solidariedade, ainda que tenha denominado a figura da intervenção de terceiros como chamamento ao processo, possível o recebimento, pelo Juízo, do postulado, na modalidade que constituía a verdadeira intenção da parte, de acordo com os termos da fundamentação da contestação, que era de denunciação da lide. III – PRELIMINAR DE INCOMPETÊNCIA DO JUÍZO DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE, EM RAZÃO DA MORTE DA CRIANÇA, KAUÃ, PARTE AUTORA. REJEITADA. 1. A competência é determinada no momento em que é proposta a ação, sendo irrelevantes as modificações de estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, conforme dispõe o artigo 87, do Código de Processo Civil. É o princípio da “perpetuatio jurisdicionis”, que se justifica por uma questão de conveniência e estabilidade. 2. A perpetuação da competência apenas encontra exceções quando, de acordo com o dispositivo legal em comento, as modificações do estado de fato ou de direito suprimirem o órgão judiciário ou alterarem a competência em razão da matéria ou da hierarquia, o que inocorre na hipótese dos autos, sendo que estas duas últimas ressalvas fundam-se na importância excepcional que o Código empresta à competência fixada por esses critérios, e que o leva a considerar esses casos como de competência absoluta, como se vê no artigo 111, do CPC. 3. Caso em que o próprio Juízo da Vara da Fazenda Pública declinou da competência, determinando a redistribuição do processo para uma das Varas da Infância e da Juventude, fl. 65, por entender que, “tratando-se de ação que envolvia pedido de fornecimento de medicação a menor, a competência para o processamento e julgamento deste feito é da Vara da Infância e da Juventude, de acordo com o disposto nos artigos 98 e 101, inciso V, do Estatuto da Criança e do Adolescente. 4. Assim, a modificação no estado de fato, evidenciada pela morte da criança, parte autora, não pode alterar a competência já devidamente fixada e perpetuada – situação similar ocorreria caso o infante, ao longo da tramitação, completasse 18 anos de idade –, até porque entendeu-se incompetente para o julgamento do processo a Vara da Fazenda Pública, como acima demonstrado. 5. Ademais, a sucessão do autor Kauã restou devidamente habilitada nos autos, atuando em defesa de seus interesses, como se pode perceber à fl. 538, tendo restado devidamente obedecidos o disposto nos artigos 43, 265, inciso I e 1.055 a 1.062, todos do Código de Processo Civil, não havendo se falar em incompetência do Juizado da Infância e da Juventude, portanto. IV – MÉRITO. PESQUISA EM SERES HUMANOS. LABORATÓRIOS INTERNACIONAIS PESQUISADORES. SUBSIDIÁRIA BRASILEIRA DE UM DOS LABORATÓRIOS PATROCINADORES. MANUTENÇÃO DE FORNECIMENTO AO SUJEITO DE PESQUISA DO FÁRMACO DESCOBERTO/DESENVOLVIDO. RESPONSABILDIADE DOS LABORATÓRIOS INTERNACIONAIS PESQUISADORES E DA SUBSIDIÁRIA BRASILEIRA, NÃO DO ESTADO. RELAÇÃO DE DIREITO PRIVADO QUE SUPERA A OBRIGAÇÃO GERAL DO ENTE PÚBLICO EM ASSEGURAR O DIREITO À SAÚDE. INTELIGÊNCIA DA RESOLUÇÃO 196/96 E DA RESOLUÇÃO 251/97, AMBAS DO CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. APLICAÇÃO DE ANALOGIA. LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL. CÓDIGO CIVIL. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. OBRIGAÇÃO PREVISTA EXPRESSAMENTE NO TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDA, QUE DEVE SER OBSERVADA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. BOA-FÉ OBJETIVA. FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO. DIREITOS DA PERSONALIDADE. CLÁUSULAS ABUSIVAS. NULIDADE DE PLENO DIREITO DE CLÁUSULA QUE DETERMINE LIMITAÇÃO DE FORNECIMENTO DO FÁRMACO. BIOÉTICA E BIODIREITO. EVOLUÇÃO HISTÓRICA. NORMATIVIDADE INTERNACIONAL. CÓDIGO DE NÜREMBERG (1947). DECLARAÇÃO DE HELSINQUE (1964). DECLARAÇÃO DE MANILA (1981). “DIRETRIZES INTERNACIONAIS PARA A PESQUISA BIOMÉDICA EM SERES HUMANOS”, ELABORADAS PELO COUNCIL FOR INTERNATIONAL ORGANIZATIONS OF MEDICAL SCIENCES, CIOMS, JUNTAMENTE COM A ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, OMS (1993). PRINCÍPIOS GERAIS A SEREM OBSERVADOS EM PESQUISAS EM SERES HUMANOS. PRINCÍPIO DA AUTONOMIA. PRINCÍPIO DA BENEFICÊNCIA. PRINCÍPIO DA NÃO-MALEFICÊNCIA. PRINCÍPIO DA JUSTIÇA. PRINCÍPIOS ENALTECEDORES DA PESSOA HUMANA. 1. Os laboratórios internacionais, juntamente com a subsidiária brasileira, são responsáveis pela manutenção de fornecimento da medicação descoberta, ao sujeito de pesquisa, mesmo após o término do experimento. 2. As Normas previstas na legislação brasileira acerca da realização de pesquisas científicas (Constituição Federal. Código de Ética Médica. Resolução 196/96 e 251/97, do Conselho Nacional de Saúde. Estatuto da Criança e do Adolescente. Aplicação ao caso) asseguram o respeito à Dignidade da Pessoa Humana, garantindo ao sujeito de pesquisa a manutenção do fármaco que auxiliou a desenvolver. 3. Cada “co-venturer” e a subsidiária brasileira, ao selecionar pessoa para participar em experimento assume com ela obrigações que superam, naquele caso específico, o dever geral de o Estado assegurar o direito à saúde. 4. Bioética e Biodireito. Normatividade internacional. Código de Nüremberg (1947). Declaração de Helsinque (1964). Declaração de Manila (1981). “Diretrizes Internacionais para a Pesquisa Biomédica em Seres Humanos”, elaboradas pelo “Council for International Organizations of Medical Sciences”, CIOMS, juntamente com a Organização Mundial da Saúde, OMS (1993). Princípios Gerais a serem observados em Pesquisas em Seres Humanos. Princípio da Autonomia. Princípio da Beneficência. Princípio da NãoMaleficência. Princípio da justiça. Princípios enaltecedores da pessoa humana. 5. Brasil. Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas em Seres Humanos, através da Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 196, de 10 de outubro de 1996, estabelecendo padrões de conduta para proteger a integridade física e psíquica, a saúde, a dignidade, a liberdade, o bem-estar, a vida e os direitos dos envolvidos em experiências científicas. Referenciais básicos da bioética (autonomia, não-maleficência, beneficência e justiça). Inspiração nos documentos, nacionais e internacionais, inclusive no Código de Defesa do Consumidor. 6. Aplicação de Analogia. Artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal. Artigos 4º e 5º, da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-lei 4.657/42) e artigos 126, 127, 335 e 1009, do Código de Processo Civil. Código de Defesa do Consumidor. Espírito teleológico. Resolução 251/97, do Conselho Nacional de Saúde. Estatuto da Criança e do Adolescente, artigos 3º, 4º, 5º e 6º, 15, 16, 17 e 18. Resolução CNS 196/96, item III.1, alíneas “a”, “b” e “d”, item III.3, alíneas “l”, “m”, “n” e “p”. Resolução CNS 251/97, item III.1, IV.1, alínea “m”. Código de Defesa do Consumidor, artigos 47 e 51, inciso IV, parágrafo 1º, incisos I a III, e parágrafo 2º. Código Civil Brasileiro, artigos 11, 12, 13, 112, 113, 184, 186, 187, 421, 422, 423 e 424. Constituição Federal, artigos 1º, inciso III, 4º, inciso II, e 227, “caput”. Boa-fé Objetiva. Função Social do Contrato. Proibição de comportamento contraditório. Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Natureza Adesiva. Cláusulas Abusivas. Apreciação pelo Poder Judiciário. Nulidade de Pleno Direito. 7. Direitos da Personalidade. Absolutos. Extrapatrimoniais. Intransmissíveis. Indisponíveis. Irrenunciáveis. Vitalícios. Ilimitados. Código Civil, artigos 11 a 21, e Constituição Federal, essencialmente artigo 5º, incisos V, X e XLI. Livre expressão da atividade científica, artigo 5º, inciso IX, e artigo 218, ambos da Constituição Federal. Dignidade da pessoa humana, enquanto vetor do ordenamento jurídico, principal limitador das pesquisas científicas. Nenhuma investigação poderá ser conduzida de forma a atentar contra esse princípio constitucional (art. 1º, inciso III, CF). COMARCA DE PORTO ALEGRE 2ª VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE PROCESSO 1625854 AUTOR: KAUÃ DE GODOY CHAVES PEREITA – DN 04.08.2003 RÉU: ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL CHAMADOS AO PROCESSO: GENZYME CORPORATION BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC. GENZYME DO BRASIL LTDA. JUIZ: JOSÉ ANTÔNIO DALTOÉ CEZAR1[1] Vistos os autos. KAUÃ DE GODOY CHAVES PEREITA, representado por sua genitora, Ana Paula de Godoy, ambos qualificados nos autos, ajuizou ação ordinária de fornecimento contínuo de medicamento, contra o Estado do Rio Grande do Sul. Segundo a inicial, em síntese, o infante é portador da moléstia MUCOPOLISSACARIDOSE tipo I (MPS 1), doença rara, progressiva, decorrente da deficiência da enzima alfa-L-iduronidase, necessitando fazer uso contínuo e ininterrupto da medicação LARONIDASE (ALDURAZYME®), na quantidade de 12 frascos mensais, que se apresenta como a única possibilidade de o demandante 1 [1] Pesquisas bibliográficas, pesquisas na internet, indicação de palestras científicas no campo da bioética, que foram assistidas pelo prolator da decisão, realizadas pelo Dr. Lorenzo Schissi Finatto, Assessor de Juiz de Direito desta 2ª Vara da Infância e da Juventude. continuar vivo e com o mínimo de qualidade de vida. Destaca, por fim, que os genitores da criança não possuem condições financeiras de adquirir o fármaco, na medida que o seu valor mensal é de aproximadamente US$ 7.200,00. Foram juntados documentos. O pedido de tutela antecipada foi indeferido, fl. 33. Contra a decisão de indeferimento da tutela antecipada, a parte autora ingressou com agravo de instrumento, fls. 35/45. Mantida a decisão pela magistrada de primeiro grau, fl. 46, veio aos autos manifestação da parte autora, afirmando ser de competência absoluta do Juizado da Infância e da Juventude a apreciação do processo, por dizer respeito à criança, sendo incompetente, portanto, a Vara da Fazenda Pública onde o feito então tramitava, fls. 51/55. Juntou documentos, fls. 57/64. O Juízo da Vara da Fazenda Pública declinou da competência, determinando a redistribuição do processo para uma das Varas da Infância e da Juventude, fl. 65. Intimado, por este Juízo, a se manifestar, previamente, acerca do pedido, fl. 67v, o Estado do Rio Grande do Sul afirmou, fls. 70/89, que o pedido liminar não deveria ser deferido, argumentando, em resumo, tratar-se de demanda ajuizada por paciente participante de pesquisa realizada no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, patrocinada pelo Laboratório BIO MARIN/GENZYME, com a substância LARONIDADSE, assinalando que a medicação obtida por meio da pesquisa havia sido recentemente registrada junto à ANVISA, em 22 de agosto de 2005. De acordo com o Estado, o fármaco vinha sendo fornecido à parte autora pelo laboratório fabricante, em função de ter participado em pesquisa realizada no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, com os portadores desta doença genética rara, salientando o demandado que tal fato foi omitido na peça inicial. Assinalou, ainda, que a parte autora, assim como outras crianças portadoras da mesma doença genética, participou da referida pesquisa, que foi patrocinada pelo laboratório internacional fabricante da enzima, que lhe forneceria gratuitamente o fármaco até abril de 2006, no entanto, sustenta, uma vez usados os pacientes pelo Laboratório, para desenvolver pesquisa de novo medicamento, a continuidade do tratamento deve se estender pelo tempo necessário ao tratamento, em atenção ao disposto nas regras éticas que regem a pesquisa com seres humanos – Resoluções do Conselho Nacional de Saúde 251/97, letra “m”, e 196, letras “d”, “m”, “n” e “p”. O demandado, em sua manifestação, também questiona se seria ético permitir-se que o Laboratório se utilize dos pacientes para o desenvolvimento de pesquisas que visam a obter registro de suas drogas, como no presente caso, em que o registro na ANVISA foi concedido no mês de agosto passado, e, alcançado seu intento, os abandonem, remetendo ao Poder Público o custeio de medicamento de elevado custo financeiro? Pergunta igualmente se seria ético o procedimento de utilizar pacientes para aprovar drogas que vão lhe propiciar lucro e, após atingir o objetivo, abandoná-los, repassando os pesados custos ao Estado? Segundo afirmou o Estado, ao angariar pacientes – cobaias humanas – para a realização da pesquisa pretendida, o laboratório se vincula a estas pessoas, assumindo uma obrigação contratual e ética para com os participantes do projeto, de modo que não poderia, ao final dos estudos, abandoná-los à própria sorte, em situação diversa da anterior. Afirma que antes da realização dos estudos, estavam os pacientes cientes de que eram portadores de doença rara para a qual não havia tratamento eficaz, todavia agora sabem que há esperança, consubstanciada na droga que usaram na condição de cobaias, mas seu elevado custo lhes inviabiliza a aquisição. Sustenta, também, haver outras crianças e adolescentes que participaram da referida pesquisa, estando atualmente demandando o Estado, o qual, caso tenha de arcar com o altíssimo custo para a manutenção do tratamento de cada paciente pesquisado – aproximadamente R$ 16.000,00, mensais –, terá de desembolsar vultosa quantia, o que poderia, inclusive, futuramente, inviabilizar o correto atendimento de outras tantas pessoas. Assevera que as pesquisas com seres humanos estão regradas por meio de resoluções do Conselho Nacional de Saúde, que prevêem as obrigações dos responsáveis pela pesquisa e os cuidados com os participantes, não apenas durante os estudos, mas também após, como corolário ético lógico, e também porque a aprovação da nova droga trará resultados econômicos satisfatórios ao laboratório, mormente em casos como o presente, em que se trata de medicamento inédito para a doença, com promessas de atuação sobre a evolução da moléstia. Assinala, ainda, que o responsável pelo fornecimento da enzima em questão é o Laboratório fabricante, e não o Estado do Rio Grande do Sul, porquanto o compromisso assumido pelo patrocinador da pesquisa supera a obrigação constitucional do Poder Público de fornecer medicamentos, não sendo possível que um grande laboratório internacional se utilize de pacientes como cobaias humanas, crie neles a esperança de prolongamento de expectativa de sua longevidade, com melhora na qualidade de vida e, após realizar seu intento – estudos acerca de nova e valiosa droga – os descarte, como se fossem cobaias animais, devendo o Estado suportar este custo, em detrimento das políticas básicas de saúde. Por fim, de acordo com o Estado, está a tratar-se com seres humanos, não com ratos de laboratório, razão pela qual a responsabilidade pela continuidade do tratamento iniciado pelo autor, assim como pelas demais cobaias, não pode recair exclusivamente sobre o demandado, devendo ser imposta ao Laboratório, ou com exclusividade, ou, no mínimo, em solidariedade. Juntou documentos, fls. 90/95. Realizado pedido de apreciação da liminar, diante das circunstâncias de saúde da parte autora, fl. 97, foi indeferido o pedido liminar pleiteado, fl. 99. Citado, fl. 102v, o réu apresentou contestação, argüindo, preliminarmente, sua ilegitimidade passiva e o chamamento ao processo do Laboratório Internacional BIO MARIN/GENZYME, nos termos do artigo 77, inciso III, do Código de Processo Civil, reiterando, em síntese, os argumentos trazidos na manifestação prévia, ressaltando que o fármaco pleiteado vinha sendo fornecido ao autor pelo laboratório fabricante, em função de sua participação em pesquisa realizada pelo laboratório no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, com os portadores desta doença genética rara, fato este que foi omitido pelo autor na petição inicial. Assinala que a responsabilidade pela continuidade e pela manutenção do tratamento é do laboratório patrocinador da pesquisa, Laboratório Internacional BIO MARIN/GENZYME, em atenção aos disposto nas regras éticas que regem as pesquisas com seres humanos – Resoluções do Conselho Nacional de Saúde nº 251/97, letra “m”, e 196, letras “d”, “m”, “n” e “p”. O réu também questiona se seria ético permitir-se que o Laboratório se utilize dos pacientes para o desenvolvimento de pesquisas que visam a obter registro de suas drogas, como no presente caso, em que o registro na ANVISA foi concedido no mês de agosto de 2005, e, alcançado seu intento, os abandonem, remetendo ao Poder Público o custeio de medicamento de elevado custo financeiro? Pergunta igualmente se seria ético o procedimento de utilizar pacientes para aprovar drogas que vão lhe propiciar lucro e, após atingir o objetivo, abandoná-los, repassando os pesados custos ao Estado? Segundo afirmou o Estado, ao angariar pacientes – cobaias humanas – para a realização da pesquisa pretendida, o laboratório se vincula a estas pessoas, assumindo uma obrigação contratual e ética para com os participantes do projeto, de modo que não poderia, ao final dos estudos, abandoná-los à própria sorte, em situação diversa da anterior. Afirma que antes da realização dos estudos, estavam os pacientes cientes de que eram portadores de doença rara para a qual não havia tratamento eficaz, todavia agora sabem que há esperança, consubstanciada na droga que usaram na condição de cobaias, mas seu elevado custo – cerca de R$ 25.000,00 por mês – lhes inviabiliza sua aquisição. Sustenta, também, haver outras crianças e adolescentes que participaram da referida pesquisa, estando também atualmente demandando o Estado, em juízo, o qual, caso tenha de arcar com o altíssimo custo para a manutenção do tratamento de cada paciente pesquisado, terá de desembolsar vultosa quantia, o que poderia, inclusive, futuramente, inviabilizar o adequado atendimento de outras tantas pessoas. De acordo com o réu, o laboratório criou um mercado consumidor em potencial, não podendo abandoná-lo à própria sorte, em face do compromisso prévio de assisti-lo. Assevera que as pesquisas com seres humanos estão regradas por meio de Resoluções do Conselho Nacional de Saúde, que prevêem as obrigações dos responsáveis pela pesquisa e os cuidados com os participantes, não apenas durante os estudos, mas também após, como corolário ético lógico, e também porque a aprovação da nova droga trará resultados econômicos satisfatórios ao laboratório, mormente em casos como o presente, em que se trata de medicamento inédito para a doença, com promessas de atuação sobre a evolução da moléstia. Sustenta que o direito à saúde está inserido na Constituição como um direito social, a ser garantido a toda a sociedade, incumbindo ao Poder Público assim considerá-lo, trabalhando para a adoção de políticas públicas que visem a beneficiar o maior número de pessoas, não havendo como priorizar grupos e indivíduos, mediante o custeio de toda e qualquer assistência postulada em casos pontuais, como na demanda em discussão, especialmente pela peculiaridade de que a necessidade foi criada por um laboratório farmacêutico com vistas a auferir lucros com a sua pesquisa, sendo, portanto, justo e ético que este se comprometa com os pacientes que colaboraram com o estudo, alcançando-lhes a droga indispensável pelo tempo que se fizer necessário. Menciona que na avaliação ética de projetos de pesquisa há 3 princípios básicos a serem garantidos: o da beneficência, o do respeito à pessoa e o da justiça, estando incluídos nesta garantia todas as pessoas que vierem a ter alguma relação com a pesquisa, seja o sujeito de pesquisa, o pesquisador, o trabalhador das áreas em que o experimento se desenvolve e, por fim, a sociedade como um todo. Destaca as exigências previstas no item III, alíneas “m”, “n” e “p”, da Resolução 196, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que têm por escopo garantir aos pacientes participantes de pesquisas o posterior acompanhamento pelo pesquisador e pelo patrocinador, com ênfase na manutenção dos benefícios recebidos durante o estudo e garantia de acesso ao produto resultante da pesquisa. Igualmente aponta o item 1.4, da Resolução 257, do CNS, que ratifica e detalha a Resolução 196, CNS, por estabelecer que, não possuindo o paciente condições de arcar com o custo econômico do medicamento desenvolvido a partir da pesquisa da qual participou, compete ao laboratório patrocinador esta obrigação, não havendo justificativa ética ou legal para que o Estado, em sentido amplo, assuma o custo do tratamento das pessoas usadas pelo laboratório para o desenvolvimento de nova droga que lhe irá proporcionar lucro. Assinala, ainda, que o responsável pelo fornecimento da enzima em questão é o Laboratório fabricante, e não o Estado do Rio Grande do Sul, porquanto o compromisso assumido pelo patrocinador da pesquisa supera a obrigação constitucional do Poder Público de fornecer medicamentos, não sendo possível que um grande laboratório internacional se utilize de pacientes como cobaias humanas, crie neles a esperança de prolongamento de expectativa de sua longevidade, com melhora na qualidade de vida e, após realizar seu intento – estudos acerca de nova e valiosa droga – os descarte, como se fossem cobaias animais, devendo o Estado suportar este custo, em detrimento das políticas básicas de saúde. Por fim, de acordo com o Estado, está a tratar-se com seres humanos, não com ratos de laboratório, razão pela qual a responsabilidade pela continuidade do tratamento iniciado pelo autor, assim como pelas demais cobaias, não pode recair exclusivamente sobre o demandado, devendo ser imposta ao Laboratório, ou com exclusividade, ou, no mínimo, em solidariedade. Assevera que ainda que se faça incidir sobre o presente caso o artigo 196, da Constituição Federal, não há como afastar a obrigação contratual e ética assumida pelo ora chamado ao processo perante o autor, que consentiu em participar em pesquisa por ele patrocinada, com o que estaria caracterizada a solidariedade entre o Laboratório e o Poder Público pelo fornecimento do medicamento, sendo que a responsabilidade solidária por parte do Laboratório decorre da obrigação contratual, formalizada com o paciente mediante a assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, em obediência às regras estabelecidas pelas Resoluções do Conselho Nacional de Saúde antes mencionadas. Com relação à doença que acomete a parte autora, apoiado em laudo médico elaborado em processo similar – em que outro participante da pesquisa veio postular em juízo o fornecimento do fármaco contra o Estado – coloca que o fármaco buscado é o LARONIDASE (ALDURAZYME®), desenvolvido a partir de participação do paciente em pesquisa realizada junto ao Hospital de Clínicas de Porto Alegre, sendo que a moléstia se caracteriza pelo acúmulo dos GAGs parcialmente degradados no interior dos lisossomos e o aumento de sua excreção pela urina. Destaca haver 3 formas clássicas de Mucopolissacaridose tipo I (MPS I), as quais diferem entre si com base na presença de comprometimento neurológico, na velocidade de progressão da doença e na gravidade do acometimento dos órgãos-alvo (sistema nervoso central, ossos, articulações das vias aéreas superiores e inferiores, coração e córneas), assim, pode-se dizer que a MPS I apresenta-se sob as formas grave, conhecida como Síndrome de Hurler; intermediária ou moderada, conhecida como Síndrome de Huler-Scheie; e atenuada, a Síndrome de Scheie. Segundo o Estado, na forma grave os pacientes costumam ser identificados até os dois anos de idade, apresentando atraso de desenvolvimento aparente entre os 14 e os 12 meses e estatura máxima de 110cm; a idade funcional máxima atingida é de 2 a 4 anos e a história clínica dominada por problemas respiratórios, com óbito na primeira década de vida, por insuficiência respiratória ou cardíaca. No forma intermediária ou moderada, a evidência clínica se apresenta entre os 3 e os 8 anos de idade. A estatura final é baixa, e a inteligência, em geral, é normal, sendo comum atingirem a idade adulta. Na fase atenuada, a sintomatologia costuma iniciar entre 5 e 15 anos de idade, sendo o curso clínico dominado por problemas ortopédicos, sendo que a altura final é normal ou quase normal, assim como o tempo de vida. Alega que na inicial não é mencionada a forma da doença apresentada pelo autor. Com relação à terapia medicamentosa, coloca, não há tratamento curativo para a MPS I, sendo apontadas como opções terapêuticas intervenções realizadas no nível de fenótipo clínico (tais como cirurgias para correção de hérnias) ou no nível da proteína mutante (transplante de medula óssea e terapia de reposição enzimática). A reposição enzimática, segundo a contestação, é feita por meio da LARONIDASE – enzima alfa-L-iduronidase recombinante, de nome comercial ALDURAZYME®, do laboratório BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC., da Califórnia, Estados Unidos da América, e GENZYME CORPORATION, de Massachuts, Estados Unidos da América. Segundo o Estado, trata-se de enzima produzida por tecnologia de DNA recombinante em células de ovário de hamster chinês, produto aprovado pelo FDA, agência de vigilância sanitária dos Estados Unidos, em 30 de abril de 2003, para uso no tratamento da MPS I, formas grave, intermediária e atenuada com sintomas graves ou moderados, tendo sido obtido registro no EME (Europen Agency for the Evaluation of Medicinal Products), da Comunidade Européia, para tratamento das manifestações nã-neurológicas da MPS I, com registro efetuado na ANVVISA em 22 de agosto de 2005. Sustenta que os dois únicos ensaios clínicos existentes sobre a doença são de fases, ou categorias, distintas, de modo que deve prevalecer o segundo, por se tratar de ensaio clínico de fase III, os estudos minimamente exigidos para registro de um medicamento. Ademais, o ensaio clínico de fase II, realizado com a Laronidase, foi aberto e não-controlado, ou seja, os pacientes que fizeram parte do estudo sabiam que estavam participando de uma pesquisa, o que conduz a resultados falso-positivos, como a melhora da função cardíaca, aferida em questionário, mas não verificada no ecocardiograma. Já o ensaio de fase III foi controlado por placebo e duplo-cego, ou seja, formaram-se dois grupos – um recebeu a enzima Laronidase e outro não, fazendo uso de placebo, sendo que nem pacientes nem pesquisadores sabiam quem recebia o medicamento e quem recebia placebo, por isso estudo controlado e duplo-cego, em que o sigilo das informações garante maior precisão, ressaltando não se ter verificado diferença significativa entre o grupo tratado e o grupo placebo, não se aferindo melhora na qualidade de vida. Aduz, ainda, dever ser aplicado ao presente caso a teoria da reserva do possível, na medida em que existem evidências seguras da eficácia tão-somente na melhora da qualidade de vida do paciente, não havendo cura para a doença genética em questão. Assevera, também, que o médico Dr. Roberto Giugliani, Chefe do Serviço de Genética Médica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, afirmou, em ofício, que o laboratório fabricante fornecia gratuitamente o medicamento ao autor, todavia tal fato foi omitido na inicial, o que causa estranheza. Por fim, o réu reiterou que o responsável pelo fornecimento da enzima em questão é o Laboratório fabricante, e não o Estado do Rio Grande do Sul, porquanto o compromisso assumido pelo patrocinador da pesquisa supera a obrigação constitucional do Poder Público de fornecer medicamentos, não sendo possível que um grande laboratório internacional se utilize de pacientes como cobaias humanas, crie neles a esperança de prolongamento de expectativa de sua longevidade, com melhora na qualidade de vida e, após realizar o seu intento – estudos acerca de nova e valiosa droga – os descarte, como se fossem cobaias animais, devendo o Estado suportar este custo, em detrimento das políticas básicas de saúde. Juntou documentos (fls. 104/136). A parte autora manifestou-se, impugnando a manifestação do Estado. Juntou documentos, fls. 139/148. O Ministério Público emitiu parecer, opinando pelo afastamento das preliminares argüidas pelo réu em contestação, e pela realização de prova pericial e testemunhal, fls. 150/153. Entendendo que os motivos que levaram ao indeferimento da tutela antecipada foram modificados, na medida em que veio aos autos laudo médico, informando os benefícios que o tratamento com o uso do fármaco vinha trazendo à saúde da parte autora, foi deferido o pedido de tutela antecipada, fls. 155/155v. Intimado o autor, para que informasse se o réu vinha fornecendo a medicação, fl. 163, afirmou que não vinha recebendo o fármaco, postulando o bloqueio de valores – R$ 72.900,00 –, fl. 165/170, o que foi deferido pelo Juízo, fls. 171, 174, com a expedição do respectivo alvará, fl. 175. Contra a decisão que determinou o bloqueio de valores, o Estado interpôs agravo de instrumento, fls. 183/200, ao qual foi negado seguimento, fls. 201. A parte autora prestou contas do valor bloqueado, fls. 203/209. Em despacho saneador, fl. 210, foi rejeitada a preliminar de ilegitimidade passiva do Estado e acolhida a preliminar de chamamento ao processo do Laboratório BIO MARIN/GENZYME, sendo determinada a sua citação. Contra a decisão de acolhimento do chamamento ao processo do Laboratório BIO MARIN/GENZYME, a GENZYME DO BRASIL LTDA. interpôs agravo de instrumento, fls. 221/249, tendo sido mantida a decisão pelo Juízo, fl. 388, e negado, à unanimidade, provimento ao agravo de instrumento pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, fl. 396, agravo de instrumento 70018752733. Da decisão do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que incluiu a BIO MARIN/GENZYME e a GENZYME DO BRASIL LTDA. no pólo passivo do processo, a GENZYME DO BRASIL LTDA. interpôs embargos de declaração, fls. 381/391, processo 70020333605, que foram rejeitados, fls. 393/399, processo 70020333605. A GENZYME DO BRASIL LTDA. interpôs, contra a decisão do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que incluiu a BIO MARIN/GENZYME e a GENZYME DO BRASIL LTDA. no pólo passivo do processo, Recurso Especial, processo 70020333605, fls. 402/418, ao qual, após tendo sido dada vista ao Estado, para a apresentação de contra-razões, fls. 424/430, foi negado seguimento, pelo Egrégio Tribunal de Justiça, fls. 443/445. Contra a decisão de negativa de seguimento ao Recurso Especial, a GENZYME DO BRASIL LTDA. interpôs agravo de instrumento junto ao Superior Tribunal de Justiça, nº 988237/RS, ao qual, após manifestação do Ministério Público Federal, fls. 500/501, foi negado provimento, fls. 538/539, e, opostos embargos de declaração, foram estes rejeitados, fls. 541/600, tendo havido o trânsito em julgado. Veio aos autos a contestação do Laboratório GENZYME DO BRASIL LTDA., alegando, preliminarmente, em síntese, a sua ilegitimidade passiva e o descabimento de sua intervenção no processo, nem sob a modalidade de chamamento ao processo, nem sob quaisquer outras modalidades de intervenção de terceiro, porque o interesse hábil a justificar a intervenção do terceiro no processo é o interesse jurídico, e não o meramente moral, patrimonial ou econômico, e, na medida em que o vínculo eventualmente existente entre o laboratório e a parte autora seria de direito privado, não cabe ao ente público argüilo judicialmente, pois é dele Estado o dever, por previsão constitucional, de fornecer o direito à saúde aos cidadãos. Caso não acolhida a preliminar de ilegitimidade passiva, tendo em vista o princípio da eventualidade, afirma que a BIO MARIN/GENZYME LLC., constitui-se uma “joint-venture” integrada pela “GENZYME CORPORATION” e a “BIO MARIN PHARMACEUTICAL INC.”, ambas empresas norte-americanas, sendo a GENZYME DO BRASIL LTDA., empresa brasileira, pessoa jurídica distinta não só da “joint-venture” BIO MARIN/GENZYME, patrocinadora da pesquisa, como também das duas empresas internacionais que formaram a “joint-venture”. Assinala que a GENZYME DO BRASIL LTDA. pertence ao grupo econômico da “GENZYME CORPORATION”, ou seja, não tem a menor relação com a BIOMARIN, razão pela qual a GENZYME DO BRASIL LTDA. não possui qualquer vínculo, seja com o Estado do Rio Grande do Sul, seja com Kauã, embora tenha sido citada a responder a demanda. Quanto ao mérito, afirma que a manifestação do Estado não possui qualquer resquício de lastro jurídico, constituindo-se em desesperada tentativa de se furtar da sua constitucional responsabilidade de prover a saúde aos necessitados, na medida em que o Estado constrói uma tese tão revolucionária quanto juridicamente carente, tentando transformar o fabricante do ALDURAZYME® em alguém inescrupuloso, sem ética e vil, o que não é verdade, desconsiderando o ente público que a pesquisa médica que permite o desenvolvimento de novos medicamentos é essencial para o desenvolvimento humano. Destaca não fazer o uso de cobaias humanas – termo este pejorativo e usado pelo Estado exatamente com esta finalidade, sendo inaceitável tal postura por parte do ente público – para a realização de pesquisas, assinalando que a GENZYME DO BRASIL LTDA. pertence ao grupo internacional “Genzyme Corporation”, fundado em 1981, para a pesquisa e desenvolvimento de terapias e tratamentos para doenças genéticas, debilitantes e de rara incidência populacional, estando presente no Brasil desde 1992, possuindo como principal nicho de pesquisa justamente as doenças genéticas debilitantes e raras. Tais doenças, sustenta, por serem genéticas, demandam uma pesquisa profunda, realizada com materiais e métodos dos mais modernos e dispendiosos, sendo desenvolvida ao longo de muitos anos. Ademais, por terem rara incidência entre a população, as pesquisas a respeito destas doenças despertam pouco interesse de laboratórios, justamente em razão do elevado risco econômico envolvido na pesquisa e desenvolvimento de medicamentos que se destinam ao tratamento de pessoas que acometem uma ínfima parcela da população mundial. A despeito das dificuldades e custos, entretanto, segundo coloca, o estudo acerca destas moléstias é de uma importância fundamental para seus portadores, eis que todas elas, se não forem tratadas, podem levar à morte, razão pela qual foi a GENZYME motivada ao estudo específico deste tipo de doença. A GENZYME, afirma, não pode, em hipótese alguma, ser considerada um laboratório que somente perquire o lucro, pois este tipo de visão quixotesca não considera a finalidade precípua dos pesquisadores, médicos, farmacêuticos, bioquímicos e dos laboratórios que os congregam, qual seja, a pesquisa e o desenvolvimento de medicamentos que visam à cura de moléstias cruéis que ameaçam a vida humana. Questiona como seria a vida moderna sem os laboratórios, perguntando em que estágio estaria o tratamento da AIDS e do câncer, ou mesmo de doenças que atualmente parecem mais simples, como a pneumonia e a sífilis, mas que ainda poderiam ser mortais, não fossem as atividades dos pesquisadores e dos laboratórios. Assevera que as atividades da GENZYME são norteadas pela Ética, Excelência, Inovação, Responsabilidade Social e Ambiental, Competência e Compromisso, sustentando que o comprometimento da GENZYME no combate às doenças mencionadas é tamanho que cerca de 20% de sua receita total (e não apenas do faturamento) são reaplicados em pesquisa e desenvolvimento, revelando o compromisso da GENZYME com o desenvolvimento de novos medicamentos. Ademais, a GENZYME não distribui lucros e dividendos. Aduz, ainda, que outra faceta do comprometimento da GENZYME com o desenvolvimento de medicamentos que a todos beneficiam é a criação e manutenção, no âmbito da “GENZYME CORPORATION”, do ICAP – “International Charitable Acess Programme”, uma fundação cujos subsídios são fornecidos pela própria GENZYME, que dispensa temporariamente medicamentos aos pacientes que a eles não tiveram condições econômicas de acesso. Menciona que uma das pesquisas que mais demandou esforços da GENZYME foi justamente aquela relacionada à MPS-1, uma doença genética rara no depósito lisossômico que resulta na carência da enzima alfa-LIduronidase, o que acarreta uma série de dificuldades, que, progressivamente, podem levar à morte do paciente. A saída encontrada pela GENZYME foi desenvolver uma terapia de reposição enzimática, a fim de equilibrar a deficiência e, bem assim, minorar os males da MPS-1 e ajudar na qualidade de vida do seu portador, e esta reposição enzimática é feita pelo ALDURAZYME. Segundo afirma, estima-se que no Brasil apenas 78 pessoas sejam portadoras da MPS-1, o que justifica o alto custo da medicação. Nesse sentido, sustenta, as pesquisas a respeito da dosagem do ALDURAZYME, como aquela realizada no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, são importantíssimas porque: a) prestam-se a constatar a eficácia do ALDURAZYME como terapia de reposição enzimática apta a suprir a carência resultante da MPS-1, o que, por sinal, aconteceu no caso concreto, eis que os profissionais da área médica que acompanharam a pesquisa avalizaram os bons resultados do ALDURAZYME; b) dão aos pacientes a oportunidade de conhecer um medicamento que pode melhorar sua qualidade de vida e evitar a morte precoce; c) estudam a dosagem mais adequada do medicamento, para evitar que o tratamento seja realizado usando uma dose desnecessária, o que, é claro, implicaria maiores gastos para o paciente (ou mesmo para o Estado). Assinala que a diminuição do número de doses a ser aplicada, o que pôde ser apurado com a pesquisa realizada no HCPA, tem conteúdo emocional e psicológico, na medida em que a aplicação do ALDURAZYME é realizada por meio de injeção, exigindo o deslocamento do paciente até o hospital, o que causa transtorno aos portadores da doença, especialmente quando crianças, demonstrando-se, assim, também, o caráter humanitário da pesquisa. Por isso, sustenta, resta cristalino que a GENZYME não faz uso de cobaias, oferecendo, em verdade, às pessoas e às famílias a oportunidade de angariarem uma solução ou, ao menos, amenizarem seus dramas pessoais, dando a elas uma esperança de cura para seus males. Ressalta a existência de, nos termos da Resolução 251, do Conselho Nacional de Saúde, 4 fases relacionadas a essas pesquisas: I) Fase I: é o primeiro estudo em pessoas voluntárias, normalmente sadias, para verificar a evolução da segurança, perfil farmacocinético e farmacodinâmico do medicamento; II) Fase II (Estudo Terapêutico Piloto): realizado em pequenos grupos de pessoas enfermas, esta fase visa a determinar a segurança a curto prazo do princípio ativo do medicamento. Serve para coletar dados que servirão de embasamento para a Fase III; III) Fase III (Estudo Terapêutico Ampliado): os estudos ocorrem em grande e variados grupos de pacientes, a fim de aferir os resultados do princípio ativo do medicamento, além de apurar as possíveis reações adversas, interações medicamentosas e atuação em diferentes grupos etários. Foi no âmbito desta fase que ocorreu a pesquisa patrocinada pela Bio Marin/Genzyme; e IV) Fase IV: realizada após a comercialização do produto, a fim de verificar novas reações ao medicamento, freqüência das já conhecidas e, bem assim, apurar estratégias de tratamento. Afirma que, tendo ocorrido a pesquisa em discussão na Fase III, ainda mais inaplicável fica o uso pejorativo do termo cobaia, porque, se já haviam sido perquiridas as Fases I e II, os efeitos do ALDURAZYME não eram desconhecidos – pelo contrário, o objetivo do estudo realizado no Hospital de Clínicas de Porto Alegre era, justamente, fixar melhor os parâmetros de dosagem do medicamento. Por sinal, ressalta, tendo sido o ALDURAZYME aprovado nos Estados Unidos e na Europa como terapia de reposição enzimática para combate da MPS-1 e sendo comercializado e distribuído nestes lugares, tinha sua eficácia internacionalmente reconhecida, razão pela qual a pesquisa em Porto Alegre não se cingia a um remédio experimental, mas, sim, a um medicamento consagrado que necessitava de aprimoramento quanto à dosagem aplicada nos pacientes. Aduz que a pesquisa realizada no Hospital de Clínicas de Porto Alegre foi permitida e realizada segundo todos os moldes regulamentares, ressaltando que o ALDURAZYME, desenvolvido nos EUA, foi aprovado pela entidade governamental americana de controle de medicamentos e alimentos (FDA – Food and Drug Administration), sendo que o objetivo do estudo clínico desenvolvido em Porto Alegre era determinar a segurança e a eficácia do tratamento com doses de ALDURAZYME diferentes daquela aprovada pela FDA. Para o desenvolvimento da pesquisa, a BIOMARIN/GENZYME firmou com o Hospital de Clínicas de Porto Alegre e com o Dr. Roberto Giugliani, uma das maiores autoridades nacionais em pesquisas genéticas, um Contrato de Estudo Clínico, em que ficaram ajustadas as obrigações de parte a parte para a consecução da pesquisa. Paralelamente, a BIOMARIN/GENZYME contratou a empresa EUROTRIALS BRASIL CONSULTORES CIENTÍFICOS LTDA. (“EUROTRIALS”), para operacionalizar a pesquisa, coletando e cruzando informações e dados a respeito dos resultados e sendo responsável pela condução dos estudos no Brasil. Foi assim que a EUROTRIALS, representando a BIOMARIN/GENZYME, apresentou à ANVISA o projeto de Pesquisa Clínica intitulado “Um estudo para a otimização, randomizado, multicêntrico e multinacional sobre a segurança e resposta farmacodinâmica de ALDURAZYME (LARONIDASE), envolvendo pacientes com Mucopolissacaridose. No dia 06 de dezembro de 2004, a Gerência de Medicamentos Novos, Pesquisa e Ensaios Clínicos da ANVISA aprovou e autorizou a realização da pesquisa no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. De acordo com o protocolo de pesquisas, segundo afirma, o tratamento dos pacientes duraria aproximadamente 26 semanas. Com Kauã, a pesquisa se iniciou em 08 de março de 2005, finalizando-se em 30 de agosto daquele ano. Ficou ajustado que, durante o período de pesquisa, os pacientes que livremente aderiram à pesquisa – inclusive Kauã – receberiam o ALDURAZYME, em diferentes doses, de acordo com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), aprovado pela Comissão Científica e Comissão de Pesquisa em Ética e Saúde do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Ciente dos progressos que o ALDURAZYME propiciava, verificou a BIOMARIN/GENZYME que o medicamento já havia se tornado essencial aos pacientes, de tal sorte que seu fornecimento não poderia ser repentinamente interrompido pelo advento do término da pesquisa. Em razão desta preocupação com os pacientes, que, alega, é parte indissociável da filosofia da empresa, pouco mais de um mês e meio antes do término da pesquisa, sem que, portanto, o fármaco estivesse registrado junto à ANVISA, a BIOMARIN/GENZYME instruiu a EUROTRIALS a apresentar, na ANVISA, um dossiê com um requerimento de aprovação da continuidade do tratamento quanto aos participantes da pesquisa, dentre os quais se incluía Kauã, por meio de programa mantido pela “GENZYME CORPORATION”, chamado “Programa Internacional de Acesso Caritativo” (ICAP). Neste requerimento encaminhado à ANVISA, consta, segundo afirma, excerto que afasta qualquer responsabilidade da BIOMARIN/GENZYME ou da própria GENZYME, em fornecer gratuitamente o ALDURAZYME pelo resto da vida dos pacientes, pois a intenção dos realizadores da pesquisa era fornecer o medicamento, gratuitamente, somente por tempo limitado, até que fosse possível a compra ou o reembolso do mesmo aos pacientes com Doença de Mucopolissacaridose do tipo I. Em 27 de junho de 2006, cerca de um mês antes do término da pesquisa, a ANVISA aprovou a inclusão dos pacientes no ICAP (Programa Internacional de Acesso Caritativo). Ressalta que o objetivo do ICAP é fornecer tratamento temporário de reposição enzimática a pacientes com condições graves ou de risco de vida, como ponte até a obtenção ou continuação do reembolso, constituindo, portanto, mera liberalidade oferecida pela BIOMARIN/GENZYME, de cunho altruístico, até o registro do ALDURAZYME na ANVISA ou, na impossibilidade de pagamento imediato, e a exclusivo critério da BIOMARIN/GENZYME, até que os pacientes pudessem adquirir o produto. Alega existir regulamento, Resolução RCD MS/ANVISA nº 26/99, acerca do fornecimento de medicamentos relacionados a pesquisas clínicas na Fase III, quando o remédio não tem registro no Brasil, mas é aprovado no país de origem, segundo o qual é determinado, no artigo 2º, inciso VII, alínea “i”, que a responsabilidade do pesquisador é fornecer tratamento aos pacientes com doenças crônicas por tempo definido, ou seja, a ANVISA jamais obriga o laboratório patrocinador da pesquisa em permanentemente fornecer o medicamento, restando claro, portanto, que a BIOMARIN/GENZYME se submeteu a todas as regras afetas à pesquisa desenvolvida no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, jamais tendo havido a promessa ou obrigação de fornecimento de ALDURAZYME a Kauã, por tempo indeterminado. Assevera que a obrigação de fornecimento do medicamento é do Estado do Rio Grande do Sul, por determinação constitucional, nos termos dos artigos 6º, 196 e 197, da Constituição Federal, e infraconstitucional, Lei Estadual 9.908/93, que institui a responsabilidade do Estado em prover fármacos excepcionais, como é o ALDURAZYME, assim decidindo reiteradamente os Tribunais Superiores e o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Aduz que a relação invocada pelo Estado tem por base uma declaração fornecida pelo pesquisador-chefe do estudo clínico relativo ao fármaco, Dr. Roberto Giugliani, o qual informou que no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido a BIOMARIN/GENZYME teria declarado assegurar a continuação do tratamento aos pacientes que concluíssem as 26 semanas de pesquisa, tendo reconhecido que, efetivamente, essa afirmação constava no TCLE, todavia ressalta que a continuidade do tratamento prometida dizia respeito à inclusão no ICAP (Programa Internacional de Acesso Caritativo), o que efetivamente aconteceu com o término da pesquisa, todavia não significa que o laboratório se responsabilizasse pelo fornecimento da droga por toda a vida do paciente, gratuitamente. Assim, postula a correta interpretação da expressão contida no TCLE, sob pena de se admitir um negócio jurídico desarrazoado, desproporcional e inexeqüível, devendo haver a observância dos princípios da sistematicidade, eticidade e socialidade. Segundo afirma, a eticidade diz respeito à observância da pessoa, e das relações jurídicas por elas constituídas, à luz de princípios como a dignidade da pessoa humana e o respeito aos direitos da personalidade, tendo sido observada pelo laboratório chamado ao processo, na medida em que o ALDURAZYME foi entregue a Kauã por 13 meses, ou seja, sete meses a mais do que o compromisso assumido pela GENZYME no âmbito da ANVISA, de forma que Kauã não ficou um único momento sem receber o ALDURAZYME, mesmo depois de o Estado ter se negado a cumprir a ordem emergencial de fornecimento compulsório manifestada pelo Juízo. Pela sociabilidade, diz ser a necessidade de se observar as relações jurídicas usando um prisma coletivo, herança da consolidação dos direitos sociais como dever do Estado, que também deve ser observado nas relações privadas, sendo nesse princípio que encontram amparo a “função social da propriedade” e a “função social dos contratos”, de acordo com o previsto nos artigos 112, 113 e 114, do Código Civil. Sustenta que o negócio jurídico estabelecido entre o laboratório patrocinador da pesquisa e o sujeito de pesquisa foi uma doação – fornecimento gratuito do ALDURAZYME a Kauã, por prazo determinado, após o término da pesquisa –, ou seja, um negócio jurídico benéfico, devendo ser interpretado, portanto, restritivamente, conforme o mencionado artigo 114, do CC. Assinala que na interpretação desse negócio jurídico benéfico deve ser levada em consideração a intenção do BIOMARIN/GENZYME, que era de fornecimento do fármaco por prazo limitado, alegando que tanto a ANVISA quanto a “Comissão Científica e Comissão de Pesquisa em Ética e Saúde” do Hospital de Clínicas de Porto Alegre aprovaram a declaração. Invoca a aplicação dos artigos 112 e 113, do CC, para afirmar que a real intenção das partes foi observada na formação do negócio jurídico, não se podendo conceber a interpretação que o Estado quer dar à intenção, em desacordo com a vontade das partes contratantes, que era o de fornecimento temporário da medicação, gratuitamente. Caso fosse diversa a interpretação acerca do negócio jurídico por parte de Kauã, teria ele demandado contra a BIOMARIN/GENZYME, todavia não foi assim que ele agiu, o que revela que jamais Kauã interpretou a declaração como se a BIOMARIN/GENZYME tivesse assumido a obrigação de lhe fornecer o ALDURAZYME, gratuitamente, tanto é que kauã se opôs ao chamamento da GENZYME ao processo. Assim, se o próprio destinatário da declaração – Kauã – não entendeu ser a BIOMARIN/GENZYME responsável, como pode o Estado do Rio Grande do Sul imputar essa intenção como formadora da aludida declaração da vontade, restando evidente, portanto, que a declaração de vontade manifestada na obrigação de continuação do tratamento a Kauã foi exaurida com sua inclusão no ICAP e o fornecimento do ALDURAZYME mesmo após o término do estudo. Invoca, também, a boa-fé objetiva, que envolve postulados como a lealdade, a confiança, o equilíbrio contratual, a razoabilidade e a proporcionalidade, para afirmar que a doença MPS-1 possui poucos pacientes no Brasil, e, caso fosse o laboratório obrigado a fornecer o fármaco desenvolvido para todos os participantes da pesquisa, teria de fornecê-lo a aproximadamente metade dos portadores da moléstia no Brasil, o que acabaria por, no futuro, inviabilizar suas pesquisas, não sendo razoável, conseqüentemente, impor-lhe tal ônus excessivo. Afirma que, na mesma declaração usada pelo Estado do Rio Grande do Sul para responsabilizar o laboratório GENZYME, o Dr. Giugliani declarou que a continuidade do tratamento se daria por meio da inclusão do paciente no programa de ICAP (“International Charitable Access Programme” – Programa Internacional de Acesso Caritativo), por tempo limitado, com término previsto para futuro próximo. Por fim, assinala que o medicamento tem de ser cobrado, pois a GENZYME é empresa privada, que se sustenta com o resultado de sua atividade empresarial, já tendo contribuído de maneira significativa para diminuir o sofrimento e para dar esperança a várias pessoas que, assim como Kauã, são portadoras de moléstias para as quais, antes das pesquisas por ele patrocinadas, não havia cura. Afirma que o Estado Social, erigido pela CF, impõe ao Estado o dever de alcançar o direito à saúde, dentre outros, aos cidadãos que dele necessitam, baseado em um vínculo de solidariedade entre as pessoas, no primado da igualdade, garantindo-se aos indivíduos que a sociedade, pelo Estado, assistirá a necessidades que porventura vierem a surgir. Requer, caso afastadas as preliminares argüidas, a improcedência do pedido de condenação da GENZYME em prover Aldurazyme a Kauã por tempo indeterminado. Juntou documentos, fls. 250/296 e 297/387. Intimadas a se manifestar acerca da contestação, à fl. 388, a parte autora afirmou que a defesa apresentada pelo laboratório demandado interessava tão-somente ao Estado do Rio Grande do Sul, impugnando, todavia, mediante negativa geral, o alegado que contrariasse os seus interesses, fl. 398. Veio aos autos a informação do óbito da parte autora, fls. 406/407. O Estado do Rio Grande do Sul, ciente do falecimento do autor, questionou a eficácia e os reais benefícios oferecidos pelo fármaco ALDURAZYME, requerendo: a) a expedição de ofício ao Serviço de Genética Médica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, para fins de esclarecimentos acerca das causas do falecimento de Kauã; b) a expedição de ofício ao Registro Civil das Pessoas Naturais da 1ª Zona da cidade de Canoas, Rio Grande do Sul, para que enviasse cópia do Atestado Médico de Óbito, considerando ter sido juntado apenas o Registro de Óbito; c) a expedição de ofício ao Hospital Universitário Ulbra, na cidade de Canoas, local do falecimento do autor, para que apresentasse cópia do prontuário médico do menino, fls. 410/411. Embora tenha havido o óbito do autor, foi determinada pelo Juízo a continuidade da instrução do processo, atendendo-se o postulado pelo Estado do Rio Grande do Sul, fl. 412. Contra a decisão que determinou o prosseguimento do feito, interpôs o laboratório chamado ao processo agravo de instrumento, fls. 420/447, ao qual foi negado provimento, à unanimidade, fls. 578/585, agravo de instrumento 70021147137. Veio aos autos a cópia do prontuário médico do autor, enviado pelo Hospital Universitário Ulbra, na cidade de Canoas, local do falecimento do autor, fls. 450/534. Veio aos autos, também, documento médico assinado pelo Dr. Roberto Giugliani, do Serviço de Genética Médica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, para fins de esclarecimentos acerca das causas do falecimento de Kauã, fls. 540/565. Veio aos autos, por fim, cópia do Atestado Médico de Óbito do autor, fls. 571/572. O Estado do Rio Grande do Sul apresentou manifestação, juntando laudo médico, segundo o qual o óbito de Kauã não foi secundário ao uso do medicamento ALDURAZYME, mas decorrente da sua doença de base, a forma mais grave da Mucopolissacaridose tipo I. Assinalou, ainda, que, conforme análise da médica Vanessa Schwartz, o tratamento de altíssimo custo determinado judicialmente com o medicamento ALDURAZYME não foi eficaz para a doença apresentada pelo autor, demonstrando que o mesmo não é benéfico nem indicado para todos os pacientes portadores de Mucopolissacaridose tipo I. Ainda, segundo a referida especialista, há dúvidas em relação à eficácia clínica deste medicamento, principalmente no que diz respeito aos pacientes que apresentam as formas mais graves ou as formas mais leves da doença. Por fim, aduz a médica que Kauã desenvolveu anticorpos contra o medicamento, indicando que este tratamento pode não ser seguro para todos os pacientes portadores de MPS, fls. 573/576. A sucessão de Kauã, devidamente habilitada, requereu a realização de audiência de instrução e julgamento, fl. 538, o que foi determinado pelo Juízo, fl. 586. O laboratório chamado ao processo apresentou manifestação, alegando, em síntese, que, em casos similares ao presente, em ações movidas pelos participantes da mesma pesquisa realizada com kauã, o entendimento de Juízes e Promotores tem sido no sentido de que a responsabilidade pelo fornecimento do fármaco ALDURAZYME é do Estado do Rio Grande do Sul, sendo limitado no tempo o fornecimento do medicamento, gratuitamente, pelo laboratório patrocinador da pesquisa, fls. 591/679. fls. 685/687. A GENZYME DO BRASIL LTDA. juntou aos autos rol de testemunhas, Durante a instrução, foram ouvidos a genitora de Kauã, Ana Paula, a testemunha Maria Verônica, a testemunha Roberto Giugliani e o informante Carlos Alberto, fls. 698/727. A GENZYME DO BRASIL LTDA. impugnou trechos da degravação realizada, fls. 732/736, o que foi acolhido pelo Juízo, fl. 737, sendo efetuada a correção pelo setor de degravação, fls. 740/741, tendo a GENZYME manifestado-se de acordo com as correções realizadas, fl. 749. Em memoriais, reiterou a sucessão da parte autora a procedência do pedido, fls. 754/755, todavia, no que tange ao debate existente entre o Laboratório chamado à lide e o Estado, deixou de expressar qualquer manifestação, por não ser de seu interesse, interessando tão-somente a essas partes. Em memoriais, o Estado do Rio Grande do Sul, reiterando os argumentos de contestação, afirmou a existência de responsabilidade legal do laboratório pelo fornecimento do medicamento, devendo ser ressarcido ao erário os valores dispendidos na presente demanda. Assinala que Kauã participou de pesquisa realizada junto ao Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), estudo este patrocinado pelo Laboratório GENZYME, fabricante do medicamento, que culminou com sua aprovação perante a ANVISA, em 22 de agosto de 2005. Assim, coloca, somente através de voluntários como Kauã, que se sujeitaram, arriscando a própria saúde, à eventualidade de a pesquisa ser inexitosa, é que o Laboratório patrocinador obteve desta feita sucesso no resultado do estudo e aprovou seu fármaco junto à ANVISA, sendo justo e ético que o Laboratório patrocinador dê o devido retorno, através da correspondente assistência farmacêutica, àqueles que contribuíram, pondo em riso sua própria saúde, para o avanço da medicina farmacológica e permitiram ao Laboratório patrocinador lançar no mercado a nova droga, aumentando seu poder de competitividade e, por conseguinte, sua lucratividade. Aduz, ainda, que as pesquisas com seres humanos estão regradas por meio de Resoluções do Conselho Nacional de Saúde, que prevêem as obrigações dos responsáveis pela pesquisa e os cuidados com os participantes, não apenas durante os estudos, mas também depois, como corolário ético-lógico, ressaltando o disposto na letra “p”, III.3, da Resolução 196, do Conselho Nacional de Saúde, e o item IV.1, da Resolução 257, também do Conselho Nacional de Saúde. Afirma ser cristalino que o intuito desses dispositivos é o de que, findos os estudos, o patrocinador tem o dever de assegurar aos participantes da pesquisa, a continuidade do tratamento objeto da pesquisa através do fornecimento do medicamento testado que, comprovadamente, tenha se mostrado superior ao tratamento convencional, e, subsidiariamente, na inexistência da figura do patrocinador, respondem pela obrigação a instituição, o pesquisador ou o promotor, não havendo justificativa ética ou legal para que o Estado, em sentido amplo, assuma o custo do tratamento das pessoas usadas pelo laboratório para o desenvolvimento de nova droga que irá lhe proporcionar lucro. Frisa, mais uma vez, que o compromisso assumido pelo patrocinador da pesquisa supera a obrigação constitucional do Poder Público de fornecer medicamentos, ou seja, a relação obrigacional entre a GENZYME e Kauã é prejudicial à obrigação do Estado vinculada à saúde. Assevera que a GENZYME assumiu a obrigação, de livre e espontânea vontade, ao patrocinar a pesquisa em território nacional, não podendo agora querer imputar ao Estado o risco de sua atividade, pois assumiu a obrigação legal em vista da sua pesquisa. Sustenta que, embora haja informação do Dr. Roberto Giuglianni no sentido de que o protocolo de pesquisa previa a continuidade do fornecimento do medicamento após encerrado o período de pesquisa, sem mencionar termo final, a empresa não trouxe aos autos qualquer documento apto a infirmar esta informação ou esclarecendo, mesmo em audiência, que a sua obrigação de fornecimento estava limitada no tempo. Ao contrário, quer imputar a sua boa-fé o fornecimento do medicamento após o encerramento do período de pesquisa, como se não houvesse assumido a obrigação, no próprio protocolo de pesquisa. Ainda que o representante do Laboratório chamado ao processo, em juízo, tenha afirmado que a GENZYME sempre se pauta por seguir a legislação do país onde está, parece o Laboratório olvidar-se de parte da legislação que regra a matéria, exatamente por lhe desfavorecer: letra “p”, III.3, da Resolução 196/96, combinada com a letra “m”, do item IV.1, da Resolução 257/97, ambas do Conselho Nacional de Saúde, que determinam, expressamente, que o patrocinador deve garantir, finda a pesquisa, o acesso ao medicamento testado aos participantes do estudo. Giza também que o interesse do Laboratório vai além de desonerar-se da obrigação contraída: ao conseguir que o Estado alcance o medicamento aos participantes da pesquisa que ingressaram no Judiciário pleiteando a fornecimento do fármaco de sua fabricação exclusiva, consegue também novo contrato de venda de seu produto, na medida em que é o único fornecedor do medicamento pleiteado na exordial, não havendo, portanto, sequer concorrência para obter-se o melhor preço ofertado. Destarte, deverá o Laboratório GENZYME ser responsabilizado pelo fornecimento do LARONIDASE (ALDURAZYME), devendo, via de conseqüência, ser condenado a ressarcir o erário de todo e qualquer valor dispendido para fins de aquisição do fármaco. Sustenta, também, a falta de evidências da eficácia da medicação, ao menos em alguns casos, conforme a prova documental e testemunhal produzida ao longo da instrução, assinalando que a CEDAC (“The Canadian Expert Drug Advisory Committee”) - equivalente à ANVISA – recomendou que o medicamento LARONIDASE não entrasse nas listas de medicamentos dispensados pelo Canadá, conforme demonstra a documentação acostada, porque não foram notadas diferenças no tocante a melhora da qualidade de vida, a maioria dos pacientes desenvolveu anticorpos contra o fármaco e o o custo para a sua aquisição é por demais elevado. Por fim, em sendo outro o entendimento do Juízo, requer a reabertura da instrução, com a realização de produção de prova pericial na área de farmacologia, ou, por meio do instituto da prova emprestada, determinar que venha aos autos esta mesma prova, que teve a sua realização determinada em processos que tramitam neste Juízo, dizendo respeito a casos que também envolvem a eficácia do medicamento LARONIDASE. Juntou documentos, fls. 767/777 e 778/793. Em memoriais, a GENZYME DO BRASIL LTDA. requereu a improcedência do pedido deduzido pelo Estado, reiterando os argumentos lançados ao longo da instrução, afirmando, também, com base em parecer do Professor Octávio Ferraz, trazido aos autos, que o TCLE não pode ser entendido como um contrato entre as partes, que encerre definitivamente direitos e obrigações, mas sim como um documento ético, pelo qual o paciente é esclarecido dos riscos e consente livremente em participar da pesquisa, sustentando também que a redação do TCLE é extremamente vaga, de modo a não permitir a interpretação feita pelo Estado do Rio Grande do Sul. Aduz que as principais informações dadas ao paciente são realizadas pelo contato com seu médico, que antecede o início da pesquisa. Assevera que a pesquisa realizada junto ao Hospital de Clínicas de Porto Alegre dizia respeito à doença congênita rara, ou seja, de baixa incidência populacional e de alta complexidade, que exige investimentos milionários em pesquisa, razão pela qual tais doenças não são de interesse da maior parte dos laboratórios pesquisadores privados, justamente em função do alto risco envolvido em seu desenvolvimento e de seu baixo retorno financeiro. Assinala que os medicamentos desenvolvidos para tais doenças raras são conhecidos como “drogas órfãs”, justamente porque não há, via de regra, laboratório interessado em assumir-lhes a maternidade ou a paternidade, todavia foi justamente neste nicho que resolveu atuar a GENZYME, afirmando que o ALDURAZYME, em razão da baixíssima incidência da Mucopolissacaridose tipo 1, é chamado de “droga ultra-órfã”. Salienta que nos Estados Unidos da América, os fabricantes de “drogas-órfãs” recebem inúmeros benefícios, como a exclusividade de comercialização por 7 anos e isenções fiscais, todavia, mesmo com tais benefícios, justamente pelo extremo custo de sua pesquisa. Sustenta que o HCPA foi procurado pela BIOMARIN/GENZYME por ser considerado instituição “de ponta” em pesquisas clínicas no Brasil, ressaltando que o Dr. Roberto Giugliani, em juízo, esclareceu que o HCPA procura atrair estudos clínicos, como o que foi realizado com Kauã, sendo que tais pesquisas seriam mais facilmente realizadas nos EUA ou na Europa, inclusive porque lá se possibilita o acesso antecipado da medicação aos pacientes que dela precisam. Afirma que a GENZYME procura atrair este tipo de pesquisa ao Brasil porque são inúmeros os benefícios aos doentes representados pelo fornecimento gratuito de uma droga cuja eficácia já era aprovada por organismos internacionais, tanto mais quando as moléstias são degenerativas e matam precocemente, como é o caso da Mucopolissacaridose tipo 1, ressaltando que o fármaco é dispensado gratuitamente antes mesmo de sua disponibilidade no mercado. Assevera que o estudo clínico ora debatido não se prestava a atestar a eficácia do ALDURAZYME, pois este já estava aprovado nos EUA e na Europa, visando apenas a optimizar a dose do medicamento aos pacientes com MPS-1, ou seja, checar se o medicamento possuía a mesma resposta se fosse aplicado com um maior intervalo. Em verdade, um grupo receberia, ao invés de uma dose de ALDURAZYME por semana (o que era aprovado pela FDA), o dobro da dose a cada 15 dias. Os resultados desse grupo seriam confrontados com o de outro grupo, que receberia a dose na freqüência normal (daí o estudo ser randomizado, porque os grupos eram aleatoriamente formados). Ainda, ele era multicêntrico, pois não foi realizado apenas no HCPA, mas, também, em outros centros no Brasil, e multinacional, porque foi feito no Canadá. Destarte, frisa que o ALDURAZYME nada tinha de experimental quando realizado o estudo clínico, sendo que a optimização da dose visava apenas à melhora na qualidade de vida dos pacientes e seus familiares, justamente porque a aplicação do medicamento altera toda a rotina de vida de uma família, que tem que se deslocar semanalmente ao hospital para receber a infusão, já que o fármaco não pode ser aplicado em casa ou em farmácia. Assinala que mesmo a inclusão de Kauã no ICAP, após a conclusão do estudo clínico, e finda, portanto, a obrigatoriedade de fornecimento ALDURAZYME por parte do Laboratório, visava ao fornecimento do fármaco por prazo determinado, o que foi corroborado pelas testemunhas, em juízo, sendo o mesmo o entendimento da genitora de Kauã, a qual também afirmou, em audiência, que jamais lhe foi prometido o fornecimento do fármaco ao filho, gratuitamente, e pelo resto da vida. Coloca que seria antiético, por parte do Laboratório, prometer fornecer o medicamento eficaz, de graça, pela vida do paciente, porquanto tal promessa poderia influenciar na tomada da decisão de participação na pesquisa, o que é vedado, porque o paciente deve manifestar livremente o seu consentimento. Sustenta ter restado comprovado nos autos que a BIOMARIN ou a GENZYME jamais prometeram entregar a Kauã o ALDURAZYME, gratuitamente, e por prazo indeterminado, assim já tendo sido decidido pelo Egrégio Tribunal de Justiça em caso similar. Aduz que no direito comparado, em nenhum dos países mencionados ao longo da instrução – Holanda, Reino Unido, EUA e Canadá – encontra-se a obrigação do patrocinador de qualquer pesquisa clínica de custear o tratamento dos participantes por toda sua vida, não havendo regulamentação nesses países acerca do fornecimento pós-estudo, sendo os fármacos custeados pelo Poder Público ou pelo seguro-saúde. Afirma que mesmo em países com extrema limitação de recursos financeiros (que não é o caso do Brasil) o patrocinador somente terá de fornecer os medicamentos aos pacientes após a pesquisa enquanto pendente sua aprovação pelas autoridades competentes, nos termos da Diretriz 10, da CIOMS (Conselho para Organizações Internacionais das Ciências Médicas da ONU). Sustenta que, como o laboratório pode escolher qualquer país do mundo para realizar suas pesquisas, certamente a imposição da obrigação de fornecimento gratuito e pela vida do paciente do medicamento afugentaria do Brasil os estudos clínicos, com evidentes prejuízos aos médicos e pacientes do país, o que foi confirmado pela prova oral trazida aos autos. Assevera não existir no ordenamento jurídico brasileiro qualquer imperativo legal que imponha ao Laboratório a obrigação em debate, ressaltando que o Conselho Nacional de Saúde não possui competência dada por lei para a produção de atos normativos sobre pesquisas clínicas, ou seja, não tem a capacidade para editar regulamentos vinculantes, tais como o fazem a ANVISA ou a Receita Federal, assim, as normas baixadas pelo CNS têm ordem puramente ética, e servem para orientar, nesse particular, a pesquisa clínica em seres humanos. Afirma não existir sequer a obrigação ética por parte do Laboratório em fornecer a droga pesquisada, na medida em que, para atender ao disposto nas alíneas “m” e “p” da Resolução 196/96, CNS, a obrigação da GENZYME será a de envidar os seus melhores esforços para aprovar a venda do ALDURAZYME na ANVISA, obtendo o registro do medicamento, garantindo, assim, sua possibilidade de acesso aos pacientes que do remédio necessitam. Juntou parecer, fls. 794/837 e 838/869. O Ministério Público emitiu parecer, argüindo, preliminarmente, que, com o falecimento de Kauã, agora substituído pela sucessão, é incompetente o Juízo da Infância e da Juventude para o julgamento do presente processo, que deve ser redistribuído, novamente, à 2ª Vara da Fazenda Pública. Em relação ao mérito, afirma, em síntese, que, por disposição constitucional e infraconstitucional, é do Estado do Rio Grande do Sul a obrigação de alcançar às pessoas o direito à saúde, não cabendo a aplicação ao caso concreto da “teoria da reserva do possível. O órgão ministerial afirma, igualmente, que a medicação utilizada por Kauã foi eficaz, porquanto, a prova produzida ao longo da instrução demonstra que, enquanto fez uso do fármaco, Kauã obteve melhorias em sua qualidade de vida, não tendo sido o laudo médico acerca de sua morte conclusivo de que ela tenha ocorrido por ter ele desenvolvido anticorpos contra a laronidase. Ademais, afirma, a doença que o acometia possui muito elevado índice de mortalidade na primeira década de vida, sendo que o fármaco não tinha por função a cura do paciente, mas a melhora de seu quadro geral. Além disso, o fármaco foi aprovado pela ANVISA, órgão encarregado de examinar a eficiência e a segurança dos medicamentos. Assevera que deve ser afastada a alegação de ilegitimidade passiva da GENZYME DO BRASIL LTDA. Quanto à responsabilidade da empresa, todavia, assinala não existir obrigação legal ou contratual a determiná-la, afirmando que os participantes da pesquisa aderiram ao estudo porque tinham interesse na aprovação do produto e ter a disponibilidade de prosseguir no tratamento, não necessariamente através do fornecimento, por toda a vida, pelo Laboratório, que a isso não se obrigou. Destaca que o Laboratório inclusive forneceu para Kauã o medicamento por mais sete meses, com sua inclusão em programa caritativo – ICAP, mantido pela “GENZYME CORPORATION”, para as pessoas que não têm condições de arcar com os custos do medicamento e que não o obtiveram do Estado. Assevera que a GENZYME jamais parou de fornecer o medicamento para nenhum dos participantes de sua pesquisa, a não ser quando o obtiveram junto ao Poder Público. Coloca que, embora fosse ético que a Resolução 196/96, CNS, e a Resolução 257/97, CNS determinassem o fornecimento do fármaco gratuitamente ao sujeito de pesquisa, pelo restante da vida, através do Laboratório patrocinador, isto inocorre. Por fim, assevera que o Estado, ente federado, poderia intervir nesta relação, como faz quando “quebra a patente” de medicamentos, ou, através da ANVISA, somente autorizando pesquisas de forma condicionada ao fornecimento do medicamento aos participantes, enquanto dele necessitar. No entanto, não o fez, não podendo, agora, exigir, “a posteriori”, que a empresa supra, com a responsabilização pelo fornecimento do medicamento, a inércia do agir preventivo do Estado. Destarte, improcede a demanda contra a GENZYME DO BRASIL, inexistindo responsabilidade solidária entre o Estado do Rio Grande do Sul e o Laboratório BIOMARIN/GENZYME (GENZYME DO BRASIL), subsistindo a responsabilidade do Estado do Rio Grande do Sul, razão pela qual opina pela procedência da ação proposta pela sucessão de Kauã contra o Estado do Rio Grande do Sul e a improcedência do chamamento ao processo da Genzyme do Brasil. É o relatório. Decido. Preliminar de legitimidade passiva e de modalidade correta do instituto da intervenção de terceiros. A legitimidade passiva da “GENZYME DO BRASIL LTDA.” é inconteste. Com efeito, legitimado passivo será sempre aquele contra quem se formula a pretensão, contra quem se pede a execução e contra quem se pretende a cautela, respectivamente. Especificamente no processo de conhecimento, para que a parte seja considerada legítima, basta que contra ela seja deduzida a pretensão. Se o direito pretendido não existir, nem por isso a parte deixou de ser legítima. Atribui-se, por exemplo, a responsabilidade por determinada obrigação a outrem, todavia a defesa não é de ilegitimidade para a causa, mas se relaciona com o próprio mérito, pois o pedido mesmo que será rejeitado, se o juiz não atendê-lo, reconhecendo a ausência de responsabilidade do réu, ainda que o fundamento seja de admiti-la exclusivamente a terceiro2[2]. No caso, conforme referido no relatório, contra a decisão de acolhimento do chamamento ao processo do Laboratório BIO MARIN/GENZYME, a “GENZYME DO BRASIL LTDA.” interpôs agravo de instrumento, fls. 221/249, tendo sido mantida a decisão pelo Juízo, fl. 388, e negado, à unanimidade, provimento ao agravo de instrumento pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, fl. 396, agravo de instrumento 70018752733. Da decisão do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que incluiu a “GENZYME DO BRASIL LTDA.” como chamada ao processo, esta interpôs embargos de declaração, fls. 381/391, processo 70020333605, que foram rejeitados, fls. 393/399, processo 70020333605. A “GENZYME DO BRASIL LTDA.” interpôs, contra a decisão do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que a incluiu como chamada ao processo, Recurso Especial, processo 70020333605, fls. 402/418, ao qual, após tendo sido dada vista ao Estado, para a apresentação de contra-razões, fls. 424/430, foi negado seguimento, fls. 443/445. Contra a decisão de negativa de seguimento ao Recurso Especial, a “GENZYME DO BRASIL LTDA.” interpôs agravo de instrumento junto ao Superior Tribunal de Justiça, nº 988237/RS, ao qual, após manifestação do Ministério Público Federal, fls. 500/501, foi negado provimento, fls. 538/539, e, opostos embargos de declaração, foram estes rejeitados, fls. 541/600, tendo havido o trânsito em julgado da decisão, nesse ponto, portanto. Assim, como se vê, o chamamento ao processo da GENZYME DO BRASIL LTDA. foi admitido, tendo a decisão transitado em julgado. Conforme bem referido no julgamento do Agravo de Instrumento 70018752733, segundo se verifica da análise dos autos, Kauã era portador de “Mucopolissacaridose Tipo 1”, enfermidade genética rara e progressiva, resultante da carência da enzima “alfa-L-iduronidase”. A medicação postulada por Kauã, “ALDURAZYME” (nome comercial dado ao fármaco pelo laboratório), segundo noticiam uma série de documentos acostados aos autos, é indicada como terapia de reposição enzimática, atuando de maneira aparentemente eficaz no tratamento e controle da doença. Ainda, de acordo com os documentos existentes nos autos, a GENZYME e a BIO MARIN promoveram, em parceria com o Hospital de Clínicas de Porto Alegre, estudo com pessoas portadoras da supramencionada enfermidade, as quais aderiram de maneira voluntária ao programa proposto, cujo objetivo era determinar a segurança e eficácia do tratamento com “ALDURAZYME”, com doses diversas daquelas aprovadas pela internacionalmente famosa “Food and Drug 2 [2] Emane Fidélis dos Santos, In "Manual de Direito Processual Civil - Processo de Conhecimento", v. I, 10 ed., Saraiva: São Paulo, 2.003, p. 540. Administration” (FDA). Como resultado do estudo, conseguiu o laboratório o registro do seu medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), sendo o estudo posteriormente encerrado. Kauã, autor da ação, aderiu ao supramencionado estudo, tendo iniciado o seu tratamento, consistente em 26 infusões semanais, em 01 de fevereiro de 2005. Ao término do estudo, Kauã foi inscrito no Programa Caritativo de Tratamento – ICAP (“Internationat Charithable Access Programme”), o qual também restou extinto. Desamparado, ajuizou Kauã ação em desfavor do Estado do Rio Grande do Sul, objetivando continuar a receber a medicação antes fornecida pelos laboratórios, uma vez que não pôde adquiri-la, em face do elevadíssimo custo. O Estado do Rio Grande do Sul, citado, requereu o chamamento ao processo do Laboratório BIO MARIN/GENZYME, o que, como destacado, restou acolhido pelo Juízo. Ademais, ao confirmar o chamamento ao processo da “GENZYME DO BRASIL LTDA.”, decisão esta que, como acima foi visto, transitou em julgado, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, sem alteração do entendimento pelos Tribunais Superiores, reconheceu, ao menos em tese, a existência de solidariedade entre o réu Estado do Rio Grande do Sul e o Laboratório patrocinador da pesquisa, no que diz respeito à obrigação de manutenção de fornecimento do fármaco ao paciente após o término da pesquisa. Tanto é assim que, no julgamento do Agravo de Instrumento 70018752733, à unanimidade, foi decidido: “De acordo com a declaração prestada pelo Chefe do Serviço de Genética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Dr. Roberto Giugliani, segundo o protocolo clínico aprovado pelo Comitê de Ética do HCPA, o laboratório Genzyme do Brasil Ltda. comprometeu-se a continuar fornecendo o medicamento aos participantes do estudo após o seu término (fls. 120 e 121, grifei), o que de resto ocorreu, com sua inclusão no programa caritativo de tratamento, porque sem condições ao pagamento da medicação, por mais 14 infusões. É essa a prova mais contundente existente nos autos até o presente momento, e que não conseguiu ser derrocada pela parte agravante. Não se pode pretender, entretanto, que o laboratório Genzyme do Brasil Ltda. utilize seres humanos como “cobaias” em seus estudos (ainda que voluntária a participação no estudo) e, posteriormente, deixe aquelas pessoas que outrora foram de vital importância, ao efeito de obter um produto economicamente extraordinário, completamente desamparadas, em especial quando comprovou-se melhoras com o uso da medicação, situação que gerou expectativa nos voluntários. De se ver que a Resolução nº 196 do Conselho Nacional de Saúde (“Diretrizes e Normas de Pesquisa em Seres Humanos”), no item III, dos “Aspectos Éticos da Pesquisa envolvendo seres humanos”, alíneas “m”, “n” e “p” escancara a finalidade de garantir aos pacientes participantes de pesquisa o posterior acompanhamento pelo pesquisador e pelo patrocinador, com ênfase para a manutenção dos benefícios recebidos durante o estudo e garantia de acesso ao produto resultante da pesquisa, independentemente da subscrição de qualquer protocolo. Postura, aliás, inserida nos “valores” preconizados pela empresa embargante em seu “site”: “Ética, Excelência, Inovação, Responsabilidade social e ambiental, Competência e Compromisso” (fl. 113). Ao pretender a empresa agravante a realização do projeto em território nacional, deve submeter-se às regras administrativas específicas, sujeitando-se à observação e fiscalização do Estado. Assim, querendo ou não a empresa agravante, o projeto, ao efeito de propiciar o futuro registro na ANVISA, na espécie, a fixação de dosagem diferenciada, autoriza reconhecer o vínculo com o Estado, a quem compete a obrigação constitucional de fornecer o medicamento, o qual deve ser mantido, em face da responsabilidade ética da empresa, o que autoriza a manutenção do chamamento ao processo. Assim, na espécie, tendo em vista a excepcionalidade da situação dos autos, o menor Kauã é quem deve, primeiramente, ser protegido, não havendo argumentos que justifiquem, por ora, a exclusão do ora agravante do pólo passivo da demanda” (grifei). Importante, todavia, que sejam feitas pontuais e breves considerações acerca das questões processuais trazidas aos autos, mormente no que diz respeito a intervenção de terceiros. No momento processual em que veio aos autos a contestação do Estado do Rio Grande do Sul, recém havia, a bem dizer, iniciado a instrução. Naquele momento, portanto, difícil ao Juízo, com a certeza que apenas a instrução probatória trouxe, assinalar se a intervenção de terceiro postulada pelo réu Estado do Rio Grande do Sul – o chamamento ao processo – era, ou não, a mais correta ao presente caso. Com efeito, o que a instrução probatória fez ver, com clareza, é que, a todo momento, tanto na contestação como nos demais momentos em que coube ao réu Estado do Rio Grande do Sul se pronunciar durante o trâmite processual, ele jamais baseou suas manifestações na existência de uma solidariedade entre ele e os laboratórios chamados ao processo, tal qual é esta prevista no direito material (podendo ser definida, brevemente, como um instituto de direito material que favorece o credor, que pode cobrar de um ou alguns dos co-devedores solidários a totalidade da dívida, sem que isto importe renúncia à solidariedade, conforme dispõe o artigo 275 e parágrafo único, do Código Civil). Diante disso, o que se quer dizer, é que, embora o réu Estado do Rio Grande do Sul tenha postulado, ao fim da peça contestacional, como pedido expresso, o chamamento ao processo dos laboratórios, a fundamentação toda do ente público baseou-se na idéia de que, em realidade, sua responsabilidade, se houvesse, seria subsidiária a dos laboratórios chamados ao processo, e não solidária. O instituto do chamamento ao processo, cumpre ressaltar, de acordo com a posição dominante, consiste em uma ação condenatória exercida pelo devedor solidário que, acionado sozinho para responder pela totalidade da dívida, pretende acertar, na ação secundária de chamamento, a responsabilidade do devedor principal ou dos demais co-devedores solidários, estes na proporção de suas cotas. O que se verá, com mais vagar durante a fundamentação, é que a solidariedade, prevista seja na legislação material seja no diploma processual, não se aplica ao caso “sub judice”. O que existe, em verdade, é responsabilidade subsidiária do Estado, e não solidariedade, como se verá. Conforme aponta o eminente processualista Celso Agrícola Barbi3[3], no 3[3] Celso Agrícola Barbi, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, Arts. 1º a 153, 10ª edição, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1998, p. 267-268. item III, do artigo 77, do Código de Processo Civil, a lei prevê o chamamento de todos os devedores solidários, quando o credor exigir de um, ou de alguns deles, parcial ou totalmente, a dívida comum. Segundo o mencionado autor, a razão que inspira este inciso é a mesma que levou o legislador a enumerar os casos do item II, isto é, o devedor acionado, que tiver direito de receber de outros devedores, parte do que pagar, poderá chamá-los ao processo para que a sentença, além de incluílos na condenação, sirva, ao que pagou, como título executivo para receber dos demais o que a lei lhe permitir cobrar. O requisito fundamental, portanto, para a aplicação do inciso é a existência de solidariedade entre o devedor acionado e aqueles que ele quer chamar ao processo. Portanto, como apontamento essencial, neste início, faz-se necessário reconhecer que a modalidade de intervenção de terceiros correta no presente caso é a denunciação da lide, e não o chamamento ao processo, em razão da inexistência de solidariedade, mas sim de subsidiariedade entre o réu Estado do Rio Grande do Sul e os laboratórios denunciados, haja vista que os laboratórios aos quais a lide foi denunciada estão obrigados, por lei e por contrato, como adiante se verá com mais cuidado, a indenizar, em ação regressiva o prejuízo do que perder a demanda (este o réu Estado do Rio Grande do Sul). Tal está previsto no artigo 70, inciso III, do Código de Processo Civil: “Art. 70. A denunciação da lide é obrigatória: (...) III - àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda”. No presente caso, tanto o denominado Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) como a legislação pertinente estabelecem claramente para os laboratórios denunciados a responsabilidade de manutenção do fornecimento do fármaco desenvolvido ao sujeito de pesquisa – o ser humano pesquisado – que foi utilizado no experimento, auxiliando decisivamente na descoberta/aprimoramento do fármaco. A responsabilidade dos laboratórios patrocinadores, aos quais a lide foi denunciada, não se encerra com o término do experimento, mas acompanha o sujeito de pesquisa enquanto esse necessitar da medicação, sob pena de afronta inaceitável à dignidade da pessoa humana. Ademais, tem-se admitido, em certos casos, inclusive, conforme decisões do Superior Tribunal de Justiça, o manejo de ação de responsabilidade civil diretamente contra quem estiver obrigado, em ação regressiva, a indenizar o prejuízo, conforme leciona Theotonio Negrão4[4]: “A ação de responsabilidade civil pode ser movida diretamente contra quem estiver obrigado, em ação regressiva, a indenizar o prejuízo. Assim: ‘Pode a vítima em acidente de veículos propor ação de indenização diretamente, também, contra a seguradora, sendo irrelevante que o contrato envolva, apenas, o segurado, causador do acidente, que se nega a usar a cobertura do seguro’(STJ-RJTAM 81/402: 3ª Turma). No mesmo sentido: RSTJ 168/377 e RDPr 16/340 (4ª Turma)”. A propósito, ainda, a seguinte decisão: “RESPONSABILIDADE CIVIL - ACIDENTE DE TRÂNSITO - SEGURO AÇÃO PROPOSTA CONTRA O CAUSADOR DO DANO DENUNCIAÇÃO DA LIDE FEITA À SUA SEGURADORA CONDENAÇÃO DESTA ÚLTIMA - ADMISSIBILIDADE - Reconhecido o dever de a seguradora denunciada honrar a cobertura do sinistro, é permitido ao Julgador proferir decisão condenatória diretamente contra ela. Precedentes do STJ. Recurso Especial não conhecido." (STJ 4a T. - REsp 290608/PR - Rei. Min. Barros Monteiro - DJU 16.12.2002)”. Destarte, tem-se a intervenção de terceiros, a partir de agora, 4[4] Código de Processo Civil e legislação processual em vigor, Theotonio Negrão e José Roberto Ferreira Gouvêa, 37ª edição, São Paulo: Saraiva, 2005, p. 190. corretamente classificada, como de denunciação da lide. Conforme autorizada doutrina e jurisprudência, é isto plenamente possível, ou seja, o reconhecimento, pelo Juízo, da figura correta de intervenção de terceiros, embora a parte tenha, expressamente, requerido figura diversa, que, em verdade, contrariou toda a fundamentação de seu próprio requerimento. Theotonio Negrão, na obra mencionada, p. 184, assim dispõe, citando precedente do Superior Tribunal de Justiça: “Se, erroneamente, o réu denuncia a lide a terceiro, em vez de nomeálo à autoria, e o terceiro comparece e se defende, pode, pelo princípio da instrumentalidade, ser condenado a ressarcir o dano (STJ-4ª Turma, REsp 1.959-SP, rel. Min. Bueno de Souza, j. 9.2.93, não conheceram, v.u., DJU 13.9.93, p. 18.562)” (grifei). Tudo isso impõe seja relevada a espécie de intervenção de terceiros adotada pelo réu, sob pena de não dar cumprimento ao objetivo do processo. Lembre-se que a finalidade das normas processuais "(...) é a composição dos conflitos de interesse que se manifestam entre os indivíduos ou os grupos", já que "(...) o próprio processo é um mecanismo destinado a essa fínalidade, enquanto serve para a composição dos conflitos que revestem a forma de litígio" (CARNELUTTI, Francesco. Sistema de direito processual civil. Trad. Por Hiltomar Martins Oliveira. 2 ed. São Paulo: Lemos e Cruz, 2004, p. 144). Ademais, o princípio da instrumentalidade impõe que "O processo deve cumprir seus escopos jurídicos, sociais e políticos, garantindo: pleno acesso ao Judiciário, utilidade dos procedimentos e efetiva busca da justiça no caso concreto." (PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 6 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005, p. 48). E, diretamente correlato a este princípio, encontra-se o da efetividade do processo, "(...) ou seja, para a plena consecução de sua missão social de eliminar conflitos e fazer justiça, é preciso, de um lado, tomar consciência dos escopos motivadores de todo o sistema (sociais, políticos, jurídicos: v. supra, n. 4); e de outro, superar os óbices que a experiência mostra estarem constantemente a ameaçar a boa qualidade do seu produto final." (GRINOVER, Ada Pelegrini; e Outros. Teoria Geral do Processo. 15a ed. São Paulo: Malheiros Editores: 1999, p. 34). Veja que um destes óbices a que se refere a proposição anterior é o da utilidade das decisões, segundo o qual "Todo processo deve dar a quem tem um direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de obter. Essa máxima de nobre linhagem doutrinária constitui verdadeiro slogan dos modernos movimentos em prol da efetividade do processo e deve servir de alerta contra tomadas de posição que tornem acanhadas ou mesmo inúteis às medidas judiciais, deixando resíduos de injustiça." (GRINOVER, Ada Pelegrini; e Outros. Op. cit, p. 35). Conforme acima afirmado, no momento processual em que veio aos autos a contestação do Estado do Rio Grande do Sul, recém havia, a bem dizer, iniciado a instrução. Naquele momento, portanto, difícil ao Juízo, com a certeza que apenas a instrução probatória trouxe, assinalar se a intervenção de terceiro postulada pelo réu Estado do Rio Grande do Sul – o chamamento ao processo – era, ou não, a mais correta ao presente caso. Assim, com a aplicação do princípio da instrumentalidade, cumprindo recordar, também, a aplicação, por analogia, do princípio da fungibilidade recursal, na medida em que o “nomen iuris” dado pela parte à intervenção de terceiros é irrelevante, é recebido o chamamento ao processo como denunciação à lide. Nesse sentido decisões respeitáveis do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul: “Agravo de Instrumento 1229833600 Relator(a): Carlos Alberto Bondioli Órgão julgador: 8ª Câmara (Extinto 1° TAC) Data do julgamento: 29/10/2003 Data de registro: 17/11/2003 Ementa: ILEGITIMIDADE "AD CAUSAM" - INDENIZAÇÃO POR ATO ILÍCITO - Locação de táxi - Ocorrência de acidente - Alegação de ilegitimidade passiva - Descabimento - Hipótese que a locadora de veículos é responsável solidariamente com o locatário - Súmula 492 do STF - Legitimidade reconhecida - Recurso não provido. INTERVENÇÃO DE TERCEIROS - DENUNCIAÇÃO DA LIDE Pretensão à nomeação a autoria ou, alternativamente, denunciação da lide - Hipótese, que, apesar do o caso mais se assemelhar ao chamamento ao processo, cabível a denunciação da lide - Recurso provido” EMENTA: APELAÇÃO. EMBARGOS À AÇÃO MONITÓRIA. HONORÁRIOS DE PROFISSIONAL LIBERAL. CIRURGIÃO BUCOMAXILOFACIAL. CIRURGIA PÓS ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO. SUTURAS NA FACE. A administradora do plano de saúde não pode ser condenada diretamente ao pagamento dos honorários do cirurgião bucomaxilofacial, pois a relação de direito material deu-se entre o profissional e o paciente. Procedência da monitória em relação ao paciente e ao responsável, constituindo título executivo em relação a eles. Aplicação, por analogia, do princípio da fungibilidade recursal, pois o nomen iuris dado pela parte à intervenção de terceiros é irrelevante. Recebimento do chamamento ao processo como denunciação à lide. Manutenção da condenação da administradora do plano de saúde, denunciada à lide pela parte ré, em direito regressivo, tendo em vista que o contrato mantido com o paciente somente afasta de sua cobertura tratamento odontológico, o que obviamente não inclui a cirurgia realizada. APELO DO AUTOR PROVIDO. APELO DA UNIMED IJUÍ IMPROVIDO. (Apelação Cível Nº 70008072068, Décima Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Victor Luiz Barcellos Lima, Julgado em 12/05/2004)” (grifei). Some-se a isso a inestimável lição de Cândido Rangel Dinamarco5[5], recordando que, tanto um instituto quanto o outro, têm em comum a finalidade de propiciar à parte a condenação de um terceiro a repor seu patrimônio na situação existente antes de uma possível derrota perante o outro sujeito processual: “612. denunciação da lide e chamamento ao processo: confrontos. É delicado e em alguns pontos muito transparente o véu que delimita as áreas de incidência do chamamento ao processo e da denunciação da lide. Há tanto tempo do início da vigência do Código de Processo Civil, ainda vacilam e confundem-se os operadores do processo no momento de definir qual dessas duas espécies de intervenção é adequada ao caso (...) Esses institutos têm em comum a finalidade de propiciar à parte a condenação de um terceiro a repor seu patrimônio na situação existente antes de uma possível derrota perante o outro sujeito processual. Ambos são verdadeiras ‘vias de atalho’ e permitem que a parte se antecipe a essa derrota e prepare-se para obter o reembolso ou o ressarcimento, sem o ônus da espera para só depois agir em juízo em face do sujeito responsável. Os dois institutos são tão semelhantes, que no direito italiano correspondem a um só. (...) necessário, apesar dessa proximidade e das dificuldades que ela oferece, delimitar com precisão a área coberta por um e por outro. Só não se pode 5[5] Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de Direito Processual Civil, volume II, 5ª edição, São Paulo: editora Malheiros, 2005, pp. 420-424. chegar ao radicalismo de repelir denunciações em casos duvidosos, mediante a alegação de que rigorosamente seria caso de chamar ao processo, nem vice-versa. Como por um meio e por outro o que a lei oferece às partes é sempre um modo de atalhar caminho e obter desde logo a declaração de seu direito perante o terceiro e um título que lhe permita executar depois sobre o patrimônio deste (arts. 76 e 80), um grau de razoável fungibilidade há de ser reconhecido entre os dois institutos, sob pena de denegação da justiça” (grifei). Diante de tais ponderações, imprescindível o conhecimento da presente intervenção de terceiro como denunciação da lide, de acordo com o previsto no artigo 70, inciso III, do CPC, porque a matéria foi assim colocada ao Poder Judiciário, através de instrumento que não causou qualquer tipo de prejuízo às partes. Com efeito, nem se alegue que o princípio do devido processo legal não foi observado porquanto os laboratórios chamados ao processo, por intermédio da pessoa da GENZYME DO BRASIL LTDA., exerceram plenamente o seu direito ao contraditório, em observância ao princípio da ampla defesa. Tanto é assim que, em sua contestação, a GENZYME DO BRASIL LTDA. rebateu não apenas a modalidade de intervenção de terceiros chamamento ao processo, mas também todas as demais modalidades previstas no Código de Processo Civil, não se vislumbrando qualquer prejuízo que não o próprio mérito da decisão. Por fim, cumpre ressaltar, a solidariedade, de acordo com o Código Civil, artigo 265, não se presume, resultando ou da lei ou da vontade das partes, não ocorrendo nenhuma das hipóteses no presente caso, em que o verificado, de fato, é a subsidiariedade. Tal argumento é reforçado pelo fato de que o Estado é parte legítima para ser réu na ação manejada pelo autor Kauã, tendo a obrigação constitucional de fornecer o direito à saúde, em suas diversas modalidades, aos cidadãos, com prioridade para crianças e adolescentes. Todavia essa obrigação estatal, como se verá, é subsidiária, na medida em que compete aos laboratórios patrocinadores do experimento a obrigação primária de manutenção do fornecimento do fármaco desenvolvido com a ajuda do sujeito de pesquisa, mesmo após o término do experimento. A obrigação de manutenção de tratamento com o medicamento pesquisado e aprovado, é suficiente, como se demonstrou no início da fundamentação, para fixar a legitimidade passiva da “GENZYME DO BRASIL LTDA.”. Do contrário, haveria retrocesso de mais de 100 anos no estudo do direito processual civil, quando então vigorava o chamado “Conceito Civilista Unitário da Ação”, atualmente superado, segundo o qual não se considerava a ação um direito subjetivo distinto do direito subjetivo que ela visava a proteger. Direito subjetivo material e ação eram um único direito, não se podendo explicar os casos em que a ação fosse julgada improcedente, justamente porque a conclusão final seria a de que o autor não tinha direito subjetivo e, portanto, não tinha direito de ação. A manifesta insuficiência dessa doutrina levou-a ao abandono pela quase totalidade dos processualistas atuais. Assim, não se pode confundir a legitimidade passiva com a responsabilidade ou não pelo fornecimento do fármaco, que constitui o julgamento de mérito do pedido. De acordo com o acima visto, há suficientes e razoáveis motivos para que a “GENZYME DO BRASIL LTDA.” seja incluída, como parte legítima, no pólo passivo da presente ação, independente de ser responsável, ou não, pela manutenção da obrigação de fornecimento do fármaco enquanto o paciente utilizado em pesquisa dele necessitar. Destarte, não há razão para declarar a ilegitimidade passiva da “GENZYME DO BRASIL LTDA.” quando pairam sérias dúvidas sobre a sua conduta ética e legal na condução de pesquisas envolvendo seres humanos, já tendo sido reconhecida, em tese, a existência de solidariedade entre a empresa e o Estado do Rio Grande do Sul, decisão essa transitada em julgado. Correto, portanto, o reconhecimento da legitimidade passiva da “GENZYME DO BRASIL LTDA.”. A questão da preliminar de legitimidade passiva, todavia, não se encerra aqui, como bem demonstrou o órgão ministerial em sua manifestação. De fato, a pesquisa realizada junto ao Hospital de Clínicas de Porto Alegre foi patrocinada pela “GENZYME CORPORATION” e “BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC.”, fls. 272/273. Ambas estas 2 empresas internacionais formaram uma “joint-venture”. “Joint Venture”, de acordo com determinado Dicionário Jurídico6[6], é uma modalidade de “partnership” temporária, organizada para a execução de um único ou isolado empreendimento lucrativo e usualmente de curta duração. É uma associação de pessoas que combinam seus bens, dinheiros, esforços, habilidades e conhecimentos para executar uma única operação negocial lucrativa. Constitui uma associação de empresas nacionais e estrangeiras, com transferência de tecnologia para exploração de certa atividade negocial, mercantil ou industrial. É a fusão de interesses entre uma empresa com um grupo econômico, pessoas jurídicas ou físicas, que pretendem expandir a sua base econômica com estratégias de expansão e diversificação, com o objetivo de obter lucros ou benefícios, permanente ou temporariamente. Ademais, permitida está a realização de “joint venture” com empresa estrangeira cedente de tecnologia, que poderá aqui investir em condições de igualdade com o capital nacional, sendo que apenas sofrerá algumas restrições quanto ao direito aos benefícios e incentivos fiscais. É preciso ressaltar, ainda, que cada uma das empresas associadas conserva sua personalidade jurídica, obrigando-se pelos investimentos feitos ou fruindo dos resultados conforme o avençado no contrato. Interessante definição a respeito é trazida por Luiz Olavo Baptista e Aníbai Sierralta Ríos, na obra “Aspectos Jurídicos del Comercio Internacional”, mencionada em artigo publicado na Revista de Informação Legislativa, do Senado Federal7[7]: “uma associação de duas ou mais pessoas para realizar uma empresa isolada que implica um determinado risco ('venture'), para o qual perseguem unidas um benefício, contudo sem criar sociedade ou corporação alguma, e para isto se combinam propriedades, capitais, trabalho, conhecimento etc. No 'joint venture' cada membro atua como dono e como agente dos demais membros, e por conseguinte a promessa de um equivale à promessa de todos . O executado por um membro se entende executado por todos e se presume autorizado para realizar as atividades próprias do 'joint venture'. Todos os membros assumem as perdas segundo a proporção convencionada, e suas obrigações se encontram limitadas à duração do próprio 'joint venture'. Entre os membros se estabelece uma relação de mútua confiança e boa-fé, e enquanto a organização se encontre vigente não poderão realizar a sua própria conta aquelas atividades e atos próprios do 'joint venture', pois se assim procederem deverão reintegrar ao fundo [da associação] o que tiverem obtido de maneira particular” (grifei). Ainda, a publicação do Senado Federal fornece outro interessante conceito acerca de “joint venture”: 6 [6] 7 [7] Maria Helena Diniz, Dicionário Jurídico, volume 3, J-P, editora Saraiva, 1998, p. 6. Revista de Informação Legislativa, Brasília, DF: Senado Federal, v. 37, n. 146, p. 61-92, abr./jun. 2000. “formada pela conjugação das palavras 'joint (articulação, junção, ligação, encaixe), e 'venture' (risco, aventura), essas empresas são associações de duas ou mais empresas, que se vinculam com o objetivo de realizar uma atividade econômica específica, investindo capitais ('equity'), ou não ('non equity'), que somente poderão ser utilizados para esse fim comum. Para tal, ocorre a criação de uma entidade juridicamente autônoma, com personalidade distinta da de seus fundadores ('corporate'), ou não ('non corporate'), em que as empresas primitivas repartem os riscos e as decisões são tomadas em conjunto”. Não se quer aqui adentrar de maneira mais profunda em uma discussão acerca do que constitui uma “joint venture”, até porque, sem dúvidas, o tema oferece dificuldades e campos ainda a serem enfrentados, e não totalmente percorridos, pela doutrina, pela jurisprudência e pela legislação. Ademais, não veio aos autos o acordo-base, o contrato firmado entre a “GENZYME CORPORATION” e a “BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC.”, todavia a discussão é necessária para que se fixe a legitimidade passiva adequadamente, como já se fez com relação a “GENZYME DO BRASIL LTDA.”. O contrato trazido aos autos a fls. 312/321, com a sua respectiva versão em inglês, fls. 322/331, é o Contrato de Estudo Clínico, firmado entre “GENZYME CORPORATION”, “BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC.” e a Fundação Médica do Rio Grande do Sul – Serviço de Genética Médica, que apenas comprova a formação da “joint venture” entre os laboratórios internacionais. Todavia, diferentemente da “GENZYME CORPORATION”, que possui no Brasil a “GENZYME BRASIL LTDA.”, pertencente ao seu grupo econômico, a BIOMARIN, como se conclui de detida análise dos autos, não possui empresa equivalente. Assim, surge a seguinte questão: em caso de eventual responsabilização pela obrigação de manutenção do fornecimento da medicação desenvolvida, que tipo de responsabilidade recairia sobre a “GENZYME CORPORATION” e a “BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC.”? Por não possuir empresa que represente seus interesses econômicos em território nacional, ficaria, eventualmente, se esse for mesmo o caso, a “BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC.” sem qualquer responsabilidade, sendo inatingível, portanto? Ou poder-se-ia entender que, como foi formada uma “joint venture”, os atos praticados, conjuntamente, e a associação das duas empresas, ainda que temporária, serve de suporte fático para a incidência da legislação brasileira, com relação aos atos praticados no período, e seus posteriores desdobramentos? Ou, por fim, seria o caso de, no presente processo, deixar de lado, em caso de responsabilização, a “BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC.”, ou mesmo a “GENZYME CORPORATION”, na medida em que deve a “GENZYME DO BRASIL LTDA.”, por estar aqui localizada, responder, podendo, se assim entender, buscar, por meio de ação de regresso, os prejuízos que eventualmente tenha de suportar? Tais hipóteses são ventiladas a partir da idéia de “joint venture”. A partir de informação obtida por meio de pesquisa rápida, realizada no sítio do Ministério da Saúde, http://elegis.anvisa.gov.br/leisref/public/showAct.php?id=24227&word=, constata-se, por meio da Resolução – RE 3280, de 06 de outubro de 2006, publicada no Diário Oficial da União em 09 de outubro de 2006, que foi concedida à empresa “BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC.” a Certificação de Boas Práticas para fins de exportação para o Brasil. Tal certificado foi emitido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), com validade de 1 ano, a partir, dentre outras coisas, de solicitação de inspeção feita pela empresa “GENZYME DO BRASIL LTDA.”. No corpo da Resolução mencionada, consta que a razão social em favor de quem o Certificado era concedido era a “BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC.”, com relação ao fármaco “LARONIDASE”, constando como o endereço da referida empresa: 46, Galli Drive, Notato, California 94949, Estados Unidos da América. Paralelamente, como se vê dos documentos que instruíram os autos, a “joint venture” formada pela BIOMARIN/GENZYME contratou a empresa “Eurotrials Brasil Consultores Científicos Ltda.”, para operacionalizar a pesquisa, coletando e cruzando informações e dados a respeito dos resultados e sendo a responsável pela condução dos estudos no Brasil, fl. 274. Foi assim que a “Eurotrials”, representando a “joint venture” formada pela BIOMARIN/GENZYME, apresentou à ANVISA o Projeto de Pesquisa Clínica Intitulado “Um estudo para a otimização da dose, randomizado, multicêntrico e multinacional sobre a segurança e resposta farmacodinâmica de ALDURAZYME (LARONIDASE), envolvendo pacientes com Mucopolissacaridose”. Este Projeto de Pesquisa Clínica, apresentado junto à ANVISA, veio aos autos, bem como o documento de sua aprovação pela ANVISA, fls. 332/348. Convém, neste ponto, fazer referência à manifestação do órgão ministerial, que, corretamente, teceu apropriadas considerações acerca da chamada “Teoria da Aparência” (fls. 885/891): “(...) A lista de preços do medicamento é fornecida pela Genzyme do Brasil (fl. 29). (...) Quando da prestação de contas, verifica-se que R$ 55.006,90 foram pagos à Genzyme Corporation, através da nota fiscal fatura e mediante depósito bancário à empresa situada em Pittsburg, Estados Unidos da América (fl. 206), enquanto que os outros valores, correspondentes a impostos, comissão de despachante, transporte, operação de câmbio, etc. totalizaram R$ 72.945,00 (fl. 205). Não resta dúvida, portanto, que o produtor do fármaco é a Genzyme Corporation, com sede nos Estados Unidos da América. O 'Contrato de Estudo Clínico' foi firmado entre a Fundação Médica do Rio Grande do Sul – Serviço de Genética Médico, o Dr. Roberto Giuliani a BioMarin?Genzyme LLC, com sede em 500 Kendall Street, Cambridge, MA 02142, figurando essa como patrocinador da pesquisa (fls. 312/317 e 322/331). A pesquisa foi submetida e aprovada pela ANVISA, figurando como representante da BioMarin/Genzyme a Eurotrials Consultores Científicos Ltda. Brasil (fls. 332 e 352). Nos Termos de Consentimento submetido aos pacientes e responsáveis, sempre constou como patrocinadora da pesquisa a BioMarin/Genzyme (fls. 333/348), documentos esse em que o Estado do Rio Grande do Sul alega que a Genzyme estaria obrigada à continuidade do fornecimento do produto. A Eurotrials Brasil Consultores Científicos Ltda. Possui como CNPJ o nº 04.498.106/0001-18 (fl. 353). Todavia, é a partir da inclusão do paciente Kauã no Programa ICAP (International Charitable Acess Program) que a Genzyme do Brasil passa a figurar como 'uma subsidiária da Genzyme Corporation' (fl. 357), passando a constar do documento: 'Declaramos, para os devidos fins, que a Genzyme do Brasil compromete-se a fornecer o medicamento Aldurazyme® (laronidase), na dose prescrita, para os pacientes brasileiros portadores da Doença MPS1 e incluídos no programa ICAP (International Charitable Acess Program), pelo período de 03 (meses), a partir do momento de sua inclusão. Afirmamos, outrossim, que o medicamento acima descrito será fornecido gratuitamente durante o tempo acima indicado, sendo que tal fornecimento poderá ser prorrogado ou não por igual período de tempo, estando a concessão de tal prorrogação exclusivamente a cargo do Comitê Gestor do ICAP, segundo critérios internos do programa'. excerto: Acessando-se o 'site' da Genzyme do Brasil, extrai-se o seguinte Doenças de Depósito Lisossômico A Genzyme é amplamente reconhecida como líder mundial em pesquisa, desenvolvimento de produtos e ajuda comunidades de médicos e pacientes de doenças de depósito lisossômico. A Genzyme apresentou o primeiro produto a ser aprovado no tratamento de uma doença de depósito lisossômico em 1991, quando renovou as esperanças de pacientes com a Doença de Gaucher do Tipo I. Desde então, desenvolveu produtos para Doença de Fabry, MPS 1 e Pompe. A Genzyme está desenvolvendo tratamentos para doenças de Niemaan-Pick e outras doenças de depósito lisossômico. E, quando realizado acesso ao campo 'Genzyme no Mundo', vê-se, claramente, que a Genzyme do Brasil representa a Genzyme Corporation, fabricante do produto postulado e que produziu a pesquisa no Brasil. Atuando como subsidiária da BioMarin/Genzyme e apresentando-se publicamente como produtora do medicamento para reposição enzimática para tratamento da MPS 1, não há dúvidas que possui legitimidade passiva para responder à presente ação. Não fora isso, vigeria, no presente, a Teoria da Aparência, porquanto tenha a empresa citada apresentado vasta e ampla contestação, onde teve condições de bem representar a defesa da empresa BioMarin/Genzyme, apresentando os argumentos fáticos (como foi feita a pesquisa, como se desenvolve a empresa, como funciona o programa caritativo, etc.) e jurídicos para que se possa considerar como válida a citação feita. Nos dias atuais, essa teoria tem ainda mais aplicação, pois, quando, por exemplo, um internauta clica em seu 'mouse', direciona a sua ação para um endereço comercial na 'Web', abrindo-se para ele uma página colorida, verdadeiro 'outdoor' com apelos promocionais e aplicações de tecnologia avançada, de forte impacto visual. Essa aparência leva o usuário a imaginar uma forte empresa por trás de todas aquelas cores e, usando de boa-fé, é levado a aceitar a proposta ali inserida, certo de que está fazendo um bom negócio. A representação é a atuação de uma pessoa em nome e no interesse de outra com a intenção de fazer válido este ato, como se estivesse sendo praticado por esta outra pessoa e na pessoa de quem vai recair os seus efeitos. No entanto, esta representação pode ser igualmente aparente, ou seja, capaz de induzir alguém de boa fé a pensar que está concretizando o negócio e acreditando estar transacionando com a pessoa certa. A representação aparente, facilitada pelo ambiente virtual, cria uma situação de fato onde uma pessoa se faz passar por outra, sem poderes para tal ou delegação do suposto contratante. Para o internauta, é difícil verificar se quem está falando em nome da empresa é o verdadeiro representante ou apenas alguém com aparente representação, sem poderes para contratar. Aqui, da mesma forma aplica-se a teoria da representação aparente, pois, se alguém puder supor que está negociando com um representante legal que assim se apresente, deve ser beneficiado com a teoria da aparência, a fim de que se tenha como válido o negócio realizado. Dessa forma, deve ser afastada a alegação de ilegitimidade passiva da Genzyme do Brasil” (grifei). Correta a manifestação do órgão ministerial, no excerto acima transcrito. Assim, também com base na chamada “Teoria da Aparência”, pode-se concluir pela legitimidade passiva da “GENZYME DO BRASIL LTDA.”. A respeito da mencionada “Teoria”, passa-se a transcrever extrato de preciosa lição de Arnaldo Rizzardo8[8]: “É o que se denomina teoria da aparência, pela qual uma pessoa, considerada por todos como titular de um direito, embora não o seja, leva a efeito um ato jurídico com terceiro de boa-fé. Ela se apresenta quando os atos são realizados 'por una persona engañada por una situación jurídica que es contraria a la realidad, pero que presenta exteriormente las características de una situación jurídica que es contraria a la realidad, pero que presenta exteriormente las características de una situación jurídica verdadera' (José Puig Brutau, Estudos de Derecho Comparado, La Doctrina de los Actos Proprios, Ediciones Ariel, Barcelona, 1951, p. 103). (...) Em síntese, na aparência apresenta-se como verdadeiro um fenômeno que não é real. O contratante ou o obrigado assente no adimplemento de um dever em relação à outra parte porque as circunstâncias causaram a convicção de ser ela a real titular de um direito. (...) A necessidade de ordem social de se conferir segurança às operações jurídicas, amparando-se ao mesmo tempo, os interesses legítimos dos que corretamente procedem, impõe prevaleça a aparência do direito. A complexidade cada vez maior das relações jurídicas e das formas de vida dificulta o caminho para se chegar ao fundo das coisas e dos problemas, condicionando-nos a acreditar na feição externa da realidade com a qual nos defrontamos (...). As necessidades sociais e o interesse público tornam impossível conhecer a situação jurídica exata de uma pessoa ou de um bem, ou se a situação jurídica exterior corresponde, efetivamente, à interior. Quando todos pensam e tudo permite pensar que a realidade aparente é uma manifestação exterior da situação jurídica, não é correto esquecer que a ação é determinada com base em tais dados” (grifei). Assim, conclui-se, o princípio da proteção aos terceiros de boa-fé e a necessidade de imprimir segurança às relações jurídicas justificam a aparência. Nesse sentido, merece transcrição, ainda, valiosa lição de Orlando Gomes9[9], que aponta três razões principais, as quais servem, igualmente, de fundamento à aplicação da “Teoria da Aparência”: “1 – para não criar surpresas à boa-fé nas transações do comércio jurídico; 2 – para não obrigar os terceiros a uma verificação preventiva da realidade do que evidencia a aparência; 3 – para não tornar mais lenta, fatigante e custosa a atividade jurídica. A boa-fé nos contratos, a lealdade nas relações sociais, a confiança que devem inspirar as declarações de vontade e os comportamentos exigem a proteção legal dos interesses jurisformizados em razão da crença em uma situação aparente, que tomam todos por verdadeira”. Feitas as considerações necessárias e pertinentes acerca da “Teoria da 8 [8] RIZZARDO, Arnaldo. Teoria da aparência. Revista da AJURIS, Porto Alegre: Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, v. 9, n. 24, p. 222-231, mar. 1982. 9 [9] Orlando Gomes, Transformações Gerais do Direito das Obrigações, Revista dos Tribunais, São Paulo, 1967, p. 96. Aparência”, verifica-se, a partir de agora, a legitimidade passiva com relação às empresas formadoras da “joint venture” BIOMARIN/GENZYME: “GENZYME CORPORATION” e a “BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC.”. Se a “GENZYME DO BRASIL LTDA.”, como acima foi visto, foi admitida como legitimada passiva para figurar na ação, por ser subsidiária, no Brasil, da “GENZYME CORPORATION”, com personalidade jurídica própria, conforme afirmado em contestação, fls. 272/273, tendo atuado, diretamente, na realização da pesquisa, tanto é que passou a ser responsável, temporariamente, pelo fornecimento do fármaco após o término do estudo, com muito mais razão também são partes passivas legítimas as duas empresas que formaram a “joint venture”. Com efeito, cada “co-venturer” é também parte legítima para figurar no pólo passivo na demanda, assim como a “GENZYME DO BRASIL LTDA.”, porquanto ambas as empresas, por meio de “joint venture”, patrocinaram a pesquisa realizada, levando a efeito o intento de aprovação de fármaco junto à ANVISA, com sua posterior comercialização. A citação determinada pelo Juízo, fl. 210, foi determinada com relação a “joint venture” formada pela BIOMARIN/GENZYME, sendo realizada no endereço da “GENZYME DO BRASIL LTDA.”, tendo se efetivado na pessoa da Sra. Noeli Roma Reis, fls. 215, uma das representantes legais da “GENZYME DO BRASIL LTDA.”. Tanto é assim que, após a citação, a empresa “GENZYME DO BRASIL LTDA.” veio aos autos, por meio de seu representante legal Devaney Baccarin, apresentar contestação, fl. 217, através de advogados constituídos. Não veio aos autos os atos constitutivos da “GENZYME DO BRASIL LTDA.”, todavia ela é pessoa jurídica, cujo objeto social consiste, dentre outras facetas, na realização de pesquisas médicas e no desenvolvimento de novos fármacos, constituindo apenas desmembramento destinado às operações comerciais e institucionais locais da “GENZYME CORPORATION”, possuindo finalidade e interesses comuns. Prova disso é que os próprios direitos do uso do sítio da “GENZYME DO BRASIL LTDA.”, na internet, estão reservados à “GENZYME CORPORATION”. Ademais, o mesmo – mero desmembramento destinado às operações comerciais e institucionais locais da “GENZYME CORPORATION” – verifica-se não apenas no Brasil, mas também em países como a Argentina (“GENZYME DE ARGENTINA S.A”), Chile (“GENZYME CHILE LTDA.”), Colômbia (“GENZYME DE COLOMBIA S.A”) e México (GENZYME MÉXICO S. DE R.L. DE C.V.). As efetivas realizadoras da pesquisa foram a “GENZYME CORPORATION” e a “BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC.”, em “joint venture”, e, conforme a legislação brasileira, a representação em juízo, ativa e passivamente, da pessoa jurídica estrangeira dar-se-á pelo gerente, representante ou administrador de sua filial, agência ou sucursal aberta ou instalada no Brasil (artigo 12, inciso VIII, e parágrafo 3º, do Código de Processo Civil, combinado com o artigo 88, parágrafo único, do mesmo diploma legal), e, sem sombra de dúvidas, a “GENZYME DO BRASIL LTDA.” está incluída no abrangente rol de situações expressas no dispositivo legal, razão pela qual possui, com base na “Teoria da Aparência”, a qualidade necessária para receber citação em nome da “joint venture” BIOMARIN/GENZYME. Com efeito, em casos assim, desnecessária a expedição de carta rogatória, para citação de qualquer das empresas formadoras do “joint venture”, porquanto, com base na “Teoria da Aparência”, assim como nas características que envolvem a formação de um “joint venture”, a subsidiária brasileira, “GENZYME DO BRASIL LTDA.”, foi citada, como representante que é, no país, do empreendimento levado a efeito pelo conglomerado de laboratórios consistente na BIOMARIN/GENZYME. Se para realizar empreendimento profundo e complexo, como é a pesquisa em seres humanos, não sentiu necessidade a “BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC.” de constituir sede no Brasil, confiando na subsidiária de sua parceira de “joint venture”, também para responder à presente ação não há necessidade de que sua citação se dê por carta rogatória, em atenção ao previsto no artigo 12, inciso VIII, e parágrafo 3º, do Código de Processo Civil, combinado com o artigo 88, parágrafo único, do mesmo diploma legal; artigo 75, parágrafos 1º e 2º, do Código Civil Brasileiro). De acordo com tais dispositivos, em resumo, as pessoas jurídicas estrangeiras têm por domicílio, no que concerne às obrigações contraídas por suas filiais, o lugar em que estiverem, protegendo assim as pessoas que com elas contratarem, evitando que tenham de acioná-las no estrangeiro, onde se encontra sua Administração10[10]. Nesse sentido, autorizada jurisprudência, em casos similares: EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. TRANSPORTE MARÍTIMO INTERNACIONAL. VALIDADE DA CITAÇÃO EFETUADA ATRAVÉS DO AGENTE DE CARGAS. O Ofício do Ministério dos Transportes colacionado pelo agravado comprova que a empresa que recebeu a citação é a agente cadastrada junto à autoridade portuária para o navio que efetuou o transporte da mercadoria objeto da lide principal, assim como para os seus armadores agravantes. Destarte, incidente para o caso o inciso VIII do artigo 12 do Código de Processo Civil, onde resta estipulado que a pessoa jurídica estrangeira será representada por seus agentes em nosso País e, ainda, o parágrafo único do artigo 88 do diploma processual civil. CODECON. Facilitação do exercício dos direitos dos consumidores. Decisão que considerou válida a citação mantida. AGRAVO DESPROVIDO. (Agravo de Instrumento Nº 70008951865, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Naele Ochoa Piazzeta, Julgado em 05/08/2004) EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. CITACAO DE PESSOA JURIDICA ESTRANGEIRA. DESNECESSIDADE DE CARTA ROGATORIA. INTERPRETACAO DOS ART. 12, VIII E PAR-3, 88 E PAR-UNICO DO CPC E 35 PAR-3 DO CC. DISPENSAVEL A CITACAO POR CARTA ROGATORIA DA PESSOA JURIDICA ESTRANGEIRA, PARA PRATICA DE DETERMINADO ATO NO PAIS, ENVOLVE, AINDA QUE OMITIDO OU VEDADO NO INSTRUMENTO, PODER DE RECEBER CITACAO NAS ACOES RELACIONADAS COM O OBJETO DA OUTORGA. AGRAVO PROVIDO. (Agravo de Instrumento Nº 70001111830, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rejane Maria Dias de Castro Bins, Julgado em 25/10/2000) EMENTA: COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE ACOES. SISTEMA "TIME SHARING". EMPRESA ESTRANGEIRA. REPRESENTACAO NO PAIS. CITACAO. ARREPENDIMENTO DO PROMITENTE COMPRADOR. CLAUSULA PENAL. INCIDENCIA DO CDC. QUANDO A EMPRESA ESTRANGEIRA NEGOCIA NO PAIS ATRAVES DE OUTRA, QUE A REPRESENTA, PODE A CITACAO SER FEITA NA PESSOA DA REPRESENTADA. O PROMITENTE COMPRADOR DE ACOES COM DIREITO DE USO DE PROPRIEDADE IMOBILIARIA PODE ARREPENDER-SE DO NEGOCIO. CLAUSULA PENAL DECORRENTE DA RESOLUCAO DO CONTRATO. ABUSIVIDADE. REDUCAO DO VALOR. (8FLS.) (Apelação Cível Nº 599365657, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Isabel Broggini, Julgado em 09/08/2000) 10 [10] 122. Maria Helena Diniz, Código Civil Anotado, 13ª edição, 2008, Editora Saraiva, p. 121- EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO MARITIMO. DE CONFORMIDADE COM O DISPOSTO NO ARTIGO 12, INCISO VIII, DO CODIGO DE PROCESSO CIVIL, A PESSOA JURIDICA ESTRANGEIRA, NESTA INCLUIDA O ARMADOR DE NAVIO, SERA REPRESENTADA JURIDICAMENTE PELO SEU AGENTE OU ADMINISTRADOR DE FILIAL. RECONHECIMENTO DE PARTE LEGITIMA PASSIVA PARA A ACAO. AGRAVO PROVIDO. (5FLS.) (Agravo de Instrumento Nº 70000476408, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ana Maria Nedel Scalzilli, Julgado em 11/05/2000) EMENTA: CITACAO. PESSOA JURIDICA ESTRANGEIRA. CONTRATO DE REPRESENTACAO COMERCIAL. CARTA ROGATORIA. DESNECESSIDADE. A EXISTENCIA DE CONTRATO ENTRE EMPRESA ESTRANGEIRA E EMPRESA BRASILEIRA, PARA A PRATICA DE DETERMINADO ATO NO PAIS, ENVOLVE PODER DE RECEBER CITACAO, EM ACAO RELACIONADA COM O OBJETO DA REPRESENTACAO. APARENCIA DE UNIDADE A TORNAR DISPENSAVEL A EXPEDICAO DE CARTA ROGATORIA. INTELIGENCIA DOS ARTS. 12, PAR-3, E 215, PAR-1, DO CPC. (4 FLS.) (Agravo de Instrumento Nº 599287364, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Isabel Broggini, Julgado em 20/10/1999) EMENTA: MULTIPROPRIEDADE. CONTRATO INTERNACIONAL. CONTRATACAO NO BRASIL. EMPREENDIMENTO LOCALIZADO NO URUGUAI. LINGUA ESTRANGEIRA. PROMITENTE VENDEDOR. MANDATARIO. TEORIA DA APARENCIA. DESCONHECIMENTO DAS CLAUSULAS RELATIVAS AO USO DO IMOVEL ART. 49 DO CDC. 1. E PARTE LEGITIMA PARA FIGURAR NO POLO PASSIVO DA ACAO DE RESOLUCAO DE CONTRATO INTERNACIONAL DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE ACOES RELATIVA AO USO DE IMOVEL PELO SISTEMA DE MULTIPROPRIEDADE A EMPRESA BRASILEIRA QUE, NO BRASIL, PROMOVE A INFORMACAO, PUBLICIDADE E OFERTA DO EMPREENDIMENTO A SER REALIZADO NO EXTERIOR COMO SE FOSSE O TITULAR DO DIREITO. A TRANSMISSAO DE CONFIANCA DE UMA SITUACAO JURIDICA E A OMISSAO DE SUA REAL CONDICAO DE MANDATARIA IMPORTA NA SUA RESPONSABILIDADE PELA CONTRATACAO. AINDA MAIS QUANDO FOI A RESPONSAVEL PELA ELABORACAO DO CONTRATO TENDO INFRINGIDO O PRINCIPIO DA TRANSPARENCIA E DO DEVER DE INFORMACAO. FERE O PRINCIPIO DA BOA-FE E DA DOUTRINA DOS ATOS PROPRIOS A ALEGACAO DE ILEGITIMIDADE PASSIVA "AD CAUSAM" 2. NAO OBRIGA O CONSUMIDOR A PROMESSA DE CONTRATO DE MULTIPROPRIEDADE CELEBRADO EM LINGUA ESTRANGEIRA E DO QUAL NAO TEVE CIENCIA DAS CLAUSULAS RELATIVAS AO USO DO IMOVEL A SER ADQUIRIDO. APELACAO DESPROVIDA. RECURSO ADESIVO PROVIDO EM PARTE. (Apelação Cível Nº 196182760, Nona Câmara Cível, Tribunal de Alçada do RS, Relator: Maria Isabel de Azevedo Souza, Julgado em 19/11/1996) EMENTA: PROCESSO CIVIL. COMPETENCIA. DEMANDA INDENIZATORIA PROPOSTA CONTRA PESSOA JURIDICA ESTRANGEIRA. APLICACAO DO ARTIGO 88, INCISOS I E III, DO CODIGO DE PROCESSO CIVIL E DO ARTIGO 93 DO CODIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. A JUSTICA BRASILEIRA COMPETE PROCESSAR E JULGAR DEMANDAS AJUIZADAS CONTRA REU QUE POSSUA NACIONALIDADE ESTRANGEIRA, DESDE QUE SEJA DOMICILIADO NO BRASIL, PODENDO-SE ENTENDER COMO TAL A AGENCIA, FILIAL OU SUCURSAL POR ELE MANTIDA. COMPETE-LHE, TAMBEM, O JULGAMENTO DE DEMANDAS QUE VERSEM SOBRE FATO ORIGINADO EM SEU TERRITORIO, CONFORME O ARTIGO 88, INCISOS I E III, DO CODIGO DE PROCESSO CIVIL. VERIFICADAS NOS AUTOS AMBAS HIPOTESES, INEGAVEL A COMPETENCIA DA JUSTICA BRASILEIRA. AINDA, MAIS ESPECIFICAMENTE, APLICAVEL AO CASO O ARTIGO 93 DO CODIGO DE PROTECAO E DEFESA DO CONSUMIDOR, QUE DEFINE A COMPETENCIA DA JUSTICA DO LOCAL ONDE OCORRIDO O DANO PARA APRECIACAO E JULGAMENTO DE DEMANDAS COMO A QUE ORA SE EXAMINA. ASSIM, OCORRIDOS OS FATOS NA COMARCA DE BAGE, ONDE, FRIA-SE, EFETIVAMENTE AJUIZADA A ACAO, IMPOE-SE O IMPROVIMENTO DO PRESENTE AGRAVO. AGRAVO IMPROVIDO. (Agravo de Instrumento Nº 597045558, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Moacir Adiers, Julgado em 19/06/1997)”. Logo, se o negócio jurídico entabulado foi realizado por uma ou outra instituição pertencente ao grupo econômico, ou mesmo apenas intermediado por este grupo, em verdade o que importa é que, pela “Teoria da Aparência”, tanto a subsidiária brasileira quanto as empresas patrocinadoras da pesquisa têm legitimidade para figurar no pólo passivo da ação, como denunciadas. Assim já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, conforme se infere do Acórdão do Recurso Especial n.° 331.465, da lavra do ilustre Ministro Ruy Rosado de Aguiar, em caso análogo: "Disso tudo se conclui que o segurado ou o seu beneficiário (que confiam na aparência do negócio e na responsabilidade daquele com quem mais diretamente contatou, e muitas vezes não tem condições de perceber, no complexo empresarial, qual a entidade que realmente lhe deve o pagamento da indenização a que têm direito) podem dirigir a ação contra qualquer um dos participantes do negócio securitário, quando ele surge envolvido com a atuação da entidade bancária, líder do grupo, que usa de suas instalações, de seus agentes, de suas empresas e das oportunidades de negócio que a sua atividade principal lhe propicia, para celebrar contratos de seguro. Assim é que tem sido admitida a legitimidade passiva da empresa líder, da que atua como estipulante e da sua corretora de seguros" (grifei). Semelhante o posicionamento do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: "Tutela antecipada - Deferimento - Medida cautelar de exibição de documentos - ínocorrência de ilegitimidade - Três empresas que compõe um único grupo econômico com os mesmos objetivos empresariais - Inaceitável que empresa estrangeira possa agir no país e não tenha quem responda por ela - Presentes os requisitos da cautelar - Agravado vítima de ofensas a sua honra tem o pleno direito de saber quem o está ofendendo e exigir a cessação das ofensas - Inadmissível a alegação de preservação do sigilo, pois como o delito já foi cometido, a pretensão agora seria de manutenção do sigilo do seu autor – Empresa que atua no Brasil deve se submeter à autoridade judiciária brasileira - Agravo não provido (TJSP - Rel. Ney de Mello Almada, AC. 4712844000, r. 21.05.2007) COMPETÊNCIA - Ação de indenização por danos materiais e morais Contrato de prestação de serviços de natureza civil - Alegação de competência da Justiça do Trabalho - Afastamento - Competência da Justiça Estadual comum, mesmo após o advento da Emenda 45/04. ILEGITIMIDADE PASSIVA "AD CAUSAM" - Ação de indenização por danos materiais e morais advindos da prestação de serviços de representação comercial - Legitimidade passiva da pessoa jurídica nacional pertencente ao mesmo grupo econômico da seguradora, pessoa jurídica estrangeira - Alegação que se confunde com o mérito - Legitimidade passiva em princípio reconhecida - Teoria da aparência - Análise da jurisprudência – Recurso improvido (TJSP – Rel. Cândido Alem, AI 7140446-7, r. 01.07.2008) Destarte, tem-se como válida a citação de ambas as empresas componentes da “joint venture”, com base na “Teoria da Aparência, feita na subsidiária brasileira de uma das empresas, porquanto, como bem afirmado pelo Ministério Público, a empresa citada (“GENZYME DO BRASIL LTDA.”), tendo sido a citação determinada com relação a “joint venture” BIOMARIN/GENZYME, apresentou vasta e ampla contestação, onde teve condições de bem representar a defesa da empresa BIOMARIN/GENZYME, apresentando os argumentos fáticos (como foi feita a pesquisa, como se desenvolve a empresa, como funciona o programa caritativo, etc.) e jurídicos para que se possa considerar como válida a citação feita. Com efeito, a empresa subsidiária de uma das empresas formadoras de “joint venture” possui legitimidade para representar o conglomerado por atos praticados na vigência da associação, e seus posteriores desdobramentos, sendo válida a citação realizada. Eventual prejuízo à defesa, principalmente no que diz respeito ao denunciado “BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC.”, que possa vir a ser alegado, decorreu em razão da inércia do denunciado “GENZYME DO BRASIL LTDA.”, que, tendo recebido citação válida, que dizia respeito ao “joint venture” BIOMARIN/GENZYME, deixou, em princípio, de comunicar ao Laboratório patrocinador a existência de ação judicial a respeito de empreendimento em que o denunciado “BIOMARIN PHARMACEUTICALINC.” participou ativamente. Como dito, o artigo 12, inciso VIII, do Código de Processo Civil, dispõe que a pessoa jurídica estrangeira é representada pelo gerente, representante ou administrador de sua filial, agência ou sucursal aberta ou instalada no Brasil. Ademais, reputa-se domiciliada no Brasil a pessoa jurídica estrangeira que aqui tiver agência, filial ou sucursal (artigo 88, § único, do CPC). Já o artigo 12, § 3º, contém norma que encerra presunção “juris et jure”, segundo a qual o gerente da filial ou agência presume-se autorizado, pela pessoa jurídica estrangeira, a receber a citação inicial para o processo de conhecimento, de execução, cautelar e especial. E o artigo 75, § 2º, do Código Civil, acentua que, se a administração ou a diretoria da pessoa jurídica de direito privado tiver sede no estrangeiro, ter-se-á por seu domicílio, no tocante às obrigações contraídas por cada uma das suas agências, o lugar do estabelecimento, situado no Brasil, a que ela corresponder. Sendo assim, a “joint venture” patrocinadora da pesquisa, BIOMARIN/GENZYME, foi devidamente citada e representada em juízo por quem tinha legitimidade para tanto, nos termos da legislação brasileira: “GENZYME DO BRASIL LTDA.”. Obviamente, caso a “BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC.” fosse demandada em razão de outra situação, não poderia ser citada na pessoa da GENZYME, todavia, no presente caso, o que não se pode admitir é a completa irresponsabilidade da empresa “BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC.”, diante de fatos por ela patrocinados em território nacional, na condição de “co-venturer” da “GENZYME CORPORATION”. Por fim, na dicção de Juan M. Dobson11[11], quando a conduta das pessoas jurídicas tende a criar a aparência de unidade, não pode qualquer delas, 11 [11] Juan M. Dobson, El Abuso de la Personalidad Jurídica, Editora Depalma, Buenos Aires, 1985, p. 293. num processo em que é demandada em função dessa unidade, alegar a separação jurídica. Ademais, cumpre fazer referência, por analogia, como mais adiante se verá, ao disposto no artigo 28, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, que assim prescreve: “Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. § 1° (Vetado). § 2° As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código. § 3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código. § 4° As sociedades coligadas só responderão por culpa. § 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores” (grifei). Assim, o artigo traz em seu texto o princípio da confiança, instituído pelo CDC, garantindo não só a qualidade dos produtos colocados no mercado, mas assegurando, também, como dispõe o artigo 6º, inciso VI, do referido diploma legal, a efetiva reparação dos danos sofridos pelos consumidores, mesmo que, para isto, casuisticamente, se deva desconsiderar um dos maiores dogmas do direito comercial e civil12[12]. Por essas razões, acrescidas da dificuldade de implementação e cumprimento de rogatórias, e uma vez que a empresa denunciada “BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC.” participou em empreendimento de “joint venture” com a denunciada “GENZYME CORPORATION”, da qual a denunciada “GENZYME DO BRASIL LTDA.” é subsidiária, presentes as noções do princípio da boa-fé, tenho por válida a citação da “joint venture”, sendo partes passivas legítimas para figurar na presente ação, ao lado da denunciada GENZYME DO BRASIL LTDA., a “joint venture” BIOMARIN/GENZYME, nas pessoas de suas empresas formadoras, quais sejam, a denunciada “BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC.” e a denunciada “GENZYME CORPORATION”. Preliminar, argüida pelo Ministério Público, de incompetência do Juízo da Infância e da Juventude, em razão da morte da criança, Kauã, parte autora. Antes do mérito, porém, há a necessidade de enfrentar a preliminar suscitada pelo órgão ministerial. Razão não assiste ao Ministério Público ao argüir, preliminarmente, que, com o falecimento do autor Kauã, agora substituído pela sua sucessão, passa a ser incompetente o Juízo da Infância e da Juventude para o julgamento do presente processo, que deve ser redistribuído, novamente, à 2ª Vara da Fazenda Pública. De fato, a competência é determinada no momento em que é proposta 12 [12] MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao código de defesa do consumidor. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 442. a ação, sendo irrelevantes as modificações de estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, conforme dispõe o artigo 87, do Código de Processo Civil. Tal dispositivo encontra origens no direito romano, estabelecendo a regra de que a competência para uma determinada causa, uma vez fixada, não mais se modificará, a não ser em casos muito especiais. É o princípio da “perpetuatio jurisdicionis”, que se justifica por uma questão de conveniência e estabilidade. A perpetuação da competência apenas encontra exceções quando, de acordo com o dispositivo legal em comento, as modificações do estado de fato ou de direito suprimirem o órgão judiciário ou alterarem a competência em razão da matéria ou da hierarquia. A primeira ressalva decorre de uma impossibilidade de fato, porque, desaparecendo o órgão judiciário, não mais existirá atuação sua. As outras duas ressalvas fundam-se na importância excepcional que o Código empresta à competência fixada por esses critérios, e que o leva a considerar esses casos como de competência absoluta, como se vê no artigo 111, do CPC. No caso dos autos, o próprio Juízo da Vara da Fazenda Pública declinou da competência, determinando a redistribuição do processo para uma das Varas da Infância e da Juventude, fl. 65, por entender que, “tratando-se de ação que envolvia pedido de fornecimento de medicação a menor, a competência para o processamento e julgamento deste feito é da Vara da Infância e da Juventude, de acordo com o disposto nos artigos 98 e 101, inciso V, do Estatuto da Criança e do Adolescente”. Esse, aliás, é o entendimento jurisprudencial majoritário: “EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. MENOR. DIREITO À SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. COMPETÊNCIA DO JUIZADO DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE. MATÉRIA QUE VEM DISCIPLINADA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E NO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. CONFLITO DESACOLHIDO. (Conflito de Competência Nº 70027378645, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Vasco Della Giustina, Julgado em 18/11/2008) EMENTA: CONFLITO DE COMPETÊNCIA. ECA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE. A situação em tela é daquelas amparadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, vez que relativa à proteção da saúde de menor. Assim, cabe ao Juízo especializado apreciar a matéria. Inteligência dos arts. 98, I, 148, IV e 208, VII do ECA. Precedentes. CONFLITO DE COMPETÊNCIA IMPROCEDENTE. (Conflito de Competência Nº 70025524927, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Ataídes Siqueira Trindade, Julgado em 22/10/2008) EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS A INFANTE. CONFLITO ENTRE O JUIZADO DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE E VARA DA FAZENDA PÚBLICA. Versando a causa sobre proteção aos direitos e interesses de criança e havendo na organização da Comarca jurisdição especializada na Justiça da Infância e da Juventude, a competência para julgar e processar o feito recai sobre a Vara do Juizado da Infância e da Juventude, em que pese no pólo passivo da demanda figure ente público. Trata-se de competência absoluta, em razão da matéria. Inteligência dos artigos 148, inc. IV, 208 e 209 do ECA. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA DESACOLHIDO. (Conflito de Competência Nº 70025446147, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: André Luiz Planella Villarinho, Julgado em 08/10/2008) EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS A CRIANÇAS E ADOLESCENTES. A matéria é de competência absoluta da Justiça da Infância e da Juventude, nos termos do artigo 148, inciso IV, do Estatuto da Criança e do Adolescente. JULGARAM IMPROCEDENTE O CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. (Conflito de Competência Nº 70025509118, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Alzir Felippe Schmitz, Julgado em 04/09/2008)”. Portanto, não há dúvidas acerca da competência para ações envolvendo o direito à saúde de criança e/ou adolescente – fornecimento de medicamentos ou outros tratamentos de saúde – ainda que figure no pólo passivo ente fazendário: a competência é da Vara da Infância e da Juventude. No presente caso, o autor é uma criança, que deve ter seu melhor interesse atendido pelo Estado. Com efeito, o que se verifica nos autos é uma situação que diz respeito à saúde de uma criança, a qual merece proteção integral e cujo direito à vida deve ter o amparo de políticas sociais públicas (art. 7º ECA). Tais pedidos terão atendimento mais adequado no juízo especializado da lei processual civil, cuja competência a regulação estadual não pode modificar. Ademais, veja-se que a competência local de tramitação dos feitos da Fazenda Pública foi criada para atender aos interesses materiais do Estado, sendo este quem tem o dever constitucional de assegurar com prioridade absoluta os direitos à saúde, à vida, à dignidade e ao respeito de crianças e adolescentes (art. 227, Constituição Federal). Para isso criou-se uma vara especializada em assuntos que digam respeito à proteção integral de crianças e adolescentes. Igualmente, sabe-se que nesses procedimentos fazendários os pedidos, via de regra, caem na vala comum, na vala da demora, quando os feitos envolvendo direitos à proteção integral de crianças e adolescentes exigem uma atuação jurisdicional diferenciada, que imponha um proceder rápido e que sirva como instrumento de inclusão. Esse entendimento, em linhas gerais, foi adotado pelo STJ no julgamento do REsp n. 778.244-AC, que teve como relator o Ministro Francisco Falcão, cujo acórdão restou assim ementado: “DIREITO PROCESSUAL CIVIL. COMPETÊNCIA E CONDIÇÕES DA AÇÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MINISTÉRIO PÚBLICO. CONSTRUÇÃO DE PRÉDIOS PARA IMPLEMENTAÇÃO DE PROGRAMAS DE ORIENTAÇÃO E TRATAMENTO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES ALCOÓLATRAS E TOXICÔMANOS. VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE. ARTS. 148, IV, 208, VII, E 209 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. REGRA ESPECIAL. I - É competente a Vara da Infância e da Juventude do local onde ocorreu a alegada omissão para processar e julgar ação civil pública ajuizada contra o Estado para a construção de locais adequados para a orientação e tratamento de crianças e adolescentes alcoólatras e toxicômanos, em face do que dispõem os arts. 148, IV, 208, VII, e 209, do Estatuto Prevalecem estes dispositivos sobre a regra geral que prevê como competentes as Varas de Fazenda Pública da Criança e do Adolescente. quando presentes como partes Estado e Município. II - Recurso especial improvido. DJ: 19/12/2005.” Nesse compasso, também já decidiu o TJSP no julgamento de CC 21.388-0, que teve como relator o então desembargador Yussef Cahali: “O Estatuto da Criança e do Adolescente contém regra especial de competência, de modo que não se pode invocar a regra geral do Código de Processo Civil, de aplicação apenas subsidiária. Cuida-se de competência absoluta, no interesse e resguardo do menor, que há de preponderar. Só de pode invocar a perpetuatio jurisdicionis quando se trate de competência relativa” (j. 04-51995) (STOCO, Rui. Competência da Câmara Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1997, p. 89). Destarte, se há proteção integral e prioridade constitucional absoluta no atendimento dos direitos dos infantes (e não há prioridade absoluta ao Poder Público nessa matéria), as causas que envolvem omissão do Estado à saúde de crianças e adolescentes devem prosseguir no Juizado da Infância, sob pena de privilegiarmos a Fazenda Pública em detrimento da criança e do adolescente. No presente processo, cumpre ressaltar, mais do que a demanda existente entre a criança e o Estado do Rio Grande do Sul, envolvendo o direito à saúde, discute-se o grave desrespeito perpetrado contra a dignidade da criança como pessoa humana, que foi severamente negligenciada em pesquisa envolvendo seres humanos levada a efeito por laboratórios internacionais patrocinadores do experimento. Por tal razão, mais ainda se justifica o trâmite e o julgamento por uma das Varas especializadas da Infância e da Juventude. Assim, a modificação no estado de fato, evidenciada pela morte da criança, não pode alterar a competência já devidamente fixada e perpetuada – situação similar ocorreria caso o infante, ao longo da tramitação, completasse 18 anos de idade –, até porque entendeu-se incompetente para o julgamento do processo a Vara da Fazenda Pública, como acima demonstrado. Ademais, a sucessão do autor Kauã restou devidamente habilitada nos autos, atuando em defesa de seus interesses, como se pode perceber à fl. 538, tendo restado devidamente obedecidos o disposto nos artigos 43, 265, inciso I e 1.055 a 1.062, todos do Código de Processo Civil, não havendo se falar em incompetência do Juizado da Infância e da Juventude, portanto. Afasto, ante o exposto, a preliminar argüida pelo órgão ministerial. Mérito. A responsabilidade da manutenção do fornecimento do medicamento após o término da pesquisa é evidente a partir de singela leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), o qual documenta a relação jurídica estabelecida entre as partes. Com efeito, à fl. 335, é clara a disposição contratual: “Após estas 26 semanas, será oferecida a continuação do tratamento com Aldurazyme® aos pacientes que concluírem o estudo e que não faltarem a mais de três infusões consecutivas (se estiverem recebendo infusões semanais) ou a duas infusões consecutivas (se estiverem recebendo infusões a cada duas semanas”. Cumpre ressaltar, no acordo, não foi prevista hipótese de limite no tempo para o fornecimento do fármaco. Assim, não podem os laboratórios denunciados, “GENZYME DO BRASIL LTDA.”, “BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC.” e “GENZYME CORPORATION”., que redigiram unilateralmente o documento TCLE, vir a juízo sustentar o descumprimento das obrigações nele estabelecidas, como medida de direito. Portanto é bastante simples o argumento que impõe aos laboratórios denunciados, patrocinadores do experimento, a responsabilidade pela continuação do tratamento com o fármaco desenvolvido: em documento unilateralmente por eles redigido, obrigaram-se a tanto. Devem, conseqüentemente, cumprir o avençado, sob pena, dentre outros, de afronta à boa-fé, como adiante se verá. Todavia, em sendo outro o entendimento, em obediência ao disposto no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, passo a fundamentar. DAS PESQUISAS REALIZADAS EM SERES HUMANOS. ASPECTOS INTRODUTÓRIOS. EXPERIMENTO LEVADO A EFEITO JUNTO AO HOSPITAL DE CLÍNICAS DE PORTO ALEGRE. LABORATÓRIOS INTERNACIONAIS PATROCINADORES DENUNCIADOS: “BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC.” E “GENZYME CORPORATION”, POR MEIO DE FORMAÇÃO DE “JOINT VENTURE”. SUBSIDIÁRIA BRASILEIRA, DENUNCIADA “GENZYME DO BRASIL LTDA.”, QUE PARTICIPOU ATIVAMENTE NO EXPERIMENTO, REPRESENTANDO EM TERRITÓRIO NACIONAL OS INTERESSES DO CONGLOMERADO DE LABORATÓRIOS, E FORNECENDO O MEDICAMENTO AO SUJEITO DE PESQUISA APÓS O TÉRMINO DO ESTUDO. MORTE DA CRIANÇA PESQUISADA. INDÍCIOS DE QUE ÓBITO VEIO A OCORRER EM FUNÇÃO DA PARTICIPAÇÃO NA PESQUISA. DESENVOLVIMENTO DE ANTICORPOS PELA CRIANÇA AO MEDICAMENTO TESTADO, TENDO EM VISTA A APLICAÇÃO DE DOSES MUITO SUPERIORES ÀS APLICADAS NA AMÉRICA DO NORTE E NA EUROPA. PESQUISA EM FASE III OU IV. DANOS IMEDIATOS E TARDIOS. RESOLUÇÃO 196/96, DO CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. INDENIZAÇÃO VISLUMBRADA, EM TESE, A SER BUSCADA POR MEIO DE AÇÃO PRÓPRIA, PELOS SUCESSORES DO INFANTE. SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO DO MEDICAMENTO POR PARTE DOS LABORATÓRIOS PATROCINADORES DENUNCIADOS, APÓS O TÉRMINO DO EXPERIMENTO, FORÇANDO PESSOA HUMANA PESQUISADA A MANEJAR AÇÃO JUDICIAL EM FACE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, PARA OBTER MEDICAÇÃO DESCOBERTA/DESENVOLVIDA. DIFERENÇAS EVIDENTES ENTRE REMUNERAÇÃO DO SUJEITO DE PESQUISA E MANUTENÇÃO DO FORNECIMENTO DO MEDICAMENTO DESCOBERTO/DESENVOLVIDO APÓS O EXPERIMENTO, PELOS LABORATÓRIOS INTERNACIONAIS PATROCINADORES DENUNCIADOS, ENQUANTO ESSE SE FIZER NECESSÁRIO. ÔNUS DA ATIVIDADE DESENVOLVIDA POR LABORATÓRIO PATROCINADOR E PESQUISADOR DE NOVOS FÁRMACOS EM PESSOAS HUMANAS. Toda pesquisa envolvendo seres humanos implica riscos ao sujeito de pesquisa e graves e sérias responsabilidades àquele que a ministra. De fato, tanto é assim que, no presente caso, há fortes indícios de que o autor, Kauã, tenha vindo a falecer justamente em função de sua participação na pesquisa levada a efeito pela “joint venture” que foi denunciada da lide, BIOMARIN/GENZYME, o que se pode concluir a partir da prova oral trazida aos autos, assim como por meio de elementar raciocínio, qual seja: o autor, Kauã, participou de pesquisa, visando, ao fim e ao cabo, à aprovação de fármaco junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA); de duas, uma: ou o fármaco foi indevidamente aprovado pelo órgão governamental, porquanto não se mostrou eficaz, haja vista que o infante Kauã faleceu; ou a participação do menino na pesquisa foi mal conduzida, mal-sucedida, pois, mesmo aprovado o fármaco, o menino não resistiu ao experimento, configurando-se, em seu caso, talvez não o chamado dano imediato, mas o dano tardio à vida do infante. Tais indícios, sem sombra de dúvidas, ao menos em tese, geram a seus sucessores o direito de postular indenização por este dano irreversível, conforme previsto nos itens V.6 e V.7 – DOS RISCOS E DOS BENEFÍCIOS AO SUJEITO DE PESQUISA –, da Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde13[13], bem como na legislação civil brasileira (artigos 186 e 927, parágrafo único, do Código Civil Brasileiro): “V.6 - Os sujeitos da pesquisa que vierem a sofrer qualquer tipo de dano previsto ou não no termo de consentimento e resultante 13 [13] A propósito, ver também o item II.12 – Dos Termos e das Definições –, da Resolução CNS 196/96, acerca do sentido do termo INDENIZAÇÃO, em casos como o atual. de sua participação, além do direito à assistência integral, têm direito à indenização. V.7 - Jamais poderá ser exigido do sujeito da pesquisa, sob qualquer argumento, renúncia ao direito à indenização por dano. O formulário do consentimento livre e esclarecido não deve conter nenhuma ressalva que afaste essa responsabilidade ou que implique ao sujeito da pesquisa abrir mão de seus direitos legais, incluindo o direito de procurar obter indenização por danos eventuais” (grifei). Não se quer aprofundar a questão da responsabilidade civil, em razão de dano material e/ou moral, da “joint venture” dos denunciados BIOMARIN/GENZYME com relação ao falecimento do autor, Kauã, até porque o assunto deverá, se assim entenderem seus sucessores, ser dirimido em ação própria, perante o juízo competente, com a análise detida dos documentos vindos a estes autos a fls. 407, 450/534, 540/565, 571/572, e de outros que se fizerem necessários. Todavia, essencial, nesse início de fundamentação, fazer algumas considerações preliminares acerca da pesquisa realizada com a parte autora. O autor, Kauã, em termos simples, participou da pesquisa no que se convencionou chamar de “Fase III”, fls. 260/262, na qual, em linhas gerais, tentou-se aumentar a dose a ser aplicada no paciente, diminuindo-se, assim, o número de aplicações mensais do fármaco. Ou seja, como a dose do medicamento só poder ser aplicada em nosocômio, tentou-se diminuir o número de idas do paciente ao hospital, em razão de seus inúmeros inconvenientes, aumentando-se a quantidade da dose a cada aplicação. Inicialmente, o menino aceitou bem o aumento de dose, permanecendo o fármaco a fazer os mesmos bons efeitos quando da aplicação da dose até então conhecida e padronizada para o uso seguro. Todavia, com o passar dos meses, o infante passou a desenvolver resistências à medicação, que não mais surtia os efeitos buscados e esperados. A própria genitora da parte autora, Kauã, em juízo, Ana Paula, em termos leigos, assim afirmou (fls. 698/699): “M: (...) Daí ele foi fazer tratamento no Clínicas. Começou um estudo aonde ele começou a tomar a medicação e desde aí ele só melhorou, ele parou de usar óculos, voltou o baço e o fígado dele normal, coração normal, não baixou nunca mais no hospital e só teve melhoras, era totalmente outra criança, até ele começar. E depois quando ele parou ele regrediu a cada dia mais, ele voltou no óculos, ele voltou... todos os dias, quase, eu tinha que estar no hospital por problemas respiratórios. J: E por que ele parou? M: Porque ele teve um anticorpo no corpo dele, ele mesmo. J: Sim, criou esse anticorpo. M: Criou. E aí a gente decidiu parar. Aí foram feitos vários exames, ele foi regredindo cada vez mais. E aí quando a gente ia voltar... porque, nos resultados dos exames seria melhor ele voltar, continuar fazendo do que não. Aí não deu mais tempo” (grifei). O mesmo também foi afirmado pela médica Maria Verônica Muñoz Rojas, em juízo (fls. 702/703): “T: Então, os estudos anteriores tinham mostrado uma determinada dose como sendo eficaz. Esse estudo foi um estudo onde foram testadas outras doses alternativas e também intervalos de recebimento da medicação alternativos. É porque é uma medicação que é dada todas as semanas, então uma das alternativas que se pesquisou foi para a eficácia disso recebendo a medicação a cada quinze dias em vez de todas as semanas. Mas o Kauã ele foi então... digamos... sorteado, randomizado para receber o dobro da dose habitual todas as semanas. Ele não foi o único, outros pacientes também e a resposta dele foi muito boa. Quando terminou o período de tratamento da pesquisa, que foram 26 semanas, aí ele passou a receber a dose habitual semanalmente. E ele recebeu essa dose por mais de um ano, não, por mais, mais de um ano e meio. Quando ele parou, ele parou porque o Kauã começou a apresentar... tem um marcador que a gente usa na urina, um marcador dessa doença e esse marcador começou a se alterar. Ele era muito alto quando ele começou o tratamento, ele diminuiu e se normalizou e teve um momento que ele começou a subir e nesse momento ele também teve algumas infecções respiratórias. Então, por ser uma medicação nova para nós e por ele ser uma criança muito pequena ainda em idade, a gente resolveu parar, ver o que estava acontecendo para poder esclarecer isso e aí tomar a atitude que a gente considerasse mais adequada. Então, naquela ocasião ele parou até fazer todos os estudos para ver se ele não estava ficando resistente ao tratamento, se ele não estava desenvolvendo anticorpos, que de alguma maneira pudessem ser nocivos para ele (...) isso já tinha parado a pesquisa fazia um ano e meio. A pesquisa já tinha sido completada há um ano e meio, mas ele mantinha o tratamento. E foi por isso que ele parou. Então, o esclarecimento dessa situação demorou alguns meses, isso foi muito discutido, qual seria a melhor conduta e após essa investigação se viu que sem o medicamento, no curto período que ele ficou sem remédio ele teve uma piora muito considerável em todos os aspectos, respiratório, infecção, ronco, em todos assim... teve uma piora muito importante. Então, como a gente já tinha visto que ele não estava desenvolvendo essa... digamos assim, não estava sendo nocivo, pelo contrário, a falta do medicamento estava sendo ruim para ele, se orientou que ele voltasse então a receber a medicação. Nesse momento a gente pediu para repetir vários exames para a gente poder inclusive controlar o quanto de eficácia ou não o tratamento poderia trazer para ele. Ele estava nesse processo quando ele ficou... ele adquiriu uma infecção respiratória que se complicou em pneumonia, ele foi internado, não foi internado no Clínicas, foi internado em outro hospital, foi para CTI, teve várias complicações e acabou evoluindo para o óbito em função dessas complicações. Mas quando ele faleceu ele já estava sem tratamento fazia uns seis meses, mais ou menos” (grifei). Ao longo da instrução, o denunciado “GENZYME DO BRASIL LTDA.”, como mais adiante se verá com mais vagar, a todo momento, tentou fazer parecer, sem razão, que, por tratar-se da “Fase III / Fase IV”, a pesquisa realizada em Kauã não seria realizada com um fármaco experimental, pois este já teria sido aprovado na Europa e nos Estados Unidos, fls. 260/262. Ora, pesquisa é pesquisa. No momento em que se aumentou a dose do “ALDURAZYME” (LARONIDASE) – o autor, Kauã, recebeu o dobro da dose até então conhecida e padronizada como segura –, ele novamente tornou-se, por assim dizer, um medicamento experimental, ou sobre o qual estavam sendo feitos experimentos. Do contrário, aliás, sequer seriam necessárias pesquisas médicas nesse sentido. Feitas as pertinentes considerações iniciais, cumprindo ressaltar que os danos decorrentes de uma pesquisa envolvendo seres humanos, segundo preconiza a mencionada Resolução CNS 196/96, podem ser imediatos e tardios (item II.12), passo, efetivamente, a tratar, agora com mais profundidade, da questão da responsabilidade do promotor e do patrocinador da pesquisa (itens II.6 e II.7), com relação ao sujeito de pesquisa. A definição de pesquisa, em breves linhas, segundo o afirmado por determinada obra de referência14[14]: “do latim 'perquirere' - procurar com diligência, procurar por toda parte, indagar com profundidade, buscar com cuidado e empenho, pesquisa exprime tanto na jurídica como nas demais ciências todo trabalho persistente no encaminhamento de um problema, de uma idéia particular ou de uma intuição que leve à descoberta de novos princípios, processos, métodos ou matérias”. Conforme afirmado no início da fundamentação, ao lado dos riscos que acompanham o sujeito de pesquisa, há graves e sérias responsabilidades para quem ministra o estudo, inerentes a esta função, definitivamente inarredáveis, portanto. 14 [14] Antônio Chaves, em artigo de doutrina intitulado Pesquisas em Seres Humanos, publicado na Revista dos Tribunais, ano 80, outubro de 1991, volume 672, página 7. Neste ponto, convém transcrever excerto do pensamento de JeanJacques Rousseau15[15], que se mostra adequado ao caso em apreço, demonstrando que ambas as partes signatárias de um contrato devem possuir obrigações recíprocas e proporcionais: “Dizer que um homem se dá gratuitamente é dizer uma coisa absurda e inconcebível; tal ato é ilegítimo e nulo, simplesmente porque quem o faz não se encontra em bom juízo. (...) Faço contigo uma convenção inteiramente a teu encargo e inteiramente em meu proveito, que observarei enquanto me agradar e que observarás enquanto me agradar” (grifei). De inegável atualidade e pertinência a lição do autor suíço. Embora se referisse, em sua obra clássica, primariamente, à escravidão, verdade é que o ensinamento pode, e deve, ser tido como abrangendo toda relação jurídica estabelecida, quando a desigualdade contratual é tamanha, em detrimento da parte mais fraca da avença, com relação à parte – economicamente, tecnicamente, intelectualmente – mais forte. É intuitiva a noção de que os laboratórios denunciados são responsáveis pela manutenção do tratamento daquela pessoa – ainda mais em se tratando de criança – que serviu de sujeito de pesquisa no experimento. Não fosse assim, qual seria a vantagem ou o benefício do participante: tão-somente auxiliar o laboratório na descoberta da nova e rentável droga, sendo, posteriormente, abandonado à própria (má)sorte. Não parece correto, não parece justo, e não é. O informante Carlos Alberto Ruchaud, funcionário do laboratório denunciado “GENZYME DO BRASIL LTDA.”, afirmou, em juízo, que jamais as crianças utilizadas na pesquisa foram orientadas para ingressar em juízo para receber a medicação, assinalando que a GENZYME jamais cessaria a entrega do fármaco caso a pessoa não conseguisse a sua obtenção por outras vias, havendo participantes da mesma pesquisa do autor, Kauã, que até hoje recebem a medicação (fls. 722/723 e 727): “J: Eu tenho que lhe perguntar, porque essa é a demanda, de alguma forma a sua empresa condiciona continuar o fornecimento, nessas condições que o senhor referiu, a que ela procure outras vias, pode ser a via judicial, o suprimento dessa necessidade? T: Em absoluto. Porque eu posso lhe garantir, eu pelo menos, não tenho a menor ciência desses outros pacientes que o senhor está dizendo, se alguém... porque não entraram na Justiça, não seu sequer se entraram ou não. Nós não acompanhamos isso de perto. O nosso contato é basicamente com o médico assistente que nos solicita: eu tenho paciente com a doença, ele vai providenciar acesso, ou seja lá o que for, mas ele precisa do medicamento agora, não pode ficar esperando muito, essa é a condição clínica dele, ele faz um laudo, tem um formulário, nós submetemos à corporação. Se ele tiver realmente, a condição clínica dele configurar que ele tem risco de piora se esperar seja o que for para receber o tratamento, aí nós fornecemos (...) MP: O senhor referiu que em outros países vão continuar fornecendo. O senhor tem notícia de algum caso aqui no Brasil em que tenham parado de fornecer mesmo que o paciente não tenha obtido o medicamento de outra maneira? T: Eu desconheço. MP: O senhor refere que tem pacientes que continuam recebendo já há quatro anos. Por quanto tempo a empresa vai manter o fornecimento da medicação se esses pacientes não entrarem em juízo? T: Olha, a senhora me fez uma excelente pergunta. Eu não saberia lhe responder, mas eu acredito – aí é uma resposta, uma opinião pessoal – eu não estou, vamos dizer assim, falando em nome da empresa, porque eu não estou qualificado para isso, mas a minha opinião pessoal é que enquanto essas pessoas precisarem do medicamento para não ter a saúde prejudicada, acredito que eles vão 15 [15] JEAN-JACQUES ROUSSEAU, O Contrato Social, L&PM Editores, 2007, p. 28 e 31. continuar recebendo. A Genzyme nunca suspendeu tratamento de nenhum paciente unilateralmente até hoje. Todos os pacientes que a Genzyme interrompeu o ICAP, pelo menos no Brasil, eu não participo de outros países, mas a notícia que eu tenho de todos os pacientes que interromperam o ICAP no Brasil foi depois que conseguiram medicamento através do governo ou da Secretaria da Saúde, de alguma outra fonte. Mas a Genzyme nunca parou de dar para ninguém” (grifei). Ora, se a GENZYME não orienta as pessoas a entrarem em juízo, bem como jamais deixaria o paciente de receber medicação se a pessoa não conseguisse a sua obtenção por outras vias, o presente processo deveria ser extinto, sem a resolução do mérito, por ausência de interesse de agir. Com efeito, a parte autora seria carecedora de ação, porquanto estava recebendo a medicação da GENZYME, sem receber qualquer orientação do laboratório para ingressar em juízo, sendo desnecessária, portanto, tal medida. Efetivamente, não haveria necessidade ou utilidade na busca do provimento jursidicional. Nesse sentido, a lição de Alexandre Câmara16[16]: “O interesse de agir é verificado pela presença de dois elementos, que fazem com que nesse requisito do provimento final seja verdeiro binômio: 'necessidade da tutela jurisdicional' e 'adequação do provimento pleiteado'. Fala-se, assim, em 'interesse-necessidade' e em 'interesse-adequação'. A ausência de qualquer dos elementos componentes deste binômio implica ausência do próprio interesse de agir. Assim é que, para que se configure o interesse de agir, é preciso antes de mais nada que a demanda ajuizada seja necessária. Essa necessidade da tutela jurisdicional decorre da proibição da autotutela, sendo certo assim que todo aquele que se considere titular de um direito (ou outra posição jurídica de vantagem) lesado ou ameaçado, e que não possa fazer valer seu interesse por ato próprio, terá de ir a juízo em busca de proteção” (grifei). Obviamente, mesmo a renovação do que os laboratórios denunciados convencionaram chamar de ICAP (“International Charitable Acess Program”) – chama-se caridade aquilo que é obrigação jurídica, legal e moral –, visando à continuidade da inclusão do sujeito de pesquisa no ICAP, acaba por forçar a pessoa pesquisada e sua família a procurarem outros meios de obter a medicação, porquanto, de tempos em tempos – 3 em 3 meses – a permanência do sujeito de pesquisa no ICAP é reavaliada, sendo reconsiderada a sua situação atual, aí incluídos o seu estado de saúde e a obtenção do fármaco por outros meios, qual seja, o Poder Público. O próprio laudo médico, trazido aos autos a fls. 58/59, já mencionava que o programa “caritativo” em que o infante havia sido incluído iria acabar logo em seguida (três meses após a feitura do mencionado laudo). Seguramente os laboratórios denunciados não suspenderiam o fornecimento da medicação enquanto a pessoa não a obtivesse junto ao Estado, até porque isso significaria a morte do paciente, imputável diretamente às empresas, com as conseqüências civis e penais inevitavelmente daí advindas. Se os laboratórios denunciados até hoje mantém programa “caritativo” (repito, chama-se de caridade aquilo que é obrigação ética e legal) para outros enfermos que não obtiveram o fármaco por outras vias, por que razão não manteve o fornecimento ao autor, Kauã? Os laboratórios denunciados, em contestação, entendem não possuir ônus algum na pesquisa realizada, a não ser aqueles inerentes a qualquer pesquisa: gasto com material e profissionais, por exemplo. Esses gastos, ordinários porque compreendidos em qualquer atividade empreendida – por exemplo, uma empresa 16 [16] ALEXANDRE FREITAS CÂMARA, Lições de Direito Processual Civil, Vol. I, 16ª edição, Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2007, p. 132. de ônibus deve adquirir os seus veículos, contratar funcionários, pagar o combustível e a manutenção de sua frota etc. –, em verdade, são próprios da atividade desenvolvida por laboratórios que realizam pesquisas em seres humanos e, com base neles, não pode o laboratório alegar que o equilíbrio contratual está observado. De fato, os laboratórios denunciados argumentam que o seu ônus está em realizar pesquisas em doenças chamadas de órfãs e ultra-órfãs, com relação às quais poucas entidades têm interesse, tendo em vista o baixíssimo número de doentes. Todavia os laboratórios denunciados não são obrigados, por ninguém, a pesquisar medicações para doenças que atingem percentual muito pequeno da população. Se o fazem, é porque algum interesse possuem em atuar nesse “nicho” de mercado. Como é cediço, os laboratórios denunciados não lucrarão apenas com a venda direta da droga, mas com a honorabilidade e respeitabilidade obtida no meio científico, com viagens, palestras e congressos realizados por seus médicos, pesquisadores e demais funcionários, com a publicação de estudos de ponta em revistas especializadas, com o obtenção de “Know how”, tecnologia e experiência avançada e única em sua área de atuação. Argumentam os laboratórios denunciados que, por tratar-se de droga ultra-órfã, o mercado consumidor já é bastante reduzido, sendo que, se forem obrigados a manutenir o tratamento de todas as crianças utilizadas na pesquisa, inviável tornar-se-ia a sua atividade. Nesse ponto, razão igualmente não assiste aos laboratórios denunciados, porquanto não poderão afastar a legislação pertinente, tão-somente por escolherem atuar em “nicho” do mercado com poucas pessoas portadoras da moléstia pesquisada. Com efeito, esta é escolha livremente feita pelos participantes da “joint venture”, que, certamente, não visam a apenas interesses humanitários, como querem fazer parecer. Se pensam que são poucos os doentes, deveriam, antes de empreender tais pesquisas, sopesar mais os riscos do empreendimento a que se propõem. Apesar de atualmente existirem poucos portadores da moléstia Mucopolissacaridose tipo I, certamente, com os anos, novos pacientes irão nascer, necessitando da medicação “ALDURAZYME” (LARONIDASE), sendo previsível os vultosos lucros que daí advirão. Ademais, ao realizar pesquisas como a ora em debate, os laboratórios de nunciados vão se especializando cada vez mais em sua área de atuação, qual seja, doenças genéticas, que não se restringem à Mucopolissacaridose tipo I. Conseqüentemente, as pesquisas realizadas vão conferindo aos laboratórios a condição de “especialista” nessa área da medicina, tornando cada vez mais factível a realização das pesquisas em doenças, que, a exemplo da Mucopolissacaridose tipo I, atingem poucas pessoas. Ou seja, o trabalho do pesquisador, com o tempo, vai sendo, por assim dizer, facilitado, sendo necessários, possivelmente, menos doentes para a realização de pesquisas futuras. Os laboratórios denunciados deveriam contentar-se com o recebimento dos valores que, num futuro breve, certamente darão o retorno financeiro esperado, todavia as empresas denunciadas desejam o lucro imediato, a qualquer custo, nem que, para isso, tenham de desrespeitar as normas que, no Brasil, regem as pesquisas a serem realizadas em seres humanos. Nesse ponto, cumpre ressaltar, parece haver informações um tanto desencontradas sobre o número de portadores da moléstia no Brasil, mas, principalmente, sobre o número de sujeitos de pesquisa crianças que participaram do experimento levado a efeito pelos laboratórios. De fato, afirmou a testemunha Maria Verônica Muñoz Rojas, em juízo (fls. 706/707): “PQD: A senhora poderia me dizer, por favor, uma estimativa, quantas pessoas no Brasil são portadoras de MPS 1? A senhora sabe, mais ou menos? T: A gente pode fazer um levantamento bem específico, eu não tenho esse número comigo, mas eu posso dizer assim, que a gente tem registro de mais de oitenta pacientes. Provavelmente em torno de noventa pacientes registrados. Esse número deve ser maior. Talvez tem cento e vinte pacientes, mas eu não saberia dizer se estão todos vivos, se não estão. Ano passado, por exemplo, foi um ano terrível, a gente perdeu quatro pacientes com MPS 1 em um ano, então não sei (...) PQD: A senhora saberia quantas pessoas no Brasil participaram desse estudo clínico? T: Aqui em Porto Alegre foram 11 pacientes que iniciaram e terminaram o estudo. Um dos pacientes que iniciou não chegou a receber nenhuma infusão e a família decidiu sair. Assim como também houve um paciente que foi convidado a participar e não quis participar e outros dois pacientes que foram convidados a participar num primeiro momento, mas eles não tiveram condições clínicas de poder fazer um tratamento adequado, a gente julgou que eles não tinham indicação de começar e a gente mesmo não quis incluir os pacientes no estudo. Então foram pacientes bem selecionados. Então assim: onze que iniciaram e terminaram nessa pesquisa aqui em Porto Alegre. No Brasil, se eu não me engano, foram vinte e seis ou vinte e oito, acho que vinte e oito, no Brasil e no Canadá, no estudo todo, acho que foram vinte e oito ou trinta e dois” (grifei). A testemunha Roberto Giugliani também se manifestou a respeito (fls. 715/717): “PQD: O senhor conhece o conceito de drogas órfãs a pouca incidência dessas (Inaudível) na população é uma doença de baixa incidência? T: Baixíssima incidência. Uma incidência ultra-órfã, que chamam. PQD: Você poderia explicar esse conceito de ultra órfã? T: É uma doença assim que é muito... suficientemente rara, não sei exatamente o conceito no Brasil, nos Estados Unidos foi criado esse conceito de doença órfã, porque são doenças em que os laboratórios farmacêuticos não se interessavam em introduzir tratamentos. Então foi criado esse conceito de doença órfã e foram cridas algumas, vamos dizer assim, alguma legislação específica para favorecer e que fosse desenvolvido tratamento para essas doenças. Eu sei que doença órfã nos Estados Unidos é uma doença que afeta um... menos de 200 pacientes não me lembro o número certo agora. Eu sei que essa é muito menos do que seria... então ela é até chamada de ultra-órfã porque ela é muito mais rara do que as doenças órfãs em geral. PQD: Por que elas não atraem alguns desses laboratórios para investir nessa pesquisa? T: Porque, digamos assim, o custo de desenvolvimento de uma medicação é praticamente o mesmo se é um paciente que tem diabetes se é diabético, só se essa Mucopolissacaridose Tipo 1, porque tem um processo de desenvolvimento de medicação que é muito caro. E quando depois uma medicação é aprovada, se tu tens milhões de pacientes que recebem a medicação ou se tem cem ou cinqüenta, tem que dividir, digamos assim, o laboratório vai procurar se ressarcir do investimento que fez dividindo, colocando um preço que seja dividido por essa população de potenciais pacientes. Então no caso quando tem um grupo muito pequeno de pacientes, o custo individual do tratamento acaba ficando caro, essa é a idéia que eu tenho. PQD: Então, a razão de alto custo do medicamento? T: Isso é uma das explicações, agora, a explicação que é um tratamento baseado em tecnologia de engenharia genética, é um procedimento assim extremamente laborioso que, digamos assim, tem um custo muito alto de produção, que é outra parte da explicação. São as duas principais vertentes da explicação do preço no meu entender, é o custo de produção e o custo de desenvolvimento quando depois que tem que ser rateado por uma base pequena de pacientes no mundo todo (...) PQD: O senhor sabe quantos pacientes tem no Brasil (Inaudível)que são diagnosticados com MPS 1? Uma estimativa. T: Olha, nós somos o centro de referência aqui em Porto Alegre para diagnóstico dessa doença para o Brasil todo e nós devemos ter assim, ao longo de 25 anos diagnosticado em torne de 150 pacientes, os quais, talvez metade já não esteja mais viva, porque é uma doença progressiva, grave. Digamos assim, entre setenta e cem paciente deve ser... deve ter hoje no Brasil que teriam condições de... vivos e em condições de receber a medicação, é uma coisa por aí.” (grifei). Os depoimentos acima transcritos, principalmente o do médico Roberto Giugliani, trazem elementos importantes para a análise do caso. Em primeiro lugar, pode-se afastar totalmente a versão dos laboratórios denunciados de que a doença ultra-órfã não é interessante de ser pesquisada. Muito antes pelo contrário, com disse o médico Giugliani, como o número de doentes é baixo, o valor da droga desenvolvida deve ser suficientemente alto para justificar sua pesquisa e descoberta. Ademais, há exclusividade dos laboratórios pesquisadores, em casos assim, na produção e comercialização da droga, não havendo concorrência que possa baixar os preços do medicamento. Portanto, antes de ser desinteressante a pesquisa na doença ultra-órfã, é ela, em verdade, bastante promissora, se vista sob o prisma da chamada economia de mercado. São poucos os doentes, mas o preço do fármaco é elevadíssimo, o que justifica e ressarce, em curto prazo, os investimentos realizados, com o privilégio do monopólio da produção e comercialização. Isso sem contar os benefícios indiretos antes mencionados. É, sem dúvida, negócio rentável e seguro no campo da pesquisa médica. Como foi dito acima, o número de portadores da doença para a qual foi desenvolvida a droga, a Mucopolissacaridose tipo I, apresentado pelas testemunhas, em juízo, foi um tanto desencontrado, bem como o número total de pessoas pesquisadas. Segundo os laboratórios denunciados, o número de pesquisados foi muito elevado, não sendo possível a manutenção da droga, enquanto essa se fizer necessária, para todos eles, às suas expensas. Peguemos uma média de portadores da doença, somente no Brasil, a partir do relato das testemunhas: 100 pessoas. Nos Estados Unidos, segundo a testemunha Giugliani, haveria em torno de 200. Deixa-se de fora todo o continente Europeu, a África etc. Só aí já encontramos na faixa de uns 300 potenciais consumidores da droga, seja por meio do Estado, seja por meio de planos de saúde privados. O número total de sujeitos de pesquisa, que participaram efetivamente do experimento levada a efeito pelos laboratórios denunciados vem expresso no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) à fl. 334: 32 pacientes, sendo 16 no Brasil e 16 no Canadá. Assim, não se mostra nada excessiva a manutenção do tratamento para essas pessoas, apenas 32, as quais “emprestaram” o seu corpo como campo de pesquisas vivo, auxiliando, dessa forma decisiva, na descoberta da droga. Contudo, nem com relação a essas 32 pessoas os laboratórios querem ter qualquer responsabilidade, sendo com certeza, mais vantajoso, que algumas delas ingressem em juízo, cobrando do Estado ou de quem quer que seja, os valores pelo fármaco, desonerando, assim, o quanto antes, os laboratórios internacionais denunciados de qualquer obrigação. Considerando-se, por fim, que um número ínfimo de pacientes, participantes da pesquisa irá demandar contra os laboratórios denunciados – muito mais fácil é manejar ação contra o Estado –, vê-se quão interessante, no mau sentido, pode ser a adoção da mencionada prática desumana por parte dos demandados. Argumento que causa espécie a este Juízo é a ameaça, constante ao longo da instrução, de que, caso os laboratórios denunciados tenham de arcar com a responsabilidade de manutenção do tratamento nos doentes pesquisados, as pesquisas no Brasil serão inviáveis, com sérios prejuízos aos pacientes. Os autos de um processo não são local adequado para ameaças desse tipo. Certamente, as pesquisas médicas com seres humanos não irão parar tãosomente em razão da necessidade de observância de normas éticas básicas e elementares. A liberdade total, como quer o laboratório demandado, a inexistência de qualquer responsabilidade, não se coaduna com um Estado Democrático de Direito, todavia, possivelmente, a “BIOMARIN/GENZYME” poderá descobrir algum país, de preferência em que haja normas jurídicas incipientes, onde poderá realizar livremente seus experimentos, sem qualquer questionamento ético a respeito. Espera-se, no entanto, que o texto previsto na Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, sirva de norma irradiadora no que diz respeito a matéria ora “sub judice”, inspirando outros países na tutela dos interesses dos doentes, que, como o autor, Kauã, são crianças, oriundos de famílias pobres, moradores de países subdesenvolvidos/em desenvolvimento, submetendo-se a experimentos científicos na última tentativa para a obtenção de uma vida mais digna. Certamente, os laboratórios denunciados não terão de fornecer o “ALDURAZYME” (LARONIDASE) para todos os portadores da Mucopolissacaridose tipo I, contudo, para aqueles que participaram na pesquisa, é obrigatória a manutenção do tratamento, com o fármaco que ajudaram a desenvolver, enquanto este se fizer necessário. Nesse ponto, também causa estranheza a este Juízo a afirmação realizada pelo médico Roberto Giugliani, Chefe do Setor de Genética Médica, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, ao confundir a questão da remuneração do participante da pesquisa com a questão do acesso ao fármaco no período pósestudo (fls. 713/714): “T: Normalmente nós... digamos assim, a medicação é fornecida durante o tratamento, após a conclusão do estudo normalmente existe um período em que essa medicação continua sendo fornecida, mas depois ela... não existe mais assim... não é um fornecimento ilimitado, até porque seria... não seria, digamos assim, ético para nós oferecer ao paciente um fornecimento ilimitado da medicação, porque isso seria uma maneira de coagir o paciente a entrar no estudo, coisa que nós não podemos fazer. O paciente tem que entrar no estudo de uma maneira voluntária. Então, se a gente oferecesse benesses para ele para ele ingressar no estudo, isso seria uma coisa... J: Mas há algum questionamento ético da pessoa que precisa de um medicamento permanente de receber esse medica... porque... o senhor trabalha mais com isso do que eu, quem está doente, tem uma doença grave quer mais é que apareça algo... T: Ele poderia, digamos assim, ele poderia achar, “bom, então já que eu vou ganhar a medicação eu vou entrar no estudo independente de... “ É uma maneira de... meio de... como se eu fosse assim... Porque uma coisa muito cuidada em termos de ética, quando se convida um paciente para entrar num estudo, é que ele tenha a livre e espontânea... que entre por livre e espontânea vontade, porque ele vai fazer uma série de procedimentos. J: Mas o paciente não entra para colaborar com a medicina, não é doutor? O paciente entra tentando encontrar uma solução para ele. T: É, exatamente. J: A visão dele... pode até ser num aspecto secundário, mas... T: Nós não podemos assim, de uma maneira, coagir ou oferecer. Até tem outros protocolos, por exemplo, paciente que vêm de outros estados e a gente poderia oferecer, digamos assim, atraí-lo para fazer a pesquisa, porque ao laboratório interessa que ele participe da pesquisa, digamos assim, colocá-lo num hotel 5 estrelas. Não, isso tudo a gente tem que cuidar muito para fazer uma coisa que ele venha para Porto Alegre, que é freqüente que ele venha, que os pacientes venham e tenham condições de vir para similares às que têm na sua cidade de origem para não configurar nenhuma atração extra” (grifei). A partir do trecho de depoimento transcrito, verifica-se que para o médico Giugliani poderia não ser ético que um doente, utilizado como sujeito de pesquisa, tivesse o acesso ao fármaco mantido pelo Laboratório pesquisador. Este tipo de afirmação acaba por distorcer os fatos, desconsiderando a dignidade da pessoa humana, os direitos da personalidade, a Constituição Federal, a Resolução 196/96, do CNS etc. Como é cediço, os médicos que participam de uma determinada pesquisa, quando esta é realizada por um laboratório fora de seu país, servem, por vezes, apenas para assinar os papéis indispensáveis, ou seja, acabam por não reter a tecnologia desenvolvida, ao menos não no nível em que isto seria recomendável, apenas dando a sua chancela, por assim dizer, obrigatória para a realização de pesquisas em território brasileiro, recebendo como “contra-prestação” a participação em congressos, a publicação em revistas de saúde de renome internacional etc. Certamente, não é esse o caso dos autos, todavia há que se ter cuidado para que, no futuro, pessoas sem as mesmas boas intenções da testemunha, utilizem-se de argumentos similares, esvaziados de preceitos éticos – na medida em que contrariam a própria Resolução 196/96, do CNS, bem como um senso elementar de justiça –, para justificar a inaceitável conduta das empresas denunciadas. A remuneração ao sujeito de pesquisa, obviamente, é reprovável, na medida em que, principalmente pessoas humildes, poderiam se submeter a pesquisas médicas tão-somente em razão da remuneração, ainda que sua participação nos experimentos contrariasse os chamados “Direitos da Personalidade”. Num país como o Brasil, por exemplo, caso fossem oferecidos US$ 100,00 mensais, para que pessoas se submetessem à pesquisa médica, talvez muitas pessoas aderissem à experimentação, independentemente dos riscos. Esta é uma realidade. De outra banda, negar ao sujeito de pesquisa acesso ao fármaco desenvolvido, por meio do uso de seu próprio corpo como “laboratório vivo”, como campo de pesquisas aberto para o laboratório pesquisador, é desrespeitá-lo em sua dignidade como pessoa humana, e este foi o tratamento lamentável dispensado pelo denunciado “BIOMARIN/GENZYME” e pelo denunciado “GENZYME DO BRASIL LTDA.” aos doentes na pesquisa realizada junto ao Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Os laboratórios denunciados não realizam pesquisas em seres humanos apenas por interesses altruístas e humanitários; visam ao lucro, não podendo abandonar os sujeitos de pesquisa à própria (má)sorte, após o experimento. Este raciocínio vai de encontro à Constituição Federal brasileira, como mais adiante se verá. E a dignidade da pessoa humana? E a ética da pesquisa médica? E a ética e o respeito que os laboratórios denunciados não se cansam de afirmar que têm? A relação jurídica entabulada entre os Laboratórios denunciados e o autor, Kauã, como os patrocinadores querem fazer parecer, é aquela descrito por Rousseau, na clássica obra “O Contrato Social”, extremamente atual, no excerto acima transcrito, que ora reescrevo: “Faço contigo uma convenção inteiramente a teu encargo e inteiramente em meu proveito, que observarei enquanto me agradar e que observarás enquanto me agradar” (grifei). A relação entabulada entre os Laboratórios denunciados e o autor, Kauã, cumpre ressaltar, é completamente independente da obrigação estatal de garantir o direito à saúde aos seus cidadãos. Com efeito, no momento em que o pesquisador e o patrocinador selecionam o sujeito de pesquisa, o que está “em jogo” é o experimento, a descoberta a ser realizada por meio de estudos, de variada duração, com grupos de doentes. A obrigação estatal passa longe dessa relação jurídica própria estabelecida. No momento em que o laboratório propõe ao doente a sua participação em pesquisa, que visa à descoberta de fármaco decisivo para a cura de sua moléstia, vincula-se ao sujeito de pesquisa, justamente em função das gravíssimas e sérias responsabilidades que envolvem uma pesquisa em seres humanos. Esse é o ônus da atividade empreendida pelo laboratório, que não pode ser dividido com mais ninguém. Do contrário, estar-se-á tratando seres humanos como se eles fossem animais. Assim, como se pode concluir, a pesquisa empreendida pela “joint venture” e pela “GENZYME DO BRASIL LTDA”, no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, desrespeitou gravemente os preceitos bioéticos previstos na resolução 196/96, do CNS, como agora se verá. Se, à vista dos laboratórios denunciados, é justo e ético entabular relações com seres humanos em bases de total irresponsabilidade – muito embora em seu sítio na internet (http://www.genzyme.com.br/corp/brgenz/br_p_ci_brgenz.asp), conforme bem referido na decisão do Agravo de Instrumento, constem como valores das empresas a ética, a excelência, a responsabilidade social, o compromisso etc. –, o Judiciário não pode ser utilizado para legitimar essa conduta inaceitável e desumana. Não se quer com isso impedir a realização de pesquisas envolvendo seres humanos, porquanto isto não seria solução razoável ou minimamente inteligente, além de inobservar previsão constitucional, como adiante se verá. Porém, as pesquisas em seres humanos, em razão da delicadeza do material envolvido, devem observar padrões éticos básicos, sob pena de desrespeitar-se gravemente o sujeito de pesquisa, como fez a “joint venture” denunciada “BIOMARIN/GENZYME” e a denunciada “GENZYME DO BRASIL LTDA.”. Neste ponto, importante transcrever o entendimento de Castro Filho: “(...) Cabe ao direito intervir onde e quando houver possibilidade de dano para a raça humana. Daí a inter-relação da Bioética com a lei e a necessidade de um ordenamento jurídico que não impeça as investigações científicas, mas que as harmonize com o bem e com a justiça, que é o anseio de todo o indivíduo desde os primórdios dos tempos”17[17] (grifei). Ademais, causa espécie ao Juízo a interpretação que tenta dar os laboratórios denunciados, inclusive por meio de parecerista, acerca do previsto no item III.3, alíneas “m”, “n” e “p”, da Resolução 196/96, CNS, que prevêem a garantia do retorno dos benefícios obtidos através das pesquisas para as pessoas e as comunidades onde as mesmas foram realizadas, assegurando aos sujeitos da pesquisa os benefícios resultantes do projeto, seja em termos de retorno social, acesso aos procedimentos, produtos ou agentes da pesquisa. Segundo entendem os laboratórios denunciados, em visão turva da realidade que a norma em comento procura tutelar, a garantia do retorno de benefícios obtidos através das pesquisas em seres humanos, bem como o acesso aos procedimentos e produtos desenvolvidos a partir do experimento, ao sujeito de 17 [17] In Biodireito Ciência da vida, os novos desafios. Organizadora Maria Celeste Cordeiro Leite Santos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 353,SEBASTIÃO DEE OLIVEIRA CASTRO FILHO, no artigo Liberdade de Investigação e Responsabilidade Ética, Jurídica e Bioética. pesquisa, dar-se-iam por meio do registro do fármaco junto à ANVISA, com a sua conseqüente possibilidade de comercialização no país. Assim, conforme raciocinam os laboratórios denunciados, fls. 830/832, e seu parecerista, 845/852, a obrigação prevista pela Resolução 196/96 estaria cumprida quando aprovada a droga junto à ANVISA, momento em que os doentes, incluindo aqueles que foram utilizados na própria pesquisa, teriam, em tese, acesso ao fármaco aprovado por outros meios; no caso brasileiro, leia-se, através do Estado. Obviamente, o Estado do Rio Grande do Sul deve assegurar o direito à saúde a qualquer cidadão, em qualquer circunstância, observadas as diretrizes e os limites legais, todavia, no presente caso, a responsabilidade estatal é subsidiária, somente surgindo na impossibilidade, por variadas razões, de os laboratórios denunciados fornecerem a medicação. Cumpre transcrever as normas previstas pela Resolução 196/96, para que se possa concluir, com exatidão, o equívoco da interpretação que os laboratórios denunciados e seu parecerista querem dar-lhes. NORMAS PREVISTAS NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA ACERCA DA REALIZAÇÃO DE PESQUISAS CIENTÍFICAS. CONSTITUIÇÃO FEDERAL. CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA. RESOLUÇÃO 196/96, DO CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. APLICAÇÃO AO CASO. NORMA ELABORADA PARA ALCANÇAR-SE A IGUALDADE ASSEGURADA NO TEXTO CONSTITUCIONAL, EM RELAÇÃO JURÍDICA ENTABULADA ENTRE SUJEITOS DESIGUAIS. LABORATÓRIOS INTERNACIONAIS X CRIANÇA DOENTE, ORIUNDA DE FAMÍLIA HUMILDE, EM PAÍS SUBDESENVOLVIDO OU EM DESENVOLVIMENTO. NOÇÕES INTRODUTÓRIAS. Antes, todavia, vejamos como a legislação brasileira, fora a Resolução mencionada, trata a realização da pesquisa envolvendo seres humanos. A pesquisa científica é disciplinada pela Constituição Federal: “Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas. §1º. A pesquisa científica básica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso das ciências. §2º. A pequisa tecnológica voltar-se-á preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional. §3º. O Estado apoiará a formação de recursos humanos nas áreas de ciência, pesquisa e tecnologia, e concederá aos que delas se ocupem meios e condições especiais de trabalho. §4º. A lei apoiará e estimulará as empresas que invistam em pesquisa, criação de tecnologia adequada ao País, formação e aperfeiçoamento de seus recursos humanos e que pratiquem sistemas de remuneração que assegurem ao empregado, desvinculada do salário, participação nos ganhos econômicos resultantes da produtividade de seu trabalho. §5º. É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular parcela de sua receita orçamentária a entidades públicas de fomento ao ensino e à pesquisa científica e tecnológica”. A definição de pesquisa envolvendo seres humanos é trazida pela própria Resolução 196/96, no subtítulo II, item II.2: “II. 2 – Pesquisa envolvendo seres humanos – pesquisa que, individual ou coletivamente, envolva o ser humano, de forma direta ou indireta, em sua totalidade ou partes dele, incluindo o manejo de informações ou materiais”. Sobre a pesquisa em seres humanos, há também dispositivos no Código de Ética Médica. Este diploma legal contém oito proibições, que versam sobre quatro assuntos essenciais: “a) Pesquisa em seres humanos, vedando ao médico: Art. 122. Participar de qualquer tipo de experiência no ser humano com fins bélicos, políticos, raciais ou eugênicos. Art. 123. Realizar pesquisa em ser humano, sem que este tenha dado consentimento por escrito, após devidamente esclarecido sobre a natureza e conseqüências da pesquisa. Parágrafo único. Caso o paciente não tenha condições de dar seu livre consentimento, a pesquisa somente poderá ser realizada, em seu próprio benefício, após expressa autorização de seu responsável legal. Art. 124. Usar experimentalmente qualquer tipo de terapêutica ainda não liberada para uso no País, sem a devida autorização dos órgãos competentes e sem consentimento do paciente ou de seu responsável legal, devidamente informados da situação da situação e das possíveis conseqüências. Art. 127. Realizar pesquisa médica em ser humano sem submeter o protocolo à aprovação e acompanhamento de comissão isenta de qualquer dependência em relação ao pesquisador. Art. 128. Realizar pesquisa médica em voluntários, sadios ou não, que tenham direta ou indiretamente dependência ou subordinação relativamente ao pesquisador. b) Pesquisa na comunidade: Art. 125. Promover pesquisa médica na comunidade sem o conhecimento dessa coletividade e sem que o objetivo seja a proteção da saúde pública, respeitadas as características locais. c) Salvaguarda da independência profissional: Art. 126. Obter vantagens pessoais, ter qualquer interesse comercial ou renunciar à sua independência profissional em relação a financiadores de pesquisa médica da qual participe. d) Evitar prejuízo do paciente: Art. 129. Executar ou participar de pesquisa médica em que haja necessidade de suspender ou deixar de usar terapêutica consagrada e, com isso, prejudicar o paciente” (grifei). Agora sim, feita esta introdução pertinente, cumpre transcrever as normas previstas pela Resolução 196/96, especialmente o previsto no item III.3, alíneas “m”, “n” e “p”, que, segundo os laboratórios denunciados e seu parecerista querem fazer parecer, restariam obedecidas no momento em que o fármaco é aprovado junto à ANVISA, quando então o acesso ao tratamento médico estaria garantido pelo Estado, cessando qualquer obrigação para o patrocinador: “m) garantir que as pesquisas em comunidades, sempre que possível, traduzir-se-ão em benefícios cujos efeitos continuem a se fazer sentir após sua conclusão. O projeto deve analisar as necessidades de cada um dos membros da comunidade e analisar as diferenças presentes entre eles, explicitando como será assegurado o respeito às mesmas; n) garantir o retorno dos benefícios obtidos através das pesquisas para as pessoas e as comunidades onde as mesmas forem realizadas. Quando, no interesse da comunidade, houver benefício real em incentivar ou estimular mudanças de costumes ou comportamentos, o protocolo de pesquisa deve incluir, sempre que possível, disposições para comunicar tal benefício às pessoas e/ou comunidades; p) assegurar aos sujeitos da pesquisa os benefícios resultantes do projeto, seja em termos de retorno social, acesso aos procedimentos, produtos ou agentes da pesquisa; q) assegurar aos sujeitos da pesquisa as condições de acompanhamento, tratamento ou de orientação, conforme o caso, nas pesquisas de rastreamento; demonstrar a preponderância de benefícios sobre riscos e custos” (grifei). Assim, conclui-se, é quase nada o benefício que os laboratórios denunciados prometem a seus pesquisados. O grande benefício a ser alcançado pelo sujeito de pesquisa seria a aprovação do fármaco junto à ANVISA, pois aí poderia o sujeito ter acesso à medicação “salvadora”, que, emprestando o seu corpo como laboratório, ajudou a produzir. Os ônus aos laboratórios denunciados, se fosse assim, seriam mínimos, ínfimos, restringindo-se aos comuns à atividade que desenvolvem, todavia, para o sujeito de pesquisa, só existem dívidas, dúvidas e a esperança, última e incerta, de ver o fármaco aprovado. Tal relação jurídica é desleal, desrespeitando a própria dignidade da pessoa humana. É importante destacar que, a partir da leitura atenta da Resolução 196/96, do CNS, podem-se perceber a presença de previsão de 3 tipos diferentes de benefícios que devem ser garantidos pelo promotor e pelo patrocinador da pesquisa: 1) benefícios para o sujeito de pesquisa (caso do autor, Kauã); 2) benefícios para a comunidade em que a pesquisa é realizada; 3) vantagens para o Brasil. Sim, o Brasil também deve ser beneficiado com a realização da pesquisa, de acordo com o item III, alínea “s”: “s) comprovar, nas pesquisas conduzidas do exterior ou com cooperação estrangeira, os compromissos e as vantagens, para os sujeitos das pesquisas e para o Brasil, decorrentes de sua realização. Nestes casos deve ser identificado o pesquisador e a instituição nacionais co-responsáveis pela pesquisa. O protocolo deverá observar as exigências da Declaração de Helsinque e incluir documento de aprovação, no país de origem, entre os apresentados para avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa da instituição brasileira, que exigirá o cumprimento de seus próprios referenciais éticos. Os estudos patrocinados do exterior também devem responder às necessidades de treinamento de pessoal no Brasil, para que o país possa desenvolver projetos similares de forma independente” (grifei). O benefício às comunidades em que a pesquisa é realizada dar-se-á, dentre outras coisas, por exemplo, quando, no interesse da comunidade, houver benefício real em incentivar ou estimular mudanças de costumes ou comportamentos, casos em que o protocolo de pesquisa deverá incluir disposições para comunicar tal benefício às pessoas e/ou comunidades. O benefício ao Brasil dar-se-á, dentre outras coisas, por exemplo, pela aprovação da nova droga na ANVISA, permitindo que se tenha acesso a medicamento de ponta, bem como pela efetiva capacitação dos profissionais brasileiros que colaboraram com a pesquisa, os quais deverão traduzir o conhecimento obtido por sua participação no experimento em atividades concretas em prol da classe médica do País. O benefício ao sujeito de pesquisa, claramente, dar-se-á pelo acesso ao fármaco que auxiliou a desenvolver, obtido diretamente junto ao laboratório patrocinador, conforme previsto na Resolução 196, sendo inviável e anti-ética qualquer interpretação em contrário, pois atentatória à dignidade da pessoa humana e aos direitos que tutelam sua personalidade. A pessoa humana, ou o indivíduo, conforme Beviláqua, “é o agente primário e comum do direito”18[18]. Com efeito, segundo José Afonso da Silva, “a pessoa é um centro de imputação jurídica, porque o Direito existe em função dela e para propiciar seu desenvolvimento”19[19]. Não bastasse essa idéia, a Constituição Federal elevou a dignidade da pessoa humana a um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso III), ou seja, a pessoa humana, com sua dignidade, é uma das bases sobre a qual repousa a República Federativa do Brasil, enquanto Estado Democrático de Direito, noção cuja origem remonta à Declaração de Direitos de 1789 (“Déclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen”). Assim, tem-se que a “dignidade” é atributo intrínseco, da essência da pessoa humana, único ser que compreende um valor interno, superior a qualquer preço, que não admite substituição equivalente; a dignidade entranha e se confunde com a própria natureza do ser humano. De fato, “a dignidade da pessoa humana não é uma criação constitucional, pois ela é um desses conceitos 'a priori', um dado preexistente a toda experiência especulativa, tal como a própria pessoa humana. A Constituição, reconhecendo sua existência e sua eminência, transformou-a num valor supremo da ordem jurídica”20[20]. Estes apontamentos, portanto, delineiam o ponto de partida da análise do caso sob exame, justamente porque a conduta dos laboratórios denunciados afrontaram gravemente a pessoa humana em sua dignidade. Cumpre mencionar, ainda, introdutoriamente, um fato de extrema relevância: dentre a pessoa humana, a criança e o adolescente gozam de uma proteção especial e prioritária a sua dignidade, justamente por serem pessoas em uma “condição peculiar de desenvolvimento”. De fato, todos aqueles que entabulam qualquer tipo de relação com crianças e adolescentes, segundo o ordenamento brasileiro, artigo 227, da Constituição Federal, devem observar os interesses desses com absoluta prioridade, sob pena de ter seu comportamento fortemente repudiado pela ordem jurídica nacional. Percebe-se, assim, que nosso ordenamento jurídico, considerando que crianças e adolescentes não são plenamente capazes de defender seus interesses em meio à vida social, de demonstrar a devida “força de resistência contra os 18 [18] BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado. Editora Rio/Estácio de Sá, edição histórica, 1940, volume I, p. 170. 19 [19] SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, p. 37, 2006. 20 [20] José Afonso da Silva, obra citada, p. 38. perigos, que a perversidade, profusamente, espalha na sociedade”21[21], confere-lhes tratamento especial e diferenciado. Conforme leciona Rui Barbosa, na clássica “Oração aos Moços”, a igualdade substancial, material, e não meramente formal, consiste 'em tratar igualmente os iguais, na medida de sua igualdade, e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades22[22]: “A regra da desigualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo, não dar a cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem. Esta blasfêmia contra a razão e a fé, contra a civilização e a humanidade, é a filosofia da miséria, proclamada em nome dos direitos do trabalho; e, executada, não faria senão inaugurar, em vez da supremacia do trabalho, a organização da miséria. Mas, se a sociedade não pode igualar os que a natureza criou desiguais, cada um, nos limites da sua energia moral, pode reagir sobre as desigualdades nativas, pela educação, atividade e perseverança. Tal a missão do trabalho” (grifei). Atento, não descurou o ordenamento jurídico brasileiro dessa realidade, buscando sempre a igualdade no caso em concreto. Tratando-se de relações entre iguais, em matéria de direito privado, ou seja, entre pessoas que, teoricamente, encontram-se, em função da paridade em aspectos de conhecimento intelectual, de conhecimento técnico, de capacidade econômica, etc., em condições de aparente igualdade ao travarem uma relação jurídica, aplica-ser-lhes-á, primariamente, o Código Civil. Todavia a ordem jurídica pensou por bem conceder proteção acentuada e privilegiada a determinadas categorias de pessoas que, em função de desigualdades evidentes no que diz respeito, principalmente, a aspectos econômicos e de conhecimentos técnicos e científicos, merecem receber tal tutela, para que a igualdade material, ao fim, seja alcançada em relação jurídica, que, sem essa especial intervenção estatal, restaria injusta e perigosamente desigual. Tal situação pode ser facilmente observada quando estudadas as relações entre empregadores e empregados, entre consumidores e empresas e, no que mais interessa para o presente caso, entre crianças e adolescentes e todos aqueles que com eles travem qualquer tipo de relação. Como “os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, artigo 5º, parágrafo 2º, CF, surge, para dar melhor contorno à proteção constitucional, já bastante clara, o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069/1990, segundo o qual “a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata essa Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade, artigo 3º, ECA. 21 [21] Beviláqua, obra citada, pp. 182 e 183. 22 [22] Rui Barbosa, Escritos e Discursos Seletos, volume único, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1997, p. 666. Ao comentar o artigo 3º acima referido, Paolo Vercelone 23[23], presidente da Associação Internacional de Juízes de Menores e de Família, observa que o elenco de direitos nele assegurados aparece como uma declaração solene de princípios, análogas a outras, contidas em Cartas Constitucionais e convenções internacionais: “Trata-se de técnica legislativa usual quando se faz uma revolução, quando se reconhece que uma parte substancial da população tem sido até o momento excluída da sociedade e coloca-se agora em primeiro plano na ordem de prioridade dos fins a que o Estado se propõe. Desta vez não se trata de uma classe social ou de uma etnia, mas de uma categoria de cidadãos identificada a partir da idade. Mas trata-se, contudo, de uma revolução feita por pessoas estranhas àquela categoria, isto é, os adultos em favor dos imaturos”. A proteção à dignidade da criança e do adolescente, e não poderia ser diferente, está prevista, também no ECA, conforme dispõe o artigo 15, segundo o qual a criança e o adolescente têm direito “ao respeito e à dignidade como pessoas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis”. Conforme o artigo 18, do mencionado Estatuto, “é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor” (grifei). Por fim, prevê o artigo 4º, do Estatuto, ser dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde... à dignidade, ao respeito” (grifei). Esse é, portanto, o arcabouço jurídico no qual se insere a relação travada entre laboratórios internacionais de pesquisas, com amplos conhecimentos técnicos, científicos, sólido suporte financeiro, etc., próprios de sua atividade, e uma criança de família humilde, doente, que padecia de doença rara e altamente mortal, de rápido e fatal desenvolvimento. Como visto, não apenas ao Poder Público incumbe a tarefa de cuidar, com absoluta prioridade, dos direitos e interesses das crianças e adolescentes, mas também à comunidade em geral, à sociedade como um todo, na qual, evidentemente, inserem-se os laboratórios denunciados. BIOÉTICA E BIODIREITO. BREVE EVOLUÇÃO HISTÓRICA. NORMATIVIDADE INTERNACIONAL. CÓDIGO DE NÜREMBERG (1947). DECLARAÇÃO DE HELSINQUE (1964). DECLARAÇÃO DE MANILA (1981). “DIRETRIZES INTERNACIONAIS PARA A PESQUISA BIOMÉDICA EM SERES HUMANOS”, ELABORADAS PELO COUNCIL FOR INTERNATIONAL ORGANIZATIONS OF MEDICAL SCIENCES, CIOMS, JUNTAMENTE COM A ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, OMS (1993). PRINCÍPIOS GERAIS A SEREM OBSERVADOS EM PESQUISAS EM SERES HUMANOS. PRINCÍPIO DA AUTONOMIA. PRINCÍPIO DA BENEFICÊNCIA. PRINCÍPIO DA NÃOMALEFICÊNCIA. PRINCÍPIO DA JUSTIÇA. PRINCÍPIOS ENALTECEDORES DA PESSOA HUMANA. Todavia, antes de adentrar em uma análise mais minuciosa acerca da relação jurídica travada entre os laboratórios denunciados e o sujeito de pesquisa criança, o autor Kauã, representado por seus genitores, importante discorrer brevemente acerca do que se convencionou chamar “Bioética” e “Biodireito”, ramo do conhecimento em cujos princípios baseou-se a já mencionada Resolução 196/976, do Conselho Nacional de Saúde. Ainda como aspecto introdutório, portanto, necessário se fazer referência à Bioética e ao Biodireito, haja vista que a responsabilidade de laboratório que realiza pesquisas em seres humanos, principalmente em se tratando de criança, em manter o fornecimento do medicamento desenvolvido 23 [23] 32. In Munir Cury (coord.), Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, 6ªed., p. durante o experimento, e mesmo após o término da pesquisa, deve também ser vista sob essa ótica. Maria Helena Diniz, na obra “O Estado Atual do Biodireito”, reforça a idéia até aqui esposada, de que “os bioeticistas devem ter como paradigma o respeito 'à dignidade da pessoa humana, que é o fundamento do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, III) e o cerne de todo o ordenamento jurídico. Deveras, a pessoa humana e sua dignidade constituem fundamento e fim da sociedade e do Estado, sendo o valor que prevalecerá sobre qualquer tipo de avanço científico e tecnológico. Conseqüentemente, não poderão a bioética e o biodireito admitir conduta que venha a reduzir a pessoa humana à condição de coisa, retirando dela sua dignidade e o direito a uma vida digna”24[24]. Fácil perceber, assim, que a bioética ocupa-se de questões éticas atinentes, por exemplo, ao começo e fim da vida humana, às novas técnicas de reprodução humana assistida, à seleção de sexo, à engenharia genética, à maternidade substitutiva, à pesquisa em seres humanos, dentre outros temas, colocando a dignidade humana como um valor, ao qual à prática médica está condicionada e obrigada. “Para a bioética e o biodireito a vida humana não pode ser uma questão de mera sobrevivência física, mas sim de 'vida com dignidade'”25 [25] . Conforme Helena Diniz, “com o reconhecimento do respeito à dignidade humana, a bioética e o biodireito passam a ter um sentido humanista, estabelecendo um vínculo com a justiça. Os direitos humanos, decorrentes da condição humana e das necessidades fundamentais de toda pessoa humana, referem-se à preservação da integridade e da dignidade dos seres humanos e à plena realização de sua personalidade. A bioética e o biodireito andam necessariamente juntos com os direitos humanos, não podendo, por isso, obstinar-se em não ver as tentativas da biologia molecular ou da biotecnociência de manterem injustiças contra a pessoa humana sob a máscara modernizante de que buscam o progresso científico em prol da humanidade. Se em algum lugar houver qualquer ato que não assegure a dignidade humana, ele deverá ser repudiado por contrariar as exigências ético-jurídicas dos direitos humanos”26[26] (grifei). Por fim, conclui a renomada autora Diniz: “Todos os seres humanos, os aplicadores do direito e em especial os médicos, os biólogos, os geneticistas e os bioeticistas devem intensificar sua luta em favor do respeito à dignidade humana, sem acomodações e com muita coragem, para que haja efetividade dos direitos humanos”27[27]. Adentrando um pouco mais no que se convencionou chamar Bioética, necessárias outras considerações. Conforme bem salientam os autores Corina Bontempo D. Freitas e William Saad Hossne, na obra do Conselho Federal de Medicina, intitulada Iniciação à Bioética, de 1998, páginas 195/196, somente em 1947 foram estabelecidas as primeiras normas reguladoras da pesquisa em seres humanos: “Com este pano de fundo, não deixa de ser surpreendente o fato de que somente em 1947 a humanidade decidiu estabelecer as primeiras normas reguladoras da pesquisa em seres humanos. Normas que surgiram quando do julgamento dos crimes de guerra dos nazistas, ao se tomar conhecimento (aliás, 24 [24] DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 5. ed. Rev., aum. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 16. 25 [25] DINIZ, Maria Helena. Op. Cit, p. 17. 26 [26] DINIZ, Maria Helena. Op. Cit., p. 19. 27 [27] DINIZ, Maria Helena, op. Cit, p. 19. na verdade, parte já era conhecida) das situações abusivas da experimentação, que foram denominadas como “crimes” contra a humanidade. Surge, então, o Código de Nüremberg estabelecendo normas básicas de pesquisas em seres humanos, prevendo a indispensabilidade do consentimento voluntário, a necessidade de estudos prévios em laboratórios e em animais, a análise de riscos e benefícios da investigação proposta, a liberdade do sujeito de pesquisa em se retirar do projeto, a adequada qualificação científica do pesquisador, entre outros pontos. O princípio da autonomia, reconhecidamente um dos referenciais básicos da Bioética, se enuncia, assim, no Código de Nüremberg. Vale lembrar, pois, que esta autonomia (autodeterminação) se firma na regulamentação da pesquisa e que, somente muitos anos depois se incorpora nos Códigos de Ética (melhor dizendo, de Deontologia) dos profissionais de saúde. Não obstante a dramaticidade do contexto em que surge o Código de Nüremberg, os abusos continuaram a ocorrer. Já na década de 60, Beecher chamava a atenção para o grande número de pesquisas de experimentação humana conduzidas de forma eticamente inadequada e publicadas em revistas médicas de renome. Em 1964, na 18ª Assembléia da Associação Médica Mundial foi revisto o Código de Nüremberg e aprovada a Declaração de Helsinque, introduzindo a necessidade de revisão dos protocolos por comitê independente, a qual, revista na década de 70 (Tóquio) e de 80 (Veneza e Hong Kong) e, por último, em 1996 na 48ª Assembléia Geral realizada em Somerset West, República da África do Sul, continuou porém conhecida com o nome de declaração Helsinque. Nesta declaração se estabeleceram também as normas para a pesquisa médica sem fins terapêuticos. Na década de 80, o Council for International Organizations of Medical Sciences (CIOMS), juntamente com a Organização Mundial da Saúde (OMS), elaboraram um documento mais detalhado sobre o assunto estipulando as “Diretrizes internacionais para a pesquisa biomédica em seres humanos”, traduzida para a língua portuguesa pelo Ministério da Saúde. O documento foi reavalizado e publicado em nova versão em 1993, traduzido e publicado pela revista 'Bioética', do Conselho Federal de Medicina (CFM). Na década de 90, o CIOMS lança o primeiro documento especificamente voltado para a pesquisa em estudos de coletividade (estudos epidemiológicos): 'International Guidelines for Ethical Review of Epidemiological Studies'” (grifei). A obra Biodireito a Norma da Vida, da autora Matilde Carone Slaibi Conti, editora Forense, nas páginas 177/180, traz, dentre outros anexos, a Declaração de Helsinque, mencionada acima, da qual transcrevo o seguinte excerto: “DECLARAÇÃO DE HELSINQUE Recomendações orientando médicos em pesquisa biomédica envolvendo seres humanos. Adotado pela 18ª Assembléia Mundial de Médicos, Helsinque, Finlândia, em junho de 1964 e corrigida pela 29ª Assembléia Médica Mundial, Tóquio, Japão, em outubro de 1975, pela 35ª Assembléia Médica Mundial, Veneza, Itália, em outubro de 1983 e pela 41ª Assembléia Médica Mundial, Hong-Kong, em setembro de 1989. ... I – Princípios Básicos ... 9. Em qualquer pesquisa com seres humanos, cada participante em potencial deve ser adequadamente informado sobre os objetivos, métodos, benefícios previstos e potenciais perigos do estudo, e o incômodo que este possa acarretar. Deve ser informado de que é livre para retirar seu consentimento em participar, a qualquer momento. O médico deve então obter o consentimento pós-informação do participante, dado livremente, de preferência por escrito. 10. Ao obter o consentimento pós-informação para o projeto de pesquisa, o médico deve ser particularmente cuidadoso caso o participante tenha uma relação de dependência em relação a ele e possa consentir sob pressão. Neste caso, o consentimento pós-informação deve ser obtido por um médico que não esteja engajado na investigação e seja completamente independente dessa relação oficial. 11. Em caso de incompetência legal, deve-se obter o consentimento pós-informação do guardião legal, em conformidade com a legislação nacional. Quando uma incapacidade física ou mental impossibilita a obtenção do consentimento pós-informação, ou quando o participante é menor de idade, a permissão do familiar responsável substitui a do participante, obedecendo a legislação nacional. Sempre que o menor for na realidade capaz de dar o consentimento, o consentimento do menor deverá ser obtido além do consentimento de seu guardião legal. 12. O protocolo de pesquisa deve sempre conter uma declaração das considerações éticas envolvidas, e deve indicar que os princípios enunciados nesta Declaração serão obedecidos” (grifei). A obra citada, Biodireito a Norma da Vida, páginas 183/184, ainda traz a Declaração de Manila, de 1981, a qual delineia mais princípios a serem observados na pesquisa médica envolvendo seres humanos: “DECLARAÇÃO DE MANILA, 1981 Projeto conjunto da Organização Mundial de Saúde e do Conselho das organizações internacionais de ciências médicas, Manila, 1981. ... Consentimento dos sujeitos 6. 'Helsinki II' estipula (artigos 1,9) que os seres humanos só deverão ser utilizados na pesquisa médica após a obtenção de seu 'consentimento livre e esclarecido', após os haver informado, de forma adequada, sobre 'os objetivos, métodos, benefícios antecipados, assim como os riscos potenciais' da experiência e que eles são livres de se abster ou rever sua posição a qualquer momento. Considerado, em si mesmo, entretanto, o consentimento esclarecido constitui uma salvaguarda imperfeita para o sujeito e deverá sempre ser completada por um exame ético independente dos projetos de pesquisa. Além do mais, há numerosos indivíduos, especialmente as crianças, os adultos mentalmente doentes ou deficientes e as pessoas totalmente ignorantes dos conceitos médicos modernos, que são incapazes de manifestar um consentimento adequado e cujo consentimento implica uma participação passiva e sem compreensão. Para estes grupos, em particular, o exame ético independente é imperativo. Crianças 7. As crianças não devem nunca participar como sujeitos em pesquisas que se podem realizar igualmente em adultos. Entretanto, sua participação é indispensável nas pesquisas sobre doenças infantis e nas patologias nas quais as crianças são particularmente vulneráveis. O consentimento de um parente ou de um tutor legal, após explicação profunda dos objetivos da experiência e dos riscos ou inconvenientes possíveis, é sempre necessário. 8. Na medida do possível e em função da idade, procurar-se-á obter a cooperação voluntária da criança após a ter francamente informado das dificuldades ou inconvenientes possíveis. Pode-se presumir que as crianças mais velhas são capazes de dar um consentimento esclarecido, de preferência completado pelo consentimento do pai ou do tutor legal. 9. As crianças não deverão, em nenhum caso, participar como sujeitos em pesquisas que não redundem em nenhuma vantagem potencial para elas, a menos que o objetivo seja elucidar as condições fisiológicas ou patológicas próprias à pré-infância e à infância” (grifei). Maria Helena Diniz, na obra antes mencionada, todavia na edição de 2001, páginas 342/345, traz, de maneira didática, o histórico das tentativas de regulamentação da pesquisa desenvolvida em seres humanos. De fato, a autora recorda o contexto em que foi elaborado o Código de Nuremberg e a Declaração de Helsinque: “Grande é a preocupação mundial com tais pesquisas em decorrência do enorme risco que acarretam para os participantes e das questões éticojurídicas levantadas pela aplicação de testes em larga escala de vacinas e medicamentos e por experiências biomédicas envolvendo grupos populacionais vulneráveis, visto serem o único meio de acesso a tratamentos novos que possam prevenir ou eliminar determinadas moléstias e incapacidades. O primeiro Código Internacional de Ética para pesquisas com seres humanos foi o de Nuremberg, publicado em 1947, em resposta às atrocidades e experimentações iníquas praticadas por médicos nazistas comandados por Josef Mengele, nos campos de concentração, durante a Segunda Guerra Mundial, principalmente em Auschwitz, onde foram sacrificadas inúmeras vidas, inoculando-se propositalmente sífilis, gonococos por via venosa, tifo, células cancerosas e vírus de toda sorte nos prisioneiros, com o objetivo de curiosidade científica; efetuando-se esterilizações e experiências genéticas com o escopo de obter uma raça superior; provocando-se queimaduras de 1º e 2º grau com compostos de fósforo; ministrando-se doses de substâncias tóxicas para averiguar experimentalmente os seus efeitos; deixando-se de tratar pacientes sifilíticos ou mulheres com lesões pré-cancerosas do colo de útero para analisar a evolução das moléstias etc. ... O Código de Nuremberg (1947) estabeleceu padrões de conduta ou procedimentos éticos a serem seguidos em experiências científicas com seres humanos, dando ênfase ao consentimento livre do participante. Anteriormente, em 1946, a Associação Médica Americana, por meio do Comitê Médico Americano para Experiência de Guerra, já havia fixado três princípios que deveriam ser considerados em tais pesquisas biomédicas: o do consentimento voluntário do experimentado, o do consentimento prévio dos riscos da pesquisa em animais e o da execução, proteção e acompanhamento médico na pesquisa. A Associação Médica Mundial, em 1949, publicou o Código Internacional de Ética Médica, que contém a norma de que 'qualquer ato ou conselho que possa enfraquecer física ou moralmente a resistência do ser humano só poderá ser admitido em seu próprio benefício'. Apesar de ser omisso na disciplina da experimentação científica, deixa claro que ela apenas será lícita se feita em favor do experimentado. Todavia, na verdade, foi em 1964, com a Declaração de Helsinque, que se aprovaram normas disciplinadoras da pesquisa clínica combinada com o tratamento, diferenciando-a da experimentação não terapêutica. A partir daí surgiram acordos internacionais e leis em todos os países apontando diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos, por gerarem questões de alta indagação e de difícil solução: ... Como acatar o consentimento livre e esclarecido se o paciente retido em hospital tiver sua capacidade de decisão afetada por alguma emoção?Poder-se-ia fazer experiência científica em caso de vulnerabilidade, ou seja, na hipótese de pessoas ou grupos que, por qualquer motivo, tenham sua capacidade de autodeterminação reduzida? Deveria haver Comitês de Ética em Pesquisa para a defesa dos interesses daqueles que se submeterem a uma pesquisa biomédica, no que atina à sua dignidade como ser humano e à sua integridade?... Como se poderia ter certeza de que os benefícios da pesquisa serão maiores do que os riscos? (grifei)”. Assim, pode-se dizer, no final da década de 1970, início dos anos 1980, a bioética pautou-se em 4 princípios básicos, enaltecedores da pessoa humana. Tais princípios estão consignados no “Belmont Report”, publicado em 1978 pela Comissão Nacional para a Proteção dos Seres Humanos em Pesquisa Biomédica e Comportamental (“National Comission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research). Esta comissão foi constituída pelo governo norte-americano, visando a identificar os princípios éticos básicos que deveriam nortear a experimentação de seres humanos. São os seguintes os princípios: da autonomia, da beneficência, da não maleficência e da justiça. Pelo princípio da autonomia, em síntese, o profissional da saúde deve respeitar a vontade do paciente, ou de seu representante, levando em conta seus valores morais e crenças religiosas. Considera o paciente capaz de autogovernarse, isto é, de fazer suas opções e agir sob orientação dessas deliberações tomadas, devendo, por tal razão, ser tratado com autonomia. Aquele que tiver a sua vontade reduzida deverá ser protegido. Autonomia, no caso, seria a capacidade de o paciente atuar com conhecimento de causa e sem qualquer coação ou influência externa. Desse princípio decorrem a exigência do consentimento livre e informado e a maneira de como tomar decisões de substituição quando uma pessoa for incompetente e incapaz. O princípio da beneficência, em resumo, determina que o médico ou geneticista atenda aos mais importantes interesses das pessoas envolvidas nas pesquisas, para atingir o seu bem-estar, evitando, no que for possível, quaisquer danos. Duas são as regras dos atos de beneficência: não causar dano e maximizar os benefícios, minimizando os possíveis riscos. O princípio da não-maleficência é um desdobramento do da beneficência, por conter a obrigação de não acarretar dano intencional. E, por fim, o princípio da justiça requer a imparcialidade na distribuição dos riscos e benefícios, no que diz respeito à prática médica pelos profissionais da saúde. Tal princípio, expressão da justiça distributiva, exige uma relação equânime nos benefícios, riscos e encargos, proporcionados pelos serviços de saúde ao paciente. Grande é a preocupação, não só brasileira, mas mundial, como se pode perceber, com a experiência científica em seres humanos, não apenas em decorrência do enorme risco que acarretam para os participantes, mas, também, pelas questões ético-jurídicas suscitadas, tanto mais quando tais pesquisas são realizadas em países subdesenvolvidos, ou em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, envolvendo grupos populacionais vulneráveis, portanto. Assim, o primeiro Código Internacional de Ética para pesquisas com seres humanos foi o de Nuremberg, publicado em 1947. Este Código, teve fundamental importância, não apenas para disciplinar a complexa questão, que estava em aberto, mas, principalmente, para responder às atrocidades e experimentações iníquas praticados por médicos nazistas, sob o comando de Josef Mengele, nos campos de concentração, como o de Auschwitz, durante a Segunda Guerra Mundial. Evidentemente, a Alemanha não foi o único país a realizar “experimentos desumanos e atrozes, tratando seres humanos como gado destinado ao matadouro ou ratos em laboratórios. No Japão, durante a guerra, prisioneiros chineses foram infectados com bactérias causadoras de peste bubônica (...) Nos Estados Unidos, as Forças Armadas, durante a Guerra do Golfo Pérsico, aplicaram em seus soldados vacinas experimentais, como a piridostigmine, para prevenção e tratamento de moléstias decorrentes do uso de armas químicas (...) Na Austrália, entre 1947 e 1970, crianças pobres e filhos de mães solteiras foram submetidos a testes de vacina de coqueluche, gripe, herpes etc. (...) Na África do Sul, houve desenvolvimento de microrganismos manipulados em laboratório que esterilizassem a população negra, mas não a branca”28[28]. O Código de Nuremberg (1947), portanto, estabeleceu padrões de conduta, procedimentos éticos, a serem seguidos em experiências científicas com seres humanos, enfatizando o consentimento livre do participante e vedando pesquisa que tenha objetivos políticos, bélicos ou eugênicos. Num segundo momento, em 1949, a Associação Médica Mundial, em 1949, publicou o Código Internacional de Ética Médica, que contém a norma de que “qualquer ato ou conselho que possa enfraquecer física ou moralmente a resistência do ser humano só poderá ser admitido em seu próprio benefício”. Esse Código deixa claro, portanto, que a experimentação científica com seres humanos só será lícita se feita em favor do experimentado. Todavia, foi em 1964, com a Declaração de Helsinque, que se aprovaram as normas disciplinadoras da pesquisa clínica combinada com o tratamento. A partir dessa Declaração, surgiram acordos internacionais e leis em todos os países, apontando diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. BRASIL. DIRETRIZES E NORMAS REGULAMENTADORAS DE PESQUISAS EM SERES HUMANOS, ATRAVÉS DA RESOLUÇÃO DO CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE (CNS) Nº 196, DE 10 DE OUTUBRO DE 1996, ESTABELECENDO PADRÕES DE CONDUTA PARA PROTEGER A INTEGRIDADE FÍSICA E PSÍQUICA, A SAÚDE, A DIGNIDADE, A LIBERDADE, O BEM-ESTAR, A VIDA E OS DIREITOS DOS ENVOLVIDOS EM EXPERIÊNCIAS CIENTÍFICAS. REFERENCIAIS BÁSICOS DA BIOÉTICA (AUTONOMIA, NÃOMALEFICÊNCIA, BENEFICÊNCIA E JUSTIÇA). INSPIRAÇÃO NOS DOCUMENTOS, NACIONAIS E INTERNACIONAIS, INCLUSIVE NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. PADRÕES ESTABELECIDOS PELA RESOLUÇÃO PARA A REALIZAÇÃO DE PESQUISAS EM SERES HUMANOS. CONSENTIMENTO ESCRITO, LIVRE E ESCLARECIDO DO INDIVÍDUO-ALVO OU DE SEU REPRESENTANTE LEGAL, RESGUARDANDO-SE A SUA AUTONOMIA. TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE). PONDERAÇÃO ENTRE RISCOS E BENEFÍCIOS. BENEFÍCIOS PARA O PARTICIPANTE E PARA A SOCIEDADE DEVEM SER BEM SUPERIORES A EVENTUAIS DANOS. RELEVÂNCIA SÓCIO-HUMANITÁRIA DA PESQUISA, TRAZENDO VANTAGENS BASTANTE SIGNIFICATIVAS PARA O PACIENTE QUE A ELE SE SUBMETER. GARANTIA DE QUE OS DANOS PREVISÍVEIS SERÃO EVITADOS. PREVALÊNCIA DAS PROBABILIDADES DOS BENEFÍCIOS ESPERADOS SOBRE OS RISCOS OU DANOS PREVISÍVEIS. REPARAÇÃO DOS DANOS CAUSADOS. ADEQUAÇÃO AOS PRINCÍPIOS CIENTÍFICOS QUE A JUSTIFIQUEM E COM POSSIBILIDADES CONCRETAS DE RESPONDER A INCERTEZAS. FUNDAMENTAÇÃO EM EXPERIÊNCIAS PRÉVIAS FEITAS EM ANIMAIS. OBEDIÊNCIA A MÉTODOS OU TÉCNICAS ADEQUADAS. SUPERVISÃO POR INVESTIGADOR ALTAMENTE QUALIFICADO E EXPERIENTE, REQUERENDO EMPREGO DE RECURSOS HUMANOS E MATERIAIS NECESSÁRIOS QUE GARANTAM O BEM-ESTAR DO SUJEITO DE PESQUISA. ADEQUAÇÃO ENTRE A COMPETÊNCIA DO PESQUISADOR E O PROJETO PROPOSTO. PREVISÃO DE PROCEDIMENTOS QUE GARANTAM A CONFIDENCIALIDADE, A PRIVACIDADE E A IMAGEM DA PESSOA ENVOLVIDA NA EXPERIÊNCIA CIENTÍFICA E ASSEGUREM A NÃO-UTILIZAÇÃO DE INFORMAÇÕES QUE POSSAM PREJUDICAR A SUA AUTO-ESTIMA OU O SEU PRESTÍGIO. RESPEITO AOS VALORES MORAIS, ÉTICOS, CULTURAIS, SOCIAIS E RELIGIOSOS. COMUNICAÇÃO ÀS AUTORIDADES SANITÁRIAS DO RESULTADO DA PESQUISA SEMPRE QUE ESTE CONTRIBUA PARA A 28 [28] DINIZ, Maria Helena, Op. Cit, p. 397-398. MELHORIA DAS CONDIÇÕES DA SAÚDE DA COLETIVIDADE. INEXISTÊNCIA DE CONFLITO DE INTERESSES ENTRE O PESQUISADOR, O PACIENTE E O PATROCINADOR DO PROJETO. USO DO MATERIAL BIOLÓGICO E DOS DADOS OBTIDOS NA PESQUISA EXCLUSIVAMENTE PARA A FINALIDADE PREVISTA NO SEU PROTOCOLO. No Brasil, atualmente, sobre o assunto, estão em vigor as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas em Seres Humanos, através da Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 196, de 10 de outubro de 1996, estabelecendo padrões de conduta para proteger a integridade física e psíquica, a saúde, a dignidade, a liberdade, o bem-estar, a vida e os direitos dos envolvidos em experiências científicas. Assim, qualquer pesquisa em seres humanos, realizada em território nacional, será regida, além de pelos 4 referenciais básicos da bioética (que são autonomia, não-maleficência, beneficência e justiça), pelos princípios consignados na Resolução CNS n. 196/96, a qual teve por parâmetro os seguintes documentos relativos às diretrizes a serem seguidas nas pesquisas científicas que envolverem seres humanos, conforme consta em seu preâmbulo: Código de Nuremberg (1947); Declaração dos Direitos do Homem (1948); Declaração de Helsinque (1964) e suas posteriores versões de 1975 (Tóquio), 1983 (Veneza), 1989 (Hong-Kong); Acordo Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (ONU, 1966); Propostas de Diretrizes Éticas Internacionais para Pesquisas Biomédicas Envolvendo Seres Humanos (CIOMS/OMS 1982 e 1993); Diretrizes Internacionais para Revisão Ética de Estudos Epidemiológicos (CIOMS, 1991). Cumpre as disposições da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e da legislação brasileira correlata: Código de Defesa do Consumidor; Código Civil; Código Penal; Código de Ética Médica; Estatuto da Criança e do Adolescente; Lei Orgânica da Saúde de 8080/1990 (dispõe sobre as condições de atenção à saúde, à organização e ao funcionamento dos serviços correspondentes); Lei 8.142/1990 (participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde), Decreto 99.438/1990 (organização e atribuição do Conselho Nacional de Saúde), Decreto 98.830/1990 (coleta por estrangeiros de dados e materiais científicos no Brasil), Lei 8489/1992, e Decreto 870/1993 (dispõem sobre a retirada de tecidos, órgãos e outras partes do corpo humano com fins humanitários e científicos), Lei 8.501/1992 (utilização de cadáver), Lei 8.974/1995 (uso das técnicas de engenharia genética e liberação no meio ambiente de organismos geneticamente modificados), Lei 9.279/1996 (regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial), e outras. A Revista Bioética, volume 4, nº2, publicada pelo Conselho Federal de Medicina, em 1996, fl. 11, relata acerca da Resolução: “acredita-se que estas normas realmente são resultado do que pensa a sociedade brasileira, construída a partir dos requisitos do Ministério da Saúde/Governo, da comunidade científica, dos sujeitos de pesquisa e da sociedade, constituindo efetivo instrumento de concretização da cidadania e de defesa dos direitos humanos”. Resta, portanto, verificar, quais as diretrizes e normas regulamentadoras previstas pela Resolução 196, no que diz respeito ao caso sob exame. Tendo em vista os múltiplos fatores envolvidos, a experiência científica em seres humanos requer, conforme a Resolução 196/1996, com base na análise feita pela obra de Maria Helena Diniz, pp. 400-404: a) Consentimento escrito, livre e esclarecido do indivíduo-alvo ou de seu representante legal, resguardando-se a sua autonomia. É preciso, assim, que o envolvido, sujeito de pesquisa e/ou seu representante legal, manifeste sua anuência à participação na pesquisa, após uma explicação clara, acessível e pormenorizada sobre os procedimentos a serem utilizados na pesquisa, os possíveis riscos, os benefícios esperados, os métodos alternativos existentes, a forma de acompanhamento e assistência, o ressarcimento das despesas decorrentes da participação na pesquisa, a indenização a que fará jus diante dos eventuais danos, a garantia do sigilo que assegure a sua privacidade quanto aos dados confidenciais e a liberdade de recusar-se a participar ou de retirar seu consenso, em qualquer fase da experiência, sem penalização alguma e prejuízo ao seu tratamento. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido deverá conter, nos termos da Resolução em comento, os seguintes requisitos: ser elaborado pelo pesquisador responsável, expressando o cumprimento das exigências acima indicadas; ser aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa que referenda a investigação; ser assinado e identificado por impressão dactiloscópica por todos e cada um dos sujeitos da pesquisa ou por seu representante legal, em 2 vias, ficando uma com o pesquisado e outra arquivada pelo pesquisador. Dessa forma, protegem-se os grupos vulneráveis, que não devem ser sujeitos de pesquisa, a não ser que a investigação lhes possa trazer benefícios diretos. Caso a pesquisa envolva menores, como cuida o presente processo, ou doentes mentais, as exigências do consentimento livre e esclarecido serão cumpridas através de seus representantes legais, sem, contudo, suspender o seu direito de informação no limite de sua capacidade. b) Ponderação entre riscos e benefícios. Deverão os benefícios para o participante e para a sociedade ser bem maiores que os danos. A pesquisa tem de prevenir ou aliviar um problema que afeta o bem-estar do paciente, devendo o risco ser justificado pela importância da vantagem esperada. A experiência deve ter condição de ser suportada pelo paciente, levando-se em conta sua situação física, psíquica, social e educacional. O pesquisador responsável terá de suspender a pesquisa assim que perceber algum dano grave à saúde do participante e informar o Comitê de Ética em Pesquisa de todos os efeitos adversos ou fatos relevantes que venham a alterar o curso normal da pesquisa. O pesquisador, o patrocinador e a instituição assumirão a responsabilidade de dar assistência integral ao paciente pelas complicações e danos decorrentes dos riscos previstos. Aquele que se submeter a uma pesquisa biomédica terá direito à indenização por dano, e ninguém poderá exigir que dele renuncie. c) Relevância sócio-humanitária da pesquisa, trazendo vantagens bastante significativas para o paciente que a ele se submeter. d) Garantia de que os danos previsíveis serão evitados. e) Prevalência das probabilidades dos benefícios esperados sobre os riscos ou danos previsíveis. f) Reparação dos danos causados. g) Adequação aos princípios científicos que a justifiquem e com possibilidades concretas de responder a incertezas. h) Fundamentação em experiências prévias feitas em animais. i) Obediência a métodos ou técnicas adequadas. j) Supervisão por investigador altamente qualificado e experiente, requerendo emprego de recursos humanos e materiais necessários que garantam o bem-estar do sujeito de pesquisa. proposto. k) Adequação entre a competência do pesquisador e o projeto l) Previsão de procedimentos que garantam a confidencialidade, a privacidade e a imagem da pessoa envolvida na experiência científica e assegurem a não-utilização de informações que possam prejudicar a sua auto-estima ou o seu prestígio. m) Respeito aos valores morais, éticos, culturais, sociais e religiosos. n) Comunicação às autoridades sanitárias do resultado da pesquisa sempre que este contribua para a melhoria das condições da saúde da coletividade. o) Inexistência de conflito de interesses entre o pesquisador, o paciente e o patrocinador do projeto. p) Uso do material biológico e dos dados obtidos na pesquisa exclusivamente para a finalidade prevista no seu protocolo29[29]. Destarte, diante do até aqui exposto, não há ângulo pelo qual, a partir da Resolução 196/96, CNS, possa-se querer afastar a responsabilidade dos laboratórios denunciados. Com efeito, a norma brasileira em comento, baseada nos documentos mais relevantes sobre a matéria elaborados ao redor do mundo, estabelece, sim, como princípio ético inafastável, a responsabilidade de que o pesquisador e o realizador da pesquisa mantenham o fornecimento do fármaco desenvolvido, aos participantes da pesquisa, sob pena do cometimento de ato contra a dignidade da pessoa humana, que o Poder Judiciário não pode ratificar, com a autoridade da coisa julgada. O magistrado, como se sabe, cumpre mandato, assim como os outros agentes de poder, com a diferença de que os políticos em geral são eleitos pelo voto direto, enquanto que o Juiz, por escolha do próprio povo, exercida por meio de seus representantes eleitos, presta concurso público para o seu ingresso na carreira. Como todo o poder emana do povo, devendo em nome dele ser exercido (artigo 1º, parágrafo único, da Constituição Federal), o compromisso do magistrado, diferentemente do dos laboratórios internacionais, é com o povo, origem do poder e seu detentor. Os laboratórios denunciados possuem outros interesses a defender, econômicos, principalmente, mas esta não é a preocupação máxima do Juízo ao se defrontar com um caso como o “sub judice”. Obviamente, a decisão judicial não pode ficar alheia à realidade de fatos que a cerca, seja realidade econômica, seja de realização de pesquisas médicas em território nacional. Todavia o que não se pode admitir é a injusta e ilegal irresponsabilidade de lucrativos laboratórios internacionais diante de doentes dos quais se utiliza para a realização de suas pesquisas médicas. Entender que o benefício ao doente participante da pesquisa é a descoberta e a aprovação do fármaco junto à ANVISA, acabando-se aí o vínculo existente entre pesquisador e pesquisado, é desonerar os laboratórios denunciados de qualquer responsabilidade. É raciocínio que tenta aplicar à delicada situação do sujeito de pesquisa, no caso o autor, Kauã – este a parte mais fraca da relação, padecendo de moléstia gravíssima, pessoa pertencente à família humilde –, uma doutrina econômica de livre mercado de capitais, sem qualquer restrição ou limite, os quais, acaso existentes, segundo alegado, de maneira inverossímil, poderiam ensejar mesmo o fim das pesquisas. 29 [29] Protocolo é o documento contemplando a descrição e o objetivo da pesquisa em seus aspectos fundamentais e informações relativas ao sujeito da pesquisa, à qualificação dos pesquisadores, às razões para o envolvimento do ser humano, à natureza e ao grau de risco conhecido para o participante, às fontes propostas para o recrutamento de pacientes e aos meios propostos para assegurar que o consenso do participante seja voluntário e dado após informações adequadas. Tal protocolo de pesquisa deverá ser avaliado ética e cientificamente por um ou mais organismos de revisão adequadamente constituídos e independentes dos investigadores. Nesse sentido, aliás, o argumento trazido à luz pelos laboratórios denunciados, de que as pesquisas no Brasil poderiam ficar inviabilizadas caso o responsável pela pesquisa ficasse obrigado a fornecer a medicação descoberta aos sujeitos pesquisados, após a realização da pesquisa, baseia-se no que renomados estudiosos da Bioética nomeiam de “moral de mercado”. Sobre ela, inestimável a lição de Giovanni Berlinguer, membro do Comitê Nacional de Bioética da Itália: “A relação nem sempre equilibrada entre ciência e mercado obriganos, atualmente, a uma reflexão (...) Estou convencido de que o sistema de mercado é, desde há muito, e hoje em dia de forma bem mais dinâmica, o melhor método para fomentar e orientar o processo produtivo, bem como para promover, neste campo, uma liberdade maior do que a alcançável (...) Estou igualmente convencido de que as empresas industriais têm dado e darão no futuro uma grande contribuição para o desenvolvimento da ciência e de suas aplicações, sobretudo no campo dos fármacos (...) Defender uma economia de mercado, entretanto não implica auspiciar que a humanidade viva necessariamente numa sociedade de mercado, em que todas as exigências e prioridades sejam reduzidas a uma só (...) implica menos ainda aceitar o domínio, e até a exclusividade, de uma moral de mercado, à qual fica subordinado qualquer outro valor; inclusive o valor moral do corpo humano e de seus órgãos essenciais(...) Daí a necessidade de normas morais (antes mesmo de legais) aptas a orientar a aplicação de tecnologias que avançam em ritmo sempre mais acelerado”30[30] (grifei). Com efeito, deixar que tão-somente a ética do mercado guie as relações humanas, como quer fazer parecer os laboratórios denunciados, não é concebível, não num Estado Democrático de Direito, pois este existe justamente para limitar, não apenas a atuação do Estado com relação aos direitos individuais da pessoa humana, mas também a liberdade de cada indivíduo componente da sociedade, cumprindo repetir a máxima de que liberdades implicam responsabilidades, bem como o conhecido e correto argumento de que minha liberdade de atuação termina quando começa a liberdade de outrem. Ora, a liberdade reclamada pelos laboratórios denunciados, a sua ausência total de responsabilidade, contraria o bom senso e a experiência histórica, favorecendo unicamente a eles mesmos. Muitas referências, ao longo de sua defesa, os laboratórios denunciados fazem ao chamado ICAP, fls. 285/292, 301/307, 354/357 e 809/815, todavia tais referências pouco dizem respeito ao julgamento do feito. Conforme deixaram claro em sua manifestação, o ICAP é um plano interno dos laboratórios denunciados, ficando a seu total critério a inclusão ou a exclusão de doentes em seu rol de beneficiados. Assim, somente aos laboratórios denunciados interessam os esclarecimentos acerca do que é o ICAP, de como ele funciona, quais os critérios para a sua obtenção, qual a sua duração etc., justamente porque não se pode querer chamar de “caridade” aquilo que é dever legal e moral, mormente quando estamos tratando dos sujeitos de pesquisa, a quem o laboratório tem o dever legal de alcançar o medicamento desenvolvido enquanto esse se fizer necessário, também no período após o término da pesquisa. Seja pela inclusão no ICAP, seja por outros meios, os laboratórios denunciados deverão realizar a manutenção do tratamento com o fármaco descoberto. Portanto, fosse o autor, Kauã inserido no ICAP, ou não, a obrigação do pesquisador subsistiria, independentemente. Com efeito, não é a inclusão do autor, Kauã, no ICAP que gera aos laboratórios denunciados a responsabilidade pela manutenção do fornecimento do fármaco, enquanto se fizer necessário, e isso deve ficar bastante claro. O que gera a obrigação do pesquisador é a captação e a inclusão do menino na pesquisa desenvolvida pelos laboratórios internacionais, independentemente de sua inclusão em qualquer programa, o qual os laboratórios denunciados insistem em chamar de “caritativo”. 30 [30] In Revista de Bioética, publicada pelo Conselho Federal de Medicina, volume 8, nº1, 2000. Ciência, mercado e patentes do DNA humano. pp. 97-103. Questiona-se: caritativo para quem? Certamente, a caridade é muito mais benéfica aos próprios laboratórios denunciados do que ao sujeito de pesquisa. De fato, o patrocinador da pesquisa, incluindo o autor, Kauã, no ICAP, vai, aos poucos, dificultando o recebimento do medicamento diretamente fornecido pelos laboratórios, forçando por parte dos “beneficiados” a interposição de ações judiciais, que, paulatinamente, vão “apagando” o vínculo perene estabelecido entre o pesquisador e o sujeito de pesquisa. Assim, percebe-se, a caridade beneficia muito mais ao “doador”, que vai livrando-se de sua responsabilidade, aos poucos, até que o próprio sujeito de pesquisa, já utilizado no experimento, agora lhe dê lucro também por outras vias. Muito se falou, ao londo da instrução, acerca da obrigação estatal de fornecer à população o direito à saúde, constitucionalmente prevista no artigo 196, da Constituição Federal. É de se frisar que esta obrigação é de saúde pública, não envolvendo a relação privada travada entre o laboratório pesquisador e o sujeito de pesquisa. Certamente a obrigação do Estado, sentido amplo, é abrangente, todavia não a ponto de abarcar a situação criada pela captação e inclusão de criança em pesquisa médica para o desenvolvimento de novo fármaco. Embora a relação estabelecida entre os laboratórios denunciados e as crianças pesquisadas seja de direito privado, recebe certamente a incidência de dispositivos de ordem pública, sendo nula de pleno direito qualquer cláusula inserta do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido que limite no tempo a manutenção do fornecimento do fármaco desenvolvido enquanto este se fizer necessário, por afronta expressa à dignidade da pessoa humana. Os laboratórios denunciados também dispensaram a outras crianças o tratamento inadmissível dado ao autor, Kauã. De fato, foram assim tratados, além de kauã, Ritieli, Isabela, Paula, enfim, todos quantos participaram na pesquisa, servindo aos interesses dos laboratórios denunciados, e, quando já não mais interessavam ou se faziam necessários, sendo abandonados a sua própria (má)sorte. A defesa dos laboratórios denunciados trazem aos autos cópia de outras ações semelhantes, em que o chamamento da GENZYME ao processo também teria sido postulado, fls. 591/598: ações movidas por Ritieli, por Isabela e por Paula (fls. 599/679). Em tais ações, segundo afirmam os laboratórios denunciados, houve entendimento diverso, não sendo sequer acolhido o chamamento ao processo dos laboratórios. A essa altura da fundamentação, cumpre ressaltar que a matéria ora enfrentada é nova, apresentando inúmeros desafios aos operadores do direito. De fato, a tutela de direitos em um ambiente virtual, por exemplo, ou questões atinentes à Bioética são matérias novas, que ordinariamente não chegavam, até bem pouco tempo, ao Poder Judiciário, tanto é assim que raras são as decisões no País a este respeito. Portanto não servem de paradigma as ações mencionadas pela defesa dos laboratórios denunciados, a uma por tratar-se de matéria nova e de difícil enfrentamento, não existindo jurisprudência consolidada e mais contundente a seu respeito; a duas, porque, no presente feito, deve-se ressaltar, o entendimento tem sido diverso, em razão das peculiaridades do caso, de acordo com os documentos e demais elementos que vieram aos autos (não se pode saber, com certeza, se nos outros feitos a instrução probatória atingiu o grau amplo aqui obtido), tanto é que o Egrégio Tribunal de Justiça, com decisão transitada em julgado, acolheu o chamamento ao processo do Laboratório, neste feito, bem como pronunciou-se pela continuidade da instrução, mesmo após o falecimento da parte autora, Kauã, para que fosse verificada a questão essencial de quem seria o responsável por fornecer a medicação ao sujeito de pesquisa. Embora a questão seja nova, não há ausência de normas a respeito, assim como existem princípios jurídicos sempre aptos a enfrentar novas situações, independentemente de quais sejam: boa-fé, dignidade da pessoa humana, proteção prioritária dos direitos das crianças, adolescentes e idosos etc. Assim, há suficientes elementos para a decisão correta no presente caso. Diante do que até aqui foi visto, essas são, em linhas gerais, as diretrizes impostas pela Resolução 196/1996, sendo evidente a presença inafastável do princípio bioético-jurídico da justiça distributiva, porquanto deve haver uma distribuição equânime tanto do ônus como das vantagens decorrentes da pesquisa, permitindo-se distinções apenas entre pessoas vulneráveis, para proteção de seu bem-estar ou de seus interesses, por serem incapazes de dar o seu consentimento pós-informação, pela situação subordinada, e pala falta de meios alternativos de obter assistência médica31[31]. Esse o arcabouço fático e jurídico em que se insere o caso sob julgamento. Trata-se de criança, autor Kauã, vinda de família humilde, que padecia de doença de rápido avanço e alto índice de mortalidade. Procurada pelos laboratórios denunciados, por intermédio do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, evidentemente, aceitou, por meio de seus genitores, participar de pesquisa que era a única esperança de garantir-lhe a sobrevivência. Destarte, tendo a conduta dos laboratórios denunciados afrontado o insculpido na Resolução 196/96, CNS, item III.1, “a”, “b”, “c”, “d”; item III.3, “l”, “m”, “n” e “p”; item V.6; e na Resolução 251/97, CNS, item IV.1, “m”, são a “GENZYME DO BRASIL LTDA.”, a “GENZYME CORPORATION” e a “BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC.” responsáveis pela manutenção do fornecimento do fármaco desenvolvido após o término da pesquisa, devendo realizar a devolução do valor alcançado pelo Estado do Rio Grande do Sul, consistente em R$ 72.900,00, fl. 175, devidamente atualizados, na medida em que a obrigação estatal é meramente subsidiária, na impossibilidade, devidamente comprovada, de os laboratórios denunciados arcarem com o avençado. Merecem destaques, uma vez mais, os seguintes dispositivos constantes na Resolução 196/96, CNS: “Item III.1, “d”: A observação dos princípios éticos na pesquisa implica relevância social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimização do ônus para os sujeitos vulneráveis, o que garante a igual consideração dos interesses envolvidos, não perdendo o sentido de sua destinação sócio-humanitária (justiça e eqüidade). Item III.3, “m”: Garantir que as pesquisas em comunidades, sempre que possível, traduzir-se-ão em benefícios cujos efeitos continuem a se fazer sentir após a sua conclusão (...) “n”: Garantir o retorno dos benefícios obtidos através das pesquisas para as pessoas e as comunidades onde as mesmas forem realizadas (...) “p”: Assegurar aos sujeitos da pesquisa os benefícios resultantes do projeto, seja em termos de retorno social, acesso aos procedimentos, produtos ou agentes de pesquisa; “q”: Assegurar aos sujeitos da pesquisa as condições de acompanhamento, tratamento ou de orientação(...) “s”: Comprovar, nas pesquisas conduzidas do exterior ou com cooperação estrangeira, os compromissos e as vantagens, para os sujeitos de pesquisa e para o Brasil, decorrentes de sua realização (...) Item V.5: O pesquisador, o patrocinador e a instituição devem assumir 31 [31] DINIZ, Maria Helena. Obra citada, pp. 404-405. a responsabilidade de dar assistência integral às complicações e danos decorrentes dos riscos previstos. V.6: Os sujeitos da pesquisa que vierem a sofrer qualquer tipo de dano previsto ou não no termo de consentimento e resultante de sua participação, além do direito à assistência inegral, têm direito à indenização. V.7: Jamais poderá ser exigido do sujeito da pesquisa, sob qualquer argumento, renúncia ao direito à indenização por dano. O formulário do consentimento livre e esclarecido não deve conter nenhuma ressalva que afaste essa responsabilidade ou que implique ao sujeito da pesquisa abrir mão de seus direitos legais, incluindo o direito de procurar obter indenização por danos eventuais” (grifei). Os trechos da Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, não deixam dúvida de que os laboratórios denunciados possuem sim a responsabilidade ética e jurídica de manter o fornecimento do medicamento desenvolvido para aqueles seres humanos que participaram da pesquisa, não sendo lícita a conduta que limita o alcance desses medicamentos no tempo, forçando o participante a buscar o fármaco por outras vias, sob a ameaça constante, seja expressa ou tácita, de que o prazo pós pesquisa para o fornecimento do remédio está expirando, ou já expirou, demonstrando total desrespeito, assim, à pessoa humana e a sua dignidade. Com efeito, laboratórios que se gabam de possuir conduta ética, “caritativa”, humanitária, deveriam ter outra postura frente aos seus pesquisados, mormente em se tratando de crianças e adolescentes, sendo inconcebível, diante do ordenamento jurídico brasileiro, como inicialmente foi demonstrado, por meio da Constituição Federal, do Código Civil, do Código de Defesa do Consumidor, do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Resolução do Conselho Regional de Medicina nº 196/1996, ao Judiciário permitir e chancelar a conduta dos laboratórios denunciados que afronta o senso comum de justiça. Some-se a esses argumentos, como acima demonstrado, o fato de que a pesquisa foi realizada com pessoa de família humilde, moradora de país subdesenvolvido, o que aumenta a preocupação, mesmo da Comunidade Internacional, sobre esse tipo de experimento. Assim, são responsáveis os laboratórios realizadores da pesquisa em seres humanos pela manutenção do medicamento desenvolvido, mesmo após o fim da pesquisa, ao ser humano pesquisado, até que seja descoberta a cura para a doença ou até que o sujeito da pesquisa venha a óbito, enfim, enquanto o uso do medicamento se fizer necessário. ANALOGIA. ARTIGO 5º, INCISO XXXV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ARTIGOS 4º E 5º, DA LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL (DECRETO-LEI 4.657/42) E ARTIGOS 126, 127, 335 E 1009, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. ESPÍRITO TELEOLÓGICO. RESOLUÇÃO 251/97, DO CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, ARTIGOS 3º, 4º, 5º E 6º, 15, 16, 17 E 18. RESOLUÇÃO CNS 196/96, ITEM III.1, ALÍNEAS “A”, “B” E “D”, ITEM III.3, ALÍNEAS “L”, “M”, “N” E “P”. RESOLUÇÃO CNS 251/97, ITEM III.1, IV.1, ALÍNEA “M”. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR, ARTIGOS 47 E 51, INCISO IV, PARÁGRAFO 1º, INCISOS I A III, E PARÁGRAFO 2º. CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO, ARTIGOS 11, 12, 13, 112, 113, 184, 186, 187, 421, 422, 423 E 424. CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ARTIGOS 1º, INCISO III, 4º, INCISO II, E 227, “CAPUT”. BOA-FÉ OBJETIVA. FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO. PROIBIÇÃO DE COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO. TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO. NATUREZA ADESIVA. CLÁUSULAS ABUSIVAS. APRECIAÇÃO PELO PODER JUDICIÁRIO. NULIDADE DE PLENO DIREITO. Todavia, poder-se-ia tentar justificar uma irresponsabilidade total por parte do laboratório demandado ao argumento de que a Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, não sendo lei em sentido estrito, não tendo observado, portanto, o princípio da legalidade (artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal) em sua elaboração, não poderia estabelecer qualquer obrigação, razão pela qual não haveria norma legal impondo aos laboratórios denunciados qualquer responsabilidade ou obrigação no caso. Tal raciocínio, cumpre ressaltar, é falho e simplista. Não que o argumento esteja incorreto, mesmo porque há eminentes constitucionalistas, como Celso Ribeiro Bastos, que, embora reconheçam a realidade do uso de Resoluções como se lei o fossem, criticam tal conduta32[32]: “Sem embargo do realce que ainda ostenta, o princípio da legalidade sofre, é forçoso reconhecer, um processo de relativa perda de importância dentro do Estado tecnocrático e intervencionista em que vivemos. É que, neste, certos atos, embora sem contestarem a supremacia formal da lei, roubam-lhe, do ponto de vista prático, a sua importância primitiva. São inúmeros os exemplos desses tipos de atos: regulamentos, instruções, até mesmo meras portarias acabam por incidir na vida real das pessoas de uma maneira mais aguda e pungente que a própria lei, com a qual passam a rivalizar. É curial que esses atos por encobrirem, sempre, delegações de competências que, a rigor, seriam do Legislativo, têm recebido a mais viva condenação por parte da doutrina. O primado da lei subsiste, pois, quer a nível teórico, no sentido de que a Constituição o proclama solenemente, quer do ponto de vista de um ideal sempre acalentado, ante o qual as violações sofridas não são senão uma série de pecadilhos que devem ser extirpados a fim de que se restaure a santidade da supremacia da lei”. No entanto a responsabilização dos laboratórios denunciados não passa tão-somente pela via de sua previsão na Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde. Com efeito, conforme antes mencionado, o caso que se apresenta é novo, pouco enfrentado pelo Legislativo e muito menos ainda pelo Judiciário, todavia o arcabouço jurídico existente à disposição dos operadores do direito certamente os capacita, de maneira satisfatória, a lidar com situações que vão surgindo, na medida em que a natureza humana é a mesma, abrangida com segurança em princípios como os da boa ou da má-fé, da dignidade da pessoa humana, da função social do contrato e da propriedade, da nulidade de pleno direito de determinadas cláusulas contratuais abusivas (ver, a propósito, os artigos 51 a 53, do Código de Defesa do Consumidor), dos contratos de adesão (ver artigo 53, também do CDC) etc., chamadas cláusulas de tecitura aberta, que permitem ao operador do direito realizar a adequação de normas a novos fatos que forem surgindo, porquanto a realidade social é dinâmica, e assim deverá ser entendida e enfrentada. Ademais, raciocínio assim, em verdade, configuraria negativa da prestação jurisdicional, em desrespeito ao artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, principalmente quando lido em cotejo com o previsto nos artigos 4º e 5º, da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-lei 4.657/42) e com o insculpido nos artigos 126, 127, 335 e 1009, do Código de Processo Civil. Com efeito, quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, não se podendo eximir de despachar ou sentenciar alegando lacuna ou obscuridade da lei. Assim, o juiz, no julgamento da lide, deverá aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. Portanto, afirmar que não há lei que responsabilize os laboratórios 32 [32] Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo, editora Saraiva, 1988-1989, volume 2, p. 24. denunciados, e, por isso, isentá-los de qualquer responsabilidade, é o mesmo que não apreciar lesão ou ameaça a direito, afrontando expressamente disposições constitucionais e infra-constitucionais, que determinam ao juiz, mesmo em tais casos, o julgamento da causa, baseado na analogia, nos costumes e nos princípios gerais de direito. De fato, quando, ao solucionar o caso, o magistrado não encontra norma que lhe seja aplicável, não podendo subsumir o fato a nenhum preceito, porque há falta de conhecimento sobre um “status” jurídico de certo comportamento, devido a um defeito do sistema que pode consistir numa ausência de norma, ou mesmo na presença de disposição legal injusta ou em desuso, está-se diante do problema das lacunas. Imprescindível, portanto, neste caso, um desenvolvimento aberto do direito dirigido metodicamente33[33]: “É nesse desenvolvimento aberto que o aplicador adquire consciência da modificação que as normas experimentam, continuamente, ao serem aplicadas às mais diversas relações de vida, chegando a se apresentar, no sistema jurídico, omissões concernentes a uma nova exigência vital. Essa omissão de desenvolver o direito compete aos aplicadores sempre que se apresentar uma lacuna, pois devem integrá-la, criando uma norma individual, dentro dos limites estabelecidos pelo direito (LICC, arts. 4º e 5º). As decisões dos juízes devem estar em consonância com o conteúdo da consciência jurídica geral, com o espírito do ordenamento, que é mais rico do que a disposição normativa, por conter critérios jurídicos e éticos, idéias jurídicas concretas ou fáticas que não encontram expressão na norma de direito” (grifei). Raciocínio diverso levaria à errônea conclusão de que “tudo o que não é proibido está permitido”, ao argumento inverídico de que o sistema jurídico seria uno, completo, independente e sem lacunas. O direito é uma realidade dinâmica, em contínuo movimento, acompanhando as relações humanas, modificando-as, adaptando-as às novas exigências e necessidades da vida, inserindo-se na história, brotando do contexto cultural. De fato, a evolução da vida social traz novos fatos e conflitos, de modo que os legisladores passam a elaborar novas leis e os juízes estabelecem novos precedentes, na medida em que os próprios valores sofrem mutações, devido ao grande e peculiar dinamismo da vida. Tais afirmações nos levam a crer que o sistema jurídico é composto de vários subsistemas, o que também é assinalado na tridimensionalidade jurídica apontada por Miguel Reale, na qual encontramos a noção de que o sistema do direito se compõe de um subsistema de normas, de um subsistema de valores e de um subsistema de fatos, interdependentes entre si. Destarte, quando houver uma incongruência ou alteração entre eles, temos a lacuna. Logo, o sistema normativo é aberto, mantendo relação de importação e exportação de informações com outros sistemas (fáticos, axiológicos etc.), sendo ele próprio parte de um subsistema jurídico. Tanto é assim, que o legislador, reconhecendo a impossibilidade lógica de regulamentar todas as condutas, prescreve normas como a prevista no artigo 126, do Código de Processo Civil, com o escopo de estabelecer a “plenitude do ordenamento”. E essa proibição de denegação da justiça pelo juiz pretende tãosomente estabelecer a completude da ordem jurídica. Obviamente o juiz, ao aplicar, a um caso não previsto, a analogia, o costume e os princípios gerais de direito, não fechará a lacuna através de uma construção judicial, pois ao fazê-la jamais substitui o legislador. Assim, compreende-se que a integração de uma lacuna não se situa no plano legislativo, tampouco implica delegação legislativa ao juiz, isto porque ela não cria novas normas jurídicas gerais, mas individuais, aplicáveis àquela decisão específica, que só poderão ascender à categoria de normas jurídicas gerais tão33 [33] Maria Helena Diniz, Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro Interpretada, 12ª edição, São Paulo, Saraiva, 2007, p. 97. somente em virtude de um subseqüente processo de recepção e absorção dessas normas por uma lei ou jurisprudência, uma vez que as súmulas dos tribunais são tidas, por alguns, como normas gerais. Por isso mesmo se diz que a sentença, a decisão judicial, é a “lei do caso concreto”. Ademais, o órgão judicante poderá valer-se, excepcionalmente, das regras ou máximas de experiências, cujo papel integrativo está explicitamente reconhecido no artigo 335, do Código de Processo Civil, o qual determina que 'o juiz, em falta de normas jurídicas particulares, aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras de experiência técnica, ressalvado, quanto a esta, o exame pericial. Obviamente, as máximas de experiência possuem caráter supletivo, não podendo ser invocadas se houver preceito legal disciplinando a matéria, nem ser criadas arbitrariamente pelo magistrado, pois se exige como seu requisito necessário a observação do que comumente acontece. Ao elaborá-las o juiz age indutivamente, na medida em que, partindo de sua experiência pessoal, procede à observação de fatos particulares, dando-lhes uma significação, extraindo uma regra, de conformidade com aquilo que de mais comum sucede. São, portanto, juízos de valores que, apesar de individuais, têm autoridade, por trazerem em seu bojo a idéia do consenso geral ou da cultura de certo grupo social. O órgão judicante pode aplicá-las ao interpretar uma lei, ao avaliar provas, ao verificar as alegações das partes e ao exercer sua função integrativa ao aplicar a analogia, o costume e os princípios gerais de direito. Partindo de tais considerações e do reconhecimento de que o legislador não pode conhecer e prever todos os fatos, conflitos e comportamentos que são capazes de surgir nas relações sociais, bem como do entendimento de que, dentro de uma visão dinâmica do direito, é impossível pretender que no ordenamento existam normas regulando e prescrevendo as relações jurídicas presentes e todas as que o progresso traz e ainda trará, como no presente processo, entendo que lacunas existem, devendo essa realidade ser enfrentada pelo magistrado, no caso em concreto, conforme os elementos que o próprio ordenamento jurídico coloca a sua disposição diante de tais situações. Ademais, caso não se admitisse o caráter lacunoso do direito, sob o prisma dinâmico, o Poder Legislativo, em um dado momento, não mais teria qualquer função, porque todas as condutas já estariam prescritas, em virtude do princípio de que “tudo o que não está proibido está permitido”. Feito essa raciocínio, passo ao exame dos meios supletivos das lacunas, previstos na legislação pertinente. Assim, para integrar a lacuna, o juiz recorre, preliminarmente, à analogia, que consiste na aplicação, a um caso não contemplado de modo direto ou específico por uma norma jurídica, de uma norma prevista para uma hipótese distinta, mas semelhante ao caso não contemplado. Com efeito, a analogia é um procedimento quase lógico, envolvendo duas fases: a constatação (empírica), por comparação, de que há uma semelhança entre fatos-tipos diferentes e um juízo de valor que mostra a relevância das semelhanças sobre as diferenças, tendo em vista uma decisão jurídica procurada34[34]. Ela seria um procedimento argumentativo, sob o prisma da lógica retórica, que teria por objetivo transferir valores de uma estrutura para outra, possuindo um caráter inventivo na medida em que possibilita ampliar a estrutura de uma situação qualquer, incorporando-lhe uma situação nova. O fundamento da analogia, portanto, repousa na igualdade jurídica, já que o processo analógico constitui um raciocínio baseado em razões relevantes de 34 [34] Tércio Sampaio Ferraz Jr., Analogia; aspecto lógico-jurídico: analogia como argumento ou procedimento lógico, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 6, p. 363. similitude, fundando-se na identidade de razão, que é o elemento justificador da aplicabilidade da norma a casos não previstos, mas substancialmente semelhantes, sem contudo ter por objetivo prescrutar o exato significado da norma, partindo tãosomente, do pressuposto de que a questão “sub judice”, apesar de não se enquadrar no dispositivo legal, deve cair sob sua égide por semelhança de razão. Cumpre ressaltar, a analogia requer sempre uma referência às finalidades (valoração dos objetivos e dos motivos) às quais ela se orienta, sendo imprescindível um juízo de valor que conclua quais são os pontos comuns e os diversos, razão pela qual analisarei brevemente os pressupostos que justificam a aplicação da analogia no presente caso. Por fim, cumpre ressaltar, não se está diante de matéria de Direito Penal, o que permite uma maior fluidez no raciocínio que se pretende empreender. O raciocínio por analogia, tal como qualquer outro raciocínio jurídico, conforme leciona Cristiano de Oliveira Cozer35[35], demanda do aplicador a tomada de posições axiológicas, com a elaboração de juízos de valor, sem os quais o raciocínio é estéril. A razão pela qual isso ocorre reside na própria natureza do processo hermenêutico: “Referimos acima, a propósito da identificação da lacuna, que o raciocínio jurídico desenvolve-se num processo de compreensão. Nesse processo, a proposição inicialmente elaborada pelo aplicador sobre a situação de fato, a partir de sua pré-compreensão, é progressivamente esclarecida pela proposição construída pelo aplicador sobre o ordenamento jurídico para a resolução do caso e vive-versa: a compreensão do intérprete a respeito do ordenamento jurídico, expressa na proposição normativa por ele elaborada, é progressivamente esclarecida pela proposição sobre a situação de fato. Simultaneamente, a proposição normativa é construída num processo gradual em que, partindo da pré-compreensão do aplicador, a norma esclarece o sentido do ordenamento e este esclarece o sentido de suas normas, num movimento circular, até a elaboração da proposição que descreve a norma para a disciplina do caso. Todo esse processo apenas é possível em virtude de inúmeras valorações por parte do intérprete; a seleção e avaliação das notas características da situação de fato, a compreensão do ordenamento (não apenas a norma singular, mas também o contexto da regulação e os valores tutelados), a elaboração da norma do caso, todos esses passos dependem de uma contínua avaliação e ponderação de argumentos por parte do aplicador”. Certamente, e isso é o que se procurará fazer aqui, apesar de todo o espaço para a “criação” da norma, a integração da lacuna não deverá ser realizada com base em um juízo pessoal e não fundamentado ou fundado em escolhas subjetivas e não controláveis. Muito antes pelo contrário, o que ora se passará a desenvolver é argumentação que dará ensejo à analogia passível de controle racional, para que ao fim se possa verificar a adequação da solução adotada com o ordenamento jurídico. Portanto, constatada a lacuna, ou a ausência da norma, em um caso como o presente, em que seria necessária a existência de uma norma, para resolver a situação de modo adequado, o magistrado, ao utilizar o raciocínio analógico, utiliza-se da semelhança relevante existente entre a situação não regulada (para a qual se busca uma solução) e uma situação regulada (pelo aplicador selecionada dentro do ordenamento jurídico), construindo a norma do caso em conformidade com as diretrizes fornecidas pelo próprio ordenamento jurídico. Inicia-se, portanto, o raciocínio pelo princípio. 35 [35] COZER, Cristiano de Oliveira Lopes. Analogia. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 13, n. 51, p. 261277, abr./jun. 2005. A divisão enciclopédica dos ramos do Direito, de relevante valor, principalmente didático, nos informa que, sem sombra de dúvidas, o Direito Administrativo, o Direito Processual, o Direito Penal, o Direito Constitucional etc. fazem parte do que se convencionou chamar Direito Público. O Direito Civil e o Direito Comercial, por sua vez, sem sombra de dúvidas, por regularem relações eminentemente privadas, classificam-se como subespécies do chamado Direito Privado. Pode surgir certa dificuldade, teórica e acadêmica, em classificar, numa ou noutra espécie, direitos como o Direito do Trabalho e o Direito do Consumidor. E onde, então, entraria o sujeito de pesquisa ou a realização de pesquisas em seres humanos? Este, a partir de agora, é o exame minucioso a ser feito, constatandose quais são os elementos informadores da relação jurídica entabulada entre os laboratórios denunciados e a criança doente, o autor, Kauã, utilizada como sujeito de pesquisa, devendo-se observar, também, que obrigações pré e pós contratuais existem para ambas as partes envolvidas. A igualdade, como foi visto, é princípio constitucional, que deve ser assegurado nas relações entre os diferentes sujeitos componentes da sociedade, artigo 5º, “caput”, da Constituição Federal. O Direito Civil, é cediço, em atenção à disposição constitucional da igualdade, visa a regulamentar as relações de direito privado, mantidas, em tese, por sujeitos iguais, ou seja, que se encontram em condições de razoável paridade, ao menos nas condições que dizem respeito ao negócio jurídico que objetivam efetuar. Por exemplo, em termos simples, na compra e venda de uma casa, ainda que um dos sujeitos seja mais rico do que o outro, tal situação, em princípio, não possui grande relevância, não servindo para caracterizar um desequilíbrio contratual a ponto de exigir a intervenção estatal. Todavia, mesmo este ramo do direito, classicamente conhecido pela tutela jurídica concedida, eminentemente, aos bens e à propriedade, sofreu sensível alteração ao longo dos anos, na doutrina e na jurisprudência pertinentes ao redor do mundo, e a isso não ficou indiferente o legislador brasileiro. Assim, diferentemente do Código Civil de 1916, no qual, segundo leciona Beviláqua, “se não encontram disposições relativas ao direito público, ao direito comercial e ao processo”36[36], cuidando apenas das relações jurídicas entre iguais, na medida de suas igualdades, o Novo Código Civil busca sim observar e dar relevo, nas relações que tutela, a eventuais desigualdades que possam existir entre as partes no plano material. Com efeito, conforme acentua Humberto Theodoro Júnior, o Novo Código Civil é um estatuto comprometido com as tendências sociais do direito de nosso tempo, e, “graças ao mecanismo das 'cláusulas gerais', que se valorizou mais do que as tipificações rígidas das figuras estáticas do direito clássico, foi que se intentou acentuar as linhas mestras da inovação legislativa (...) Toma-se como ponto de partida a idéia de que o direito privado deve ser visto como um 'sistema em construção', onde as cláusulas gerais constituem disposições que utilizam, intencionalmente, uma linguagem de tessitura 'aberta', 'fluida' ou 'vaga', com o propósito de conferir ao juiz um mandato para que, à vista dos casos concretos, possa criar, complementar ou desenvolver normas jurídicas, mediante o reenvio para elementos cuja concretização pode estar fora do sistema. É um estímulo constante à convivência com os princípios e regras constitucionais, que durante a maior parte do século XX permaneceram à margem das indagações dos civilistas e operadores do direito civil (...) O ideal insistentemente perseguido é, sem dúvida, o da 'justiça concreta', como adverte Miguel Reale, não em função de individualidades concebidas 'in abstracto', mas de pessoas consideradas no contexto de suas peculiaridades circunstanciais”37[37]. 36 [36] 37 [37] Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, Vol. I, ob.cit., p. 167-168 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao novo Código civil, volume 3, Não é outro o entendimento de Miguel Reale acerca do novo Código, ao mencionar que 3 são os grandes princípios que fundamentam-no: o da socialidade, o da eticidade e o da operabilidade. O princípio da sociabilidade é voltado para os valores coletivos, acima dos individuais, sem perder, obviamente, “o valor fundante da pessoa humana”38[38]. O princípio da eticidade, por seu turno, impõe a observância de “critérios ético-jurídicos fundados no valor da pessoa humana como fonte do direito”39[39]. Pode-se facilmente perceber, portanto, que, mesmo em um ramo do Direito que visa a tutelar relações privadas entre sujeitos teoricamente iguais – considerada tal igualdade com base nos critérios antes apontados –, no qual se confere grande liberdade à autonomia da vontade, aspectos éticos, envolvendo a dignidade da pessoa humana, estão presente e devem ser necessariamente considerados tanto na formação quanto na execução de negócios jurídicos dos mais diversos teores. Exemplo disso é aquilo que Judith Martins-Costa40[40] menciona como 'ética da situação', reforçando a idéia antes referida da utilização de expressões dotadas de vagueza, ou seja, de cláusulas gerais: “Por isso o apelo, tantas vezes feito na nova Lei Civil (...) a conceitos flexíveis ou 'fórmulas ordenadoras', ou expressões dotadas de vagueza socialmente típica (algumas delas constituindo mesmo cláusulas gerais) que levam à concretude, tais como: 'conforme as circunstâncias exigirem (artigo 690); conforme as circunstâncias (do caso) ou conforme os usos (artigos 24, 138, 151, parágrafo único, etc.); uso a que se destina ou fim a que se destina (artigos 566, inciso I, e 567); usos convencionados ou presumidos (artigo 569, I); uso regular (569, inciso II); (...) segundo a boa-fé, ou conforme os ditames da boa-fé (artigos 113, 128, 187, 422); (...) natureza da coisa (artigo 569, inciso I) ou natureza da atividade (artigo 927, parágrafo único); costume do lugar (artigo 569, inciso II); bons costumes (arts. 122, 187; 1336, inciso IV); diligência normal ou habitual (arts. 138, 712, 866), ou diligência exigida pela natureza da situação ou da coisa (art. 1362, inciso I); (...) obrigação excessivamente onerosa (ou onerosidade excessiva, ou excessiva desproporção – art. 944, parágrafo único); premente necessidade (art. 157) ou necessidade manifesta (art. 937); prestação manifestamente proporcional (arts. 157, 317); (...) fim econômico ou fim social do direito (arts. 187, 1228, parágrafo 1º); exercício regular de um direito reconhecido; motivos imprevisíveis; motivo grave; motivo razoável; pagamento reiteradamente feito em outro local; caso fortuito ou força maior; prestação inútil ao credor; fato ou omissão imputável; o que razoavelmente deixou de lucrar; eqüitativamente; parte inocente; liberdade de contratar; função social do contrato (arts. 421 e 2035, parágrafo único); probidade; natureza do negócio; tempo suficiente; imprópria ao uso a que é destinada; risco; razoavelmente; razoabilidade (...) extrema vantagem para outra parte (art. 478). São essas expressões, vazadas em tessitura semanticamente aberta, que permitirão ao aplicador do Direito descer do plano das abstrações ao terreno rico e multiforme do concreto”. De interesse para o caso “sub judice” são ainda, como mais adiante se verá, os dispositivos previstos nos artigos 11 e seguintes do Código Civil, que dizem respeito aos chamados direitos da personalidade, que são aqueles “direitos decorrentes da personalidade, que vêm do nascimento, sendo intransmissíveis, irrenunciáveis, imprescritíveis e inegociáveis. São essenciais a plena existência da pessoa humana, à sua dignidade, ao respeito, à posição nas relações com o Estado e com os bens, à finalidade última que move todas as instituições, eis que tudo deve t. 1: livro III – dos fatos jurídicos: do negócio jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2003, pp. XI-XII. 38 [38] REALE, Miguel. O projeto do novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 1999, pp. 7-12. 39 [39] FILHO, Milton Paulo de Carvalho. Indenização por eqüidade no novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2003, nº 3.2.1.2, p. 54. 40 [40] MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil, volume V, tomo I: do direito das obrigações, do adimplemento e da extinção das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 10-13. ter como meta maior o ser humano (...) Dizem respeito à vida, à liberdade física e intelectual, à saúde, à honra, ao respeito, ao nome, à própria imagem”, conforme atesta Arnaldo Rizzardo41[41]. Vão-se assim delineando com cuidado todos os fatores envolvidos no caso em exame. Diferentemente do Direito Civil, a relação jurídica entabulada entre os laboratórios denunciados e a criança sujeito de pesquisa, autor, Kauã, nem de longe, é relação entre iguais. Muito antes pelo contrário, há evidentes desigualdades de conhecimento técnico, de status econômico, de condições de saúde, dentre outras, que colocam as partes da relação em situação extremamente desigual. Qual a forma para se alcançar igualdade material em tal situação, garantindo-se assim a igualdade constitucionalmente assegurada? Uma vez mais é valiosa a lição de Rui Barbosa, segundo o qual “A regra da desigualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real”. Em outros ramos do direito, certamente mais explorados, quando se verifica uma flagrante desigualdade material entre as partes, o Estado intervêm, tutelando a relação jurídica de modo a, se não igualá-la completamente, colocá-la em patamar de melhor igualdade entre os sujeitos. Assim, por exemplo, o Direito do Trabalho. Assim, também, o Direito do Consumidor. Aqui, portanto, mais relevante do que classificar o Direito do Trabalho, ou mesmo o Direito do Consumidor, em Direito Público ou Privado, é constatar as semelhanças de tais direitos, principalmente do Direito do Consumidor – que, dentro do sistema jurídico brasileiro, é o que mais se assemelha com a situação posta “sub judice” –, com o Biodireito, no que tange à posição vulnerável e hipossuficiente ocupada pelo sujeito de pesquisa, principalmente criança, na relação com os laboratórios multinacionais. De inegável relevância, portanto, ao raciocínio analógico e hermenêutico que ora se desenvolve, é a semelhança das premissas existentes na relação jurídica entre consumidores e fornecedores e entre sujeitos de pesquisa e pesquisadores (laboratórios, patrocinadores, etc.). Com efeito, como na definição da legitimidade passiva se afirmou, a aplicação do artigo 28, do Código de Defesa do Consumidor, ao caso, é plenamente viável e recomendável, para responsabilizar quem de direito pela pesquisa levada a efeito no Hospital de Clínicas da cidade de Porto Alegre. Todavia, a leitura atenta do CDC leva à conclusão inafastável de que, não apenas o artigo 28, mas o próprio “espírito” da lei consumerista serve como norte para a compreensão do “negócio” jurídico que uniu laboratório e sujeito de pesquisa. Ao mencionar o princípio da igualdade, destacando a sua aplicação ao direito do consumidor, em raciocínio tranqüilamente aplicável ao Biodireito, os autores Cláudio Bonatto e Paulo Valério Dal Pai Moraes, na obra Questões Controvertidas no Código de Defesa do Cunsumidor, editora Livraria do Advogado, 41 [41] RIZZARDO, Arnaldo. Parte Geral do Código Civil: Lei nº 10.406, de 10.01.2002. 3ªed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 151. 2003, páginas 30/31, afirmam que o Código de Defesa do Consumidor veio para confirmar, de maneira concreta, o princípio da igualdade, porquanto surgiu para cumprir o objetivo maior de igualar os naturalmente desiguais, jamais podendo acontecer o inverso, isto é, desigualar os iguais. Os autores assinalam que a situação de desequilíbrio é prejudicial para o convívio harmônico como um todo, pois fere o fundamento maior da dignidade da pessoa humana, motivo pelo qual surgiu o CDC, como forma de igualar integrantes da relação de consumo, munindo o consumidor de arma eficaz para a obtenção de respeito e, conseqüentemente, de força de impor sua vontade. Na página 91 desta obra, importante transcrever: “Veja-se que o espírito teleológico do CDC é igualar os desiguais, motivo pelo qual é tentado pela Lei Protetiva igualar o consumidor ao fornecedor profissional, pois eles, na relação de direito material, são naturalmente desiguais, exatamente por causa do elemento profissionalidade, que contém as idéias de prevalência de conhecimentos técnicos, costume em realizar determinada atividade, reiteração, organização tendente à obtenção de um resultado finalístico lucrativo, etc.” (grifei). Fundamental tecer essas comparações entre o Direito do Consumidor e o chamado Biodireito, porque ambos guardam semelhanças relevantes, como antes foi dito. Ademais, em termos de legislação nacional, o Direito do Consumidor está muito à frente do Biodireito, servindo assim, na ausência de maior pluralidade de normas mais específicas, de auxílio para melhor interpretar a relação jurídica que se estabelece entre laboratório, médico pesquisador e ser humano pesquisado. O ponto fundamental que vem à luz ao se traçar esse paralelo é o fato de que a relação jurídica que se estabelece entre o pesquisador e o ser humano objeto da pesquisa é extremamente desigual. De um lado, o pesquisador, com uma supremacia econômica evidente, isso sem se falar na supremacia de conhecimentos científicos e da profissionalidade com que realiza a pesquisa, sem dúvida necessárias a sua atividade. De outro lado, o pesquisado, no presente caso criança com doença que se dispõe a participar de pesquisa na esperança de que se descubra a droga que venha salvar-lhe a vida, ou ao menos diminuir-lhe o sofrimento. Aqui, novamente, faz-se necessário buscar elementos de outros ramos do direito que auxiliem na elucidação do caso. Há, no direito do consumidor, o conhecido princípio da vulnerabilidade, também presente no Biodireito, e, de acordo com a obra consumerista acima mencionada, páginas 44/47: “Fica muito fácil, então, concluir que o indivíduo, a pessoa, o vulnerável-consumidor, não tem como ser equiparado aos fornecedores de produtos e serviços também por este aspecto, pois estes detêm os conhecimentos técnicos e profissionais específicos atinentes às suas atividades, o que induz à óbvia aceitação de que o consumidor deve ser protegido. Um terceiro enfoque seria relativo ao plano jurídico, já que, não bastasse todo o aparato apresentado, os agentes econômicos se valem dos chamados contratos estandarizados, os contratos de massa, os quais primam pela complexidade, pela tecnicidade, pela falta de esclarecimentos suficientes e de transparência, tudo isto com o intuito de dificultar a manifestação de vontade livre e consciente do consumidor. Nesta última abordagem, ainda sofre o consumidor quando pretende fazer valer seus poucos direitos advindos do contrato, haja vista que os fornecedores obviamente também possuem organismos jurídicos preparados para os confrontos judiciais e extrajudiciais, mais uma vez não existindo como comparar a posição fática entre os dois pólos da relação de consumo”. Portanto a vulnerabilidade se dá no plano do direito material, é um conceito de direito material, e, de acordo com Bonatto e Moraes, a vulnerabilidade do consumidor é incindível do contexto das relações de consumo e independe de seu grau cultural ou econômico, não admitindo prova em contrário, por não se tratar de mera presunção legal. É, a vulnerabilidade, qualidade intrínseca, ingênita, peculiar, imanente e indissociável de todos que se colocam na posição de consumidor, em face do conceito legal, pouco importando sua condição social, cultural ou econômica, quer se trate de consumidor-pessoa jurídica ou consumidor pessoa-física. Se o consumidor é vulnerável, o que se dizer do ser humano pesquisado, doente, que oferece seu corpo como laboratório vivo, como campo de pesquisas humano, tanto para o bem como para o mal? Se o fornecedor detém os conhecimentos técnicos, o que dizer do pesquisador, que traz por detrás de si laboratórios bilionários a financiar-lhe o estudo, laboratórios estes que auferirão vultosos lucros da venda da futura droga, agora aprovada e registrada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), graças, em grande parte, ao corajoso voluntário que se submeteu à pesquisa? A envolver a relação jurídica estabelecida entre o laboratório e Kauã há ainda documento legal essencial a ser considerado, que visa a resguardar os interesses de crianças e adolescentes em todas as suas interações com os demais atores sociais: o Estatuto da Criança e do Adolescente. Cuida-se, sem dúvida, a situação ora em comento, de relação entre desiguais, envolvendo a dignidade da pessoa humana e os direitos inerentes a sua personalidade, recebendo a tutela, portanto, da Constituição Federal, do Código Civil – este auxiliando na interpretação, com suas cláusulas de tessitura aberta –, do Código de Defesa do Consumidor e do Estatuto da Criança e do Adolescente, com relação ao qual a interpretação deverá levar “em conta os fins sociais a que ele (ECA) se destina, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento” (art. 6º, ECA). O ponto de partida para se analisar a relação jurídica entabulada é o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), firmado entre laboratórios denunciados patrocinadores do experimento e o sujeito de pesquisa, autor da demanda, Kauã. Em informação vinda aos autos, prestada pelo médico Roberto Giugliani, fl. 130, o referido profissional afirmou que, no estudo clínico aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, havia sim a previsão de responsabilidade do laboratório quanto à manutenção do restante do tratamento dos pacientes inclusos no estudo, após a concretização deste, nos seguintes termos: “após estas 26 semanas, será oferecida a continuação do tratamento com Aldurazyme aos pacientes que concluírem o estudo e que não faltarem a mais de três infusões consecutivas (se estiverem recebendo infusões semanais) ou a duas infusões consecutivas (se estiverem recebendo infusões a cada duas semanas)” (grifei). Embora, no mesmo documento, o médico tenha afirmado que a continuidade do tratamento se deu por meio da inclusão do autor, Kauã, após o estudo, no ICAP, esqueceu de afirmar que, fosse pelo ICAP fosse por outro meio, o acordado entre as partes deveria ser cumprido, sem previsão de término, não podendo vigorar nem fazer parte da avença os termos em que o ICAP estava colocado e era oferecido ao paciente, quais sejam, em caráter precário e temporário. A continuação do fornecimento da medicação, mesmo após o término da pesquisa, conforme acima demonstrado, também foi afirmada, nos mesmos termos adrede referidos, pelo mesmo profissional médico, em documento que veio aos autos a fls. 675/679, que diz respeito a outra criança, que, assim como o autor, Kauã, participou como sujeito de pesquisa no mesmo estudo levado a efeito pelos laboratórios denunciados. O chamado Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), firmado entre os laboratórios e o sujeito de pesquisa veio aos autos a fls. 333/348, o que é confirmado pelos documentos à fl. 349, sob o título de “Um Estudo para Otimização de Dose, Randomizado, Multicêntrico e Multinacional sobre a Segurança e Resposta Farmacodinâmica de Aldurazyme® (laronidase) envolvendo Pacientes com Mucopolissacaridose I”. Pelo próprio título do TCLE, percebe-se que se trata de pesquisa, sim, com medicamento experimental. Com efeito, ainda que o fármaco estivesse aprovado em outros países, o Brasil foi escolhido para a realização de estudos complementares acerca da eficácia do LARONIDASE, buscando-se, por meio da pesquisa levada a efeito, a otimização da dose, ou seja, a aplicação de doses concentradas do medicamento, evitando-se que o paciente tivesse de se dirigir seguidamente ao hospital para aplicação da droga. Assim, resta afastada qualquer alegação de que a medicação não fosse experimental, justamente pelo fato de que, aqui, ocorreu estudo para a descoberta definitiva de sua eficácia, até então desconhecida nas doses aplicadas nos sujeitos de pesquisa crianças brasileiras. Aliás, não é outro o entendimento da Resolução CNS 251/97, que estabelece o conceito de pesquisa, deixando claro que a pesquisa realizada com o autor, Kauã, e outras crianças é tão pesquisa quanto àquelas de fase 1, 2 ou 3, devendo, conseqüentemente, “seguir as mesmas normas éticas e científicas aplicadas às pesquisas de fases anteriores”: “II - TERMOS E DEFINIÇÕES II.1 - Pesquisas com novos fármacos, medicamentos, vacinas ou testes diagnósticos - Refere-se às pesquisas com estes tipos de produtos em fase I, II ou III, ou não registrados no país, ainda que fase IV quando a pesquisa for referente ao seu uso com modalidades, indicações, doses ou vias de administração diferentes daquelas estabelecidas quando da autorização do registro, incluindo seu emprego em combinações, bem como os estudos de biodisponibilidade e ou bioequivalência. (...) a - Fase I É o primeiro estudo em seres humanos em pequenos grupos de pessoas voluntárias, em geral sadias de um novo princípio ativo, ou nova formulação pesquisado geralmente em pessoas voluntárias. Estas pesquisas se propõem estabelecer uma evolução preliminar da segurança e do perfil farmacocinético e quando possível, um perfil farmacodinâmico. b - Fase II (Estudo Terapêutico Piloto) Os objetivos do Estudo Terapêutico Piloto visam demonstrar a atividade e estabelecer a segurança a curto prazo do princípio ativo, em pacientes afetados por uma determinada enfermidade ou condição patológica. As pesquisas realizam-se em um número limitado (pequeno) de pessoas e frequentemente são seguidas de um estudo de administração. Deve ser possível, também, estabelecer-se as relações dose-resposta, com o objetivo de obter sólidos antecedentes para a descrição de estudos terapêuticos ampliados (Fase III). c - Fase III Estudo Terapêutico Ampliado São estudos realizados em grandes e variados grupos de pacientes, com o objetivo de determinar: o resultado do risco/benefício a curto e longo prazos das formulações do princípio ativo. de maneira global (geral) o valor terapêutico relativo. Exploram-se nesta fase o tipo e perfil das reações adversas mais frequentes, assim como características especiais do medicamento e/ou especialidade medicinal, por exemplo: interações clinicamente relevantes, principais fatores modificatórios do efeito tais como idade etc. d - Fase IV São pesquisas realizadas depois de comercializado o produto e/ou especialidade medicinal. Estas pesquisas são executadas com base nas características com que foi autorizado o medicamento e/ou especialidade medicinal. Geralmente são estudos de vigilância pós-comercialização, para estabelecer o valor terapêutico, o surgimento de novas reações adversas e/ou confirmação da freqüência de surgimento das já conhecidas, e as estratégias de tratamento. Nas pesquisas de fase IV devem-se seguir as mesmas normas éticas e científicas aplicadas às pesquisas de fases anteriores. Depois que um medicamento e/ou especialidade medicinal tenha sido comercializado, as pesquisas clínicas desenvolvidas para explorar novas indicações, novos métodos de administração ou novas combinações (associações) etc. são consideradas como pesquisa de novo medicamento e/ou especialidade medicinal” (grifei). Nesse sentido, ainda, a Resolução 196/96, CNS: “III.2- Todo procedimento de qualquer natureza envolvendo o ser humano, cuja aceitação não esteja ainda consagrada na literatura científica, será considerado como pesquisa e, portanto, deverá obedecer às diretrizes da presente Resolução. Os procedimentos referidos incluem entre outros, os de natureza instrumental, ambiental, nutricional, educacional, sociológica, econômica, física, psíquica ou biológica, sejam eles farmacológicos, clínicos ou cirúrgicos e de finalidade preventiva, diagnóstica ou terapêutica” (grifei). Como logo adiante se verá, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, firmado entre os laboratórios denunciados e o sujeito de pesquisa, é contrato atípico, por envolver o direito à saúde, permitido, portanto, pela legislação brasileira, artigo 425, do Código Civil, apresentando nítida característica adesiva. A primeira cláusula do TCLE assim refere: “Estudos de pesquisa são projetados para a obtenção de conhecimento que possa ajudar outras pessoas no futuro. Você /Seu filho (filha) pode ou não receber algum benefício direto por participar” (grifei). Esta cláusula é nula de pleno direito, por contrariar frontalmente o Estatuto da Criança e do Adolescente, artigos 3º, 4º, 5º e 6º, 15, 16, 17 e 18; a Resolução CNS 196/96, item III.1, alíneas “a”, “b” e “d”, item III.3, alíneas “l”, “m”, “n” e “p”; a Resolução CNS 251/97, item III.1, IV.1, alínea “m”; o Código de Defesa do Consumidor, artigos 47 e 51, inciso IV, parágrafo 1º, incisos I a III, e parágrafo 2º; o Código Civil Brasileiro, artigos 11, 12, 13, 112, 113, 184, 186, 187, 421, 422, 423 e 424 ; e a Constituição Federal, artigos 1º, inciso III, 4º, inciso II, e 227, “caput”. Com efeito, a Resolução CNS 196/96, como acima foi afirmado, estabelece padrões a serem seguidos pelo TCLE: “IV - CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO O respeito devido à dignidade humana exige que toda pesquisa se processe após consentimento livre e esclarecido dos sujeitos, indivíduos ou grupos que por si e/ou por seus representantes legais manifestem a sua anuência à participação na pesquisa. IV.1 - Exige-se que o esclarecimento dos sujeitos se faça em linguagem acessível e que inclua necessariamente os seguintes aspectos: a) a justificativa, os objetivos e os procedimentos que serão utilizados na pesquisa; b) os desconfortos e riscos possíveis e os benefícios esperados; c) os métodos alternativos existentes; d) a forma de acompanhamento e assistência, assim como seus responsáveis; e) a garantia de esclarecimentos, antes e durante o curso da pesquisa, sobre a metodologia, informando a possibilidade de inclusão em grupo controle ou placebo; f) a liberdade do sujeito se recusar a participar ou retirar seu consentimento, em qualquer fase da pesquisa, sem penalização alguma e sem prejuízo ao seu cuidado; g) a garantia do sigilo que assegure a privacidade dos sujeitos quanto aos dados confidenciais envolvidos na pesquisa; h) as formas de ressarcimento das despesas decorrentes da participação na pesquisa; e i) as formas de indenização diante de eventuais danos decorrentes da pesquisa. IV.2 - O termo de consentimento livre e esclarecido obedecerá aos seguintes requisitos: a) ser elaborado pelo pesquisador responsável, expressando o cumprimento de cada uma das exigências acima; b) ser aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa que referenda a investigação; c) ser assinado ou identificado por impressão dactiloscópica, por todos e cada um dos sujeitos da pesquisa ou por seus representantes legais; e d) ser elaborado em duas vias, sendo uma retida pelo sujeito da pesquisa ou por seu representante legal e uma arquivada pelo pesquisador”. Assim, em primeiro lugar, é preciso que o envolvido, sujeito de pesquisa e/ou seu representante legal, manifeste sua anuência à participação na pesquisa, após uma explicação clara, acessível e pormenorizada sobre os procedimentos a serem utilizados na pesquisa, os possíveis riscos, os benefícios esperados, os métodos alternativos existentes, a forma de acompanhamento e assistência, o ressarcimento das despesas decorrentes da participação na pesquisa, a indenização a que fará jus diante dos eventuais danos, a garantia do sigilo que assegure a sua privacidade quanto aos dados confidenciais e a liberdade de recusarse a participar ou de retirar seu consenso, em qualquer fase da experiência, sem penalização alguma e prejuízo ao seu tratamento. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, ademais, deverá conter, nos termos da Resolução em comento, os seguintes requisitos: ser elaborado pelo pesquisador responsável, expressando o cumprimento das exigências acima indicadas; ser aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa que referenda a investigação; ser assinado e identificado por impressão dactiloscópica por todos e cada um dos sujeitos da pesquisa ou por seu representante legal, em 2 vias, ficando uma com o pesquisado e outra arquivada pelo pesquisador. Dessa forma, protegem-se os grupos vulneráveis, que não devem ser sujeitos de pesquisa, a não ser que a investigação lhes possa trazer benefícios diretos. A primeira cláusula do TCLE, acima transcrita, de nenhuma forma é clara, acessível e pormenorizada. Muito antes pelo contrário: é vaga, imprecisa, não suficientemente esclarecida, nula de pleno direito, portanto, pois não pode dizer que talvez o sujeito de pesquisa obtenha benefícios diretos ou talvez não. Esta é cláusula que deve ser, de plano, afastada pelo sistema legal. O Código Civil, a respeito, é bastante claro, afirmando no artigo 423, que, quando houver, no contrato de adesão, cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente. Ademais, segundo o referido diploma legal, artigo 424, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio: “Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente. Art. 424. Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio”. O conceito de “contrato de adesão” está expresso na legislação brasileira, mais precisamente no Código de Defesa do Consumidor, estabelecendo que os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, de modo a facilitar sua compreensão pelo aderente. Ademais, as cláusulas que implicarem limitação de direito do aderente deverão ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão: “Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo. § 1° A inserção de cláusula no formulário não desfigura a natureza de adesão do contrato. § 2° Nos contratos de adesão admite-se cláusula resolutória, desde que a alternativa, cabendo a escolha ao consumidor, ressalvando-se o disposto no § 2° do artigo anterior. § 3° Os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor. § 3o Os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, cujo tamanho da fonte não será inferior ao corpo doze, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor. (Redação dada pela nº 11.785, de 21008) § 4° As cláusulas que implicarem limitação de direito do consumidor deverão ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão. § 5° (Vetado)” (grifei) Nula, portanto, a primeira cláusula do TCLE, fl. 333. A primeira cláusula à fl. 335, expressa no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, também deve ser analisada com cuidado, porquanto decisiva também para o julgamento do feito. Ela foi assim redigida: “A sua participação/participação do seu filho (filha) neste estudo irá durar aproximadamente 31 semanas. Você / seu filho (filha) passará por uma visita de avaliação pré-estudo. Pode levar até um mês para que os resultados desta visita sejam processados. Você / seu filho (filha) passará então por um período de tratamento de 26 semanas. Após estas 26 semanas, será oferecida a continuação do tratamento com Aldurazyme® aos pacientes que concluírem o estudo e que não faltarem a mais de três infusões consecutivas (se estiverem recebendo infusões semanais) ou duas infusões consecutivas (se estiverem recebendo infusões a cada duas semanas)” (grifei). Esta cláusula, que não foi inventada pelo Estado do Rio Grande do Sul, compõe o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que foi aprovado pelas Comissões de Ética pertinentes, sendo bastante clara e devendo ser cumprida. Com efeito, a leitura do dispositivo leva à conclusão inarredável de que a “joint venture”, formada pelos laboratórios denunciados, comprometeu-se com a manutenção do tratamento, após o término da pesquisa, aos pacientes que concluíram o estudo, desimportando em que modalidade isso se daria: se por inclusão no que o laboratório chama de ICAP, seja de outra forma, isto não interessa; o que interessa é que a manutenção deveria, deve e deverá ser assegurada, enquanto o tratamento se fizer necessário. Qualquer dúvida na interpretação dessa cláusula, o que é difícil de ocorrer, na medida em que é cristalina, deve ser resolvida com base, além das legislações antes referidas, no artigo 423, do Código Civil, ou seja, em favor do sujeito de pesquisa, Kauã, no caso. As demais cláusulas do TCLE dizem respeito mais aos riscos que o sujeito de pesquisas poderá enfrentar durante o experimento – típicas em contratos dessa natureza, com característica adesiva –, embora haja cláusulas, ainda, que abordem, de maneira um tanto genérica, a responsabilidade do pesquisador e do patrocinador diante de danos sofridos pelo paciente, fl. 346, ou mesmo no caso de surgirem dúvidas nos representantes legais do sujeito de pesquisa criança acerca dos direitos do paciente envolvido no experimento, fls. 347/348. Conforme dito acima, a natureza adesiva do TCLE, firmado entre laboratório e sujeito de pesquisa, é evidente. O conceito de contrato de adesão trazido pelo CDC, possui origem na parte geral do BGB (“Bürgerliches Gesetzbuch”) alemão, em denominação dada por Saleilles42[42], trazendo em seu bojo tanto as estipulações unilaterais do Poder Público (“aprovadas pela autoridade competente”, art. 54, “caput”, CDC) como as cláusulas redigidas prévia e unilateralmente por uma das partes. Cumpre ressaltar que em oposição ao contrato de adesão, segundo Nery Júnior, está o “contrato de comum acordo”, ou seja, aquele concluído mediante negociação das partes, cláusula a cláusula: “O contrato de adesão não encerra novo tipo contratual ou categoria autônoma de contrato, mas somente técnica de formação de contrato, que pode ser aplicada a qualquer categoria ou tipo contratual, sempre que seja buscada a rapidez na conclusão do negócio, exigência das economias de escala”. Em contrato como o entabulado, entre os laboratórios denunciados e o sujeito de pesquisa, o autor, Kauã, cumpre ressaltar, há a obrigação de que o patrocinador da pesquisa, o pesquisador responsável, enfim, coloque em relevo, em destaque, todas as cláusulas que forem desvantajosas ao sujeito de pesquisa, o que inocorreu na espécie. Com efeito, toda estipulação que implicar desvantagem ao aderente, deverá vir singularmente exposta, do ponto de vista físico, no contrato de adesão, em nome da boa-fé que deve presidir as relações jurídicas de uma maneira geral, principalmente em matéria de pesquisas envolvendo seres humanos (a propósito, artigo 46, CDC). Ademais, no TCLE, está redigido que todos aqueles sujeitos de pesquisa que participarem das 26 semanas de pesquisa terão direito ao fornecimento do medicamento, e foi com base nessa estrutura de equilíbrio da relação que então se entabulava é que o TCLE foi aprovado pelos órgãos competentes para tanto, devendo, portanto, o contrato agora ser observado pelos laboratórios denunciados, que incorrem em má-fé pela procrastinação na assunção de seu evidente dever contratual, legal e moral (fl. 335): “Após estas 26 semanas, será oferecida a continuação do tratamento com Aldurazyme® aos pacientes que concluírem o estudo e que 42 [42] Código de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto, 9ª edição, editora Forense Universitária, 2007. Excerto comentado por Nelson Nery Júnior, p. 633. não faltarem a mais de três infusões consecutivas” (grifei). Se houvesse cláusula restritiva do direito de continuar a receber o medicamento pesquisado, por parte do sujeito de pesquisa (o que se admite apenas como força de argumentação, haja vista que tal cláusula, além de não existir no TCLE, como dito, seria nula de pleno direito, em razão de sua elevada abusividade, encaixando-se perfeitamente no rol exemplificativo do artigo 51, do CDC), esta deveria vir claramente prevista, em destaque, o que não houve. Com efeito, não destacar as cláusulas limitativas dos direitos do sujeito de pesquisa, assim como dos direitos dos consumidores, é não informar corretamente, o que coloca o fornecedor (laboratório) em violação contratual (art. 54, §4º, CDC), conforme tem entendido o Superior Tribunal de Justiça: “Direito civil – Contrato de seguro-saúde – Transplante – Cobertura do tratamento – Cláusula dúbia e mal redigida – Interpretação favorável ao consumidor – Art. 54, §4º, CDC – Recurso Especial – Súmula STJ, Enunciado 5 – Precedentes – Recurso não conhecido. (...) II – Acolhida a premissa de que a cláusula excludente seria dúbia e de duvidosa clareza, sua interpretação deve favorecer o segurado, nos termos do art. 54, §4º, do Código de Defesa do Consumidor. Com efeito, nos contratos de adesão, as cláusulas limitativas ao direito do consumidor contratante deverão se redigidas com clareza e destaque, para que não fujam de sua percepção leiga (REsp 31.150-9/SP, rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 25.06.2001) II – O caráter de norma pública atribuído ao Código de Defesa do Consumidor derroga a liberdade contratual, para ajustá-la aos parâmetros da lei, impondo-se a redução da quantia a ser repetida pela promitente vendedora a patamar razoável, ainda que a cláusula tenha sido celebrada de modo irretratável e irrevogável (REsp 292.942, rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 03.04.2001). Seguro-saúde – Limite temporal de internação – Cláusula limitativa – Redação com destaque. A 2ª Seção decidiu ser nula a cláusula limitativa do período de internação hospitalar do segurado (art. 51, CDC). Vulnera a lei a decisão que considera válida cláusula limitativa de obrigação de estipulante, inserida no contrato sem destaque (art. 54, §4º, do CDC) (REsp 214237/RJ, rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, j. 02.08.2001)” (grifei). Ademais, mesmo cláusulas, que, embora abusivas, venham a ser aprovadas por autoridade competente, quando se está a tratar de contrato de adesão, segundo entendimento do STJ, podem ter a sua nulidade apreciável pelo Poder Judiciário: “Seguro-saúde – Exclusão de proteção – Falta de prévio exame. A empresa que explora o plano de seguro-saúde e recebe contribuições de associado sem submetê-lo a exame não pode escusar-se ao pagamento da sua contraprestação alegando omissão nas informações do segurado. O fato de ter sido aprovada a cláusula abusiva pelo órgão estatal instituído para fiscalizar a atividade da seguradora não impede a apreciação judicial de sua invalidade. Recurso não conhecido (STJ – REsp 229078/SP – rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ. 07.02.2000) Seguro-saúde – Cobertura da AIDS – Plano dos fatos – Interpretação de cláusula contratual – Precedentes da Corte. 1. Afirmado nas instâncias ordinárias que não foi o segurado submetido a exame prévio e que a internação decorreu de moléstia coberta pelo plano de seguro, tem o amparo de precedentes da Corte o julgado que impõe seja feito o pagamento reclamado. 2. Como alinhado em precedente da Corte, o 'fato de ter sido aprovada a cláusula abusiva pelo órgão estatal instituído para fiscalizar a atividade da seguradora não impede a apreciação judicial de sua invalidade'. 3. Não pode ser enfrentada a limitação da cobertura quando o acórdão recorrido aponta a ausência de elementos necessários para tanto, apoiado em interpretação de cláusula contratual (Súmulas 5 e 7 da Corte). 4. Recuso especial não conhecido (STJ – 3ª T. – REsp 242180/SP – rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito – j. 26.10.2000)” (grifei). Assim, conclui-se, ainda que houvesse cláusula abusiva no TCLE, limitando o fornecimento do fármaco após o término da pesquisa envolvendo seres humanos, e mesmo que tal cláusula abusiva tivesse sido aprovada pelos órgãos estatais competentes para tanto – seja o Conselho Nacional de Saúde, seja a ANVISA, sejam as Comissões de Ética etc. –, tal nulidade é tranqüilamente apreciável pelo Poder Judiciário. Com efeito, a submissão dos comportamentos da Administração Pública ao controle jurisdicional é uma decorrência do Estado de Direito, conforme bem leciona Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 17. ed. rev. e atual. São Paulo, Malheiros, 2004, página 76: “de nada valeria proclamar-se o assujeitamento da Administração à constituição e às leis, se não fosse possível, perante um órgão imparcial e independente, contestar seus atos com as exigências delas decorrentes, obter-lhes a fulminação quando inválidos, e as reparações patrimoniais cabíveis” (grifei). Destarte, todo e qualquer ato ou comportamento da Administração Pública atentatório ao Direito - este conceito, ressalto, mais amplo do que o de legalidade - pode e deve ser revisto pelo Poder Judiciário. Sobre o princípio da legalidade, o Supremo Tribunal Federal pronunciou-se quando do julgamento do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 24699, em novembro de 2004. Embora naquela oportunidade o caso não fosse acerca de medicamentos ou de aprovação de pesquisas envolvendo seres humanos, pelos órgãos competentes, mas sobre o exercício do poder disciplinar por parte da Administração Pública, as considerações feitas pelo Ministro Carlos Ayres Britto aplicam-se ao caso sub judice: “O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO – ... Só queria fazer uma observação lateral. Esse lapidar conceito de Miguel de Seabra Fagundes, segundo o qual administrar é aplicar a lei de ofício, talvez esteja a exigir uma atualização. O artigo 37 da Constituição, tão apropriadamente citado por V. Exa., Sr. Ministro Eros Grau, na cabeça desse artigo há uma novidade que não tem sido posta em ênfase pelos estudiosos. Esse artigo tornou o Direito maior do que a lei ao fazer da legalidade apenas um elo, o primeiro elo de uma corrente de juridicidade que ainda incorpora a publicidade, a impessoalidade, a moralidade, a eficiência. Ou seja, já não basta ao administrador aplicar a lei, é preciso que o faça publicamente, impessoalmente, eficientemente, moralmente (grifei). Vale dizer: a lei é um dos conteúdos desse continente de que trata o artigo 37. Então, se tivéssemos que atualizar o conceito de Seabra Fagundes, adaptandoo à nova sistemática constitucional, diríamos o seguinte: administrar é aplicar o Direito de ofício, não só a lei... Mas para o Direito ser respeitado, não basta aplicar a lei, é preciso que ela seja aplicada eficientemente. Ou seja, o Direito também se manifesta na eficiência; publicamente, o Direito também se manifesta na publicidade; moralmente, o Direito também está presente na moralidade. Então, o administrador deve aplicar a lei e, ainda observar todos esses princípios de que o Direito se constitui. Assim, teríamos de dizer que administrar é aplicar o Direito de ofício, um direito que incorpore lei, publicidade, moralidade, impessoalidade e eficiência” (grifei). Destarte, a aprovação pela Administração Pública de projeto de pesquisa envolvendo seres humanos, que contrarie a legalidade, a moralidade, a eficiência etc., pode, e deve, ser revisto pelo Poder Judiciário. Retornando um pouco ao contrato de adesão, importante, ainda, colherem-se as lições de Claudia Lima Marques43[43]: “Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas são preestabelecidas unilateralmente pelo parceiro contratual economicamente mais forte (fornecedor), 'ne varietur', isto é, sem que o outro parceiro (consumidor) possa discutir ou modificar substancialmente o conteúdo do contrato escrito. (...) Desta maneira, limita-se o consumidor a aceitar em bloco (muitas vezes sem sequer ler completamente as cláusulas, que foram unilateral e uniformemente pré-elaboradas pela empresa, assumindo, assim, um papel de simples aderente à vontade manifestada pela empresa no instrumento contratual massificado. O elemento essencial do contrato de adesão, portanto, é a ausência de uma fase pré-negocial decisiva, a falta de um debate prévio das cláusulas contratuais e, sim, a sua predisposição unilateral, restando ao outro parceiro a mera alternativa de aceitar ou rejeitar o contrato, não podendo modificá-lo de maneira relevante. O consentimento do consumidor manifesta-se por simples adesão ao conteúdo preestabelecido pelo fornecedor de bens ou serviços. (...) A interpretação dos contratos de adesão (...) especialmente as suas cláusulas dúbias [deve ser feita] contra aquele que redigiu o instrumento. É a famosa interpretação 'contra proferentem', presente nas normas do novo Código Civil brasileiro de 2002 (art. 423)” (grifei). Outro aspecto a ser levado em consideração quando se está a tratar de contratos de natureza adesiva, como o ora “sub judice”, no que tange a sua interpretação, é o fato de que a cláusula contratual individual e precisa deve prevalecer sobre a cláusula geral e imprecisa. Assim, além de nula de pleno direito a cláusula que prevê que Kauã “poderia ou não receber algum benefício direto por participar na pesquisa”, fl. 333, cede lugar à cláusula que estabelece que a todos os sujeitos de pesquisa que concluírem o experimento “será oferecida a continuação de tratamento”, fl. 335, com a manutenção do fornecimento do fármaco desenvolvido (ALDURAZYME®). Assim, tanto a interpretação dos contratos de pesquisa envolvendo seres humanos (controle formal), quanto o controle do conteúdo da eqüidade dos contratos dessa natureza merecem especial atenção dos operadores do direito, devendo ser entendidas em favor do sujeito de pesquisa as cláusulas do TCLE, principalmente em caso de dúvida ou lacuna do contrato (arts. 423 e 424, CC; art. 47, CDC). Em casos como esse, é da interpretação ativa do magistrado a favor do sujeito de pesquisa que virá a 'clareza' da cláusula, sendo estabelecido, aí, se a cláusula, assim interpretada a favor do sujeito de pesquisa, é ou não contraditória com outras cláusulas do contrato. O Biodireito, assim como ocorre no direito do consumidor, deve optar por proteger o sujeito de pesquisa como parte contratual mais débil, a proteger suas expectativas legítimas, nascidas da confiança no vínculo contratual e na proteção do direito. Portanto, tanto a vontade declarada das partes ganha importância, como a boa-fé (artigo 113, do CC). O princípio da boa-fé ou a boa-fé objetiva que deve guiar a formação e a execução do contrato é o paradigma da interpretação do aplicador da lei nos contratos, podendo o aplicador da lei, através da boa-fé objetiva, visualizar e precisar quais os deveres e direitos decorrentes daquela relação em especial, interpretando-a de forma total no direito brasileiro. 43 [43] Claudia Lima Marques, Contratos no Código de Defesa do Consumidor, O novo regime das relações contratuais, 5ª edição, editora Revista do Tribunais, 2006, p. 71-77. Tanto pela aplicação do CDC, artigos 51 e 53, como pela aplicação do CC, artigo 166, inciso VII, combinado com o artigo 424, infere-se que a nulidade cominada à cláusula abusiva de limitação do fornecimento da medicação no tempo é absoluta, justamente por ser gravemente ofensiva ao novo espírito social do direito brasileiro. Por ser nulidade absoluta, conforme leciona Humberto Theodoro Júnior44[44], deve ser declarada de ofício pelo magistrado, nos termos do artigo 168, parágrafo único, do Código Civil: “É por isso que, mesmo sem requerimento da parte, o juiz tem o dever (não a faculdade) de pronunciar a nulidade, em qualquer processo que a encontre provada. Na verdade, não é o pronunciamento do juiz que retira a validade do negócio nulo; é a própria lei que o priva de efeitos. Em se tratando de questão de ordem pública, o juiz tem, por ofício, o dever de conhecer as nulidades e de pronunciá-las, sempre que com elas se deparar” (grifei). De fato, o controle judicial deve se dar para que seja assegurada a concretização do princípio básico da eqüidade ou equilíbrio contratual, buscando revitalizar o sinalagma inicial ou final dos contratos, mediante a força interpretativa do princípio da boa-fé objetiva, agora especialmente revitalizada pela noção de função social do contrato (artigo 421, CC). Nesse sentido, deve o magistrado, em casos com o que ora se enfrenta, utilizar-se do CDC como base legal e teleológica, em um diálogo constante e sistemático com o Código Civil. A questão da boa-fé atine mais propriamente à interpretação dos contratos, não se desvinculando da função social, devendo ser entendido que as partes devem portar-se com boa-fé, tanto no desenvolvimento das tratativas quanto na formação do contrato. Pode-se afirmar que esse princípio da boa-fé se exterioriza pelo dever das partes de agir de forma correta, eticamente aceita, antes, durante e depois do contrato, isso porque, mesmo após o cumprimento de um contrato, podem sobrar-lhes efeitos residuais, como ocorre no TCLE, que vincula laboratórios de pesquisa e sujeito de pesquisa, mesmo após o término do experimento. Diga-se, ainda, que a análise do princípio da boa-fé dos contratantes deve ser feita com o exame das condições em que o contrato foi firmado, o nível sociocultural dos contratantes, o momento histórico e econômico. Pelo que se percebe, a partir da conduta dos laboratórios denunciados, em juízo, sua intenção sempre foi a de que, descoberto o medicamento, mesmo em se tratando do sujeito de pesquisa, o Estado passasse a arcar com os seus custos, muito embora, no TCLE, esta intenção não tenha vindo expressamente colocada, muito antes pelo contrário, como acima foi visto. Portanto verifica-se a sua má-fé quando da redação do TCLE, que foi apresentado perante as autoridades competentes, e nessa condição aprovado, na medida em que não pretendia honrá-lo em sua integralidade. Ademais, qualquer restrição ao direito do sujeito de pesquisa de receber o fármaco mesmo após o término do experimento, como visto, deveria vir detalhada e minuciosamente considerada, muito embora, ainda assim, fosse cláusula abusiva, nula de pleno direito, portanto. O artigo 421, e mais propriamente o artigo 422, ambos do Código Civil, constituem modalidade do que a doutrina convencionou denominar “cláusula geral” ou “cláusula aberta”, dando a idéia de dispositivo que deve ser amoldado ao caso concreto, sob uma compreensão social e histórica. 44 [44] Humberto Theodoro Júnior, Comentários ao Novo Código Civil, Livro III – Dos Fatos Jurídicos: Do Negócio Jurídico, arts. 138 a 184, volume III, tomo I, 3ª edição, editora Forense, 2006, p. 521. Assim, tais normas têm seu conteúdo essencialmente dirigido ao juiz, que deverá, em cada caso, definir quais as situações nas quais os partícipes de um contrato se desviaram da boa-fé45[45]. O artigo 422, CC, define a boa-fé objetiva, com relação a qual o intérprete parte de um padrão de conduta comum, do homem médio, naquele caso concreto, levando em consideração os aspectos sociais envolvidos. Desse modo, a boa-fé objetiva se traduz de forma mais perceptível como uma regra de conduta, um dever de agir de acordo com determinados padrões sociais estabelecidos e reconhecidos (a propósito, artigo 113, CC). Tanto nas tratativas como na execução, bem como na fase posterior de rescaldo do contrato já cumprido (responsabilidade pós-obrigacional ou póscontratual), a boa-fé objetiva é fator basilar de interpretação. Desse modo, avalia-se, sob a boa-fé objetiva, tanto a responsabilidade pré-contratual, como a responsabilidade contratual e pós-contratual. Partindo dessa idéia é que se constata, com clareza, a má-fé na atuação dos laboratórios pesquisadores denunciados. Não podem eles procurar uma pessoa, convidá-la para participar de estudo e, depois de descoberta/aperfeiçoada a droga, exigir que o sujeito de pesquisa busque do Estado, em incerta ação judicial, o medicamento que auxiliou decisivamente a desenvolver. Não é minimamente ético tal comportamento, sendo inaceitável, repelido pela ordem jurídica brasileira, bem como por todos quantos militam na área do Biodireito ou da Bioética. Dispensar o sujeito de pesquisa, logo após o término do experimento, é desconsiderar a boa-fé que deve presidir as relações jurídicas entabuladas entre as pessoas, tanto na execução quanto no período pós-contratual. Ademais, outro dispositivo legal que constitui também “cláusula aberta”, é o da função social do contrato, artigo 421, CC, que também vem em socorro do sujeito de pesquisa. Nesse sentido, importante a lição de Venosa, fls. 364/365: “Quando da codificação moderna, cujo maior baluarte é o Código Civil francês de 1804, a chamada liberdade de contratar tinha um cunho essencialmente capitalista ou burguês, porque o que se buscava, afinal era fazer com que o contrato permitisse a aquisição da propriedade. Como corolário, o princípio da obrigatoriedade dos contratos possuía o mesmo mister. Na contemporaneidade, a autonomia de vontade clássica é substituída pela autonomia privada, sob a égide de um interesse social. Nesse sentido o atual Código aponta para a liberdade de contratar sob o feio da função social. Há, portanto, uma nova ordem jurídica contratual, que se afasta da teoria clássica, tendo em vista mudanças históricas tangíveis. O fenômeno do interesse social na vontade privada negocial não decorre unicamente do intervencionismo do Estado nos interesses privados, com o chamado dirigismo contratual, mas da própria modificação de conceitos históricos em torno da propriedade. No mundo contemporâneo, há infindáveis interesses interpessoais que devem ser sopesados, algo nunca imaginado em passado recente, muito além dos princípios do simples contrato de adesão” (grifei). Assim, cabe ao juiz decidir sobre a adequação social de um contrato ou de uma ou algumas de suas cláusulas, observando o ordenamento jurídico como um todo. De fato, a função social do contrato, preceito de ordem pública, encontra fundamento constitucional no princípio da função social do contrato “lato sensu” (arts. 5º, incisos XXII e XXIII, e 170, III), bem como no princípio maior de proteção da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III), na busca de uma sociedade mais justa e solidária (art. 3º, inciso I) e da isonomia (art. 5º, “caput”). Isso, repita-se, em uma nova concepção de direito privado, no plano civil-constitucional, que deve 45 [45] Venosa, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 8ª edição, São Paulo: Atlas, 2008, pp. 359-370. guiar os operadores de direito da atualidade, seguindo tendência de personalização. Os laboratórios denunciados, em sua contestação, afirmam que as declarações de vontade serão interpretadas mais de acordo com a intenção nelas consubstanciadas, e menos conforme o seu sentido literal, mencionando o artigo 112, CC, fls. 289/292. Ora, se a intenção dos laboratórios denunciados era não fornecer o medicamento após o fim do experimento, isso deveria vir claramente explicitado no contrato, TCLE, unilateralmente por eles redigido, que assim seria submetido à apreciação das autoridades competentes, sendo aprovado ou não. Contudo o TCLE é claro, demonstrando que, a todos os sujeitos de pesquisa que concluíssem o experimento, “será oferecida a continuação de tratamento”, fl. 335, com a manutenção do fornecimento do fármaco desenvolvido (ALDURAZYME®). Se a abusiva intenção dos laboratórios denunciados era essa, de não fornecer o fármaco com o fim do experimento, deveriam ter feito expressa e evidente ressalva a este respeito. O que é inadmissível, sendo repudiado pelo ordenamento jurídico, é o comportamento contraditório dos laboratórios de pesquisa denunciados, consubstanciado, em afronta à boa-fé, na circunstância de um sujeito de direito buscar favorecer-se, em processo judicial, assumindo conduta que contradiz outra que a precede no tempo e assim constitui um proceder injusto e, portanto, inaceitável. A proibição de comportamento contraditório (expressão latina “venire contra factum proprium”), ensinado pela doutrina, é uma derivação necessária e imediata do princípio da boa-fé, especialmente na direção que concebe essa boa-fé como um modelo objetivo de conduta. Assim, vêm os laboratórios denunciados afirmar, agora, em juízo, que não era sua intenção fornecer o medicamento após a pesquisa, quando, em verdade, no TCLE, redigido por eles, unilateralmente, documento que deveria ser minucioso, claro, evidente, eticamente correto etc., obriga-se à manutenção do tratamento indispensável. Portanto, ao invés de requerer a aplicação, em seu benefício, do previsto no artigo 112, CC, deve-se, em nome da lealdade, da confiança, do equilíbrio contratual, da razoabilidade e da proporcionalidade, rechaçar tal comportamento gravemente antiético. Com efeito, é um imperativo em prol da credibilidade e da segurança das relações sociais e conseqüentemente das relações jurídicas que o sujeito observe um comportamento coerente, como um princípio básico de convivência. O fundamento situa-se no fato de que a conduta anterior gerou, objetivamente, confiança em quem recebeu reflexos dela. Cumpre ressaltar, ainda, que o conteúdo do instituto da proibição de comportamento contraditório guarda proximidade com a proibição de alegação da própria torpeza (“nemo auditur turpitudinem allegans”, que quer dizer que ninguém pode ser ouvido ao alegar a própria torpeza). Tal orientação, embora não positivada no direito brasileiro, é corolário lógico das próprias noções de Direito e Justiça, apresentando o seu conteúdo implícito no ordenamento, no que diz respeito ao comportamento das partes. A manifestação de vontade do sujeito de pesquisa, deve-se ressaltar, é muitíssimo reduzida quando de sua aceitação de participar no experimento, ou seja, na formação do chamado TCLE, podendo-se inclusive, no caso “sub judice”, verificar, em sua celebração, traços característicos do chamado estado de perigo, o qual constitui-se em defeito do negócio jurídico, conforme prevê o artigo156, do Código Civil: “Art. 156. Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa” (grifei). De fato, a obrigação do sujeito de pesquisa torna-se excessivamente onerosa justamente pelo fato de que, além de arriscar sua própria vida, não receberá qualquer contra-prestação dos laboratórios denunciados por sua participação no estudo. Assim, cabe ao legislador, e particularmente ao julgador, traçar os limites dessa imposição de cláusulas, tendo em vista a posição do aderente, o contratante fraco, o sujeito de pesquisa. O exame detalhado dos 2.046 artigos que compõem o Código Civil revela, de imediato, como acima foi demonstrado, que a sua estrutura filosófica está apoiada em quatro pilares básicos: eticidade, sociabilidade, operosidade e sistematicidade, constituindo uma nova ordem hermenêutica que confere ao magistrado a atribuição de pautar as suas decisões com uma maior carga de valores éticos, tendo “o valor da pessoa humana como fonte de todos os valores”46[46]. Com efeito, interpretar as regras do Código Civil com base em princípios éticos é contribuir para que a idéia de justiça aplicada concretamente torne-se realidade. Nesse sentido, importante os ensinamentos de Judith Martins Costa e Gerson Luiz Carlos Branco47[47]: “a nova Lei Civil se distingue da anterior pela freqüente referência de seus dispositivos aos princípios de eqüidade, de boa-fé, de equilíbrio contratual, de correção, de lealdade, de respeito aos usos e costumes do lugar das convenções, de interpretação da vontade tal como é consubstanciada, etc. etc. sempre levando em conta a ética da situação, sob cuja luz a igualdade deixa de ser vista 'in abstrato', para se concretizar em uma relação de proporcionalidade” (grifei). Sobre a maneira de se interpretarem as normas do Código Civil atualmente em vigor e a responsabilidade do juiz nessa tarefa afirma José Augusto Delgado48[48]: “Como examinado, o sistema adotado pelo novo Código Civil foi o de privilegiar as cláusulas gerais e os conceitos indeterminados. Estes constituem fenômenos legislativos abertos, pelo que o juiz assume uma responsabilidade potencializada quando é chamado a aplicá-los em cada caso concreto, por lhe ter sido dada a responsabilidade de, em nome do Estado, complementar a norma. Essa função do juiz há de ser desenvolvida com base nos princípios gerais de direito, nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, especialmente, valorizando o conteúdo ético que o Código exige na interpretação e aplicação de suas normas” (grifei). A esse respeito, por fim, a lição de Judith Martins-Costa e Gerson Luiz Carlos Branco, obra citada, p. 64: “O princípio da eticidade servirá para aumentar o poder do juiz no suprimento de lacunas, nos casos de deficiência ou falta de ajuste da norma à especificidade do caso concreto. Para Reale a eticidade é o espírito do novo Código Civil, e esse espírito é o conjunto de idéias fundamentais em torno das quais as normas se entrelaçam, se ordenam e se sistematizam (Miguel Reale, 'Visão geral do projeto do Código Civil', RT, p. 28)” (grifei). 46 [46] Miguel Reale, O Projeto do novo Código Civil, 2ª edição, São Paulo, Saraiva, 1999, p. 9. 47 [47] Judith Martins Costa e Gerson Luiz Carlos Branco, Prefácio da obra Diretrizes teóricas do novo Código Civil brasileiro, Saraiva, p. X. 48 [48] José Augusto Delgado, A Ética e a Boa-Fé no Novo Código Civil, artigo publicado na Revista de Direito do Consumidor, nº 49, 2004, editora Revista dos Tribunais, pp. 164-176. DIREITOS DA PERSONALIDADE. ABSOLUTOS. EXTRAPATRIMONIAIS. INTRANSMISSÍVEIS. INDISPONÍVEIS. IRRENUNCIÁVEIS. VITALÍCIOS. ILIMITADOS. CÓDIGO CIVIL, ARTIGOS 11 A 21, E CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ESSENCIALMENTE ARTIGO 5º, INCISOS V, X E XLI. LIVRE EXPRESSÃO DA ATIVIDADE CIENTÍFICA, ARTIGO 5º, INCISO IX, E ARTIGO 218, AMBOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, ENQUANTO VETOR DO ORDENAMENTO JURÍDICO, PRINCIPAL LIMITADOR DAS PESQUISAS CIENTÍFICAS. NENHUMA INVESTIGAÇÃO PODERÁ SER CONDUZIDA DE FORMA A ATENTAR CONTRA ESSE PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL (ART. 1º, INCISO III, CF). Superado este ponto, cumpre agora fazer referência a uma das matérias de maior destaque nos dias atuais, puco mencionada ao longo da instrução: os denominados direitos da personalidade. Com efeito, presentes em vários âmbitos do direito civil – desde a parte geral do Código civil quando o legislador deu ênfase à pessoa, ao início e ao término da personalidade, até a parte especial, no direito de família, das obrigações e, especialmente, no que se refere à responsabilidade civil – têm eles obtido posição peculiar em muitos outros ramos do direito, a exemplo do que vem ocorrendo com o direito constitucional, principalmente após o advento da Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, importante transcrever excerto do ensinamento de Rita de Cássia Curvo Leite49[49]: “Dentro uma sociedade evolutiva e globalizada, assim, é inegável a importância desses direitos na medida em que andando a ciência e tecnologia a passos largos deve o direito, amparado nos costumes, na jurisprudência e em princípios gerais de ordem moral e filosófica, acompanhar essas transformações não se esquecendo jamais de que o seu papel fundamental é o de proteger o ser humano, preservando sua identidade, integridade e dignidade” (grifei). Segundo Rubens Limongi França50[50], os direitos da personalidade “são as faculdades jurídicas cujo objeto são os diversos aspectos da própria pessoa do sujeito, bem assim as suas emanações e prolongamentos”. Carlos Alberto Bittar51[51] entende por direitos da personalidade “os direitos inatos cabendo ao Estado apenas reconhecê-los e sancioná-los em um ou outro plano do direito positivo – a nível constitucional ou a nível de legislação ordinária – e dotando-os de proteção própria, conforme o tipo de relacionamento a que se volte, a saber: contra o arbítrio do poder público ou às incursões de particulares”. São, assim, “direitos próprios da pessoa em si, existentes por sua natureza, como ente humano, com o nascimento, mas, são também direitos referentes às projeções do homem para o mundo exterior (a pessoa como ente moral e social, ou seja, em seu relacionamento com a sociedade)” (grifei). A partir dos conceitos acima transcritos, percebe-se que os direitos da personalidade são inerentes ao homem, sendo-lhe fundamentais, eis que recaem sobre uma parte da própria esfera da personalidade, ligando-se, portanto, intimamente ao Direito Natural, este concebido como um conjunto de normas ou de 49 [49] Rita de Cássia Curvo Leite, Os Direitos da Personalidade, artigo de doutrina publicado na obra Biodireito, Ciência da vida, os novos desafios, cuja organizadora é Maria Celeste Cordeiro Leite Santos, editora Revista dos Tribunais, 2001, pp. 150-168. 50 [50] FRANÇA, Rubens Limongi. Manual de Direito Civil. 3ª edição, editora Revista dos Tribunais, 1975, p. 403. 51 [51] BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 1ª edição, São Paulo-Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 07. primeiros princípios morais, que são imutáveis, consagrados ou não na legislação da sociedade, visto que resultam da natureza das coisas e do homem, sendo por isso apreendidos imediatamente pela inteligência humana como verdadeiros. O Direito Natural independe do legislador humano, assim, por exemplo, do princípio de direito natural de que o “homem deve conservar a si próprio” decorre que “não é permitido matar”, etc52[52]. Sílvio Rodrigues faz a correta e interessante distinção entre os direitos que se destacam da pessoa e outros que a ela são inerentes: “Dentre os direitos subjetivos de que o homem é titular pode-se facilmente distinguir duas espécies diferentes, a saber: uns que são destacáveis da pessoa de seu titular e outros que não o são. Assim, por exemplo, a propriedade ou o crédito contra um devedor constitui um direito destacável da pessoa de seu titular; ao contrário, outros direitos há que são inerentes à pessoa humana e portanto a ela ligados de maneira perpétua e permanente, não se podendo mesmo conceber um indivíduo que não tenha direito à vida, à liberdade física ou intelectual, ao seu nome, ao seu corpo, à sua imagem e àquilo que ele crê ser sua honra. Estes são os chamados direitos da personalidade”53[53]. A doutrina costuma dar as características essenciais dos chamados direitos da personalidade, que, regra geral, devem ser observados. Por todos, a lição de Pontes de Miranda, segundo o qual “o direito de personalidade, os direitos, as pretensões e ações que dele se irradiam são irrenunciáveis, inalienáveis, irrestringíveis. São direitos irradiados dele os de vida, liberdade, saúde (integridade física e psíquica), honra, igualdade”54[54]. Os direitos da personalidade são absolutos, porquanto oponíveis “erga omnes”, implicando um dever geral de abstenção, vale dizer, uma obrigação negativa, impondo a todos o seu respeito. Assim, o sujeito passivo (universal) da obrigação permanece indeterminado até que haja a ocorrência de um ilícito, de que decorrerá para o ofensor a responsabilidade de reparar o dano causado. São também extrapatrimoniais, porquanto os bens jurídicos sobre os quais incidem os direitos da personalidade não são suscetíveis de avaliação econômica ou pecuniária. De fato, tais bens não podem ser comercializados ou por impossibilidade natural ou por vedação da lei. São bens que estão fora do comércio, o que não quer dizer que sua lesão não possa dar lugar a conseqüências patrimoniais, através do ressarcimento do dano, tanto material como moral. São ainda intransmissíveis ou indisponíveis, pois inseparáveis da pessoa, assim como impenhoráveis e imprescritíveis, pois não se extinguem, quer pelo não uso, quer pela inércia na sua defesa. Com efeito, o decurso do tempo permanece inerte no que concerne ao eventual desinteresse do titular do direito da personalidade quanto ao seu exercício. São ainda irrenunciáveis, na medida em que não é possível renunciar a personalidade, possuindo ligação íntima com a personalidade, tendo sua eficácia irradiada por esta. Se o direito é de personalidade, irrenunciável é, não importa qual seja. Também são vitalícios, porque jamais se perdem esses direitos, enquanto viver o titular, sobrevivendo-lhe a proteção legal em algumas espécies. Além disso, são necessários, porque permanecem ligados em caráter definitivo à pessoa do respectivo titular. São, por fim, ilimitados, porquanto é impossível limitá-los em “numerus clausus”, haja vista serem próprios do ser humano. 52 [52] DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 2ª edição, São Paulo: Saraiva, 1989, pp. 34-35. 53 [53] RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil – Parte Geral, Vol. I, p. 81. 54 [54] DE MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado – Parte Geral, Tomo I, p. 162, 4ª edição, 2ª tiragem, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1983. Certamente, cumpre ressaltar, nem sempre os caracteres acima mencionados são inflexíveis ou absolutos em si mesmos, podendo, em determinadas situações, apresentar-se relativamente. De fato, o direito à saúde e à vida devem ser observados, pois são direitos que integram os direitos da personalidade. Todavia, é possível que alguém se submeta, por exemplo, em determinadas circunstâncias, à pesquisa para o desenvolvimento de nova droga. Toda pesquisa envolve riscos à integridade física do sujeito de pesquisa, como afirmado no início da fundamentação, no entanto, admite-se a participação do sujeito de pesquisa no experimento, havendo o sopesamento dos princípios envolvidos diante dessa situação. Com efeito, conforme leciona Lise Nery Mota55[55], em artigo intitulado “O Princípio da Proporcionalidade como Critério de Ponderação entre Direitos da Personalidade e Direito à Liberdade de Pesquisa Científica”, o Código Civil, artigos 11 a 21, e a Constituição Federal, essencialmente no artigo 5º, incisos V, X e XLI, contêm dispositivos referentes aos direitos da personalidade. Segundo a autora mencionada, o artigo 11, CC, admite exceções à indisponibilidade dos direitos da personalidade. Por outro lado, também dentre os direitos e garantias fundamentais, a Magna Carta admite a livre expressão da atividade científica, artigo 5º, inciso IX, CF. Este dispositivo deve ser sistematicamente entendido em conjugação com o artigo 218, também da Constituição Federal, cujo teor se refere diretamente ao desenvolvimento científico, à pesquisa e à capacitação tecnológica. A partir da leitura dos artigos 218 e 219, CF, resta claro que é imputado ao Estado o dever de promover e incentivar o desenvolvimento da pesquisa científica e tecnológica, devendo estes, inclusive, receber tratamento prioritário. Todavia, a dignidade da pessoa humana, enquanto vetor do ordenamento jurídico, é o principal limitador das pesquisas científicas. Nenhuma investigação poderá ser conduzida de forma a atentar contra esse princípio constitucional (art. 1º, inciso III, CF). Nesse sentido a lição de Maria Helena Diniz56[56]: “Os bioeticistas devem ter como paradigma o respeito à 'dignidade da pessoa humana', que é o fundamento do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, III) e o cerne de todo o ordenamento jurídico. Deveras, a pessoa humana e sua dignidade constituem fundamento e fim da sociedade e do Estado, sendo o valor que prevalecerá sobre qualquer tipo de avanço científico e tecnológico. Conseqüentemente, não poderão bioética e biodireito admitir conduta que venha a reduzir a pessoa humana à condição de coisa, retirando dela sua dignidade e o direito a uma vida digna” (grifei). Não é outro o entendimento no direito comparado. Nessa esteira, Paulo Otero57[57] traz exemplos da legislação portuguesa, que buscam resguardar o direito à dignidade da pessoa humana em detrimento da liberdade técnico-científica: “Como resultado expresso do próprio artigo 26, nº3, da Constituição, a liberdade de criação e desenvolvimento tecnológico e a liberdade de experimentação científica – tal como, esclareça-se, qualquer outro tipo de liberdade 55 [55] NERY MOTA, Lise. “O Princípio da Proporcionalidade como Critério de Ponderação entre Direitos da Personalidade e Direito à Liberdade de Pesquisa Científica”. Artigo publicado na Revista Jurídica: órgão nacional de doutrina, jurisprudência, legislação e crítica judiciária. Ano 56, julho de 2008, nº 369, pp. 75-108. 56 [56] DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 4ª edição, revisada e atualizada conforme a Lei 11.105/2005. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 16. 57 [57] OTERO, Paulo. Personalidade e identidade pessoal e genética do ser humano: um perfil constitucional da bioética. Coimbra: Almedina, pp. 94-96. – não são ilimitadas, antes se encontram condicionadas a respeitar: a dignidade de cada pessoa humana e a identidade em genética do ser humano (...) Neste sentido, a denunciada tendência da moderna investigação científica ser conduzida sem qualquer alusão a uma visão moral ou ética, levando certos cientistas a defenderem a pesquisa como um fim em si mesma, isto sem 'meterem, no centro dos seus interesses, a pessoa e a globalidade da vida', mostra-se agora contrariada pelo imperativo constitucional no âmbito da pesquisa biomédica: a liberdade de criação, a liberdade de desenvolvimento tecnológico e a liberdade de experimentação científica não são ilimitadas, antes se encontram teleologicamente orientadas ao serviço do homem e condicionadas a respeitar a dignidade e a identidade de cada ser humano” (grifei). Assim, como visto, de um lado, as pesquisas científicas são autorizadas e estimuladas pela legislação, mas, de outro, há a necessidade de proteção dos direitos da personalidade. Em tal hipótese o magistrado, ao se confrontar com interesses conflitantes, deverá valer-se de mecanismo capaz de gerar a resposta mais adequada para cada caso. Havendo colisão entre direitos fundamentais, de princípios de direito fundamental contrapostos, a melhor solução a ser dada será a de o magistrado se valer de um juízo de ponderação e valoração, de forma a considerar o peso que cada um exerce, em vista das circunstâncias concretas. “Esta tarefa envolverá, necessariamente, certa dose de subjetivismo, razão pela qual se recomenda ao juiz uma especial prudência no exercício do controle de constitucionalidade”58[58]. De fato, para a conciliação de dois valores jurídicos conflitantes, devese aplicar o princípio da proporcionalidade ou razoabilidade, para que o juiz, em sua apreciação, dose a aplicação dos inúmeros instrumentos disponibilizados pelo legislador, na busca da medida que resulte na decisão mais justa. Impõe-se, portanto, a ponderação entre Direitos da Personalidade e Direito à Liberdade de Pesquisa Científica. Nesse sentido, importante o ensinamento de Denise Hammerschmidt59[59], ressaltando que o direito à liberdade de pesquisa científica não pode ser exercido indiscriminadamente, por não se tratar de direito absoluto: “O direito à produção e criação científica constitui parte do catálogo das liberdades básicas de qualquer Estado de Direito social democrático. No entanto, nenhum direito é absoluto, mas apresentam-se limites ao investigador, quando isto seja necessário para a compatibilização de determinado direito 'com outros interesses igualmente dignos de proteção' (...) Assim, nesse contexto, é importante registrar que a liberdade de pesquisa apresenta o problema de colisão desse direito com outros interesses legítimos e inclusive superiores, como o do respeito à vida, à integridade física e moral ou à intimidade. Por outro lado, a realização de investigação genética ou de qualquer outro tipo de provas dessas características põe em relevo a necessidade de assegurar a liberdade das pessoas frente a fortes interesses econômicos, sociais ou políticos. As restrições a este direito se apresenta à medida que o exercício da liberdade pessoal entra em colisão com outros valores, como a vida, a dignidade, a intimidade, ou simplesmente se chocam as liberdades individuais com os interesses coletivos” (grifei). Portanto, a liberdade de pesquisa não é absoluta, como já foi dito, tendo seus limites, devendo ser conciliada com outros direitos e liberdades do mesmo nível. Os direitos fundamentais do indivíduo constituem esse limite intransponível e inadiável. 58 [58] SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 97. 59 [59] HAMMERSCHMIDT, Denise. Intimidade genética e direito da personalidade. Curitiba: Juruá, 2007, pp. 109 e 139-140. Realizada a ponderação dos interesses envolvidos, percebe-se que os Direitos da Personalidade e o Direito à Liberdade de Pesquisa Científica podem andar juntos. A proporcionalidade indica isso, e, em se tratando de princípios, não de regras, não deve ser um afastado em detrimento de outro, mas a sua conciliação deve ocorrer, no caso concreto, com a preponderância de um sobre o outro: “O exame da proporcionalidade em sentido estrito exige a comparação entre a importância da realização do fim e a intensidade da restrição aos direitos fundamentais. A pergunta que deve ser formulada é a seguinte: o grau de importância da promoção do fim justifica o grau de restrição causada aos direitos fundamentais? Ou, de outro modo: as vantagens causadas pela promoção do fim são proporcionais às desvantagens causadas pela adoção do meio? A valia da promoção do fim corresponde à desvalia da restrição causada?”60[60] (grifei). Destarte, em conclusão, admite-se a relativização dos direitos da personalidade, visando à participação de ser humano em pesquisa científica, principalmente no que diz respeito ao direito à saúde, podendo-se, dependendo da circunstância, inclusive relativizar-se o direito à vida, contudo o modo como vai se dar a sua inclusão e participação no experimento, incluídas aí as fases pré e pós pesquisa, deve observar a dignidade da pessoa humana em sua totalidade. Com efeito, a pessoa humana deve receber, ao participar no experimento, a tutela jurídica que o ordenamento lhe assegura: sua dignidade deve ser observada como valor primeiro, ainda mais em se tratando de criança. Assim, o comportamento dos laboratórios denunciados mostrou-se inadequado e de má-fé, considerando-se a própria finalidade da relação jurídica entabulada entre os patrocinadores do experimento e o sujeito de pesquisa. De fato, objetivando a participação do autor, Kauã, na pesquisa, pactuada mediante o TCLE, a descoberta e o desenvolvimento de medicamento indispensável para o tratamento da moléstia rara de que padecia o infante, é inadmissível que, após o término do experimento, que resultou em aperfeiçoamento da medicação, seja o doente abandonado a sua própria (má)sorte. A participação de Kauã na pequisa, visava a, antes de tudo, salvar-lhe a vida, preservar-lhe a saúde, direitos que integram os chamados direitos da personalidade, portanto absolutos: a relativização de direitos da personalidade ocorre para permitir a participação de ser humano em pesquisa, mas esta encontra limites na dignidade da pessoa humana, que não pode ser desrespeitada da maneira como foi. Nesse sentido, duas importantes decisões do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul: “EMENTA: SEGURO-SAUDE. CLAUSULA EXCLUINDO DA COBERTURA TRATAMENTO EXPERIMENTAL NAO APROVADO PELO SNFM. BENEFICIARIA PORTADORA DE CANCER, COM QUADRO CLINICO TERMINAL ANTE A INEXISTENCIA, NO BRASIL, DE OUTRO TRATAMENTO DISPONIVEL PARA EVITAR A ACAO PROGRESSIVA DA DOENCA. TRATAMENTO NO EXTERIOR MEDIANTE A UTILIZACAO DE ANTINEOPLASTONS, COM RESULTADOS FAVORAVEIS, APRESENTANDO MELHORA NO QUADRO CLINICO. EMBORA UTILIZADO POR UM SO MEDICO E EM UM SO ESTADO DA FEDERACAO NORTE-AMERICANA, TENDO SIDO RECONHECIDA JUDICIALMENTE A SUA LEGALIDADE, COM SUCESSO INDISCUTIVEL, POR MAIS DE UMA DECADA, NAO PODE MAIS SER CONSIDERADO COMO EXPERIMENTAL. ADEMAIS, TRATANDO-SE DE TRATAMENTO REALIZADO NO EXTERIOR, NAO SE PODE ACEITAR A LIMITACAO DA APOLICE COM VALIDADE APENAS NO BRASIL. DE QUALQUER MODO, AINDA QUE EXISTISSEM DÚVIDAS, TRATANDO-SE DE CONTRATO DE ADESAO, NAO PODERIAM SER SOLUCIONADAS EM FAVOR DA SEGURADORA. POR OUTRO LADO, ELA SE 60 [60] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 3ª edição. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 124. MOSTRA INADEQUADA PARA A FINALIDADE DO PRÓPRIO CONTRATO, RELACIONADA COM A SAÚDE E, PORTANTO, COM O DIREITO A VIDA, DIREITOS QUE INTEGRAM OS CHAMADOS DIREITOS DA PERSONALIDADE, PORTANTO, ABSOLUTOS. INADMISSIBILIDADE DA EXCLUSAO DO TRATAMENTO DA COBERTURA DO SEGURO. PROCEDENCIA DAS ACOES. EMBARGOS REJEITADOS. (Embargos Infringentes Nº 595161639, Segundo Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Tael João Selistre, Julgado em 15/12/1995) EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. SEGUROS. PLANO DE SAÚDE. NEGATIVA DE COBERTURA. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E POR DANOS MORAIS. MORTE DO AUTOR NO CURSO DA DEMANDA. TRANSMISSIBILIDADE DO DIREITO AOS SUCESSORES. I – PLANO DE SAÚDE COM COBERTURA RESTRITA À ÁREA DE ATUAÇÃO DA SEGURADORA, EXCETUADA NOS CASOS DE URGÊNCIA E EMERGÊNCIA DE SEGURADOS EM TRÂNSITO. CASO DOS AUTOS QUE CONFIGUROU A HIPÓTESE EXCEPCIONAL. SITUAÇÃO EM QUE O FALECIDO AUTOR, DURANTE VIAGEM À CAPITAL, FOI DIAGNOSTICADO COMO PORTADOR DE TUMOR CEREBRAL, NECESSITANDO DE IMEDIATA INTERVENÇÃO CIRÚRGICA, AGRAVADA PELO FATO DE QUE O ÚNICO HOSPITAL DA ÁREA DE COBERTURA DA SEGURADORA RÉ NÃO ESTAVA REALIZANDO PROCEDIMENTOS EQUIVALENTES, MAS ELETIVOS, POR FALTA DE EQUIPAGAMENTO. DEVER DE COBERTURA CARACTERIZADO. DANOS MATERIAIS DEVIDOS. II – O DANO MORAL, EM FACE DO CARÁTER PATRIMONIAL CONFERIDO PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, TRANSFERE-SE AOS HERDEIROS DA VÍTIMA, QUE TANTO PODEM EXERCER A FACULDADE DE ACIONAR O RESPONSÁVEL, COMO TAMBÉM SUBSTITUIREM PROCESSUALMENTE O AUTOR, NO CASO DE FALECIMENTO. III - DANO MORAL POR INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. CONFIGURA DANO MORAL O INADIMPLEMENTO CONTRATUAL QUE, EXORBITANDO OS ABORRECIMENTOS NORMAIS, ACABA POR REPERCUTIR NA ESFERA DA DIGNIDADE DA VÍTIMA. PROVA DO DANO. TRATANDO-SE DE DANO MORAL, DISPENSADA A PROVA POR ESTAR IN RE IPSA. COMO PRÁTICA ATENTATÓRIA AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE, TRADUZSE NUM SENTIMENTO DE PESAR ÍNTIMO DA PESSOA OFENDIDA, CAPAZ DE GERAR-LHE ALTERAÇÕES PSÍQUICAS OU PREJUÍZOS À PARTE SOCIAL OU AFETIVA DE SEU PATRIMÔNIO MORAL. A PROVA SE SATISFAZ COM A OCORRÊNCIA DO ATO ILÍCITO. CRITÉRIOS PARA A FIXAÇÃO DE UM VALOR ADEQUADO. JUÍZO DE EQUIDADE ATRIBUÍDO AO PRUDENTE ARBÍTRIO DO JUIZ. COMPENSAÇÃO À VÍTIMA PELO DANO SUPORTADO. PUNIÇÃO AO INFRATOR, CONSIDERADAS AS CONDIÇÕES ECONÔMICAS E SOCIAIS DO AGRESSOR, BEM COMO A GRAVIDADE DA FALTA COMETIDA, SEGUNDO UM CRITÉRIO DE AFERIÇÃO SUBJETIVO. APELAÇÃO DA SEGURADORA DESPROVIDA, PROVIDO O RECURSO DOS SUCESSORES DO AUTOR. (Apelação Cível Nº 70008530149, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, Julgado em 15/09/2004)”. Importa agora, uma vez mais, chamar atenção para um dos caracteres essenciais dos direitos da personalidade: a indisponibilidade, que abarca tanto a instransmissibilidade (impossibilidade de modificação subjetiva, gratuita ou onerosa – inalienabilidade) quanto a irrenunciabilidade (impossibilidade de reconhecimento jurídico da manifestação volitiva de abandono do direito). A indisponibilidade significa que, nem por vontade própria do indivíduo o direito pode mudar de titular, o que faz com que os direitos da personalidade sejam alçados a um patamar diferenciado dentro dos direitos privados (artigo 11, do Código Civil). A irrenunciabilidade traduz a idéia de que os direitos personalíssimos não podem ser abdicados. Ninguém deve dispor de sua vida, da sua intimidade, da sua imagem. Razões de ordem pública impõem o reconhecimento dessa característica. A intransmissibilidade, por sua vez, deve ser entendida como limitação excepcional da regra de possibilidade de alteração do sujeito nas relações genéricas de direito privado, ou seja, é intransmissível, na medida em que não se admite a cessão do direito de um sujeito para outro. Para que se possa corretamente entender o que até aqui se disse acerca dos direitos da personalidade, é preciso que se diga que a sua análise deve ocorrer em 2 momentos distintos, no presente caso. Primeiramente, há a possibilidade de relativização do direito à saúde ou à vida, para que se promova o ingresso do infante em experimento científico. Todavia essa relativização somente ocorre em observância ao próprio direito à vida, na medida em que não existem medicamentos capazes de curar a moléstia grave de que padece o sujeito de pesquisa. Assim, mesmo essa relativização deve ser entendida apropriadamente, porquanto o que em verdade se busca é a sobrevida do doente, com a possível descoberta de medicação apta a dar-lhe melhores condições de saúde. Ademais, mesmo essa limitação ao direito de personalidade, em casos como o presente, é admitida pelo Código Civil, se lidos em conjunto os artigos 11 e 15, do diploma legal: “Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária. (...) Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica” (grifei). Portanto é plenamente admitido pela legislação a limitação voluntária no caso “sub judice”, da maneira como ocorreu. Em um segundo momento, contudo, com a descoberta da medicação, vem à luz, em sua plenitude, as características da indisponibilidade, da irrenunciabilidade e da intransmissibilidade dos direitos da personalidade, não podendo a parte, ainda que voluntariamente, abrir mão deles. Com efeito, tirar dos laboratórios denunciados a obrigação de continuar fornecendo a medicação, mesmo após o experimento, é inadmissível, ainda que com isso concorde a parte autora, e mesmo que seja nestes termos redigido o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), justamente porque isso contraria o próprio sentido da relação jurídica que foi estabelecida, documentada no TCLE. O sujeito de pesquisa não pode renunciar ao direito de receber o medicamento, porque isso não é admitido nos direitos da personalidade: “Os direitos da personalidade são, assim, direitos que devem necessariamente permanecer na esfera do próprio titular, e o vínculo que a ele os liga atinge o máximo de intensidade. Na sua maior parte, respeitam ao sujeito pelo simples e único fato de sua qualidade de pessoa, adquirida com o nascimento, continuando todos a ser-lhe inerentes durante toda a vida, mesmo contra a sua vontade, que não tem eficácia jurídica”61[61] (grifei). Regra semelhante à prevista no artigo 11, CC, é determinada no Código Civil Português, o qual, segundo afirma Paulo Mota Pinto, no artigo 81, nº1, prevê que “'a limitação voluntária ao exercício dos direitos da personalidade é nula, 61 [61] 30. DE CUPIS, Adriano. Os direitos da personalidade. Lisboa: Livraria Moraes, 1961, p. se for contrária aos princípios da ordem pública' (e, segundo o artigo 340, nº 2, Código Civil Português, por sua vez, o 'consentimento do lesado não exclui, porém, a ilicitude do acto, quando este for contrário a uma proibição legal ou aos bons costumes'). A regra é, pois, a 'inversa', já que só quando a ordem pública, ou os bons costumes, o exigirem será ineficaz a limitação voluntária do direito, como no artigo 79, nº 1, em relação ao direito de imagem”62[62]. Assim, ainda que a genitora do autor, Kauã, em juízo, fls. 698/701, tenha afirmado que jamais lhe foi prometida a continuidade do tratamento, após o término da pesquisa, tal manifestação é destituída de relevância jurídica, porquanto, ainda que ela tivesse assinado documento abrindo mão do fármaco, tal seria nulo: “J: A gente sabe que nessas circunstâncias a doença ali... E como é que foi apresentado esse protocolo para a senhora, esse protocolo da pesquisa, os termos da pesquisa, o que o laboratório e o Hospital de Clínicas ofereceriam para a senhora e para o Kauã? M: Não, era para ver se daria algum resultado, se ele melhoraria naquelas partes dele, baço, fígado, visão, coração, problemas respiratórios. J: E foi informado para a senhora que dando certo essa medicação ela iria ser fornecida somente por algum tempo? M: Sim, seria por algum tempo e a gente entrou para ver se a gente conseguia pelo Governo... J: Sim, mas quando a senhora firmou o compromisso de pesquisa lá...? M: Sim, seria por um... J: Qual é o tempo que eles...? M: O tempo da pesquisa eram seis meses. J: E quanto tempo mais eles forneceriam medicamento? M: Ah, ele ficou todinho o tempo com medicação. J: Sim, mas quanto tempo o laboratório se comprometeu a fornecer gratuitamente esse medicamento para ele? M: Não me lembro. Eu sei que até... ele fez acho que um mês de medicação pago, o resto de um ano até os três anos ele fez... J: Pelo laboratório. M: Pelo laboratório. J: A senhora depois de entrar em juízo recebeu dinheiro do Estado também para comprar essa medicação? M: Sim, foi aonde foi comprado. J: Quando eles ofereceram esse protocolo de pesquisa para a senhora dizendo que poderia ter uma medicação, que melhoraria a vida dele, etc, informaram a senhora que eles em determinado momento iriam suspender? M: Sim. J: Eles informaram a senhora qual era o custo mensal dessa medicação? M: Ah, é caro. Eu tenho não me... eu tenho tudo em papel, mas era caro. J: Eles já disseram de início que era caro? M: Caríssimo, a medicação. Claro que nós nunca íamos ter condições... J: E alguém orientou a senhora? Dá certo, nós vamos fornecer até determinado momento e depois, o que a senhora vai fazer? Alguém orientou a senhora? M: Não. Não, porque a gente que decidiu, eu e a minha família entendeu, a procurar um advogado e ver se a gente conseguia, porque aquilo só trouxe benefício para o meu filho. Se não trouxesse o benefício é lógico que eu jamais ia continuar uma medicação” (grifei). Nesse sentido, ainda, a lição de Gustavo Tepedino63[63]: “Desse modo, a personalidade humana deve ser considerada antes de tudo como um valor jurídico, insuscetível, pois, de redução a uma 'situação jurídicatipo' ou a um elenco de 'direitos subjetivos típicos', de modo a se protegerem eficaz e efetivamente as múltiplas e renovadas situações em que a pessoa venha a se encontrar, envolta em suas próprias e variadas circunstâncias. Daí resulta que o modelo do direito subjetivo tipificado, adotado pelo Codificador brasileiro, será necessariamente insuficiente para atender às possíveis situações subjetivas em que a personalidade humana reclame tutela jurídica. (...) Em que pese, pois, a extraordinária importância das construções doutrinárias que engendraram os direitos da personalidade, a proteção constitucional da pessoa humana supera a setorização da tutela jurídica (a partir da 62 [62] PINTO, Paulo Mota. Direitos da Personalidade no Código Civil Português e no Novo Código Civil Brasileiro”. Revista da AJURIS, Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, Ano XXXI, nº 96, dezembro de 2004, pp. 406-437. 63 [63] TEPEDINO, Gustavo. Cidadania e Direitos da Personalidade. Artigo publicado na Revista Jurídica: órgão nacional de doutrina, jurisprudência, legislação e crítica judiciária. Ano 51, julho de 2003, nº 309, pp. 07-23. distinção entre os direitos humanos, no âmbito do direito público, e os direitos da personalidade, na órbita do direito privado), bem como a tipificação de situações previamente estipuladas, nas quais pudesse incidir o ordenamento. (...) Procedendo-se, em definitivo, a uma conexão axiológica do tímido elenco de hipóteses-tipo previsto no Código Civil de 2002 ao Texto Constitucional, parece lícito considerar a personalidade não como um novo reduto de poder do indivíduo, no âmbito do qual seria exercida a sua titularidade, mas como valor máximo do ordenamento, modelador da autonomia privada, capaz de submeter toda a atividade econômica a novos critérios de legitimidade. Com efeito, a escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada ao objetivo fundamental de erradicação da pobreza e da marginalização, bem como de redução das desigualdades sociais, juntamente com a previsão do §2º do art. 5º, no sentido da nãoexclusão de quaisquer direitos e garantias, ainda que não expressos, mas decorrentes dos princípios adotados pelo Texto Maior, configuram uma verdadeira 'cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana', tomada como valor máximo pelo ordenamento” (grifei). Consoante leciona Tepedino, assim como o Código Civil se utiliza das chamadas cláusulas gerais, de enunciados genéricos, ou seja, normas que não prescrevem uma certa conduta, mas, simplesmente, definem valores e parâmetros hermenêuticos, o mesmo ocorre com as leis especiais, a exemplo do Estatuto da Cidade, do Código de Defesa do Consumidor e do Estatuto da Criança e do Adolescente, que representam bem a ampla utilização da técnica das cláusulas gerais e de conceitos jurídicos indeterminados associadas a 'normas descritivas de valores'. Assim, se os laboratórios denunciados sabiam, ou deveriam saber, que do outro lado estava paciente gravemente doente, oriundo de família pobre, residente em país em desenvolvimento, por que razão não tomaram as medidas condizentes e assecuratórias da dignidade da pessoa humana? Por que razão a “GENZYME DO BRASIL LTDA.”, a “BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC.” e a “GENZYME CORPORATION” tratam os seres humanos, sujeitos de pesquisa, com desrespeito, pessoas são usadas e depois descartadas, sem qualquer vínculo jurídico ou mesmo moral? Tal atitude causa espécie ao Juízo. Certamente, o que causa receio aos laboratórios denunciados não é ter de arcar com os aproximadamente R$ 70.000,00 dessa demanda, porquanto este é valor irrisório em seu orçamento, na medida em que, como é cediço, na realização de congressos de médicos, patrocinados seguidamente por laboratórios internacionais, são empreendidos valores muito superiores. O que preocupa os laboratórios denunciados é a abertura do precedente, a embasar outras tantas ações judiciais, todavia não é essa a preocupação do Juízo, imparcial, mas sim a realização da justiça no caso concreto. Este Juízo não possui qualquer receio em condenar o Estado do Rio Grande do Sul ao fornecimento de medicamentos, o que, aliás, ocorre diariamente em inúmeras ações que aportam neste Foro, muitas vezes de valor tão ou mais elevado do que o fármaco ora postulado. Ademais, correm junto a esta mesma Vara outras ações em que são postulados medicamentos caríssimos, fabricados, inclusive, pelos laboratórios denunciados (dentre os quais os processos 1815810, 1788827 e 1788868), tendo em um dos processos sido deferida a tutela antecipada, mantida pelo Egrégio Tribunal de Justiça, no qual a criança vem recebendo o fármaco, fabricado pelos mesmos laboratórios denunciados, apesar de seu elevado valor. Assim, o raciocínio que aqui se faz não é eminentemente de justiça social, mas de justiça com base em documentos e elementos vindos aos autos, que indicam a responsabilidade dos laboratórios denunciados pela manutenção do fornecimento da medicação, sem sombra de dúvidas. O parecer vindo aos autos, fls. 838/869, apesar de realizado por professor com titulação acadêmica, não afasta o entendimento até aqui esposado, justamente por vir de encontro ao bom senso e à justiça. O parecer vindo aos autos tem a dizer, em síntese, que as normas brasileiras de regulação da pesquisa clínica possuem natureza puramente ética, não legal ou jurídica, não havendo no Brasil, portanto, obrigação legal do patrocinador do estudo de fornecer aos participantes da pesquisa as drogas pesquisadas após o término do projeto (“Isso, porque, repita-se, não há ato legislativo, e nem mesmo administrativo com força normativa legal, que regule a pesquisa clínica no Brasil” destaquei). Ademais, segundo o parecer – contrariando a opinião praticamente unânime de todos quantos os que militam na área da Bioética e do Biodireito –, as normas brasileiras (Resoluções 196/96 e 251/97, ambas do Conselho Nacional de Saúde) não autorizam sequer a conclusão de que haveria uma obrigação ética do patrocinador de fornecer o medicamento pesquisado gratuitamente e por tempo indeterminado aos participantes da pesquisa, por serem tais normas imprecisas, não delineando corretamente as obrigações éticas que pretendem criar. Ou seja, segundo o parecer não haveria praticamente nenhuma obrigação aos laboratórios internacionais, no período de pós-estudo, com relação aos sujeitos de pesquisa. Isso, sem dúvida, é tratar pessoas com inobservância de sua dignidade, inadmissível, portanto. O parecer chega a afirmar, ainda, que o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) não consubstancia um contrato, nos termos em que este é considerado de uma maneira geral, limitando-se meramente a documentar a anuência do paciente, razão pela qual, segundo o parecerista, as obrigações e direitos das partes envolvidas em determinado projeto de pesquisa não podem ser deduzidas exclusivamente do TCLE. Por fim, o parecer sustenta que a afirmação constante no TCLE, de que “será oferecida a continuação do tratamento” não quer dizer bem isso, pois queria se referir, em verdade, à inclusão de Kauã em “programa caritativo” (ICAP). O que o parecer quer dizer, portanto, em resumo, é que não há norma no Brasil que regule a matéria, não havendo qualquer obrigação por parte de laboratórios internacionais que venham para cá, realizem os seus experimentos, e, após, obtido o seu intento, de descoberta/desenvolvimento de novo fármaco, deixem os seus doentes a sua própria (má)sorte. A alegada ausência de lei contraria o espírito da própria lei, que é o de limitar a atuação humana a padrões aceitáveis e razoáveis. Ora, se uma pessoa, por exemplo, ao dar, gratuitamente, uma carona para outrem, em seu veículo, vier a sofrer acidente, deverá arcar com os danos sofridos pelo carona, o que dizer de laboratório que realiza pesquisa em seres humanos, principalmente quando o sujeito de pesquisa, como no caso dos autos, vem a falecer, apesar da participação no experimento (havendo fortes indícios de que foi justamente pela sua participação na pesquisa é que sobreveio o óbito)?: “EMENTA: RESPONSABILIDADE CIVIL EM ACIDENTE DE TRÂNSITO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. CARONA. ESTRADA DE SAIBRO. Motorista do veículo em que o autor vinha de carona que ao fazer uma curva em estrada de saibro perdeu o controle da direção do veículo e tombou contra um barranco. Devida indenização por danos morais. PRIMEIRA APELAÇÃO IMPROVIDA. SEGUNDA APELAÇÃO PROVIDA. (Apelação Cível Nº 70019529700, Décima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Bayard Ney de Freitas Barcellos, Julgado em 28/11/2007)”. Tais idéias não se coadunam, sendo mesmo rechaçados, pelos princípios basilares da Constituição Cidadã, que tem na dignidade da pessoa humana o seu alicerce primeiro. O único ponto em que o Juízo está de acordo com o parecer exarado é quando este afirma que o TCLE não deve ser entendido como um contrato comum. De fato, o TCLE é muito mais do que um contrato; é um documento em que a boa-fé, a função social e a dignidade da pessoa humana estão potencializadas, devendo ser estritamente observadas, tanto em sua conclusão, execução e pósexecução. O contrato, em definição leiga, seria o “acordo entre duas ou mais pessoas que transferem entre si algum direito ou se sujeitam a alguma obrigação, sendo também o documento resultante desse acordo”64[64]. Quando da contratação, visando à realização da pesquisa, os laboratórios denunciados procuraram pacientes interessados em participar. Encontrou, no Brasil, pessoas doentes, portadores da moléstia grave, oferecendolhes a oportunidade de participar em pesquisa que tinha, como principal objetivo e esperança, a descoberta do único fármaco capaz de controlar os efeitos da doença rara, dando ao paciente sobrevida (duração maior de tempo de vida), com qualidade. O doente, autor, Kauã, e seus familiares viram ali, naquela oportunidade, a chance de encontrar, se não a cura, ao menos a esperança de controle da doença. Todavia os laboratórios denunciados, com má-fé, que não pode ser chancelada pelo Judiciário, advertem: se descoberta a droga, o sujeito de pesquisa terá de buscar do Estado o pagamento da medicação, porquanto nós não nos obrigamos com o fornecimento pós-estudo; o único direito do sujeito de pesquisa, ao firmar o TCLE, é o de arriscar a sua vida no experimento, nada mais. O TCLE deve ser entendido justamente como um contrato potencializado, em razão da fragilidade de seu objeto e da parte contratante. O que se está a tratar nesse documento é a vida humana, com a sensibilidade e delicadeza que lhe são inerentes. Não são animais ou cobaias, portanto não podem ser tratados como tal. Ademais, não se pode querer confundir, sob o manto de argumento aparentemente legítimo, a remuneração do sujeito de pesquisa com o acesso deste ao fármaco descoberto. São coisas bastante distintas, inconfundíveis, portanto. O objetivo único do paciente, ao aceitar sua participação, é auxiliar os pesquisadores na descoberta/desenvolvimento de medicação para a sua saúde. Ele não buscou ali uma forma de obter lucro, mas apenas de auxiliar no desenvolvimento de droga que poderia salvar-lhe a vida. E, descoberto o medicamento, seria legítimo deixar de alcançar-lhe o fármaco, sob o manto do falso argumento de que o fornecimento pósestudo seria remuneração? Obviamente não. Mais do que um contrato de direito civil, mais do que um contrato de direito do consumidor – ambos com devidas e justas garantias, como acima visto –, o TCLE documenta relação jurídica que versa sobre a vida e a saúde da pessoa humana, portanto maiores ainda devem ser os cuidados com o sujeito de pesquisa nesse tipo de relação jurídica. A interpretação que até aqui se faz, é preciso que se diga, de forma alguma, privilegia a insegurança jurídica, mas antes busca o equilíbrio adequado entre os dois objetivos maiores que o Direito deve conciliar, quais sejam, a segurança e a justiça. Com efeito, não se está a impedir a realização de pesquisas 64 [64] Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. 3ª edição, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. científicas, muito úteis e necessárias para o avanço da humanidade, todavia, como a história e o bom sendo demonstram, à exaustão, tais não podem ocorrer com desrespeito à pessoa humana, não podem ocorrer sem limitações. Nesse sentido, Arnoldo Wald65[65]: “Se o Direito tem a dupla finalidade de garantir tanto a justiça quanto a segurança, é preciso encontrar o justo equilíbrio entre as duas aspirações, sob pena de criar um mundo justo, mas inviável, ou uma sociedade eficiente, mas injusta, quando é preciso conciliar a justiça e a eficiência. Não devem prevalecer nem o excesso de conservadorismo, que impede o desenvolvimento da sociedade, nem o radicalismo destruidor, que não assegura a continuidade das instituições. O momento é de reflexão e construção para o jurista que, abandonando o absolutismo passado, deve relativizar as soluções, tendo em conta tanto os valores éticos quanto as realidades econômicas e sociais. Entre princípios antagônicos, em um mundo dominado pela teoria da relatividade, cabe adotar, também no campo do Direito, o que alguns juristas passaram a chamar os princípios de geometria variável, ou seja, o equilíbrio entre justiça e segurança, com a prevalência ética mas sem desconhecer a economia e os seus imperativos”. Certamente existem contratos novos, que surgiram após a idealização do novo Código Civil, como é o caso do TCLE firmado entre laboratórios denunciados e o sujeito de pesquisa, autor da demanda, Kauã, restando ao jurista e aos legisladores reparar-lhe as deficiências (que correspondem, na verdade, às humanas e sociais limitações), em suas respectivas áreas de atuação, promovendo, ao longo da sua vigência, as devidas atualizações, tal como se tem feito com o Código de Processo Civil, seja no próprio texto legal seja por meio da jurisprudência, dos intérpretes e da doutrina, na árdua tarefa de manter sempre vivo o texto legal, adequado aos valores nele inseridos, a despeito das mudanças ocorridas no mundo dos fatos e das relações sociais e individuais. Esse foi sempre, aliás, o caminho para evitar-se o envelhecimento do ordenamento jurídico, como afirma Adriana Mandim Theodoro de Mello, e que possibilitou também a vigência prolongada do Código de 1916, tornando-o um instrumento eficiente na realização da justiça66[66]. De ressaltar-se, também, que, em nenhum momento ao longo do parecer, fez-se referência à função social do contrato, prevista no artigo 421, do Código Civil, que representa evidente limitação da liberdade de contratar. Ademais, há a obrigação de os contratantes agirem com probidade e boa-fé, artigo 422, CC, portanto como se pode falar em ausência de obrigação, sequer ética, dos laboratórios denunciados para com o sujeito de pesquisa, Kauã? Nota-se evidente a intenção do legislador brasileiro em abrandar a máxima do “pacta sunt servanda”, permitindo que permeiem o direito privado noções e valores tipicamente públicos: dirigismo estatal, função social, publicização das relações privadas... O que o parecer defende é a vigência de um contrato leonino, ou seja, aquele em que uma das partes leva todas as vantagens, ou a maioria delas, em detrimento da outra(s) parte(s), o que é de toda maneira rechaçado pelo ordem jurídica nacional. A regulação das relações contratuais constitui relevante instrumento de política econômica, monetária e financeira, justificando-se em face dos interesses supremos do Estado na condução do governo, na distribuição de riquezas e na 65 [65] WALD, Arnold. Um novo direito para a nova economia: a evolução dos contratos e o Código Civil, Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, v. 12, jl/ago. 2001, p. 54. 66 [66] DE MELLO, Adriana Mandim Theodoro. A Função Social do Contrato e o Princípio da Boa-fé no Novo Código Civil Brasileiro. Artigo publicado na Revista Jurídica, ano 50, abril de 2002, nº 294, pp. 32-47. realização de justiça social, e, mesmo, na preservação e defesa da soberania nacional. Assim o contrato, enquanto direito subjetivo e individual, deve ser manejado de forma a não lesar interesses superiores da sociedade, não obstante, como já se disse, a intervenção estatal, como legislador e como juiz, deve ser sempre fundada, responsável e excepcional. Fora tudo o que já se disse, a legislação civil repele o abuso de direito, artigo 187, Código Civil. Ademais, deve-se destacar, o dever de guardar conduta proba e de boa-fé nas diversas fases de formação e execução do contrato não representa inovação no direito dos contratos. A novidade, em verdade, restringe-se a sua inclusão no texto legal, pois antes era tido como princípio implícito no ordenamento jurídico, haja vista que dele tratavam os diversos doutrinadores em obras já clássicas67[67]. Consoante observa Adriana Mandim Theodoro de Mello, na obra citada, “A compreensão da relação obrigacional como um processo dinâmico, complexo, integrado por fatores que decorrem não só da lei e da declaração da vontade, mas também de fatores externos atinentes a princípios e 'standards' de cunho social e constitucional, e que se destina a uma finalidade, foi a premissa que permitiu o desenvolvimento da noção da boa-fé objetiva, como limite ao exercício dos direitos subjetivos, tidos antes como absolutos e imutáveis. A par da imposição de limites à liberdade contratual, a boa-fé surgiu também como fonte de direitos e deveres secundários, regedores da conduta das partes antes, durante e depois da vigência do contrato. Ora, se o contrato encerra, substancialmente, uma operação econômica que se desenvolve no tempo e com o objetivo de satisfazer os legítimos e razoáveis interesses dos contratantes, todas as condutas que,, independentemente de não terem sido impostas pela lei ou pelo contrato, são indispensáveis ao alcance desse fim social e econômico justificam-se pelo princípio da boa-fé. Nesta ordem de idéias, tem-se a boa-fé objetiva com a regra de conduta que se funda no dever de comportar-se como um bom pai de família, como um homem probo, leal, que respeita os interesses dos demais membros da sociedade. No âmbito do contrato, o princípio da boa-fé sustenta o dever de as partes agirem conforme a economia e a finalidade do contrato, de modo a conservar o equilíbrio substancial e funcional entre as obrigações correspectivas que formaram o sinalagma contratual. Por outro lado, é também a boa-fé que impede o exercício arbitrário do direito de estipular livremente as cláusulas e condições do contrato” (grifei). Assim, chancelar a conduta dos laboratórios denunciados implicará retrocesso de mais de um século na ciência jurídica, como se não existissem princípios de Bioética, estudos de Biodireito e avanços nas áreas do Direito Civil, no Direito do Consumidor, no Direito Constitucional e no Direito da Criança e do Adolescente. Quando uma pessoa aceita participar de um experimento, na forma como se deu, o mínimo que se pode garantir a ela é o acesso ao medicamento descoberto, enquanto esse se fizer necessário: nisto consiste a manutenção do equilíbrio substancial e funcional do contrato, preservando-se o sinalagma presente na formação do acordo. Se na relação contratual as partes se movem por interesses opostos, não podem persegui-los com astúcia e deslealdade, como ora procedem os laboratórios denunciados. 67 [67] GOMES, Orlando. Contratos, Rio de Janeiro: Forense, 2001, n. 14, p. 42. Conforme Arnaldo Rizzardo: “As partes são obrigadas a dirigir a manifestação de vontade dentro dos interesses que as levaram a se aproximarem, de forma clara e autêntica, sem o uso de subterfúgios ou intenções outras que não as expressas no instrumento formalizado. A segurança das relações jurídicas depende, em grande parte, da lealdade e da confiança recíproca”68[68] (grifei). De fato, no TCLE está assegurada a manutenção do fornecimento do fármaco após o término da pesquisa, não podendo agora, deslealmente, os laboratórios denunciados furtarem-se a esse dever. Ou seja, o princípio da boa-fé impõe ao indivíduo o dever de conduta honesta, reta, leal, com, consoante leciona Judith Martins-Costa, “consideração para com os interesses do 'alter', visto como um membro do conjunto social que é juridicamente tutelado. Aí se insere a consideração para com as expectativas legitimamente geradas, pela prórpria conduta, nos demais membros da comunidade, especialmente no outro pólo da relação obrigacional”69[69]. A boa-fé impõe ao juiz o dever de “tornar concreto o mandamento de respeito à recíproca confiança incumbente às partes contratantes, por forma a não permitir que o contrato atinja finalidade oposta ou divergente daquela para a qual foi criado”70[70], e que, à vista do seu escopo socioeconômico, seria razoável e licitamente esperada pelas partes. Ao recorrer à boa-fé, portanto, o juiz estará, simplesmente, conferindo ao ajuste as exatas dimensões que a operação econômica por ele formada reclama, segundo a sua função social e econômica e as legítimas expectativas das partes retratadas em um sinalagma (uma relação que possui prestações opostas e equilibradas). Qual o equilíbrio existente na relação entre laboratório e sujeito de pesquisa, caso a obrigação do primeiro limite-se em apenas realizar a pesquisa? Nenhum. Diga-se que, com a recepção do princípio da boa-fé objetiva, a interpretação dos contratos deixa de ser a busca da verdadeira vontade declarada pelos contratantes para se tornar, nas palavras de Karl Larenz, a “interpretação da regulação objetiva criada com o contrato”, ou seja, a descoberta “do sentido total da regulação”71[71], respeitando-se tanto a sua finalidade econômica quanto a sua função social. Cumpre ressaltar, ainda, dentro da idéia de função social do contrato e do princípio da boa-fé, o papel mais relevante que tais hodiernamente representam: o de fonte de deveres acessórios ou laterais que compõe a relação obrigacional conjuntamente com os clássicos deveres principais e secundários. Mota Pinto define os deveres laterais como “deveres de adoção de determinados comportamentos, impostos pela boa-fé em vista do fim do contrato (...) dada a relação de confiança que o contrato fundamenta, comportamentos variáveis com as circunstâncias concretas da situação”72[72]. Ficam assim os contratantes impedidos de empreenderem condutas 68 [68] RIZZARDO, Arnaldo. Contratos, v. I, n.8.6, Rio de Janeiro: Aide, 1988, p. 45. 69 [69] MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 412. 70 [70] MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 437. 71 [71] LARENZ, Karl. Derecho civil: parte general, trad. Miguel Izquierdo y MaciasPicavea, Madri: Edersa, 1978, n. 584, p. 744. 72 [72] PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria geral do direito civil, 3ª edição, Coimbra: Almedina, 1988, p. 281. que não se justifiquem em face do caráter finalístico do processo que se desenrola no vínculo contratual, e que se tornem empecilhos ao alcance dos fins almejados não só pelas partes, mas pelo conjunto social. Judith Martins-Costa seleciona exemplos de deveres acessórios de conduta que se impõem aos contratantes, independentemente de previsão contratual específica e respaldo no texto explícito da lei: “a) os 'deveres de cuidado, previdência e segurança', como o dever do depositário de não apenas guardar a coisa, mas também de bem acondicionar o objeto deixado em depósito; b) os 'deveres de aviso e esclarecimento', como o do advogado, de aconselhar o seu cliente acerca das melhores possibilidades de cada via judicial passível de escolha para a satisfação de seu 'desideratum', o do consultor financeiro, de avisar a contraparte sobre os riscos que corre, ou o do médico, de esclarecer ao paciente sobre a relação custo/benefício do tratamento escolhido, ou dos efeitos colaterais do medicamento indicado, ou ainda, na fase pré-contratual, o do sujeito que entre em negociações, de avisar o futuro contratante sobre os fatos que podem ter relevo na formação da declaração negocial; c) 'os deveres de informação', de exponencial relevância no âmbito das relações jurídicas de consumo, seja por expressa disposição legal (CDC, arts. 12, 'in fine', 18, 20, 30 e 31, entre outros), seja em atenção ao mandamento da boa-fé objetiva; d) o 'dever de prestar contas', que incumbe aos gestores e mandatários, em sentido amplo; e) os 'deveres de colaboração e cooperação', como o de colaborar para o correto adimplemento da prestação principal, ao qual se liga, pela negativa, o de não dificultar o pagamento, por parte do devedor; f) os 'deveres de proteção e cuidado com a pessoa e o patrimônio da contraparte', como, v.g., dever do proprietário de uma sala de espetáculos ou de um estabelecimento comercial de planejar arquitetonicamente o prédio, a fim de diminuir os riscos de acidentes; g) 'os deveres de omissão e segredo', como o dever de guardar sigilo sobre atos ou fatos dos quais se teve conhecimento em razão do contrato ou de negociações preliminares, pagamento por parte do devedor, etc.” 73 [73] (grifei). Acerca da função social do contrato, para que melhor se compreenda, ainda essencial é transcrever extrato a lição de Álvaro Villaça Azevedo: “Por esse princípio, os contratos desempenham relevante papel na sociedade, nacional e internacionalmente considerada. Pelos contratos, os homens devem compreender-se e respeitarse, para que encontrem um meio de entendimento e de negociação sadia de seus interesses e não um meio de opressão. Para que esse espírito de fraternidade nos contratos se preserve, no âmbito do direito interno, têm os Estados modernos lançado mão de normas cogentes, interferindo nas contratações, com sua vontade soberana, para evitar lesões. A intervenção do Estado, no âmbito contratual, abriu as portas a um novo tempo, em que se mitigaram os malefícios do liberalismo jurídico, com a proteção social ao mais fraco. (...) O novo Código Civil não ficou à margem dessa indispensável necessidade de integrar o contrato na sociedade, como meio de realizar os fins sociais, pois determinou que a liberdade contratual (embora se refira equivocadamente à liberdade de contratar) deve ser 'exercida em razão e nos limites da função social do contrato'. Esse dispositivo (art. 421) alarga, ainda mais, a capacidade do juiz para proteger o mais fraco, na contratação, que, por exemplo, possa estar sofrendo pressão econômica ou os efeitos maléficos de cláusulas abusivas ou de publicidade enganosa. Como visto, esse dispositivo legal (art. 421) não cogita da liberdade de contratar, de realizar, materialmente, o contrato, mas da liberdade contratual, que visa a proteger o entabulamento negocial, a manifestação contratual em seu 73 [73] MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 439. conteúdo. Percebe-se que o novo Código Civil retrata boa orientação ao referirse à função social do contrato, pois que, embora exista este princípio, reconhecido pela Doutrina, às vezes, ao aplicar da lei, são feridos valores sociais insubstituíveis. Aqui, mais particularizada a recomendação, segundo a qual o juiz, ao aplicar a lei ao caso concreto, deve ater-se aos fins sociais que a mesma se dirige (art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil)” 74[74] (grifei). Neste julgamento, não se está preocupando em fazer justiça social, ou assistencial; igualmente não se está considerando a realização de justiça distributiva, ou redistributiva – embora, muitas vezes, impropriamente, seja o Judiciário chamado a decidir acerca de questões assim: fornecimento de medicamentos, vacinas, insulinas, internações hospitalares, internações psiquiátricas, fornecimento de fraldas, asseguramento de vaga em escolas públicas etc., às expensas dos entes públicos. Em verdade, o que se analisou até agora foi o caso concreto, com base no arcabouço de normas conformadoras do ordenamento jurídico brasileiro, na busca da justiça feita, portanto, por meio da aplicação da lei, em atenção aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum (artigo 5º, Lei de Introdução ao Código Civil). Muito se falou acerca da aplicação da analogia, todavia não se pode deixar de atentar para os princípios gerais de direito, previstos pelo artigo 4º, da LICC, e pelo artigo 126, do CPC. Falhando a analogia – o que, cumpre ressaltar, não é o caso do presente feito – o magistrado supre a deficiência da ordem jurídica, adotando os “princípios gerais de direito”, que são cânones que não foram ditados, explicitamente, pelo elaborador da norma, mas que estão contidos de forma imanente no ordenamento jurídico75[75]. Tais princípios não têm existência própria, estando ínsitos no sistema, competindo ao juiz descobri-los, lhes dando força e vida. Além disso, servem os princípios gerais de direito de base para preencher lacunas, não podendo se opor, contudo, às disposições do ordenamento jurídico, que deve se apresentar como um “organismo” lógico, capaz de conter uma solução segura para o caso duvidoso, evitando-se, com isso, que o emprego dos princípios seja arbitrário ou conforme apenas as aspirações, valores ou interesses do órgão judicante. Destarte, em resumo, também por esta via a responsabilidade dos laboratórios denunciados é evidente, porquanto, como visto à saciedade ao longo da fundamentação, no choque, ao menos aparente, de princípios como o da liberdade de pesquisa científica, o da livre iniciativa, o da função social da propriedade e do contrato, o da dignidade da pessoa humana etc., concluiu-se que, não se afastando quaisquer desses princípios, deve haver a sua acomodação conjunta, com observância daquele que maximamente representa o interesse da ordem jurídica brasileira, que é o da dignidade da pessoa humana. Com efeito, não se está, como dito à exaustão, a impedir a pesquisa científica, a liberdade de investigação ou a livre iniciativa, todavia entende-se que tais princípios devem observar a dignidade da pessoa humana em sua atuação, sendo por ela limitados. Como se disse, se o TCLE deve ser entendido como um contrato potencializado, em função da fragilidade de seu objeto, da disparidade de suas 74 [74] AZEVEDO, Álvaro Villaça. O novo Código Civil Brasileiro: tramitação; função social do contrato; boa-fé objetiva; teoria da imprevisão; e, em especial, onerosidade excessiva ('laesio enormis'). Artigo publicado na Revista Jurídica, ano 51, junho de 2003, nº 308, pp. 07-25. 75 [75] DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro Interpretada, 12ª edição, São Paulo, Saraiva, 2007, p. 129. partes, da sensibilidade do que está em jogo, o que dizer da dignidade da pessoa humana, justamente quando se está a tratar de criança doente? Se na aplicação da lei, deve o juiz atender aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum, deve-se buscar quais são esses elementos, no caso “sub judice”, a partir da legislação essencialmente aplicada ao caso, qual seja, o Estatuto da Criança e do Adolescente. O ECA garante às crianças proteção integral, conforme leciona Paolo Vercelone76[76], Juiz de Direito na Itália, ao comentar o artigo 3º, do Estatuto: “Os princípios afirmados no artigo são três: a) crianças e adolescentes gozam de todos os direitos fundamentais assegurados a toda pessoa humana; b) eles têm direito, 'além disso', à proteção integral que é a eles atribuída por este Estatuto; c) a eles são garantidos também todos os instrumentos necessários para assegurar seu desenvolvimento físico, mental, moral e espiritual, em condições de liberdade e dignidade. (...) Deve-se entender a proteção integral como o conjunto de direitos que são próprios apenas dos cidadãos imaturos; estes direitos, diferentemente daqueles fundamentais reconhecidos a todos os cidadãos, concretizam-se em pretensões nem tanto em relação a um comportamento negativo (abster-se da violação daqueles direitos) quanto a um comportamento positivo por parte da autoridade pública e dos outros cidadãos, de regra dos adultos encarregados de assegurar esta proteção especial. Em forçada proteção integral, crianças e adolescentes têm o direito de que os adultos 'façam coisas em favor deles'. (...) Trata-se de uma situação real baseada em uma condição existencial ineliminável: o filhote humano – e eu falo, aqui, essencialmente, da criança – é incapaz de crescer por si; durante um tempo muito mais longo do que aquele que outras espécies não humanas, ele precisa de adultos que o alimentem, o criem, o eduquem, e estes adultos, inevitavelmente, têm instrumentos de poder, de autoridade, em relação aos pequenos. Isto vale não apenas no que tange à relação entre filhos menores e pais, os primeiros e mais diretos protetores, como, também na relação entre crianças e outros adultos a qualquer título encarregados da proteção. (...) Por conseguinte, os adultos responsáveis – não só os pais, mas também, e sobretudo, aqueles que tomam decisões coletivas que envolvem milhões de crianças (administradores, políticos e aqueles que detêm o poder econômico) – são investidos da responsabilidade de exercitar os direitos fundamentais das crianças em seu lugar. O comportamento destes adultos deverá, portanto, ser avaliado, política mas também juridicamente, por sua conformidade aos verdadeiros interesses da criança, por sua adequação à função de representar aquela categoria especial de cidadãos. Esta também é uma 'declaração programática' do Estatuto, a qual poderá e deverá ser levada em conta pelos operadores do Direito; talvez uma das mais importantes, se este souberem fazer bom uso dela, na prática” (grifei). O artigo 4º, do ECA, estabelece que são deveres da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar os direitos das crianças e dos adolescentes e dar-lhes proteção essencial. Para Dalmo de Abreu Dallari77[77], no que diz respeito à responsabilidade da sociedade em geral, o ECA ressalta a necessidade de existência da solidariedade humana: 76 [76] Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. Comentários Jurídicos e Sociais. Coordenador: Munir Cury, 6ª edição, 2003, pp. 32-35. 77 [77] Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. Comentários Jurídicos e Sociais. Coordenador: Munir Cury, 6ª edição, 2003, pp. 38-44. “Como as crianças e os adolescentes são mais dependentes e mais vulneráveis a todas as formas de violência, é justo que toda a sociedade seja legalmente responsável por eles. Além de ser um dever moral, é da conveniência da sociedade assumir essa responsabilidade, para que a falta de apoio não seja fator de discriminações e desajustes, que, por sua vez, levarão à prática de atos antisociais. (...) Cada uma dessas entidades [governantes, família, comunidade e sociedade em geral], no âmbito de suas respectivas atribuições e no uso de seus recursos, está legalmente obrigada a colocar entre seus objetivos preferenciais os cuidados das crianças e adolescentes. A prioridade aí prevista tem um objetivo prático, que é a concretização de direitos enumerados no próprio art. 4º do Estatuto, e que são os seguintes: direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação (...)”. Os laboratórios internacionais denunciados não observaram a realidade legislativa brasileira, no que diz respeito à tutela de interesses e direitos de crianças e adolescentes, não colocando em seus objetivos preferenciais o cuidado da criança sujeito de pesquisa, contrariando frontalmente, ainda, o previsto no artigo 5º, do ECA: “Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”. Os laboratórios denunciados, ao entabularem relação com a criança, autor, Kauã, acabaram por explorar o infante, não lhe dando qualquer contraprestação, desrespeitando gravemente a legislação pertinente. Essa é, de fato, a interpretação dada à pesquisa levada a efeito, por determinação do próprio Estatuto, em seu artigo 6º: “Art. 6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento”. Com efeito, tal artigo é a chave, do ponto de vista teleológico, para a leitura e a interpretação do ECA, em combinação com os indicadores dos artigos antecedentes, bem como com o artigo 227, da Constituição Federal. Outros dispositivos legais do Estatuto merecem transcrição: “Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis. (...) Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais. Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”. Pelo Princípio da Prioridade Absoluta, é bom que se diga, segundo a autora Andréa Rodrigues Amin78[78], é estabelecida primazia em favor das crianças 78 [78] Curso de Direito da Criança e do Adolescente, Aspectos Teóricos e Práticos, 3ª e adolescentes em todas as esferas de interesses. Seja no campo judicial, extrajudicial, administrativo, social ou familiar, o interesse infanto-juvenil deve preponderar. Não comporta indagações ou ponderações sobre o interesse a tutelar em primeiro lugar, já que a escolha foi realizada pela nação através do legislador constituinte. Para a autora Andréa Amin, à primeira vista, pode parecer injusto, mas aqui se tratou de ponderar interesses. O que seria mais relevante para a nação brasileira. Se pensarmos que o Brasil é “o país do futuro” – frase de efeito ouvida desde a década de 70 – e que o futuro depende de nossas crianças e jovens, se torna razoável e até acertada a opção do legislador constituinte. Sem dúvida, diante de tudo o que se disse, a responsabilidade dos laboratórios denunciados, pela manutenção do fornecimento da medicação mesmo após o término do experimento, é inconteste, principalmente em se tratando de criança aliciada como sujeito de pesquisa. Raciocínio contrário permitirá que à criança seja dispensado tratamento desumano. Os laboratórios denunciados, envolvidos no experimento sabem, ou deveriam saber, que não é assim que se procede. Ao buscar precedente com relação à matéria ora em debate, este Juízo deparou-se com medida antecedente relevante a ser considerada. De fato, o Estado brasileiro, aí compreendidos o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, recentemente, tem-se deparado com questões envolvendo medicamentos, principalmente no que diz respeito ao HIV. Guardadas as devidas proporções, o que ocorreu com relação aos remédios anti-AIDS demonstra o pensamento dominante a ser seguido pelo Estado quando entram em conflito os interesses de laboratório internacional e de doentes brasileiros, sem que se possa chegar à decisão justa por meio do diálogo: a quebra de patentes. Com efeito, em mais de uma ocasião houve a quebra de patentes de medicamentos anti-retrovirais, pelo Ministério da Saúde, garantindo-se assim, em situações-limite, a prevalência da dignidade da pessoa humana e de sua vida e saúde diante de interesses outros, menos relevantes em comparação. A presente decisão não vai a tanto, muito longe disso, aliás, pretendendo tão-somente que o laboratório se responsabilize por seus sujeitos de pesquisa, porquanto, ao aliciá-los para a participação no experimento, estabelece um vínculo perene, que deve ser mantido enquanto se fizer necessário pelo paciente sujeito de pesquisa. Não se questiona nestes autos se a decisão de quebra de patentes foi correta, na medida em que se admite a existência de posições divergentes sobre o assunto, todavia é inegável que jamais se ouviu falar que um dos laboratórios que teve a patente de medicamento quebrada foi à falência. Por outro lado, o que é de conhecimento público e notório é a excelência do tratamento de AIDS alcançado pelo Brasil, regra geral, aos seus pacientes, muito em função da postura firme e decidida do Estado diante de argumentos destituídos de razoabilidade, embasados tão-somente em interesses comerciais e econômicos menos nobres. Há que se ter cuidado com raciocínios pretensamente jurídicos, que acabam por criar teorias para defender idéias que contrariam, frontalmente, o ordenamento jurídico e o bom sendo como um todo. Conforme Alfredo Colmo, “o jurista que não sabe mais do que o Direito nem o direito sabe”79[79]. Oportunas as reflexões a respeito, lançadas na Revista Multijuris80[80], edição, editora Lumen Juris, 2008, p. 20. 79 [79] Caderno de Literatura da AJURIS, Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, Ano XI, nº 15, dezembro de 2007, p. 05. 80 [80] Multijuris, Primeiro Grau em Ação, revista da Associação dos Juízes do Rio da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul: “Muito menos que bíblico, porque circunscrito a fatos determinados e não a uma existência, o julgamento judicial, ainda assim, encerra imensa responsabilidade para quem o profere. Às vezes uma simples decisão liminar produz efeitos imediatos e irreversíveis, como a de uma prisão, por exemplo. O Juiz com sensibilidade mais à flor da pele sofre muito diante das misérias humanas que chegam ao foro diariamente e vão cair na sua mesa de trabalho. É um duro aprendizado e não há couraça que o impeça de sofrer com essa realidade. A capacidade de se colocar no lugar das partes é importante para quem tem o dever de julgar. Do contrário, bastaria construir um robô para decidir as causas. Em países como o Brasil, o que se apresenta na maioria dos processos é a realidade crua e sem perspectiva de uma população submetida a um sistema fundado na corrupção, na incompetência dos governantes, na ausência de valores, na desigualdade social, no desrespeito aos direitos humanos, à lei, ao contrato, na absoluta falta de senso de cidadania coletivo” (grifei). Preciosa a lição, ainda, do magistrado Márcio Oliveira Puggina81[81], em seu artigo “Deontologia, magistratura e alienação”: “Alienação e trabalho alienado, pois significam a expropriação da força de trabalho (física e intelectual) do operário e a sua inserção em um sistema de produção. Mesmo os trabalhos mais intelectualizados aos quais o sistema permite, porque necessita, uma certa criticidade ou criatividade sofrem as limitações inerentes ao trabalho alienado, à medida em que a margem de liberdade é estabelecida pelo próprio sistema. Fora dos limites permitidos, toda liberdade será castigada, à medida em que se pode voltar contra o sistema para o qual foi alienado. O trabalho jurisdicional, como qualquer outro, também pode ser alienado, ou não. É alienado, quando se insere a serviço de um sistema econômico e político mantendo-o e reproduzindo-o. É alienado, quando o Juiz, a pretexto de cumprir a lei, abre mão da sua capacidade crítica. É trabalho alienado sempre que, a pretexto de cumprir a lei, a sentença não opera a justiça, embora o justo corresponda ao Direito e às verdades interiores de quem a prolata. A sentença que não corresponder ao senso interno de justiça do Juiz é uma sentença despersonalizada, sem identidade própria. A sentença assim proferida não 'tem a cara' de quem a subscreve, mas a cara do sistema que é, na verdade, de quem a dita. O trabalho jurisdicional não alienado e as formas de exercê-lo serão temas a serem abordados adiante. Por ora, basta a constatação de que, infelizmente, significativa parcela da jurisdição prestada parte do pressuposto de que ao Juiz não é dado considerar a justiça ou injustiça da lei; é a idéia do Juiz escravo da lei. Com freqüência, encontra-se em sentenças e acórdãos expressões reconhecendo a injustiça material da decisão, mas justificam-na (como se possível fosse 'justificar a injustiça') com afirmações como: '... mas, infelizmente, a lei...', etc.). Trata-se, sem dúvida, de uma triste sentença, de um triste Juiz que alienou o seu trabalho e a sua consciência” (grifei). José Afonso da Silva82[82], igualmente, ao falar do “Princípio da Grande do Sul, Ano II, número 3, junho de 2007, pp. 94-97. Excerto do texto “Um Abraço”, de autoria do Juiz de Direito Jorge Adelar Finatto. 81 [81] PUGGINA, Márcio Oliveira. Deontologia, magistratura e alienação. Revista da AJURIS: Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, v. 20, nº 59, pp. 169-198, nov. 1993. 82 [82] SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição, 3ª edição, 2007, Proteção Judiciária”, também chamado “Princípio da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional”, comentando o artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, afirma que tal princípio constitui a principal garantia dos direitos subjetivos: “O Poder Judiciário aprecia emitindo juízo de valor. 'Apreciar' (de 'apreço', valor, dar valor) significa definir o valor de alguma coisa. Quando isso é feito pelo Judiciário, o que se tem é um julgamento, pelo qual se decide o sentido do objeto sob apreciação. Logo, a apreciação pelo Poder Judiciário da lesão ou ameaça de direito se traduz numa decisão que define se houve ou não a lesão do direito, se há ou não a ameaça a direito alegada pela pessoa ou coletividade que recorreu ao Poder Judiciário. É no signo 'apreciação' que se centra a garantia individual consubstanciada na norma constitucional. Bem o lembra Cármem Lúcia Antunes Rocha: “A 'apreciação' não é mera referência constitucional, é direito fundamental individual e coletivo”. Por isso, segundo ela, a “apreciação da lesão ou ameaça a direito alegada pela pessoa e encaminhada ao Poder Judiciário não se aperfeiçoa pela única repetição de uma decisão, independentemente do exame e julgamento de razões e fundamentos alegados pela parte”. Isso ela o disse para mostrar que a súmula vinculante tolheria a apreciação do magistrado no sentido largo previsto constitucionalmente. É preciso acrescentar, ainda, que o 'direito de acessoa à Justiça', consubstanciado no dispositivo em comentário, não pode nem deve significar apenas o direito formal de invocar a jurisdição, mas o 'direito a uma decisão justa'. Não fora assim, aquela 'apreciação' seria vazia de conteúdo valorativo” (grifei). Nesse sentido, também, sábia a lição dos autores Carlos Alberto Menezes Direito e Sérgio Cavalieri Filho83[83], ao discorrerem acerca dos desafios colocados pela necessidade de interpretação de uma nova legislação, a partir da entrada em vigor do Código Civil atual: “Para tão importante momento, revela-se oportuna a sábia advertência de Mário Moacyr Porto: 'A lei não esgota o direito assim como a partitura não esgota a música'. Com efeito, a excelência da partitura e a genialidade do compositor ficarão prejudicados se não houver talento do intérprete. Assim também haverá de ser com o novo Código Civil, por mais avançado que ele se apresente, por mais geniais que tenham sido os seus autores. Os efeitos que ele vai produzir e a eficácia que haverá de ter ao longo de século XXI dependerão do talento dos seus intérpretes” (grifei). Cândido Rangel Dinamarco, obra citada, pp. 411-413, ensina a respeito do julgamento da denunciação da lide: “A maior das duas utilidades da denunciação da lide é evitar a necessidade de novo processo, para que possa a parte obter o reconhecimento da garantia a ser prestada por terceiro em caso de derrota no litígio. Ela está disposta no artigo 76, do Código de Processo Civil, que diz: 'a sentença, que julgar procedente a ação, declarará, conforme o caso, o direito do evicto, ou a responsabilidade por perdas e danos, valendo como título executivo'. Como a demanda principal e a denunciação da lide são sempre julgadas em sentença única, esta será composta de dois capítulos – um que julga a causa principal e outro, a litisdenunciação. É claro que, sendo a demanda principal julgada em favor da parte que denunciou a lide ao terceiro, nada tem aquela a receber deste e a litisdenunciação estará 'prejudicada'. A causa principal é prejudicial em relação a esta e a demanda do denunciante é sempre proposta e recebida em 'caráter eventual'. Quando o julgamento da causa principal for desfavorável ao denunciante, a procedência da demanda da denunciação dependerá ainda da correta configuração da 'responsabilidade civil', segundo regras de direito substancial; a litisdenunciação improcederá se faltarem requisitos para a responsabilidade do terceiro. São Paulo: editora Malheiros, pp. 131-132. 83 [83] DIREITO, Carlos Alberto Menezes; CAVALIERI FILHO, Sérgio. Comentários ao novo Código Civil, volume XIII: da responsabilidade civil, das preferências e privilégios creditórios. Rio de Janeiro: Forense, 2007. (...) A condenação no art. 76 do Código de Processo Civil é imposta ao denunciado e concedida exclusivamente 'em favor do denunciante'. (...) Vencido o denunciante na causa principal e julgada procedente a denunciação da lide, ele pagará ao adversário os 'encargos da sucumbência' e recebêlos-á do denunciado (CPC, art. 20)”. Por fim, diga-se, a responsabilidade dos laboratórios denunciados para com o autor, Kauã, beira o Direito Natural, este concebido como um conjunto de normas ou de primeiros princípios morais, que são imutáveis, consagrados ou não na legislação da sociedade, visto que resultam da natureza das coisas e do homem, sendo por isso apreendidos imediatamente pela inteligência humana como verdadeiros. De fato, equivale ao Direito Natural de Antígona em enterrar o seu irmão, ainda que em oposição ao Direito Positivo, configurado na tragédia grega de Sófocles pela lei positiva de Creonte, que proclamou um edito no qual estabelecia que quem enterrasse o cadáver seria morto. A responsabilidade dos laboratórios denunciados é intuitiva, fundandose no fato de terem “cativado” o menino e sua família, com a promessa da cura ou, ao menos, da diminuição de seu sofrimento. É exatamente assim que leciona a clássica obra de Antoine de Saint-Exupéry, no célebre diálogo entre a raposa e o Pequeno Príncipe: “E voltou, então, à raposa: – Adeus... – disse ele. – Adeus – disse a raposa. – Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos. – O essencial é invisível aos olhos – repetiu o principezinho, para não se esquecer. – Foi o tempo que perdeste com tua rosa que a fez tão importante. – Foi o tempo que eu perdi com a minha rosa... – repetiu ele, para não se esquecer. – Os homens esqueceram essa verdade – disse ainda a raposa. – Mas tu não a deves esquecer. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela tua rosa... – Eu sou responsável pela minha rosa... – repetiu o principezinho, para não se esquecer” 84[84](grifei). “Et il revint vers le renard: – Adieu, dit-il... – Adieu, dit le renard. Voici mon secret. Il est très simple: on ne voit bien qu'avec le coeur. L'essentiel est invisible pour les yeux. – L'essentiel est invisible pour les yeux, répéta le petit prince, afin de se souvenir. – C'est le temps que tu as perdu pour ta rose qui fait ta rose si importante. – C'est le temps que j'ai perdu pour ma rose..., fit le petit prince, afin de se souvenir. – Les hommes ont oublié cette vérité, dit le renard. Mais tu ne dois pas l'oublier. Tu deviens responsable pour toujours de ce que tu as apprivoisé. Tu es responsable de ta rose... – Je suis responsable de ma rose..., répéta le petit prince, afin de se souvenir” 85[85](grifei). Destarte, o autor, Kauã, assim como qualquer criança, principalmente 84 [84] SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O Pequeno Príncipe. Com aquarelas do autor; tradução de Dom Marcos Barbosa. Rio de Janeiro: Agir, 2006, pp. 72-73. 85 [85] SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. Le Petit Prince. Paris: Editions Gallimard, aout 2002, pp. 72-73. na situação em que o menino se encontrava, deveria ter sido tratado, pelo Estado, Legislativo, Judiciário, sociedade em geral, família e, também, pelos laboratórios internacionais denunciados, com dignidade, alguém pelo qual todos somos eternamente responsáveis. Ante o exposto, julgo procedente a ação interposta pela parte autora contra o réu Estado do Rio Grande do Sul, condenando o réu a fornecer à parte autora a medicação medicação LARONIDASE (ALDURAZYME®), na quantidade de 12 frascos mensais, e, declarando a nulidade da primeira cláusula do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que refere que “Estudos de pesquisa são projetados para a obtenção de conhecimento que possa ajudar outras pessoas no futuro. Você /Seu filho (filha) pode ou não receber algum benefício direto por participar”, por contrariar frontalmente o Estatuto da Criança e do Adolescente, artigos 3º, 4º, 5º e 6º, 15, 16, 17 e 18; a Resolução CNS 196/96, item III.1, alíneas “a”, “b” e “d”, item III.3, alíneas “l”, “m”, “n” e “p”; a Resolução CNS 251/97, item III.1, IV.1, alínea “m”; o Código de Defesa do Consumidor, artigos 47 e 51, inciso IV, parágrafo 1º, incisos I a III, e parágrafo 2º; o Código Civil Brasileiro, artigos 11, 12, 13, 112, 113, 184, 186, 187, 421, 422, 423 e 424 ; e a Constituição Federal, artigos 1º, inciso III, 4º, inciso II, e 227, “caput”, julgo procedente a denunciação da lide manejada pelo réu-denunciante, Estado do Rio Grande do Sul, contra os laboratórios denunciados “GENZYME DO BRASIL LTDA.” e a “joint venture” BIOMARIN/GENZYME, nas pessoas de suas empresas formadoras, quais sejam, a “BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC.” e a “GENZYME CORPORATION”, condenando as três empresas a pagar ao denunciante Estado do Rio Grande do Sul o valor de R$ 72.900,00, devidamente corrigido e atualizado até a data do efetivo pagamento, nos termos do artigo 76, do Código de Processo Civil, na medida em que a obrigação do Estado do Rio Grande do Sul é apenas subsidiária àquela assumida pelos laboratórios denunciados perante o sujeito de pesquisa. Deixo de condenar em custas processuais, na forma do artigo 141, parágrafo 2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Por sucumbente, condeno o réu-denunciante Estado do Rio Grande do Sul ao pagamento à parte autora da ação principal, Kauã, dos honorários advocatícios, que fixo em R$ 400,00, observada a regra do artigo 20, § 3º e §4º, do CPC, considerada a singeleza da matéria analisada nesta ação principal, dizendo respeito tão-somente ao fornecimento de fármaco pelo réu Estado, como tantas ações repetitivas que tramitam nesta Vara da Infância e da Juventude, não tendo o causídico entrado na discussão acerca da responsabilidade dos laboratórios denunciados, tendo, em inúmeras oportunidades, afirmado que a defesa apresentada pelo laboratório demandado interessava tão-somente ao Estado do Rio Grande do Sul, fls. 398 e 754/755. Por fim, por sucumbentes, condeno os laboratórios denunciados, condenados na ação de denunciação da lide, em honorários advocatícios em favor do Estado do Rio Grande do Sul, que fixo em R$ 10.000,00, de acordo com o grau de zelo profissional, o trabalho realizado pelo advogado e o tempo exigido para o serviço, nos termos do artigo 20, “caput”, e parágrafo 4º, do Código de Processo Civil. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Com o trânsito em julgado, arquivem-se. Porto Alegre, 23 de dezembro de 2008. José Antônio Daltoé Cezar Juiz da Infância e da Juventude Capturado em http://jij.tj.rs.gov.br/jij_site/jij_site.home 09/09/09 às 12:15 de