Historinhas para ler durante
a audiência dos pais
Pio Giovani Dresch
Historinhas
para ler durante a
audiência dos pais
Pio Giovani Dresch
Ilustrações: Santiago
Arte: www.espartadesign.com.br
Contatos com o autor e acesso
à edição eletrônica podem ser
feitos por www.bissexto.com.br
É livre a reprodução
A ilustração da capa simula a
mesa da sala de audiências do
2º Juizado da Vara de Família
do Foro Regional do Partenon,
Porto Alegre.
ensei numas historinhas para dar ao meu netinho
João Pedro no aniversário de um ano, mas ele é muito
pequeno, não sabe ler, nem iria entender.
Então tive uma ideia: vou escrever as historinhas pras
crianças que vão com os pais às audiências lá na Vara
de Família do Partenon, onde sou juiz.
Pronto: escrevi.
Algumas delas aconteceram e outras são inventadas.
Mas é como se fossem de verdade.
Espero que gostem.
6
Vinte reais
B
ernardo e seu pai moram nos fundos da casa da avó. O pai
é cobrador de ônibus e passa o dia fora. Às vezes, não tem
tempo nem de levar Bernardo ao colégio, e aí é a avó que leva.
Mas, quando tem folga no domingo, o pai sempre
o convida para passear.
Hoje, Bernardo está feliz: ganhou 20 reais para gastar na
Redenção. O pai também está feliz: não é todo dia que pode
dar 20 reais para o filho.
E lá vão. Bernardo segura uma bola e pensa nas coisas
gostosas que vai comprar.
Passa um menino ranhento, pés descalços. Ele diz assim pras
pessoas: “um troquinho pra matar a fome, tio”.
Bernardo tira os 20 reais do bolso e olha para o pai. O pai
balança um não com a cabeça. O dinheiro volta para o bolso.
O menino segue seu caminho.
Bernardo compra um picolé.
De repente, pensa que não está tão gostoso assim.
8
O pai de Júlia
úlia não quer ver seu pai.
O pai e a mãe se separaram e não se dão muito bem.
Júlia mora com a mãe e visitava o pai. Um dia ele estava
brabo com a mãe e disse que não ia mais devolver a filha.
Não era de verdade, era só porque estava brabo, mas Júlia
ficou com medo. Agora não quer mais vê-lo.
Júlia foi me visitar no Fórum. Sentamos na sala de
audiências, eu na cadeira do juiz, ela na cadeira da
promotora, a minha amiga Patrícia.
Eu falei pra Júlia que muitos pais querem ver os filhos
e não podem, e muitos filhos querem ver os pais e não
podem, que nós tentamos ajudar, e que às vezes dá certo
e às vezes não dá.
Não sei se ela gostou da conversa, mas, quando saiu, me
deu um beijo.
Quando Júlia me visitar de novo, vou pedir pra ela sentar
na cadeira do juiz e me explicar o que devo fazer para
ajudar os pais e os filhos a se amarem.
10
Medos
úlia tem medo de cachorros.
Eu não tenho medo de cachorros (só dos
grandes), mas tenho medo de altura.
A Patrícia tem medo de avião.
A defensora pública, minha amiga
Cassandra, tem medo de assalto.
E você? Tem medo de alguma coisa?
12
Pedro João
filho da Patrícia também é João Pedro.
Ele joga futebol.
Outro dia João Pedro jogou pela primeira
vez num campeonato. Ele estava muito
nervoso e nem dormia direito, porque
seria chato se jogasse mal.
Patrícia perguntou pra ele: “se um amigo
teu jogasse mal, tu ia ser menos amigo
dele por isso?”
João Pedro pensou, pensou...
Depois perguntou: “e como seria o nome
desse amigo? Pedro João?”
Patrícia disse que sim.
E lá se foi ele bem feliz.
Se ele ganhou? Se jogou bem?
Pergunte ao Pedro João.
14
Um dia na vida de Paulinha
Sete horas. Toma café. O pai reclama da demora e diz que assim
ele vai se atrasar pro serviço.
Sete e meia. Chega ao colégio. Quase dorme na primeira aula.
Também, ficou jogando videogame até tarde!
Nove e meia. Recreio. Três guris do 5º ano ficam zoando dela:
dizem que é gorda. Paulinha chora.
Onze horas. A professora explica o que é bullying.
(Tua professora já explicou isso? Se não explicou, pergunta pra ela.)
Meio-dia. Fim da aula. Vai almoçar na casa da avó, porque
os pais só voltam do trabalho à noite.
Duas horas. Faz o tema com o primo Cauã.
Cauã não sabe escrever. Paulinha ensina.
Quatro horas. Depois do lanche, brinca no pátio com Cauã.
Seis horas. A mãe busca Paulinha. No caminho, ela vê um
cachorrinho perdido. A mãe deixa levar pra casa. Ela dá banho
e comida. Chama de Pulguinha. Ele abana o rabo.
Oito horas. Jantar. Paulinha não tem fome. Só quer saber de Pulguinha.
Dez horas. Hoje ela não joga videogame. Adivinha por quê.
Dez e meia. Toma banho, escova os dentes e vai dormir.
Boa noite, Paulinha. Até amanhã.
16
O amigo do pai
O
s pais de Luísa e Lucas se separaram: a
mãe ficou morando com os filhos; o pai
saiu de casa e foi morar com um amigo.
Faz seis meses que Luísa e Lucas vão à casa
do pai nos finais de semana. Lá é muito
divertido: o amigo é engraçado e os quatro
fazem muitas brincadeiras.
Mas os pais de Luísa e Lucas estão
preocupados: não sabem como dizer
aos filhos que o pai agora ama o amigo.
Você acha que Luísa e Lucas vão
entender se eles contarem?
18
Historinha triste
icole mora no morro. Bem no finzinho, na última
casa, lá onde tem uma pedreira.
Você já subiu o morro até onde terminam as casas?
Nicole sobe todos os dias. Numa cadeira de rodas.
Faz dois anos que ela levou um tiro.
Não tinha nada a ver com a história: era guerra de
gangues lá na vila.
Mas sobrou um tiro pra ela, e ela ficou paraplégica.
Agora sobe o morro de cadeira de rodas. O morro
inteiro não: perto de casa é um perau, e ela vai no
colo da mãe. As irmãs carregam a cadeira.
A casa foi a que deu pra comprar com 4 mil, todo o
dinheiro que a avó tinha guardado.
Nicole mora com a mãe e as duas irmãs.
A mãe tem 29 anos, faz faxinas e quer uma casa
melhor.
Nicole tem doze, estuda e quer ser médica.
Boa sorte, Nicole.
20
Final Feliz
ocê já deve ter percebido bem que a vida é assim: às vezes acontecem coisas boas,
às vezes acontecem coisas ruins; às vezes a gente é feliz, às vezes é infeliz.
A história de Nicole é triste, mas ainda está acontecendo.
Será que você consegue terminar essa história de um jeito que Nicole fique feliz?
Vou deixar essas linhas em branco aí embaixo pra você tentar.
E a página ao lado eu deixei vazia, pra você desenhar a felicidade.
22
A historinha de Miguel
ocê sabe o que é itálico? Itálico é a letra assim caidinha.
(E negrito é a letra assim grossinha.)
Esta historinha vai ser contada em itálico. Sabe por quê? Porque quem conta
não sou eu, é o Miguel. Então, onde começa o itálico é ele que começa a falar.
Aqui:
O que eu gosto de fazer com meu pai.
Dormir na casa dele, jogar futebol, ganhar brinquedos, jogar videogame,
brincar com minha irmãzinha que se chama Sara, ir na avó comer bolo,
passear no carro dele.
O que eu gosto de fazer com minha mãe.
Receber carinho, comer a melhor comida do mundo, ela me ajudar no tema,
ela me contar histórias, caminhar de mãos dadas na rua.
O que eu não gosto do meu pai e minha mãe.
Eu não gosto quando meu pai diz que minha mãe é louca, que ela bate em
mim, que eu tenho que morar com ele porque ela não cuida bem de mim.
Eu não gosto quando minha mãe reclama que eu volto sujo da casa do meu
pai, quando ela me diz que meu pai não me ama e só quer me comprar com
os brinquedos que dá.
Eu gosto do meu pai e da minha mãe e quero ficar com os dois. Não gosto
quando eles brigam por minha causa. Meu desejo é que eles sejam amigos.
24
Entrevista com Gabriela
televisão ia fazer uma reportagem sobre guarda compartilhada e
entrevistou a Gabriela.
Repórter: Oi, Gabriela, soubemos que você tem duas casas.
Pode explicar como é?
Gabriela: Bem, tudo começou quando meus pais se separaram. Cada um queria
que eu morasse na sua casa, e eu não sabia com quem ficar, porque amo os
dois. Aí a gente decidiu que eu ia morar um pouquinho em cada casa.
Repórter: Você gosta de morar em dois lugares?
Gabriela: Gosto, porque não fico com saudade de ninguém. E agora eu tenho
um irmão em cada casa: o Vítor, que é filho do meu pai, e o Tiago, que é filho
da minha mãe.
Repórter: Que dias você fica com o pai e que dias fica com a mãe?
Gabriela: Fico uma semana com meu pai e uma semana com minha
mãe, mas às vezes a gente combina umas trocas, quando ela vai viajar.
Repórter: Isso não dá problema?
Gabriela: Às vezes reclamam, dizem que a combinação
foi diferente, mas no fim dá certo.
Repórter: E você é feliz?
Gabriela: Sou, porque tenho duas casas e em cada uma
eu tenho uma mãe, um pai e um maninho.
Repórter: Obrigado, Gabriela.
26
Justo e injusto
ebeca quer brincar. A mãe diz “não, tu ainda não fez o tema”.
Rebeca diz “isso não é justo”.
A mãe aponta pra mim e fala “ele é juiz, pergunta
pra ele o que é justo”.
E agora? Essa me pegou de surpresa!
Eu digo “justo é o que a gente quer fazer, injusto é a mãe não deixar”.
Brincadeirinha, né, Rebeca?
Pensando bem, o que é mesmo justo? Acho que não sei. Você sabe?
Vamos combinar uma coisa: deixei uma página em branco pra você
dizer de verdade o que é justo e o que é injusto. Você vira esta página
e escreve. Se quiser, me mostra depois, pra ver se eu aprendo. Certo?
28
Você
ste espaço é pra você escrever o que é justo e o que é injusto (mas, se quiser
escrever sobre outro assunto, não tem problema). Me mostra quando terminar? Ah,
não esquece de fazer a ilustração na página ao lado.
30
jogo dos sete erros
inha filha Flora leu as historinhas e me perguntou se eu ia deixar os erros de
concordância.
Fui olhar e vi: a mãe de Rebeca disse “tu ainda não fez o tema”.
A Flora tem razão: o verbo fazer no pretérito perfeito do indicativo se conjuga eu fiz,
tu fizeste, ele fez.
Mas eu escrevi “tu fez” porque foi assim que ela falou.
E eu também falaria, porque acho meio estranho dizer “tu fizeste”.
Será que é errado falar desse jeito, se todo mundo fala igual?
Bem, só sei de uma coisa: se cair na prova, é melhor escrever “tu fizeste”.
E não vá me dizer depois que eu não avisei.
Mas fiquei preocupado: será que têm muitos erros nas historinhas que contei?
Se você achar algum mais, me avise, tá?
Mas tem um lugar onde eu sei que tem sete erros: é nas figuras ao lado.
Será que você acha?
Eu não teria escrito estas
historinhas se não fossem
o Bernardo, o Vítor, a Flora
e o João Pedro, também
as suas mães, a Fátima, a
Márcia e a Liciane, a Patrícia
e a Cassandra, a Karen, a
Deisi e a Paula (e a Letícia e
a Natasha), as pessoas que
trabalham comigo na Vara
de Família do Partenon, as
crianças que acompanham os
pais às audiências, os pais das
crianças, os tios, avós, parentes
e amigos das crianças.
e
i
e
t
a
r
i
P
!
a
p
l
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c
sem
Algumas das histórias
aconteceram e outras são
inventadas. Mas é como se
fossem de verdade.
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