COMO INTERLIGAR CONHECIMENTOS TEÓRICOS E APLICÁ-LOS NUM PROBLEMA REAL? DESCRIÇÃO DA MEDIÇÃO DA PRESSÃO INTERNA DA LATA DE COCA-COLA. Osvaldo S. Nakao1 e Luiz A. B. Coelho2 Escola Politécnica da Universidade de São Paulo1 Departamento de Engenharia de Estruturas e Fundações Laboratório de Estruturas e Materiais Estruturais Av. Prof. Almeida Prado, travessa 2, no. 83 CEP 05508-900 - São Paulo - SP osvaldo.nakao @ poli.usp.br Escola Politécnica da Universidade de São Paulo2 Depto de Engenharia de Telecomunicações e Controles Laboratório de Comunicações e Sinais Av. Prof. Luciano Gualberto, travessa 3 CEP 05508-900 - São Paulo – SP coelho @ lcs.poli.usp.br Resumo. Atualmente, os professores do ensino superior são desafiados a integrar os conhecimentos de diversas áreas pela multidisciplinaridade e interdisciplinaridade. O desafio é maior ainda ao se observar que a organização do conteúdo programático pela divisão em disciplinas induz os estudantes a imaginar um contexto de separação muito maior que o real. Então, como mostrar a importância dos conceitos e das diferenças entre voltagem, corrente e resistência elétricas fora dos limites da Física ou de Circuitos Elétricos? Como mostrar uma aplicação dos arranjos da Ponte de Wheatstone a alunos de um curso de Mecânica das Estruturas? Como demonstrar que as deformações ocorrem da forma indicada pela teoria da Resistência dos Materiais nas fibras superiores e inferiores numa seção transversal de uma viga engastada e submetida a um carregamento vertical, se até mesmo Galileu interpretou erroneamente o fenômeno? Para os alunos da habilitação de Engenharia Elétrica, ênfase em Sistemas Digitais, decidiu-se medir a pressão interna a que estava submetida uma lata de alumínio cheia do refrigerante Coca-Cola, com a ajuda de extensômetros elétricos e de um sistema de aquisição de dados que se baseia numa ponte de Wheatstone. Pôde-se assim, interligar os conceitos de tensões e deformações às noções de resistência elétrica, num problema real que é determinar a pressão interna de uma lata de Coca-Cola. Palavras-chave: Extensômetro elétrico, Ponte de Wheatstone, Resistência elétrica, Lata de CocaCola MTE - 313 1. INTRODUÇÃO Nos cursos de Mecânica das Estruturas, somente as explanações da teoria e as resoluções de problemas numéricos têm sido valorizadas. O fato de o aluno saber repetir e descrever todo o conceito teórico descrito nos livros e apostilas e não saber aplicá-lo numa situação real é, muitas vezes, comum mesmo dentro da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Isso demonstra que a meta estabelecida pelo engenheiro Antonio de Paula Souza quando da criação da Escola Politécnica não está sendo atingida. Ele preconizava que era necessário saber fazer e para isso é necessário praticar. Assim, para demonstrar que as deformações ocorrem da forma indicada pela Teoria da Resistência dos Materiais decidiu-se medir a pressão interna de uma lata de refrigerante. Com isso seria também possível interligar conceitos anteriormente estudados. A escolha de um elemento do cotidiano do aluno como uma lata de Coca-Cola aumentou a motivação e despertou a curiosidade, além de aproximar a Academia do mundo real. 2. A EXPERIÊNCIA A experiência foi realizada dentro das atividades da disciplina PEF-2308 "Fundamentos de Mecânica das Estruturas" de 2 créditos que, na nova grade curricular da Escola Politécnica conhecida como EC-2, vigente a partir de 1999, está sendo oferecida em substituição às disciplinas "Resistência dos Materiais" de 6 e depois de 4 créditos anteriormente constantes do currículo da Engenharia Elétrica. A disciplina PEF-2308 foi oferecida pela primeira vez no primeiro semestre de 2001 e de certa forma frustava a expectativa dos alunos ingressantes em 1999 e que, agora no terceiro ano, já esperavam ter cursado nestes dois anos anteriores todas as matérias ditas "básicas". A impressão dessa decepção foi confirmada nas primeiras aulas quando as expectativas em relação ao curso foram investigadas. A turma era numerosa com setenta e seis alunos, predominantemente de Engenharia Elétrica mas com alguns de Engenharia Química. E, nas primeiras semanas, a classe não se dispôs a participar de atividades de dinâmica de grupo e tinham basicamente uma atitude muito passiva. Lembrando os estudos de O'Brien et al. [1] sobre os diferentes estilos de cognição, procurou-se variar as estratégias para apresentar os conceitos do conteúdo programático. A resposta às aulas expositivas eram boas pois os alunos tinham facilidade de compreensão e pareciam atentos apesar de cansados. O período reservado para a aula da disciplina iniciava-se às 11h 10min e se prolongava até às 12h 50min das sextas-feiras. Como a manhã de estudo desses alunos iniciava-se às 7h 30min era compreensível que já estivessem cansados às 11h 10min. Utilizando-se de muitas transparências e distribuindo-se cópias de um CD-ROM com as notas de aula e um programa de computador como ferramenta, procurava-se superar a dificuldade do reduzido tempo disponível para atingir os objetivos da disciplina que eram, basicamente, criar um vocabulário básico e despertar a paixão pelo conhecimento. Apesar das condições não muito favoráveis para a prática de um experimento por causa do grande número de alunos e a falta de local e do tempo adequados, escolheu-se uma experiência com informações correlatas à Área de interesse deles - Engenharia Elétrica - que poderia acrescentar a motivação também buscada por outras estratégias defendidas por Nakao[2]. 2.1 A experiência Com a participação de docentes da própria Engenharia Elétrica, realizou-se a experiência de se medir a pressão interna de uma lata de Coca-Cola, utilizando-se de conhecimentos vistos na disciplina PEF-2308 e os anteriormente obtidos em Física e nos Laboratórios de Eletricidade. Objetivo. Determinar a pressão interna da lata de Coca-Cola de 350 ml cujas dimensões estão na Fig. 1. Material utilizado. Lata de alumínio com extensômetros elétricos de resistência (strain-gage EA-06-060LZ120) colados com cola super-rápida, sendo dois diametralmente opostos colados na direção longitudinal da lata e a uma mesma distância da base, dois outros também diametralmente opostos colados na direção transversal da lata. Procedimento. Inicialmente descreveu-se como foram realizadas as medições, as colagens dos extensômetros e a sua ligação ao sistema de aquisição de dados, seguindo as recomendações de Almeida[3]: Medição do diâmetro externo da lata de refrigerante com o paquímetro; limpeza do local de posicionamento dos extensômetros elétricos com lixa e algodão embebido em resina de limpeza; colagem dos extensômetros com cola super-rápida; soldagem dos terminais aos fios de conexão com o leitor de deformações; balanceamento e ativação do filtro do canal de cada extensômetro. Após a descrição dessas etapas, apresentou-se uma lata de Coca-Cola já com todos os extensômetros colados, pronta para o ensaio. Em seguida, um dos alunos abriu a lata de refrigerante, despressurizando-a. O equipamento da Linx Engenharia, AqDados, registrou o evento, fornecendo a diferença de alongamento nas fibras antes e depois da abertura da lata. MTE - 314 Cálculos. As tensões (σL e σT) foram calculadas pelas Eq. (1) e Eq. (2): σL = E. ε L (1 − 2υ ) (1) σT = 2. E.ε C (2 − υ ) (2) As duas estimativas de pressão (a partir de εL e εT) derivam das seguintes expressões Eq. (3) e Eq. (4): pL = 2. t. E. ε L 2. t .σ L = r.(1 − 2υ ) r (3) pT = 2. t. E.ε C t.σ T = r.( 2 − υ ) r (4) Figura 1. Dimensões da lata D=65,6mm H=95mm (apenas na região cilíndrica) t=0,115mm Resultados. Admitiram-se a deformação específica do alumínio como sendo Ealumínio = 74 GPa e o coeficiente de Poisson como sendo νalumínio = 0,33. Com as medições obtidas, antes e após a descompressão, para as deformações específicas longitudinal (εL) e tangencial (εT), calcularam-se as tensões σ (longitudinal e tangencial) e as pressões internas P. Esses valores estão dispostos na Tabela 1. Tabela 1. Tensões nas paredes do cilindro e Pressões internas Direção Longitudinal Tangencial 2.2 εinicial (x 10-6) 3,4 11,2 εdescomprimido (x 10-6) -368,9 -1594 ∆ε (x 10-6) 372,3 1605,2 σ (MPa) 81,0 142,3 P (kPa) 284,0 248,9 Texto de apoio à experiência Foi distribuído um folheto com a descrição e o relato de uma experiência semelhante, realizada em ocasião anterior, e no texto pode-se ler "Os dados foram registrados à uma taxa de amostragem de 1 kHz por canal com filtro passa-baixas de primeira ordem em torno de 100 Hz. O gráfico de deformação longitudinal apresentou os menores valores de deformação específica, como esperado, e também a maior intensidade de interferência em 60 Hz, oriunda do ambiente de ensaio e que pode ser captada pela ausência de blindagem nos cabos utilizados. Os gráficos são o resultado MTE - 315 de uma pós-filtragem (em software) com filtro passa-baixas de freqüência de corte em 10 Hz, executada com o objetivo de diminuir a interferência e mostrar com maior clareza o comportamento das deformações durante a descompressão." Teve-se o cuidado ainda de explicar que "As discrepâncias observadas entre as duas estimativas de pressão, da ordem de 14%, podem ser causadas pelas hipóteses listadas a seguir (individualmente ou em conjunto): A) Não validade da idealização de cilindro infinito, utilizada na dedução das relações apresentadas. Esta hipótese pode ser testada através do ensaio de um modelo de lata de alumínio de maior altura. B) Ortogonalidade imperfeita entre extensômetro longitudinal e tangencial. Um erro de cerca de 8 graus na montagem seria suficiente para produzir a discrepância observada. Esta hipótese pode ser testada através de um ensaio numa lata do mesmo tipo, utilizando-se uma roseta para determinação exata das tensões principais, bem como sua direção." 3. CONCLUSÕES Conclui-se portanto que mesmo a aula expositiva sendo a metodologia predominantemente utilizada nas escolas de Engenharia, pode-se fazer uma experiência e completá-la através de explicações e folhetos adicionais. Os dados experimentais relativos à medição de deformações específicas no sentido longitudinal e tangencial da superfície de uma lata de refrigerante cilíndrica de alumínio, sujeita inicialmente à pressão interna do gás carbônico e seguida de descompressão pela abertura da mesma, foram importantes para mostrar a aplicação dos conhecimentos adquiridos pelos alunos também nesse curso de Fundamentos de Mecânica das Estruturas. A cultura do “fazer juntos” (trabalho em equipe) também entre os professores de Departamentos diferentes deve ser cultivada, como foi feito nesse caso em que se apresentou uma experimentação para os alunos do terceiro ano de Engenharia Elétrica da Escola Politécnica da USP com a participação do professor responsável pela disciplina PEF2308, do Departamento de Engenharia de Estruturas e Fundações e de professores do Departamento de Engenharia de Telecomunicações e Controles. A experiência mostrou ainda que a divisão entre os assuntos é meramente didática e que a motivação para o estudo pode ser despertada ao ensaiar elementos do cotidiano do aluno. O texto distribuído após a experiência fez com que o aluno de Engenharia Elétrica identificasse como de sua Área e ao mesmo tempo fez com que o aluno conseguisse adquirir o vocabulário da Engenharia das Estruturas que é um dos objetivos da disciplina PEF-2308. O fato de, após a aula, alguns alunos manifestarem interesse em conhecer a empresa Linx para conhecer as outras experiências relatadas pelos professores como os ensaios realizados para a GM nos seus testes de componentes de automóveis é um indicador de que a paixão pelo conhecimento foi despertada. Atingiu-se assim outro dos objetivos da disciplina. O fato de se obter dois valores distintos para a pressão interna, apesar de serem de mesma ordem de grandeza, dá ao aluno a visão real dos problemas de Engenharia onde nem sempre obtém-se a solução exata. É didático o entendimento de que algumas vezes o problema não se esgota, exigindo uma continuidade de estudos. Essa experiência pode ser repetida em uma das diversas das disciplinas do Curso de Engenharia que abordem os aspectos de resistência e corrente elétrica, tensões e deformações. Pode-se concluir que desde a motivação até o aprendizado final, o processo não pode ficar dependendo basicamente do esforço, do talento, da predisposição em acreditar no que se ouve e no que se lê. Para o sucesso do processo de ensino e aprendizagem na graduação de uma Escola de Engenharia, foi feliz a estratégia de incorporar uma demonstração de fenômenos através de ensaios com elementos do cotidiano do aluno como ao medir a pressão dentro de uma lata de refrigerante com a ajuda de extensômetros elétricos e um sistema de aquisição de dados que se fundamenta numa Ponte de Wheatstone. 4. REFERÊNCIAS [1] T. P. O'Brien, S. M. Butler and L. E. Bernold, "Group Embedded figures Test and Academic Achievement in Engineering Education", The International Journal of Engineering Education, vol. 17. No. 1, 2001 [2] O. S. Nakao e H. Lindenberg-Neto, “Aperfeiçoamento Didático de um Curso de Mecânica das Estruturas" EPUSP, BT/PEF/0007, ISSN 0103-9822, São Paulo: 2000, pp. 7-10.M. T. [3] P.A de O. Almeida, Análise Experimental de Tensões. LEM-PEF, EPUSP, São Paulo: 1996. MTE - 316