16º CONGRESSO DE LEITURA DO BRASIL WILLIANA PEREIRA SALDANHA CRIANÇAS DIALOGAM COM O TEXTO LITERÁRIO Comunicação oral apresentada no 16ºCOLE, vinculada ao seminário 02- X Seminário sobre “Biblioteca” no Centro de Convenções da UNICAMP. CAMPINAS 2007 CRIANÇAS DIALOGAM COM O TEXTO LITERÁRIO Wiliana PEREIRA SALDANHA1 Resumo: Neste trabalho relatamos uma experiência dialógica de leitura, realizada em uma 3ª série do Ensino Fundamental de uma escola de Sumaré, com um texto literário. As crianças traziam da série anterior uma concepção monológica de leitura. Para reverter o processo, adotamos os pressupostos dialógicos de Bakhtin (2006), a concepção social do conhecimento de Vygotsky (1988) e de Smolka (1993) e as concepções de leitura de Márcia Abreu (2006) e abrimos um espaço na biblioteca da escola para que as crianças, ao ler, dialogassem com o outro (colega e professor). A negociação e a tensão, resultante dos processos de leitura, permitiram que relacionassem o texto às suas experiências e construíssem significações singulares. Palavras-chaves: biblioteca, leitura, dialogia. Seminário do 16º COLE vinculado: 02 – X Seminário sobre “Biblioteca” Neste trabalho relatamos uma experiência dialógica de leitura, realizada em uma 3ª série do Ensino Fundamental da Escola Municipal “José de Anchieta”, no ano de 2006, em Sumaré, com o texto literário A CASA de Vinícius de Moraes (1991,p.19). As crianças traziam da série anterior uma concepção monológica de leitura,concebiam-na como única, dotada de um sentido único. Nesse contexto perguntávamos: O que aconteceria se as crianças relessem o texto compartilhando a leitura? Que leituras e que significações resultariam desses processos interacionais mediados pelo pesquisador?Que papel teria o outro (mediador) colega ou professor nesse processo? Para responder essas indagações adotamos os pressupostos teóricos de L.S Vygotsky e Mikhail Bakhtin e suas teorias do desenvolvimento e da linguagem respectivamente.Para Vygotsky (1988), o processo de formação de pensamento é despertado e acentuado pela vida social e pela constante interação que a criança estabelece com os adultos e com as outras crianças, nesse processo a mediação pelos signos e pelo outro tem um papel fundamental. Bakhtin(2006, p.117), nos propõe que a linguagem como prática social é uma produção dialógica, que se faz na interação de pelo menos dois sujeitos e afirma: Na realidade toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém.Ela constitui justamente o produto de interação do locutor e do ouvinte. 1 Pedagoga e Bacharel em História pela PUC-Campinas/SP, atua como Coordenadora do Projeto Incentivo à Leitura na Biblioteca Infantil da Escola Municipal “José de Anchieta”. 2 Pela visão teórica assumida, a interação social tem um papel fundamental para a concepção de construção social do sujeito e de compreensão do papel mediador da linguagem, sendo aquela o alicerce de seu desenvolvimento e de seu processo de significação,inserção essa necessária do indivíduo enquanto participante de um processo histórico e cultural que o produz e é, dialeticamente,também por ele produzido.Conforme enfatiza Smolka (1993, p.08) : Num processo de desenvolvimento que tem caráter mais de revolução que evolução, o sujeito se faz como ser diferenciado do outro, mas formado na relação como o outro; singular mas constituído socialmente e, por isso mesmo, numa composição individual, mas não homogênea. Buscamos, ainda, a concepção de leitura e literatura de Márcia Abreu (2006), que defende a idéia de que não devemos ler e julgar um conjunto de textos empregando um único sentido e critério, mas compreendê-los dentro do sistema de valores em que foram criados. Para nos tornarmos coerentes com as concepções teóricas assumidas acima, adotamos frente às atividades de ensino uma abordagem dialógica, permitindo que as crianças compartilhassem a leitura, abrindo na escola um espaço para a troca de experiências e para a partilha da palavra. Para isso, inauguramos um espaço na biblioteca para que as crianças, ao ler, dialogassem com o outro (colega e professor). 2. Construindo a leitura na biblioteca: o encontro e a tensão das vozes O registro da experiência dialógica de leitura do texto A CASA, a seguir, foi realizado através de gravação de vídeo, por uma câmera inicialmente colocada no tripé de filmagem e posteriormente nas mãos da professora-pesquisadora mediadora, numa tentativa de melhorar a qualidade da gravação e o desempenho da ouvinte/interlocutora dentro do processo. A presença habitual da câmera de vídeo como instrumento de registro e principalmente, como recurso didático nas atividades da biblioteca, não se configurou como fator inibidor no processo diálogo, ao contrário as atitudes das crianças sugerem que elas estavam atentas às orientações iniciais da professora e procuravam falar alto e em seqüência para a gravação sair de boa qualidade. Esta forma de registro permitiu captar o constante dinamismo do grupo de crianças, mas também se apresentou como um problema à professora-pesquisadora no momento da transcrição dos diálogos, que duraram aproximadamente quinze minutos, e na seleção e organização dos dados. Principalmente, como captar na forma de transcrição, a elaboração conjunta (dinâmica) da e na atividade, as interferências, pausas e silêncios de uma criança sobre a outra. 3 O texto A CASA Era uma casa Muito engraçada Não tinha teto Não tinha nada Ninguém podia Entrar nela não Porque na casa Não tinha chão Ninguém podia Dormir na rede Porque na casa Não tinha parede Ninguém podia Fazer pipi Porque penico Não tinha ali Mas era feita Com muito esmero Na rua dos Bobos Número zero 4 P = Nós vamos trabalhar com a poesia A CASA. Vocês já aprenderam o ano passado, do livro: (indicando as partes do livro) / a capa, todo mundo está recordando, a capa, o rosto, o sumário, que é onde vocês vão seguir, onde está localizado a poesia, que nós vamos ouvir, primeiro A CASA. Vamos cantar junto com o CD do Toquinho e do Vinícius. /.../ Quero que vocês falem um pouco alto para poder a gravação pegar.2 A = (incomp.) P = Então , todo mundo entendeu, o que vão fazer? Vai ler. Já leu. Já cantou. Vai vê como vê essa casa do Vinícius. / Conforme vocês forem falando: um fala, outro fala, por vez a gente consegue. Porque essa “casa”? O que tem essa “casa”? Ela não tem teto / ela não tinha nada. Então, eu quero que vocês vão comentando. Tá, bom! // (orientação professora para stop gravação) A1 = Aí , teve um dia que / eu aprendi que ela era feita só de cano, não tinha parede, nem teto, feita só de cano, era cano ligado nela. P = Eu quero quem está / achando outra coisa, vai falando (A2 = acena que vai falar) e a professora indaga: O que você achou que é? A2 = Eu? É. P = Isso! A2 = silêncio A3 = Achei que era / de cimento. P = Mas o que é cimento? A3 = / É uma coisa que vai grudando (incomp.) A2 = É / O cimento é os pontinhos. P = Ah! Você está analisando a casa que está na // no ali/ desenho, que está na ilustração do poema/ P = Mas vocês não acham que “a casa” que o Vinícius está falando não é a do ilustrador ? A casa / que o Vinícius está falando não é essa casa/ do ilustrador. Que casa é essa, aí ? A1 = Não é essa aí! (enfático). Não tem parede! P = Não é essa! Então qual é ? A4 = É um tipo de uma casa representada, de imaginação. Eles que imaginaram a casa. P = Então, espera aí! Fala de novo! Você está achando que é uma casa? A4 = Que eles imaginaram uma casa, que não tinha teto, nem parede. Aí eles formaram a música. P = Eles, você está se referindo ao Vinícius e ao Toquinho? Vai explicando aí/ então essa casa. Mas como ele imaginou que essa casa não tinha parede? Mas o que é essa casa que não tinha parede?// A4 = Aí, eu não sei! P = Aí, você não sabe!/ Quem imaginou, que casa é essa? A = Essa casa (incomp. ) P = Essa casa ? / Que casa é essa? A5 = Essa casa não existe! P = Essa casa não existe! Explica para mim. Por que essa casa não existe? A5 = Porque ela não tinha parede// não tinha nada! P = É uma casa que não existe, tá! Qual é a outra idéia, que alguém, viu aí ? 2 Atente-se para a legenda: P= professora – Pesquisadora; A= Aluno não identificado; A1,A2 = Alunos identificados; AA= Todos os alunos ao mesmo tempo; / = pausa breve; // = pausa mais longa; (incomp.) = incompreensível; /.../ = Transcrição parcial; [ ] = Sobreposições de vozes localizadas. 5 A1 = Se você for ver mesmo, essa casa/ , você não vai ver essa casa, porque ela não tem parede , não tem nada. P = Tá, mas essa casa, deve ser uma casa? Mas que casa que não existe, que não tem parede? A4 = Uma casa imaginária! P = Tudo bem ! Uma casa imaginária. Mas e aí? A = Eu acho que essa casa (incomp.) P = Espera um pouco, aí! Quero alguém / que leve esse raciocínio da casa. A6 = Acho que essa casa é a barriga da mãe. P = Ah! Então, espera aí! Vamos repetir, então essa casa/ vai? Se é a barriga da mãe. Onde é a parede? A6 = Não sei! P = Vai. Se é a barriga da mãe // Onde que é ? A1 = A parede é o corpo inteiro. A parede/ é aquela bolsa, que está lá dentro/ que não tem chão, porque é redonda/ então não tem chão. P = Tá! Todo mundo entendeu o que A1 e ela A6 explicou? // Se você olhar para essa “casa “ do Vinícius, sendo // AA = A barriga da mãe P = A barriga da mãe, não tem chão// porque o bebê/ porque o bebê está lá dentro não é A1? A1 = Ela é redonda, não tem chão. P = Ele acha que ela é redonda e não tem chão // mas todo mundo já aprendeu // isso algum dia? Onde vocês ouviram isso que o Vinícius, está falando de uma casa // que é a barriga da mãe?// A1 = Num monte de coisa de escola. P = Onde ? Num monte de coisa de escola, aparece isso. Tá,. E agora então, pensa aí: se a barriga da mãe, “ a casa” do Vinícius. Como é que fica? A7 = Eu sei que a casa. Eu sei dessa casa, porque já morei lá dentro. P = Ah ! Você já sabe dessa casa porque você já morou lá dentro. Então explique essa casa que você já morou lá dentro? A7 = É a barriga da minha mãe! P = Tenta ler na poesia, onde você identifica essa casa / que você já morou. A7 = ( fica em silêncio ) P = Todo mundo está identificando essa casa que ela diz que já morou? A1 = Só que aí (incomp.) quando ele nasceu, já morou nessa casa de verdade. P = Então, quando a gente cresce, mora na casa de verdade. O que mais a gente pode falar dessa casa de verdade? Que todo mundo morou? A5 = Essa casa é um terreno vazio. P = Essa casa é um terreno vazio, também! Como você sabe que essa casa é um terreno vazio? A5 = Porque não tem nada. P = O que significa o número zero? A6 = Número zero, porque não tem casa (incomp.). Não é casa porque é a barriga da mãe P = Ah // Como que é? A8 = Essa casa não existe! P = Essa casa não existe? Ué? Tá mundo falando que essa casa existe, porque é a barriga da mãe! A8 = Então, daí/ o que o autor falou ele inventou P = Olha que legal, que ele está falando, que o autor inventou uma casa. 6 A8 = (incomp) Ele inventou essa casa para fazer a música. P = Muito bem, todo mundo entendeu isso agora? AA = Entendemos! P = Agora que vocês, já entenderam isso igual ao Vinícius, igual ele ( A8 ) falou, que casa você colocaria nesse lugar? Qual casa seria igual a do Vinícius? Que casa seria essa? Vai! A5 = Ele inventou a casa e desenhou e fez uma música com ela. P = Mas pelo que estão falando, não é uma casa mesmo de chão de parede de tijolo. Todo mundo está comentando que já ouviu essa interpretação. A casa é a casa da gravidez da mamãe, que o Vinícius inventou. O número zero é a barriga? Quem falou que é o umbigo? A8 = Eu. O umbigo é o número zero. P = Você acha que o umbigo é o número zero? A4 = Lá não pode entrar, porque lá/ a gente já está lá dentro e não entrar lá, não tem porta ! P = Você acha que isso é o número zero. Ta legal ! Então, todo mundo entendeu mais ou menos isso? E agora qual outra casa entraria aí? Qual outra casa que você/ ? Ah ? A5 = O número zero é o neném. P = Ah/ o número zero é o neném. Quem sabe?! A6 = Porque o neném não tem um aninho. P = Então ele não tem? Pode repetir A6 = Ele não tem um aninho. P = Então , ele não tem um aninho e para vocês é o número zero/ E agora e a outra casa, que vocês acharam que é? Alguém pensou numa casa? A = Um terreno baldio. P = Um terreno baldio/ um terreno baldio é uma casa? Que outras casas existem? AA= (Incomp.) A4 = As casas inventadas P= As casas imaginárias A4 = As casas inventadas P = Você acha que a imaginária entra aí, / que mais entra aí A6 = As casas de desenho P = Como as casas de desenho, entram aí? A6 = Desenhar a casa? P = Alguém teve uma idéia de uma casa que não tem teto, que não tem parede, e não é essa “casa do Vinícius”. A1 = Essa casa / se você for ver bem, se não tiver chão, cai no solo. A5 = Essa casa que não foi construída. P = A sua casa/ tá // Quem mais tem uma idéia igual à do Vinícius? Quero ver alguém inventar sua casa: como o colega A8 ensinou, que / o colega deu uma idéia: Olha o autor criou essa casa. Como você criaria uma casa igual à do Vinícius? A1 = Acho que é uma casa invisível. Quem entraria nela? P = Quem entra nela? Todo mundo compreendeu “a casa” do Vinícius? Ninguém conseguiu imaginar uma casa dele. Se você escrever uma poesia, que fosse a sua casa, que não fosse “a casa do Vinícius”, ninguém conseguiu imaginar essa casa? Que teria essas características da “casa do Vinícius”? Ninguém conseguiu imaginar? / Não? A4 = Uma casa de vento P = Uma casa de vento/ meio complicada não parece, não tem nada / Tudo bem! Vamos encerrar. Valeu! A4 = [ Não aparece, não tem nada] 7 3. Análise: A negociação e a construção de sentido na leitura No início da experiência dialógica de leitura, o papel de A1 foi fundamental para os colegas, pois ao fornecer um “indício” (feita de cano) levou-os a realizarem a atividade. Embora sua afirmação :Eu aprendi que ela era feita só de cano, fosse uma conexão direta com o concreto(casa entendida como construção) não fosse adequada (ligada à imaginação), ela foi suficiente como ”pista” na elaboração da significação do texto pelas crianças. Como é o caso da afirmação de A3 =Achei que era cimento, que fez com que A2 reelaborasse a leitura de A3, dando início ao processo de negociação , A2 responde : É / o cimento é os pontinhos, transformando o sentido inicial, casa lugar onde se mora, na casa desenho, ilustração apresentada no texto. A mediação do outro, professora e colega, ao impor /convencer o novo sentido: P= não é essa casa /do ilustrador; fez com A1 disputando este sentido, gritasse enfático: Não é essa aí! Não tem parede! , essa tentativa de contesta-lo sugere o ritmo dinâmico da negociação. É muito significativa nesse trecho, a alternância de ocupação do espaço de interlocutores entre as crianças, pois essa será uma constante no processo de significação, momentos de disputa,de prestar atenção, de ouvir, e de incorporação da fala do outro. A desestabilização provocada pelo conflito de vozes da professora mediadora: Não é essa! Então qual é? e da colega A4= É um tipo de casa representada de imaginação.Eles que imaginaram a casa; transformaram o sentido inicial (sentido concreto) para um novo: a casa sugerida pelo autor. A intertextualidade contida na afirmação da mediadora, P= Eles, você está se referindo ao Vinícius e ao Toquinho, coloca A4 e as demais crianças na condição de ouvintes interlocutores, levando-os a refletir sobre o quê e o como narrado e para quem. É relevante destacar quer a alternância dos papéis discursivos, em diversos momentos do exercício dialógico, como nos trechos a seguir, as levaram a refletir sobre os caminhos percorridos pelo autor na construção do texto e da história do outro (autor): A8 = Então, daí/ o que o autor falou ele inventou; P = Olha que legal, que ele está falando, que o autor inventou uma casa; A8= ( incomp.) Ele inventou essa casa para fazer a musica; P = Muito bem, todo mundo entendeu isso agora?; AA = Entendemos! e A5 numa tentativa de construção de hipótese final, afirma: Ele inventou a casa e desenhou e fez uma música com ela. Nesse sentido a afirmação de A6= Acho que essa é a barriga da mãe, nos aponta que ela aceitou como adequada à fala de A4 e reelaborasse o sentido para a casa da infância (a barriga da mãe). A partir desse momento o exercício dialógico, estabelecido entre as crianças e a mediadora entra num constante processo de repetição da fala do outro, e de incorporação e apropriação desse sentido, as crianças passam a realizar hipóteses para a compreensão do inusitado para elas, uma casa sem teto, sem parede. Observamos ainda, como no caso dessas afirmações: A1= A parede é o corpo inteiro.A parede/ é aquela bolsa, que está lá dentro/ que não tem chão, porque é redonda; A7= Eu sei dessa casa, porque já morei lá dentro; A8= O umbigo é o 8 número zero; A5= o número zero é o neném e A6= Porque o neném não tem um aninho, que através da tensão dialógica as crianças buscaram caminhos para a construção do(s) sentido(s) da leitura, apoiados em suas experiências,assumindo uma atitude responsiva em relação ao discurso do outro e reflexiva sobre si e sobre o mundo. A significação barriga da mãe apontou-nos uma concepção monológica de leitura, construída na série anterior, marca do trabalho educativo de sala de aula com atividades de leitura e interpretação. Isso mostra a difusão da idéia de que como disciplina escolar à “Grande literatura” (Abreu, 2006 p.58) deve ser lida num sentido único e por todos. A afirmação de L após a mediação da professora, nos aponta para essa direção: P= Onde vocês ouviram isso que o Vinícius, está falando de uma casa // que é a barriga da mãe?//, a qual A1 responde: Num monte de coisa de escola. A negociação constante da mediadora levou- as a percorrerem novos caminhos na construção de hipóteses para a busca da significação do texto, isto é , a imagem de uma casa sugerida pela fantasia A= um terreno baldio; A4= uma casa de vento. O afastamento do conhecimento instituído foi possível pela adoção de uma perspectiva dialógica, mediada pela professora- pesquisadora, isso permitiu que elas percorressem novos caminhos na leitura (imagem sugerida pela fantasia). As crianças foram ouvidas, tiveram direito à voz e puderam construir sentidos numa leitura dialógica partindo de sua própria história e da história do outro (autor do texto e do outro colega). A mediação do outro, professora-pesquisadora ou colega foi fundamental para que novos sentidos fossem instaurados durante a leitura conjunta, sugerem no movimento dialógico das crianças diferentes caminhos para a compreensão do texto (A Casa): a conexão direta com o concreto (casa entendida como construção, como lugar onde se mora) é o caso das afirmações: A1 = Aí, teve um dia que / eu aprendi que ela era feita só de cano, não tinha parede, nem teto, feita só de cano, era cano ligado nela ou ainda quando expressam: A3 = Achei que era de cimento.P = Mas o que é cimento?,e o estabelecimento de uma relação direta com a ilustração apresentada no texto (a casa seria o desenho apresentado cujos detalhes sugerem tijolos, cimento; A2 = É/ o cimento é os pontinhos.P = Ah! Você está analisando a casa que está na // no ali/ desenho, que está na ilustração do poema/ P = Mas vocês não acham que “a casa”que o Vinícius está falando não é a do ilustrador ? A casa / que o Vinícius está falando não é essa casa/ do ilustrador. Que casa é essa, aí ?A1 = Não é essa aí! ( enfático ). Não tem parede! Como pode se perceber o mediador (neste caso a professora-pesquisadora) trabalha no sentido de desestabilizar uma leitura que vincule o texto a uma experiência imediata da criança, ou seja, de buscar a significação sem uma possível mediação da sensibilidade e da imaginação. Essa atitude do mediador foi importantíssima para que as crianças percebessem a pluralidade da leitura literária e esforçassem para realizar saltos, instaurando e construindo hipótese que pudessem levá-las à compreensão do inusitado (uma casa sem teto, sem parede, sem nada). O afastamento paulatino de um conhecimento já instituído e a tentativa de se buscar o inusitado: a significação em uma imagem sugerida pela fantasia ( casa como um 9 lugar qualquer não habitual ,um terreno baldio, uma casa de vento); a casa sugerida pelo autor : um outro lugar de origem, do início, da infância ( a barriga da mãe). O deslocamento de uma leitura literal para a pluralidade de sentidos deu-se exatamente no conflito das vozes: entre o sentido posto por um e contestado e, logo em seguida, aceito pelo outro. Esse exercício dialógico estabelecido entre elas e propiciou o alargamento do universo significativo do tema, propôs novos rumos para a leitura do texto, levou-as a refletirem sobre si e sobre o mundo de maneira crítica, transformadora por meio da linguagem e daquilo que ela pode sugerir. Toda essa discussão torna-se importante porque não apenas a leitura deve ser crítica, mas deve ser crítica e histórica toda a relação da criança com a linguagem que não pode ser reduzida a um código, mas, ao contrário, deve ser o lugar por onde circulam as tristezas, as alegrias , a história de cada um. Nosso objetivo não era apenas tornar o texto mais claro ou mais informativo, mas exercitar as condições dialógicas da linguagem, porque partíamos do princípio de que a criança, antes locutora, ao colocar-se na condição de interlocutora, exerceria um outro lugar no discurso. Assim, ao interagir em diferentes posições discursivas, ora como narradora-locutora, ora como ouvinte-interlocutora, seria levada a refletir sobre o quê, o como, o onde e o para quem narrou. O contexto do dialógico, muitas vezes, requer a retomada, a reconstrução, a mudança do discurso, porque o interlocutor exige do narrador constantes mudanças de posições, exige uma atitude responsiva em relação ao discurso do outro. Os diferentes contextos da enunciação e as alternâncias de papéis quando da exposição do texto, de locutor a interlocutor e de interlocutor a locutor, foram estratégias que influenciaram o desempenho das crianças na experiência dialógica de leitura. 4. Conclusão Ao discutirmos a atividade de leitura com abordagem dialógica no espaço da biblioteca, pretendemos mostrar que o cruzar das vozes, os confrontos e as tensões resultantes desse processo mediado, permitiram que as crianças construíssem sentidos singulares e inusitados. Ao inaugurarmos esse espaço oferecemos à elas a oportunidade de constituírem-se como leitoras singulares: críticas de sua realidade, da palavra do outro e atentas a sua história. Adotamos atividades de leitura com estratégias baseadas no diálogo, na escuta, na valorização da experiência do leitor e na partilha de sentidos. Projeto de leitura esse que pressupõe a troca de experiência, a partilha da palavra e que o aluno-leitor deva estrategicamente atuar em diferentes posições discursivas: alçando do texto para a sua própria experiência. Sinalizando que é possível abrir caminhos mais dinâmicos e prazerosos para e dentro da leitura na escola. 10 Bibliografia ABREU, Márcia.Cultura letrada: literatura e leitura. 1.ed. São Paulo: UNESP,2006. BAKHTIN, Mikhail. M. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. M. Lahud e Y. F. Vieira.12.ed. São Paulo. Hucitec,2006. MORAES, Vinícius A Arca de Noé: Poemas infantis.15. reimp. São Paulo: Companhia das letrinhas,1991 SMOLKA, Ana Luísa; Góes, Maria Cecília R de (Orgs.) A linguagem e o outro no espaço escolar: Vygotsky e a construção do conhecimento. 9. ed. Campinas, São Paulo: Papirus,1993. VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. M.Cole at al ( Orgs). José C Neto at al ( trads ). 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988.