Luís Serradas Tavares e Patrícia Galvão Teles | Departamento de Assuntos Jurídicos do MNE *
“Alice no País das Maravilhas” ou breve história de um
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processo no Tribunal Internacional de Justiça: Sérvia
NATO sobre a “Legalidade do Uso da Força”
A questão NUMA SENTENÇA DATADA de 15 de Dezembro de 2004 1, o Tribunal Internacional de
Justiça considerou não ter jurisdição para julgar a acção intentada pela Sérvia
e Montenegro contra Portugal e vários outros membros da NATO 2, colocando
assim um ponto final no processo judicial começado em Abril de 1999 e motivado
pela intervenção militar durante a crise do Kosovo, iniciada em Março do mesmo ano.
Este processo ficou inevitavelmente marcado por uma extraordinária inflexão
estratégica no comportamento processual protagonizado pela Sérvia e Montenegro
após a queda do regime de Milosevic. Volte-face tão curioso do ponto de vista político,
quão original do ponto de vista jurídico-processual, como daqui a pouco se relatará,
mas que constituiu o verdadeiro case of the case do processo, tendo chegado a provocar,
a espaços, a ira de uns e os sorrisos de outros dos participantes processuais. Vejamos,
primeiro, alguns antecedentes.
Breve resenha histórica sobre a crise do Kosovo A crise do Kosovo constituiu, indubi-
tavelmente, a última das «crises», a última ameaça à paz e à segurança internacionais,
resultante do conturbado processo de dissolução da ex-Jugoslávia3 ocorrido na última
década do Século XX.
* Luís Serradas Tavares é Director do Departamento de Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros e Agente da República Portuguesa junto do Tribunal Internacional de Justiça. Patrícia Galvão Teles
é consultora do mesmo Departamento e foi membro da delegação que representou Portugal neste caso.
1
O texto encontra-se disponível em www.icj-cij.org.
2
Foram dez os Estados inicialmente demandados. Para além de Portugal, foram réus Holanda, Bélgica,
Canadá, Reino Unido, França, Alemanha, Itália, Estados Unidos da América e Espanha. Este grupo de
Estados não inclui todos os que participaram efectivamente nas operações militares, nem na sua decisão,
que foi tomada por unanimidade. Embora os casos tenham sido sempre tratados pelo Tribunal
Internacional de Justiça como instâncias judiciais separadas, houve coordenação de posições entre os réus.
3
Utilizou-se, propositadamente, a expressão coloquial, que não técnica, “dissolução”. Em termos jurídicos será
questão de enorme interesse, mas também de elevado grau de dificuldade, classificar, na óptica da teoria
geral da sucessão de Estados, se esta «dissolução» correspondeu a independência de partes de um
território ou a uma separação total de Estados. A evolução dos factos ao longo dos anos legitimou todas
as dúvidas e propostas. O Acórdão do TIJ, em nosso entender, apontará para a segunda das alternativas, ao
ter decidido que a actual Sérvia e Montenegro é um Estado totalmente novo, portanto, não sucessor da
personalidade jurídica internacional da ex-Jugoslávia.
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e Montenegro c. Portugal e outros membros da
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A violência no Kosovo agravou-se e generalizou-se em 1997/1998, tendo a partir
dessa data o Conselho de Segurança adoptado várias resoluções 4 sobre a situação
política e jurídica nesse território, instando as partes – o Governo de Belgrado e a
minoria albanesa do Kosovo – a resolver o conflito pacificamente e alertando para o
deteriorar da situação humanitária.
Mesmo nas resoluções adoptadas ao abrigo do Capítulo VII da Carta das Nações
Unidas, e tendo qualificado a situação como uma ameaça à paz e à segurança internacionais, o Conselho de Segurança nunca chegou, no entanto, a autorizar explicitamente o uso da força. O «fantasma» de um hipotético veto por parte da Federação
Russa ou da China assim o determinou.
Paralelamente, o processo de negociação, liderado por um grupo de contacto,
também não apresentava progressos que permitissem, nem uma melhoria da situação
no terreno, nem a resolução do conflito. Todas as tentativas, incluindo a elaboração de
um acordo entre as partes em Rambouillet, falharam.
A situação na região deteriorava-se, resultante dos confrontos entre as forças sérvias
e o exército de libertação do Kosovo, provocando um elevado número de vítimas civis,
deslocamentos populacionais internos e ondas de refugiados para os Estados vizinhos.
A intervenção da NATO Com a escalada da violência (especialmente com consequências para
a população civil, repete-se) e com a ausência de uma resposta eficaz por parte da
Organização das Nações Unidas, a partir de Setembro de 1998 os membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) mostraram-se disponíveis para levar a
cabo uma intervenção militar, mesmo que não expressamente autorizada pelo
Conselho de Segurança.
Os dois principais argumentos invocados pela NATO foram, assim, a necessidade
de implementar as resoluções do Conselho de Segurança e o conceito de intervenção
humanitária que permitiria o uso da força para parar graves violações de direitos
humanos e do direito internacional humanitário.
A operação militar iniciou-se em Março de 1999, após várias ameaças de que a
força armada iria ser utilizada. Portugal participou na Operação Allied Force da NATO com
três aviões F-16 para missões de reconhecimento e com um total de 53 militares, entre
pilotos e pessoal de apoio.
A acção intentada no Tribunal Internacional de Justiça Como reacção, em 29 de Abril de
1999, o Governo da República Federal da Jugoslávia (que passou a denominar-se
Sérvia e Montenegro a partir de 4 de Fevereiro de 2003) depositou junto do Tribunal
Internacional de Justiça uma queixa contra Portugal (e contra os seus parceiros de
4
Designadamente as resoluções 1160 (1998) , 1199 (1998) e 1203 (1998).
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A rejeição pelo Tribunal do pedido de aplicação de medidas provisórias Imediatamente após
ter intentado a acção, a Jugoslávia fez também um pedido de aplicação de medidas
provisórias com o intuito de fazer cessar imediatamente os bombardeamentos da
NATO contra o seu território, que ainda se encontravam em curso.
O Tribunal Internacional de Justiça rejeitou, por decisão de 2 de Junho de 1999,
após ouvidas as partes, o pedido de medidas provisórias pois considerou que prima
facie, não tinha competência para julgar o caso contra Portugal e os outros Estados, em
virtude uma reserva temporal incluída na declaração de aceitação da jurisdição da
Jugoslávia (que valia apenas para o futuro, ou seja para diferendos ocorridos após a
sua assinatura em 25 de Abril de 1999) e também por, à primeira vista, não estarmos
perante um caso de genocídio.
Essa ausência de competência era ainda mais manifesta em dois dos casos, que nessa
mesma data o Tribunal ordenou que fossem retirados da lista dos assuntos pendentes
perante esta jurisdição: os contra os Estados Unidos da América e contra Espanha.
Nos restantes oito casos, incluindo contra Portugal, o Tribunal permitiu que a
instância continuasse, tendo todos os réus elaborado a sua réplica centrada na falta de
jurisdição do Tribunal Internacional de Justiça, desenvolvendo as razões acima
referidas e invocadas pelos próprios juízes.
5
A República Federal da Jugoslávia depositou a sua declaração de aceitação da jurisdição do Tribunal de
Justiça em 25 de Abril de 1999, apenas dias antes de ter intentado a acção.
6
Portugal aceita a jurisdição do Tribunal Internacional de Justiça desde 1955.
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coligação) pelos seguintes actos alegadamente praticados pelo nosso país ao participar
na operação militar da NATO, que ainda se encontrava em curso: violação das
obrigações internacionais de não recorrer à força contra outro Estado, de não interferir
nos assuntos internos de outro Estado e de não violar a sua soberania; violação da
obrigação de proteger a população e os bens civis durante um conflito armado;
violação da obrigação de proteger o ambiente e de respeitar a liberdade de navegação
nos rios internacionais; violação da obrigação de respeitar os direitos humanos, de
não utilizar armas proibidas de não infligir deliberadamente condições de vida com a
intenção de causar a destruição física de um grupo nacional.
Como base da jurisdição do Tribunal Internacional de Justiça, a República Federal
da Jugoslávia invocou o artigo 36º/2 do Estatuto do Tribunal, com fundamento nas
declarações de aceitação de jurisdição emitidas tanto pelo autor 5 como pelo réu6, e
também o artigo IX da Convenção sobre o Genocídio de 1948.
Estas bases de jurisdição foram também invocadas, em conjunto ou separadamente, para fundamentar as acções intentadas contra outro membros da NATO,
também envolvidos na intervenção militar. Apenas nos casos contra a Bélgica e
Holanda foram também invocados tratados bilaterais.
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A resposta dos réus Em Julho de 2000, os oito réus depositaram junto do Tribunal
Internacional de Justiça a sua réplica, alegando essencialmente que o Tribunal não
tinha jurisdição para julgar o caso e que o caso era também inadmissível.
Este “incidente” processual faz normalmente suspender a análise do mérito da
causa, centrado-se o processo apenas nas questões de carácter processual até estas
estarem cabalmente resolvidas. Deixou-se, por isso, de discutir a (i)legalidade do uso
da força ou a comissão ou não de actos de genocídio, para se discutir apenas se o
Tribunal era ou não competente.
Portugal argumentou, juntamente com os outros membros da NATO, que a
República Federal da Jugoslávia não tinha locus standi perante o Tribunal, este não tinha
jurisdição e o pedido não era admissível.
A incompetência do Tribunal Internacional de Justiça devia-se a causas ratione
personae (a não qualidade de membro da ONU e de parte no Estatuto do Tribunal da
Jugoslávia)7, temporis (o limite temporal incluído na própria declaração de aceitação de
jurisdição do autor) e materiae (as alegações não se poderiam subsumir à previsão da
Convenção do Genocídio).
Um volte-face inesperado A queda do regime de Milosevic, que deu origem a uma mudança
interna de regime, mais democrático e pró-União Europeia e NATO, levou o novo
governo de Belgrado a solicitar a adesão da República Federal da Jugoslávia às Nações
Unidas, o que veio a acontecer em Novembro de 2000.
Em 20 de Dezembro de 2002, a Jugoslávia depositou junto do Tribunal Internacional
de Justiça as suas observações escritas sobre as excepções preliminares dos oito réus.
Num notável documento de apenas duas páginas, em que foi omitida uma resposta
a todas as outras excepções preliminares dos réus, a República Federal da Jugoslávia
limitou-se a dizer que, em virtude de novos factos entretanto ocorridos, ou seja, a
admissão da República Federal da Jugoslávia como membro da Organização das Nações
Unidas, em Novembro de 2000, este Estado não era, à data da instauração da acção, parte
do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça nem da Convenção sobre o Genocídio.
A Jugoslávia pediu então ao Tribunal que decidisse sobre a questão da jurisdição
com base nos elementos referidos nestas observações.
Esta mudança de atitude da Sérvia e Montenegro, que aproximou indiscutivelmente
as partes – preferindo ambas uma decisão negativa de competência do Tribunal –, levou a
uma tentativa de negociação quanto à possibilidade de uma desistência formal das acções.
7
Pois a República Federal da Jugoslávia tinha sido convidada pela Assembleia Geral e pelo Conselho de
Segurança a pedir a sua admissão à Organização das Nações Unidas e não tinha sido considerada pela
maioria da comunidade internacional como continuadora da personalidade jurídica internacional da
República Socialista Federal da Jugoslávia.
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As alegações orais de Abril de 2004 Nas alegações orais sobre a jurisdição do Tribunal, as
partes encontravam-se desta forma numa situação pouco comum, senão mesmo
peculiar, de concordância quanto à incompetência deste para se pronunciar sobre o
mérito da causa!
Recorde-se, a Sérvia e Montenegro (na altura República Federal da Jugoslávia)
intentou a acção em 1999, afirmando a competência do Tribunal Internacional de
Justiça e alegando que os países da NATO tinham violado o princípio da proibição do
uso da força e cometido genocídio, mas a partir do final de 2002 passou a sustentar
que, tal como alegado pelos réus, o Tribunal não tinha jurisdição para julgar o caso. O
argumento principal – e que o Tribunal acabaria por aceitar – era o de que, com a
admissão da República Federal da Jugoslávia como membro das Nações Unidas em
2000, a Sérvia de hoje já não é a Jugoslávia do passado.
Esta mudança de posição, que levou o autor da acção judicial a defender a
incompetência do Tribunal e o aproximou das partes adversárias, foi de tal forma
inédita e pouco usual que levou o advogado do Reino Unido, o Professor Christopher
Greenwood, a comparar – numa bem humorada passagem das alegações orais – o
advogado da Sérvia e Montenegro a um personagem da Alice no País das Maravilhas:
“None of the long line of authorities cited yesterday by counsel for the Applicant
comes anywhere near suggesting a different conclusion. Indeed, he might have done
better to have relied on the older authority of Humpty Dumpty, who told Alice, in Alice
Through the Looking Glass that ‘when I use a word it means just what I want it to mean;
neither more nor less’ (Lewis Carroll, Alice through the Looking Glass, Chap. 6). Appropriately
enough, Mr. President, Alice Through the Looking Glass is a fantasy story. Indeed, Humpty
Dumpty might have been rather impressed with the Applicant’s approach to the
meaning of words, since Humpty Dumpty appears to have thought that, once used,
his words retained the same meaning, while the Applicant’s words are clearly expected
to change with its changing intentions” 8.
8
Legality of Use of Force (Serbia and Montenegro v. United Kingdom), CR 2004/19, parág. 30.
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Contudo, a Sérvia e Montenegro nunca aceitou tal proposta, desejando manter a
face perante a sua opinião pública (que veria com maus olhos o abandono que uma
causa em que o povo sérvio tinha sido directamente alvo dos bombardeamentos da
NATO) e tentando capitalizar num possível impacto que uma decisão negativa de
jurisdição neste caso teria inevitavelmente nas duas acções intentadas no início dos
anos 90 contra si pelos genocídios cometidos na Bósnia-Herzegovina e na Croácia,
relativamente aos quais o Tribunal já se tinha considerado competente para proceder
para a fase do mérito.
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No final das alegações orais, Portugal pediu ao Tribunal Internacional de Justiça
que decidisse que ao Tribunal não era requerido decidir sobre as queixas apresentadas
pela Sérvia e Montenegro ou, em alternativa, que o Tribunal não tinha jurisdição e de
que o pedido não era admissível.
Pedidos semelhantes foram feitos também pelos restantes réus.
Por seu turno, a Sérvia e Montenegro manteve o seu pedido que o Tribunal se
pronunciasse sobre a sua jurisdição ratione personae nos presentes casos, que rejeitasse as
restantes excepções preliminares dos réus e que, caso considerasse ter jurisdição ratione
personae, prosseguisse para a fase do mérito.
A decisão de 15 de Dezembro de 2004 Como já foi referido, o Tribunal Internacional de
Justiça considerou-se incompetente para julgar o mérito da acção intentada pela Sérvia
e Montenegro contra Portugal e os outros réus.
No seu acórdão de 15 de Dezembro de 2004, comum aos oito casos (apenas com
pequenas variações que se prendem com as diferenças nas bases de jurisdição
existentes em relação a cada réu), o Tribunal começou por lidar com a excepção “pré-preliminar” que tinha sido invocada por todos e que decorria das ilações que
deveriam ser tiradas da mudança de posição da Jugoslávia quando à jurisdição do
Tribunal que acima descrevemos.
Com algumas diferenças quanto à qualificação jurídica concreta 9, os oito réus
argumentaram que, por força da alteração da posição da Jugoslávia, o Tribunal deveria
pôr um fim imediato ao caso, in limine litis.
Mas o Tribunal considerou que não podia atribuir qualquer efeito substantivo a
essa mudança de posição do autor, tal como pretendido pelos réus, pois a Sérvia e
Montenegro solicitava uma decisão sobre a jurisdição, não se podendo inferir da sua
conduta qualquer renúncia a uma decisão judicial ou o desaparecimento do diferendo
entre as partes.
Por esta razão, o Tribunal procedeu ao exame das outras excepções preliminares,
tendo começado por examinar se a Sérvia e Montenegro tinha acesso ao Tribunal em
1999, quanto intentou a acção, ao abrigo do artigo 35.º do Estatuto do Tribunal
Internacional de Justiça.
Na opinião do Tribunal, a questão de saber se a Sérvia e Montenegro era ou não
parte do Estatuto do Tribunal – apenas no caso de uma resposta positiva haveria a
possibilidade de intentar uma acção – era uma questão fundamental.
Portugal, juntamente com os restantes réus, tinha argumentado na peça escrita
(nas alegações orais, a ênfase dada a este argumento foi muito diminuta, dado o
9
Desistência unilateral, acordo tácito quanto à falta de jurisdição, ausência de disputa ou desaparecimento
da mesma, renúncia ao direito de acção, etc..
Negócios Estrangeiros . N.º 8 Julho de 2005
10
Para além disso o Tribunal havia afirmado em Fevereiro de 2003: “General Assembly Resolution 55/12 of
1 November 2000 cannot have changed retroactively the sui generis position which the Federal Republic
of Yugoslavia found itself vis-à-vis the United Nations over the period 1992 to 2000, or its position
in relation to the Statute of the Court and the Genocide Convention.” Application for Revision case (Serbia
and Montenegro v. Bosnia and Herzegovina), ICJ Reports 2003, parág. 71.
11
Legality of Use of Force (Serbia and Montenegro v. Portugal), ICJ Reports 2004, parág. 90. O Tribunal aferiu ainda
se a Sérvia e Montenegro poderiam ter acesso ao Tribunal Internacional de Justiça por força do Artigo
35.º/2, tendo igualmente chegado a uma conclusão negativa.
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caminho escolhido pelo próprio Tribunal Internacional de Justiça na fase das medidas
provisórias)10 que o autor não era membro das Nações Unidas e que, por isso, não era
parte do Estatuto do Tribunal, ao tempo do início do processo. Nos termos do artigo
93.º da Carta das Nações Unidas, fora o procedimento especial previsto no artigo 93.º/2,
só os membros da Organização são ipso facto partes do Estatuto e só a estes o Tribunal
está aberto.
O Tribunal recapitulou a sequência de eventos relevante para determinar o estatuto
jurídico da Jugoslávia perante as Nações Unidas entre 1992 e 2000, que era ambíguo e
controvertido. Contudo, o Tribunal chegou à conclusão que um novo desenvolvimento
ocorrido em Novembro de 2000 veio pôr um fim a esta ambiguidade.
A Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas 55/12, de 1 de Novembro,
que admitiu a República Federal da Jugoslávia como membro da Organização a partir
dessa data teve o efeito, para o Tribunal, de permitir a conclusão que antes dela a
Jugoslávia não era membro das Nações Unidas e, logo, não era parte do Estatuto do
Tribunal Internacional de Justiça no momento em que intentou a acção em questão.
Não o sendo, o Tribunal não estava aberto a qualquer direito de acção da sua parte.
Vale a pena citar o parágrafo relevante da decisão do Tribunal Internacional de
Justiça: “the Court concludes that, at the time of the filing of the Application to
institute the present proceedings before the Court on 29 April 1999, the Applicant in
the present case, Serbia and Montenegro, was not a member of the United Nations,
and consequently, was not, on that basis, a State party to the Statute of the International
Court of Justice. It follows that the Court was not open to Serbia and Montenegro
under Article 35, paragraph 1, of the Statute” 11.
Tendo encontrado um fundamento para a sua incompetência ratione personae – tal
como era pretendido pela Sérvia e Montenegro – o Tribunal absteve-se de se pronunciar
sobre as restantes excepções preliminares invocadas pelos réus.
A decisão dos juízes foi tomada por unanimidade, havendo consenso quanto a
não ser apropriado o Tribunal exercer a sua jurisdição neste caso.
Verificou-se, no entanto, uma profunda divisão entre os quinze juízes quanto à
fundamentação da decisão, tendo sete anexado ao acórdão uma fortíssima declaração
conjunta de discordância quanto aos fundamentos da decisão.
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Esta divergência deveu-se à escolha do principal fundamento para a incompetência do Tribunal segundo o qual a Sérvia e Montenegro não era membro das
Nações Unidas à data da instauração do processo em 1999, uma vez que foi
admitida como membro apenas em 1 de Novembro de 2000, estando-lhe negado
por esse motivo o acesso ao Tribunal Internacional de Justiça de cujo Estatuto não
eram partes. Sobretudo tendo em conta que, nas medidas provisórias, o Tribunal
tinha baseado as suas conclusões quanto à sua incompetência prima facie em
fundamentos ratione materiae e temporis e não personae. Na decisão final, foi este último
fundamento o único e decisivo.
Os juízes discordantes argumentaram que, embora o Tribunal tenha liberdade de
fundamentar as suas decisões e que não existe a regra do precedente, este órgão
judicial deve pautar-se por critérios de coerência e previsibilidade e que os argumentos acolhidos contrariam a jurisprudência anterior.
Possível impacto da decisão do TIJ A argumentação tecida contradiz jurisprudência anterior
do Tribunal em dois processos paralelos instaurados no início da década de noventa
pela Bósnia-Herzegovina e pela Croácia, em que a Sérvia e Montenegro se encontra na
posição de ré e a ser julgada pela prática de genocídio.
O futuro destes dois processos, em que o Tribunal já se tinha declarado competente – considerando que não necessitava pronunciar-se sobre a situação jurídica da
Jugoslávia entre 1992 e 2000, que era sui generis – e se preparava para iniciar a fase das
alegações orais na questão do mérito da causa, encontra-se agora seriamente comprometido pela decisão no caso em apreço que põe em causa a possibilidade de defesa da
tese da continuidade da personalidade jurídica da República Socialista Federal da
Jugoslávia pela República Federal da Jugoslávia (hoje Sérvia e Montenegro) e da
qualidade de parte da Convenção sobre o Genocídio.
Este processo tem já a sua próxima audiência marcada para Fevereiro de 2006, ou
seja, depois de tomarem posse novos juízes que serão eleitos no Outono de 2005.
Será, pois, imprevisível saber se o Tribunal irá ser coerente com a decisão tomada
em Dezembro de 2004, que nega a continuidade da personalidade jurídica da
Jugoslávia, considerando a Sérvia e Montenegro de hoje como uma nova entidade que
não pode ser, em coerência, responsabilizada pelas atrocidades do passado, ou se, mais
uma vez, se irá verificar uma alteração na sua posição do principal órgão judicial das
Nações Unidas.
De realçar, igualmente, que a evolução algo errática da jurisprudência do
Tribunal Internacional de Justiça, em matérias tão fundamentais e num momento
em que precisa de afirmar-se como o principal órgão judicial da comunidade
internacional, não contribui certamente para o reforço do seu papel e do Direito
Internacional.
Negócios Estrangeiros . N.º 8 Julho de 2005
para que fique documentado numa publicação lida pelos interessados na diplomacia e
nas relações internacionais como a Negócios Estrangeiros, um breve historial deste curioso
processo judicial em que, pela primeira vez, Portugal – embora sem ter chegado a ser
condenado – se sentou no banco dos réus no Tribunal Internacional de Justiça.
Não é esta, assim, a ocasião apropriada para debater a legalidade da intervenção
da NATO.
No entanto, e sendo certo que Portugal ficou satisfeito com o resultado final da
decisão do Tribunal Internacional de Justiça, de um ponto de vista académico e do
Direito Internacional teria sido certamente interessante se o Tribunal, caso fosse
competente para se pronunciar sobre o mérito, tivesse tido uma oportunidade para se
pronunciar sobre esta tão debatida questão.
É de salientar que, embora subsistam dúvidas na doutrina sobre a legalidade da
intervenção humanitária, existem também fortes indícios de que a consagração desta
excepção ao princípio da proibição do uso da força consagrado na Carta das Nações
Unidas pode estar já consolidada ou em vias de consolidar.
Ao discutir a legalidade da intervenção da NATO no Kosovo em 1999, o Professor
Bruno Simma – hoje juiz do Tribunal Internacional de Justiça – referia que “only a thin
red line separates NATO’s action from international legality”12. Ao mesmo tempo, o
Professor Antonio Cassese perguntava: “are we moving towards international legitimation
of forcible humanitarian countermeasures in the world community?”13.
A Declaração do Milénio, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em
2000, confirma sem margem para dúvidas, que a protecção dos direitos humanos se
tem desenvolvido no sentido de ser hoje também um dos princípios fundamentais do
direito internacional contemporâneo, a par da proibição do uso da força, da igualdade
soberana, da não interferência nos assuntos internos ou do direito à autodeterminação, gerando potencialmente situações de conflito de princípios, todos eles com um
estatuto de normas imperativas de direito internacional geral (jus cogens).
Foi também na Assembleia Geral do Milénio que o primeiro-ministro do Canadá
anunciou a criação de uma comissão internacional independente sobre a questão da
intervenção e da soberania dos Estados, para responder ao desafio que tinha sido lançado
pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, à comunidade internacional para
tentar construir um novo consenso que permita responder às violações maciças e/ou
sistemáticas de direitos humanos e do direito internacional humanitário.
12
B. Simma, “NATO, the UN and the Use of Force: Legal Aspects”, European Journal of International Law (1999),
Vol. 10/1.
13
A. Cassese, “Ex inijuria ius oritur: Are we moving towards international legitimation of forcible
humanitarian countermeasures in the world community?” Idem.
Negócios Estrangeiros . N.º 8 Julho de 2005
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Sequelas e conclusão – Uma responsabilidade de proteger? Neste artigo pretendemos fazer,
“Alice no País das Maravilhas”
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Esta Comissão tinha por mandato promover um debate aprofundado sobre estas
questões e propor um consenso global que permitisse lidar com a polémica ou, muitas
vezes, apatia da Comunidade Internacional, designadamente das Nações Unidas, e que
permitisse conciliar as noções aparentemente irreconciliáveis de soberania do Estado
e intervenção.
Composta por doze peritos independentes oriundos dos vários cantos do globo
(Canadá, Alemanha, Austrália, Índia, Filipinas, Suíça, Argélia, Estados Unidos, Rússia,
África do Sul e Guatemala), esta Comissão apresentou o seu relatório em 2001, que
teve o mérito de inverter o ónus neste debate, substituindo a ideia de um direito de
intervenção, pela “responsabilidade de proteger” e de fornecer indicações importantes
sobre quando e como deverá ceder o princípio da igualdade soberana dos Estados e se
seria legítima uma intervenção humanitária 14.
Esta ideia de uma responsabilidade de proteger foi acolhida positivamente no
importante relatório, publicado nos finais de 2004, do Painel de Alto Nível intitulado
“A more secure world: our shared responsibility” 15, que tratou a questão como uma “emerging
norm that there is a collective international responsibility to protect” 16.
Com base nesta abordagem, o Secretário-Geral das Nações Unidas propõe agora
no seu recentíssimo relatório “In larger freedom: towards development, security and human rights for
all” 17 que os Estados: “Embrace the ‘responsibility to protect’ as a basis for collective
action against genocide, ethnic cleansing and crimes against humanity.”
Será dentro destes parâmetros e para responder a estes desafios que a Comunidade
Internacional, alicerçada sempre na ONU, terá de evoluir, provavelmente com sacrifício de mais parcelas de soberania dos Estados. A tensão dialéctica entre soberania
e defesa dos direitos humanos será assim, a nosso ver, a grande temática internacional
dos novos tempos.
Não seriam já os dois primeiros preâmbulos da Carta das Nações Unidas, que
celebra este ano o seu 60.º Aniversário, premonitóriosa nesta matéria ao referir que:
“We the peoples of the United Nations determined to save the succeeding generations
from the scourge of war, which twice in our lifetime has brought untold sorrow to
mankind, and to reaffirm faith in fundamental human rights, in the dignity and worth
of the human person ...”? «....».NE
24 de Março de 2005
14
International Commission on Intervention and State Sovereignty, The Responsibility to Protect, 2001. Disponível
em www.dfait-maeci.gc.ga/iciss-ciise/report.asp.
15
Disponível em www.un.org/secureworld.
16
Cf. parágrafo 203 e recomendação 55.
17
A/59/2005 (21 de Março 2005).
Negócios Estrangeiros . N.º 8 Julho de 2005
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