EXPANSÃO DA ESCOLARIZAÇÃO – O INÍCIO DA UNIVERSALIZAÇÃO DO ENSINO NEVES, Dimas Santana Souza UNEMAT/UERJ [email protected] Este texto procura interpretar o sentido construído acerca do tema da universalização do ensino nas reformas de 1854 em três composições geopolíticas do Brasil: Mato Grosso, Corte Imperial e Minas Gerais. O objetivo é construir um entendimento acerca da formação discursiva que disseminou o ideário de escolarização pelo império com uma compreensão singular durante a década de 1850. Da mesma maneira tenho a pretensão de analisar o sentido das práticas de vulgarização do ensino que tinha a ver com idéia de iniciar um lento, porém contínuo, processo de universalização do acesso escolar. Neste texto busco destacar que as reformas da instrução pública daquela época tinham a finalidade de expandir o ensino para muito mais que propriamente generalizar pelo território nacional para todos os setores sociais da população brasileira. No entanto, constituiu-se como um conjunto de compreensões que permitiu aos governantes estabelecer o parâmetro para o começo da universalização. Ao unificar os argumentos com os temas da liberdade de ensino, gratuidade, responsabilidades, deveres do Estado e qualificação intelectual e social os dirigentes imprimiam um ritmo político em direção a extensão do atendimento escolar para fazer a sociedade perceber os benefícios da escolarização. Daí a importância de se entender que a vulgarização jamais significou universalização. Era a afirmação da ampliação para atender a outras camadas sociais e também estabelecer a exclusão de setores como negros escravos e diferenciar-se da catequese e civilização do indígena. Com esse sentido os discursos jurídicos e políticos construíram uma rede de comunicação que visou estabelecer as condições de iniciação à escolarização de maneira mais intensificada. Afinal, o objetivo central era ampliar a captura dos indivíduos para transformá-los em sujeitos escolares de acordo com os interesses do Estado, da família e de setores sociais, religiosos e econômicos. Introdução A questão da universalização do ensino é um dos primeiros temas a fazer, de maneira mais efetiva, a aproximação entre as vontades dos sujeitos, das famílias, do Estado e a relação com a escola. A ampliação do acesso ao ensino elementar, nas reformas da instrução pública ocorridas em 1854, em Minas Gerais, Mato Grosso e na Corte imperial, permite dizer que se confirmava, a partir das unidades discursivas sobre vulgarização do ensino, o interesse dos dirigentes pelo tema enquanto reconhecimento da necessidade de aumento do poder do Estado a partir da escolarização. Comparativamente, os discursos políticos que emergiram ampliando a escolarização possuíam, pelo menos, três características fundamentais. Por vezes era divulgado como um instrumento do poder do Estado para exercer sua atividade sobre as demais instituições, outras vezes como dispositivo estatal disponível para emancipação social e moral dos sujeitos visando alcançar outro estágio da sociedade, e em outros momentos como um direito da sociedade, a partir das famílias para os indivíduos, com a finalidade de obter acesso ao processo de escolarização estatal para afirmação enquanto sujeito diante do modelo. Nessas direções, os discursos jurídico-normativos foram acrescentados e organizou esse processo de acordo com os interesses de setores dirigentes, incluindo alguns e excluindo outros em busca de uma finalidade: o alcance da maior quantidade de indivíduos possíveis para que pudessem transformá-los em sujeitos escolares. O tema era interessante e compreendia acaloradas discussões, com compreensões diferenciadas e, muitas vezes, opostas. A universalização do ensino era um tema que extrapolava as lutas entre interesses oligárquicos e partidários. Enquanto um problema que afligia setores dominantes do ponto de vista econômico, social e cultural, como acentua Schueler (2002) afirmando que, tal qual na construção de vários modelos, o tema do acesso ao ensino era uma questão que dividia, principalmente as opiniões de parlamentares, jornalistas e professores em torno do assunto. Alguns favoráveis a ampliação do acesso a instrução em função da importância da conquista da civilização e outros contrários afirmando que no caso em que todas as pessoas estudassem faltaria mão-de-obra para as lavouras e ao setor comercial. Apropriados de maneira diferente nas formações discursivas jurídicas e políticas o tema da universalização do ensino era um tipo de pensamento que circulou pelas práticas dos dirigentes das diversas localidades. A intenção tinha motivações refletidas para a conquista da sociedade em busca da consolidação do poder estatal. Ampliação do atendimento – os discursos Nessa década, pelos documentos que tive acesso, na Província de Minas Gerais a questão era discutida em fase inicial. Do ponto de vista do poder executivo era como se fosse uma questão superada e acomodada. A própria regulamentação, somente atendeu ou atentou para esse princípio na terceira reforma da instrução pública do período aqui estudado, mais propriamente no ano de 1859. A normatização mineira de 1854 tocou no assunto da ampliação do ensino. Porém era um objeto de debate quase que exclusivamente da legislação que permitiu a realização da reforma. No entanto, havia algumas compreensões dotadas de uma leitura de que a autorização para reformar o ensino era entendida como meio para abrir e fazer funcionar, assim como compreendia a questão da se fechar escolas, em função da situação financeira existente na Província. A única apreciação dos governantes mineiros a respeito da expansão do ensino foi encontrada em relatório do início dessa década consignada por Antonio Bhering. O orçamento vigente fixa em 94:000$000 rs, a despeza da Instrucção; mas é evidente que esta quantia é muito limitada para satisfazer todas as despezas, com as cadeiras de primeiras lettras, em todas as Parochias, com as vantagens consignadas nos §§ 2º e 5º da Lei nº 516. Não se podendo exceder a quota decretada, deve-se limitar a creação destas Cadeiras á cabeças dos Municípios; o que não me parece muito justo, nem mesmo conveniente ás necessidades do nosso povo. Será excessivamente impopular a suppresão de muitas cadeiras, de cujos benefícios as Parochias já se achão de posse há annos. (MINAS GERAIS, RELATÓRIO, VICE-DIRETORIA DA INSTRUCÇÃO PUBLICA, 22 DE FEVEREIRO DE 1852). A preocupação desse dirigente da instrução mineira era com o volume de recursos disponíveis para a expansão escolar. Já interpretando a lei que autorizou a reforma, Bhering manifestou sua opinião a respeito da criação de mais escolas e também a provável necessidade de fechamento de estabelecimentos. Inclusive contrariando o pensamento do Presidente Sá do Rego que tinha a proposta de fechamento de escolas, o vice-diretor argumentava com alguns dados, diferentes de Mato Grosso e da Corte Imperial, uma certa preocupação com a opinião pública em casos de fechamento de escolas. Talvez por isso o Regulamento da Província mineira tivesse como efetiva preocupação a questão da organização, ou melhor, da reorganização da vida dos professores e o aumento do aparato fiscalizador do sistema. E como um dilema a questão da expansão ou retração do ensino foi pensada no âmbito dos dissabores da opinião pública. Ainda que tenha definido os componentes da sociedade que teriam acesso ao processo de escolarização e àqueles que não seriam permitidos o acesso a escola, a questão da universalização do ensino, aparentemente, não era tema relevante para os dirigentes mineiros para a reforma de 1854, ainda que estivesse na autorização uma concessão nesse sentido. A singularidade de Mato Grosso e da Corte Imperial está no fato de que os dirigentes dessas duas comunidades se preocuparam com a questão e trataram de resolvê-la. Primitivo Moacyr (1942, p. 534) reconheceu como busca de alcance da reforma a ampliação de escolas, considerando que “O projeto de reforma compreende as providências relativas a deficiência na quantidade de escolas primárias existentes, à extensão das matérias de que deve compor-se o 1º. grau do ensino e os melhoramentos da sorte dos mestres”. Essa era uma constatação do que havia definido a lei que autorizou a reforma em 1851 na Corte, esclarecida por esta exposição do Ministro Quanto ao primeiro ponto eram idéas essenciais da reforma as seguintes: vulgarisar e extender o ensino público; organizar melhor o magistério; dando vantagens no presente e segurança no futuro aos professores; mas exigindo delles também mais aptidão e maior zelo; preparar bons professores; regular as condições do ensino particular; e chamar para um centro de inspecção por parte do Governo os Collegios e estabelecimentos de ensino da Capital do Império. Guiado por taes idéas, e depois de haver compulsado os trabalhos, que já encontrou adiantados, e de ter consultado as pessoas habilitadas por sua leitura e prática neste ramo do serviço publico, formulou o Governo pelo Ministério ao meo cargo o Regulamento, que baixou com o Decreto de 17 de fevereiro do corrente ano. (CORTE IMPERIAL, RELATÓRIO, MINISTRO DOS NEGÓCIOS DO IMPÉRIO, 1854). Veja bem, a explicação de Couto Ferraz era muito objetiva. A idéia da reforma havia se concretizado no regulamento de 1854 como um dos pontos que consideravam a vulgarização ou extensão do ensino como um dos pontos “essenciais” para reforma. Mas não era apenas isso. A questão da reforma tinha motivos maiores de controle de setores sociais como assegurou nos demais temas dessas modificações implementadas. Na oportunidade em que afirmou “quanto ao primeiro ponto eram idéas essenciais da reforma as seguintes: vulgarisar e extender o ensino público [...]”, conclamava Ferraz para se ter, dentre outras preocupações a primeira relatada pelo administrador que era exatamente aquilo que denominava de “vulgarisação do ensino”. Disposição essa que não significou, de maneira alguma, a universalização do ensino, mas, simplesmente, a ampliação do processo de escolarização. Como na Corte, a expansão era uma questão que em Mato Grosso, por meio de escrito do Presidente da Província, havia sido compreendida como uma necessidade de se realizar. Já no início da administração do “bretão cuiabanizado”, a questão tomou dimensão, com os parlamentares concedendo autorização para a reforma da instrução pública tendo como um dos objetivos exatamente a vulgarização do ensino. Em relação a esse fato expressou o dirigente que Além de ser de inquestionável vantagem a vulgarisação dos primeiros conhecimentos litterários, basta que a instrucção primaria gratuita seja hum direito outorgado aos Cidadãos pela Constituição do Império, para que devamos considerar como de urgente necessidade a creação de, pelo menos, huma escola de primeiras lettras em cada Freguesia. Assim pois entendo que fizestes um verdadeiro serviço ao Paiz facultando ao Governo, na vossa última sessão, os meios de levar a effeito a mencionada creação. As Cadeiras achão-se todas providas. Está também em exercício a escóla para meninas que creastes nesta Capital.(MATO GROSSO, RELATORIO, PRESIDENTE DE PROVINCIA, 1851, PUBLICADO EM 1852). Note bem, a vulgarisação do ensino em Mato Grosso foi compreendida já com a norma permissiva à implementação da reforma da instrução. Portanto, a lei autorizativa da modificação nos regulamentos começou ser colocada em prática imediatamente. Como se a lei, por si só, permitisse um pragmatismo do poder executivo. Leverger entendeu dessa forma e começou a criação de escolas em todas as Freguesias da Província. A questão a se notar aqui era a perfeita ligação que existiu com a obrigação constitucional do Estado em oferecer ensino estatal e gratuito e a necessidade de ação política dos dirigentes. Portanto, um modelo de prestação de serviço, financiado pelo poder público, conforme previsto na Constituição outorgada em 1824. Este era um dos discursos que unia os interesses de algumas famílias, de políticos e do Estado. Ao elogiar a Assembléia Provincial, Augusto Leverger chamava atenção para a extensão que estava realizando do ensino. Não se tratava de uma idéia proposital de universalização, mas de ampliação da capacidade estatal de atendimento escolar. A vontade de expandir era tanta que a partir daquele momento, na Capital de Mato Grosso, houve, inclusive, uma escola pública para meninas com a determinação desse Presidente, conforme afirma Siqueira (2002). Há que se notar que havia escola para meninas. Todavia, era particular. A partir dessa ação levergeriana houve a existência da escola pública para meninas. Isto é, escola gratuita para atendimento da população mais pobre. Exatamente para a camada social que não poderia pagar as preceptoras ou as mestras de ensino doméstico ou mesmo, para as que não possuíam condições de arcar com os custos dos colégios particulares como os internatos, em algum lugar do Império. A expansão do ensino, a qualidade dos professores e os problemas do País. O tema da extensão da escola, isto é, a ampliação da malha de construção dos sujeitos era tão pacífica para o Presidente Bretão que ele não tinha dúvidas em relação a questão como manifestou diante do problema de falta de qualidade de professores. Entretanto persisto na opinião de que a acquisiação do conhecimento ainda muito imperfeito das primeiras letras sempre he um bem; e por isso não tenho duvidado prover as cadeiras vagas em sujeitos que o exame havia mostrado pouco habilitado para Regel-as; e até me pareceo dever nomear interinamente hum candidato que fora reprovado pelos examinadores, mas que não julguei menos idôneo do que outros que estão servindo. (MATO GROSSO, RELATÓRIO, PRESIDENTE DE PROVINCIA, 3 DE MAIO DE 1852, PUBLICADO EM 1853). Dois anos antes da reforma o administrador tinha tomado posição pela ampliação da rede escolar. Veja bem, sem se preocupar com todos os temas do sistema de organização do ensino. Apenas a questão do número de escolas, da ampliação do atendimento com o ensino público gratuito estava sendo perseguido por Leverger. Nessa decisão foi que o Presidente enfrentou muitos constrangimentos da época. Em uma sociedade oligárquica e escravista ampliou a malha escolar, em um convívio social patriarcal permitiu o acesso das meninas ao ensino público. Isto se constituía em práticas que reconhecia a importância da expansão do ensino. Ou como o próprio autor da narrativa dizia “a aquisição ainda muito imperfeito das primeiras letras sempre é um bem”. Não é sem explicações que ainda nos dias atuais Augusto Leverger é lembrado, adorado, rememorado, celebrado e cultuado. Alguns desses depoimentos nos ajudam a perceber a ação de ampliação por meio da construção do ideário civilizador pela escola na Capital do Império. Definido o processo de regulamentação os discursos proliferavam com o sentido de tentar fazer compreender as lutas governamentais pela implementação de políticas sociais na Corte. A política do Governo, como se vê nos antecedentes Relatórios e de diversos actos seus, não se tem limitado a promover os melhoramentos materiaes do paiz. Comprehendendo que não é esse o único elemento de civilisação e de progresso, e que na sociedade há também interesses de outra ordem, que reclamam igual attenção, tomou o Governo a peito a tarefa, já incetada pelos Ministérios precedentes, de melhorar, quanto lhe possível, a instrucção publica, aperfeiçoando-a e difundindo-a de modo mais efficaz ,por todas as classes. (CORTE IMPERIAL, RELATÓRIO, MINISTRO DOS NEGÓCIOS DO IMPÉRIO, 1856) O tema da expansão do ensino foi analisado, confrontado com o problema de ausência de infra-estruturas no Brasil. Por isso, este dirigente afirmou que o governo não se limitava aos melhoramentos materiais, isto é, não se preocupava somente com estradas, prédios, navegação, lavoura, empresas, enfim, com o setor econômico. Sabia e afirmou a existência de “interesses de outra ordem”, que necessitava dos mesmos esforços do governo imperial. Nesse quadro, o governante assinalou que a administração tomou “a peito a tarefa” de melhorar a instrução pública “o quanto for possível”. Os objetivos foram então divulgados “aperfeiçoando-a e difundindo-a de modo mais eficaz, por todas as classes”. Em outras palavras, a vulgarisação do ensino, que entendo como a representação de expansão da escolarização visava, sobretudo, alcançar crianças de todas as “classes sociais” e não de todas as “condições jurídicas” que deveria ser o debate também a ser feito. A ampliação não garantia o acesso ao negro escravo, aos portadores de doenças contagiosas e aos não vacinados. Esse será outro tema de conversa. Com a definição da expansão do ensino veio com ela o tema da obrigatoriedade do ensino e a melhoria da qualidade do serviço dos professores. Nesse aspecto, outros problemas emergiam dessa realidade. Além da resistência das famílias em enviar os filhos às escolas, a questão da escola pública e da particular ainda preocupava os dirigentes como acontecia em Mato Grosso. Criando Escolas em todas as freguesias e aplicando à sua manutenção mais da quinta parte da renda pública, o Poder Legislativo Provincial deu provas da consideração que lhe merece este importante ramo de serviço e do respeito que consagra ao artigo da Constituição, que garante a Instrução Primária gratuita a todos os cidadãos. Infelizmente não se conseguiram todas as vantagens que se deviam esperar de tão liberal medida. Vê-se pelo resumo acima que o número de meninos que recebem o ensino, em algumas dessas Escolas, é muito diminuto em relação à população das respectivas freguesias; e a existência de Escolas Particulares, tanto ou mais freqüentadas do que as Públicas, leva-me a atribuir a falta de alunos nesta à incapacidade dos professores ou pelo menos à pouca confiança, que têm neles os chefes de família. (MATO GROSSO, PRESIDENTE DE PROVINCIA, 1854). Pela narrativa pode-se afirmar que Leverger considerou cumprida a idéia de expansão do ensino na Província, principalmente pela existência de escolas em todas as freguesias e devido a aplicação da “quinta parte” da renda pública1. A dificuldade era de outra ordem: a qualidade dos professores. Pelos números apresentados e pela realidade 1 Valor esse que equivale a 20% do montante arrecadado e que está muito próximo dos números que ainda hoje temos para destinados para a educação e que somente a poucos anos superamos, tanto em Mato Grosso como na grande maioria dos estados brasileiros. considerada, a situação não havia melhorado mesmo com a expansão da escolarização, pois o número de crianças atendidas pelas escolas ainda era muito “diminuto”. Segundo o dirigente o problema se encontrava nos profissionais do ensino público devido, nas suas palavras, “a incapacidade dos professores ou pelo menos a pouca confiança, que tem neles os chefes de família”. Um significado que pretendo relativizar. Talvez fosse, em partes, essa realidade, porém havia outras motivações além dessas mencionadas. A questão da responsabilidade das famílias pela instrução dos filhos, a resistência ao controle do Estado, a maior capacidade e qualidade nos equipamentos das escolas particulares. Sem contar as relações de amizade, parentesco, políticas, econômicas e partidárias dos professores particulares naquele período, que poderiam render maior número de alunos para suas escolas. E, com esses relatos fica demonstrado que houve resistências a escolarização pública. O não atendimento da população ao chamado do ensino estatal talvez fosse compreensível pelo aspecto do confronto com a sociedade na questão da responsabilidade pela “formação” da mocidade. Também pode ser entendida ao se perceber as práticas de dirigentes das escolas particulares que, com muita possibilidade, induziam as famílias a afirmar que a responsabilidade pela “educação” das crianças e jovens era dos pais e que não admitiam a interferência do poder estatal sobre o pátrio poder. Como era a discussão entre libereis e setores sociais, principalmente na Corte quando da afirmação do ideário da “liberdade do ensino”. E ainda é possível que setores da igreja alimentassem essa idéia junto as famílias. Até porque uma parte dos professores públicos e mesmo de muitos colégios particulares eram padres. No mínimo estavam ligados a igreja como a instrução pública em algumas situações, mais visível no caso de Minas Gerais com o Vice-Diretor Geral e também diante da própria unidade umbilical entre Igreja e Estado que a monarquia havia reconstruído neste Pais. Todavia, é necessário e mais verdadeiro ainda, e porque não dizer, há que se buscar fazer justiça na leitura acadêmica e reconhecer que havia um esforço de setores governamentais em produzir não a universalização do ensino, mas a extensão para outros setores sociais, a ampliação do atendimento escolar para as camadas mais pobres da população. Fato esse que faz crer na questão da expansão escolar colada com idéias cujos temas eram a liberdade, qualidade e gratuidade do ensino para superação das controvérsias. Quanto a definição legal dos regulamentos da instrução pública o assunto da ampliação ficou ligado às condições oferecidas para o acesso das crianças ao ensino, isto é, a quantidade de escolas. Relacionaram ainda com a questão das multas aplicadas aos responsáveis que não fizessem matrícula dos alunos nas escolas e que estivessem em condições sociais e jurídicas exigidas. Nesse sentido, incluíram também o assunto do pagamento do material referente ao custeio escolar do estudante indigente. Temas essas que serão estudados em outras oportunidades. Aqui penso mais em trabalhar com a interpretação dos discursos que visaram a ampliação da oferta escolar e a relação com as responsabilidades. Penso que Couto Ferraz era mais comedido nas palavras acerca da instrução pública. No entanto, foi objetivo e preciso na definição que teve a respeito do processo de expansão do ensino ou vulgarização como ele ensinou. Por isso, no mesmo relatório de 1854 ao explicar o processo de criação de escolas e o atendimento com material para crianças pobres informou que “não tem neste auxílio o Governo por único alvo prestar socorro público, mas também o interesse do Estado, preparando em vantagem sua o futuro da infância desvalida”. Em outras palavras, mas do que o interesse das pessoas, dos indivíduos, da família, da igreja e de qualquer outro grupo social, a importância principal era produzir “vantagem” para o Estado. Discurso esse que tinha como objetivo convencer as demais autoridades a voltarem os olhos para os interesses com a instrução em benefício da Monarquia. A partir dos regulamentos, principalmente na Corte e em Mato Grosso o discurso da vulgarização do ensino se tornou um tema quase que incontroverso. Ao menos na compreensão de Euzébio de Queiroz Provar hoje as vantagens, digamos mais, a necessidade vital do derramamento e propagação da instrucção primaria, fôra, como já disse alguém, condemnar-se a um lugar commum milhares de vezes repetido; fôra tentar a demonstração do que nem por um só instante póde apresentar aspecto duvidoso para todo o espírito serio e reflectido, e irrogar atroz injuria á sabedoria e illustração dos legisladores do Brasil, que, compenetrados das verdadeiras condições de ordem e da liberdade, estabelecerão no Código Fundamental, entre as garantias dos direitos dos cidadãos e como dívida do Estado, a instrucção primaria gratuita. (CORTE IMPERIAL, RELATÓRIO, INSPETORIA GERAL DA INSTRUÇÃO, PUBLICADO EM 1856). Ao que os escritos indicam, o discurso de Eusébio tratava de conformar como definitiva a questão da ampliação do ensino. Pelas suas idéias concebia o “derramamento e propagação da instrução primária” como um “lugar comum tantas vezes repetido” e em cujo tema o debate já se encontrava superado. Para o dirigente, as pessoas que tentassem provar o contrário poderiam “apresentar aspecto duvidoso para todo espírito sério e refletido” e mais, pois, poderiam disseminar “injuria à sabedoria e ilustração dos legisladores do Brasil” que tomados por um sentimento de compenetração nas idéias de “ordem e liberdade” haviam definido essa garantia. Assim, a questão da vulgarizarão da escola era garantia de direitos aos cidadãos como “dívida do Estado” para cumprimento da Constituição. Esse discurso do Inspetor Geral da instrução talvez fosse uma resposta a algum parlamentar ou a setores sociais a respeito da expansão do ensino. Fato demonstrativo de que, na realidade, Eusébio já tinha a determinação política e a vontade pessoal de fazer avançar a instrução pública discutindo outros temas e não mais a expansão do ensino que considerava “lugar comum” ou tema incontroverso que deveria apenas ser executado por todo o Império. Posição com a qual concordo em partes, uma vez que em muitas províncias, como em Minas Gerais esse tema ainda não havia sido resolvido e estava, pelos escritos que encontrei, em fase inicial de debate. Não porque esqueceram, mas, principalmente porque acreditavam que a instrução pública realizada pelo governo era o suficiente e superior a quase todas as províncias brasileiras como se verifica nos relatórios dos dirigentes mineiros e nos documentos oficiais do Ministério dos Negócios do Império dessa década.2 Conclusão O instigante foi perceber nestes discursos os modos como foi emergindo e quais os interesses estavam no interior dessas compreensões produzidas para construção das reformas da instrução pública em 1854 e as tramas da luta pelas suas aplicações. Um tempo de aumento da escolarização, de expansão do processo de ensino, de crescimento das possibilidades educativas. Mas ainda não para todos. Ampliação essa que significava permitir o acesso escolar apenas aqueles que estavam jurídica e socialmente em condições de receber tais direitos. Por isso posso afirmar que as reformas de 1854 não tinham como objetivo a universalização do ensino como proposto pela França. Ao contrário, visaram disciplinar a sociedade para demonstrar quem podia e à quem não era permitido o acesso ao ensino. Por isso impediram ao negro escravo do atendimento pela 2 Relatório de Antonio José Ribeiro Bhering chega a denominar a Província mineira de “pátria das ciencias e das belas letras, pois segundo o dirigente “Quem poderá affirmar em boa fé que conserva-se estacionaria entre nós a instrucção da mocidade? Aqueles que julgão do estado da província em relação as lettras e sciencias, tendo em vista os paizes mais adiantados na carreira da civilisação, não podem deixar de errar, e condoer-se pela sorte de seus concidadãos; mas os que attende para o que eramos a 30 annos, para o que temo sido neste espaço, e para o que podemos ser em um futuro bem próximo, esses tem todos os elementos para uma ajustada apreciação do desenvolvimento intellectual da juventude Mineira; esses só tem motivos para se encher de nobre orgulho na concideração de que nascerão em Minas, que eu chamarei – Pátria das Sciencias, e das Bellas Letras. – Immenso é o espaço que temos percorrido em tão poucos annos de existência Política, e Social”. (MINAS GERAIS, RELATORIO, VICE-DIRETOR DA INSTRUCÇÃO PÚBLICA, 25 DE FEVEREIRO DE 1855). escola, assim como destinaram a catequese e civilização a maioria da população indígena e ao mesmo tempo realizaram tantos modos de classificação dos sujeitos para que pudessem criar condições de selecionar ainda mais os sujeitos das escolas. As relações com os demais temas serão feitas em outra oportunidade. Aqui interessa perceber que não havia um comprometimento de entender as reformas de 1854 como um projeto civilizador para toda a sociedade, mas somente como um modo preciso de ampliação da escola, de expansão de ensino e não a idéia de universalidade de oportunidades. Nesse sentido, posso afirmar que os dirigentes não mentiam a esse respeito, sequer dissimulavam em seus discursos. Eles queriam afirmar isso mesmo. Vulgarização com o sentido de ampliação e não como modo de permitir acesso irrestrito ao ensino escolar público. Vulgarização e obrigatoriedade como ações dos dirigentes e das famílias para os objetivos do Estado. Referencial teórico. FOUCAULT, Michel. Poder e saber. In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos IV: Estratégias poder-saber. Organização dos Textos de Manoel Barros da Motta; Tradução de Vera Lúcia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2003. pag. 223240. MOACYR, Primitivo. A instrução primária e secundária no Município da Corte na regência e na maioridade – separatas dos “Anais” do terceiro congresso de história nacional. Volume V. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1942. BN 281, 7, 12, nº 08. SIQUEIRA, Elizabeth Madureira. O Cenário Educacional de Mato Grosso no Século XIX e a Contribuição de Augusto Leverger. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso, Cuiabá: Entrelinhas; 2002, p. 17-32. SCHUELER, Alessandra Frota Martinez de. 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