Se o coração fosse o mundo, Cristina Camargo pintava afectos Para Cristina Camargo, o conhecimento através das artes fica no DNA. O coração da artista plástica - filha de mãe brasileira (S.Paulo), pai portuense e neta de galegos - ocupa o espaço todo: “Não é possível estar só naquele cantinho. E as artes também ocupam tudo”. Cristina, “que vem do mundo” e nasceu em Lisboa, “por acaso”, não se sente propriamente portuguesa. “É natural tratar todos por tu”, sorri. Talvez os laços familiares espalhados pelo mundo tenham contribuído para a postura livre, desprendidamente leve e o sorriso fácil da pintora. Eram o início dos 90s e Cristina terminava a formação em Pintura nas Belas Artes da Universidade do Porto. A esta, juntou-lhe outras como o Design Industrial, na ESAD. O ensino das artes e a relação com as pessoas sussurravam-lhe a prioridade do seu percurso, “visto como fora do circuito das artes plásticas”. Para uma carreira artística de relevo talvez tivesse de emigrar - “tal como agora”, ironiza - e, na altura, com duas filhas pequenas, essa ideia não era prioritária. Com um portfólio bastante denso e obras espalhadas pelos continentes, Cristina tem uma postura peculiar neste universo das artes plásticas. Para ela, o seu trabalho passa pela arte de contar estórias e isso “passa por viver as estórias dos outros”. Contraria a ideia única da contemplação e defende, plenamente, a arte enquanto estímulo e uma relação activa do sujeito para com a obra. Talvez por isso, uma das características provocadoras e genuínas do seu trabalho passa por deixar as pessoas viverem-no, espontaneamente. “Não é uma arte efémera, mas até pretende sê-lo. É para ser vivida e não para me lembrarem daqui a 100 anos”, explica enquanto vai dando exemplos de várias obras com peças que podem ir sendo facilmente retiradas ( como os pássaros de vidro ou de ferro que predominam nas suas obras, pinturas ou instalações) , durante as exposições e contando peripécias como quando uns clientes lhe ligaram, aflitos, porque o trabalho (ainda) não estava assinado e Cristina foi a correr para o aeroporto. “Se levaram bocadinhos é porque gostaram”, ri. Quem parece ficar mais atrapalhado com esta postura de Cristina são mesmos os galeristas, quando advertem que não se pode mexer e a pintora incentiva à acção: “Não, é mesmo para mexer. Muitas vezes deixo os pigmentos soltos. Se não estão misturados, por vezes, se se soprar aquilo voa.” E “aquilo”, a obra que Camargo cria é para ter a “participação de quem a vê”. Só assim lhe faz sentido. E não se trata de desapego, a relação que tem com as obras, antes a necessidade de “não terem dono”. Nunca assina nenhum trabalho quando os expõe porque "sente que precisam de respirar por eles” e vai assinando-os “à medida q vão saindo de casa”. E fá-lo apenas para terem uma “espécie de Bilhete de Identidade de quem é o progenitor”. O que lhe importa, verdadeiramente, são os afectos. A partilha destes. As pessoas, a comunicação, o estímulo pela e da arte, a arte do pensamento. Pensar através dos sentidos. Gosta do contraditório e dos opostos e de saber como os opostos conseguem viver, perfeitamente, juntos. “Quer pessoas, quer materiais.” E o trabalho de Cristina Camargo, que gosta de “sentir os materiais” aliados a uma pintura quase imaterica feita de transparências, resulta de contraste implícito que é sentir o pensamento. FILIPA MORA , jornalista