UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE Wanda Maria da Silva Ferreira Lima O ciclo do Marabaixo: permanências e inovações de uma festa cultural SÃO PAULO 2011 UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE Wanda Maria da Silva Ferreira Lima O ciclo do Marabaixo: permanências e inovações de uma festa cultural Dissertação apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie, como parte das exigências do Curso de Pós-Graduação em História, para obtenção do título de “Mestre”. Orientadora: Professora Doutora Maria Aparecida de Aquino SÃO PAULO 2011 L732c Lima, Wanda Maria da Silva Ferreira Ciclo do Marabaixo : permanências e inovações de uma festa cultural – Wanda Maria da Silva Ferreira Lima. São Paulo, 2011 131 f. : il. , 30 cm Dissertação (Educação, Arte e História da Cultura) Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2011. Referências bibliográficas: f. 148-150. 1. Marabaixo. 2. Cultura. 3. História. I. Título. CDD 306.34209034 UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE Wanda Maria da Silva Ferreira Lima O ciclo do Marabaixo: permanências e inovações de uma festa cultural Dissertação apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie, como parte das exigências do Curso de Pós-Graduação em História, na área de História Cultural, para obtenção do título de “Mestre”. APROVADA: em 26/08 de 2011 COMISSÃO EXAMINADORA: ______________________________________________________ Dra. Maria Aparecida de Aquino (Orientadora) ______________________________________________________ Dr. Antônio Rago Filho ______________________________________________________ Dr(a).Ingrid Hötte Ambrogi DEDICATÓRIA Aos Meus Pais, pela vida, pelo amor, pela dedicação, pela educação, e pelo apoio integral em todos os momentos, pois, sem eles, meus passos não seriam os mesmos. Eles são a minha fortaleza. AGRADECIMENTOS A Deus, minha Rocha e Senhor dos meus caminhos. Apraz-me agradecer a todos os meus professores do curso de mestrado pelo incentivo, pela acolhida e por todas as sugestões que foram fundamentais durante toda essa caminhada. Em especial o meu agradecimento ao professor Marcos Rizolli por todas as oportunidades de crescimento e amadurecimento que a sua sensibilidade profissional contribuiu para que eu me tornasse um ser humano melhor. A minha orientadora Maria Aparecida de Aquino por toda dedicação, compreensão, estímulo e por todas as exigências crescentes que me foram impostas a medida que se caminhava para a conclusão Ao Mackpesquisa, o meu sincero agradecimento pelo apoio recebido através do Fundo Mackenzie de Pesquisa. Agradeço a Assessoria de Pesquisa e Bolsas- APB da Universidade Presbiteriana Mackenzie pela atribuição da bolsa CAPES-PROSUP – Mod. II. Agradeço ao IBRIT- Instituto Brasil Itália, em nome do senhor Marco Antonio Ribeiro Vieira Lima, por todo apoio recebido durante o seminário “Identidades Culturais no Brasil Contemporâneo”, realizado em Milão- Itália, em 2010. Agradeço a todos os colegas da turma do curso de mestrado, pelas sugestões, críticas e apoio, e, em especial, aos amigos Márcio Antonio Faria, Elisabete Priedols, Priscila Rosin, Fabiana, Rosely Mulin e Juliana Rotta, pela amizade e torcida que, carinhosamente, fui recebendo durante toda a trajetória. Ao Governo do Estado do Amapá, pela liberação concedida. Agradeço todo o apoio e incentivo das Direções da Escola de Música Walkíria Lima: Silvia Gomes Corrêa, Rose, Socorro Santos e Sandra Meireles bem como o carinho e a torcida dos professores e funcionários da Escola. À Confraria Tucuju, pela doação de material e pelo incentivo. Ao sociólogo Fernando Canto, pelo apoio, pelo incentivo e por todo material doado. Ao grupo de Marabaixo Raízes do Bolão eu agradeço os momentos de prosa, pelas informações e por todo carinho dispensado sempre que solicitados em me atender. Com muita gratidão, à família Ferreira Lima, indispensáveis em todos os momentos. Pelo carinho, pelo sonhar juntos. Em especial a minha irmã Mary Lima pelo amparo e acolhida e a minha irmã Suzana Lima pelo incentivo, pelo carinho e amizade de todos os dias. A Ligia Katia da Silva Gama, pela torcida, pela solidariedade e pela amizade. A Hilda Seabra e família, pelas orações diárias e por todo e incentivo e solidariedade. A Denise Araújo pela contribuição de suas leituras. Um agradecimento especial à Danniela Ramos por todo apoio recebido, pela amizade, pelas orações, pela torcida e por ter me recebido e apresentado à Associação Cultural Raimundo Ladislau ―Marabaixo no Laguinho e ainda por todo esforço dedicado para a realização dessa pesquisa. Ao senhor Munjoca e sua família por me acolherem na casa do festeiro. À Associação Cultural Raimundo Ladislau ―Marabaixo no Laguinho, por me ensinarem a acreditar na possibilidade de um mundo melhor. Ao Divino Espírito Santo e à Santíssima Trindade, pela proteção e por todas as bênçãos alcançadas. Esta dissertação recebeu o apoio do MACKPESQUISA RESUMO A presente dissertação visa compreender o que representa a Festa do Marabaixo para a Associação Cultural Raimundo Ladislau, enquanto grupo praticante e mantenedor dessa tradição cultural, através da noção de representação proposta pelo historiador Frances Roger Chartier. O cenário escolhido para o estudo da presente pesquisa foi o Centro Cultural Tia Biló, localizado no bairro do laguinho na cidade de Macapá, Estado do Amapá, durante a festa do “Ciclo do Marabaixo” que aconteceu no período de 24 de abril a 26 de junho de 2011. A dissertação parte de uma investigação sobre a Festa do Divino Espírito Santo em Portugal, no Brasil e em Macapá, através de uma abordagem histórica, apresentando algumas versões sobre a origem da festa, sua origem filosófica e a influência do pensamento de Joaquim de Fiore. Faremos, também, referência a algumas práticas da festa em Portugal, buscando o simbolismo da festa para o grupo Raimundo Ladislau. Apresentamos, também, o desenvolvimento da festa do Ciclo do Marabaixo realizado pela Associação que foi registrada através de fotografias e de áudio do evento bem como a realização de entrevistas semiestruturadas com os integrantes do grupo. Em seguida, apresentaremos uma abordagem histórica sobre a relação da Igreja com o Marabaixo, partindo das informações descritas em um artigo de jornal datado de 1895 até chegarmos ao ano de 2011, onde observamos as relações de tensões entre a igreja e os brincantes do Marabaixo. No momento seguinte trataremos da relação do Marabaixo com o Governo do Estado observando as formas de representação presentes nessa relação e como cada um se apropria dos seus bens simbólicos, e ainda, como o evento vai se transformando na principal manifestação cultural e a maior referência identitária do patrimônio histórico-cultural do Estado do Amapá. Palavras-chave: Festa do Marabaixo; representação; práticas; festa cultural. RESUMEN Esta tesis tiene como objetivo entender que es la Fiesta de la Asociación para la Cultura Marabaixo Raimundo Ladislao, practicar en grupo y encargado del mantenimiento de esta tradición cultural, a través de la noción de representación propuesto por el historiador francés Roger Chartier. El escenario elegido para el estudio de esta investigación fue la tía Bilo Cultural Center, ubicado en el barrio de la laguna en la ciudad de Macapá, Amapá Estado, durante la fiesta del "Ciclo de Marabaixo" que tuvo lugar del 24 a 26 ab junio de 2011. La parte de una tesis doctoral en la fiesta del Espíritu Santo en Portugal, Brasil y Macapá, a través de un enfoque histórico, la presentación de algunas versiones del origen de la fiesta, su origen y la influencia del pensamiento filosófico de Joaquín de Fiore. También se hará referencia a algunas de las prácticas del partido en Portugal, en busca de la simbología de la fiesta para el grupo de Ladislao Raimundo. Aquí, también, el desarrollo de la Marabaixo ciclo de las fiestas de la Asociación que fue registrado a través de fotografías y el audio del evento y la realización de entrevistas semi-estructuradas con los miembros del grupo. A continuación, presentamos un enfoque histórico sobre la relación entre la Iglesia y Marabaixo la base de la información descrita en un artículo periodístico en 1895, hasta llegar al año 2011, donde se observa la relación de tensión entre la iglesia y el Marabaixo brincantes. Al momento siguiente, nos dirigimos a la relación de Marabaixo con el Gobierno del Estado bajo la forma de representación presentes en esta relación y cómo cada uno se apropia de sus bienes simbólicos y, sin embargo, como el evento se está convirtiendo en la principal expresión cultural y la identidad de la referencia más grande patrimonio histórico y cultural del estado de Amapá. Palabras clave: Partido Marabaixo, la representación, las prácticas, el festival cultural. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Mazagão, a cidade que veio da África ..................................................................... 40 Figura 2 - Matéria “Marabaixo, a expressão do nosso folclore” .............................................. 41 Figura 3 - Jornal Pinsonia de 1895 ........................................................................................... 43 Figura 4 - Tia Biló, única filha viva do Mestre Julião, cantando um ladrão de marabaixo na abertura do Ciclo do Marabaixo, 2011 ..................................................................................... 49 Figura 5 - Início do Ciclo do Marabaixo, 24 de abril de 2011 ................................................. 50 Figura 6 - O caldo de carne e bebida gengibirra: iguarias servidas durante a festa ................. 51 Figura 7 - O mastro enfeitado com a murta .............................................................................. 53 Figura 8 - Os dois mastros em homenagem ao divino espírito santo, na frente da casa do festeiro ...................................................................................................................................... 54 Figura 9 - Decoração do mastro com a murta antes de ser erguido.......................................... 55 Figura 10 - Início do levantamento do mastro, que acontece religiosamente às 06h da manhã, de acordo com a tradição .......................................................................................................... 55 Figura 11 - Altar preparado na casa dos devotos para receber a procissão da murta ............... 56 Figura 12 - A saída do cortejo em frente à casa do festeiro que vai buscar a murta ................ 56 Figura 13 - Procissão com a murta pelas ruas do bairro do laguinho....................................... 57 Figura 14 - Casa decorada com as cores do santo (santíssima trindade) para receber a procissão da murta .................................................................................................................... 57 Figura 15 - Chegada da procissão da murta em frente ao altar na casa do festeiro .................. 58 Figura 16 - Novena realizada pelo seu João na casa dos festeiros ........................................... 59 Figura 17 - Novenas são realizadas em frente do altar onde estão as coroas do Divino Espírito Santo e da Santíssima Trindade ................................................................................................ 59 Figura 18 - O padre com as roupas nas cores que simbolizam a coroa da Santíssima Trindade .................................................................................................................................................. 62 Figura 19 - O translado da coroa do Divino até a casa do festeiro ........................................... 63 Figura 20 - O translado da coroa após a missa até a casa do festeiro feito com o acompanhamento das caixas do Marabaixo ............................................................................. 63 Figura 21 - O café da manhã servido logo após a missa, na casa do festeiro ........................... 64 Figura 22 - A coroa da Santíssima Trindade na igreja São Benedito ....................................... 65 Figura 23 - O grupo de Marabaixo Raimundo Ladislau na missa ............................................ 66 Figura 24 - Vanessa, a mais nova integrante do grupo, com apenas três anos de idade, na missa em homenagens a Santíssima Trindade.......................................................................... 66 Figura 25 - O símbolo da pomba na coroa ............................................................................... 67 Figura 26 - Divulgação do I Festival de Ladrão de Marabaixo, realizado pela Confraria Tucuju ....................................................................................................................................... 72 Figura 27 - A Associação Cultural Raimundo Ladislau no I festival de Ladrão de Marabaixo .................................................................................................................................................. 73 Figura 28 - Pronunciamento de Daniella Ramos na igreja São Benedito durante o manifesto, em 2009, após desligarem o microfone .................................................................................... 83 Figura 29 - Manifesto do grupo Raimundo Ladislau, na igreja de São Benedito, com a murta na mão, em 2009....................................................................................................................... 84 Figura 30 - Daniella Ramos na igreja de São Benedito, com a murta na mão, em 2009 ......... 84 Figura 31 - A procissão da murta após a manifestação na igreja São Benedito, em 2009 ....... 85 Figura 32 - Missa do Divino Espírito Santo, com o padre vestido com as cores que simbolizam o santo ................................................................................................................... 88 Figura 33 - Grupo de Marabaixo durante o canto final na igreja ............................................. 89 Figura 34 - Leitura feita por um dos membros do grupo de marabaixo durante a missa ......... 89 Figura 35 - Mapa do Amapá ..................................................................................................... 96 Figura 36 - Reforma na casa da Tia Biló (casa do festeiro) em 2011 ...................................... 99 Figura 37 - Ambulantes e brincantes na frente da casa do festeiro ........................................ 100 Figura 38 - Os brincantes do Marabaixo em frente da igreja de São José praticando a luta da carioca, em 1948 ..................................................................................................................... 101 Figura 39 - Poço do mato ....................................................................................................... 102 Figura 40 - Museu Sacaca ...................................................................................................... 104 Figura 41 - Museu Sacaca ...................................................................................................... 104 Figura 42 -Portaria Municipal que designa uma comissão responsável pela organização da festa do Marabaixo ................................................................................................................. 108 Figura 43 - Trecho da matéria sobre o “Marabaixo: expressão maior do nosso folclore” ..... 109 Figura 44 - Trecho da matéria sobre o “O folclore por mar a baixo”..................................... 110 Figura 45 - Assembleia Pública sobre o Dia Estadual do Marabaixo, na Assembleia Legislativa do Estado ............................................................................................................. 115 Figura 46 - Os homenageados no Dia Estadual do Marabaixo, na Assembleia Legislativa. . 116 Figura 47 - Integrantes do grupo de Marabaixo e funcionários do Governo do Estado do Amapá, no 6º Salão de Turismo, em São Paulo ..................................................................... 117 Figura 48 - Apresentação do Grupo de Marabaixo no 6º Salão de Turismo, em São Paulo .. 117 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 14 1 Referencial teórico ............................................................................................................. 17 2 Desenvolvimento da dissertação ........................................................................................ 23 CAPÍTULO 1 ........................................................................................................................... 25 1 Origens da Festa do Divino Espírito Santo em Portugal ................................................... 25 2 O modelo festivo ................................................................................................................ 30 3 O simbolismo ..................................................................................................................... 34 4 A Festa de Divino Espírito Santo no Brasil ....................................................................... 36 4.1 A Festa do Divino Espírito Santo no Amapá .............................................................. 38 4.2 A Festa do Divino Espírito Santo em Macapá pelo Grupo de Marabaixo Raimundo Ladislau ............................................................................................................................. 47 5. Simbologia do Ciclo do Marabaixo .................................................................................. 73 CAPÍTULO 2: O MARABAIXO E A IGREJA....................................................................... 75 CAPÍTULO 3 O GOVERNODO AMAPÁ E A FESTA DO MARABAIXO.........................90 CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 118 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 122 ANEXOS ................................................................................................................................ 126 ANEXO I - CARTA DA ASSOCIAÇÃO RAIMUNDO LADISLAU AO BISPO DE MACAPÁ ............................................................................................................................... 127 ANEXO II - PARTITURA DE LADRÃO DE MARABAIXO ............................................. 129 ANEXO III - FOLDER COM A PROGRAMAÇÃO DO CICLO DO MARABAIXO ........ 130 14 INTRODUÇÃO “A Associação Cultural Raimundo Ladislau ―O Marabaixo do Laguinho agradece a presença de todos e convida para que juntos, cantando, possamos dar início ao Ciclo do Marabaixo 2011. Ai! Em nome do Pai Senhor me proteja Me livra do mal (bis) Refrão: Tenho muita fé em Deus Também na Virgem Maria Deus protege minha terra E também minha família Refrão A Santíssima Trindade Que agora vou coroa Ó minha Santa Bendita Vem pra me abençoá Refrão Eu tenho fé no me Divino Na Santíssima também Nos que estão incomodados Já estou muito além Refrão Ai! vamos, vamos minha gente Me consola o meu cantar Vamos dançar Marabaixo Na terra de Macapá Ai! Em nome do Pai Senhor me proteja Me livra do mal- Bis – Refrão E, nesse momento, nós pedimos a benção do Divino Espírito Santo e da Santíssima Trindade para todos nós que levantamos a bandeira da cultura e a bandeira do Marabaixo...”(Abertura da festa do Ciclo do Marabaixo 2011, no Centro Cultural Tia Biló, em 24/04, por Wanda Lima) 15 A presente dissertação visa compreender o que representa a Festa do Marabaixo para a Associação Cultural Raimundo Ladislau, enquanto grupo praticante e mantenedor dessa tradição cultural, através da noção de representação proposta pelo historiador francês Roger Chartier. Para este historiador, as representações são consideradas como os modos pelos quais “em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade é construída, pensada, dada a ler por diferentes grupos sociais”. (CHARTIER, 1990, p. 17) A escolha do Marabaixo enquanto tema da dissertação está relacionada às minhas inquietações enquanto professora da disciplina “História da Música Popular Brasileira”, pertencente ao quadro estadual da Escola de Música Walkíria Lima, no estado do Amapá. A Festa do Marabaixo, como manifestação folclórica da cidade de Macapá, é muito respeitada pelos professores e alunos, fazendo, sempre que possível, parte da programação dos eventos e recitais promovidos pela escola, fato que já se torna digno de elogios, considerando que estamos falando de uma linguagem cultural que foge às concepções estéticas da cultura europeia sobre a música e que ainda é possível encontrar nos tons e semitons da programação curricular de algumas escolas de música do território brasileiro. Embalada pelos discursos nacionalistas de Mário de Andrade, pela sua sensibilidade intelectual, expressa na sua preocupação com uma política cultural para o Brasil, pelo seu esforço na valorização da cultura popular através da diminuição da distância entre cultura popular e cultura erudita, e embalada, ainda, pela importância da pesquisa nessas áreas, encontrei na Festa do Marabaixo o objeto desta pesquisa, considerando a riqueza de informações que contribuiriam para o patrimônio músico-cultural brasileiro, tendo em vista as particularidades da sua expressão musical. Outro fato que me inquietava relacionava-se à frequência com que a percussão rítmica era utilizada na música do Marabaixo e na composição das músicas regionais — denominadas de “Música Popular Amapaense” (MPA). Os compositores se utilizavam dessa mistura para diferenciarem o que seria uma canção genuinamente amapaense de outras canções regionais do Brasil. Comecei o curso de Mestrado envolvida por essa realidade. No entanto, as aulas, as leituras, as reflexões e as primeiras investigações lançaram-me para uma realidade de 16 conflitos entre os grupos de Marabaixo, que se consideravam, cada um à sua maneira, portadores do verdadeiro ritmo, o qual dá nome ao evento, a Festa do Marabaixo. Diante de tal fato, senti a necessidade de compreender o problema. No entanto, outras questões sobre o que seria tradicionalmente a Festa do Marabaixo se apresentaram, como no caso dos significados da festa, onde cada grupo, à sua maneira, se apresentava e se distinguia um do outro, e, algumas vezes, intitulava-se o verdadeiro herdeiro dessa tradição. O foco da pesquisa mudou diante de tal premissa. Ainda que o objeto da pesquisa seja a Festa do Marabaixo, o desejo de investigar essa linguagem musical que acontece exclusivamente no Amapá não é descartado, apenas adiado, pois considero urgente e necessária a pesquisa da sua trajetória histórica, tendo em vista a possibilidade de encontrar fatos e elementos que contribuam para compreender a sua realidade atual e, assim, futuramente dedicar-me ao estudo da sua musicalidade. Percebi, também, durante as minhas primeiras investigações sobre o evento, que essa relação entre o Marabaixo e a música regional estava inserida num quadro político no qual o Amapá, transformado em Estado no início da década de 1990, encontrou na cultura espaço para o seu discurso regionalista. Ainda que tenham sido apoiados diferentes segmentos da cultura, a música e as festas folclóricas foram os que mais se destacaram. A Festa do Marabaixo tornou-se uns dos eventos culturais mais importantes do calendário turístico do Amapá. Grupos folclóricos floresceram tanto na capital do estado, Macapá, como em outras localidades e municípios. O governo promovia eventos que contemplavam a participação desses grupos e ainda contribuía financeiramente para a sua manutenção, com os grupos sendo solicitados a apresentarem-se nos mais diversos eventos da cidade, tais como a programação de uma escola e o aniversário da cidade, entre outros. No entanto, a Festa do Marabaixo perpetua-se numa trajetória histórica que apresenta momentos de resistência pela manutenção de suas tradições, transmitidas através da oralidade que vai diluindo-se num túnel de eventos marcados por tensões entre a Igreja e o Governo. O Marabaixo é uma festa que presta homenagens ao Divino Espírito Santo, à Santíssima Trindade e alguns outros Santos da Igreja Católica. A pluralidade de eventos que caracterizam 17 essas homenagens posterga sua identidade cultural em relação à Festa do Divino Espírito Santo, que contempla o calendário festivo de outros estados brasileiros. Dessa forma, a presente dissertação pretende compreender a Festa do Marabaixo na sua contemporaneidade, observando e analisando as tensões e mutações sofridas durante a sua trajetória histórica. A programação da Festa, que também se utiliza de datas religiosas do catolicismo, se desenvolve por um período de dois meses. Inicia-se, tradicionalmente, no Domingo de Páscoa, e se estende até o Domingo do Senhor, após o Corpus Christi. No caso das comemorações do ano de 2011, o calendário compreendeu o período que foi de 24 de abril a 26 de junho de 2011. Atualmente, a relação do Governo do Estado do Amapá com os brincantes do Marabaixo se caracteriza pela valorização e pelo reconhecimento da festa enquanto um bem cultural importante para o estado do Amapá. A Igreja também vem desenvolvendo uma aproximação e uma melhor compreensão do evento. Desse modo, esta investigação pretende ser uma contribuição para o estudo das manifestações culturais no Brasil, considerando as transformações históricas que muitas vezes destinam a cultura ao abafamento, ao recalque, a um desrespeito às suas práticas, embora, ao mesmo tempo, elas renasçam das cinzas. 1 Referencial teórico A contribuição que a noção de representação propõe ao estudo da história cultural reside na informação dos elementos reveladores do registro da realidade que um determinado grupo mantém com o mundo social no qual está inserido. O conceito de representação social surgiu no início do século XX. A contribuição de Émile Durkheim foi importantíssima para a História Cultural. Para ele, a representação social possibilitava compreender os aspectos culturais da sociedade através da análise das dinâmicas nas quais essas manifestações populares aconteciam, como, por exemplo, a linguagem, as lendas, as festas populares, etc. 18 As primeiras reflexões sobre a contribuição das representações sociais na História iniciam-se no interior das discussões da Escola dos Annales, com os historiadores Marc Bloch e Lucien Febvre, por volta de 1929. Porém, é com Roger Chartier, um dos historiadores mais importantes da terceira geração do grupo de pesquisadores conhecido como Escola dos Annales, que a noção de “representação” ganha reconhecimento e importância enquanto ferramenta utilizada para a compreensão da história cultural. Para Chartier, a noção de representação possibilita “compreender o funcionamento da sua sociedade”(1990, p. 23). Para este historiador, as representações podem ser pensadas como “esquemas intelectuais incorporados que criam figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado” (1990, p. 23). No entanto, é preciso percorrer alguns caminhos. Um deles está relacionado às práticas — ou seja, uma maneira própria de estar no mundo — que possibilitam o reconhecimento de uma identidade, revelando as particularidades interpretativas do mundo social no qual cada grupo está inserido, e que são proporcionadas através de articulações com as outras práticas (políticas, sociais, discursivas). Esse é o caminho percorrido nesta dissertação de mestrado. A noção de práticas e representações possibilita novas perspectivas para o estudo da cultura; juntas, permitem alargar o campo da historiografia cultural, apresentando um número maior de fenômenos culturais, bem como o dinamismo no qual eles se inscrevem. Através da noção de representação e do estudo das práticas é possível examinar a relação entre produtores e receptores da cultura, os objetos culturais produzidos e os processos da produção, bem como os sistemas que dão suporte a esses processos e sujeitos. Ainda no âmbito das representações, Chartier aponta para a questão dos conflitos que permeiam os interesses dos grupos. De acordo com o historiador francês, a compreensão desses conflitos se encontra no diálogo entre a representação e alguns conceitos, como o simbólico, que está associado ao um determinado imaginário político. Esse imaginário se revela quando uma representação se liga a um conjunto de significados fora de si, ou seja, quando um determinado objeto cultural é remetido para outro sistema de valores (LE GOFF, 2003, p. 12). Para o historiador francês: 19 As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses do grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza. (CHARTIER, 1990, p. 17). Essa definição permite entender que as percepções sociais não são discursos neutros. Elas revelam as estratégias de legitimação e imposição que alguns grupos utilizam para impor sua autoridade bem como justificar suas escolhas e condutas. A noção de representação dialoga também com outro conceito importante para a História Cultural, o de “ideologia”. O conceito de ideologia está relacionado diretamente com o poder, com a manipulação de determinados valores que visam produzir determinados resultados sociais. A ideologia apresenta-se através de dois caminhos: o primeiro se constitui como sendo ela própria uma representação; o segundo, quando manipula as representações já existentes visando atingir determinados objetivos e ressaltar certos interesses. Ainda que o processo ideológico aconteça de forma consciente ou não, tanto pela parte de quem pratica como pela parte de quem se apropria, é um processo que promove mudanças de comportamentos e de atitudes nas inter-relações sociais e políticas, nas quais implica uma nova concepção social do objeto. São nesses espaços que as representações produzem verdadeiras “lutas de representação”. “As lutas de representação têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio.” (CHARTIER, 1990, p. 17). No cenário das festas populares, espaços marcados por relações de conflitos, ou seja, por lutas de representação, a noção de representação torna-se pertinente e fundamental para compreender o processo de mutabilidade das práticas da Festa do Marabaixo, inseridas no jogo de interesses dos atores envolvidos, que se camuflam por detrás de seu discurso. No entanto, essas lutas são absorvidas, ou seja, promovem “apropriações”, que também geram possíveis representações, dependendo dos interesses sociais, das imposições e resistências políticas, e, assim, configuram os bens culturais, implicando em formas de resistência e de rebeldia, em alguns casos. 20 É baseado nessa tríade — “representação, prática e apropriação” — que Roger Chartier desenvolve seu estudo sobre História Cultural. O Marabaixo, enquanto fenômeno cultural, não está passivo diante de tais influências; as maneiras ou as formas pelas quais resiste ou aceita o controle imposto pela elite dominante, tanto em relação à Igreja quanto em relação ao Governo, pode proporcionar ao pesquisador significativa contribuição para o conhecimento histórico. Para compreendermos melhor essa relação de conflito, ou seja, para que se possa entender como se processa esse reconhecimento por parte do Governo em relação à Festa do Marabaixo, e como a Festa se apropria desse reconhecimento, é importante ressaltar a fala de Daniella Ramos, presidente da Associação Cultural Raimundo Ladislau do Bairro do Laguinho, durante a realização de um festa, no mês de março de 2011, que contou com sorteio de prêmios e apresentação do grupo de Marabaixo, com a finalidade de arrecadar recursos para ciclo do Marabaixo: Desde que foi criado sempre procuramos fazer promoções para garantir roupas bonitas, coloridas, que tornem o Marabaixo uma atração turística, sem perder nossa identidade. Agora, conscientes de que o Estado passa por dificuldades, vamos fazer mais promoções e com certeza neste Ciclo teremos o mesmo brilho. Continuaremos a tradição de oferecer caldo e gengibirra, mostrando o verdadeiro Marabaixo feito pelo povo. Não dá pra dizer que o Ciclo não foi bonito por culpa do Governo, temos que resgatar a tradição das famílias, amigos e vizinhos fazerem a festa. (MACIEL. (http://noticiadoamapa.blogspot.com/2011/03/ciclo‐do‐ marabaixo‐2011.html. acessado no dia 22/04/2011 as 09:10) A noção de representação é fundamental para se compreender a fala dos brincantes. A representação implica, necessariamente, uma avaliação, ou rotulação, do ser ou do objeto; promove um sistema de classificação que particulariza toda a visão do mundo e da sociedade, limitando o indivíduo a um conjunto de comportamentos e regras, ditados pela linguagem. Para Chartier, ações como essas interferem na construção de sentidos, nas práticas e na própria configuração do todo da Festa. Essa relação de poder com os bens culturais se encontra no campo de análise das tensões. Diz Chartier: 21 A idéia de tensão [...] é sempre a idéia de demonstrar que não há a possibilidade de ler qualquer fenômeno de maneira unitária, de uma maneira que não englobe as contradições. [...] é porque se reconhece essas tensões que nós, como cidadãos, temos um espaço de intervenção. (CHARTIER, 2001). Considerando essa curiosidade, o presente trabalho verificará essas tensões presentes nas relações entre a Igreja, primeiramente, e, depois, entre o Governo e os promotores da Festa do Marabaixo. As maneiras ou as formas pelas quais resiste ou aceita o controle imposto pela elite dominante, pelo Governo ou pela Igreja podem proporcionar ao pesquisador significativa contribuição para o seu conhecimento histórico. Além de Roger Chartier, recorremos a outros teóricos com o objetivo de alargar nossa reflexão sobre a pesquisa em história cultural, tal como Michel de Certeau, através de seu estudo sobre a cultura no plural e sobre as práticas inventadas, ou as artes de fazer, presentes no nosso cotidiano. O pesquisador francês defende que “para que haja verdadeiramente cultura, não basta ser autor de práticas sociais: é preciso que essas práticas sociais tenha significados para aqueles que as realiza”.(pag.9, 1995) Para o autor a cultura se relaciona dentro de uma rede combinatória que perpassa pelas realidades políticas, econômica, das quais são indissociáveis. Essa dinâmica influência na consciência coletiva. É nessa perspectiva que tal estudo considera importante uma análise da compreensão do significado da festa do Marabaixo para o grupo Raimundo Ladislau Outro autor que também contribui para esse estudo é o historiador Peter Burke, através de suas reflexões sobre hibridismo cultural. O termo “híbrido” tem sido utilizado nos estudos do fenômeno da globalização cultural que aponta para um intenso processo de mistura, ou seja, uma hibridização, presente nas discussões de temas sócios-culturais. O presente estudo visa observar os processos híbridos que a festa do Marabaixo sofreu no seu processo histórico, ou seja, as trocas culturais que promoveram possíveis mudanças no evento. Para Peter Burke um estudo em História Cultural deve considerar que “toda inovação é uma espécie de adaptação e que encontros culturais encorajam a criatividade”. (pag.17, 2003) No entanto, Peter Burke já nos chama atenção para as conseqüências que esse processo de hibridização promove atualmente. “O preço da hibridização”, termo usado pelo 22 autor, interfere direta e rapidamente na “perda de tradições regionais e de raízes locais” e assim caracteriza a era da globalização. (pag.18, 2003) Encontros entre culturas revelam verdadeiras fontes histórica presentes no pano de fundo da dinâmica dos eventos culturais que nos permitem uma melhor percepção e interpretação da realidade. Tradições da festa do Divino Espírito Santo, festa portuguesa que chega ao Brasil na época da colonização do território Brasileiro e assim em Macapá, e que estão presentes na festa do Marabaixo, são exemplos de misturas culturais que se mesclam e revelam novas formas culturais que caracterizam a cultura local, a cultura amapaense. Este estudo, portanto, irá considerar o termo híbrido como sendo uma interação entre as culturas. Além desses teóricos os outros elementos foram escolhidos para contribuirem para a pesquisa: a análise documental, o registro fotográfico, jornais, revistas, acervos públicos e particulares, documentários, entre outras análises documentais. Recorremos também a fontes como sites, blogs, arquivos públicos e arquivos pessoais, bibliotecas, pesquisa de campo e a cobertura do evento. A fotografia enquanto documento tem como referenciais autores como Boris Kossoy, no qual considera a imagem fotográfica " um meio de conhecimento da cena passada e, portanto, uma possibilidade de resgate da memória visual do homem e do seu entorno sociocultural"(2001, pag 55), bem como, ainda podemos acrescentar, que as fotos “sintetizam ou ampliam o que o texto escrito exprimiu” (2001, pag. 26). Ainda sobre fotografia, destaca-se a contribuição de Mirian Moreira Leite: " A memória da imagem não só difere da memória da palavra como chega em alguns casos, a substituir a própria memória." (2001. pag, 18). A pesquisa oral que contemplou tal projeto considerou o respeito a autoridade dos velhos, por serem estes detentores de uma experiência que era passada em geração em geração, onde Walter Benjamin, quando se refere sobre a experiência compartilhada, nos fala da importância da narração no processo de preservação da memória. Um outro momento importante da pesquisa foi a cobertura de todo Ciclo do Marabaixo , que aconteceu no primeiro semestre do ano de 2011, na cidade de Macapá, bairro do laguinho, palco de estudo do presente projeto, com o objetivo de observar a realização da festa na sua contemporaneidade. 23 2 Desenvolvimento da dissertação A presente dissertação está dividida em três capítulos. No capítulo 1 foi feita uma investigação sobre a Festa do Divino Espírito Santo em Portugal, no Brasil e em Macapá, através de uma abordagem histórica, apresentando algumas versões sobre a origem da Festa, sua origem filosófica e a influência do pensamento de Joaquim de Fiore. Ainda, neste capítulo, falamos da Festa de Marabaixo realizada pela Associação Raimundo Ladislau em 2011 — evento denominado “Ciclo do Marabaixo”. Observamos as práticas da festa que ainda permanecem desde a sua origem e novas práticas que particularizam e identificam o grupo de marabaixo Raimundo Ladislau. Além disso, analisamos o conjunto das práticas de hoje em relação às práticas da Festa que aconteciam em Macapá, conforme descritas em artigo de jornal datado de 1895. Fizemos, também, referência a algumas práticas da Festa em Portugal, buscando o simbolismo da Festa para o grupo. No capítulo 2, apresentamos uma abordagem histórica sobre a relação da Igreja com o Marabaixo, observando as formas de representação presentes nessa relação e como cada uma se apropria dos seus bens simbólicos, e como essa apropriação promove inovações no conjunto das práticas da festa, ou não. O capítulo 3 trata da relação do Marabaixo com o Governo do Estado. Nosso objetivo nesse capítulo é contextualizar essa relação, considerando os momentos de reconhecimento ou não do Estado com a Festa do Marabaixo, analisando se esse reconhecimento interferiu ou não na configuração do evento e de que forma essa interferência foi recebida pelos grupos de Marabaixo. A pesquisa leva em consideração a Festa do Marabaixo realizada no Bairro do Laguinho, que se localiza na parte central da cidade de Macapá, através da Associação Folclórica Raimundo Ladislau. 24 Canto dos castanhais Joãozinho Gomes e Val Milhomem A fé dessa gente é tanta que a dor que essa gente sente passou a doer na Santa é a voz que diz quando está descontente que grita ao mundo seus ais que fala, contesta, desmente que ecoa pelos castanhais A fé dessa gente é tanta que a dor que essa gente sente passou a doer na Santa 25 CAPÍTULO 1 1 Origens da Festa do Divino Espírito Santo em Portugal A Festa do Divino Espírito Santo, que celebra o Pentecostes, representação da descida do Espírito Santo sobre os apóstolos de Cristo, cinquenta dias após o Domingo de Páscoa — o que corresponde à celebração do Ciclo da Páscoa, de acordo com calendário oficial católico —, teve início na Vila de Alenquer, em Portugal. A instituição da festa está atribuída à Rainha Isabel, esposa do rei D. Dinis, que reinou em Portugal no período compreendido entre 1279 e 1325. Dentre as fontes que fundamentam essa versão estão as crônicas produzidas nos séculos XVII e XVIII, algumas disponíveis para pesquisa no arquivo digital de Açores, como a descrita por D. Rodrigo da Cunha, em 1642: No dia do Espírito Santo estava na Igreja de S. Francisco, em throno de baixo do docel, o chamado Imperador, com coroa real na cabeça depois de a offerecer no altar, coroa que a mesma Rainha Santa Izabel doou para tal acto: além desta coroa havia mais duas. O Imperador era servido por pessoas nobres: e estando o sucessor do Reino em Alenquer, o Pagem quem levava a coroa da Igreja do Espírito Santo para a de S. Francisco. No sábbado, véspera da festa, cercavam a dita Villa com um rolo de cera benta, desde de S. Francisco até a Igreja do Espírito Santo, vindo em procissão d’aquella para esta Igreja. (CUNHA, 1942, parte 2, cap. 27). Nas crônicas também é possível encontrar algumas lendas1 que revelam uma relação direta sobre a origem da Festa do Divino Espírito Santo com a Rainha Isabel. Dentre elas, destacamos duas que descrevem os milagres de Deus sobre a Rainha, que foi canonizada em 1625, pelo Papa Urbano VIII, fato que talvez justifique a popularidade dos festejos em Portugal. Primeira lenda: Certo dia, a Rainha D. Isabel sonhou que teria recebido a visita do Espírito Santo, advertindo-a que deveria construir um templo dedicado ao seu nome, em Alenquer. Obediente ao desafio recebido, a Rainha, após suas orações, recebeu informações sobre o local e a planta da obra. De acordo com os operários, quando chegaram ao local os 1 Essas lendas foram encontradas no Arquivo de <http:/www.arquivodigital.uac.pt/aa/índex.html>. Acesso em: 22 maio 2011. Açores. Disponível em: 26 alicerces da construção já estavam prontos. A emoção tomou conta de todos; a Rainha, de joelhos ao chão, agradecia a Deus. No final do dia, a Rainha, resolveu distribuir rosas aos trabalhadores, informando-os que as rosas seriam o pagamento daquele dia de trabalho e distribuindo uma rosa para cada um deles, que receberam de bom grado. Mas, logo que o sol se pôs, as rosas se converteram em moedas de ouro. Segunda lenda: Diariamente, os muros do Palácio da Rainha D. Isabel eram acercados por pedintes, que eram atendidos através de doações de alimentos. A atitude e a fama de caridosa da Rainha logo atraíram um número maior de pedintes, o que fez com que o Rei D. Dinis pusesse um fim a essa pratica caridosa por parte da Rainha. Não conformada com as ordens do Rei, a Rainha, certo dia, sai do Palácio carregando no covo do avental pedaços de pão para distribuir aos pobres, mas, infelizmente, no meio do caminho a Rainha encontra o Rei, que, intrigado, lhe pergunta: “O que levas no avental?” “Levo rosas”, respondeu a Rainha. “Rosas em janeiro?”, replicou o Rei. “Como é possível? Quero ver!” Temerosa, ela abre o pano e D. Denis vê belas rosas. O “milagre das rosas” talvez explique o uso de rosas na decoração das festas, no vestuário, e também a distribuição de alimentos como carne, bebida, entre outros, presentes nas diversas festas do Divino Espírito Santo no Brasil e, em especial, em Macapá. Ainda que tais lendas indiquem ter sido na Vila de Alenquer que se instituiu a Festa do Divino Espírito Santo, Jaime Cortesão, reconhecido por suas pesquisas sobre a história de Portugal, defende que o Convento de São Francisco de Alenquer já realizava, em 1323, homenagens ao Divino Espírito Santo, como é possível perceber no documento do Centro Ernesto Soares de Iconografia e Simbólica de Portugal: [...] já no compromisso da Confraria do Espírito Santo de Benavente, o mais antigo que se conhece coevo da fundação da igreja do Espírito Santo dessa localidade, que presumidamente se verificou no primeiro quartel do séc. XIII se alude à festividade do Império, o que leva a supor a sua concretização aí anteriormente a 1280, promovida ou inspirada por franciscanos de tendência espiritual. Os mesmos, que secundando o proselitismo de Santa Isabel, lograriam levá-la a patrocinar e, por ventura, institucionalizar, nos inícios do séc. XIV tais festejos com um aparato nunca antes vistos, o que terá 27 contribuído para radicar a tradição, segundo a qual, sob a sua égide e de D. Dinis, se haviam originado.2 O documento publicado sobre o nome de “O compromisso da Confraria do Espírito Santo de Benavente”, pelo pesquisador português, Ruy Pinto de Azevedo, é uma cópia feita a partir do documento original, escrito em latim, que é anterior a 1234. O documento revela também que antigamente as festividades do culto ao Divino Espírito Santo estavam sobre a responsabilidade da Confraria de Santa Maria de Sintra (FOLGADO, 2010). Segundo Mourão, “até o século XV, a assistência aos mais desvalidos era vista como uma virtude cristã e uma manifestação na dimensão profana da realidade”. É nesse cenário que o aparecimento das confrarias surge no meio social. Em Açores, lugar onde as festas do Divino ganharam vigor, as confrarias eram responsáveis pela organização da festa do Divino Espírito Santo, estando o evento sempre ligado aos dons e aos frutos relacionados com a terceira Pessoa da Santíssima Trindade. Segundo Mourão (2007, p. 59), as confrarias “funcionavam enquanto sociedades de ajuda mútua, onde associados contribuíam com jóias de entrada e taxa anuais, na explicação de Reis (1997), recebendo, em contrapartida, assistência na condição de doentes, de prisioneiros, de famintos ou de falecimento.” Toda relação sócio-caridosa que envolve a festa está atribuída aos franciscanos, cabendo à Rainha Isabel a principal referência dos festejos populares, ou a “apropriação” mais reconhecida da festa, nas terras portuguesas. Embora a origem da festa ainda não tenha uma data certa e a sua localização seja incerta, a responsabilidade da institucionalização pertence à Rainha Isabel de D. Dinis. Para o historiador português Moisés do Espírito Santo: O culto ao Espírito Santo sob a forma de festividade, no sentido que iria adquirir mais tarde, tem início na Idade Média, em Itália, com um contemporâneo São Francisco de Assis, o Abade Joachim de Fiori (morto em 1202) que ensinava que a última fase seria a do Espírito Santo. Em Portugal, no séc. XIV, a festa do Divino já se encontrava incorporada à Igreja, como festividade religiosa, segundo reza um velho pergaminho franciscano depositado na Camara Velha de Alenquer. A responsável por essa institucionalização da festa em solo português foi a Rainha Santa Isabel, esposa do Rei D. Diniz (1279-1325), que mandou construir a Igreja do Espírito Santo, em Alenquer. A primeira celebração do Divino Espírito Santo, provavelmente influenciada pelos franciscanos, teria mesmo ocorrido 2 CENTRO ERNESTO SOARES DE ICONOGRAFIA E SIMBÓLICA. Disponível em: <http://www.cesdies.net/>. Acesso em: 22 maio 2011. Fundado em 1997, por Manoel J. Granda, com sede em Mafra, disponibiliza on-line documentos históricos com o objetivo de promover um estudo interdisciplinar da cultura simbólica tradicional, com atenção particular às suas manifestações em Portugal e no âmbito lusófono. 28 em Alenquer, pois foi aqui que os mesmos fundaram o primeiro convento franciscano em Portugal. A partir dali o culto expandiu-se, primeiro por Portugal (Aldeia Galega, na época Montes de Alenquer, Sintra, Tomar, Lisboa) e depois acompanhou os portugueses nos descobrimentos, nomeadamente, no Brasil e nos Açores, onde ainda permanece com todo o vigor, principalmente na ilha Terceira. Há 200 anos que as festas do Divino Espírito Santo foram interrompidas em Alenquer, e retomadas, apenas uma 3 única vez, em 1945. Ainda no âmbito da origem da Festa do Divino, Manuel Joaquim Granda, professor português que realiza pesquisa sobre a história mítica de Portugal, defende que os eclesiásticos seiscentistas tiveram participação importante na defesa dos créditos atribuídos à Rainha Isabel, tendo em vista a canonização da Rainha em 1625: De facto, foram autores eclesiásticos seiscentistas, como Dom Rodrigo da Cunha, Frei Manuel da Esperança ou o padre jesuíta Manuel, os primeiros a reivindicar a invenção do Império para a já então canonizada (desde o ano de 1625) Rainha Santa, enquanto as raras fontes documentais conhecidas anteriormente a seiscentos, tão só registram o contributo de D. Isabel no que 4 concerne à introdução dos festejos em Alenquer. Embora os documentos históricos afirmem que a devoção ao Espírito Santo é anterior à referida Rainha, ao mesmo tempo em que indicam diversas teorias sobre sua origem, e embora se torne impossível determinar o momento exato em que a festa surgiu como manifestação antes de torna-se tradição, é válido ressaltar a importância das transformações históricas ocorridas ao longo dos anos até chegar ao Brasil, observando a cultura “como sendo, de um lado, aquilo que ‘permanece’, e de outro, aquilo que se inventa”. (CERTEAU. 1995, p. 239). Para Agostinho da Silva, pensador português que se radicou no Brasil em função da ditadura de Salazar, o significado da Festa do Divino está relacionado ao pensamento de Joaquim de Fiore. Joaquim de Fiore é autor de uma filosofia da História onde o progresso da humanidade passaria por três eras históricas baseadas na figura da Trindade — o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Considerado como filósofo místico, o ex-abade de Florença abandonou o convento para seguir suas próprias ideias sobre o destino dos homens na terra. Suas ideias influenciaram as festas do Divino, sendo responsável pelo seu caráter democrático e popular, 3 JORNAL DE ALENQUER. Disponível em: <http://alenquer-tradepatri.blogspot.com/2007/05/divino-espiritosanto-o-retomar-do-seu.html>. Acesso em: 23 maio 2011. 4 GRANDA, Manuel J. A Jerusalém celeste como paradigma dos impérios ou teatros do Divino. Disponível em: <http://www.cesdies.net/des/fsp>. Acesso em: 23 maio 2011. 29 característica presente também nas festas brasileiras. Segundo Marilena Chauí, a filosofia de Joaquim de Fiore baseava-se no tempo estruturado e escandido em três tempos progressivos rumo à apoteose. Essa filosofia da história se oferece como concepção trinitária, progressiva e orgânica da história como desenvolvimento de estruturas invisíveis. Trinitária: a história é obra do Espírito através do Pai e do Filho, até a revelação final do Espírito. Progressiva: a história é o desenvolvimento temporal do aumento do saber, cuja plenitude coincide com o tempo do fim, quando será aberto o livro dos segredos do mundo. Orgânica: a estrutura do tempo, simbolizada pela Árvore de Jessé, significa que o tempo não é ciclo perpétuo de tribulações, não é agonia nem afastamento do absoluto, mas arbusto florescente onde frutifica a semente divina da verdade efetuando-se como eternidade temporal. Será impossível não reconhecer traços joaquimitas em toda a filosofia da história posterior. Joaquim introduz dois símbolos não escriturísticos e que são suas profecias próprias: o Papa Angélico (que prepara o caminho para o encontro final entre Cristo e o Anticristo) e os homens espirituais (duas novas ordens monásticas de preparação para o Tempo do Fim, a ativa ou dos pregadores, e a contemplativa, ou dos monges eremitas). (CHAUÍ, 2000). Sua filosofia considerava que a humanidade caminharia para um mundo melhor, para um paraíso terrestre, onde o homem atingiria um estado de plenitude, de felicidade, de amor e de total liberdade. Seu pensamento encontrou eco nos dominicanos, nos agostinianos e, principalmente, nos franciscanos. O historiador português Jaime Cortesão, em seus vários estudos, ressalta a importância das ações franciscanas na difusão do culto e festa do Espírito Santo, tanto em Portugal continental, quanto na colonização dos Açores, concluindo que “as regiões portuguesas que não apresentaram registro dos festejos ao Espírito Santo, sejam as mesmas nas quais os franciscanos não estiveram presentes, ao longo da história”.5 Isabel Baltazar (2006, p. 103), historiadora portuguesa, destaca a observação de Antonio Quadros sobre a influência espiritual do legado de Fiore sobre as festas do Divino e de outros seguimentos da cultura portuguesa: Em nenhum lugar deitou raízes tão fundas como no nosso país e na nossa cultura, não só inspirando as cerimônias religiosas aristocráticas e populares do culto e das festas do Espírito Santo, tal como foram instauradas por D. Dinis e Dona Isabel, não apenas emergindo na Arte portuguesa dos séculos XV e XVI, desde os painéis de Nuno Gonçalves à arquitetura Manuelina, 5 Sobre o assunto, ver CORTESÃO, Jaime. Franciscanismo, Mística e Descobrimentos. In: Os Descobrimentos Portugueses, v. 1, p. 101-129; CORTESÃO, Jaime. Franciscanismo e Laicismo em Portugal, p. 256-270; e CORTESÃO, Jaime. A Fé e a Dúvida nos “Grandes Corações” dos Portugueses de Quatrocentos, p. 381393. 30 mas também expressando-se como inspiração poética, com força especulativa ou com finalidade mística, na obra de poetas e pensadores modernos, como principalmente Jaime Cortesão, Fernando Pessoa, Alvaro Ribeiro ou Agostinho da Silva.6 Machado defende, em sua tese, que as ideias de Fiore, apropriadas pelos representantes da ordem franciscana, são vistas pela Igreja como uma ameaça ao legado da Igreja de Roma. Sua principal ameaça residia na: “idéia eclesiástica e universal da fraternidade entre cristãos, judeus e mulçumanos, inerentes à festa, foram os autênticos motivos das proibições e não o ‘caráter pagão’.” A ideia de pluralidade de religiões que era uma ameaça ao poder e à supremacia da Igreja de Roma. (2009, p. 19). Não é nossa pretensão fazer aqui uma “história do Espírito”, e sim mostrar o “espírito da época” (BURKE, 2010, p. 10). Mesmo que as tradições e os ritos da festa implicassem, inicialmente, em ações de devoção, a mentalidade se representava por um imaginário, ou por uma cultura da esperança. Esse modelo festivo da comemoração atravessou o oceano e se instalou no Brasil, influenciando o pensamento e a vida das pessoas, presentes nos festejos populares da época. 2 O modelo festivo Foi na Ilha de Açores7 que a festa do Divino se desenvolveu, se estruturou e se transformou num dos mais populares festejos de Portugal. A sua devoção popular está relacionada aos diversos milagres,8 “grandes mercês e raras maravilhas, feitas pela misericórdia do Divino Espírito Santo, Pai dos pobres, Consolador das Almas, Distribuidor das Graças e Favores” (GRANDA, p. 9) ocorridos nessa ilha. Essa estrutura permeia a base das muitas festas do Divino no Brasil. 6 Crítica de Isabel Baltazar ao livro Joaquim de Flora e sua Influência na Cultura Portuguesa, dos autores José Eduardo Franco e José A. Mourão, está disponível em: http://www.triplo.com.boletimch/2006/baltazar.htm. Consulta em: 23/05/2011 7 O arquipélago de Açores é constituído por nove ilhas, descobertas por navegadores portugueses entre 1427 e 1452. Apesar de uma certa diversidade interna, as ilhas têm em comum, sobretudo, a origem vulcânica, responsável por erupções e terremotos. (MOTINHA, 2003, p. 241). 8 Alguns Milagres ocorridos em Açores de acordo com o autor Manuel Granda: i) “Também é certo, e se tem visto, que todas as casas em que está o trigo ou vinho para o vodo do Espírito Santo, se livraram de padecer de incêndio, ainda que pegasse e ardessem casas imediatas, como também livraram de se queimar as casas, em que estava o dito trigo, ou vinho para o vodo (por castigo de nossos pecados) ficou a tal oferta livre de tal ruína.” (p. 7) e ii) “Também muitas vezes tem acontecido ter em alguns devotos assinalados os bois, que se hão-de gastar com os pobres no tal dia e desaparecerem nos pastos, não se podendo deles alcançar notícia e tornarem na véspera a aparecer mansos e obedientes e quase estando para se substituírem outros para a satisfação dos seus devotos”. (p. 9). 31 A organização da festa era de responsabilidade das confrarias ou irmandades do Espírito Santo que se organizavam para distribuir funções que eram representadas por cargos como juiz e mordomos, podendo, qualquer pessoa, independente de sua classe social, ocupar os referidos cargos. Cada confraria possuía um conjunto, conhecido como “insígnias”, formado pela coroa, cetro e bandeira, que também representavam o Espírito Santo. O cargo mais importante dos festejos era o do imperador. Esse personagem representava o Espírito Santo que se fazia “presente” através da cerimônia da coroação. Os textos descritivos informam que, para exercer esse cargo, era escolhido um adulto, considerado como o mais pobre do lugar. Porém, o adulto cedeu lugar à criança, “sendo que em algumas regiões, como por exemplo, na dos Açores, foi substituído pela imperatriz”. (MOTINHA, 2003, p. 36). O calendário das manifestações, considerado o mais tradicional, compreende o período entre o Domingo da Páscoa e o Domingo de Pentecoste. É possível encontrar variações quanto ao calendário, tanto em Açores como no Brasil — e também no Amapá. Essa variação é justificada pelas festas que fazem relação com a época das colheitas. Em Mazagão, Município de Macapá, a festa é comemorada em agosto, mas, em Macapá, o calendário obedece ao período tradicional do Domingo de Páscoa. Até 1523, as festas do Espírito Santo eram realizadas à porta do hospital ao qual as confrarias eram ligadas, acontecendo principalmente no dia de Pentecostes. Durante os festejos, os fiéis agrupavam-se em cortejos para a coroação, preces, cantorias e danças, com a finalidade de solicitar e agradecer a proteção do Espírito Santo. O evento também oferecia uma refeição comunitária, tradição presente em muitas festas do Divino no Brasil. Em Macapá serve-se um caldo de carne bovina, o tradicional “cozidão”. Os foliões são personagens importantes nas festas. Sua formação compreendia três pessoas com determinada função: o “mestre” ou “cabeça da folia”, que iniciava as quadras cantadas com o toque do tambor; outro era responsável por conduzir a bandeira do Espírito Santo; o terceiro tocava uma espécie de tampa ou pequenos pratos de metal conhecidos como “testos”. Em alguns casos era possível encontrar alguém tocando o pandeiro; no entanto, o 32 tambor era o instrumento que não faltava. Além da festa do divino os foliões também acompanhavam as procissões de outros folguedos. Nas festas do Espírito Santo, as cerimônias e rituais do império eram ordenados pelos foliões, através de suas cantorias improvisadas em versos de autoria desconhecida, apropriados para cada ocasião. Por conta da oralidade — uma das características da cultura popular —, quase tudo se perdeu, como no caso do Marabaixo em Macapá. Os preparativos da festa aconteciam de forma organizada e iniciavam-se logo após o encerramento dos festejos. Inicialmente, sorteava-se entre os membros das confrarias e das irmandades os cargos de imperador e mordomo,9 encarregados de realizar o peditório e a arrecadação da doação devida por cada membro para a realização da festa. O cargo mais importante e o mais esperado era o do Imperador do Domingo de Pentecoste. Assim, logo após o Domingo da Páscoa, o imperador, os mordomos e os foliões, todos juntos, percorriam as casas dos moradores, pedindo, conforme a possibilidade de cada um, uma contribuição para a realização da festa. Os festejos ao Divino iniciavam-se no primeiro domingo após a Páscoa. No entanto, já na manhã de sábado, os foliões, saíam da frente da casa do primeiro imperador e passavam de um lado para outro na rua, cantando e saudando o imperador que iria receber a coroa. Depois acontecia o cortejo, ou seja, o translado das insígnias do Espírito Santo — coroa e cetro —, depositados em uma salva, e da bandeira — que se encontravam na Casa do Espírito Santo ou no hospital (também conhecido como “Misericórdia”), dependendo da tradição de cada lugar —, para a casa do primeiro imperador sorteado. Os foliões se posicionavam em frente à casa do primeiro imperador e, passando de um lado para o outro, na rua, entoavam quadras, saudando o feliz imperador que iria receber a coroa. 9 “De acordo com o Frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, no volume II do Elucidário por redigido, pp. 420424, desde a época do condado portucalense, havia o cargo de mordomo nas nobres casas portuguesas. Entretanto, pelo menos desde o tempo de D. Denis, Viterbo informa que havia o mordomo-mor e o mordomo de serventia. Ao mordomo-mor, cabia o governo da casa real, dispondo a sua economia, calculando o erário real e dispondo os oficiais da casa. Dentre os oficiais da régia casa, estavam os mordomos de serventia, que eram destinados a serviços diversos. Também a rainha, infantes e alta nobreza possuíam sues mordomos, tanto o mor, quanto os de serventia. Era natural que as festas originadas nesta mesma época, assimilasse a mesma estrutura”. (MOTINHA, 2003, p. 256). 33 Todo o cortejo era acompanhado por um quadrado de varas,10 sendo que o rei, ou pajem da coroa, e o alferes da bandeira caminhavam encerrados pelo quadrado, conduzidos por quatro mordomos da irmandade ou confraria. Os componentes do quadrado eram escolhidos através de um sorteio, sendo, os dois da frente, chamados de “Mestre-Sala” ou “Mestre-Sé”, de acordo com a ilha em que acontecia o império, e, o outro, o “Trinchante”. Durante a semana, o cortejo se dirigia à casa do imperador. No entanto, antes da chegada, o imperador, seus mordomos e os foliões saíam cantando e dançando nos arredores da vila, a fim de encontrar e cortar o mastro para a festa, e, quando voltavam, saudavam as ruas com os galhos e ramos de murtas, madressilvas e rosmaninhos. Depois, o mastro era enfeitado com frutas, ramo de trigo, espiga de milho, e, na ponta do mastro, colocava-se um estandarte, de tecido branco, com a inscrição “Glória ao Divino”. (MOTINHA, 2003, p. 262). A casa do imperador era decorada com panos vermelhos e brancos na porta. Preparava-se um altar, no centro da sala, com muitas velas e flores, para receber a coroa. Tanto o imperador como os seus convidados aguardavam o cortejo na porta da casa, com círios e velas na mão e uma toalha branca. Quando o cortejo chegava, todos beijavam o cedro, em sinal de respeito e adoração; em seguida, colocava-se a coroa no altar, sobre a salva de prata, com cetro atravessado. Após o ritual, aconteciam as rezas, que poderiam ser coordenadas e dirigidas por qualquer pessoa que se interessasse, ou pelo padre, se estivesse presente. Finalizadas as orações, começava o baile, e os participantes eram levados para outro cômodo da casa, que já estava preparado para a dança. Em alguns bailes, quando muito concorridos, dançava-se também na rua em frente à casa, sempre ao som das danças da época. Havia sempre, entre os convidados, aqueles que traziam outros instrumentos como, por exemplo, pandeiros e violas, que abrilhantavam ainda mais a festa. 10 “As varas, desde a época medieval, eram um símbolo de governança. Ao longo da história de Portugal, dela fizeram uso meirinhos, carregadores, vereadores, escrivães da câmara, provedores das misericórdias, juízes das irmandades e confrarias, procuradores dos mesteres e almotacéis, mas nem todas teriam o mesmo significado”. No campo das representações, as varas são signos visíveis nas festas do Espírito Santo que limitavam o espaço do sagrado mediador, em todos os cortejos ou procissões realizadas em espaços públicos e ordinários da vida quotidiana. Quando o cortejo chegava à igreja, o quadrado se desfazia e os mordomos levantavam as varas ao nela adentrar. (MOTINHA, 2003, p. 259, 261). 34 A casa do imperador ficava de portas abertas, com duas pessoas responsáveis por guardar o Espírito Santo. Durante a semana, acontecia a preparação para o bodo. A denominação “bodo”, faz referência ao momento da festa onde acontece a distribuição de alimentos, como carne, pão, vinho, preparados em uma mesa, decorada com toalhas brancas, colocada na frente da casa do imperador. Toda a preparação do bodo se dava através de um cortejo, acompanhado pela folia, e que tinha a função de arrecadar donativos para evento. Um dos momentos mais esperados da festa era a “coroação”. O cortejo saía da casa do imperador, conduzindo a coroa dentro do quadrado das varas, acompanhado da folia que alternava as cantorias e as rezas, até a porta da igreja, onde as insígnias eram novamente distribuídas e, depois, os párocos distribuíam água benta em todos e, em seguida, a coroa era depositada no altar da igreja. Após a cerimônia, celebrava-se missa, geralmente cantada, sendo ao final realizada a coroação do imperador. Após a coroação, outro cortejo acontecia para retornar à casa do novo imperador, — sorteado para o próximo festejo — onde seria realizada a cerimônia de “descoroação”. Nesse dia, o jantar era mais caprichado, ou seja, mais reforçado. Por conta do pagamento das várias promessas individuais, a variedade de pães e vinhos era muito maior. Muitos doavam galinhas, pombas, coelhos, bezerros, bois e vacas, ou metade deles, que eram usados para o jantar ou para o leilão, que visava arrecadar fundos para a festa do ano seguinte. Ao termino do leilão, acontecia novamente o sorteio dos novos responsáveis pela festa seguinte. No ambiente de alegria e descontração, a emoção tomava conta dos moradores das terras de Açores que seriam os novos escolhidos para dar continuidade ao Império do Senhor Espírito Santo. 3 O simbolismo 35 A Festa do Divino Espírito Santo representa a manifestação do poder de Deus sobre os fiéis, através da ação da terceira pessoa da Santíssima Trinade, o Espírito Santo, simbolizado pelo ritual da coroação. Para Manuel Breda Simões,11 “A coroa é símbolo de luz, poder, de elevação e de união. A concentração desses aspectos simbólicos na coroa, a constitui signo de transcendência. Dálhe sustentação os pressupostos filosóficos de Jean Whal, segundo os quais, originariamente, transcender significa “ir além de” e que por conseqüência, o homem indo além de sua própria humanidade em busca de um nascimento e de uma renovação, transcenderia a si próprio, passando do mundo terreno para o espiritual. A coroa seria, por excelência, o símbolo da ação desse novo homem, mediador dos vários mundos”. (MOTINHA, 2003, p. 42). Manuel Granda defende a ideia de que a Festa do Divino Espírito Santo é efetivamente uma representação simbólica do advento da Terceira Idade do Mundo, numa Espécie de Pentecoste Nacional, de acordo com a consabida tese que se pode buscar no cisterciense Joaquim de Fiore e nos meios joaquimitas e segundo a qual a história da humanidade percorreria desde a Criação o Fim do Mundo Três Tempos vividos cada um sob sua influência de uma das três pessoas da Trindade. Assim a lei mosaica foi própria do Pai, a lei evangélica da do Filho e a futura lei do Evangelho Eterno sê-lo-a dado Espírito Santo. (GRANDA, p. 4) Segundo Granda, o apogeu da festa do Império12 do Divino Espírito Santo compreendeu os séculos XIV e a primeira metade do século XVI, coincidindo exatamente com o auge da expansão marítima e influenciando diretamente na política portuguesa. No entanto, politicamente, a noção de “império” na Idade Média é complexa e, simbolicamente, compõe-se de uma ritualidade muito próxima da apresentada nas festas do Divino. A ideia de “império”, sistema de governo característico dos grandes impérios romanos, vai permanecer viva em todo o Ocidente ao longo da Idade Média. O título de imperador foi cobiçado, mas o território do seu poder não estava claramente definido. A prática da coroação do Imperador por parte do Papa foi resgatada pela Igreja com o objetivo de reconstruir o Império Cristão Universal, que lhe permitiria fazer frente à Igreja do 11 SIMÕES, Manuel Breda. Le Symbolisme du Triple Couronnement ET Les Empires du Saint-Aprit. In: Os Impérios do Espírito Santo e a Simbólica do Império: II Colóquio Internacional de Simbologia. Separata Boletim Histórico da Ilha Terceira, tomo I, 1984. 12 Para Manuel J. Gandra, o vocábulo “império” teria se tornado sinônimo de “Teatro do Divino”, expressão que designava o palco onde, anualmente, se encenava o Auto do Império. (GRANDA, 2001). 36 Oriente. Segundo Le Goff e Schmitt, o ritual da coroação foi baseado em um documento falso: “entre 750 e 760, um falsário criativo compôs um documento chamado Doação de Constantino, onde relatava as condições em que teria operado entre o imperador e o papa Silvestre I uma divisão do mundo e do poder sobre o mundo: ao soldado, o poder temporal, ao sacerdote, o poder espiritual” (2002, p.608). Essa prática se propagou por toda a Idade Média. Sua ideologia fazia de Roma o centro do mundo, do Império Universal, da Cristandade, com a aliança do trono e do altar. Em 1030, foi composto em Roma um “livro de Cerimônias na Corte Imperial”, fundamentado nas tradições da Doação de Constantino, e tudo com muita pompa. A cerimônia fazia analogia ao que consagrava os pontífices cristãos: unção, como a do batismo, consagração para três pelados. Depois, a entrega de uma coroa simbólica, formada de um diadema de oito plaquetas de ouro, para quem se designava “príncipe cristianíssimo”, e, ainda, contava com a presença de objetos igualmente simbólicos: o gládio, o cetro, a vara e o anel. (LE GOFF E SCHMITT. 2002. p. 612). 4 A Festa de Divino Espírito Santo no Brasil A Festa do Divino chegou ao Brasil por volta do séc. XVI, através dos portugueses açorianos, que primeiramente desembarcaram em Maranhão em 1619; depois, em 1755, pequenos grupos de origem açoriana desembarcam em Santa Catarina. Ávila, ao se reportar sobre a institucionalização das festas religiosas e cívicas no Brasil colonial, afirma que, embora as festas estivessem relacionadas ao cultivo das tradições religiosas do colonizador, no século XVIII, “a festa colonial brasileira ultrapassou um espaço tradicional de discurso de poder, buscando concatenar, em seu lugar, um espaço de discurso de identidade cultural” (1993, p. 238). No entanto, embora esse discurso atendesse aos interesses do poder, onde a ideia de uma nação harmoniosa era muito apropriada ao contexto, a realização das festas aconteceu dentro de um contexto de constantes negociações de valores étnicos e de representações culturais entre os escravos e seus senhores, o indígena e o colono de origem portuguesa. 37 É diante desse quadro de esperança e conflitos que o “hibridismo religioso”,13 que envolve o catolicismo popular e a religiosidade no Brasil Colônia, vai se configurando e se reelaborando através de negociações de valores e de representações culturais, envolvendo os diversos segmentos sociais da época, como os escravos, o português, o índio e outros de nacionalidade diferente. Essa mistura de ritos das religiões africanas, ritos cristãos e a participação indígena reflete uma falsa democracia racial que se manifesta hoje em dia como sendo o sagrado e o profano das festas populares no Brasil. No entanto, embora a festa do Divino no Brasil seja um reflexo dessa realidade complexa entre sonho e realidade, algumas regiões brasileiras postergam esse culto, e, cada uma, à sua maneira, incorporou novos elementos para, assim, festejar essa utopia. No Brasil, a festa do Divino se espalhou por quase todos os estados. Dentre eles, atualmente, podemos encontrar a festa no Estado do Rio Grande do Sul; em Santa Catarina; em Pirinópolis, GO; em São Luis do Maranhão; em Mogi das Cruzes, SP; e em Macapá, local da presente pesquisa. Ainda é possível encontrar o ideal do Quinto Império14 promovendo a realização de novas Festas do Divino no Brasil, como é o caso da cidade de Cambuqueira, no estado 13 BURKE, Peter. Hibridismo cultural. São Leopoldo: Unissinos. 2008. Para Agostinho da Silva, a ideia de V Império foi trazida pela Rainha Santa Isabel, esposa de D. Dinis, e, posteriormente, utilizadas por portugueses, influenciada pelo pensamento de Joaquim de Fiore, que “considera que o V Império é o reino do Espírito Santo que irá se estabelecer em cada ser humano. No entanto, defende que, para se chegar ao reino do Espírito Santo, é preciso superar um conjunto de etapas denominado os ‘Sete ideais’: “o 1º é forjado pela ‘paciência e tenacidade de Deus’, é o de ‘não haver governo’, à semelhança daquilo que se passava no Paraíso, pois a meta é atingir a superação da ‘antinomia governante-governado’ o que necessariamente implica o fim da teocracia, aristocracia e democracia; o 2º ideal é o de ‘não haver economia’, igualmente à semelhança do Paraíso, dado que o objectivo era a superação da "antinomia de produtor e consumidor’; o 3º visa a superação da oposições ‘criança-adulto’, ‘ignorante-sábio’, ‘homem-mulher’, pois só ela garante, como, aliás, acontece no céu, que ‘não haja nem escolas, nem livros, nem casamentos’; o 4º ideal tem a ver com a não distinção entre a vida e a morte; o 5º encara a verdade como a não separação entre aquilo que ‘hoje chamamos verdadeiro do que hoje chamamos falso’; o 6º é o ‘ideal das geometrias de todas as dimensões’ que consiste precisamente em fundi-las numa espécie de geometria sem qualquer dimensão; o 7º, e último, corresponde ao ‘ideal de pensar’ como ‘fusão plena do sujeito e objecto num não pensar’ que, na tradução teológica de Agostinho, consistia em ver o laço do Espírito que une o Pai e o Filho: ‘O que novamente traria a terreiro, desta vez sem heresia, o velho Joaquim de Flora, e o seu Reino do Espírito Santo e o seu Império da Flor-de-Lis’. (1988: 200 e Araújo & Cunha, 1999: 69-76). No entanto declara que sem o poder da oração, os ideais não tem valor. A idéia de V Império, difundida também enquanto uma idéia Universal e de Futuro, foi influenciada pelo pensamento do Padre Antonio Vieira, através da crença messiânica, que representa um esperança histórica onde Deus enviara a terra um salvador ou Imperador que livrará o seu povo da opressão. A 14 38 de Minas Gerais, que realiza a festa do divino visando o seu ideal joaquimita. Esse evento já se encontra na sua sexta edição e foi criado pela Associação Keppe e Pacheco15. Dentre os eventos que contemplam a festa, como a benção do pão, a coroação do divino, entre outros, destacam-se aqueles relacionados à conscientização e à espiritualidade, como as palestras sobre as origens da Festa do Divino e do Quinto Império. Segundo a associação: a Festa do Divino Espírito Santo é a única que comemora o futuro — algo que ainda vai acontecer. Todas as demais festas populares comemoram um fato que já aconteceu — alguma vitória ou momento marcante de um povo ou nação — ou o feito de uma pessoa (Santo, herói ou líder). Mas a festa do divino é a única que celebra o futuro(http://www.portaldodivino.com/Cambuquira/cambuquira.htm, acessado em 27/05/11. As 22:14) . O modelo festivo do mundo ibérico trazido pelos portugueses para a América vai se estabelecendo nas terras brasileiras celebrando, de um lado, a concepção cristã da Igreja Católica, na simbologia da celebração do Pentecostes, através da fé no Divino Espírito Santo, e, por outro lado, as ideias do abade Joaquim de Fiore, que vão conquistando novos adeptos e influenciando na estrutura de novas festas do Divino no Brasil, através da ideia do V Império. 4.1 A Festa do Divino Espírito Santo no Amapá paz, a justiça e a fraternidade reinarão sobre a terra. Agostinha da Silva acredita que Portugal foi o país escolhido por Deus para revelar ao mundo a idéia do V Império, e afirma que o homem encontrará esse ideal na essência de cada criança e por intermédio da graça do Espírito Santo, que junto com uma proposta pedagógica, a teoria pode se transformar em realidade e se espalhar pelo mundo ‘como base, sustento e liberdade, como meio, o mundo, como fim, um sonho que se torne real’ (1988: 484). A idéia do V Império, aliada a idéia de Terceira idade do mundo, de abade Joaquim de Fiore, foi se constituindo no germe de uma cultura baseada na esperança de um futuro melhor.” (ARAÚJO. Alberto F. A idéia do V Império em Agostinho da Silva: para uma interpretação Mitonalítica. Universidade do Minho). 15 - A Associação Keppe e Pacheco é uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) inicialmente fundada em Paris em 1992, pela psicanalista Cláudia Pacheco, que reuniu um grupo internacional de indivíduos e instituições dedicadas a preservação da humanidade e da natureza. Dentre seus projetos destacase o “Stop à destruição do Mundo”, responsável pela realização da festa do Divino Espírito Santo em Cambuquira. É também divulgadora das idéias do psicanalista Noberto Keppe que criou a Sociedade de Psicanálise Integral, ou sociedade de Triologia Analítica, tendo Agostinho da Silva, o responsável por difundir a vinda do V Império ou o Reino do Espírito Santo no mundo, a partir de Portugal e Brasil, como Patrono da Sociedade em Portugal 39 Os festejos em homenagem ao Divino no Amapá apresentam algumas imagens e representações do culto ao Espírito Santo muito próximas daqueles momentos festivos, registrados nas fontes dos séculos XVII e XVIII. No entanto, considerando que as práticas culturais são resultantes de processos culturais moldados pelas relações históricas ao longo do tempo, a presente dissertação visa compreender a Festa do Marabaixo atualmente, considerando-a enquanto um conjunto de práticas e representações do originário da tradicional Festa do Império do Divino de Açores. A chegada da festa do Divino Espírito Santo em Macapá está relacionada a um capítulo bastante peculiar da história colonial do Brasil. Após a invasão dos soldados mouros e berberes à fortaleza Portuguesa de Mazagão, em Marrocos, no continente africano, Portugal decide abandonar a região. Assim, os habitantes da fortaleza foram enviados para as “Terras do Cabo Norte”, hoje estado do Amapá, em 1770, para fundar uma nova Mazagão, inaugurada com o nome de Vila Nova de Mazagão, criada com o propósito de povoar as terras amapaenses. A Vila Nova de Mazagão — hoje Vila de Mazagão Velho — se localiza a 70km de Macapá. Dentre as famílias que vieram para Mazagão Velho, havia, entre os emigrados, alguns provenientes das ilhas de Açores, o que justifica os festejos do Espírito Santo nessa região. (MOTINHA. 2003, p. 169). 40 Figura 1 - Mazagão, a cidade que veio da África FONTE: (BRASIL ARQUEOLÓGICO, p. 9). Segundo Motinha (2003), as festas do Divino em Mazagão ficaram sob a responsabilidade dos descendentes dos primeiros colonizadores brancos, membros das famílias Videira e Barriga, e, em Macapá, a tradição ficou com a família de Julião Ramos, descendentes de escravos. Este fato, para a autora, justifica a presença dos dois grupos festivos: o “Espírito Santo dos Pardos” e o “Espírito Santo dos Brancos”. O jornal do Amapá traz, na matéria “Marabaixo a expressão do nosso folclore”, uma citação sobre o conflito entre dois grupos em Macapá. São o grupo do Espírito Santo dos Pardos e o Espírito Santo dos Brancos, sendo que tal conflito fez diminuir a presença dos negros na igreja. 41 Figura 2 - Matéria “Marabaixo, a expressão do nosso folclore” FONTE: Jornal do Amapá, Arquivo da Diocese de Macapá No livro de Tombo, volume 1, da Igreja de São José de Macapá, no capítulo Festas e Funções de Culto na Matriz, encontramos também, uma referência a dois grupos que festejavam o Divino Espírito Santo “Festa do Divino Espírito Santo: nos anos anteriores havia duas festividades: a do espírito santo real e a do espírito sano dos pardos, cada qual com sua coroa e relativas a esmolações. agora a festa do espírito santo se realiza na igreja, precedida de novena onde se expõe e se dá a benção com o ss. mo.” (pag 19, 1916) 42 O “Jornal Pinsonia” é o documento mais antigo referente à manifestação da festa do Divino Espírito Santo no Estado do Amapá. Segundo Fernando Canto “O jornal ‘Pinsonia’ foi o primeiro periódico a ser impresso e a circular em Macapá, provavelmente de 1895 a 1900, e traz em sua edição de 25 de junho de 1898 um artigo escrito pelo cronista Prancário Júnior, em 1899” (CANTO, 1998)16, que faz uma descrição detalhada da festa, indicando possíveis transformações dos festejos em relação aos ritos iniciais. 16 O referido artigo está transcrito com toda a originalidade do texto, conforme publicado no jornal Pinsonia, no livro “Água Benta e o Diabo”, do sociólogo Fernando Canto. 43 Figura 3 - Jornal Pinsonia de 1895 O artigo descreve momentos da festa que fazem lembrar os festejos das ilhas de Açores, tais como: a romaria que sai em busca de arrecadar doações para preparar os alimentos, como pão e bebida, onde o “juiz em pessoa distribue aos devotos que assistem a collocação do mastro em frente a estrea da festa” (CANTO, 1998, p. 22). 44 A outra romaria descrita é a do transporte do mastro, enfeitado com a bandeira, “na qual se vê pintada a Pomba, symbolo do Divino” (CANTO, 1998, p. 23) com os devotos alegres, usando uniformes especiais, além das fitas, os lenços e as tolhas. O cortejo também era acompanhado com música, ao som dos ensaios de tambores (CANTO, 1998, p. 23), e com dança. A cerimônia da coroação acontecia na casa do juiz; depois das novenas cantadas, uma “menina”, num santuário preparado para ocasião, recebia o Divino. Em seguida, a casa entrava em festa, “onde a helite macapaense gosou horas bem disthaiadas”. A descrição do evento relata as missas e o almoço servido com abundancia de comidas e bebidas. Suas informações fazem referência aos dias em que os eventos aconteciam, indicando que, ao findar, deixaria saudade, pois que tal festa aconteceria “só p’ro anno.” (CANTO, 1998, p. 25), ou seja, a festa aconteceria somente no outro ano, como ocorre atualmente. O referido artigo revela, também, a oposição da Igreja em relação aos festejos, manifestada através da ausência do “sacerdote nas solenidades da egreja” (CANTO, 1998, p. 22). Essa situação foi amenizada com a interferência de um juiz de direito, festeiro daquele ano, representando o Marabaixo dos brancos, que conseguiu uma portaria do “governo bispado” (CANTO, 1998, p. 23) determinando a presença do Cônego Texeira, que, apesar disso, não compareceu no evento. De acordo com esse registro documental, é possível perceber que a festa, ainda que hoje não aconteça com o mesmo formato, apresentava algumas das práticas que constituíam a estrutura dos festejos do Divino enquanto manifestação cultural e religiosa advinda de Açores. Pereira (1951), durante sua viagem a Macapá, observou que alguns elementos da festa do Divino no século XVI, brincada em Portugal, ainda podiam ser assistidos nos “longínquos rincões do Brasil”, tais como: a distribuição de alimentos aos pobres no dia do Divino denominado de “bodo” — que se realizava após a missa festiva. Também, durante a tarde, havia procissão e, à noite, luminárias e outra cerimônia, que era considerada especial, a “guarda da coroa”. Todos esses momentos aconteciam com “a mesma harmonia, bem como o mesmo colorido e movimento, das suas primitivas realizações” (p. 112). 45 No livro “Água Benta e o Diabo”, do sociólogo Fernando Canto (1998), no qual analisa a relação de conflito e resistência entre a Igreja e o Marabaixo, através de uma crônica publicada no Jornal Pinsônia, de autoria de Pancrário Júnior, em 1899, o autor considera que os elementos que fazem relação às coisas sagradas — a Igreja — no Marabaixo, e assim particularizam a festa do Divino Espírito Santo em Macapá, estão representados, atualmente, “nas novenas e nas procissões da murta e através de letras de músicas, que também são orações, onde estão contidas essencialmente a crença nos santos festejados” (p. 33). O cronista Pancrário Júnior relata com entusiasmos a presença da dança do marabaixo durante os festejos: “Nem todos, porém, deram por terminada a cerimônia do dia. Em muitas casas ferve o Mar-abaixo e quasi sempre amanhece” (CANTO, 1998, p. 24). Motinha, em sua pesquisa sobre a festa do Divino em Mazagão, também relata a presença da dança do Marabaixo durante os festejos. Considerando que muitas dessas festas se perpetuaram dentro de uma manifestação de cultura oral, não temos informações sobre a origem da dança do Marabaixo, nem de sua participação no evento. O etnólogo Nunes Pereira (1951), presidente do Instituto de Etnografia e Sociologia do Amazonas na década de 1950, que esteve em Macapá realizando pesquisas sobre o Marabaixo e o Sairé, sugere que associação da dança do Marabaixo com a Festa do Divino Espírito Santo está relacionada com a estratégia17 dos missionários portugueses para desarticularem possíveis revoltas que gerariam graves problemas de ordem social e econômica, como as brigas entre os jesuítas e os colonos, rebeliões e, ainda, fugas e inaptidões dos trabalhadores indígenas. Diante de tal situação, “entenderam os Missionários aproveitar o Marabaixo no serviço da Fé Cristã, principalmente nas solenidades que exaltavam o poder do Divino Espírito Santo” (p. 110) . Porém, a introdução do Marabaixo nas festividades da Igreja também proporcionou mudanças nos costumes católicos, principalmente no que diz respeito ao lado alegre e 17 “Quando as lutas sucessivas entre colonos e os jesuítas, bem como as rebeliões, fugas e inaptidões do trabalhador indígena, geravam graves problemas, de ordem social e econômica, para a Província Amazônica, mister foi que igual procedimento adotassem também com os negros, trazidos nos tumbeiros, do Continente Africano. Quer nas fazendas de gado, roças, engenhos e pesqueiros das suas Missões, quer, depois, nas cidades e vilas dominadas pelos colonos, cuidaram os padres de tolerar-lhes as danças sociais e mesmo as religiosas, com que, eles os negros, festejavam os seus voduns, orixás e loas, ao som dos tambores sagrados, às vozes dos seus cânticos em dialetos da Africa”. (PEREIRA, 1951, p. 110). 46 descontraído, que ficou a cargo do empréstimo dos instrumentos musicais e da dança que embelezavam o evento. Os negros transplantados lhes emprestaram a eloqüência dos seus instrumentos, o ardor do seu sangue, a exuberância da sua alegria, a resistência de seus músculos, a expressão mais pura de sua Arte e de sua Religião. E foram atores, músicos e poetas, bailarinos e ginastas nos atos religiosos e profanos conduzidos pelos Missionários. (PEREIRA, 1951, p. 110). A presença de um grande número de habitantes nas festas, onde tanto os representantes do estrato social da elite como os descendentes de escravos se confraternizam e almejam as bênçãos do Espírito Santo, revela o poder de socialização da festa. No início de 1900, a organização da festa em Macapá era de responsabilidade da família de Julião Ramos (1876-1958), líder comunitário dos descendentes de escravos que moravam no centro da cidade, na região denominada de Vila Santa Engrácia, que, hoje, está localizada no centro da cidade, tendo como referência a Residência do Governador, o antigo Fórum, onde funciona a sede da OAB/AP (Ordem dos Advogados do Brasil, secção do Amapá), a Praça Veiga Cabral, nas proximidades da igreja de São José de Macapá, onde a festa acontecia, e ainda é a principal referência como “bela vista” para o Rio Amazonas. Nessa época, existia em Macapá somente uma única festa do Divino Espírito Santo. No entanto, muitos dos ritos da festa foram se perdendo ou se transformando, ao longo dos anos, principalmente aqueles considerados pela Igreja como práticas impróprias para a religião católica, bem como o próprio desenvolvimento da cidade. A festa do Divino Espírito Santo é conhecida, atualmente, pelo nome de “Ciclo do Marabaixo”. O calendário festivo inicia-se no Domingo de Páscoa, tal como considerado pela Rainha Isabel, em Portugal. Durante aproximadamente dois meses, as homenagens ao Divino Espírito Santo e à Santíssima Trindade, assim denominados pelos representantes de alguns grupos de Marabaixo em Macapá, vão sendo distribuídas entre eventos considerados como os momentos sagrados e os momentos lúdicos da festa, que acontecem até o término dos festejos, no domingo do senhor, ou no domingo de Pentecostes. 47 4.2 A Festa do Divino Espírito Santo em Macapá pelo Grupo de Marabaixo Raimundo Ladislau O Ciclo do Marabaixo em Macapá é realizado atualmente pelas Associações Culturais distribuídas entre vários bairros e localidades da capital amapaense. No Bairro do Laguinho, temos a Associação Cultural Raimundo Ladislau, localizada na rua Eliezer Levy, 632, que realiza as festas do Ciclo do Marabaixo. A Associação Cultural Raimundo Ladislau foi fundada em 1988. Seu principal objetivo consiste em “resguardar, difundir e valorizar a cultura do povo negro do Amapá” e, neste aspecto, o Marabaixo tem destaque maior por ser uma manifestação genuinamente regional. Segundo Daniella Ramos, que já está no seu segundo mandato como presidente da Associação, a ideia de criar uma entidade que fosse, de fato e de direito, responsável pela manutenção e realização das festas do Marabaixo, está relacionada aos seguintes fatos: Com o falecimento do Mestre Julião no final da década de cinqüenta, a festa do Marabaixo foi se enfraquecendo ao longo dos anos e na década de oitenta chegou a enfrentar sua pior crise chegando a uma situação de quase completa extinção, fato que sensibilizou uma parcela da sociedade através de cobranças e os apelos expressos em alguns jornais da época e também por algumas autoridades, fez com que os filhos do Mestre Julião se reunissem e voltassem a realizar a festa. (Entrevista com Daniella Ramos, 14 jun. 2011). As associações, na maioria dos casos, representam uma família tradicional de Macapá. A Associação Raimundo Ladislau, foi criada pelos filhos e netos do Mestre Julião18 Ramos. A sua criação está relacionada a um fato interessante ocorrido na casa da Tia Biló,19 no final da década de 1980. Daniella Ramos, bisneta de Mestre Julião e atual presidente da Associação, relata que: 18 Julião Thomas Ramos(1876 – 1958), mas conhecido como Mestre Julião, foi um exímio tocador de caixa de marabaixo e é reconhecido na história da festa do Marabaixo como o principal mantenedor e incentivador da realização da festa no bairro do laguinho, na cidade de Macapá 19 Benedita Guilherma Ramos (Tia Biló) é a última dos dez filhos do casal Julião Thomaz Ramos e Januária Simplícia Ramos. Hoje com 86 anos, cumpre, apesar da idade, a promessa que fez ao pai de dar continuidade à festa do Divino Espírito Santo e da Santíssima Trindade. 48 o fato aconteceu na época que a cantora Bethe carvalho veio a Macapá. Quem trouxe foi o governo e a prefeitura. Depois do show, ela veio na casa da tia Biló e fizeram o Marabaixo para apresentar à cantora. A casa era de madeira, nessa época o Marabaixo acontecia na sala; a sala era toda esvaziada, houve uma multidão querendo entrar na casa até que quebrou o assoalho e depois a cumieira, parte do telhado que sustenta a casa, nessa época teria uma viagem para o grupo de Marabaixo, para um evento a ser realizado em Belém, acabou que esse evento foi cancelado e o dinheiro iria voltar, então o funcionário do governo deu essa ideia para o meu tio de pegar esse recurso e ajeitar a casa, que a casa ficou comprometida, principalmente o telhado. Então ele iria dá essa ideia para liberarem esse recurso para ajeitarem a casa. Nessa ocasião, foi dada a sugestão de se criar uma instituição para o próximo ano, a fim de que a mesma pudesse está recebendo uma pequena quantia de apoio financeiro para o Ciclo do Marabaixo. Foi então que os filhos do mestre Julião, se reuniram, mais algumas pessoas que eram amigos ligados a família, como o seu Lino (Francisco Lino da Silva) uns dos fundadores da Escola de Samba Boêmios do Laguinho, e resolveram criar a Associação Cultural Raimundo Lasdislau em 1988, com o objetivo de fazer o resgate do Marabaixo, tratar dessa manutenção e também buscar recurso junto ao Estado e Ministério. Até mesmo porque algumas pessoas, os mais antigos já tinham morrido, estava ficando cada vez mais difícil garantir a realização da festa. (Entrevista com Daniella Ramos, 14 jun. 2011). Esse espaço é denominado tanto como a “casa do festeiro” como também de “Centro Cultural Tia Biló”, e é o local onde foram realizados os festejos do ano de 2011, conforme o calendário constante do folder do evento, elaborado e divulgado pela Associação. 49 Figura 4 - Tia Biló, única filha viva do Mestre Julião, cantando um ladrão de marabaixo na abertura do Ciclo do Marabaixo, 2011 A Associação conta com um número de 158 membros que se dividem entre os brincantes, os organizadores e os realizadores da festa. São realizados durante o ano eventos para conseguir recursos financeiros, como bingos organizados pela Associação, além desses, a Associação participa de outros eventos que garantam remuneração. Os festejos do Ciclo do Marabaixo de 2011 tiveram início no dia 24 de abril, no domingo de Páscoa, com o Marabaixo da Ressureição, às 17h. Nesse dia, a presidente da Associação anuncia o início dos festejos e convida todos os presentes para apreciarem a festa. A programação consiste na realização do momento lúdico da festa. Ao som das caixas do marabaixo, os presentes cantam e dançam comemorando a abertura do ciclo. Grupos de outras comunidades são convidados para também tocarem e dançarem no evento. Durante a festa, é servido o tradicional caldo, feito de carne bovina e verduras, e a gengibirra, bebida típica da festa, feita de cachaça, açúcar e gengibre. O “primeiro Marabaixo”, assim também denominado, termina à meia-noite. 50 Figura 5 - Início do Ciclo do Marabaixo, 24 de abril de 2011 51 Figura 6 - O caldo de carne e bebida gengibirra: iguarias servidas durante a festa O evento segue de acordo com o calendário, que é fielmente cumprido. No dia 28 de maio acontece o corte do mastro. O grupo se desloca até o Curiaú, área reconhecida como região quilombola que se localiza a uma distância de aproximadamente 12 km de Macapá e que contém uma grande área verde preservada, com uma mata bastante densa onde é possível encontrar o mastro apropriado, para então realizarem o corte do mastro. Todo o ritual é acompanhado pelo som das caixas e das cantigas de marabaixo. No dia 29 de maio acontece o “segundo marabaixo”, denominado o “marabaixo do mastro”. Em seguida, no dia 1º de junho, às 17h, é realizada a quarta-feira da murta do Divino Espírito Santo. Nesse dia, o grupo sai às ruas cantando e dançando ao som das caixas de marabaixo para apanharem a murta.20 A busca da murta era realizada, antigamente, no centro 20 A murta faz parte de um gênero de plantas, com mais de 200 espécies, geralmente da família das mirtáceas, das melastomatáceas ou das rubiáceas (Cacciatore, apud Videira, 2009, p. 111). Corresponde a uma ramagem verde, que é apanhada por mulheres que se deslocam para as matas próximas da cidade na “quarta-feira da 52 da cidade e, em seguida, entrava-se na igreja com a murta, depois se saía e jogava-se a carioca21 na frente da igreja. Com o desenvolvimento urbano e populacional, as murtas são colhidas na mata do Curiaú e guardadas nas casas de parentes da família ou de devotos do Divino Espírito Santo até a hora do cortejo, que sai em busca da murta e depois segue o trajeto de acordo com as casas que estão preparadas para receberem as bênçãos do Divino Espírito Santo e dá Santíssima Trindade. Durante o cortejo, alguns devotos preparam um pequeno altar em suas casas para receberem o grupo. Após apanhada a murta, o grupo retorna à casa do festeiro realizando um cortejo pelo bairro com a murta na mão, as bandeiras do Divino, fogos de artifício, todos cantando e dançando e pedindo proteção ao Divino Espírito Santo. De volta à casa de Tia Biló (casa do festeiro), o evento continua sempre com a dança do marabaixo, a tradição do caldo, da gengibirra, e se prolonga até o amanhecer, quando, às 06h da manhã, é levantado o mastro que foi decorado com a murta e o mastro que foi pintado com as cores do Divino, consideradas pelo grupo como sendo as cores vermelha e branca, e, em seguida são fincados em frente à casa, com muita alegria, dança ao redor do mastro, e as cantigas do marabaixo. Esse mesmo evento acontece novamente nos dias 12 e 13 de junho, quando o grupo começa as homenagens à Santíssima Trindade, que é representada pelas cores azul e branca. Segundo Daniella Ramos, o mastro é “o símbolo que representa a conclusão das festas. No momento que se levanta os mastros nós estamos falando para as pessoas que a festa daquele Santo já foi realizada, já foi concluída, a missão foi cumprida”. Os dois mastros erguidos para cada santo homenageado tanto servem para indicar o cumprimento das homenagens como também para indicar os santos, que são identificados através das cores pintadas no próprio mastro, juntamente com as suas respectivas bandeiras. Assim como em Portugal, o levantamento do mastro contempla o calendário das festa, que fazia referência aos mastros levantados em frente da Igreja Matriz. Este fato antigamente acontecia em Macapá, como afirma Canto; mas, por volta de 1950, deixaram de fincar os mastros em frente à igreja matriz para serem colocados frente à casa do festeiro. Após a morte do mestre Julião Ramos murta”, e cantando e se confraternizando apanham vários galhos que serão utilizados como revestimento dos dois mastros. Estes últimos são dois troncos finos de árvores que também são retirados de matas das cercanias, por homens, alguns dias antes do começo da festa. 21 “A ‘carioca’ consistia de passos parecidos com os da capoeira. A minha avó diz que não eram capoeira, ela tinha a forma de jogar de se brincar, era diferente e era ao som dos tambores do marabaixo. Era ao som do dobrado do caixa que a gente canta, quando sai nas ruas.” (Daniella Ramos). 53 (em 1958), a sociedade do Marabaixo, composta por mordomos e novenários, desapareceu (1998, p. 30). A murta serve para enfeitar o mastro e também para realizar a limpeza espiritual. Para Daniella Ramos, tradicionalmente o poder a murta está relacionado ao afastamento das energias negativas, o mal olhado, “antigamente diziam que a murta tinha uma energia muito boa, quando as coisas não iam muito bem, quando tudo parecia errado, no dia da retirada da murta parecia que as coisas fluíam bem melhor”. Figura 7 - O mastro enfeitado com a murta 54 Figura 8 - Os dois mastros em homenagem ao divino espírito santo, na frente da casa do festeiro 55 Figura 9 - Decoração do mastro com a murta antes de ser erguido Figura 10 - Início do levantamento do mastro, que acontece religiosamente às 06h da manhã, de acordo com a tradição 56 Figura 11 - Altar preparado na casa dos devotos para receber a procissão da murta Figura 12 - A saída do cortejo em frente à casa do festeiro que vai buscar a murta 57 Figura 13 - Procissão com a murta pelas ruas do bairro do laguinho Figura 14 - Casa decorada com as cores do santo para receber a procissão da murta 58 A procissão se encerra com a chegada à casa do festeiro, onde todos cantam e fazem saudações aos santos homenageados em frente do altar, que fica montado o ano inteiro representando a devoção dos moradores daquela casa. Figura 15 - Chegada da procissão da murta em frente ao altar na casa do festeiro No calendário, encontramos também referência aos bailes dos sócios, que acontecem nos dias 02, 11, 13 e 18 de junho. São denominados “baile dos sócios do Divino Espírito Santo” e “baile dos sócios da Santíssima Trindade”. É o momento da festa onde não consta a apresentação do marabaixo, e se caracteriza por ser um baile dançante com músicas tocadas através do som mecânico, contemplando repertório dos gêneros forró, brega, sertanejo, samba, entre outros. Durante o Ciclo do Marabaixo, acontece o novenário. São nove novenas distribuídas para cada santo homenageado, em agradecimentos pelas graças alcançadas e pela proteção recebida. As novenas são realizadas pelo Seu João, um dos foliões mais respeitados na cidade de Macapá, que apresenta o batuque como sendo a parte lúdica do festejo e que pertence ao grupo da folia de São Joaquim, santo comemorado no Curiaú. Na hierarquia dos foliões, assim como em Portugal, ele é considerado uma pessoa importante, uma pessoa especial dentro da hierarquia da festa. Seu João vem especialmente do Curiaú para proferir as ladainhas, que se dividem em momentos de fala e de cantos, em latim e em português, acompanhado pelos devotos em frente ao altar da casa do festeiro. O final do rito é sempre comemorado com fogos de artifício. 59 Figura 16 - Novena realizada pelo seu João na casa do festeiro Munjoca Figura 17 - Novenas são realizadas em frente do altar onde estão as coroas do Divino Espírito Santo e da Santíssima Trindade 60 A presença dos foliões durante a realização das novenas é vista pelo grupo Raimundo Ladislau como um dos momentos mais importantes para consagrar a seriedade das manifestações dos devotos. Não existe entre os membros do grupo aquele que seja denominado de folião. Na coluna de Estácio Vidal, “Crenças, Mitos e Lendas de Macapá”, do Jornal do Povo, publicado em 12 de março de 1981, os “foliões” são citados como sendo uma parte da festa do marabaixo que não existe mais, conforme informações de D. Venina Francisca da Trindade, entrevistada por Estácio Vidal: Antigamente, os “foliões” de santos, eram um grupo de indivíduos pouco amigos do trabalho, que percorriam alguns lugares do município de Macapá arrecadando donativos para os festejos de São José, São Joaquim, Nossa Senhora da Conceição, Divino Espírito Santo e às outras devoções. Quando chegavam as oferendas, cantavam a “folia”, que era uma espécie de agradecimento a Deus, pela bondade dos ofertantes no decorrer daqueles dias. O grupo era liderado pelo “Mestre Sala”; este era o “padre” que rezava um latim arrevezado e que exercia uma ascendência de autoridade sobre os demais membros devotos. Era uma figura diferente do pajé. Quando os “foliões” chegavam a qualquer casa, nela ficavam até o dia seguinte, com isso dando tempo para que a vizinhança recebesse aviso de suas presenças para trazer os donativos. O proprietário da casa, que já estava acostumado, valia-se do terreiro para homenagear os “foliões” e os devotos. Quando chegava a noite, primeiramente rezavam a “folia”, cujos instrumentos eram a viola, o reco-reco, a “caixa” do marabaixo e o quexé-quexé. A “folia” era uma toada no ritmo da marcha (é bom lembrar que Zeca Serra era músico), mas para ser rezada e não para ser dançada. Nessas ladainhas “caseiras”, os foliões ficavam de pé, em frente ao altar improvisado do santo reverenciado, quando começava a ladainha. O povo ficava ajoelhado em cima de esteiras de junco ou de talas de buriti e postava-se com grande respeito, rezava com fervor que encantava a todos. Os seus cânticos eram feitos de acordo com a sapiência de cada um, e nem por isso deixavam de exprimir o que cada um sentia em sua crença com relação aos seres divinos. No Rosário de Maria era combatida a força do inferno: 61 As contas do seu rosário São balas de artilharia, Que combatem o inferno, Dizendo “Ave Maria” Muitas almas se perdiam, Se Deus não viesse ao mundo, Ai de nós o que seria! No final da ladainha, o “Mestre Sala” rompia um cântico em que o povo, pessoa por pessoa, ia beijar a fita do santo. Era um cântico sem rima, que era encabeçado pelos “foliões”, e o povo respondia: Bendito para sempre, louvado seja, Santo nome de Jesus, São José e a Virgem Maria! (Arquivo da Diocese de Macapá. Prot. 20427, 16 maio 1984) Seguindo o calendário de 2011, nos dias 12 e 19 de junho aconteceram as missas em homenagem aos santos, realizadas na Igreja de São Benedito que está localizada no Bairro Laguinho, o mesmo bairro da casa do festeiro. As missas acontecem sempre às 07h da manhã, no domingo. Em seguida, é realizado um café da manhã na casa do festeiro, onde todos são convidados. No dia da missa, as coroas do Divino Espírito Santo e da Santíssima Trindade são colocadas em frente ao altar, de onde o padre realiza a cerimônia. Todos os integrantes do grupo vão à missa vestidos com as roupas confeccionadas para os festejos do marabaixo. É possível contar com a presença das crianças, dos jovens adolescentes e dos mais velhos. O padre também veste roupas nas cores que representam o santo. Durante a missa é jogada água benta sobre os participantes do evento e sobre as coroas. A homilia realizada pelo padre faz sempre referência ao santo do dia da missa. No final da missa, o canto final é realizado pelos tocadores e pelas cantadoras da Associação. Em seguida, após a missa, todos seguem em procissão ao som das caixas de marabaixo, com uma menina levando a coroa para a casa do festeiro, onde é servido o café da manhã. 62 Figura 18 - O padre com as roupas nas mesmas cores que estão na coroa do Santo 63 Figura 19 - O translado da coroa do Divino Espírito Santo após a missa até a casa do festeiro Figura 20 - O translado da coroa após a missa até a casa do festeiro feito com o acompanhamento das caixas do Marabaixo 64 Figura 21 - O café da manhã servido logo após a missa, na casa do festeiro 65 Figura 22 - A coroa da Santíssima Trindade na igreja São Benedito 66 Figura 23 - O grupo de Marabaixo Raimundo Ladislau na missa Figura 24 - Vanessa, a mais nova integrante do grupo, com apenas três anos de idade, na missa em homenagens a Santíssima Trindade 67 Ainda que o rito da coroação do imperador não contemple na programação dos festejos do Marabaixo em Macapá, a coroa é um dos objetos mais significativos de representação presentes nos festejos do Divino. A coroa, que representa o Espírito Santo, constitui-se quase numa réplica da coroa real usada no século XVI; porém, o emblema usado é o da Santíssima Trindade e do Divino. Nas coroas do Divino e da Santíssima Trindade foi colocada uma pomba no topo da coroa, que está pousando sobre uma bola que simboliza o mundo. Cada uma é enfeitada com fitas que representam a sua cor. Segundo Daniella Ramos, essa coroa existe há mais de 150 anos. Foi doada ao Mestre Julião Ramos pelo senhor Raimundo Borges. O pai de Seu Raimundo realizava a festa do Divino juntamente com o Mestre Julião. No entanto, após o falecimento do seu pai, Seu Raimundo Borges herdou a coroa e os santos. Porém, por não se identificar com os festejos, e tendo em vista realizar uma viagem para fora do estado, deixou sob os cuidados do Mestre Julião a coroa e os santos, afirmando que se não retornasse, o amigo poderia ficar com os objetos. Os santos doados já se perderam, ficaram somente as coroas. Figura 25 - O símbolo da pomba na coroa 68 A bandeira relatada nos documentos históricos fazia referência à confraria ou à irmandade. Ainda hoje a bandeira simboliza o divino protetor. Na maioria dos casos, o tecido escolhido era vermelho, tendo no centro a pintura ou o bordado de uma pombinha. Hoje elas são usadas principalmente nos Marabaixos de rua, no dia da Murta, no dia do Mastro, quando é feito o trajeto pelas ruas do bairro. Para Daniella Ramos, as bandeiras simbolizam o anúncio da chegada ou a passagem da Santíssima Trindade ou do Divino por onde vai passando. As cantigas de Marabaixo são uma espécie de registro da história e da memória dos dançantes. São compostas por versos, denominados de “ladrão”. Tais versos são tirados de improviso com o intuito de criticar, exaltar, agradecer, etc. os fatos ocorridos no dia-a-dia da comunidade e nas relações com a sociedade em geral. O termo “ladrão” deve-se à forma improvisada das cantigas. São versos roubados da memória por pessoas que possuem habilidades com a rima. Para o mestre Pavão, sobrinho de Tia Biló e festeiro do Marabaixo, é nos versos dos ladrões que a musicalidade das cantigas ganha vida: Eu to cantando, então já vem outra pessoa, entra do lado da caixa de marabaixo e já começa cantar. [...] Ele está roubando aquela palavra, porque o ladrão de marabaixo, ele não é cantado, ele é todo enversado. Tu podes pegar “Aonde tu vai rapaz, por esses caminhos sozinhos, vou fazer minha morada, lá nos campos do laguinho”. (DVD Marabaixo – Ciclo de amor, fé e esperança. 2008. Prefeitura Municipal de Macapá). Vale ressaltar que não constam muitas renovações dos “ladrões” de Marabaixo. As cantigas, na sua maioria, continuam intactas, como foram deixados pelos mais antigos. As cantadeiras das gerações mais recentes criaram poucos “ladrões” e normalmente baseando-se nos já existentes. As cantigas de Marabaixo são documentos históricos que representam a forma de expressão e de resistência do povo negro frente às imposições, atitudes racistas e discriminatórias do governador Janary Gentil Nunes e da Igreja Católica contra o povo afroamapaense, sua história e cultura. (VIDEIRA, 2009. p. 139). A expressão “ladrões de marabaixo” também é usada para denominar os refrões, que são repetidos após cada estrofe, ou seja, os “ladrões” referem-se ao mesmo tempo às cantigas, isto é, às músicas acompanhadas pelos seus instrumentos, bem como aos seus refrões. 69 O ladrão “Eu Acordei de Madrugada”, de domínio público, é utilizado aqui como exemplo de ilustração: Eu acordei de madrugada Pelo cantar da lira Refrão: Valei-me Nossa Senhora Nossa Mãe Santa Maria Eu acordei de madrugada E fui logo à procissão Encontrei Nossa Senhora Com o ramo de ouro na mão Refrão: Valei-me Nossa Senhora Valei-me Nosso Senhor Nossa Senhora me ajude Nosso Senhor me ajudou (VIDEIRA, 2009, p. 179) Os ladrões são acompanhados por tambores chamados “caixas de marabaixo”. Essas caixas são confeccionadas de forma artesanal utilizando madeira, zinco, pele ou couro de animal, como cobra ou carneiro, e são entrelaçadas por cordas que permitem a sua afinação. São utilizadas duas baquetas para fazer os acompanhamentos, que são chamados de “dobrados de caixa”. Esses dobrados se modificam de acordo com os ladrões. São utilizadas duas ou três caixas de Marabaixo para fazer o acompanhamento, considerando que esses são os únicos instrumentos presentes nos ladrões. Os brincantes mais velhos contam que o ritmo do marabaixo nasceu inspirado na cadência dos remos dos navios negreiros que conduziram, “mar a baixo”, os escravos africanos. Um fabricante de instrumentos que foi referência, e ainda é reconhecido e valorizado pela comunidade negra, se chama Joaquim Sussuarana. Mas, hoje, existem outras referências, como o tocador e fabricante Pedro do Rosário dos Santos, que confecciona caixas e pandeiros e vem ampliando cada vez mais suas habilidades para a confecção dos instrumentos. Logo que as caixas começam a tocar, inaugurando, assim, o momento lúdico da festa, aparece alguém contando um ladrão, e é dado início ao momento de canto e dança da festa. Um fato interessante é a relação mística do tambor com o povo africano, a qual empresta ao 70 instrumento, segundo Câmara Cascudo, um caráter particularmente social, “jamais solista, independente, bastando-se pelo ritmo para exercitar o bailado, passar a informação e agradar aos deuses” (CASCUDO, 2004, p. 576). Os ladrões cantados anteriormente nas festas do marabaixo eram apresentados somente no período dos festejos, que, como hoje, acontecia anualmente. As cantigas, compostas em segredo, eram cantadas somente na festa. Elas revelavam os principais fatos do dia-a-dia dos brincantes, que, surpreendidos pela graciosidade ou pelo lamento do canto, transformavam esse momento em uma oportunidade, também, de comunicar algo para alguém. A música, através de seus ladrões, momento de maior representatividade na cultura amapaense, tem como característica principal a oralidade. Os ladrões são os guardiões da memória, da tradição, da história, da identidade dos agentes do Marabaixo, narrando (ou “roubando”, expressão usada pelos brincantes mais antigos) fatos e eventos do dia-a-dia, e também satirizando as informações sociais. No Marabaixo não existem músicos profissionais, não existem instrumentos profissionais, não existem “ladrões” profissionais, é o momento em que a comunidade em festa, independente de raça, idade, classe social, opção religiosa, se torna o grande artista, “a música representa uma síntese do impacto de uma cultura sobre a outra” (TUGNY; QUEIROZ, 2006). As cantadeiras tem o mesmo figurino das demais dançadeiras. A cantadeira é responsável por jogar o ladrão, dando a nota e o verso a ser cantado, que, em seguida, é embalado pelo coro das dançadeiras, dançadores e tocadores de caixas. Os ladrões são reveladores dos mais variados acontecimentos, personagens e temas — como política, ecologia, amor, entre outros —, e criam seu próprio código de leitura e apropriação, para assim estabelecerem uma nova ordem social, uma ordem que enfrenta os sistemas classificatórios das elites. É nos ladrões do Marabaixo que encontramos toda a teatralização da festa, onde a realidade torna-se fantasia e a fantasia torna-se real. É o momento onde o mundo social é captado e transformado pelos brincantes, é a particularidade que distingue a percepção do 71 mundo do autor do ladrão e, ao mesmo tempo, esse mundo é compartilhado por todos que cantam o refrão. É uma leitura da realidade fora das regras do real, é a possibilidade de mostrar realmente “como eu sou” e “o que eu gostaria de ser”. É um momento em que se pode brincar com mundo, ausente de hierarquias e desigualdades. As hierarquias e os respeitos são estabelecidos pelo talento do puxador de ladrão, do compositor que ao mesmo tempo estabelece as próprias regras da parte lúdica da festa. A festa cede espaço para a confraternização, a socialização que faz surgir um “novo eu”, um novo indivíduo, como é possível observar através do relato de Nunes Pereira: Atentando, mais minuciosamente, para aquela dança coletiva, sentimos, através da originalidade de improvisação do canto ou do passo, o gênio do ritmo e o poder de exprimi-lo, que fazem do negro um excepcional dançarino em qualquer lugar ângulo do Continente africano e, depois, mesmo através dos seus mestiços do Laguinho e do Curiaú. (p. 97). Nunes Pereira acrescenta ainda, falando da participação de Julião Ramos, conhecido pelo seu talento de tocador de caixa de marabaixo, que: Mestre Julião, de súbito, como se fosse envolvido pela fascinação daqueles ritmos e daquelas atitudes, entrou a substituir os tocadores das “caixas”, arrebatando-lhe o instrumento. E, então, pela expressão de sua voz e pela segurança de seus toques, a dança atingiu o seu pathos. (p. 97). A Associação Raimundo Ladislau procura resgatar os ladrões mais antigos do Marabaixo, mas também estão sendo compondo novos ladrões. Daniella é uma das principais cantadeiras de marabaixo do grupo. No momento, são apenas as mulheres que cantam durante os festejos. Existe uma preocupação do grupo em ensinar para os mais jovens as cantigas do marabaixo. No primeiro Festival de Ladrão de Marabaixo, realizado pela Confraria Tucujú com o objetivo de estimular a composição de novos ladrões de marabaixo, em abril de 2011, o grupo conquistou o segundo lugar com o ladrão “Terras das Bacabeiras”, composição de Daniella Ramos, em que faz uma homenagem à cidade de Macapá. Terras das Bacabeiras 72 refrão Na terra das Bacabeiras Quantas coisas lindas há Padroeiro São José Abençoe Macapá (bis) (bis) I Macapá terra tão linda Aqui nasci me criei E foi pelos teus encantos que me apaixonei (refrão) II Minha terra maravilhosa Declaro-te o meu amor E ecoarei meu canto Pelo mundo e onde eu for (refrão) Figura 26 - Divulgação do I Festival de Ladrão de Marabaixo, realizado pela Confraria Tucuju 73 Figura 27 - A Associação Cultural Raimundo Ladislau no I festival de Ladrão de Marabaixo FONTE: (AMAPÁ CULTURAL). Daniella relata que a iniciativa de compor novos ladrões não agradou aos outros grupos de marabaixo. “Fomos vistos por eles como um grupo despreocupado com a tradição.” 5. Simbologia do Ciclo do Marabaixo O grupo Raimundo Ladislau considera que o Ciclo do Marabaixo simboliza a cultura do povo negro, descendente de escravos que vieram para o estado do Amapá e encontraram no marabaixo a oportunidade de manifestar sua cultura. Através do canto e da dança os brincantes podiam expressar alegria, tristeza, críticas, lamentos, sonhos e brincadeiras. Encontravam no festejar: Um grande meio de comunicação, um grande meio de resistência. as pessoas se comunicavam através do marabaixo, as vezes quando a pessoa não tinha coragem de falar o que ela estava sentindo, cantando ela te dizia tudo, quer seja do sentimento bom ou do sentimento ruim, ou de apelo. por isso que dizem que os ladrões de marabaixo eram sempre compostos em cima de fatos que aconteciam na comunidade, no cotidiano da comunidade. era uma maneira do desabafo...eu digo que o marabaixo é uma grande alforria cultural, é o momento de liberdade, é momento que vc pode se expressar, dizer o que tu és, o que tu pensas, que tu gostas, o que tu queres, é 74 uma grande forma de nós manifestarmos aquilo que a gente gosta, aquilo que a gente quer” (RAMOS, Daniella, entrevista concedida em 16 jun. 2011). Mais do que uma manifestação cultural do Estado do Amapá, o ciclo do Marabaixo representa uma herança familiar. A realização da festa implica no cumprimento da promessa dos filhos do Mestre Julião Ramos, para que não deixassem essa tradição acabar. Embalados pelo compromisso familiar e pela relevância que esse bem cultural representa para o estado, filhos, netos e bisnetos vão dando continuidade ao Ciclo do Marabaixo. Apesar do Ciclo do Marabaixo apresentar em sua estrutura momentos da festa do Divino do Espírito Santo em Portugal, e assim ter sido denominada no final do século XIX, de acordo com o jornal Pinsônia, Tia Biló revela que desconhece a origem da festa e a origem da sua estrutura. Refere-se a ela como sendo apenas uma tradição familiar, que herdou do seu pai, Julião Ramos. (DVD Nossos Ídolos. Banda Placa). A Santíssima Trindade e o Divino Espírito Santo, simbolizados pela coroa, são considerados os santos padroeiros da cultura do Marabaixo pela Associação Raimundo Ladislau e, ao mesmo tempo, representam proteção, fé, devoção. As fitas que estão nas coroas são colocadas em forma de oração. Sempre são trocadas por novas fitas nas cores dos santos, como as cores vermelha e branca, que representam as cores do Divino Espírito Santo; as cores azul e branca representam as cores da Santíssima Trindade. Antigamente, as fitas colocadas na coroa representavam os pedidos a serem atendidos pelos santos. Os tamanhos e as cores das fitas variavam de acordo com os pedidos de cada promesseiro. As fitas eram amarradas nas coroas, mas somente os santos decidiam a hora que elas sairiam. Com o tempo, as promessas foram diminuindo, as poucas fitas que ficaram na coroa, envelheceram, acumularam sujeira e demoraram para se desfazer. Foi então que o grupo decidiu decorar as coroas com as fitas nas cores representativas dos santos. As fitas são confeccionadas em tamanho uniforme em tecido de cetim. Os mastros enfeitados simbolizam que as homenagens aos santos foram concluídas. A murta simboliza a limpeza espiritual, faz referência ao ramo que a pomba do Divino Espírito Santo trazia no bico após o dilúvio. As bandeiras servem para anunciar o Marabaixo, quando se apresentam pelas ruas do Bairro do Laguinho, no período do Ciclo. 75 CAPÍTULO 2: O MARABAIXO E A IGREJA A Igreja Matriz, cujo Santo Padroeiro ficou sendo São José, só foi inaugurada em 1761. A solenidade foi presidida pelo padre Joaquim Pahimo. Na cerimônia estava presente o governador do Pará, Manoel Bernardo de Melo e Castro. Nessa época, as terras amapaenses pertenciam ao Estado do Pará. Ainda que a Paróquia de São José de Macapá tenha sido criada em 1752, só foi de fato efetivada seis anos depois, em janeiro de 1758, sendo subordinada pela Prelatura Nullius de Santarém, criada em território da Diocese de Belém do Pará, que encaminhava todos os anos um sacerdote responsável para presidir as principais festas e exercer os sacramentos. Em 1904, assumiu o posto o padre Francisco Rellier. No entanto, pouco se sabe da relação entre o Marabaixo e a Igreja durante esse interstício histórico, que vai da inauguração da Paróquia de São José até o referido período. Porém, é possível perceber, através das palavras do padre Júlio Maria de Lombaerd,22 a relação da Igreja com as manifestações populares da época: Durante este longo período, o ensino religioso e o espírito cristão foram sensivelmente declinados, abrindo as portas aos abusos, superstições, espiritismo, festas profanas, que pouco a pouco tomaram contam da paróquia de Macapá, dando-lhe este aspecto atrasado que entristece seus filhos mais educados e progressistas. (LOMBAERDE, 1987. p. 40). Outro fato que faz referência a essa relação é encontrado no jornal Pinsônia, em texto escrito pelo cronista Prancário Júnior, em 1899, no qual relata: Como prática da religião catholica, teve lugar n’este mez, a tradicional festa do Divino Espírito Santo, executando-se os episódios originaes e primitivos, cujos os costumes ainda não se extinguio in totum. Si bem que antiquada uzança não esteja mais aqui, em parte, adaptada a ephoca que passamos; contudo, respeitemos, e achamos mesmo um certo prazer, em vermos reproduzir-se os quadros que provocam extasi nas almas singelas e simples dos antepassados d’esta boa terra. E acompanhando fazemos echo, ao delírio innocente, de uma parte do povo que não quer esquecer as tradicionais demonstrações de fé religiosa, sem que, por isso, nos venha algum desar, sem atraso, ante os pensadores livres e philosophos à outrance... Assim entremos na tarefa, com agrado e acatamento. 22 Padre belga que chegou a Macapá em 1913 e foi vigário da paróquia de São José de 1916 a 1923. Além de vigário, desenvolveu outras atividades: professor, dentista, farmacêutico e médico. 76 No decorrente ano, exerceu as funções de Juiz da Festa o ilustre Sr. Dr. Alvares da Costa, que soube e pode talvez satisfazer as mais exigentes, e é à expectativa dos devotos: foi todo amabilidade para com todos. Entretanto foi sensível, para maior explendor, a ausência do Sacerdote nas solenidades da egreja; falta esta que está desculpado o Sr. Juiz, que providenciou no sentido contrário, contractando para tal fim, com o Sr. Conego Teixeira, que vinha munido de uma portaria do governo bispado. Não sabemos o poderoso motivo que obstou, em caminho, bem próximo, a que o Sr. Conego Teixeira, tivesse faltado a tão sério compromisso (CANTO, 1988, p. 22). Ainda, que o referido artigo seja um testemunho baseado na curiosidade e no respeito, expressa bem a decepção dos brincantes pela falta do representante da Igreja. O jornal dispõe, ainda, de outros artigos bem mais enfáticos sobre o Marabaixo, como é o caso da edição de 25 de junho de 1898, que traz um artigo anônimo denominado “Mar-Abaixo”: Até que afinal desapareceo o infernal folguedo, a dança diabola do MarAbaixo; serà uma felicidade, uma ventura, uma medida salutar aos órgãos acústicos, se tal troamento não soar mais, senão nas profundezas da terra, nos subterrâneos onde moram monstros, capazes de supportar tamanho ribombo de estravagante musica para meneio immoral e nojento. Graças ao Divino-Espírito Santo, symbolo de nossa santa religião, que só exige a pratica das bôas acções, não ouviremos os silvos das víboras que dansam ao som medonho dos gritos dos maracajás, que ao mesmo tempo batem com as patas, produzindo barulho que faz arripiar as carnes, e os cabellos, que é sufficiente a provocar doudice á qualquer individuo. O nosso primeiro artigo á respeito deu no gôto de muita gente boa, que dá alma vida e coração pelo tal brinquedo; deu-lhe no gôto, mas negativamente, pois não comprehendera o sentido da linguagem, toda moralisada, toda doutrinal, toda civilizada. Alguém desesperou-se com a nossa licção de moral, a ponto de atirar apôdos ao nosso Director, que de coração bem formado, não negará misericórdia aos pobres de espírito. Que o mar-abaixo é indecente, é o fóco das misérias, o centro da libertinagem, a causa segura da prostituição, asseveramos [grifo nosso]. Que os paes de famílias não devem consentir as suas filhas e esposas freqüentarem tão inconveniente e assustador espetáculo dessa dansa, oriunda dos cafres, [grifo nosso] aconselhamos, para darmos bello, edeficante e moralisador exemplo de civilização, para demonstrarmos que enchergamos alguma cousa (CANTO,1998). Ainda que seja um artigo de autoria anônima, o discurso agressivo advoga a favor da Igreja, enquanto representante da moral e dos bons costumes, e condena o mar-abaixo, que, ao contrário da Igreja, representa o inferno, sendo considerado uma prática de origem diabólica. 77 Com a chegada de padre Júlio Maria Lombaerde, em 1913, as relações conflitantes entre a Igreja Católica e os representantes e praticantes do Marabaixo se intensificaram ainda mais. Padre Júlio Maria considerava como anticristãs as práticas religiosas desenvolvidas pelas comunidades negras de Macapá. Suas críticas repousavam na acusação de que os devotos se utilizavam de símbolos católicos para poder manifestar, com tranquilidade e segurança, reverência e adoração aos seus deuses espirituais. A Igreja acusava a comunidade de se apropriar dos símbolos católicos para, assim, praticar os seus cultos e rituais religiosos. A postura radical de padre Julio Maria Lombaerd em relação ao Marabaixo é também expressa através da fala de seu aluno Zacarias Leite, tendo em vista que, entre outras coisas, o padre desenvolvia algumas atividades extras à do sacerdócio, como, por exemplo, as de farmacêutico e de professor: Pe. Júlio combatia as festas do Marabaixo. Elas não passavam de batuque e bebedeira, com exploração de dinheiro, mediante a apresentação da coroa de prata do Espírito Santo, conhecido como Divino. Pe. Júlio fechava a Igreja mas o povo fincava mastros na frente da matriz. Era tradicional em Macapá deixar-se essa coroa do Divino na Igreja São José, de um dia para outro. No dia seguinte, após a benção dada pelo vigário, a coroa era recolhida pelo festeiro, entre orgias populares. Pe. Júlio não aceitava esse costume. Combatia-o publicamente. Um ano na igreja, quebrou a coroa de prata do Divino e mandou entregar aos pedaços ao festeiro do Marabaixo. O povo se revoltou e quis invadir a casa do Pe. Júlio. O intendente, Cel. Teodoro Manoel Mendes (prefeito), vendo a intenção geral, impediu que isso acontecesse, aconselhando o povo a se afastar da casa do vigário. Nós alunos maiores, estávamos na casa paroquial armados de faca, refles, cacetes, a fim de defender Pe. Júlio Maria, que permanecia sereno. Afinal tudo não passou de coisa momentânea. Diga-se de passagem que a festa da coroa de prata do Divino, cerimônia específica do Marabaixo, já era de longa data na região e não tem nada a ver com a coroa de N. Sra. Do Rosário da Igreja de S. José, onde Pe. Júlio era zeloso vigário. (CANTO, 1998. p. 26-27). Ainda que muito combatida pela Igreja, é possível ver no relato do aluno Zacarias momentos de resistência por parte dos brincantes do Marabaixo, que, mesmo ao encontrar a Igreja fechada, colocavam o mastro na frente da igreja. Para Roger Chartier, relações tensas como essa podem levar a um julgamento da cultura popular como sendo uma cultura inferior, fazendo, muitas vezes, uma desconsideração do poder político da Igreja e provocando a rejeição da sociedade pelo Marabaixo. Chartier considera que: 78 As revoltas pertencem realmente ao mundo da cultura ‘popular’ própria dos mais desprovidos por oposição à dos mais notáveis, mas como um repertório de motivos e de comportamentos que são partilhados pelo conjunto da sociedade (o que não significa que sejam pensados ou manejados por todos da mesma maneira). (CHARTIER, 1991, p. 200). Numa tentativa de manter um certo controle diante dos conflito e, assim, atrair a comunidade para eventos relacionados exclusivamente à prática religiosa da igreja, padre Julio Maria Lombaerd estrategicamente estabelece um culto a São Benedito, santo adorado pelos negros de Macapá. Porém, fecha as portas da igreja para qualquer outra manifestação da cultura religiosa popular da comunidade negra, como o Marabaixo. A manifestação de fé dos brincantes do marabaixo passa novamente pelo controle institucional, isto é, a Igreja é quem estabelece uma nova relação entre o que é profano e o que é sagrado. Fernando Canto, em seu livro de crônicas amapaenses, denominado “Adoradores do Sol”, publicado em comemoração aos 250 anos da fundação de Macapá, ao falar das rupturas que o marabaixo sofreu ao longo de sua jornada histórica, faz referência à presença das figuras da imperatriz e do mordomo nas festas de marabaixo que aconteciam no município de Mazagão Velho e, também, em Macapá. No entanto, não se pode afirmar que tais figuras representassem alguma ameaça política, ou qualquer outro tipo de ameaça à sociedade da época, mesmo que tais personagens fossem apontados pela Igreja como ameaçadores ao poder da ordem social. As festas brasileiras que aconteciam no período colonial, enquanto manifestação de fé, interação social, confraternização, celebração da vida, tudo regado com muito colorido, com dança, com música, com fogos de artifício, momentos esperados para se fugir da rotina, vão sendo arbitrariamente substituídas, ou vão se configurando, conforme Roger Chartier, enquanto locais de luta, controle e manutenção de privilégios hierárquicos, e, como consequência, verifica-se a desvalorização das tradições presentes nas misturas híbridas das quais esses eventos se constituíram. A Igreja Católica no Brasil, através do seu calendário cristão, permitiu por, pelo menos, duzentos anos, que as camadas populares se divertissem através das festas dos santos 79 padroeiros, estabelecendo uma relação entre o lazer e o trabalho, compensado através das comemorações dedicadas aos santos de devoção. No entanto, em Macapá os conflitos com a Igreja continuam com a chegada dos primeiros missionários do Pontifício Instituto das Missões Estrangeiras (PIME), em 29 de maio de 1948. Os padres proibiram a entrada dos negros na Igreja de São José e se recusaram a rezar missa por ocasião desses festejos populares. Nessa época, os padres consideravam o Marabaixo como macumba, “coisa ruim”, e seus hábitos e crenças eram combatidos e considerados como hediondos e pecaminosos (CANTO, 1998, p. 56). As relações sociais entre sacerdotes italianos e líderes do Marabaixo foram ficando cada vez mais difíceis e intoleráveis. Essa situação provocou discórdia entre os brincantes do Marabaixo. Martinho Ramos, filho de Julião, conta que: Até 1948 tudo ia muito bem. Mas depois que os padres chegaram aqui [em Macapá] entenderam que o Marabaixo era macumba, aí houve uma grande queda, mas ele [Julião] aguentou... Tanto que ele pertencia à irmandade do Sagrado Coração de Jesus e foi tirada a fita dele, então ele não pôde mais tomar parte da irmandade. Depois que muita gente caiu na realidade, que o marabaixo não tinha nada a ver com macumba, que era apenas um folclore, foi que todo mundo voltou, mas já era tarde... (Entrevista com Daniella Ramos, 15 jun. 2011).. As festas populares foram perdendo força diante do poder ideológico da Igreja, principalmente as festas das comunidades negras, como o Marabaixo. Ainda nessa época, a Igreja conseguiu um forte aliado, o governador do Território Federal do Amapá, que intercedeu junto ao líder do Marabaixo, o mestre Julião Ramos. Embora as manifestações tenham acontecido, o brilho e o vigor da festa já não eram os mesmos. Em 1980, D. Aristide Piróvano, bispo prelado de Macapá, reforça a ideologia da Igreja ao se pronunciar no jornal local, no qual comenta: “Disse que era muito amigo de Julião Ramos, mas folclore é folclore, religião é coisa séria e não podemos misturar as duas coisas. A Igreja não é contrária à diversão do povo, mas não se pode misturar água benta com o diabo.” (CANTO, 1998, p. 29). 80 Segundo Daniella Ramos, os antigos moradores da Vila Santa Engrácia, à época moradores do Bairro do Laguinho e do Bairro da Favela, sentiram-se intimidados diante do poder que a Igreja ocupava na atual sociedade amapaense: Chegou uma época em que o padre, que era na época D. Aristides Pirovano, dizem que foi um padre muito péssimo, péssimo para nossa cultura, ele pediu para que o Mestre Julião, não só ele como os outros, escolhessem entre a igreja e o marabaixo, porque não se poderia misturar água benta com o diabo, tanto que o Fernando Canto escreveu aquele livro, escreveu muito bem aquele livro que fala exatamente desse conflito entre a igreja e o marabaixo. E todos optaram pela igreja. O único que optou pelo marabaixo foi o Mestre Julião. Os outros iam para a igreja de dia e a noite dançavam marabaixo escondido dos padres. O próprio Raimundo Ladislau, que foi um grande compositor de marabaixo, não teve um grande destaque no nosso marabaixo, mas por que ele fazia tudo isso escondido, ele fazia as músicas, mas dava para o Mestre Julião apresentar e dizer que eram dele, por que ele tinha medo, tanto da igreja, da represália da igreja, quanto das autoridades, que tinham algumas músicas que mexiam com algumas pessoas, com alguns fatos que aconteceram, como a própria música “aonde tú vai rapaz”, que é a música de consagração para o marabaixo, ela fala muito bem sobre essa urbanização de Macapá, que as pessoas não ficaram satisfeitas com a retirada das famílias de lá, então na verdade ele era um grande compositor, mas ele era um tanto covarde, ele tinha medo, ele não assumia que ele era do marabaixo, ele fazia tudo escondido, tudo na calada da noite, principalmente para a igreja não saber, se não ele seria mais um que seria expulso. (Entrevista com Daniella Ramos, 14 jun. 2011).. Após a década de 1960, os conflitos entre a Igreja e o Marabaixo praticamente desapareceram. Com a construção da igreja de São Benedito,23 no Bairro do Laguinho, e a construção da igreja Jesus de Nazaré, no Bairro da Favela, os grupos de Marabaixo deixaram de realizar a festa do Divino Espírito Santo em frente à igreja de São José de Macapá, no centro da cidade. Segundo Danielle Ramos, Desde a época do meu bisavô até aqui, tinha dado uma acalmada. A Igreja já nos recebia, não do jeito que nós queríamos, mas a Igreja sempre nos recebeu, sempre nos abriu as portas, sempre levamos os santos, sempre foi celebrada a missa, aqui no Laguinho. Lá no Bairro da Favela, por conta de alguns conflitos, eles adotaram a realização da missa dentro dos barracões. O padre vai lá. Mas nós não. Nós fazemos questão de levar para a igreja, porque a gente entende que a igreja é da comunidade. (RAMOS, Danielle. Entrevista concedida em 15 de junho de 2011). 23 A igreja de São Benedito foi inaugurada no dia 02/03/1956. A igreja Jesus de Nazaré foi inaugurada no dia 07/08/1966. DIOCESE DE MACAPÁ. Disponível em: <http://www.diocesedemacapa.com.br/>. Acesso em: 09 jul. 2011. 81 A Associação Cultural Raimundo Ladislau, do Bairro do Laguinho, enfrentou uma relação de conflito com a Igreja no ano de 2008, na paróquia de São Benedito, através do Padre Geovani Pantarolo. Em entrevista realizada no dia 15 de junho de 2011, Daniella Ramos relata os fatos que iniciaram as tensões desse conflito: Quando eu fui com ele para falar sobre o santo ser levado para a igreja, ele disse que podia trazer o santo. No domingo seguinte nós levamos o santo, foi em 2008. Quando chegou lá, na hora da homilia dele, ele começou a falar tanta besteira sobre o Marabaixo. Falou que o Marabaixo não vivia na plenitude de Deus, que era festa do diabo, que pessoas se aproveitavam das crianças e dos santos, levantavam mastros para tirar dinheiro do Governo. Nós tivemos um problema com ele em 2008. Nós estávamos lá assistindo a missa. Ele já tinha vindo aqui no início da festa. Ele veio na casa da minha tia que mora ao lado da casa da minha avó, aí a minha avó falou com ele — já viu idoso quando vê um padre, Deus o livre né? E aí falou com ele... Foi receptiva com ele... E então ele falou assim: “Olhe, eu quero lhe pedir uma coisa, não quero que a senhora realize essa festa do marabaixo, essa festa não é Deus”. E a minha avó disse: “Não, seu padre, o senhor está enganado”. Só que a minha avó falou rindo, a minha avó até pensou que ele estivesse brincando. E ela disse: “Não, padre, essa festa é em louvor ao Divino e à Santíssima Trindade; essa festa o meu pai [Mestre Julião] já fazia, e o meu pai pediu para não morrer, e eu, junto com os meus filhos e netos, estamos dando continuidade; eu não posso deixar de fazer”. Mas o padre disse: “Não! Mas não pode, isso é festa de bebedeira, de gente que só quer beber”. E a minha avó, rindo e dizendo: “Não é isso não, padre”. (RAMOS, Danielle. Entrevista concedida em 15 de junho de 2011). O pronunciamento negativo sobre o Marabaixo, por parte do padre Geovane Pantarolo, causou surpresas em todos os presentes na igreja, tanto pelos que respeitavam o Marabaixo como por aqueles que comungavam com o pensamento do padre, apesar de não aprovarem tal atitude. Ao relatar o fato para o bispo da cidade, que não aprovou a atitude do padre, este prometeu a Daniella que, no próximo domingo, “o mal entendido estaria resolvido”. É possível perceber, no relato de Daniella Ramos, a influência dessas tensões na própria prática da festa: E mais! Nós não íamos para a igreja caracterizados. A gente sempre mandava fazer camisa e no dia da missa era usada essa camisa com a calça jeans. Nós não íamos caracterizados. Depois desse conflito que nós tivemos com esse padre eu achei importante nós irmos a caráter e mostrar que a gente estava ali, por conta de nós estarmos defendendo a bandeira da cultura, a bandeira do Marabaixo, a Igreja tinha que entender isso. (RAMOS, Danielle. Entrevista concedida em 15 de junho de 2011). 82 No entanto, para a surpresa do grupo, na missa seguinte o padre não foi, alegou motivos de saúde e a cerimônia foi realizada por um diácono. Segundo Daniella Ramos, essa situação foi intencional, pois que o padre teria que se retratar publicamente, e, além disso, a cerimônia que acontece sem a presença do padre não se caracteriza como missa, e, assim, interfere-se na programação dos festejos do marabaixo, que contemplam as missas em homenagens aos santos. Porém, a tensão piorou quando o diácono repetiu na cerimônia os comentários negativos que o padre tinha realizado na missa anterior. Ele falou na homilia, que, na verdade, não é homilia o que ele faz, é um comentário, tudo o que o padre Geovane tinha dito anteriormente ele repetiu, o mesmo discurso, e ainda fez pior. E nós sentados nos primeiros bancos, e ele ainda fazia referência a nós: “A gente quer saudar as pessoas do Marabaixo que estão aqui, e convidá-los para que o Marabaixo faça parte da plenitude de Deus, viva em plenitude com Deus”. E todo mundo olhando, e eu tremia de raiva. Depois que acabou as pessoas diziam: “Tu não vai lá com ele?” Eu dizia: “Não. Eu vou com o bispo, novamente”. (RAMOS, Danielle. Entrevista concedida em 15 de junho de 2011). Ainda em 2008, Daniella encaminhou uma carta ao bispo (v. Anexo I) relatando os fatos e pedindo providências; no entanto, não recebeu resposta. Com o início das festividades em 2009, os conflitos se repetiram. O padre se recusou a celebrar a missa alegando que não tinha como receber os santos na igreja, justificando que teria outra programação. Então, a Associação Raimundo Ladislau resolveu fazer, no dia da missa, uma cerimônia na casa do festeiro e, assim, cumprir o calendário festivo. No entanto, o grupo Raimundo Ladislau decidiu fazer um manifesto em frente à igreja, no domingo, antes da missa do início da noite, durante a procissão da murta. Após uma grande mobilização realizada entre os integrantes do grupo e os simpatizantes da causa, os principais meios de comunicação divulgaram a proposta durante todo o domingo e depois foram para frente da igreja fazer a cobertura da manifestação. Ainda emocionada, Daniella relata o fato: Então fizemos o manifesto. Saímos em busca da murta, tocamos e saímos para chegar na igreja antes de começar a missa. Todo mundo de murta na mão foi entrando na igreja. E canta, canta, canta... Toca, toca, toca. Teve uma hora que parou, então o pessoal disse: “Daniella, tu não tens só que cantar, tem que falar, explicar o que está acontecendo” Já tinha gente dentro da igreja, mas o padre não estava lá, era um outro padre que iria celebrar a missa. Aí peguei o microfone e comecei a falar: “Boa noite, eu queria explicar o que está acontecendo”. Então a igreja desligou o microfone, então 83 deixei o microfone em cima do altar e fiquei falando na garganta. Falei, expliquei, algumas pessoas aplaudiram, mas outras não. Falei que a igreja tinha que respeitar nossas tradições. Quando o padre chegou aqui já tinha; como ele quer acabar com uma tradição secular? O santo sempre veio para a igreja, a igreja sempre abriu as portas. E falei de alguns padres que estiveram nessa igreja e sempre cultivaram o Marabaixo, estimularam. Depois saímos, cantando na frente da igreja, com a TV Amapá filmando tudo. (RAMOS, Danielle. Entrevista concedida em 15 de junho de 2011). Figura 28 - Pronunciamento de Daniella Ramos na igreja São Benedito durante o manifesto, em 2009, após desligarem o microfone 84 Figura 29 - Manifesto do grupo Raimundo Ladislau, na igreja de São Benedito, com a murta na mão, em 2009 Figura 30 - Daniella Ramos na igreja de São Benedito, com a murta na mão, em 2009 85 Figura 31 - A procissão da murta após a manifestação na igreja São Benedito, em 2009 Diante da repercussão do evento, o bispo convidou Daniella Ramos para uma reunião na terça-feira. A reunião também foi noticiada pelas emissoras de rádio e TV, que fizeram a cobertura, ao vivo, do encontro entre o bispo e o grupo Raimundo Ladislau. O bispo prometeu que tudo seria resolvido. Então o padre realizou a missa. O santo foi novamente recebido na igreja. Mas o grupo não considerou mais seguro que o santo anoitecesse na igreja para depois ser retirado no dia seguinte, após a missa, tal como acontecia anteriormente. Percebemos, assim, que mais uma prática é transformada por conta desses conflitos. Daniella comenta que, após a manifestação, a relação da Igreja com o Marabaixo melhorou muito. O número de participantes do grupo na missa aumentou. O grupo ficou mais unido. A própria Igreja mudou seu comportamento em relação à cultura. O cartaz do Círio de Nazaré teve como tema a cultura do estado, com fotos do Marabaixo, conforme promessas que o bispo fez ao grupo. Foi muito bom!, sabe? Eles nunca pensaram que nós pudéssemos ter aquele poder de mobilização que nós tivemos naquele dia, nunca imaginavam. E se nós nos acovardássemos, não ia dar em nada, por que o bispo nunca respondeu aquela carta. Então, de novo, o bispo falou que foi um mal entendido. Eu falei: “Bispo, não foi um mal entendido, foi um bem entendido. O padre tinha ciência do que ele estava fazendo, porque ele fez no 86 ano anterior e repetiu esse ano, só que ele pensava que nós iríamos nos acomodar, como fizemos no ano anterior. Aliás, eu não me acomodei, eu esperei uma reação sua, mas, já que o senhor não nos deu resposta e nesse ano ele voltou a fazer, e fez até pior, porque ele não queria receber o santo, então a gente está aqui. Ninguém quer levar o Marabaixo para dentro da igreja, o Marabaixo tem o seu palco, o que nós queremos é que o padre receba o santo como há muito anos, há décadas, isso vem acontecendo. A igreja não é do padre, bispo, a igreja é da comunidade. E mais, o padre precisa se retratar sim, porque, agindo dessa forma, ele está aumentando o nível de preconceito e discriminação das pessoas contra nós.” (RAMOS, Danielle. Entrevista concedida em 15 de junho de 2011). Além de conquistarem o respeito e a continuidade das tradições na igreja de São Benedito, o grupo de marabaixo Raimundo Ladislau foi convidado a participar de alguns eventos da Igreja no Estado do Amapá, como a festa do Círio de Nazaré, que concentra umas das mais importantes manifestações de fé e com o maior número de devotos em toda a capital amapaense. Apesar de Daniella relatar outras participações nas festas católicas, a força política da Igreja ainda é criticada: Nos convidaram para o translado da santa, o dia que a procissão sai da catedral e vai para igreja Nossa Senhora de Fátima. Convidaram os grupos de marabaixo do bairro do Laguinho e do bairro da Favela, fizemos uma entrada na hora do ofertório, foi muito bonito, a igreja estava lotada. Foi muito bonito. E antes disso, tudo isso eu relatei para o padre, que, quando era do interesse da Igreja eles sabiam nos convidar, nos dar valor. Porque inúmeras vezes eles nos chamaram para dançar dentro da igreja de São José, no dia de São José nós dançamos duas vezes, inclusive lá no altar, e outras vezes dançamos lá no salão paroquial da igreja. E sempre que eles faziam seminário, faziam congressos, feiras, quando vinham pessoas de fora, eles nos chamavam, quer dizer, quando é do interesse deles, o marabaixo vive na plenitude de Deus, quando não era, eles discriminavam. (RAMOS, Danielle. Entrevista concedida em 15 de junho de 2011). Atualmente, o padre que está na igreja de São Benedito realiza as cerimônias vestido também com as cores dos santos, como vermelho e branco, da Santíssima Trindade, santo homenageado pelo grupo de marabaixo; joga a água benta na coroa e nas pessoas, como também acontecia em Portugal; os membros do grupo participam da missa com a realização de leituras, do canto final com as caixas do marabaixo; além disso, o padre também participa do café da manhã na casa do festeiro, que acontece logo depois da missa. Daniella relembra a primeira missa realizada na igreja de São Benedito, após a saída do padre Geovani: Na hora da homilia ele falou sobre o Marabaixo, sobre as diferenças. Falou que nós éramos diferentes, que ninguém era igual a ninguém. Nós éramos diferentes na cor, na religião, no modo de pensar, no modo de louvar a Deus. 87 O Marabaixo tem o seu modo de louvar a Deus... Ele falou umas coisas muito bonitas e bem favoráveis a nós. Enquanto que o outro falou muita besteira; ele, ao contrário, defendeu a nossa tradição. Falou sobre o nosso objetivo. (RAMOS, Danielle. Entrevista concedida em 15 de junho de 2011). Para Roger Chartier (2004, p. 30), em sua pesquisa sobre a sociedade do Antigo Regime, na França do séc. XVII a pressão eclesiástica sobre as festas tinha sido a mais contínua e a mais poderosa, juntamente com o financiamento público, que progressivamente substituiu o lugar das confrarias que era a sua organização tradicional. 88 Figura 32 - Missa do Divino Espírito Santo, com o padre vestido com as cores que simbolizam o santo 89 Figura 33 - Grupo de Marabaixo durante o canto final na igreja Figura 34 - Leitura feita por um dos membros do grupo de marabaixo durante a missa 90 CAPÍTULO 3 3.1 O GOVERNO DO ESTADO DO AMAPÁ E A FESTA DO MARABAIXO JEITO TUCUJÚ Quem nunca viu o Amazonas Nunca irá entender A vida de um povo De alma e cor brasileiras Suas conquistas ribeiras Seu ritmo novo ( CD SENZALAS) No século XVIII, a região onde hoje é o Amapá tornou-se uma área de interesse para a metrópole portuguesa. Às suas margens desembocava o rio Amazonas, porta de entrada para os sertões que escondiam as “Drogas do Sertão” — as sementes e frutos da floresta, que compunham as especiarias americanas. Além disso, a delicada situação de definição das fronteiras coloniais, com a assinatura dos tratados de Madri, em 1750, e de Santo Ildefonso, em 1777, fez com que a região ganhasse importância. No dia 04 de fevereiro de 1758, Francisco Xavier, após instalar a sua administração, inaugurou a vila com o nome de Vila de São José, homenageando o rei de Portugal, dando início ao primeiro núcleo populacional, que ocupou o largo de São Sebastião, localizado nos arredores da igreja de São José de Macapá, inaugurada no dia 06 de março de 1761. Nos primeiros anos da República, a Vila de São José pouco cresceu. Sua principal atividade econômica restringia-se à exploração da borracha e da madeira. A Vila ficou restrita ao Largo da Matriz — ex-Largo de São Sebastião, Largo de São João, Vila Santa Engrácia, Formigueiro, Avenida Siqueira Campos, Rua da Praia, Rua do Vaticano, Beco do Sambariri e Beco do Mercadinho. (ARAÚJO, p. 5). 91 3.2 A FUNDAÇAO DE MACAPÁ Província dos Tucujus ou Tucujulândia, assim denominada oficialmente por D.Joaõ V, rei de Portugal, em 1748, as áreas que “praticamente compreendido aos municipais de Macapá, Mazagão e Amapá’’. (pag. 38 Vidal). Para Santos “os portugueses, desde que iniciaram a conquista da Amazônia, em razão da maior presença de índios da nação tucujus na região compreendida entre o rio Jarí e a margem esquerda do Amazonas, desde o Parú até a foz passaram a denominá-la Terra dos Tucujus ou Tucujulândia ’’ (2006. pag. 15) . Para Vidal essa iniciativa política tinha como finalidade estabelecer um povoamento definitivo, que só veio acontecer posteriormente, por voltar de 1751. Mendonça furtado trouxe os primeiros colonos da ilha das Açores para a colonização da futura cidade de são José de Macapá, que sofreu com o povoamento grandes dificuldade, principalmente no que diz respeita ao seu saneamento. (pag. 38, Vidal ). Em 1758, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, governador do Estado do GrãoPará e do Maranhão, chegou a Macapá com incumbência de elevar o povoamento de Macapá à categoria de vila. Foi construído às margens do rio Amazonas um dos maiores fortes da América Latina. Seu tamanho e majestade ainda hoje testemunham o vasto projeto de defesa da Amazônia, desenvolvido pelo Marquês de Pombal. A Fortaleza de São José de Macapá é considerada hoje como uma das maravilhas do Brasil. No dia 04 de fevereiro de 1758, Francisco Xavier, após instalar a sua administração, inaugurou a vila com o nome de Vila de São José, homenageando o rei de Portugal, dando início ao primeiro núcleo populacional, que ocupou o largo de São Sebastião, localizado nos arredores da igreja de São José de Macapá, inaugurada no dia 06 de março de 1761. 92 Nos primeiros anos da República, a Vila de São José pouco cresceu. Sua principal atividade econômica restringia-se à exploração da borracha e da madeira. A Vila ficou restrita ao Largo da Matriz — ex-Largo de São Sebastião, Largo de São João, Vila Santa Engrácia, Formigueiro, Avenida Siqueira Campos, Rua da Praia, Rua do Vaticano, Beco do Sambariri e Beco do Mercadinho. (ARAÚJO, p. 5). 3.3 O AMAPÁ: DE 1900 À 1943 Osmar Junior “O que vai acontecer O meu povo quer saber Quem vai cuidar desse lugar Salvar os quintais desse Brasil.” (CD Movimento Costa Norte – 15 anos de música na Amazônia) No ano de 1900 o governador do Estado do Pará, José Paes Carvalho, solicita ao coronel Egídio Leão Salles, que o mesmo providenciasse um levantamento sócio-econômico e político à região do ex-contestado. O Coronel Salles percorreu os povoados de Cunani ( localizado no Município de Calçoene) e do Espírito Santo do Amapá (Hoje Município do Amapá) onde pode constatar “ a decadência econômica desses núcleos urbanos e o fato da população cunaniense ser constituída, predominantemente de franceses e descendentes, por conseguinte indiferentes a incorporação da região ao Brasil.(SANTOS, 2006, pág.54) Diante do referido quadro, considerado como uma ameaça a soberania brasileira, o governador Paes de Carvalho, determinado a mudar tal realidade, “dividiu a região em duas circunscrições administrativas:( SANTOS, 2002. pág.55) 93 1- Sede do Espírito Santo do Amapá: que contou com a administração de Egídio Salles; 2- Sede em Calçoene: que contou com a administração de Pedro Augusto Soares de Vasconcelos. Em 1901, as circunscrições administrativas foram extintas e assim foram criados os seguintes municípios: - AMAPÁ, com sede na vila do Amapá. - MONTENEGRO, com sede na vila de Calçoene. No entanto, tais medidas político-administrativas não conseguiram reverter a situação de decadência de seus limites. Em 14 de outubro de 1903, os dois municípios foram unificados e no ano seguinte, criou-se o Conselho de Intendência Municipal. Para Santos, somente em 1929, na gestão do intendente Otávio Accioly Ramos, “a cidade de Macapá desfrutou, pela primeira vez, de energia elétrica”(SANTOS, 2006, pag. 57). Com a Revolução de 30 e a ascensão de Getúlio Vargas ao governo do Brasil, as intendências municipais foram extintas. Em substituição a elas foram criadas as Prefeituras nas quais os prefeitos puderam contar com um poder político e administrativo muito mais amplos que os intendentes. O primeiro prefeito de Macapá foi o tenente do exército Jacinto Botinele, nomeado em 1930. Este passou somente dois anos no cargo. Em 1932, assumiu a prefeitura o major Eliezer Levi, que governou até 1936, sendo substituído por Francisco Alves Soares, “ que durante sua administração, instalou uma pequena usina de força de luz, com caldeiras à vapor(SANTOS, 2006, pag. 57). Em 1943, o major Eliezer Levi volta a ser nomeado até que em setembro desse ano, é criado o Território Federal do Amapá e “no ano seguinte, instalado na cidade de Macapá, a sede da administração Territórial”(SANTOS, 2002, pág, 59). 94 3.4 A CRIAÇÃO DO TERRITÓRIO FEDERAL O AMAPÁ O sol brilha forte no horizonte No fim do Brasil... E clareia nossa miscigenação Nossos totens foram derrubados Os restos de fé Nossos brilhos em outras coroas De marajás longe daqui Meus olhos negros índios se perdem Encontram os limites de teu coração Seus olhos verdes só me desprezam Mas sinto os olhares de outras nações Por quê? ( Música: Dos Quitais do Brasil Compositor: Osmar Júnior CD: Movimento Costa Norte – 15 anos de música na Amazônia) Na língua tupi, o nome Amapá significa O Lugar da Chuva. Antonio Lopes (TOPÔNIMOS TUPIS, in "Revista de Geografia e História", nº 2, São Luiz, Maranhão, 1947) diz que Amapá veio de Ama (Chuva) Paba (Lugar, estância, morada), significando, portanto, Lugar da Chuva. Esta novidade é citada também por Sarney (SARNEY, José e COSTA, Pedro, Amapá, a Terra onde o Brasil Começa, Editora do Senado Federal, 1999.). A tradição diz, no entanto, que o nome teria vindo do nheengatu, uma espécie de dialego tupi jesuítico, que significa Terra que Acaba, ou seja: ilha. O topônimo também reporta à árvore Amapá, da família das Apocináceas (Parahancornia amapá hub Ducke), muito comum no Pará e Amapá. Seu leite é usado na 95 farmacopéia regional; é um grande fortificante, servindo para levantar as forças e estimular o apetite. Seu fruto, da grossura de uma maçã, roxo-escuro, contém um soco leitoso e pegajoso na pele; a polpa é doce e saborosa. Amadurece no mês de março. A madeira é branca, aproveitável na mercenária. No início dos anos 1940, a Segunda Guerra Mundial vivia seu momento de ápice. O presidente do Brasil, Getúlio Vargas, preocupado com a proteção das fronteiras brasileiras e com o descaso ao qual se encontrava a região amazônica, assina o Decreto-Lei n. 5.812/1943, no qual cria os seguintes Territórios Federais: • Rio Branco (hoje Roraima), desmembrado do Estado do Amazonas; • Guaporé (hoje Rondônia), desmembrado dos Estados do Amazonas Mato Grosso; • Iguaçú (extinto em 1946), desmembrado dos Estados de Santa Catarina e Paraná; • Amapá, desmembrado do Estado do Pará e constituído das terras dos municípios de Macapá, Amapá e Mazagão. De acordo com o Decreto-Lei n. 5.812/1943, a capital do Amapá deveria ser a Vila do Amapá, no município do Amapá; no entanto, essa Vila se apresentava geograficamente desfavorável, devido ao seu difícil acesso e à sua localização ser distante do principal centro urbano da região, Belém do Pará, além de não apresentar as condições mínimas possíveis para a instalação do Governo em suas terras. Diante de tal situação, a cidade de Macapá passou a sediar a Capital do Território do Amapá. 96 Figura 35 - Mapa do Amapá Diante dessa transformação política, passa a existir um pensamento mais otimista em relação a possíveis melhorias na cidade via Governo Federal, e a tão sonhada autonomia política dos amapaenses em relação ao Governo Paraense se torna realidade. Em 1943, o então presidente da República, Getúlio Vargas, nomeia o Capitão Janary Gentil Nunes para o cargo de governador do Território Federal do Amapá. Após a sua posse, ocorrida em dezembro de 1943, no Rio de Janeiro, o Capitão Janary Nunes desembarca em Macapá em janeiro de 1944 e se depara com a situação social precária que se encontrava a Vila do Amapá.24 Segundo Fernando Canto, o Amapá se configurava como “uma pequena vila de 1.400 habitantes, estacionária, dependente e isolada, tanto geográfica quanto política e economicamente, do governo paraense” (1998, p. 27). 14 “Janary Nunes e sua comitiva, da qual faziam parte o advogado Raul Monteiro Valdez e o secretário-geral do Pará, Lameira Bittencour, semanas após o dia 25 de janeiro de 1944 aportaram na cidade de Macapá, núcleo urbano na época de 1.286 habitantes, que evidenciava decréscimo; sem luz elétrica, esgoto e água encanada.” (SANTOS, 2006, p. 26). 97 Desafiado por tal realidade e encorajado pelo apoio do presidente Getúlio Vargas, o capitão Janary Gentil Nunes começa sua administração com base no trinômio “sanear-educarpovoar”. Investido de cordialidade e usando um discurso de valorização do homem amazônico, o governador Janary conquista o apoio dos habitantes ao seu programa de desenvolvimento para as terras amapaenses, que contemplava, como objetivo principal, “o desenvolvimento urbano e a transformação de costumes rurais em hábitos modernos e formar o ‘amapaense brasileiro’ integrando definitivamente a região ao país” (OLIVEIRA; RODRIGUES, 2009, p. 289). Tornaram-se, então, prioridades para o novo governo a restauração dos núcleos urbanos e a construção de edifícios que atendesse aos vários serviços da Administração Pública. Decidido a transformar a aparência decadente da cidade de Macapá em capital oficial dos amapaenses, ou, mais especificamente, em Território Federal, Janary Nunes começa, então, o processo de urbanização de Macapá através do remanejamento das famílias que se encontravam na Vila de Santa Engrácia, na Praça de Cima e no Largo de São João, no centro da Vila de São José de Macapá, hoje Bairro Central, para o local conhecido como “poço da boa hora” (hoje, Bairro do Laguinho) e para a Favela (hoje, Bairro Santa Rita). Foram construídos, nesses lugares, a residência oficial do governador, o Fórum de Justiça, a Escola Barão do Rio Branco e, também, praças, que funcionam até hoje. Entre as famílias desapropriadas que moravam no centro de Macapá, próximo das margens do rio Amazonas, consideradas como descendentes de escravos, ou seja, famílias que eram, na maioria, formadas por pessoas negras, destacam-se as famílias de Julião Tomás Ramos e de Gertudes Saturnino Loureiro. No entanto, a proposta não agradou aos moradores. Somente com a intervenção de Julião Ramos e de Gertudes Loureiro (personagens importantes na manutenção do Marabaixo nos bairros do Laguinho e da Favela, respectivamente) o remanejamento pôde acontecer de forma pacífica. Para Fernando Canto: tal fato não teria acontecido pacificamente não fosse a intervenção de Julião Ramos(1876-1958) líder do marabaixo, que cooptado, conseguiu persuadir os habitantes da Vila de Santa Engrácia (centro da cidade de Macapá) a se mudarem para os lugares citados acima. (CANTO, 1998, p. 28). 98 Porém, o remanejamento das famílias negras para o Bairro do Laguinho não passou despercebido pelos brincantes do Marabaixo, podendo ser percebido nos versos do ladrão de autoria do senhor Raimundo Ladislau: Refrão: Aonde tu vais rapaz Por esses caminhos sozinhos Eu vou fazer a minha morada, Lá nos campos do Laguinho Destelhei a minha casa Com intensão de retelhar A Santa Engrácia não fica Com a minha hei de ficar Quando vim da minha casa Me perguntou como passou Rapaz eu não tenho casa Tu me dá um armador Estava na minha casa Conversando com o companheiro Não tenho pena da terra Só tenho do meu coqueiro Segundo Fernando Santos (2006, p. 32), o Mestre Julião e a Dona Gertudes, líderes representantes das comunidades negras, assim como os comerciantes, se tornaram partidários da política de Janary, atraídos pela possibilidade de usufruto de ações paternalistas. As figuras dos líderes tanto despertavam respeito e apoio pela comunidade como, também, uma certa preocupação em relação ao remanejamento das famílias, como é possível ver nos versos do Ladrão abaixo: Eu não posso lhe valer Agora nesta ocasião Vou defender a casa Do parente Julião A mudança das famílias para os novos bairros promoveu a primeira divisão na festa do Divino Espírito Santo em Macapá. Os festejos que aconteciam na frente da Igreja de São José de Macapá passaram a ser realizados nas casas dos festeiros distribuídos nos bairros Laguinho e Favela, que realizaram a construção de barracões de madeira em frente das suas residências para abrigar os participantes e o povo. 99 Na casa de Tia Biló, endereço onde é realizada a festa do Marabaixo no Laguinho, conhecida como “a casa do festeiro do grupo Raimundo Ladislau”, o barracão foi substituído por uma construção em alvenaria, ampliada em 2011 para receber maior número de pessoas durante a festa. A casa da Tia Biló fica em uma rua bastante movimentada por carros que, durante os dias em que acontece a festa, ameaçam perigo aos brincantes e aos ambulantes que se localizam por toda a extensão do terreno. Figura 36 - Reforma na casa da Tia Biló (casa do festeiro) em 2011 100 Figura 37 - Ambulantes e brincantes na frente da casa do festeiro A divisão de grupos e a mudança da festa do centro da cidade contribuíram para o afastamento da Igreja Católica nos festejos do Divino e da Santíssima Trindade. Era tradição as missas constarem no calendário da Igreja. Nessa época, no domingo do Mastro, quando a procissão com o mastro passava em frente à igreja de São José, os sinos dobravam e o padre mandava abrir a porta da igreja e todos paravam, arriavam os mastro e começavam o jogo da carioca, luta com passos parecidos com o da capoeira. Na quebra da murta, era tradição, também, passarem em procissão em frente à igreja de São José. À noite, quando chegava o período das novenas e ladainhas, todos iam ao novenário, na igreja, até completar as 18 novenas. No final, o Santo era levado para a casa e continuavam a dança do marabaixo. São bem poucos os que, ainda, no Dia do Senhor, na derrubada dos Mastros, recolhem pedaços dos mastros para fazerem chá para curar as suas doenças. Após as conclusões dos festejos os mastros eram tidos como milagrosos. 101 Figura 38 - Os brincantes do Marabaixo em frente da igreja de São José praticando a luta da carioca, em 1948 Os bairros do Laguinho e da Favela, após o remanejamento, logo foram considerados “bairros de negros”, título que carregam até os dias de hoje. Segundo Canto: em nenhuma cidade de Norte brasileiro se conhece um bairro em termos proporcionais, onde a maioria da população seja negra e onde os elementos formadores de sua comunidade sejam descendentes diretos de escravos, tão enraizados como acontece no bairro do Laguinho. (CANTO, 1998, p. 35). O nome do Bairro Laguinho se deve à presença de ressacas25 no seu entorno, que eram chamadas de “lagos”. Muitos desses lagos foram utilizados pelas lavadeiras, que lavavam roupa como forma de ganhar uma renda, e também pelas crianças, que aproveitavam para brincarem no lagos. Hoje, esses lagos não fazem mais parte da paisagem do bairro, ficaram no imaginário amapaense. Segundo Ivone Portilho (2006), a expressão “ressaca” pode estar relacionada a uma fusão de línguas: 25 São áreas que se comportam como reservatórios naturais de águas, apresentando um ecossistema rico e singular e que sofrem a influência das marés e das chuvas de forma temporária. 102 Maciel (2001) faz uma ressalva de que a denominação “ressaca”, com a idéia de área úmida, não foi observada por ela em registros como dicionários, livros de geografia ou de limonologia. Ainda de acordo com a autora, há possibilidades de que a origem da palavra seja uma herança da comunidade negra, oriunda da Guiana Francesa que, durante muitos anos, habitou os arredores do Lago do Pacoval, posto que eles falavam uma algaravia, mistura de dialeto africano e francês com algumas palavras em português. (PORTILHO, Apud MACIEL. 2006, p. 17). O bairro também era conhecido como uma área rural, sendo propício para a construção de roças — vale ressaltar que essas famílias viviam da agricultura, atividade econômica que foi perdendo espaço para o serviço público proporcionado pela instalação do Território. Hoje, podemos encontrar no bairro referências à cultura negra, como: a escola de samba “Boêmios do Laguinho”; o monumento do Poço do Mato, que representa um dos lagos do bairro; a igreja de São Benedito; e a União dos Negros Amapaenses (UNA), que se consagrou como símbolo maior no movimento de valorização, resgate e promoção da cultura negra no Estado do Amapá. O poço do mato já existia nos campos do laguinho antes de a área se transformar em bairro. Hoje, é conservado e considerado como referencial de cultura e verdadeira fonte de inspiração para poemas, músicas e lendas. Ele simboliza um patrimônio cultural dos moradores do Bairro do Laguinho. Figura 39 - Poço do mato 103 Seu principal evento é o tradicional “Encontro dos Tambores” que já se encontra na sua 15ª edição. No mês de novembro, na semana que antecede ao dia 20 (dia nacional da consciência negra), a UNA, além de promover cursos, palestras, exposições, entre outros, recebe grupos das diversas linguagens artísticas da cultura afro de todo Estado do Amapá e encerra a programação no dia 20 de novembro com uma missa em homenagem a Zumbi dos Palmares, denominada “Missa dos Quilombos”. Esses eventos já fazem parte do calendário cultural do Amapá e são extremamente apreciados pela população. A “Missa dos Quilombos” é um dos momentos mais esperados de todo o evento. É uma missa cristã onde se misturam alguns elementos de cultos das religiões africanas que se apresentam com os seus trajes típicos e com oferendas como água de cheiro e flores. A missa também conta com um repertório musical que se divide entre os cânticos da igreja e os cânticos afros religiosos, que são acompanhados por alguns instrumentos percussivos, como os atabaques, as caixas de marabaixo, entre outros utilizados em cultos africanos. Todo esse evento acontece no teatro aberto construído no Centro de Cultura Negra do Amapá, sede da UNA. Para Videira, o Bairro do Laguinho enfatiza a trajetória de uma comunidade negra que morava na Vila de Santa Engrácia, na Praça de Cima e no Lago São João, no centro da Vila de São José de Macapá, e foi desapropriada de suas terras e remanejada para os “campos do Laguinho” (2009, p. 89). Algumas figuras históricas do bairro Laguinho contribuíram para a construção da mística do bairro enquanto referencial de cultural negra e enquanto parte da cultura amapaense. Raimundo Santos de Souza, conhecido como “Rei Sacaca”, ganhou fama devido ao seu conhecimento e à manipulação de ervas medicinais para a fabricação de pomadas e garrafadas, utilizadas em tratamentos de saúde pelos moradores do bairro. Em setembro de 1999, Raimundo Santos de Souza foi homenageado através da criação do Museu Sacaca do Desenvolvimento Sustentável, com a proposta de retratar a realidade cultural do Estado, a utilização dos recursos naturais, o habitat natural de algumas comunidades existentes no Amapá, entre elas o caboclo ribeirinho e o castanheiro. 104 Figura 40 - Museu Sacaca Figura 41 - Museu Sacaca 105 O principal festeiro do marabaixo no bairro do Laguinho foi o morador Julião Ramos. Conhecido por seu talento como tocador de caixa do marabaixo e “tirador de ladrão” (aquele que compõe a cantiga do marabaixo), fez da sua casa o palco das festas mais tradicionais do marabaixo e tornou-se a maior referência do folguedo, no bairro do Laguinho. Numa tentativa de homenagear o Mestre Julião, o bairro do Laguinho passa a ser chamado de “Bairro Julião Tomaz Ramos”, através da Lei Municipal n. 06, de 1973. No entanto, tal denominação não agradou aos moradores e, em 1989, o bairro volta a se chamar novamente “Bairro do Laguinho”, através da Lei Municipal n. 339, de 1989. Todas essas manifestações de reconhecimento para com o bairro do Laguinho, através dessa “paisagem simbólica”, vão compondo historicamente o cenário do bairro como um referencial de cultura negra do Amapá, que se constrói na relação de apropriação por parte da polução e, ao mesmo tempo, configurando o bairro como referencial da cultura amapaense como um todo. Essa situação pode encontrar explicação nas reflexões de Pierre Buordier, no livro “O poder simbólico”, no qual diz que: As lutas a respeito da identidade étnica ou regional, quer dizer, a respeito de propriedades (estigmas ou emblemas) ligadas à origem através do lugar de origem e dos sinais duradoiros que lhes são correlativos, como o sotaque, são um caso particular das lutas das classificações, lutas pelo monopólio de fazer ver crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social e, por este meio, de fazer e de desfazer os grupos (BOURDIE, 2009. p. 113). A dominação simbólica presente nas lutas regionais faz surgir estigmas que põe em jogo a própria conquista da identidade. Enunciados como o de “Nação Negra” (VIDEIRA, 2009), que fazem referência ao bairro do Laguinho, ajudam na construção desses estigmas que embasam nossa percepção identitária e servem de argumento para a produção simbólica do reconhecimento da região. No entanto, observamos que esse reconhecimento, que poderia contribuir para o fortalecimento dos grupos de Marabaixo no bairro do Laguinho, ao contrário, contribuiu para as divisões e distinções dos grupos que tinham como referencial o laço familiar. E, em contrapartida, acontece uma valorização econômica do bairro enquanto local de referencia 106 cultural, que irá implicar na supervalorização dos terrenos e em uma nova sociedade, fruto da própria dinâmica do local. Aqui, a festa cede espaço para o espetáculo em lugar da confraternização, da socialização, para fazer surgir um novo indivíduo, herdeiro das ideologias do Estado, sufocado pelas razões econômicas. O Marabaixo, enquanto fenômeno social e cultural, conscientemente ou não, aprovando-se ou não, depara-se num campo de forças e de relações que, cada vez mais, embaçam muitos dos padrões e tradições do passado. Os sistemas classificatórios a que pertence e que delimitam cada cultura, os quais definem os limites entre a semelhança e a diferença, entre o sagrado e o profano, vão gradativamente impondo novos valores, como é possível perceber nas observações de Véronique Boyer em seu trabalho sobre “Fronteiras da nação: religião, política e ancestralidade no Município de Mazagão Velho – AP”, onde aborda o Marabaixo enquanto manifestação cultural da região: Todavia, se o Mazagão Velho sempre se orgulhou do seu passado português, a sua consciência negra é recente, datando do fim dos anos 1990: “Antes, os velhos não falavam em tradição. Antes era o dia-a-dia.Ninguém se preocupava em cantar a história do povo negro”. O slogan expresso sobre algumas camisetas, proclamando que o “marabaixo não é rama, é raiz”, confirma que, durante muito tempo, a dança apareceu como uma manifestação secundária, uma simples lembrança que escravos vieram da África para Amazônia. O material colhido sugere que a representação negra do Mazagão Velho atual deu-se através de um processo duplo: a construção da indissociabilidade do marabaixo e da festa do Divino e da inversão da ordem de importância entre ambos. Com efeito, até nos anos 30 (i.e., bem depois do fim das epidemias, quando os portugueses teriam ido embora),existia em maio, uma comemoração dita, “dos brancos”, sem a dança. Com seu desparecimento só continuou a festa dos “morenos”, ou dos “pardos”, em agosto, no qual o marabaixo acompanha a celebração do Espírito Santo. Após um período de desafeição nos 1950-1960, a festa é reativada localmente por um grupo de senhoras. Dizem os habitantes que é nesse momento que gengibirra faz sua aparição, ninguém sabendo mais preparar o aluá de milho verde. Nos anos 1990, a dança, e não a festa do Divino, recebeu um novo impulso quando alguns integrantes da nova geração mostrar-se-iam preocupados com a “falta de interesse dos velhos em transmitir as tradições”. Essa mudança na liderança — dos velhos para os jovens — trouxe repercussões para o marabaixo: entre outras, as crianças obtiveram o direito de participar, a roupa ficou “padronizada” e novos passos (geralmente do carimbó, mais animado) foram incorporados. O fortalecimento da identificação da genealogia negra ocorreu nessa época, quando um produtor de uma banda da capital incentivou o grupo a gravar um CD, o que será feito em 1999. Abriram-se, a partir daí, possibilidades de mostrar o marabaixo paralelamente às outras festas católicas no Mazagão 107 Velho, bem como em espetáculos organizados em Macapá no espaço concedido pelo governo Capiberibe à União dos Negros do Amapa-UNA. (BOYER, p. 8-9). Ainda que o estudo Véronique Boyer aconteça no município de Mazagão Velho – AP, é possível perceber, além das fronteiras do bairro do Laguinho, notas consonantes do contexto enunciativo do discurso político que transforma identidade social em bem cultural, e, também, é possível observar que o Marabaixo é construído através da linguagem e da representação cultural. A tradição do Marabaixo vai sendo socialmente construída através dos jogos da linguagem e dos sistemas de classificação nos quais estão inseridos, desconsiderando o contexto natural e histórico do lugar, pelas apropriações discursivas que configuram o seu reconhecimento. A escolha do Bairro do Laguinho como palco para tal pesquisa se justifica pela importância histórica e pela referência local, dentro do perímetro urbano da cidade de Macapá, onde ainda hoje acontece a festa. Para Michel de Certeau (1995): Não explicamos uma obra quando exumamos os códigos aos quais, sem que o saiba, ela obedece. Trata-se, nesse caso, somente das estruturas de onde ela emerge, exprimindo-as ainda. Mas ela existe pelo interstício ou pela margem que abre, sem deixar de estar na dependência de leis sociais, psicológicas, lingüísticas. Ela insinua um acréscimo, um excesso e, portanto, também uma fratura nos sistemas dos quais recebe sua sustentação e suas condições de possibilidades. (p. 244). Toda a dinâmica espacial de uma cidade está sujeita à intervenção pública, que, no geral, favorece certos segmentos sociais, interfere na vida do cidadão, no seu cotidiano, no seu lugar, “classifica e exclui” (CHARTIER, p. 19). Esse novo espaço, esse outro lugar, será o novo palco das festas, que se remodelam diante da sua nova realidade espacial. De acordo com a Prefeitura Municipal de Macapá (PMM), o bairro do Laguinho está posicionado no entorno da área central tendo suas principais ruas: General Rondon, São José, Eliezer Levy, como vias para os demais bairros que compõem a zona norte-sul de Macapá. A Festa do Marabaixo, realizada atualmente com o nome “Ciclo do Marabaixo”, apresenta-se nos documentos histórico como sendo a Festa do Divino Espírito Santo, como é possível ver nas palavras do artigo do Jornal Pinsônia, citado no primeiro capítulo. Outro documento que faz referência aos festejos do Divino é uma Portaria da Prefeitura Municipal, 108 no qual denomina uma “Junta Executiva de Organizações dos Festejos Tradicionais da Santíssima Trindade e do Divino Espírito Santo”, do ano de 1958. Figura 42 – Portaria Municipal que designa uma comissão responsável pela organização da festa do Marabaixo. FONTE: Arquivo da Diocese de Macapá Segundo Daniella Ramos, a origem do nome de “Ciclo do Marabaixo” surgiu através de uma denominação da Igreja Católica para a grande quantidade de festas que eram realizadas nesse período. Independentemente do santo homenageado, muitas localidades realizavam festas com a dança do marabaixo em seus festejos. Quando o marabaixo saiu do Mazagão e chegou a Macapá, essas pessoas sempre foram muito devotas, muito religiosas, tanto que todas elas eram ligadas a um grupo da Irmandade do Sagrado Coração de Jesus da Igreja Católica, e, aí, essa festa do Ciclo do Marabaixo acontecia de acordo com calendário litúrgico da igreja, que se iniciava sempre na semana santa após a quaresma. E se deu esse nome de ciclo por conta de serem várias festas naquele período, era um ciclo de festa um ciclo de comemoração. (RAMOS, Danielle. Entrevista concedida em 15 de junho de 2011). 109 A origem do termo Marabaixo está relacionada a várias interpretações. A mais popular delas mostra que os negros escravos cantavam nas embarcações “mar abaixo, mar acima”, entoando ao som de batuque — daí surgiu então a expressão “marabaixo”. Para Fernando Canto, o termo “marabaixo é provavelmente uma “corruptela de marabuto ou marabut, do árabe morabit — sacerdote dos malês —, por sua vez negros de influência mulçumana, como os que vieram para Mazagão, servindo os brancos, originários da África Ocidental”. (CANTO, 1998, p. 18). A década de 1980 foi marcada por um momento de grandes dificuldades para as realizações das festas do Marabaixo. A morte dos moradores mais idosos da antiga Vila de Santa Engrácia, como também a morte do Mestre Julião Ramos, no final dos anos 1950, e os conflitos entre a Igreja e os festejos do marabaixo podem ter contribuído para a “amenização” da festa do Marabaixo em Macapá, como exposto na matéria “Marabaixo: expressão maior do nosso folclore” do jornal do Amapá: Figura 43 - Trecho da matéria sobre o “Marabaixo: expressão maior do nosso folclore” FONTE: Arquivo da Diocese de Macapá 110 Outras matérias também fazem referência à difícil situação na qual se encontrava a Festa do Marabaixo. Além de chamarem a atenção para tal realidade, sugerem algumas iniciativas para a sua preservação, como na matéria “Folclore por mar abaixo”, de Hélio Penafort, que sugere uma contribuição financeira para os promotores da festa bem como o registro desse evento. Figura 44 - Trecho da matéria sobre o “O folclore por mar a baixo” FONTE: Arquivo da Diocese de Macapá, Jornal do Povo, 28-29 jan. 1982 111 Outro registro que expressa bem a preocupação da sociedade com relação à preservação da Festa do Marabaixo, enquanto referencial da cultura amapaense, é a poesia “Apelo” da professora de Música Terezinha Sampaio (1946-1998), do Conservatório Amapaense, hoje Escola Estadual de Música Walkíria Lima, publicada no folder de inauguração da Sala de Leitura Terezinha Sampaio, em 2006, pela Escola de Música Walkíria Lima: APELO Terezinha Sampaio Não deixem o marabaixo Morrer! Por ele somos conhecidos Ele é a nossa fama Não nasci aqui Mas há muitos, bem jovem, Aqui vim morar. Aqui aprendi a ser e a viver, A adorar este povo, Aprendi a esta terra somar Macapá é berço dos meus filhos Macapá é meu lar No marabaixo temos nossas raízes E a raiz é que sustenta nosso piquiá! Marabaixo nos fala de Mãe Luzia, De Congo, de Julião, Gente de Luta, Gente de fibra de aço Com têmpora forjada Ao sol do equador, Não deixem o marabaixo Morrer!... Ele nos ensinou a sentir devoção, A ser muitos em um só Marabaixo nos deu fama, Enriqueceu nossa vida, Faz parte da nossa história... (Macapá, 20 de setembro de 1982) Em 1981, o Jornal do Amapá, na matéria “O Marabaixo em 1981”, considera que as festas do Marabaixo enfrentavam algumas dificuldades decorrentes da ausência da antiga estrutura social que existia em seus primórdios: A formação da sociedade se dividia em sócios, mordomos e novenários, e quando chegava a época da festa no Domingo de Páscoa, que é o primeiro marabaixo do ano, se existissem três festeiros, em cada havia um marabaixo 112 e a festa se desenvolvia ao mesmo tempo nas três casas. A queda da sociedade destruiu a base da festa, ficando todos desanimados, perdendo desta forma aquele incentivo inicial. (“O marabaixo em 1981”, Jornal do Amapá em 06 e 07/01/1982, arquivo da diocese de Macapá) Ainda com todas as dificuldades, o marabaixo sobrevive à década de 1980. No dia 07 de agosto de 1988 é fundada a Associação Cultural Raimundo Ladislau “O Marabaixo do Laguinho”, pelos parentes do mestre Julião. Essa iniciativa contribuiu para o surgimento de outras associações folclóricas sobre o marabaixo em todo o Estado do Amapá. As eleições de outubro do ano de 1990 representaram um marco divisor na história política do Estado do Amapá. O povo, dessa vez, foi às urnas para eleger o primeiro governador do Estado, o comandante Anníbal Barcellos, que, ao conquistar o maior número de votos, se tornou o primeiro governador do Estado do Amapá eleito pelo povo. As mudanças político-administrativas das terras amapaenses, ou seja, a passagem de exTerritório Federal do Amapá para Estado do Amapá, legitimada pelas eleições de 1990, trouxeram imensas transformações políticas, econômicas, político-administrativas. A Festa do Marabaixo, enquanto manifestação folclórica praticada na cidade de Macapá, bem como em outras comunidades, vai sendo considerada politicamente como um referencial da cultura genuinamente amapaense. A produção legislativa estadual contribui para essa denominação. A Lei Estadual n. 845, de 13 de julho de 2004, estabelece a criação do “Ciclo do Marabaixo e do Batuque” no estado do Amapá e determina que a realização do Ciclo terá início no sábado da Aleluia (Semana Santa do calendário cristão) e se estenderá até a primeira quinzena do mês de junho, período dedicado ao Divino Espírito Santo e à Santíssima Trindade. A denominação legal do nome do evento, “Ciclo do Marabaixo e batuque”, é adotada hoje pelos vários grupos de marabaixo no Estado. Referente ao Projeto de Lei nº 0020/04-AL. LEI Nº 0845, DE 13 DE JULHO DE 2004. 113 Publicada no Diário Oficial do Estado nº 3319, de 15/07/2004. Autor: Deputado Alexandre Barcellos. Cria e insere no calendário cultural o CICLO DO MARABAIXO E BATUQUE no âmbito do Estado do Amapá e dá outras providências. O GOVERNADOR DO ESTADO DO AMAPÁ, Faço saber que a Assembléia Legislativa do Estado do Amapá aprovou e eu, nos termos do art. 107 da Constituição Estadual, sanciono a seguinte Lei: Art. 1º - Fica criado o CICLO DO MARABAIXO E BATUQUE no Estado do Amapá. Art. 2º - O CICLO terá inicio no sábado de aleluia (semana santa do calendário cristão) e se estenderá até a primeira quinzena do mês de junho, período dedicado ao Divino Espírito Santo e Santíssima Trindade. Art. 3ª - O CICLO DO MARABAIXO E BATUQUE se estende a todas as Comunidades, independente do período em que cada uma realiza as festividades em louvor ao Santo Padroeiro. Art. 4º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Macapá-AP, 13 de julho de 2004. ANTONIO WALDEZ GÓES DA SILVA Governador A Lei Estadual n. 1.263, de 02 de outubro de 2008, estabelece que a Festa do Marabaixo é patrimônio histórico e cultural do Estado do Amapá. Para a Associação Raimundo Ladislau, essas iniciativas representam um conquista importante para os grupos de marabaixo atualmente e, também, ajudam na valorização da memória dos que lutaram para realização da festa no Estado. Referente ao Projeto de Lei n. º 0077/08-AL LEI Nº. 1.263, DE 02 DE OUTUBRO DE 2008. Publicada no Diário Oficial do Estado nº 4348, de 02.10.08 Autor: Deputado ROBERTO GÓES 114 Considera bem histórico e cultural do Estado do Amapá, para fins de tombamento de natureza imaterial, a manifestação folclórica do Marabaixo, que ocorre no Estado do Amapá. O GOVERNADOR DO ESTADO DO AMAPÁ, Faço saber que a Assembléia Legislativa do Estado do Amapá aprovou e eu, nos termos do art. 107 da Constituição Estadual, sanciono a seguinte Lei: Art. 1º- Fica considerado patrimônio histórico e cultural do Estado do Amapá, para fins de tombamento de natureza imaterial, a manifestação folclórica do Marabaixo, que ocorre no Estado do Amapá. Art. 2º - Em razão do presente tombamento, o Poder Público promoverá e protegerá as características atuais da manifestação folclórica do Marabaixo nos termos do artigo 292 da Constituição do Estado do Amapá. Art. 3º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Macapá - AP, 08 de setembro de 2008. ANTÔNIO WALDEZ GÓES DA SILVA Governador No dia 16 de junho de 2011, a Assembleia Legislativa do Estado do Amapá realizou uma Audiência Pública para discutir a valorização, o respeito e a manutenção da cultura no Estado. A programação contou com a presença de representantes da cultura, como o secretário de Cultura Estadual, o secretário de Cultura do Município, senadores, deputados, entre outros. Na programação do evento, algumas pessoas ligadas ao Marabaixo, foram homenageadas, com a entrega de placas comemorativas ao Dia Estadual do Marabaixo. Além das homenagens, os grupos de Marabaixo fizeram uma apresentação no final, com todos dançando e cantando. O Dia Estadual do Marabaixo faz parte das iniciativas dos grupos e associações folclóricas relacionadas ao Marabaixo no estado, que, no ano de 2010, realizaram um cortejo pelos principais órgãos públicos, pedindo respeito, valorização e maior atenção ao evento cultural mais importante do estado. Este fato que se repetiu em 2011, mas como parte da programação do evento. As instituições públicas visitadas foram: Palácio do Governo, Ministério Público, Tribunal de Justiça, Prefeitura de Macapá, Ministério Público Federal, Câmera dos Vereadores e Secretaria de Educação. A Lei n. 1.521, de 29 de janeiro de 2010, estabelece o dia 16 de junho como Dia Estadual do Marabaixo Amapaense. 115 LEI N. 1.521 DE 29 DE JANEIRO DE 2010. Publicada no Diário Oficial do Estado n. 4.869, de 12/11/2010 Autor: Deputado Dalto Martins Declara o dia 16 de Junho, Dia Estadual do Marabaixo Amapaense, como data comemorativa no âmbito do Estado do Amapá e dá outras providências. O GOVERNADOR DO ESTADO DO AMAPÁ, Faço saber que a Assembleia Legislativa do Estado do Amapá aprovou e eu, nos termos do Art. 107 da Constituição Estadual, sanciono a seguinte Lei: Art. 1° - Fica declarada como data comemorativa, no âmbito do Estado do Amapá, o dia 6 de Junho, como “Dia Estadual do Marabaixo Amapaense". Art. 2° - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Macapá - AP, 13 de novembro de 2010. PEDRO PAULO DIAS DE CARVALHO Governador Figura 45 - Assembleia Pública sobre o Dia Estadual do Marabaixo, na Assembleia Legislativa do Estado 116 Figura 46 - Os homenageados no Dia Estadual do Marabaixo, na Assembleia Legislativa. O conjunto dessas ações do Estado pelo reconhecimento do Marabaixo enquanto patrimônio Cultural e Histórico contribui cada vez mais para a identificação do evento enquanto identidade cultural do Estado do Amapá. No 6º Salão de Turismo, realizado pelo Ministério do Turismo no período de 13 a 17 de julho de 2011, no Parque de Exposições Anhembi, em São Paulo, o Governo contou com a participação de representantes de vários grupos do Estado, que participaram do evento formando um só grupo. Durante a programação, o grupo cantou e dançou músicas do marabaixo no palco destinado para as apresentações. No estande do Estado, foram distribuídas ao público pequenas taças em argila com a gengibirra, bebida tradicional do Marabaixo. 117 Figura 47 - Integrantes do grupo de Marabaixo e funcionários do Governo do Estado do Amapá, no 6º Salão de Turismo, em São Paulo Figura 48 - Apresentação do Grupo de Marabaixo no 6º Salão de Turismo, em São Paulo 118 CONCLUSÃO A festa do Divino Espírito Santo é uma manifestação popular de origem portuguesa. No Brasil, é possível encontrar essa manifestação em quase todo o território brasileiro. A presença de elementos da festa portuguesa vai se incorporando às novas realidades locais e se configurando de acordo com as particularidades de cada região. Em Macapá, a Festa do Divino Espírito Santo acontece há mais de um século. Hoje, é denominada de “Ciclo do Marabaixo” e representa uma das principais tradições culturais do Estado. Sua origem está vinculada à herança dos povos africanos. Foi observado que poucos sabem da relação entre a Festa do Marabaixo e a Festa do Divino em Portugal. No entanto, esse hibridismo cultural conquistou o reconhecimento de que o Ciclo do Marabaixo simboliza a cultura afro-amapaense. Não foi encontrada qualquer referência às ideias do abade Joaquim de Fiore na simbologia da festa. O que observamos foi que os herdeiros da família Ramos, ainda não sabem a verdadeira origem da festa. É um evento que vem sobrevivendo aos conflitos com a Igreja, aos conflitos entre os próprios grupos, e à participação do Estado no processo de reconhecimento enquanto patrimônio cultural. Além do Ciclo do Marabaixo ser considerado a principal identidade cultural do Estado, empresta ao Bairro do Laguinho, local da pesquisa, o reconhecimento de que é um espaço urbano enraizado de um passado histórico e cultural da cidade. Este fato valorizou a região e a transformou em referencial da cultura afro-amapaense, servindo também de palco para outras manifestações culturais de grande representatividade para a cultura amapaense, como a Festa dos Tambores, que acontece no mês de novembro. O significado da Festa representa uma herança familiar dos negros escravos que vieram para o Amapá no período da colonização. A fé dos devotos já não representa a sua principal característica. É considerada como uma grande “alforria cultural”, onde os antepassados que sofreram com a escravidão são lembrados, o racismo é combatido e o direito à cultura é uma das causas defendida pelos grupos de Marabaixo. Embora tenha enfrentado a discriminação da Igreja e, por isso, vivenciado alguns conflitos, a Igreja hoje respeita as tradições e participa da programação do Ciclo do Marabaixo. As manifestações de protestos realizadas pelos grupos de Marabaixo, com a 119 participação da imprensa, contribuíram para combater as lutas contra a discriminação do evento empreendidas pela Igreja. O Ciclo do Marabaixo é uma festa plural, que nos permite uma pluralidade de leituras, imbricadas nos seus múltiplos elementos, tais como: os ladrões de marabaixo, o cortejo, as ladainhas, a culinária, e muitos outros que a fazem ser um grande fenômeno cultural, como a sua própria sobrevivência. A sua história acompanha o crescimento urbano da cidade, que interfere e transforma alguns dos rituais antigos. As transformações que a cidade sofreu influenciaram nas inovações que a Festa adotou para poder se realizar. O que é chamado de “tradicional”, ou aquilo que permaneceu da festa antiga, é considerado como a parte da programação que precisa ser cumprida. O aparecimento das associações culturais voltadas para realização da festa do Marabaixo, em substituição aos festeiros devotos que eram os responsáveis pela realização da festa, estabelece uma nova relação entre o Estado e os brincantes do Marabaixo, onde cada um se apropria de seus bens simbólicos para conquistar seu espaço. Entre o que permanece da estrutura da festa que veio de Portugal e as novas práticas adotadas, que representam as inovações da festa — antes “Festa do Divino Espírito Santo”, hoje “Ciclo do Marabaixo” —, o evento vai se configurando como a principal manifestação cultural do Estado do Amapá. Nesse contexto, esta pesquisa procura ser uma contribuição para diminuir a falta de informação entre aquilo que permanece da estrutura da festa do Divino e aquilo que se inovou, ou seja, as novas práticas, que vão configurando a nova realidade da festa denominada “Ciclo do Marabaixo”. 120 Encerramento do Ciclo do Marabaixo 2011 “Já são meia noite em ponto. Neste momento vamos dar início ao encerramento do Ciclo do Marabaixo de 2011. Em nome dos festeiros — Joaquim Ramos (Munjoca), Joana Leite, Joseane Ramos, Paulian Ramos e Silvana Ramos —, que foram incansáveis em se empenhar para garantir a realização deste valioso evento; em nome da Matriarca do Marabaixo do Laguinho, a Tia Biló, que todos os anos abre as portas da sua casa para receber a todos vocês; e em nome da Associação Cultural Raimundo Ladislau ‘O Marabaixo do Laguinho’, quero agradecer a todos os colaboradores, patrocinadores e apoiadores, que direta ou indiretamente contribuíram para o sucesso desta tradicional festa cultural realizada aqui no Bairro do Laguinho. Estamos há quase três meses pontualmente nos encontrando aqui no Centro Cultural Tia Biló para a efetiva realização do Ciclo do Marabaixo. Não pensem vocês que é fácil a realização de um evento cultural como este; esta é uma festa muito extensa, por isso muito dispendiosa e onerosa: somente com esforço e compromisso de todos os componentes do Grupo Raimundo Ladislau é que conseguimos garantir a realização do Ciclo. Por isso eu quero aqui agradecer a todos os colaboradores do Grupo Raimundo Ladislau, da criança ao idoso, dos que fazem a limpeza da casa, dos que preparam o caldo, a gengibirra, dos que ornamentam o espaço, de todos que deixam seus afazeres em casa pra virem pra cá preparar com todo carinho este local para receber muito bem a todos vocês, que prestigiam esta festa secular e uma das mais tradicionais do Estado do Amapá, o nosso muito obrigado a todos que passaram por aqui nesses quase três meses de festa, aos estudantes, universitários, professores, crianças, adultos, enfim, obrigada a todos que reconhecem o verdadeiro valor histórico cultural que o Ciclo do Marabaixo representa a todos nós amapaenses. Chegar ao fim de um evento como este representa pra todos nós uma grande vitória, porque não é fácil, infelizmente, esse tipo de evento não atrai muito o interesse dos nossos políticos e governantes, por isso não há um investimento à altura para a realização do evento, todos os anos temos que ficar correndo de um lado para outro com o pires na mão, tiramos do próprio bolso, nos endividamos, tudo isso para garantirmos a efetiva realização das Homenagens ao Divino Espírito Santo e a Santíssima Trindade no Ciclo do Marabaixo do Laguinho, e são estes santos que nos dão muita força e muita coragem para não desistirmos perante as dificuldades. Temos uma árdua missão, a de não deixar o nosso Marabaixo morrer, temos a missão de perpetuar a nossa Cultura tradicional do Amapá e fazer com que a luta de Mestre Julião, Raimundo Ladislau, Bruno, Martinho Ramos, Joaquim Ramos, Paulino, Felícia, Mestre Pavão e muitos outros não tenha sido em vão. VIVA O MARABAIXO! VIVA O DIVINO ESPÍRITO SANTO E A SANTÍSSIMA TRINDADE! VIVA O LAGUINHO!” (Discurso de Daniella Ramos, presidente da Associação Raimundo Ladislau, em 26 de junho de 2011) Em seguida todos se abraçam e formam, abraçados, uma grande roda! 121 Coam Coam me convidou Pra ir tomar um café A chaleira tá no fogo Coam Café do Baturité E eu adeus Coam Já me vou Coam Saudades Coam de amor Vou me embora Adeus até outro dia Eu agora me despeço Coam Com prazer e alegria Eu vou embora (domínio público) Eu vou embora, vou embora Levo toda a minha gente Vou embora pro Amapá Aonde Deus quer bem a gente Eu vou embora, vou embora Segunda- feira de aurora Quem não me conhece chora Que dirá quem me namora Eu vou embora, vou embora Na quarta- feira que vem Quem não me conhece chora Que dirá quem me quer bem 122 REFERÊNCIAS AMARAL, Rita. Festa à brasileira: sentidos do festejar no país que “não é sério”. São Paulo, 2005. Dissertação (Mestrado em Antropologia). 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