Órgão / Unidade: Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ) / Seção de Desenvolvimento de Sistemas (SEDSIS) E-mail: [email protected], [email protected], [email protected] Nome do Trabalho: Metodologia de Gestão à Vista Acessível para Deficiente Visual Nome dos Responsáveis: Sonia Maria Moreira (Analista Judiciária / Chefe de Seção), Avelino Ferreira Gomes Filho (Analista Judiciário / Assistente de Chefia), Carlos Willians Pires da Cunha (Técnico Judiciário). Delimitação da Ação: Tecnologia da Informação / Desenvolvimento de Sistemas Meta e Objetivo: Integrar um deficiente visual à equipe de desenvolvedores de software de modo que participe ativamente de todas as etapas de construção de sistemas. Introdução No mundo inteiro, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) há 40 milhões de pessoas cegas [6], desse total 506 mil são brasileiras e quase 300 mil estão em idade laborativa [5]. Esse número é superior à população de algumas cidades brasileiras, porém, pessoas com essa deficiência sofrem dificuldades para inserção social. No geral as escolas não são adaptadas, há grande dificuldade para utilização de espaços e transporte público [3], poucas políticas públicas e pouco acesso à tecnologia [2]. Além disso, segundo Goertz e outros [4], é comum que os deficientes visuais sejam empregados em tarefas menores do que aquelas compatíveis com sua educação e capacidade. “Intolerância leva as pessoas a achar que os cegos sempre serão menos eficientes do que seus colegas com visão. Nessas circunstâncias, um cego tem que ter ‘sorte’ (não o direito) de achar um empregador que decida que ele terá uma chance” [11] Esse trabalho tem como intuito apresentar como foi possível quebrar algumas barreiras e trazer um programador totalmente cego para um time de desenvolvedores de software utilizando os Métodos Ágeis. Métodos Ágeis Os métodos ágeis nasceram com o Manifesto Ágil no ano de 2001, quando renomados desenvolvedores de softwares concluíram que estavam descobrindo maneiras melhores de desenvolver software fazendo eles mesmos e ajudando outros a fazê-lo. Através deste trabalho, passaram a valorizar: Indivíduos e interação entre eles, mais que processos e ferramentas; Software em funcionamento, mais que documentação abrangente; Colaboração com o cliente mais que negociação de contratos; Responder a mudanças mais que seguir um plano [1]. Foram definidos também os doze “princípios ágeis” para nortear a criação de metodologias alinhadas ao novo paradigma que estava sendo proposto [8]. A ideia por trás desse manifesto é a descoberta dos profissionais desenvolvedores de software no sentido de que o segredo do sucesso em suas atividades é sair do foco das tecnologias e dar mais valor ao aspecto humano. Essa estratégia deu bons resultados rapidamente, pois afinal softwares são desenvolvidos por pessoas, para serem usados na maioria das vezes também por pessoas, então, passar a valorizar mais as pessoas e suas interações fez toda a diferença. A partir daí muitas metodologias baseadas no conceito ágil foram sendo criadas, adaptadas e aprimoradas, sendo as mais conhecidas o XP (Extreme Programming), SCRUM, Lean e Kanban. Hoje, as práticas ágeis são aplicadas com sucesso na gestão de projetos em geral, não somente no desenvolvimento de softwares, sendo reconhecidas por entidades renomadas internacionalmente, como o Project Management Institute PMI que lançou em 2011 a certificação Agile Certified Practitioner (ACP) [7], a SCRUM Alliance principal entidade de difusão e fomento ao uso do SCRUM [9]. Contextualização A estratégia de buscar mais eficiência, transparência e automação dos órgãos do Poder Judiciário no Brasil, coordenada pelo CNJ mais fortemente a partir de 2008, gerou grande demanda de soluções de TI, sistemas e ferramentas automatizadas em todos os tribunais do país. No TRE-RJ, não foi diferente, as demandas para a Seção de Desenvolvimento de Sistemas (SEDSIS) cresceram em um número muito maior do que a equipe podia atender. Não tínhamos uma metodologia de gerenciamento de projetos e de desenvolvimento de software adequada para a realidade que se descortinava na SEDSIS. Com frequência um trabalho era interrompido porque chegava outro “mais urgente”, e isso ocorria mais vezes devido às mudanças na alta administração. Quando os gestores mudavam, mudava o foco estratégico do Tribunal e com isso as prioridades de criação/implantação das soluções de TI. O resultado desse cenário era: projetos inacabados, usuários insatisfeitos, dificuldade da chefia em definir prazos e solicitar priorização aos superiores, equipe desmotivada e sob estresse constante. Com o objetivo de organizar esse cenário caótico, gerenciar adequadamente os projetos, melhorar a qualidade do trabalho, priorizar as iniciativas e dar respostas gerenciais para o Tribunal, em 2010 iniciamos na SEDSIS a adoção do SCRUM como metodologia para desenvolvimento de softwares. Fizemos treinamentos, leitura de material didático e seminários internos para compartilhar conhecimentos, identificar os papéis e criar os artefatos estabelecidos pelo SCRUM. As práticas ágeis requerem grande mudança de paradigma e esse é um dos grandes desafios das pessoas: mudar a forma de ver o mundo, mudar sua programação interna para lidar com as mesmas coisas de um modo novo. Todos sabemos que mudar um hábito requer determinação e disciplina; e quanto mais antigo for o hábito maior é o desafio. O SCRUM possui três pilares que são Transparência, Inspeção e Adaptação. Especificamente, a Transparência diz que devemos garantir “que aspectos do processo que afetam o resultado devem ser visíveis para aqueles que gerenciam os resultados. Esses aspectos não apenas devem ser transparentes, mas também o que está sendo visto deve ser conhecido.” [8]. Isso implicava em um desafio a mais porque na equipe da SEDSIS temos um desenvolvedor que é cego. Um dos principais artefatos do SCRUM para fornecer transparência ao processo é o Task Board (do inglês “Quadro de Tarefas”), onde todo o trabalho que está sendo desenvolvido é exibido e atualizado diariamente em um quadro que fica visível para todos. O Task Board é dividido em colunas identificadas pelos títulos “A FAZER”, “FAZENDO” e “FEITO”, de modo que as atividades são colocadas nessas colunas de acordo com a situação de cada uma (Figura 1). O trabalho de um time SCRUM é organizado em blocos chamados User Stories (do inglês “Histórias do Usuário”), esses blocos são quebrados em tarefas com duração estimada de no máximo um dia. A descrição de cada tarefa é escrita em um post it e colada no Task Board inicialmente na coluna A FAZER. Diariamente a equipe do projeto se reúne diante do Task Board, num encontro com duração máxima de 15 minutos, onde todos devem ficar em pé. Nesse encontro, cada participante fala para os demais aquilo que fez no dia anterior, escolhe o que irá fazer no dia atual e reporta alguma dificuldade encontrada, se houver. Nessa rápida reunião o quadro Task Board é atualizado da seguinte forma: o post it com a descrição da tarefa que foi concluída é movido pelo executor para a coluna FEITO, em seguida pega um novo post it da coluna A FAZER e coloca na coluna FAZENDO, junto com um avatar que o identifica como executor da tarefa. Assim sucessivamente, cada participante repete o procedimento indicando o que fez no dia anterior e o que fará no dia atual. Figura 1 Task Board apresentando o andamento dos projetos da unidade O resultado disso é que tem-se um quadro colorido, dinâmico com informações disponíveis para quem quiser ver sobre o andamento do projeto, ou seja, constantemente tarefas são movidas das colunas “a fazer”, para “fazendo” e depois para “feito”. Esse processo ganhou o nome de “gestão à vista”, porque as informações necessárias para acompanhar o projeto, gerir a equipe e tomar decisões estão disponíveis e visíveis para todos: clientes, usuários, chefes, colegas, equipe… bem para quase todos… nosso colega Carlos Willians não podia ver… Nosso SCRUM Figura 2 Reunião Diária Conforme falamos no início deste artigo, o diferencial e o fator crítico de sucesso dos métodos ágeis é o foco no ser humano e nas suas interações. É priorizar a conversa presencial “cara-a-cara”, como forma de comunicação. Aplicando o SCRUM, percebemos que fato de cada membro do time pegar voluntariamente um post it com uma tarefa, associá-la a uma imagem que o identifica (avatar), assumindo o compromisso de realizar essa tarefa; e no dia seguinte mover esse pequeno papel para a coluna FEITO, promove comprometimento e sentimento de satisfação pelo trabalho realizado. No SCRUM, a tarefa é “puxada”, ou seja, cada membro da equipe escolhe o que deseja fazer, ninguém “empurra” ou determina o que ele vai fazer. Esses simples gestos diários, criam hábitos, que estabelecem comportamento pro ativo, disciplina e resultados positivos em pouco tempo (Figura 2). Se por um lado, a percepção de que a metodologia SCRUM era simples, poderosa e possibilitaria a realização dos nossos objetivos, nos motivou bastante; por outro lado veio a indagação: como incluir um desenvolvedor cego nesse processo? Como dar a ele a mesma oportunidade de participar do processo, a acessibilidade ao quadro Task Board e à metodologia SCRUM em sua totalidade? Inspirados na determinação do Carlos Willians em vencer a deficiência e usando nossa criatividade criamos juntos os mecanismos para que ele participasse de todo o processo de trabalho como qualquer outro membro da equipe. Tínhamos em mente a seguinte premissa: o desejo da pessoa com deficiência física é poder ser tratado de maneira igual, porque diferente ele se sente na maior parte do tempo. Assim, adaptamos nosso Task Board com uso de etiquetas escritas em braile, pinos com formato diferente para prender os post its, de modo que fosse possível ao Carlos atualizar o quadro. Nas reuniões de estimativas, o SCRUM sugere o uso do planning poker, um método que usa cartas de um baralho especial, que o time joga para estimar o esforço de implementação de cada User Story. Adaptamos um baralho especial com inscrições em braile para que o Carlos pudesse participar do “jogo”. Figura 3 Pinos diferentes para auxiliar os deficientes visuais. Figura 4 Etiquetas em braile Figura 5 Programador cego manipulando suas atividades no Task Board Figura 6 Programador cego manipulando suas atividades no Task Board Figura 7 Planning Poker Figura 8 Planning Poker Figura 9 Programação em grupo para construção do conhecimento colaborativo. Figura 10 Sessão de programação projetada. Figura 11 Reunião de retrospectiva sobre o trabalho realizado. Nosso professor Rodrigo de Toledo, um dos primeiros a utilizar o SCRUM no Brasil, se interessou bastante pelo trabalho de acessibilidade que desenvolvemos no TRE-RJ e apresentou nossa história no Agile 2012, principal evento para divulgação e promoção dos métodos ágeis no Brasil. A entrevista e o vídeo da apresentação podem ser vistos em: Video da palestra sobre "Gestão Visual! Como incluir o deficiente visual na gestão visual?" [10]: http://www.youtube.com/watch?v=2CqzbVMeJdw&hd=0 Prezi da palestra Gestão Visual: http://prezi.com/jkhstru9me4s/gestao-visual/ Video do Carlos, TRE: http://www.youtube.com/watch?v=3fp7V-e62R8&yt:cc=on Conclusão Todo esse trabalho desenvolvido na SEDSIS tem sido bastante enriquecedor. A Chefe da Seção consegue dar respostas rápidas e claras sobre o andamento dos projetos, bem como fornecer previsões confiáveis sobre prazos de conclusão. A qualidade dos softwares e produtos desenvolvidos melhorou significativamente; os usuários estão satisfeitos com a qualidade dos produtos entregues; a quantidade de manutenções corretivas é bem baixa. Nossa metodologia tem ajudado aos superiores em suas priorizações, planejamento e tomada de decisão em relação às demandas de desenvolvimento de sistemas e soluções de TI. Quanto maior o desafio, maior a alegria ao superá-lo. Essa alegria e a motivação decorrente dela é que nos faz continuar, dia após dia vencendo as dificuldades e comemorando cada pequena vitória. A convivência com o Carlos nos trouxe, sem que sequer percebêssemos, uma nova visão do mundo. Nos preocupamos hoje com coisas que antes nem passava por nossas cabeças. Descobrimos que pequenas coisas que fazemos sem nem perceber, são grandes empecilhos para alguém que não enxerga. Descobrimos também que o convívio com alguém diferente, com suas dificuldades e virtudes; a preocupação em transformar o ambiente em um lugar um melhor e acessível para o outro, nos faz pessoas e profissionais melhores também. Com os métodos ágeis foi possível aumentar a previsibilidade, velocidade e qualidade dos sistemas entregues. Além disso, conseguimos integrar um deficiente visual à equipe participando ativamente de todas as etapas da construção de software seguindo a metodologia ágil. Bibliografia [1]. BECK, Kent. BEEDLE, Mike. VAN BENNEKUM, Arie. COCKBURN, Alistair. CUNNIMGHAM, Ward. FOWLER, Martin. GRENNING, James. HIGHSMITH, Jim. HUNT, Andrew. JEFFRIES, Ron e outros. Manifesto for Agile Software Development. In: http://agilemanifesto.org/. Acessado em setembro de 2013: 2001. [2]. BORGES, José Antônio. Do Braille ao Dosvox - Diferenças nas vidas dos Cegos Brasileiros. COPPE/UFRJ. Rio de Janeiro - RJ, Brazil: 2009. [3]. FORNAZIERO, S. M. ZULIAN, M.A.R. Estudo das dificuldades encontradas pelas pessoas cegas com deficiência visual no uso do transporte coletivo. XIV Encontro Latino Americano de Iniciação Científica e X Encontro Latino Americano de Pós-Graduação. Universidade do Vale do Paraíba. IN: http://www.inicepg.univap.br/cd/INIC_2010/anais/arquivos/RE_0308_0861_01.pd f. Acessado em setembro de 2013: 2010. [4]. GOERTZ, Yvonne H.H. VAN LIEROP, Brigitte A.G. HOUKES, Inge. NIJHUIS, Frans J. N. Factors related to the employment of visually impaired persons: a systematic literature review. Journal of Visual Impairment & Blindness. American Foundation for the Blind. In: http://www.biomedsearch.com/article/Factors-related-to-employmentvisually/231313588.html. Acessado em agosto de 2013: 2010. [5]. IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Tabela 1.3.1 - População residente, por tipo de deficiência, segundo a situação do domicílio e os grupos de idade - Brasil - 2010. IBGE. Rio de Janeiro - RJ, Brazil. In: ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Caracteristicas_Gerais_R eligiao_Deficiencia/tab1_3.pdf. Acessada em setembro de 2013: 2010. [6]. OMS, Organização Mundial da Saúde. Global data on visual impairments 2010. Organização Mundial da Saúde. Genebra, Suíça. In: http://www.who.int/blindness/GLOBALDATAFINALforweb.pdf. Acessado em setembro de 2013: 2012. [7]. PMI, Project Management Institute. PMI Agile Toolbox. http://www.pmi.org/Certification/New-PMI-Agile-Certification/PMI-AgileToolbox.aspx. Acessado em setembro de 2013: 2013. In: [8]. SCHWABER, Ken. SUTHERLAND, Jeff. The scrum guide: 2011. [9]. SCRUM ALLIANCE. Scrum Alliance. Acessado em setembro de 2013: 2013. In: http://www.scrumalliance.org/. [10]. TOLEDO, Rodrigo. Métodos Ágeis. In: http://www.rodrigodetoledo.com. Acessado em agosto de 2013: 2010. [11]. WALL, John. The rights of blind people. Journal of Community Eye Health International Center for Eye Health. London, U.K. Ed: 16, p.p. 1 - 2. In: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1705870. Acessado em agosto de 2013: 2003.