Projeto Escola Sem Sentido e a Cidade de Analfabetos Políticos Patrícia Schmid (Psiquiatra Infanto Juvenil) Izabel Cristina Costa (Profª História UCAM/ Redes públicas/ diretora SEPE) Antes de começar a leitura você deve se perguntar o porquê de uma profissional de Saúde Mental estar escrevendo um texto ao lado de uma profissional da Educação. As autoras lhe respondem que a profissional de Saúde Mental atende crianças e adolescentes. E que ambas as autoras entendem que a escola é parte fundamental da formação da criança e lugar privilegiado para a sua estruturação social e psíquica. Assim, numa articulação entre dois saberes, sentem-se à vontade para dialogar com você, professor, parceiro nessa batalha por uma sociedade que cuide verdadeiramente bem 1 da infância e juventude. A proposta, então, será discutir o Projeto de Lei 867/2014 , que propõe criar no âmbito do sistema de ensino do Município do Rio de Janeiro o Programa Escola Sem Partido. O Projeto, em tramitação, apresenta como princípios alguns dos artigos abaixo: “Artigo 1º: I - neutralidade política, ideológica do Município; (...) IV - reconhecimento da vulnerabilidade do educando como parte mais fraca na relação de aprendizado; (...) VI - direito dos pais a que seus filhos menores não recebam a educação moral que venha a conflitar com suas próprias convicções (...) Artigo 2º: É vedada a prática da doutrinação política e ideológica em sala de aula, bem como a veiculação, em disciplina obrigatória, de conteúdos que possam 2 estar em conflito com as convicções morais dos estudantes ou de seus pais”. Caro colega professor, tais princípios, conforme expostos acima, expõem a face de uma escola muito diferente daquela que ajuda na formação intelectual, psíquica, social e cultural do jovem. Poderá a escola ser neutra? Será o estudante a parte fraca na relação com o professor? Deverá a escola olhar assim para seu aluno? Sabemos que este espaço na sociedade atual, necessita de uma reinvenção. Que os métodos de ensino precisam ser 1 No RJ, este Programa é capitaneado pela família Bolsonaro. Na capital, este projeto é de autoria do vereador Carlos Bolsonaro. Na ALERJ, também está tramitando o PL 2974/2014, do irmão e deputado estadual Flavio Bolsonaro. 2 PL 867/2014. reformulados, que a aprendizagem digital tem tido impactos sobre a tradicional, que a relativização das relações de autoridade tem causado efeitos importantes nas interações em sala de aula. Sim, a reinvenção da escola é urgente, mas ela não será positiva através da lógica do Programa Escola Sem Partido. Tal raciocínio não reinventa a escola, a anula. Impede que ela exerça a sua função fundamental: fazer pensar. Quando eu penso e me diferencio de meus pais, me torno sujeito único e singular. Poder realizar esse processo é fundamental para a construção psíquica de qualquer criança e adolescente. E é na escola, além das relações familiares e com os amigos, que o menino ou a menina descobrem como eles se singularizam. Não poder discutir ideias que divirjam de seus genitores é impedir um processo fundamental para o crescimento de qualquer jovem! Uma escola que se molda de acordo com o desígnio dos pais, sem diferença, não forma, deforma. Uma escola em que professores não podem discutir ideias políticas sob o manto de uma suposta neutralidade, obscurece a possibilidade de construção de capacidade crítica. Perde potência. Assim, o Programa Escola Sem Partido não tem nada a ver com partido, muito embora se ampare no temor de uma escola partidarizada. O grande perigo aqui é o da equivalência entre política e partido. Muito mais amplo que partido, o termo política, originado do Grego πολιτικός / politiko, significa "de, para, ou relacionado a grupos que integram a Pólis”. Denomina-se a arte ou ciência da organização, direção e 3 administração de nações ou Estados. Portanto, política relaciona-se à prática cidadã. Por isso, não há escola verdadeiramente comprometida com sua função sem exercer uma prática política. Grande ironia: uma escola que reproduz a lógica de tais Projetos de Lei se coloca, ainda que se dizendo neutra, a serviço de uma ideologia... Umberto Eco, em seu estupendo artigo Fascismo Eterno, aponta como o “fascismo foi certamente uma ditadura, mas não era completamente totalitário, nem tanto por sua brandura quanto pela debilidade filosófica de sua ideologia… E como Mussolini não tinha qualquer filosofia: tinha apenas 4 uma retórica”. Segue descrevendo características do regime como o culto à tradição, onde o desacordo é definido como traição, além de elementos como o medo da diferença, o irracionalismo. 3 Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Pol%C3%ADtica 4 Carta Maior. A Lição de Umberto Eco Contra o Fascismo Eterno. Disponível em: http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/A-licao-de Umberto-Eco-contra-o-fascismo-eterno%0D%0A/4/15330, 2009. Em sendo assim, o projeto de lei Escola Sem Partido torna o espaço escolar um locus sem filosofia, uma escola de retórica, tomada pelo culto à tradição e pela ideologia que rege a lógica fascista. E quanto a isso Umbero Eco alerta: “O Ur-Fascismo pode voltar sob as vestes mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o indicador para cada uma de suas novas formas – a cada dia, em cada lugar do mundo”. 5 Como toda ideologia de inspiração fascista, o projeto reforça as relações autoritárias na escola. Bane a diversidade existente no espaço escolar. Estimula um comportamento de delação, dedo-durismo entre professores e estudantes. Desrespeita, por isso mesmo, direitos civis duramente conquistados pelos brasileiros na Constituição de 1988, como as liberdades de opinião, de associação e de expressão. Almejando, nesse processo, alterar radicalmente documentos fundamentais da educação brasileira, seus artigos ferem a LDB, o Estatuto da Criança e do Adolescente e os Parâmetros Curriculares Nacionais. O Programa Escola sem Partido, infelizmente, não deve ser tratado como uma bandeira exótica, de uma família de políticos da extrema direita brasileira. Existente há mais de dez anos, ele articula diversos movimentos autoritários nas redes sociais, reforçando o ódio e a segregação em relação ao outro; ou seja, àquele que pensa diferente da sua verdade. 6 O projeto tramita em diversos estados e cidades . A nível federal há um exemplar em trâmite, propondo inclusive alterações penais, como a criação do crime “assédio ideológico”. Não é à toa que a propaganda do Programa Escola Sem Partido rejeita e detrata a figura e as concepções de um dos mais importantes pensadores do século XX, Paulo Freire. Seus conceitos, como conscientização e empoderamento - processos pelos quais o ser humano avança na construção de uma consciência crítica e realiza, por si mesmo, as mudanças e ações que o libertam da opressão - são exatamente o oposto de uma escola amordaçada, fascistizada. Enfim, aos educadores e cidadãos que defendem que ser professor é ensinar conteúdo pedagógico, mas também discutir o contexto, levar o mundo para sala de aula, formando cidadãos pensantes e conscientes, cabe o bom combate contra essa concepção. Cabe lutar contra uma ideia que transforma a Escola numa Escola Sem Sentido, produtora de milhares 5 Carta Maior. A Lição de Umberto Eco Contra o Fascismo Eterno. Disponível em: http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/A-licao-de Umberto-Eco-contra-o-fascismo-eterno%0D%0A/4/15330, 2009. 6 Santa Cruz do Monte Castelo, no Paraná, foi a primeira cidade a aprovar o projeto na Câmara de Vereadores. de Analfabetos Políticos, bem descritos por Bertold Brecht em seu Poema. “O Analfabeto Político O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política, nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto 7 e lacaio das empresas nacionais e multinacionais”. 7 Disponível em http://pensador.uol.com.br/frase/MjMzMDA5/