Pierson, Azevedo e a sociedade multirracial de classes na Bahia1 Ricardo Sangiovanni2 1. Jornais, portais e blogs de notícias brasileiros reportaram no último mês de setembro a publicação de um relatório da Organização das Nações Unidas3 sobre a situação atual das práticas sociais e das políticas públicas de combate ao racismo no Brasil. A maioria destacou em seus títulos, como principal conclusão do documento, este excerto: O Brasil não pode mais ser considerado uma democracia racial, mas, conforme expressado pela sociedade civil e por alguns órgãos estatais, o país é caracterizado pelo racismo institucional, no qual hierarquias raciais são culturalmente aceitas como naturais. (FRANCE, SAHLI, 2014, p. 4, tradução e grifos meus) Cá comigo duvido quetenha sido essa, de fato, a informação mais nova ou relevante daquele relatório. Mas não me proponho aqui a questionar a interpretação dos jornalistas, tampouco a discutirem pormenores o documento: queroapenas sugerir que, per se, o alarde dos meios de comunicação ante à afirmação de que o país não pode mais ser considerado uma democracia racial 4 é indicativoda pertinência que conserva, no imaginário de uma parte significativa da sociedade brasileira5, a ideia de que o racismo no país, quando existe, existe apenas enquanto expressão da desigualdade de classe6. Passou despercebida, contudo, à leitura dos profissionais que redigiram e publicaram notassobre o informe da ONU na imprensa, a argumentaçãoacerca do porquê da concepção do Brasil como uma democracia racial, apresentado pelas autoras do documento no exíguo 1 Palavras-chave: raça/racismo, Bahia, intelectuais, Thales de Azevedo, Donald Pierson, Unesco. Estudante de Doutorado em Estudos Étnicos e Africanos pelo Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos (Pós-Afro) da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (Brasil). E-mail: [email protected] 3 O Report of the Working Group of Experts on People of African Descent on its mission to Brazil, foi produto de entrevistas com representantes governamentais de cinco grandes cidades brasileiras, feitas ao longo de uma visita de dez dias ao Brasil em dezembro de 2013 por duas especialistas em direitos humanos. 4 A noção de democracia racial gravita em torno da ideia de que o Brasil seria "uma sociedade sem barreiras legais que impedissem a ascensão social de pessoas de cor a cargos oficiais e a posições de riqueza ou prestígio" (Guimarães, 2001, p. 148). 5 Sobre esse assunto, recordo ainda Guimarães: "De fato, os brasileiros se imaginam numa democracia racial. Essa é uma fonte de orgulho nacional, e serve, no nosso confronto e comparação com outras nações, como prova inconteste de nosso status de povo civilizado." (2009, p. 39) 6 De classe ou, mais recentemente, de qualquer outra natureza - jamais pura e simplesmente racismo. Recentemente, torcedores do Grêmio, clube de futebol do Rio Grande do Sul, insultaram um jogador do Santos, clube de São Paulo, chamando-o de macaco e imitando o som e os trejeitos desse animal. Questionada, uma das torcedoras agressoras justificou-se afirmando que os insultos não eram racistas, mas sim expressões ditas "no calor do jogo" evidentemente subsumindo o racismo à atmosfera de conflitualidade esportiva. 2 tópico"Contexto Histórico", ao qual foram dedicados dois parágrafos de um total de 24 páginas: O Brasil [após a proclamação da República] foi considerado uma “democracia racial”, e o racismo e a discriminação raciais [considerados] ausentes da sociedade brasileira, ainda que remanescessem no inconsciente coletivo. O legado do tráfico de escravos, da escravidão e do colonialismo sustentaram a ideia de que pessoas negras, se permitidas dentro do sistema dominante, destruiriam [o racismo e a discriminação] de dentro. (idem, ibidem, 2014, tradução minha) Não pretendoque um relatório como esse devesse discutir com grande detalhamento as circunstâncias históricas que concorrem para explicar por que o Brasil “foi considerado" uma democracia racial. Sinalizo apenas que, ao apresentar tal "contexto histórico" de modo tão excessivamente sumário, o documentoacaba corroborando, à guisa de explicação última do racismo brasileiro, certo tipo de ligação direta entre o presentepretensamente modernoe um remotíssimo passado colonial pré-aboliçãoda escravidão - escamoteando, de contrabando, os jogos de forças e interesses, nacionais e internacionais, envolvendo campos sociais diversos, que concorreram,ao longo do tempo, para fomentar a noção de que, no Brasil, a mentalidade racista e a discriminação racial, quando não inexistem, subsumem-se à discriminação de classe - tendendo ambas, portanto, a erradicar-se com o tempo, como que naturalmente, na medida em que amadurecesse a sociedade de classesno Brasil. 2. Nesse sentido, recuando um pouco na história dessa crença difusa, pode-se dizer que um importante papel nos jogos de forças a que me refiro foi jogado justamente pelas Nações Unidas, nos anos 1950, através do ProjetoUnesco sobre relações raciais no Brasil, que financiou pesquisas de campo de cientistas sociais brasileiros e estrangeiroscom a finalidadede montar um painel científico dos vários matizes em que se davamessas relações. A motivação na raiz daquela iniciativa era apresentar uma via alternativa a cenários de desabrido conflito inter-racial pelo mundo, como o Jim Crow no sul dos Estados Unidos e o apartheid na África do Sul. Pode-se dizer que já era hegemônico internacionalmente o imaginário de que, no Brasil, as relações entre brancos e negros eram harmônicas e, portanto, potencialmente exemplares - e era justamente essa noção e suas nuances que a Unesco pretendia confirmar, científica e empiricamente, em campo 7. 7 Coordenador do projeto Unesco no Brasil, Alfred Métraux, afirmava em 1952 que "comme l'enquête de l'Unesco l'a amplement démontré, le Brésil reste un pays exemplaire, destiné de ce fait à jouer un rôle important dans la construction d'un monde qui connaîtra enfin le respect mutuel entre toutes les races". (1952, p. 6) Uma dessas pesquisas foi a que resultou no volume As elites de Cor: um estudo de ascensão social, de Thales de Azevedo, de 1953, primeira publicação fruto daquele projeto, sob a curadoria da Unesco. No livro, o cientista social baiano apresenta uma etnografia da cidade de Salvador de 1951, em que analisa a realidade social baiana pelo prisma das relações raciais, a partir de entrevistas e observação de campo em contextos nos quais pessoas "de cor" (i.e. negras ou mestiças de variadas tonalidades de coloração da pele) ascendiam, ou tentavam ascender, na ditasociedade de classes baiana de então.Da etnografia de Azevedodepreendem-se, por um lado, tanto a existência de possibilidades de ascensão social a pessoas "de cor" - o que positivava os auspícios da Unesco - , quanto, por outro, a existênciade barreiras e preconceitos sistematicamente enfrentados por essaspessoas em relação às de pele mais clara, em boa parte dos casos ancorados em motivações que, aparentemente, não encontravam explicação última na inferioridade de classe - o que, nas entrelinhas, contrariava a noção de que a Bahia e o Brasil fossem "exemplares" ou tendessem a uma democracia racial ou estatuto que o valha. Chama atenção, portanto,naquele trabalho, o fato de as evidências etnográficas aparecerem mormente enquadradas em um horizonte epistemológico que parece engessar a análise de Azevedo - de maneira que grande parte das situações concretas apresentadas,nas quais a cor da pele ou outros traços fenotípicos aparecem como mote da discriminação relatada, não chegam a ser sequer interpeladas pelo autor quanto à eventual possibilidade de configurarem expressões de um preconceito racial estruturante - quero dizer: de racismo - , portanto, entraves à concretização da livre ascensão social independentemente da raça ou da cor; ao contrário: essas situações terminam por sertratadas comoface aparente de umadiscriminação cuja raiz última é outra e, em larga medida, oculta aos próprios atores envolvidos: a desigualdade de classe. A tese central do livro, portanto, guardasemelhançacom a que o recente relatório da ONU refuta: a de que, uma vez que a população negra se integrasse ao "sistema dominante" e ascendesse nele, por seus próprios esforços, o preconceito racial desapareceria. Convém observar que o enquadramento teórico-epistemológico predominante naquele trabalho de Thales de Azevedo é de cariz estrutural-funcionalista, tomado de empréstimo às teses propugnadas por Donald Pierson, cientista social da Universidade de Chicago (EUA) que estivera na Bahia 16 anos antes - entre 1935 e 37 - e, via de regra, constatara a existência de uma "sociedade multirracial de classes" - quer dizer, uma sociedade de classes (em oposição ao modelo de castas) em que a mobilidade social vertical se dava primordialmentepor meio da livre competição;uma sociedade, portanto, onde preconceitos e desigualdade por conta da cor e de outros traços fenotípicos eram, quando nada, emanações de uma desigualdade de classes - essa sim estruturante - que bem poderia ser tomada por natural, dado tratar-se de uma sociedade de classes que só recentemente (em 1888) abolira um longevo regime escravista. Novamente, uma tesebem semelhante à que encontramos agora refutada no relatório recente dasNações Unidas. 3. Não pretendosugerir que tenham sido Donald Pierson, Thales de Azevedo ou mesmo a Unesco, através de seu projetosobre as relações raciais no Brasil nos anos 1950, os fulcros últimos de uma suposta a inculcação, no senso comum brasileiro,do entendimento - a meu ver, registre-se,equivocado - de que o preconceito racialaqui se explique apenas enquanto decorrência menor, colateral, do preconceito de classe, inexistindo quando não articulado a este. Até porque, se Pierson seguiu sustentando as teses de seu livro,Brancos e Pretos na Bahia: um estudo de contacto racial (publicado em inglês em 1942), décadas depois de sua publicação, ante as muitas críticas que recebeu8, pode-sefacilmente notar que seu olhar é, naquele trabalho,circunscritível não apenas a um determinado horizonte epistemológico - o do estrutural-funcionalismo predominante nas teses da Escola de Chicago - como a um claro propósito comparativo, que tinha como parâmetro de racismo a realidade do sul dos Estados Unidos, ante a qual a Bahia lhe pareceu um contraexemplo alvissareiro; Thales de Azevedo, por sua vez,avançaria em relação às teses defendidas em As Elites... em futuros trabalhos9, reconhecendo até certo ponto a existência do preconceito racial per se; e quanto ao projeto da Unesco no Brasil, este desaguaria em múltiplos e por vezes divergentes resultados, sendo hoje mais aceita 10 a tese de que aquele conjunto de trabalhos, ao invés de reafirmar, em marcos científicos, a harmonia racial brasileira, como inicialmente propunha, contribuiu de maneira fundamental para despertar, no campo científico, a denúnciada existência de forte preconceito racial e doracismo no Brasil. Meu propósito aqui é bem outro: no bojo de minha pesquisa de doutorado, em que auspicio produzir uma análise histórico-sociológica da trajetória profissional de Thales de Azevedo, interessa-meobservar e discutir, através de uma leitura comparativa dos supracitados trabalhos de Pierson e de Azevedo, o modo como se materializou a relação de influência unilateralentreum 8 Ver Pierson, 1971, "Introdução à 2 edição". Exemplos disso são alguns dos ensaios reunidos no volume Democracia Racial, de 1975. 10 Ver Maio, 2000. 9 ponto de vista teórico eminentemente norte-americanono trabalho de um intelectual brasileiro,escrevendo sobre seu próprio contexto social. Nesse sentido, procurei colher exemplos numa releiturados textos desses dois autores, para refletir sobre o que me parece ter sido um movimento de subsunção da realidade empírica verificada por Thales de Azevedo às teses defendidas por Donald Pierson - movimento este que resultou, a meu ver, em limitaçõesao trabalho do autor baiano. A comparação entre esses dois autores não é aleatória. Em As Elites..., Thales de Azevedo reconhece, em diversas passagens, sua filiação teórica (de resto, legítima) às teses de Pierson. Isso, porém, somado a 1) o fato de que Azevedo explicitaria, anos depois da publicação daquele livro, certa ingerênciade Alfred Métraux 11 , coordenador do projeto Unesco, na redação do trabalho, no sentido de conferir-lhe um cariz menos histórico (feição que Thales dera a seu livro anterior, Povoamento da Cidade do Salvador), e mais empírico (verve declarada dos auspícios da Unesco, epresente em Pierson); e a 2) o fato de a função de coordenação das pesquisas do projeto da Unesco na Bahia só ter sido oferecida a Thales de Azevedo após a recusa de Donald Pierson, em razão de compromissos previamente assumidos por este 12 ; leva-me à hipótese de que a Unesco tinha no trabalho de Pierson uma espécie de modelo, a ser evidentemente submetido a confirmação numa nova empreitada de campo - hipótese que, secomprovada, põe em cena uma condicionante fundamental na busca por entender melhor as circunstâncias e o jogo de compensações e constrangimentos enfrentados por Azevedo na produção daquele que seria talvez seu trabalho de maior projeção no campo intelectual, brasileiro e internacional. Em suma, seria como se, em alguma medida, Azevedo estivesse "fazendo um papel" que, ele bem sabia, "era para ser" de Pierson. 4. Listo a seguir exemplos, extraídos da leitura comparativa de Pierson e Azevedo, por meio dos quais busco dar sustentação aessa hipótese. Primeiro, exporei uma comparação entre as teses gerais apresentadas por um e outro autor; em seguida, um cotejo entre dois tipos de situações concretasabordadas por ambos. A tese central de Pierson, conforme afirmei anteriormente, pode-se resumir neste excerto: o que encontramos na Bahia é uma sociedade multi-racial de classes. Não existe casta baseada em raça, existem apenas classes. Estas classes são ainda consideravelmente 11 O episódio é relatado por Thales de Azevedo no prefácio de Ensaios de Antropologia Social (1959, pp. 9-10) O episódio é relatado por Thales de Azevedo no Anuário Antropológico de 1982 (p.275) 12 identificadas com a côr, é verdade; mas apesar disto, são classes e não castas. A tendência mais característica da ordem social brasileira tem sido a redução gradual, mas contínua, de tôdas as distinções culturais e raciais, e para a fusão biológica e cultural do africano e do europeu em uma raça e cultura comuns. (1971, p. 358) Ou seja: embora reconheça a existência de manifestações de preconceito racial, Pierson não trata tal discriminação como algo estruturante, dotado de seu peso próprio nos processos de reprodução social, mas sempre enquanto uma sorte de subproduto da desigualdade em relação aostatus e à origem social - ou seja, à classe. Thales de Azevedo, por sua vez, no capítulo que intitulado"Uma sociedade multi-racial de classes", muito embora reporte depoimentos de informantes que salientam, por exemplo, que "a pigmentação cria obstáculos" (1955, p.76) à ascensão social de negros, reafirma Pierson: Sem embargo de todas essas dificuldades [quenegros e mestiços enfrentavam, por conta da cor e de traços fenotípicos, para ascender socialmente], as pessôas de côr, sobretudo as mais claras e de traços mais europóides, podem adquirir um status tão elevado quanto os brancos. (...) elas podem casar-se com brancos segundo sua posição social, podem alcançar proeminência nas profissões liberais, na intelectualidade, podem ser admitidas em organizações existentes pra exprimir prestígio e status, o que confirma a tese já comprovada por Pierson de que 'o que encontramos na Bahia é uma sociedade multi-racial de classes'. (idem, pp. 76-77) Para além da coincidência evidente entre os modos de pensar dos dois autores, há também em comum uma tese subjacente,que nem sempre aparece claramente, mas cuja observância me parece fundamental para tentar entendera superposição, propostapor Pierson e ratificada por Thales, entre o gradiente de cor da pele (da mais escura à mais clara) e a escala de status social (do mais pobre/menos educado/de origem escrava ao mais rico/mais educado/de origem senhorial): a convicção de que da mestiçagem - ou seja, da mistura genética entre brancos, negros, indígenase mestiços ao longo do tempo - resultaria numa redução da população fenotipicamente negra, que tendia a se reduzira um mínimo em função de um pretendidoembranquecimento progressivo, tanto da população quanto da cultura predominantes. Tendo a interpretar essa ideia como uma espécie de sobrevivência das teses do racismo científico e do evolucionismo cultural.Em Pierson, esse argumento aparece mais claramente aqui: A tendência geral é para que a porção predominantemente de origem européia absorva os mestiços mais claros, enquanto por sua vez os mestiços absorvem os prêtos. Quer dizer que a população brasileira está adquirindo aparência mais européia, menos negróide - tendência mencionada por alguns intelectuais brasileiros como "arianização progressiva". (1971, p. 184). Pierson não chega a defender que, com o tempo, os negros desapareceriam completamente, como muitos baianos então acreditavam; mas concorda com a tese de que os traços do fenótipo branco tendiam a predominar, com o tempo, numa população baiana homogeneamente mestiça daí talvez a tendência por ele apontada de relativa coincidência entre cor da pele e a posição social: os mais pobres tendiam a ser os de pele mais escura, afinal, ainda não haviam entrado no caldeamento étnico que lhes conferiria, progressivamente, maiores possibilidadesde ascensão social, instrumentalizada por traços fenotípicos mais europeizados. Thales de Azevedo parece partilhar da mesma tese: o grupo mais escuro, de fenótipo preto, vem sendo absorvido gradualmente no caldeamento étnico; os brancos aumentam em ritmo um pouco mais rápido, enquanto cresce o número de mestiços, registrados nas estatísticas como pardos, para afinal virem a submergir, pela mistura, no grupo de ascendência predominantemente européia. (1955, p.51) Após citar o próprio Pierson, Azevedo conclui o pensamento referindo um intelectual contemporâneo seu, J. Valadares, a quem reafirma: "Todos notam que marchamos para uma população totalmente mestiça, mas com aparência de branca" (idem, p.51). É também característica comum aos trabalhos de Pierson e de Azevedo a preocupação comparativa em relação ao contexto internacional, sobretudo do racismo norte-americano. Entretanto, o que em Pierson soa como uma opção analítica questionável, embora razoavelmente explicável por conta da origem acadêmica da pesquisa e da própria origem social do autor13, em Azevedo por vezes aparenta ser uma exageração heurística do exemplo baiano no enfrentamento do "problema das relações inter-raciais" - o que me parece um indicativo da intrusão, em seu trabalho, de um viés aparentementepropagandístico direcionado à comunidade acadêmica e política internacional; e, consequentemente, na imposição de limites ao potencial do trabalho no sentido de perscrutar e problematizar o status quo da sociedade baiana. Além de verificável na adesão pouco ou nada crítica às teses de Pierson (não só nos trechos aqui sinalizados, como ao 13 Exemplos dessa preocupação comparativa abundam no livro. Um exemplo: "que tal descoberta [de que um branco tinha uma avô negra] não produziu nem produziria em nenhum caso semelhante, alteração no status do indivíduo em questão, nem modificaria a estima de que gozasse, indica o caráter verdadeiro da 'situação racial' brasileira, em oposição à dos Estados Unidos, por exemplo, onde semelhante revelação criaria um escândalo". (1971, pp. 187-188) longo de toda a monografia), esse caráter parece-me explícito no Addendum à Introdução escrito por Azevedo para a edição em português de As Elites..., onde o autor exorta a sociedade baiana e aos intelectuais que a estudam a "conhecer bem" as relações inter-raciais na Bahia para que possam colaborar para que a nossa terra possa sempre ser apontada como uma daquelas raras, em todo o mundo hodierno, em que pessôas de origens étnicas diferentes convivem de modo bastante satisfatório sem embargo da diversidade e até do contraste entre seus tipos físicos. (1955, p. 21) 5. Essas teses centrais aparecem distribuídas ao longo das respectivas análises dos contextos empiricamente verificados. Procurei observar, então, como cada um adequa essas premissas interpretativas aos casos concretos que relata. Listo a seguir exemplos acerca detrês contextos sobre os quais ambos se debruçaram, quais sejam: os casamentos inter-raciais, as ocupações/ profissões liberais e os clubes sociais. A tese de Pierson para os casamentos na Bahia era de que estes ocorriam geralmente dentro das classes sociais, sendo raras as uniões "inter-classes", de modo que "côr parece ser claramente um dos critérios de classe" (1971, p. 205). A porosidade dessa regra geral aparece, em Pierson, nos casos excepcionaisem que negros, através da distinção alcançada via mecanismos individuais de ascensão social (a educação o principal deles), conseguiam escapar da identificação pela cor e ser aceitos em círculos sociais elitizados. "Quando a côr preta deixa de identificar o indivíduo como membro da classe 'inferior', a oposição tende a diminuir. Quase não existe oposição ao casamento com mestiços claros, mesmo na classe 'alta', especialmente se não apresentam nos traços fisionômicos, ou na côr, sinais muito evidentes de origem africana" (idem, p. 206). Novamente,subjacente ao argumento de que não existe uma barreira de raça ou cor intransponível (como havia nos Estados Unidos), é possível notar a expectativa da miscigenaçãocomo uma espécie de silencioso catalisador da ascensão de não-brancos na sociedade de classes. Azevedo, ao longo do capítulo que dedica ao assunto, apresenta exemplos em que a resistência ao casamento aumenta quanto mais escura for a pele da pessoa em questão, independentemente da classe: "O casamento de homem claro com mulher escura, sobretudo quando esta é muito mais pigmentada, sofre oposição forte em todas as camadas." (1955, p. 87) Identifica também sobrevivências do racismo científico entre os brancos, que "justificam a sua oposição ao casamento com prêtos, além das ideologias relativas à inferioridade mental e moral do negro, com a repulsa 'instintiva' por certas características orgânicas dos africanos e seus descendentes", como, segundo aquela mentalidade, o odor (idem, p. 87). E relata ao final desse capítulo um dado bizarro,fugindo um pouco ao tema dos casamentos, sobre transfusões de sangue, em que "muitas vezes os pacientes brancos ou suas famílias preferiam doadores também brancos, mostrando-se constrangidos quando o doador era um mulato ou preto." (idem, p. 90) São apenas alguns exemplos - entre muitos ao longo do livro - que me sugerem que,a partir de suas próprias evidências etnográficas, Azevedo, ao que parece, tinha elementos para questionar o alcance teórico das teses de Pierson. Contudo, na reflexão que conclui o capítulo, tende a reafirmar a argumentação do norte-americano: "Funcionando a côr e os traços somáticos, em grande parte, como símbolos de status, a resistência aos inter-casamentos traduz ao mesmo tempo preconceito de classe e de raça, ou melhor, de côr"(idem, ibidem) - ainda que a tensão em relação a esse argumento reapareça apenas algumas linhas abaixo, na afirmação de que "Nesse terreno [casamentos inter-raciais] o comportamento se caracteriza por mais distanciamento e intolerância dos brancos, mesmo dos que são apenas 'socialmente brancos'" (idem, ibidem). No âmbito profissional - que Pierson discute sob o rótulo de ocupações, e Azevedo sob o de profissões liberais - o movimento é semelhante ao encontrado no terreno dos casamentos, porém com menor tensão. Piersonreafirma a existência de uma ordem social de livre competição, na qual os indivíduos pleiteavam posição baseada principalmente em realizações pessoais e favoráveis condições de família. (...) Entretanto, a parte mais escura da população teve de lutar com as sérias desvantagens de terem começado "de baixo", como escravos da classe branca dominante, sem instrução e outros recursos para ascenderem, e de exibirem sempre, em virtude da côr e de outros característicos físicos, as marcas indeléveis desta ascendência africana, símbolos indestrutíveis de status inferior. (1971, p.226) Pierson não se surpreende, portanto, com a distribuição hierarquizada dos postos de trabalho, em que os negros se concentravam "nos empregos de baixo status e pequeno salário", afinal, "o período de tempo desde a escravidão ainda era relativamente curto". (idem, ibidem) Azevedo refereum quadro semelhante ao proposto por Pierson: as relações interpessoais entre pessoas de diferentes fenótipos são brandas, e "mesmo nas mais prestigiosas dessas profissões, pessoas de todos os tipos podem fazer carreira e conseguir clientela, particularmente os médicos e os advogados" (1955, p. 156).Entretanto, a seguir, reproduz estatísticas das associações profissionais de quatro categorias "prestigiosas", em que os advogados são apenas 30% mestiços e 1,1% pretos; os engenheiros civis, respectivamente, 26,8%e 0,3%; os médicos, 16,9%e 2%; e os farmacêuticos, 14,4%e 3,6%. Quero com isso sinalizar que o fato de as pessoas "de cor" serem sempre minoria - e dentre elas as de pele mais escura (pretas)uma parcela inexpressiva - tendem a ser providencialmente enquadrados na tese de Pierson - que pressupunha, como elemento de integração social, não apenas a ascensão social por via material e/ou de status, mas a miscigenação,que figuracomo elemento justificador da marginalização das pessoas de pele mais escura, minoria numa sociedade que, supostamente, embranquecia. Passa também sem maior questionamento o depoimento de um informante - "um estudante de medicina muito preto"(idem, pp. 157-158) - que diz que "os [médicos] pretos em geral não se dedicam à cirurgia: alguns tentam essa especialidade, mas acabam na cínica geral. A odontologia também não é uma bôa carreira para êles: qual é a moça branca, enfeitadina, que quer abrir a sua boca para um preto?" (idem, ibidem). Ademais, episódios de franca discriminação por causa da cor - como casos de professores que humilhavam jovens estudantes negras "pouco estudiosas", "dizendo que havia muita gente precisando de cosinheiras [sic] ou de lavadeiras, e no entanto as pretas estavam querendo ser doutoras" (idem, p. 158) - são situados num impreciso passado, "há alguns decênios" - subterfúgio14aliás recorrente ao longo do livro. Nos clubes sociais ao tempo do trabalho de Pierson, "os prêtos ainda não foram admitidos, embora vários mulatos, inclusive certo número de 'branqueados' e mesmo alguns escuros, fôssem membros regulares, desfrutando de tôda a consideração" (1971, p. 234). Ao tempo da etnografia de Azevedo, a estratificação social dos clubes parecia guardar uma vinculação direta com o gradiente de cor da pele: os clubes "mais finos", com "predominância de associados do alto comércio e da indústria e das profissões liberais, só aceita[va]m pessôas 'socialmente brancas', isto é de fenótipo europóide ou classificadas como brancas graças à combinação de leves traços de mestiçagem com posição mais ou menos elevada" (1955, p.171), ficando os "muito pretos" ou excluídos nestes, ou associados a clubes que reuniam pessoas "de cor" e profissionais de funções de menor valorização social. Tendo a concluir, por esse exemplo, que a posição de classe não poderia sertratada comodeterminante último das desigualdades e preconceitos de cor ou raça, conforme a tese de Pierson; mas que, ao contrário, ao aparecer combinada à "posição social mais ou menos elevada", a marca fenotípica/racial tinha validade 14 Será o caso de tentar descobrir, ao longo desta pesquisa, se, nesse ou em algum outro caso, o "passado" referido imprecisamente por Azevedo chega a coincidir com o momento em que Pierson pesquisara na Bahia. independente - seria, pois, o caso de buscar verificar se não era ela mesma estruturante, e nãoapenas um subproduto indesejado de uma ainda imperfeita integração na sociedade de classes. Azevedo, no entanto, ocupa-se em "confirma[r] a observação piersoniana de que através das profissões liberais muitas pessoas alcançam classificação social", do que em questionar em profundidade a polifonia de sua própria etnografia - que o leva,honestamente, a registrar que "esse [clubes sociais] é um setôr das relações sociais em que há certo conflito, muito embora a tensão resultante seja dissimulada por mecanismos de acomodação de parte a parte" (idem, p. 173). Da parte de alguns negros bem posicionados socialmente, um desses mecanismos consistia emsimplesmente evitar participar desses clubes, pois já estavam calejados do preconceito. 6. Fica portanto evidente, na leitura comparativa entre Pierson e Azevedo, que o autor baiano, embora reúna evidências etnográficas cuja polifonia inspiraria hipóteses analíticas diferentes das do autor norte-americano, não avança para além daquelas teses. Discutir as possíveis razões e sobretudo as consequências da limitação aqui identificada seráobjeto de investigação ao longo de minha pesquisa de doutorado. Avento a seguir, brevemente, à guisa de conclusão, algumas hipóteses (complementares, e não excludentes entre si) de trabalho nesse sentido. A discussão mais evidente reside em torno do viés epistemológico de As Elites.... Suponho que, ao optar por uma tradição marcadamente estrutural-funcionalista - ao contrário de outros pesquisadores do mesmo projeto Unesco, como Florestan Fernandes e Oracy Nogueira, mais influenciados por reflexões de corte mais marxista - , Thales de Azevedo, na esteira das conclusões de Donald Pierson, não atribui um caráter sistemático à conflitualidade entre as classes sociais na Bahia: por isso, talvez, não tenha enxergado, no conjunto de episódios de preconceito racial que etnografou, rastros de relações estruturais de conflito, dominação e exclusãoentre as classes. Assim, a primeira opção desses autores parece ser a de explicar a realidade a partir de uma teoria da ação parsoniana, bem mais do que enxergar nela a luta de classes marxista. Rigorosamente, isso acaba resultando na sugestão dúbia de que a Bahia era moderna no regime de classes (em oposição ao de castas), e ao mesmo tempo tradicional, por conservar uma exemplar tendência à cordialidade, perdida por civilizações mais desenvolvidas. Mas proponho ir além dos limites de uma sociologia do pensamento, ou de uma história das ideias: será preciso investigar a fundo as relações sociais em jogo, no marco da sociologia dos intelectuais inspirada por Bourdieu, a fim deentender os significados de As Elites... nas diversas redes de relações sociais das quais participava Azevedo - para isso, será preciso mapearos constrangimentos ecompensações resultantes do tráfico de diferentes matizes de capital social, provenientes de campos de disputa diversos - como o acadêmico (nacional e internacionalmente), o político, o das relações internacionais, o da comunidade religiosa e - não menos importante - os campos de origem social e as redes de amizade e prestígio nas quais o autor baiano se inseria. Nesse último aspecto, ocorre-me abordar As Elites... enquanto objetificação do trânsito de Thales de Azevedo por todas essas redes; ou seja: tratar, possivelmente num marco influenciado por uma antropologia simétrica contemporânea, aquele livro enquanto objeto que articula significados diversos, como a possibilidade de inserção numa esfera maior de prestígio acadêmico,a inserção numa determinada tradição de pesquisa científica em dimensão internacional, a demonstração da filiação teórica e/ou mesmo dos vínculos de respeito e amizade que Azevedo mantinha com prestigiados intelectuais. Bibliografia consultada AZEVEDO, Thales de. Ensaios de Antropologia Social. Salvador: Progresso, 1959 ________ As Elites de Cor: um estudo de ascensão social. SP: Cia. Ed. Nacional, 1955 ________"Primeiros Mestres da Antropologia nas Faculdades de Filosofia". In: Anuário Antropológico 1982 Brasília: UNB, 1982 pp. 259-277 BOURDIEU, Pierre. "O Ponto de Vista do Autor". In: As Regras da Arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Cia. das Letras, 1996 _________. "Um 'livro para queimar'"? e "Espécies de capital e formas de poder" In: Homo Academicus Florianópolis: Editora UFSC, 2013 COMAROFF, John; COMAROFF, Jean "Ethnography and the Historical Imagination" In: Ethnography and the Historical Imagination San Francisco: Wesview Press, 1992 CORRÊA, Mariza. Traficantes do Simbólico e outros ensaios sobre a história da antropologia. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013 FRANCE, M. SAHLI, M. Report of the Working Group of Experts on People of African Descent/ Brazil, ONU, 2014 Acessível em http://goo.gl/JXmeVG, acessado em 15/10/2014. MAIO, Marcos Chor. "O Projeto Unesco: ciências sociais e o “credo racial brasileiro”. Revista USP, São Paulo, n.46, p. 115-128, jun./ago. 2000 MÉTRAUX, Alfred. "Une enquête sur les relations raciales au Brésil". In: Le Courrier, Paris: Unesco, ago./set. 1952 GUIMARÃES, Antonio Sergio Alfredo. 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