Vol. I
ISSN 2175-831X
VIII SEMANA DE HISTÓRIA POLÍTICA
V SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA:
POLÍTICA, CULTURA & SOCIEDADE
(Anais)
Rio de Janeiro
2013
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Reitor: Ricardo Vieiralves de Castro
Vice-Reitor: Paulo Roberto Volpato Dias
Sub-reitora de Graduação – SR1: Lená Medeiros de Menezes
Sub-reitora de Pós-Graduação e Pesquisa – SR2: Monica da Costa Pereira Lavalle
Heilbron
Sub-reitora de Extensão e Cultura – SR3: Regina Lúcia Monteiro Henriques
Diretor do Centro de Ciências Sociais: Léo da Rocha Ferreira
Diretora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH): Dirce Eleonora Nigro
Solis
Programa de Pós-Graduação em História (PPGH)
Coordenadora Geral: Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves
Coordenadora Adjunta: Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira
Coordenadora do Doutorado: Marilene Rosa Nogueira
Coordenadora do Mestrado: Maria Regina Candido
Semana de História Política | Seminário Nacional de História:
política, cultura e sociedade (x:2013:Rio de Janeiro)
Anais / VIII Semana de História Política / V Seminário Nacional de História:
Cultura & Sociedade; Vol. I; organização: Ana Beatriz Souza, David Barreto Coutinho,
Eduardo Nunes Alvares Pavão, Iamara da Silva Viana, Paulo Júnior Debom Garcia,
Renata Regina Gouvêa Barbatho – Rio de Janeiro: UERJ, PPGH, 2013.
1258p.
Texto em português
ISSN – 2175-831X
1. História Política – Congresso. 2. Cultura – Sociedade. 3. Relações
Internacionais.
VIII SEMANA DE HISTÓRIA POLÍTICA
V SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA: POLÍTICA, CULTURA &
SOCIEDADE
Comissão Organizadora
Ana Beatriz Souza, David Barreto Coutinho, Eduardo Nunes Alvares Pavão, Iamara da
Silva Viana, Paulo Júnior Debom Garcia, Renata Regina Gouvêa Barbatho
Realização
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro –
PPGH/UERJ
Designer Gráfico
Junio Cesar Rodrigues Lima | email: [email protected]
Editoração Eletrônica
Junio Cesar Rodrigues Lima | email: [email protected]
Capa
Junio Cesar Rodrigues Lima | email: [email protected]
Site
Http: www.semanahistoriauerj.net/anais.htm
Todos os textos são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a
posição da editora ou da instituição responsável por esta publicação.
ÍNDICE
13
APRESENTAÇÃO
14
SILVESTRE REBELLO ENTRE O BRASIL E OS ESTADOS UNIDOS (1824 – 1826)
Abner Neemias da Cruz
23
PELA MORALIZAÇÃO DO TRABALHO E PROSPERIDADE DA INSDUSTRIA
NACINAL: A FUNDAÇÃO DA ESCOLA AGRÍCOLA UNIÃO INDÚSTRIA
(1864-1884)
Adalberto Alves de Mattos
35
CONTRIBUIÇÕES DE PASCHOAL LEMME E ANÍSIO TEIXEIRA NO CONTEXTO
DA POLÍTICA EDUCACIONAL BRASILEIRA
Adriana Dias de Moura
47
EXERCÍCIO ILEGAL DA MEDICINA OU CRENÇA RELIGIOSA? O ESPIRITISMO
NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA NA PRIMEIRA REPÚBLICA
Adriana Gomes
65
AS ELITES AGRÁRIAS E AS IRMANDADES: DEVOÇÃO E FESTA NO VALE DO
PARAÍBA FLUMINENSE
Aguiomar Rodrigues Bruno
76
O PROCESSO DE OCUPAÇÃO DO VALE DO MACACU/RJ NO PERÍODO
COLONIAL
Ailton Fernandes da Rosa Júnior
87
A DEPENDÊNCIA DO TRABALHO ESCRAVO E A IMPORTÂNCIA DO PEQUENO
PROPRIETÁRIO PARA O MERCADO INTERNO DO BRASIL NA PRIMEIRA
METADE DO XIX.
Alan de Carvalho Souza
98
A EMPRESA MAXWELL, WRIGHT & CO. NO COMÉRCIO DO IMPÉRIO DO
BRASIL (1826-1855): PRIMEIROS RESULTADOS
Alan dos Santos Ribeiro
109
DISCURSOS INTERCRUZADOS: IDEIAS CIRCULANTES EM A GAZETA
PERNAMBUCANA E SENTINELA DA LIBERDADE NO BRASIL RECÉMINDEPENDENTE
Alexandre Bellini Tasca
121
A FORTALEZA DO GURUPÁ E O TRABALHO INDÍGENA
Alexandre de Carvalho Pelegrino
132
MINEIROS EM SÃO MATEUS: VIOLÊNCIA EM ELEIÇÕES DO FINAL DO
DEZENOVE
Alexandre de Oliveira Bazilio de Souza
142
HISTÓRIA E REVOLUÇÃO EM NELSON WERNECK SODRÉ
Alexandre Manuel Esteves Rodrigues
153
A INDUMENTÁRIA DA BELLE ÉPOQUE CARIOCA NARRADA PELO
CINEMATOGRAPHO DE JOÃO DO RIO
Aline da Silva Novaes
164
A JUVENTUDE BRASILEIRA E O MODELO DE COOPTAÇÃO JUVENIL
ALEMÃO
Aline de Almeida Hoche
172
A MORTE COMO METÁFORA?
Aline Magalhães Pinto
182
A QUESTÃO DA REALIDADE NA LITERATURA: APROXIMAÇÕES ENTRE AS
IDEIAS DE ERICH AUERBACH E A OBRA DE DIAS GOMES
Aline Monteiro de Carvalho Silva
194
APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO NACIONAL EM JOSÉ DE
ALENCAR
Aline Rafaela Portílio Lemes
204
MÚSICA E POLÍTICA EM ANGOLA (1940-1980)
Amanda Palomo Alves
213
INFANTAS DE BRAGANÇA: PRINCESAS NA POLÍTICA DA PENÍNSULA
IBÉRICA
Ana Carolina Delmas
224
CARTAS PARA PORTINARI: A RELAÇÃO DO PINTOR COM ARTISTAS,
INTELECTUAIS E POLÍTICOS DA BUROCRACIA VARGUISTA ENTENDIDA
ATRAVÉS DA SUA CORRESPONDÊNCIA (1920-1945)
Ana Carolina Machado Arêdes
235
DISTINÇÃO E HEGEMONIA DE CLASSE NAS PÁGINAS DA RIO MAGAZINE
Ana Claudia Lourenço Ferreira Lopes
247
A ESCUNA EMÍLIA E O FIM DO TRÁFICO DE ESCRAVOS NO BRASIL
Ana Paula de Oliveira Carvalho
257
REPRESENTAÇÃO SIMBÓLICA DA MODA BRASILEIRA: IMAGENS E
RELAÇÕES DE PODER DAS COSTUREIRAS EM DOMICÍLIO NOS ANOS DE 1950
Ana Paula Lima de Carvalho
269
COMO LENDÁRIOS ESPARTANOS
Anderson Alexandre Cruz Vilhena
282
A CELEBRAÇÃO DOS VULTOS HISTÓRICOS NACIONAIS NO GOVERNO
VARGAS: UMA ANÁLISE DO PROJETO “OS NOSSOS GRANDES MORTOS”
André Barbosa Fraga
296
A GUERRA DO CHACO (1932-1935): OCULTAÇÃO E PARTICIPAÇÃO INDÍGENA
André Henrique Eltz
309
A LEI ÁUREA EM BARRA MANSA
André Rocha Carneiro
318
ENTRE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS: GONÇALVES DIAS COMO ÍCONE DE
IDENTIDADE BRASILEIRA E MARANHENSE
Andréa Camila de Faria
328
ENTRE PÉROLAS E VIOLETAS: MULHERES NA MONTAGEM DO SISTEMA DE
PROTEÇÃO SOCIAL
Andréa Ledig de Carvalho
341
DO ARENA PARA O OLYMPIA: “UPA, NEGUINHO” E AS TRANSFORMAÇÕES
MUSICAIS NA TRAJETÓRIA DE ELIS REGINA
Andrea M. Vizzotto A. Lopes
353
O BAIRRO DA RIBEIRA E A CRISE DO ESPAÇO: O PROCESSO MIGRATÓRIO
DO COMÉRCIO EM NATAL – RN
Anna Gabriella de Souza Cordeiro
362
DISCURSOS DAS AUTORIDADES DIANTE DA SITUAÇÃO SOCIOECONÔMICA E
DA CRIMINALIDADE EM ALAGOINHAS E INHAMBUPE NA SEGUNDA
METADE DO SÉCULO XIX
Antonio Hertes Gomes de Santana
372
“PARA COMPREENDEREM OS INTERESSES DA MONARQUIA DE PORTUGAL
NA CONSERVAÇÃO DOS DOMÍNIOS DE ÁFRICA”: MILITARES, COMÉRCIO DE
ESCRAVOS, POVOAMENTO E TERRITORIALIZAÇÃO (SEGUNDA METADE DO
SÉCULO XVIII)
Ariane Carvalho da Cruz
383
“QUARENTA HORAS DE VIBRAÇÃO CÍVICA”: ESTADO NOVO E CINEMA NO
RECIFE
Arthur Gustavo Lira do Nascimento
395
MEMÓRIA E PRÁTICAS MUSICAIS DE PIABETÁ (RJ)
Artur Costa Lopes
402
O ENCONTRO NA FRONTEIRA DO SUL DA BAHIA OITOCENTISTA: OS
“BOTOCUDOS” E AS AUTORIDADES IMPERIAIS NO PROCESSO
“CIVILIZATÓRIO” E DE EXPANSÃO TERRITORIAL EM CACHOEIRA DE
ITABUNA-BA
Ayalla Oliveira Silva
414
A INFLUÊNCIA LIBERAL DE BARACK OBAMA: A CONSTRUÇÃO DO
DISCURSO “DNC KEYNOTE ADRESS” (2004)
Bárbara Maria de Albuquerque Mitchell
426
A FESTA DO DIVINO ESPÍRITO SANTO: MEMÓRIA E IDENTIDADE EM SÃO
BARTOLOMEU
Bárbara Pereira Mançanares
438
A ESCRITA DA HISTÓRIA NA PRIMEIRA REPÚBLICA NO BRASIL
Bárbara Winther da Silva
448
ENTRE OS ESCRITOS DO ULTRAMAR: O APORTE DO OLHAR DE TRÊS LUSOAFRICANOS SOBRE A “GUINÉ D E CABO VERDE” (SÉC.XVI E XVII)
Beatriz Carvalho dos Santos
461
DO SILÊNCIO AO ORGULHO: A TRAJETÓRIA DA COMUNIDADE
QUILOMBOLA ONZE NEGRAS NA RESSIGNIFICAÇÃO DE SUA NARRATIVA
Beatriz Hochmann Béhar
473
O ESTADO IMPERIAL E O ABUSO DA LIBERDADE DE IMPRENSA
Beatriz Piva Momesso
483
A CIDADE DE SÃO PAULO E A LITERATURA MACARRÔNICA NA PRIMEIRA
REPÚBLICA
Beatriz Rodrigues
494
OS SIGNIFICADOS DO SOCIALISMO NOS DISCURSOS PRESIDENCIAIS DE
LUÍS INÁCIO LULA DA SILVA (2003-2006).
Benjamim da Silva Andrade Filho
508
OS SIGNIFICADOS ACERCA DO REGIME MILITAR BRASILEIRO (1964-1985)
EM NARRATIVAS DE JOVENS DO ENSINO MÉDIO DE LONDRINA-PR
Brayan Lee Thompson Ávila
517
A PRÁTICA ARQUIVÍSTICA E SUA INFLUÊNCIA SOBRE A PESQUISA
HISTÓRICA: O CASO DO “ACHAMENTO” DO PROCESSO INQUISITORIAL DE
HIPÓLITO JOSÉ DA COSTA.
Bruna Melo dos Santos; Sérgio Luiz Pereira da Silva
529
A POLÍTICA REVISTA COMBATIVA ILUSTRADA: UMA REPRESENTAÇÃO DO
CENÁRIO POLÍTICO E SOCIAL NO PERÍODO REPUBLICANO
Bruna Vieira Gomes de Oliveira
540
A IDEIA DE RAÇA NA EUROPA MODERNA: FRANÇOIS BERNIER E A
PROPOSTA DE DIVISÃO DA HUMANIDADE NÃO SOMENTE PELOS ESPAÇOS
GEOGRÁFICOS; MAS, PELOS ASPECTOS EXTERIORES DOS CORPOS
Bruno da Silva
551
INSERÇÃO FEMININA NA FORÇA AÉREA BRASILEIRA: UM BREVE ESBOÇO
DE ANÁLISE SOBRE O QUADRO FEMININO DE GRADUADOS (1981-1982)
Dr. Bruno de Melo Oliveira; Drª Andréa Costa da Silva
562
A QUEDA DA MONARQUIA E O BANIMENTO DA FAMÍLIA REAL (1889)
Camila de Freitas Silva
571
ESTRATÉGIAS E ARTICULAÇÕES DO PARTIDO COMUNISTA
BRASILEIRO/PCB COM O MOVIMENTO OPERÁRIO EM MINAS GERAIS (19551970)
Camila Gonçalves Silva Figueiredo
582
O PASSADO COMO PATRIMÔNIO: A NARRATIVA HISTORIOGRÁFICA DE
AUGUSTO DE LIMA JÚNIOR
Camila Kézia Ribeiro Ferreira
593
AS TRANSFORMAÇÕES NA PRODUÇÃO TEATRAL NO BRASIL E URUGUAI
NOS ANOS 1940: A PARTICIPAÇÃO DE MARGARITA XIRGÚ E ZIEMBINSKI NA
RENOVAÇÃO DOS PALCOS LATINO-AMERICANOS.
Camila Maria Bueno Souza
607
REPUBLICANISMO E IMPRESA: OS PERÍDICOS REPUBLICANOS DE LISBOA E
RIO DE JANEIRO(1869-1874)
Camila Pereira Martins
619
EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS EM UBERLÂNDIA (1940-1985)
Carla Cristina Jacinto da Silva
629
AS PRÁTICAS JURÍDICAS NAS AÇÕES DE LIBERDADE NO PERÍODO ENTRE
1860 E 1880: UMA ANÁLISE QUANTO À OBSERVÂNCIA DOS ASPECTOS
FORMAIS PREVISTOS NO DIREITO POSITIVO
Carlos Henrique Antunes da Silva
639
O BERÇO DE UMA IDÉIA: A FORMAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DO SINDICATO
DOS JOGADORES DE FUTEBOL DO RIO DE JANEIRO (1971-1982)
Carlus Augustus Jourand Correia
651
DITADURA, SOCIEDADE E TRAJETÓRIA PESSOAL NAS MEMÓRIAS DE JORGE
AMADO: UMA ANÁLISE DE NAVEGAÇÃO DE CABOTAGEM
Carolina Fernandes Calixto
662
ARMANDO DE SALLES OLIVEIRA E A COMUNIDADE POLÍTICA DO JORNAL O
ESTADO DE S. PAULO (1933-1945)
Carolina Soares Sousa
670
PRESÍDIO MARIA ZÉLIA: REPRESSÃO EM SÃO PAULO, 1936-1937
Caroline Antunes Martins Alamino
677
MEMÓRIAS, HISTÓRIAS E A CONSTRUÇÃO DE DIFERENTES NARRATIVAS
ACERCA DO PASSADO ESCRAVISTA NA REGIÃO DO MÉDIO VALE DO
PARAÍBA FLUMINENSE
Caroline Bárbara Ferreira Castelo Branco Reis
689
ESTADO E INDIGENISMO: A CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO MEXICANA ATRAVÉS
DE GONZALO AGUIRRE BELTRÁN
Caroline Faria Gomes
700
CRIMINALIDADE NA VILA DE SÃO LEOPOLDO NA SEGUNDA METADE DO
SÉCULO XIX
Caroline von Mühlen
709
LEVANDO O BIOPODER A SÉRIO: MANEQUINS E VESTUÁRIO NO RIO DE
JANEIRO CONTEMPORÂNEO
Cecília Elisabeth Barbosa Soares
719
A PAISAGEM URBANA DE VILA RICA E A MEMÓRIA DE SEUS
SÉCULOS ÁUREOS
Christiane Montalvão
728
HISTÓRIA DA IMIGRAÇÃO E COLONIZAÇÃO POMERANA
NO ESPÍRITO SANTO
Cione Marta Raasch Manske
738
JUSTINIANO JOSÉ DA ROCHA: POLÍTICA E SOCIABILIDADE (1833-1836)
Claudia Adriana Alves Caldeira
745
OS POTENTADOS DO OURO E AS ESTRATÉGIAS DE ASCENSÃO SOCIAL:
COMO TORNAR-SE NOBREZA NOS TRÓPICOS. (MINAS GERAIS – PRIMEIRA
METADE DO SÉCULO XVIII)
Cláudia Otoni
749
OS DESERTORES DA GUERRA NA TRÍPLICE ALIANÇA: UTOPIA ANARQUICA?
Cristiana de Vasconcelos Lopes
760
CUCUMBIS: MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOBRE FESTAS NEGRAS
E REVOLTAS
Cristiane Batista
771
UM OLHAR SOBRE O DIPLOMATA DO IMPÉRIO: DUARTE DA PONTE RIBEIRO
(1795-1878)
Cristiane Maria Marcelo
782
A GUERRA DAS PALAVRAS: O DISCURSO POLÍTICO DOS REPUBLICANOS
LIBERAIS E A QUEDA DO BRASIL-IMPÉRIO (1870-1891)
DAIANE LOPES ELIAS
792
A TRAJETÓRIA DA POLÍTICA DE MUSEUS NO BRASIL: INTENÇÕES
E REALIZAÇÕES
Daniel Campelo de Oliveira
799
“1964” SERIA INEVITÁVEL? UMA ANÁLISE BIBLIOGRÁFICA SOBRE OS
ANTECEDENTES DO MOVIMENTO
Daniel Cerqueira Pinto
810
AS BATALHAS DE BONAPARTE EM “A CARTUXA DE PARMA”: CAMPANHAS
DA ITÁLIA E WATERLOO NA REPRESENTAÇÃO DE STENDHAL
Daniel Eveling da Silva
819
AFRICANOS LIVRES NO BRASIL: TRABALHO, LEIS E LIBERDADES
Daniela Carvalho Cavalheiro
830
FENDAS DA FÉ: RELIGIOSIDADE E PODER NA COLÔNIA DO SÉCULO XVIII
Daniele Baptista M. Ribeiro
838
O LUGAR DA REPÚBLICA POPULAR DA CHINA NA POLÍTICA EXTERNA
BRASILEIRA.UMA COMPARAÇÃO ENTRE O PERÍODO DA POLÍTICA
EXTERNA INDEPENDENTE (1961-1964) E O DO PRAGMATISMO RESPONSÁVEL
E ECUMÊNICO (1974-1979)
Daniele de Almeida Simas
850
VENDENDO DOCES, ENGOMANDO PRO SENHOR E RESISTINDO A
ESCRAVIDÃO: ESCRAVAS E AFRICANAS LIVRES EM MACEIÓ (1849-1888)
Danilo Luiz Marques
862
ENTRE O FEIXE E A ANTA: PERSPECTIVAS SOBRE FASCISMOS
David Barreto Coutinho
873
D. DOMINGOS ANTÔNIO DE SOUSA COUTINHO: REPERCUSSÕES NAS
PÁGINAS DOS IMPRESSOS APÓS AS NEGOCIAÇÕES DOS TRATADOS
ALIANÇA E AMIZADE E DO COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO DE 1810
Debora Cristina Alexandre Bastos e Monteiro de Carvalho
885
HISTÓRIA ORAL COMO APORTE METODOLÓGICO PARA ANÁLISE DA
PENITENCIÁRIA FEMININA MADRE PELLETIER EM PORTO ALEGRE (RS)
Débora Soares Karpowicz
895
A ESCRAVIDÃO COMO CHAVE DE UM GOVERNO: RIO DE JANEIRO,
1697-1702
Denise Vieira Demetrio
907
COLONIALISMO E/OU ANTICOLONIALISMO EM MAYOMBE DE PEPETELA
Derneval Andrade Ferreira
916
ECONOMIA CRIATIVA, PROJETOS CULTURAIS E PATRIMÔNIO: PRIMEIRAS
IMPRESSÕES DA CULTURA COMO RECURSO
Diana Costa Poepcke
928
A ATUAÇÃO DOS COMUNISTAS EM PERNAMBUCO DURANTE A
“EXPERIÊNCIA LEGAL” (1945-1947)
Diego Carvalho da Silva
938
PORQUE A UPPES SE UFANOU DESTE PAÍS
Diego da Silva Ramos
944
ENTRE ARQUIVOS E MEMÓRIAS: DOCUMENTOS E VESTÍGIOS DA DITADURA
CIVIL-MILITAR BRASILEIRA
Diego Reis
954
A QUESTÃO DEMOCRÁTICA NA ESTRATÉGIA DA RESISTÊNCIA ARMADA
CONTRA A DITADURA MILITAR: OS APORTES DO MARXISMO-LENINISMO
PARA A LUTA DE CLASSES NO BRASIL
Diego Grossi
964
A MORTE COMO INSTANTE DE VIDA: OS OBITUÁRIOS E A HISTORIOGRAFIA
SOBRE ALBERTO PASQUALINI EM UM “GESTO DE SEPULTURA”
Diego Orgel Dal Bosco Almeida
981
OPINIÃO PÚBLICA NA FRANÇA E NO BRASIL: UM ESTUDO COMPARATIVO
Dievani Lopes Vital
993
A MÚSICA EM MOVIMENTO: HIBRIDISMOS MUSICAIS NA OBRA DO GRUPO
JAGUARIBE CARNE
Diogo José Freitas do Egypto
1003
AS ELEIÇÕES DE 1860 NAS PÁGINAS D'O JEQUITINHONHA DE DIAMANTINA:
OS TEXTOS QUE PRECEDEM AS MEMÓRIAS DO DISTRITO DIAMANTINO DE
JOAQUIM FELÍCIO DOS SANTOS
Eder Liz Novaes
1015
A FREGUESIA DE SÃO MIGUEL DO IPOJUCA E A CONSOLIDAÇÃO DA
EMPRESA COLONIAL NA MATA ÚMIDA PERNAMBUCANA
Eduardo Augusto de Santana
1026
“MENINOS MÚSICOS DA BANDA DOS DESVALIDOS ENTRE BOMBARDINOS,
CLARINETES, FLAUTINS E RABECAS: A SUA PROFICIÊNCIA JÁ TEM SIDO
RECONHECIDA NESTA CORTE”
Eduardo Nunes Alvares Pavão
1035
WENCESLAU ESCOBAR E A OPOSIÇÃO FEDERALISTA NA PRIMEIRA
REPÚBLICA BRASILEIRA
Eduardo Rouston Junior
1043
O DECOTE, O CANHÃO E A FILA NEGRA – POSSIBILIDADES DE
INTERPRETAÇÃO DO BRASIL EM DIÁRIO ÍNTIMO DE LIMA BARRETO
Eliete Marim Martins
1053
AS IDENTIDADES COLETIVAS E OS VIAJANTES ESTRANGEIROS NO
PREOCESSO DE FORMAÇÃO NACIONAL BRASILEIRO
Elis Pacífico Silva
1064
ELITES CRIOULAS E CONTESTAÇÃO POLÍTICA EM LUANDA NO CONTEXTO
DA EXPANSÃO EUROPEIA
Elisa Dias Ferreira de Azevedo
1075
DAS FORMAS DE VER, COMPREENDER E ESCREVER: D. PEDRO II E A
MONARQUIA NAS PERCEPÇÕES POPULARES, UM ESTUDO ATRAVÉS DAS
CARTAS AO IMPERADOR
Elizabeth Albernaz Machado Franklin de Sant’Anna
1085
CAMINHOS PARA INVESTIGAÇÃO DO INTEGRALISMO EM GUARAPUAVA/PR
Eliziane Gava
1096
FORMIGAMENTO NA LINGUAGEM: JUVENTUDE E IMPRENSA ALTERNATIVA
NA CIDADE DE TERESINA NA DÉCADA DE 1970
Ernani José Brandão Junior
1106
CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES A PARTIR DA LUTA PELA ANISTIA:
TESTEMUNHOS E HISTÓRIA ORAL
Esther Itaborahy Costa
1117
E O NACIONALISMO ATRAVESSOU O ATLÂNTICO...
Evelyn Rosa do Nascimento
1128
A HEGEMONIA SUL-MINEIRA: DE SILVIANO BRANDÃO A WENCESLAU BRÁS
(1898-1918)
Fábio Francisco de Almeida Castilho
1138
A REVOLTA DO CONTESTADO (1912 - 1916) NA MÍSTICA DA POPULAÇÃO DO
VILAREJO DO TAQUARUÇU – SC
Fabio W. Blanc
1146
MEMÓRIA E A MORTE DO SUJEITO: UMA ABORDAGEM PÓS-MODERNISTA
Fabíola Amaral Tomé de Souza
1156
A LAUDATIO FLORENTINAE URBIS, DE LEONARDO BRUNI
Fabrina Magalhães Pinto
1164
CICLOPES”: RUI BARBOSA, O ACRE E O IMPERIALISMO
Felipe Rabelo Couto
1176
A ECLOSÃO DA REVOLUÇÃO MEXICANA E A REPRESENTAÇÃO DO
PORFIRIATO NAS DÉCADAS DE 1910-1920: UMA ANÁLISE DA OBRA “DE
PORFIRIO DÍAZ À FRANCISCO MADERO: LA SUCESIÓN DICTATORIAL DE
1911”
Fernanda Bastos Barbosa
1187
MOVIMENTOS SOCIAIS E ARQUIVO
Fernanda da Costa Monteiro Araujo
1197
HISTÓRIAS DE VIDA: UMA ANÁLISE DA RELAÇÃO ENTRE MEMÓRIA,
TRAJETÓRIA E IDENTIDADE
Fernanda Raquel Abreu Silva
1206
OS RECEITUÁRIOS DA CORTE PORTUGUESA SOB O PRISMA DO PROCESSO
CIVILIZADOR, SÉCULOS XVII-XVIII: NOTAS DE PESQUISA
Fernando Santa Clara Viana Junior
1215
“OS TROPEIROS NO SÉCULO XXI E O SENTIDO CONTEMPORÂNEO DESSA
ATIVIDADE: ESTUDO DE CASO NO VALE DO PARAÍBA E SERRA
DA MANTIQUEIRA”
Filipe Cordeiro de Souza Algatão
1224
A HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA E O LUGAR
DO HISTORIADOR
Flavia Renata Machado Paiani
1232
OUTUBRO, 1930: MEMÓRIAS DE VIRGÍLIO DE MELLO FRANCO SOBRE A
REVOLUÇÃO DE 1930
Flavia Salles Ferro
1243
ÁLBUNS DE FAMÍLIA: MODOS E MODAS NA BELO HORIZONTE DO CURRAL
DEL REY EM FINS DO SÉCULO XIX E INÍCIO DO SÉCULO XX
Francis da Silveira Firmo
1255
MULHERES DE FÉ
Prof. Dr. Francisco Agileu de Lima Gadelha
APRESENTAÇÃO
É com felicidade que chegamos ao primeiro volume dos anais da oitava edição da Semana de
História Política, pretendendo dar continuidade às questões que foram abordadas nos encontros
anteriores, bem como promover a pesquisa histórica e o diálogo. Tivemos o intuito de
aproximar todos os níveis acadêmicos dos pressupostos teórico-metodológicos, que compõem o
âmbito da História Política.
Esse projeto visa fomentar o debate com recém-doutores, prezando por divulgar a produção
historiográfica dos interessados e promover o intercâmbio de idéias entre os profissionais
(discentes e docentes) das mais variadas linhas e instituições. Desse modo, pretendemos
contribuir para a solidificação do Programa de Pós-Graduação, além de investir na produção
editorial da revista Dia-Logos, fruto imediato do desenvolvimento desta Semana de História.
Dentro de seu espírito de incentivo aos novos pesquisadores, a Semana de História inovou nesse
ano, no que tange a graduação. Abrimos espaço para que graduandos, com iniciação científica
ou em fase de conclusão, pudessem contribuir de maneira mais incisiva, se apresentando
oralmente na comunicação de trabalhos, em substituição aos painéis apresentados nos anos
anteriores.
Nossa iniciativa partiu da idéia de preencher os espaços entre graduação e pós-graduação, e da
valorização da produção dos trabalhos iniciais, os quais todos os anos eles participam no evento
com dinamismo e qualidade. Salientamos ainda que, na VIII Semana de História Política, os
resumos dos que se enquadraram na categoria de graduação, foram publicados em nosso
Caderno de Resumos.
O evento realizou-se nas dependências da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob a
direção de uma Comissão Organizadora, composta por discentes do Programa, que se liga à
Coordenação da Pós-Graduação em História, contudo, alcançou pesquisadores de todo Brasil.
Tivemos também algumas propostas de comunicação internacionais. O que sustenta a dimensão
e peso que tem nosso evento. A VIII Semana de História Política impulsionou pesquisadores de
diversos Programas do Estado, e também do país, a produzir e movimentar seus conhecimentos,
permitindo-os ganhar visibilidade, ampliar a temática e trocar experiências.
Foi de grande valia tal esforço dos discentes, junto à Coordenadoria do Programa, em
administrar a Semana, de forma que contribuísse para a construção de mais um espaço de
discussão e de apropriação do universo científico acadêmico, corroborando com a práxis de
pesquisa e de docência dos cursos de pós-graduação no Brasil.
A Comissão Organizadora gostaria de agradecer aos laboratórios vinculados ao Programa de
Pós-Graduação da UERJ, à Sub-Reitoria de Pós-Graduação e ao Fundo de Amparo á Pesquisa
do Estado do Rio de Janeiro pelo apoio ao evento, sem o qual este não seria possível.
Sobretudo, a Comissão Organizadora saúda os proponentes, estudantes de pós-graduação vindos
de universidades de todas as regiões do país. A Semana de História Política as UERJ existe por
eles, e para eles.
Comissão Organizadora (www.semanahistoriauerj.net)
VIII Semana de História Política
V Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade
ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2013
SILVESTRE REBELLO ENTRE O BRASIL E OS ESTADOS UNIDOS
(1824 – 1826)
Abner Neemias da Cruz1
Resumo:
Este trabalho visa pensar na diplomacia brasileira para com os EUA entre os anos de
1824 a 1826, o que se reflete nas políticas, ações e medidas tomadas pelo governo
imperial do Brasil para com o governo estadunidense e na atuação do representante
brasileiro Silvestre Rebello. A partir da documentação trocada entre Rebello e a
Secretaria de Negócios Estrangeiros, em conjunto com a bibliografia especializada,
pretendemos entender especificidades da relação entre Brasil e EUA, como também da
atuação do diplomata.
Palavras chave: Silvestre Rebello, Primeiro Reinado, relações Brasil – EUA.
Abstract:
This job aims to think about the economical and politics relations between Brazil and
United States into the years of 1824 and 1826, attempting to the politic points, actions
and policies executed by the Brazilian government towards the United States and also
the Brazilian diplomatic Rebello actuation. From the documents exchanged by Rebello
and US government as well the papers about Rebello this job purposes to study the
between Brazil and USA.
Keywords: Silvestre Rebello, The First Reign, relations Brazil and United States.
Em 1824, o Brasil imperial de D. Pedro I encontrava-se em processo de formação e
organização. Desde 1822, medidas políticas eram tomadas com o intuito de cristalizar o
recém-instituído governo central brasileiro. Assim sendo, no final de 1823, D. Pedro I
instituiu uma secretaria específica para as relações exteriores, afinal, a política externa
era uma das prioridades de seu governo naquele momento. Conseguir reconhecimento
externo e estabelecer laços com outros estados possibilitaria ao Império brasileiro uma
relativa estabilidade interna e externa, pois encontramos nesse período uma relação
intrìnseca entre essas duas esferas do polìtico; aliás, como escreveu Pierre Milza: ―Não
há diferença de natureza, tampouco separação estanque entre o interior e o exterior, mas
interações evidentes entre um e outro, com, entretanto uma primazia reconhecida do
1
Mestrando em História do PPGH da UNESP – Franca sob a orientação da Profa. Dra. Marisa Saenz
Leme. Bolsista Capes. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 98145-5714. Endereço para
correspondência: Rua: Flor de Maio. Nº 9 Cond. Ouro Verde. Cep:14.460.000 -Cristais Paulista, SP.
14
VIII Semana de História Política
V Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade
ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2013
primeiro sobre o segundo[...]2‖. São essas interações entre o interno e o externo
apontadas por Milza que de certa forma permearam o contexto político brasileiro nos
idos da década de 1820.
Em consonância com o cenário político brasileiro da época no qual as relações
externas foram adquirindo relevância para o governo imperial; foi criada em fins de
dezembro de 1823 a Secretaria de Estado de Negócios Estrangeiros, sob os cuidados de
Francisco Villela Barboza, o marquês de Paranaguá. A criação de uma instituição para
cuidar apenas dos negócios estrangeiros com um aparato administrativo que incluía
agentes consulares diplomáticos aponta a preocupação do governo central em relação à
administração desses assuntos3. Destarte, entre os membros diplomáticos enviados para
Londres, Paris, Viena e Estados da Alemanha encontrava-se Silvestre Rebello, que teve
como destino a capital estadunidense, Washington.
Silvestre Rebello era um homem de meia idade quando foi designado ao cargo
de representante plenipotenciário do Brasil nos Estados Unidos da América em janeiro
de 1824. Novato na função que desempenharia pelos próximos seis anos, Rebello tinha
pela frente o desafio de alcançar os objetivos propostos por seu superior, Luis Carvalho
e Melo. Ainda no Brasil em janeiro de 1824, um ofício assinado por Luís José de
Carvalho e Mello instruía Rebello e delineava os principais objetivos almejados pelo
governo central brasileiro em relação à aproximação com o governo estadunidense. As
três finalidades principais listadas a Silvestre Rebello eram: 1. Obter o reconhecimento
da independência do Império brasileiro; 2. Instaurar um pacto de defesa com
Washington e; 3. Adquirir brigues e fragatas. Todavia, o reconhecimento da
independência era o alvo central e indispensável para que os outros objetivos fossem
almejados, por tal razão Rebello foi instruído a persuadir o governo estadunidense:
[...] Para convencer este governo do particular interesse que lhe resulta em
reconhecer prontamente a nossa independência, bastará trazer a lembrança o
que tantas vezes se tem dito e escrito sobre o perigo que corre a América, se
na sua atual posição não concentrar-se em si mesma e reunir-se toda para
opor uma barreira às injustas tentativas da velha e ambiciosa Europa [...], [...]
no caso de não achar o Brasil o apoio e a coadjuvação que necessita no
2
MILZA, Pierre. ―Polìtica Interna e Polìtica Externa‖. Tradução de Dora Rocha. In: Por Uma História
Política. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1996. p. 370.
3
CASTRO, F. M. O. História da Organização do Ministério das Relações Exteriores, Brasília: Ed. UNB,
1983. p. 30 et. seq.
15
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próprio continente Americano, se veria obrigado a ir procurá-lo em alguma
potência da Europa4.
Além dessa alegação, Rebello deveria mostrar ao governo estadunidense a
legitimidade da causa brasileira em relação ao movimento independentista, o apoio que
a sociedade brasileira concedia a D. Pedro I, as ―proximidades históricas‖ existentes
entre ambos os estados. Contudo, persuadir o governo de James Monroe consistiu em
um desafio. Sabe-se que a doutrina Monroe, proclamada em dezembro de 1823,
contribuiu para que os Estados Unidos granjeassem poder e influência entre os jovens
estados constituídos nas Américas5, todavia, pode-se pensar que serviu ao Brasil como
instrumento de persuasão para que o governo de Washington reconhecesse a
independência brasileira6.
Se os objetivos do corpo político imperial, através da Secretaria de Estado de
Negócios Estrangeiros, se mostravam claros e havia um movimento interno em prol
dessas metas, pode-se pensar que os Estados Unidos também possuíam objetivos e
estratégias para conquistá-las. A cultura expansionista engendrada no imaginário
estadunidense em consonância com um ideal que preconizava o ―destino manifesto‖
atuou como força motriz até mesmo nas políticas adotadas para com o exterior e
estimulara as medidas tomadas pelo governo de Washington para alcançar suas metas.
Os ideais políticos e econômicos dos EUA na década de 1820 estavam em constante
perigo; ameaçados de um lado pelos ideais conservadores que pareciam ressurgir na
Europa e, por outro lado, pelas grandes potências europeias que lutavam para manter o
poder nas Américas, afinal, elas ofereciam riscos não só às pretensões econômicas, mas
à instituição política estadunidense. Desse modo, o governo dos Estados Unidos adotou
uma postura ―protecionista‖ em relação às Américas e de apoio aos novos governos
instituídos.
Nos jogos diplomáticos compostos por múltiplos objetivos e interesses de ambas
as nações, Rebello optou por uma postura cordial e amigável apontando similaridades
4
MELO, Luìs José de Carvalho. ―Despacho, 31 de janeiro de 1824‖. In: Brasil – Estados Unidos 1824 –
1829. Brasília, Fundação Alexandre de Gusmão, 2009. p.18.
5
LIMA, Oliveira. História Diplomática do Brasil: O Reconhecimento do Império. Garnier, Livreiro
Editor, Rio de Janeiro; Paris. 1901. p. 45.
6
No despacho enviado a Silvestre Rebello em 31 de janeiro de 1824 nota-se a instrumentalização por
parte do governo brasileiro de argumentos oriundos de uma matriz política estadunidense pautada nos
ideais partilhados na doutrina Monroe com o intuito de conquistar o reconhecimento do império.
16
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entre os dois estados e mostrando ao governo estadunidense as vantagens que esse
obteria reconhecendo o Brasil 7. Silvestre Rebello, logo que chegou aos Estados Unidos,
visitou Charles Carrol - um veterano de oitenta e sete anos e um dos grandes
personagens da independência estadunidense - com o intuito de saber o que Carrol
concebia acerca da independência brasileira e quais as principais divergências políticas
entre os dois estados na opinião do ilustre senhor. Com as instruções de Luis José
Carvalho e Melo em conjunto com as percepções da conversa encabeçada com Carrol e
a análise dos documentos acerca da negociação do reconhecimento da independência da
Colômbia por parte dos Estados Unidos8, Rebello construiu argumentos para dialogar
com o corpo político estadunidense a questão da independência brasileira. Entrementes,
Rebello ainda possuía um último recurso para defender sua causa, ou seja, a utilização
das concepções políticas de Monroe em relação à Europa. Nesse sentido, o encarregado
plenipotenciário brasileiro narra uma conversa travada entre ele e o Secretário de Estado
John Quincy Adams em meados de abril de 1824:
[...] O abaixo assinado lembra a S. Exa. que os governos inglês e francês
pretendem, e com muita atividade, o ter influência no gabinete do Brasil: para
este fim, eles têm proposto reconhecer o Império [...] É claro que o governo
dos Estados Unidos tem interesse palpável em obstar toda influencia europeia
na América e o melhor sistema a seguir parece ser a presença de agentes
diplomáticos americanos, quanto antes, nas cortes dos diferentes povos que
compõem a grande família americana, a fim de que se forje a cadeia política
desta parte do globo, por intervenção e com auxílio da nação mais antiga que
cá existe9.
A partir dessa postura de negociação e dessa rede de argumentos após diversas
reuniões entre Rebello e Adams, o Império brasileiro foi reconhecido como uma
instituição política pelo governo de Washington em maio de 1824. Contudo, esse era
apenas o primeiro passo a ser dado. Após conquistar o reconhecimento, travar uma
aliança defensiva com os Estados Unidos era primordial aos interesses brasileiros.
Rebello haveria de passar os anos que se seguiram negociando entre outras coisas a
7
SOUSA, Otávio. Tarquínio de. A Vida de D. Pedro I – História dos Fundadores do Império. Coleção
Documentos Brasileiros. Rio de Janeiro: Olympio, 1972. p. 625.
8
A Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros disponibilizou a Silvestre Rebello cópias de
documentos dos enviados da Colômbia em Washington quando eles buscavam o reconhecimento da sua
independência por parte do governo dos Estados Unidos. MELO, Luìs José Carvalho. ―Despacho 31 de
janeiro de 1824‖. In: Brasil – Estados Unidos 1824 – 1829. Brasília, Fundação Alexandre de Gusmão,
2009.
9
REBELLO, José Silvestre. ―Ofìcio, 26 de Maio de 1825‖. In: REBELLO, José Silvestre. Brasil –
Estados Unidos 1824 – 1829. Brasília, Fundação Alexandre de Gusmão, 2009. p.94.
17
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criação de uma liga defensiva e ofensiva entre ambos os estados, contudo, o governo de
James Monroe se mostrava apático e contrário a criação dessa aliança. Após várias
tentativas de se estabelecer esse acordo, Rebello escreveu à Secretaria de Estado dos
Negócios Estrangeiros: ―Sobre o tratado por mim proposto e instado, escrevi a V. Exa. o
que se passou entre mim e este governo [...] Este governo quer, com todos os outros
governos americanos, o que já fez com a Colômbia: comércio e não alianças que o
possam comprometer, este é o seu alvo único‖ 10.
Se uma aliança defensiva não foi firmada, por outro lado, a compra de brigues e
fragatas foi parcialmente efetuada. Conforme se observa na documentação trocada entre
Rebello e a Secretaria de Estado de Negócios Estrangeiros entre janeiro de 1824 a
outubro de 1826; a negociação inicial de vários brigues e fragatas foi suspensa, porém o
governo imperial brasileiro manteve a aquisição de duas fragatas11. No que tange à
compra das fragatas, houve certo desentendimento entre Rebello e o governo central
brasileiro principalmente em relação ao atraso do pagamento das fragatas por parte do
Império brasileiro. Esses desacordos entre o diplomata e o governo central brasileiro
contribuíram significativamente para que Rebello renunciasse ao cargo em meados de
1826, não obstante, resolveu-se o incidente e cancelou a demissão de Rebello.
É preciso salientar que a incumbência do personagem central deste trabalho não
se limitava aos três objetivos já aludidos, afinal, outras atividades foram traçadas,
complementadas ou surgiram com o passar do tempo, nesse sentido, Rebello também
deveria se preocupar em: constatar se existiam ligações entre movimentos separatistas
que emergiam no Brasil com pessoas, grupos ou instituições políticas estadunidenses;
manter um bom convívio com representantes de outros países residentes nos EUA com
a finalidade de obter informações a respeito dos seus respectivos Estados; sondar quais
as relações travadas entre os Estados Unidos e Portugal; suavizar possíveis choques
10
REBELLO, José Silvestre. Ofício; Rio de janeiro, 26 de agosto de 1825. In: REBELLO, José Silvestre.
Brasil – Estados Unidos 1824 – 1829. Brasília, Fundação Alexandre de Gusmão, 2009. p. 275.
11
Para maiores informações consultar: despachos ―31 de janeiro de 1824‖; ―17 de setembro de 1824‖;
―12 de abril de 1825‖; ―07 de junho de 1825‖; ―11 de maio de 1826‖; ―6 de junho de 1826‖; ―17 de
agosto de 1826‖; ―23 de outubro de 1826‖. Ofìcios: ―24 de dezembro de 1824‖; ―25 de maio de 1825‖;
―03 de fevereiro de 1825‖; ―26 de fevereiro de 1825‖; ―26 de abril de 1825‖; ―26 de novembro de 1825;
26 de setembro de 1825; 26 de dezembro de 1825‖; ―07 de fevereiro de 1826‖; ―04 de março de 1826‖;
―05 de abril de 1826‖. In: Brasil – Estados Unidos 1824 – 1829. Brasília, Fundação Alexandre de
Gusmão, 2009.
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entre Brasil e EUA conservando continuamente uma relação ―amistosa‖ e de
cooperação; comunicar ao governo central brasileiro os principais acontecimentos
políticos nos EUA; recrutar estadunidenses para servirem como marinheiros às forças
militares do Brasil na província de Montevidéu 12; informar ao governo central de
Washington a posição brasileira em relação aos conflitos na região da Banda Oriental.
Conforme se observa através dos dados coletados e das fontes analisadas,
Silvestre Rebello se ocupou das mais diversas atividades relacionadas à diplomacia, no
entanto, é preciso enfatizar que o diplomata lidou em situações ―delicadas‖ em relação
às divergências de interesses existentes em alguns casos. Por exemplo, em 1825, o
estadunidense James Rodgers foi detido pelo governo brasileiro sob a alegação de
envolvimento na Confederação do Equador. A prisão de Rodgers gerou um mal estar e
impasse entre ambos os Estados, isto posto, após as repercussões do caso e dos pedidos
de um político do alto escalão, Rebello em nome da política da cordialidade intercedeu
ao governo brasileiro:
Rodgers, que foi aprisionado em Pernambuco; a mim veio-me pedir um
membro do Congresso para que eu rogasse por ele; nesta distância, tudo o
que posso fazer é lembrar a V. Exa.que ele pertence a uma muito boa família
em Nova York, que a conversão faz às vezes muito bem e que se S. M. I.
quiser pode fazer uma graça airosa13.
Ainda assim, Rodgers foi executado e coube a Rebello mais uma vez a tarefa de
prestar explicações ao governo estadunidense. Além de cuidar da política externa para
com os Estados Unidos, vale ressaltar a responsabilidade de Rebello por boa parte da
organização da estrutura administrativa e burocrática da representação diplomática nos
Estados Unidos, afinal, o Império brasileiro estava em processo de formação interna.
Coube ainda, ao encarregado plenipotenciário, nomear e arranjar entre outras coisas,
mecanismos de controle fiscal em relação aos navios que saíam dos Estados Unidos
12
Recrutar homens oriundos de outros países era bem habitual naquela época. Lembrando que esse
alistamento estava ligado à retirada das forças militares portuguesas da região da província da Cisplatina.
MELO, Luìs José Carvalho e. ―Despacho 22 de julho de 1824‖. In: Brasil – Estados Unidos 1824 – 1829.
Brasília, Fundação Alexandre de Gusmão, 2009. p. 25 et. seq.
13
REBELLO, José Silvestre. ―Ofìcio 03 de fevereiro de 1825‖. In: Brasil – Estados Unidos 1824 – 1829.
Brasília, Fundação Alexandre de Gusmão, 2009. p.209.
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com destino ao Brasil. De tal modo, em 1824, nomeou cinco homens para ocuparem os
cargos de vice-cônsules do Brasil, sob a responsabilidade de Rebello14.
Do alvorecer de 1824 a meados de 1826 Rebello esteve muito atarefado, mas, os
anos que viriam pela frente, trariam novos problemas e desafios para o diplomata, tanto
no âmbito da diplomacia para com os Estados unidos, quanto no interior da Secretaria
de Negócios Estrangeiros. Deste modo, aqueles primeiros anos no qual Rebello esteve
entre o Brasil e os Estados Unidos da América, contribuiu para que adquirisse
experiência. Entre despachos e ofícios, negociações e debates, estratégias e intercessões,
Rebello, um amante das letras e da política, protagonizaria parte da história das relações
internacionais brasileiras e também da história do político. Rebello se perpetuaria na
história política do império como um dos muitos homens letrados que contribuíram para
a formação do aparato político do Brasil imperial.
Compreender a trajetória de Rebello nesse período contribui para as reflexões no
campo da história e da relação existente entre protagonismo individual, história coletiva
e história das ideias políticas, afinal, como afirmou Philippe Levillain sobre a história
biográfica: ―Ela é o melhor meio, em compensação, de mostrar as ligações entre o
passado e o presente, memória e projeto, indivíduo e sociedade e de experimentar o
tempo como prova da vida‖15.
Por outro lado, em relação às diversas interações que ocorreram entre Brasil e
Estados Unidos, nesses primeiros anos, parece-nos plausível a perspectiva de
Hildebrando Accioly para pensarmos no período de 1824 a 1826. Accioly propõe que o
Império brasileiro se esforçou muito mais para concretizar a diplomacia com os EUA se
comparado ao governo de James Monroe, até mesmo porque o Brasil tinha muito a
ganhar com esses laços entre os dois Estados16. O reconhecimento da independência
brasileira por parte do governo de Washington foi seguido de outras negociações, como
14
Foi instituído um sistema de controle alfandegário que dava uma espécie de certificado para os navios
comerciais estadunidenses com destino ao Brasil. Nessa ocasião, foram nomeados: Christopher Nealle
para Alexandria, Edward Johnson Coale para Baltimore, James Morrell para a Filadélfia, Herman Bruen
para Nova Yorque e Bryant P. Filden para Boston. REBELLO, José. Silvestre. ―Ofìcio, 30 de agosto de
1824‖. In: Brasil – Estados Unidos 1824 – 1829. Brasília, Fundação Alexandre de Gusmão, 2009. p. 121.
15
LEVILLAIN, Philippe. ―Os protagonistas: Da biografia‖. In: Tradução de Dora Rocha. Por Uma
História Política. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1996. p. 176.
16
ACIOLLY, Hildebrando. O Reconhecimento do Brasil pelos Estados Unidos da América. São Paulo:
Cia. Ed. Nacional, 1945. P.61 a 65.
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a proposta brasileira da formação de uma aliança defensiva e a criação laços comerciais
que, por sua vez, causaram impactos nas relações entre os dois países para além da
década de 1820.
Existe uma relação intrínseca entre homem e sociedade. As ações de um
indivíduo são insubstituíveis do ponto de vista subjetivo, pois não há a possibilidade de
reproduzir a experiência individual; porém, são substituíveis sob a ótica de um contexto
maior, afinal, as sociedades se adaptam criando algum mecanismo de substituição das
pessoas ao longo do tempo. É a partir desse viés que enxergamos o diplomata Rebello:
um homem que está dentro dessa dialética onde se cruzam a característica individual de
ser insubstituível, com a outra característica inerente ao homem, ser dispensável.
A relação existente entre a política interna e externa no Primeiro Reinado era
muito marcante, dessa maneira, as relações diplomáticas engendradas com os EUA
causaram um impacto positivo para estabilidade interna brasileira, ao mesmo tempo em
que gerou visibilidade externa ao Império naquele momento. Ainda que as principais
relações comerciais e políticas do Brasil, na época, se direcionassem às grandes
potências europeias, não podemos desconsiderar a relevância dos laços estabelecidos
com os Estados Unidos.
O reconhecimento da Independência brasileira pelos EUA abriu caminhos para a
diplomacia entre os dois Estados, e, gerou posteriormente acordos comerciais e
políticos. É indispensável pensarmos no diplomata Rebello, em suas práticas políticas,
para entendermos a diplomacia entre Brasil e Estados Unidos nessa época. Suas
sugestões, ações e práticas não podem ser deixadas de lado ao pensarmos no escopo
desse estudo. A política externa brasileira não estava muito bem definida, o que
possibilitava ao agente diplomático um alto grau de atuação dentro das relações
diplomáticas, porém esse mesmo fator também prejudicava em alguns momentos, pois a
falta de uma política externa delineada fazia com que muitas das decisões tomadas se
fizessem de forma experimental.
Pode se dizer que havia uma polìtica externa de ―ensaio e erro‖, devido à falta de
tradição diplomática brasileira, todavia essa mesma diplomacia do ―ensaio e erro‖
garantiu experiências no âmbito diplomático, e contribuiu para o surgimento de culturas
políticas no seio da Secretaria de Estado de Negócios Estrangeiros em relação à política
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externa. Rebello continuou nos Estados Unidos por quase todo o restante da década de
1820 na função de diplomata, vivenciou períodos de calmaria e tensão entre os dois
Estados, ao mesmo tempo em que novas questões diplomáticas surgiam. Este estudo
não serviu apenas para entendermos melhor a problemática suscitada no começo do
trabalho. A partir disto, podemos ir além e traçar novos problemas que necessitam ser
compreendidos onde se destaca: as especificidades das práticas políticas de Silvestre
Rebello; as repercussões das ações diplomáticas de Rebello no governo central
estadunidense; as nuances da relação existente entre o diplomata e a Secretaria de
Estado de Negócios Estrangeiros. Os caminhos percorridos por Rebello e pela a
diplomacia brasileira para com os Estados Unidos nesse período ainda nos intriga
devido suas muitas especificidades e nuances, o que nos move a prosseguir com os
estudos acerca dessa faceta da história política brasileira, nesse sentido, o caminho até
aqui traçado, não satisfaz os nossos anseios pelo entendimento do tema, obrigando-nos
a trilhar novas veredas em busca da compreensão da temática.
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PELA MORALIZAÇÃO DO TRABALHO E PROSPERIDADE DA
INSDUSTRIA NACINAL: A FUNDAÇÃO DA ESCOLA AGRÍCOLA UNIÃO
INDÚSTRIA (1864-1884).
Adalberto Alves de Mattos17
Resumo:
A Escola Agrícola União Indústria criada em 1869 foi o resultado de uma série de
políticas e discussões que objetivavam a modernização da agricultura nacional, o
contexto de mudanças impulsionou a criação de vários centros especializados em
agricultura entre 1850 e 1860, como os Imperiais Institutos de Agricultura, Fluminense,
Baiano, Pernambuco. Nosso objetivo é estudar a parcela de contribuição da primeira
Escola Agrícola de estudos Clássicos do Brasil, revelando suas estratégias de afirmação
e políticas de promoção da ciência agrícola.
Palavras-chave: Companhia União Indústria; Estrada União Indústria; Escola Agrícola União
Indústria
Abstract:
The Agricultural School Union Industry established in 1869 was the result of a series of
policies and discussions that aimed to modernize the domestic agriculture, the context
changes spurred the creation of several centers specializing in agriculture between 1850
and 1860 as the Imperial Institutes Agriculture , Fluminense, Bahia, Pernambuco. Our
goal is to study the contribution portion of the first School of Agricultural Studies
Classics Brazil, revealing their strategies for affirmation and promotion policies of
agricultural science.
Keywords: Company Industry Union, Union Road Industry, Agricultural School Union
Industry
―A inauguração desta Escola, devida aos perseverantes esforços da
Companhia União Indústria e da sua Diretoria, desperta com toda a razão
geral contentamento. Tão nobre exemplo, imitado nas outras províncias, há
de concorrer para a moralisação do trabalho de nossa principal indústria e sua
maior prosperidade‖ (Imperador Dom Pedro II, inauguração da Escola
Agrícola União Indústria, 1869).
Ao iniciarmos os levantamentos de pesquisa como habitualmente o metiê nos inspira,
uma série de questões são elencadas ao trabalho com o objetivo de serem minimamente
17
Licenciado em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora em 2012, Discente do programa de
pós-graduação da UFJF/ HISTÓRIA 2013, modalidade mestrado, linha de pesquisa: ―Narrativas, imagens
e sociabilidades‖ projeto sob orientação Professor (a) Dra. Maria Fernanda Vieira Martins co-orientador
Professor Dr. Alexandre Mansur Barata. Endereço para correspondência: Rua Ademar Ferreira Leite, 222
Bairro: Santa Cândida, Juiz de Fora - MG CEP: 36061-460 E-mail: [email protected] Fone: 323212-9351.
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esclarecidas pela empiria, uma das primeiras questões que me fora colocada nesse
processo, foi exatamente uma indagação sobre a autoria do projeto, uma vez que a
execução e autoria se diferem em suas instancias intelectuais. Lançando-se assim a
primeira pergunta ―A Escola Agrícola União Indústria é um projeto de um homem ou
uma política de Estado?‖ ao desenvolver a problemática, outras questões foram
surgindo e percebemos que para entender a fundação dessa Escola Agrícola era preciso
conhecer o papel da ―Companhia União Indústria‖ buscando sua origem, seu sentido e
sua contribuição no período que compreende os anos de 1852 a 1869. Encontramos
registros de atividade dessa companhia até os anos de 1884, neste trabalho iremos
analisar um recorte mais emblemático por questões de espaço, que abrange a época de
fundação da companhia 1852, até a inauguração da ―Escola Agrícola União Indústria‖
em 1869. A trajetória dessa Companhia ultrapassa esse recorte e vão até os anos de
1884, as informações relativas ao período posterior a delimitação desse artigo será
contemplada em outro momento, em outra oportunidade. A trajetória da ―Companhia
União Indústria‖ nos chama atenção para aprofundarmos as pesquisas no intuito
entendermos de forma mais clara qual foi o seu papel, o seu sentido, sobretudo a sua
contribuição diante do contexto em que se inseria, ao realizarmos uma série de leituras
entre fontes primárias e secundárias observamos que de fato, pouco se sabia de sua
atuação junto ao governo Imperial, quando referida pelo o governo da província, os
relatos apontam para uma desconfiança por parte dos legisladores a respeito de sua
natureza jurídica. Nossa proposta inicialmente é elucidar o contexto de sua formação e
os principais contratos firmados por essa Companhia junto ao Governo Imperial. Uma
das primeiras explicações de seu surgimento é intrínseca promulgação do código
comercial, lei Nº 556 de 25 de Junho de 1850, momento em que governo imperial
amplia as possibilidades de negócios no mercado interno até então pouco explorado,
resultando em uma nova política de desenvolvimento econômico Brasileiro, como
aponta (BASILE, 2000, pág.249).
―Enquanto de 1830 a 1850 haviam autorizado o funcionamento de apenas
dezessete companhias, deste último ano até 1860 este número subiu para
cento e cinqüenta e cinco, destacando-se aí os setores bancário e de serviços
públicos de infra-estrutura urbana. Daí a importância da regulamentação das
sociedades anônimas feita pelo código‖
As novas Companhias disputavam concessões, nos mais diversos seguimentos, e
era grande o número de interessados, uma vez que boa parte dos vultosos capitais
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deslocados do comércio internacional de cativos, proibido pela ―Lei Eusébio de Queiroz
de 1850‖ foram arruinados. Assim, uma cadeia de negócios fora desmontada dando
lugar a novas e necessárias formas de empreendimento, dessas recém criadas empresas,
muitas adquiriram privilégio exclusivo de exploração, fabricação ou construção durante
décadas. Esse tipo de negócio que associava Capitais de iniciativas privadas e políticas
de desenvolvimento passaria então após o ano de 1850, a servirem como uma extensão
do braço administrativo e burocrático da máquina estatal, pois os mesmos estavam
subordinados a políticas e projetos desenvolvidos pelo poder executivo que impunha
restrições e limitações aos contratados pelo Governo Imperial. Levando-se em
consideração alguns aspectos como a importância econômica da região das Minas
Gerais e sua produção de gêneros voltados para o abastecimento interno, no ano de
1852, fora assinado a concessão para a construção da primeira e mais moderna estrada
de rodagem no país a sua época, rodovia que iria favorecer o transporte de mercadorias
e pessoas entre a região produtora e a corte como observa (FRAGOSO, 2000) Minas
Gerias se especializou no atendimento do mercado interno, com ênfase nas regiões
sudeste, principalmente da corte, segundo o autor essa condição levou o enriquecimento
e o surgimento de um empresariado mais dinâmico e com altas reservas de capitais a
serem empregados em inovações. A ―Companhia União Indústria‖, fundada pelo
empresário, Diretor Presidente Sr. Mariano Procópio Ferreira Lage, com sede
administrativa na Corte, Rua da Quitanda, Nº 139, Vice Presidente Sr. Camillo Maria
Ferreira Armondes, Barbacena e Secretário Dr. José Machado Coelho de Castro, fixado
na Rua São Pedro, 46, assina o primeiro contrato em 07 de agosto de 1852, junto ao
governo, recebendo a concessão para iniciar a construção da referida estrada de
rodagem ligando à província de Minas Gerais a província do Rio de Janeiro, decreto 18
Imperial Nº 1.031. Essa obra de infra-estrutura é concluída no ano de 1861 e após
alguns anos diante das dificuldades técnicas e financeiras Mariano Procópio solicita ao
governo Imperial a modificação do contrato, segundo (STELLING, 1979) mesmo com
o parecer desfavorável a modificação do contrato com o governo imperial o
18
BRASIL, Almanak da corte e Província do Rio de Janeiro. Almanak Laemmert, Rio de Janeiro, 1858.
Tipografado. Sobre o contrato firmado com o governo Imperial observa-se o primeiro ato patriótico de
Mariano Procópio: ―Atendendo ao que lhe representou Mariano Procópio Ferreira Lage, pedindo
faculdade para construir, melhorar e conservar, à sua própria custa, duas linhas de estrada que começando
nos pontos mais apropriados à margem do rio Paraíba, desde a vila deste nome até ao porto Novo do
Cunha, se dirijam uma até a barra do Rio das Velhas, passando por Barbacena, e com ramal desta cidade
para São João Del Rei e outra pelo municìpio de Mar de Espanha, com direção à cidade de Ouro Preto‖.
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comendador consegue o deferimento de seu pedido, modificando seu contrato com o
governo e passando a propriedade da estrada para o estado.
Mariano Procópio certamente era um comerciante de muito trânsito com o
Imperador que não negou seu pedido de revisão de contrato, apesar de algumas
clausulas deste impor ao comendador uma série de obrigações como conservação por 15
anos da estrada e ramais que forem construídos, sujeitando-se a fiscalização do governo,
continuar na direção da colônia Dom Pedro II sem qualquer auxílio do governo
mantendo o culto católico e protestante até que a mesma se emancipe. Mas o artigo que
se torna enfático neste trabalho se refere:
―Clausula 4º A estabelecer dentro do prazo de dois anos e em contiguidade
com á colônia D. Pedro II, cinquenta famílias de colonos nacionais com
propriedade livre, e nas mesmas condições do contrato feito com os colonos
alemães, vendendo-lhes terras por um preço que não exceda o seu custo,
inclusive as despesas relativas a caminhos coloniais, medição dos lotes, e
arranchamentos provisórios; e bem assim a fundar e manter uma escola
prática de agricultura onde se ensinem gratuitamente os métodos
aperfeiçoados de lavoura e criação de animais domésticos”. (Grifo nosso,
Relatório Cia União Indústria, 1864).
A Escola Agrícola União Indústria não foi o ponto de partida nas intenções de
contrato da Companhia, porém na investigação sobre o sentido dessas empresas que
foram criadas após 1850 encontramos uma definição que pode nos ajudar a
compreender essa relação com o novo:
―De acordo com o parecer das secções reunidas dos negócios do Império, e
da fazenda do conselho de Estado, o governo imperial resolveu permitir ás
compahias, e sociedades anonymas do Gaz, Ponta da Area, e Mauá,
estabelecidas na corte, e província do Rio de Janeiro, o traspasso á
companhias estrangeiras, estabelecidas fora do Império, dos direitos, e
obrigações, que lhes pertencem, debaixo das condições que serão declaradas,
no acto da concessão, segundo a natureza, e as circunstâncias de cada
companhia. Assim auferiremos as importantes vantagens que provirão não só
da introdução de machinas, e aparelhos aperfeiçoados, e principalmente de
trabalhadores intelligentes, e moralisados, que virão estabelecer escolas
práticas para os nossos concidadãos, mas também da mobilisação dos
capitães fixados nestas emprezas, os quaes irão fecundar novas industrias‖
(Relatório Ministério da Agricultura, 1861).
A primeira proposta de se estabelecer uma Escola Agrícola a partir da iniciativa
do governo Imperial fora construída e apresentada pelo ―Imperial Instituto Baiano de
Agricultura no dia 18 de novembro de 1860‖, no projeto o objetivo de se instalar
naquela província uma Escola Agrícola que se dedicaria ao ensino prático e teórico das
ciências agrícolas podendo os alunos dedicarem-se somente ao ensino prático de
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agricultores ou prosseguirem nos estudos teóricos para se formarem professores
especialistas, ao que tudo indica devido as dificuldades financeiras a inauguração dessa
Escola só ocorrerá no ano de 1875. A ―Escola da Companhia União Indústria‖ começa
sua trajetória no ano de 1864, quando Mariano Procópio solicita modificações no
contrato assinado por sua companhia junto ao governo Imperial, na troca de favores o
Império passaria a administrar a Estrada de Rodagem e quitava o empréstimo contraído
por Mariano para execução das obras da estrada.
Encontramos o primeiro registro de estudos feitos por Mariano Procópio Ferreira
Lage e sua companhia 1867, quando o comendador integrou a comitiva Brasileira
enviada a Paris para exposição Universal do mesmo ano, em suas reflexões registradas
no relatório da comitiva manifesta-se uma preocupação com o mercado interno de
gêneros alimentícios no Império. A tarefa designada ao diretor presidente da companhia
União Indústria se referia à pesquisa de animais domésticos e o mesmo se dedicou a
feitura de relatórios. Com o olhar de comerciante e investidor Mariano Procópio visitou
exposições na França e Inglaterra, afirmou ter visitado também escolas especializadas
no ensino agrícola.
Mariano Procópio em seus escritos apresenta-nos uma consciência relativa sobre
a situação da Indústria nacional e coloca em discussão questões culturais que impediam
o progresso da Indústria nacional. Uma das críticas estava na mentalidade dos criadores
brasileiros frente ao melhoramento de espécies animais 19. Além das alternativas de
importação de espécies aperfeiçoadas Mariano Procópio Ferreira Lage propõe algumas
medidas que serviriam para uma mudança de mentalidade nos criadores Brasileiros.
Foram analisadas na exposição animais como: Galinha, peru, pombos, coelho, suínos,
carneiros, gado e cavalo. A análise partia da comparação dos já existente no Brasil e os
potencialmente interessantes de se introduzirem no país observando alguns aspectos
19
BRASIL, Exposição Universal de Paris. Comitiva Imperial Brasileira. Relatório. Rio de Janeiro, 1867.
Relatório Tipografado. ―Sabido é que sem progresso na agricultura dificilmente se pode alcançar
melhoramento notável das raças de animais, cuja alimentação concorre para esse fim com maior quota do
que o simples cruzamento. Pretender pois só pela introdução no Brasil de animais de raça aperfeiçoadas
na Europa conseguir-se o melhoramento desejado, sem dar-lhes alimento abundante e suculento, é tentar
sacrifícios em pura perda, com infrutíferos tem sido a maior parte dos que se tem feito até o presente.
Antes de tudo fique bem estabelecido este ponto da questão: a importação para o Brasil de animais de
raça aperfeiçoadas, sem a consequente mudança no sistema de nutri-los e pensa-los (como atualmente
praticão os nosso criadores), é tentativa inútil: a não haver tal mudança, só obteremos os animais que
temos, e que vivem da alimentação de ervas e capim que podem apanhar nos campos, expostos a toda a
sorte de intempéries‖
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como: Facilidade de aclimatação, cuidados com a nutrição, qualidade da carne quando o
caso, tempo de engorda, quantidade de ovos no caso de aves, fadiga no trabalho e
produção de leite no caso do gado e principalmente mérito na relação de consumo e
custo de produção. Mariano adverte que o cruzamento com essas espécies com destreza
nos requisitos acima citados serviram para o desejado melhoramento combinando
caracteres desejados de nossas espécies. Algumas espécies têm um excelente
desempenho perante as demais de outros países como o caso do peru que é de origem
Inglesa e bem aclimatada no Brasil. Uma questão levantada alimenta novos horizontes,
Mariano ao se referir das espécies suínas lamenta:
―Desejaria não tratar deste gênero de animal, que considero uma das causas
principais da devastação a que foram reduzidas as excelentes matas das
províncias do Rio e de Minas com a plantação do milho, principal alimento
com que se cria e engorda o porco. Foi bem triste para nós que somos
antepassados adotassem o toucinho e a carne de porco como base principal da
alimentação, a que se habituarão os habitantes daquelas e outras províncias
contiguas. Os campos naturais além Mantiqueira foram dispostos pela
natureza para criação do gado vacum e lanígero, bastante para suprir de
alimento os habitantes da mata‖. (Relatório Exposição Universal 1867)
Mariano Procópio acreditava que o plantio do milho para alimentar porcos
atrapalhava a indústria nacional, pois devastava as matas. Substituindo a base alimentar
os produtores se dedicariam a outro cultivo produzindo mais café, açúcar, fumo e
algodão principais produtos de exportação Brasileira, um forte entusiasmo com a
introdução de carneiros que produzem mais lã e mais carne, segundo Mariano no Brasil
existem excelentes pastos e os criadores de carneiros deveriam se esforçar para
aclimatá-los, pois o preço na Inglaterra é bem favorável, para dar exemplo ele afirma
que a escola agrícola União Indústria se ocupará desta cultura:
―Para dar exemplo, a companhia União Indústria tenta na sua estação de
Barbacena estabelecer, com ensaio, a cultura de carneiros, seguindo os
processos mais úteis e recomendados. Este ensaio está entregue aos cuidados
da direção da Escola de agricultura fundada na Estação do Juiz de Fora, e
parece produzirá ótimos resultados, sobretudo tratando se de propagar as
seguintes espécies, que recomendo: Rambouillel, de lã muito fina, e
produzindo de dez a doze libras por ano, conforme a idade e tamanho,
superior ao Negrette, igualmente bom: ambas merinos encontra-se na França
de raça muito aperfeiçoada. (Relatório exposição Universal 1867)
Mariano conhecia o mercado de consumo para carneiros e já ensaiava estratégias
de distribuição do produto em Minas. A iniciativa de cruzamento de espécies para
melhoramento parecia deslumbrá-lo, em vários trechos do relatório ele cita a técnica de
reprodução pelo cruzamento de caracteres. Nada despertou tanto o fascínio de Mariano
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Procópio como a criação de cavalos de raça, ele fica maravilhado com o significativo
avanço na Inglaterra, Alemanha, Rússia e França das raças cavalares, sobretudo o gosto
pelas corridas, ele destaca que no Brasil essa cultura de melhoramento de raças
cavalares está segundo ele em ―Manifesto atraso‖ devido à falta de amadores dispostos
a pagarem pelos custos de criação, segundo Mariano Minas Gerais chegou a ter uma
excelente raça de cavalo ―Andaluza‖ enquanto durou o gosto pelas festas de
cavalhadas, com a decadência dessa festa diminuiu-se também o gosto pela criação da
raça, restando apenas espécies de média estatura. Para implantação dessa cultura
Mariano ressalta a necessidade de se criar mecanismos de premiação bem como feiras,
exposições para valorização da atividade proporcionando conseqüentemente o aumento
no preço de mercado, o que geraria uma receita favorável na criação de raças cavalares
já que tal cultura é tão dispendiosa, além dessa alternativa deveria o governo Imperial
fundar um Jockey Clube o que despertaria o gosto pelas corridas o Diretor - Presidente
finaliza seu relatório dizendo:
―Com estas e outras medidas auxiliares, e convergindo os fazendeiros e
criadores o gosto que tem pela política para esses e outros melhoramentos
agrícolas que mais lhes interessão, não se forão esperar por muito tempo os
bons resultados de quaisquer tentativas que nesse sentido se fizerem. As
melhores espécies e raças que acabo de recomendar vão servir de núcleo de
criação na Escola prática de agricultura da colônia Pedro II, e na fazenda da
Fortaleza de Santa- Anna. (Relatório, exposição Universal 1867).
A companhia União Indústria no ano de 1868 envia as câmaras municipais um
folheto explicativo com disposições relativas ao funcionamento do estabelecimento,
deixando bem claro os objetivos propostos pela educação a ser oferecida. Destaca-se no
texto o compromisso da companhia em atender as expectativas depositadas no projeto e
o caráter patriótico da ação, que não deveria ser contestada sua importância e eficácia
por estar em dia com os desejos da nação20. A companhia União Indústria ao se dirigir
aos potencialmente associados coloca em pauta argumentos condizentes com o
momento econômico em que se encontrava o Império Brasileiro e manifesta de forma
20
REVISTA, Imperial Instituto Fluminense. Notícias sobre a Agricultura. Rio de Janeiro: Tipografia do
Imperial Instituto Artístico, v.1, n.9, Set. 1871. Sobre os desejos da nação, Dyonisio Gonçalves Martins
assim define a criação de escolas agrìcolas no paìs: ―Para habilitar-se, porém a dar nova direção aos seus
trabalhos, carecia a lavoura de crear, pela associação das forças esparsas, uma unidade de ação.
Semelhante resultado só poderia ser conseguido pela educação especial, e foi para introduzi-la em nossos
campos, que as escolas de agricultura começaram a ser energicamente reclamadas por todos os que se
ocuparão da regeneração agrícola do país; não as escolas que teem por fim indivíduos a manipulação de
melhores instrumentos, mas essa que illustrão o espírito, e a preparação á todas as eventualidades que
podem assaltar as explorações ruraes‖
29
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veemente o que seria a necessidade pública, maior produção com menor preço de custo,
conseqüentemente um aumento da riqueza pública e financiamento de obras ditas
essenciais para o desenvolvimento, fica claro a crítica ao que o comendador denominou
como ―Desnecessário de se internarem pelo Sertão e derrubarem de continuo matas
virgens‖, a companhia demonstrava uma preocupação com essa cultura tradicional
presente em Minas Gerais e em outras regiões do país, a sugestão aos lavradores seria a
aplicação de técnicas agrícolas com o auxilio de máquinas e rearranjo de solos
esgotados. Outro argumento de Mariano Procópio diz respeito à logística de produção,
ou seja, o diretor da companhia atesta a necessidade dos lavradores produzirem nas
redondezas dos grandes mercados consumidores o que facilitaria o escoamento da
produção, encontra-se também no texto remetido as câmaras uma ênfase na preparação
do país no estabelecimento de colônias de imigrantes, processo iniciado do litoral
sentido interior. A companhia na circular demonstra estar em consonância com um
projeto de transição, respondendo a sua parcela de contribuição nas diretrizes propostas
pela elite dirigente a qual Mariano Procópio Ferreira Lage também fazia parte. Para
atender a estas expectativas descritas o cronograma de ensino foi formulado para ser
executado no período de três anos e os alunos ao término do ano letivo deveriam ser
avaliados em exame. Somente seriam aprovados aqueles que obtivessem nota
satisfatória em todas as disciplinas e aos submetidos e aprovados um certificado de
aprovação, que correspondia ao desempenho no conhecimento adquirido, mas não se
limitava a um dado quantitativo o aluno era avaliado também por sua conduta e moral.
Aos que concluírem com destreza, demonstrando as melhores notas e conduta exemplar,
caberia uma premiação especial pelo desempenho, oferta destinada aos três primeiros
lugares. Observa-se que no projeto existia mecanismos de diferenciação para promover
o entusiasmo e concorrência pelo ensino agrícola, estas circunstâncias geraram
manifestações como registrado no relatório apresentado pelo Sr. Ministro e secretário de
Estado Diogo Velho Cavalcante Albuquerque que diz: ―Conviria conceder aos alunos
que completarem o curso e os respectivos estudos, título ou diploma, com honras e
garantias dispensadas aos bacharéis de direito‖ (STEHLING, 1979, p.232). Ao
realizar essa analogia o Sr. Ministro observa que dada as proporções de alcance caberia
considerar o curso da Escola como um curso superior em Agricultura, e essa certamente
era a característica almejada.
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A escola contava no ano de sua inauguração em 1869 com 30 alunos sendo deste
número oito remetidos pelas câmaras municipais restando 12 vagas para alocação de
alunos pobres e 18 vagas para pensionistas. A estrutura arquitetônica contava como:
Salas de aula, biblioteca, laboratório, varanda, sala de desenho, aposentos para o diretor
e empregados, capela, sacristia, deposito para utensílios agrícolas, cozinha, copa, sala de
jantar, pátio, sala de máquinas agrícolas, paiol, banheiros, espaço para produção de
rações, alojamento para gado, carneiros, cavalos, mulas e galinheiro. O programa geral
de ensino consistia em lições práticas e teóricas que Diogo Velho Cavalcante
Albuquerque chegou a tecer as seguintes palavras: ―Conviria talvez começar mais
modestamente, ampliando-se o quadro das aulas na proporção do desenvolvimento da
lavoura. Nada impede, porém, que a companhia restrinja-o, aconselhada pela
experiência, guia segura em taes assuntos‖. (Ministério da Agricultura, 1869, p.23).
Mesmo com as orientações do Ministro a Companhia União Indústria coloca em prática
esse ambicioso projeto. Foi estabelecido o início dos trabalhos para 23 de junho de 1869
e o término do ano letivo em 31 de maio de 1870, sendo, 22 dias durante o ano
destinado a férias, momento em que os alunos poderiam permanecer na escola
realizando exercícios práticos ou visitarem suas famílias. Foi elaborado também um
regimento interno que em suas disposições gerais tratava de assuntos como conduta
moral, faltas, licenças, substituições e deveres do pessoal docente, tempo de estudos,
alimentação, vestuário, dormitório, exames gerais e julgamento dos alunos. Além do
repertório teórico e o regimento interno apresentado acima os alunos deveriam exercitar
os conhecimentos adquiridos na manutenção dos animais, colheita, preparação dos
solos. Para dar início aos trabalhos outra importante iniciativa também foi tomada pela a
direção da Companhia as ―Exposições em formato de feira‖. A exposição agrícola e
industrial idealizada, organizada e executada pela companhia União Indústria continha
em sua essência um caráter pedagógico, nos dizeres do comendador Mariano Procópio
Ferreira Lage as exposições serviam de arena para a indústria21 e nela os principais
produtores da indústria competiam pela excelência e reconhecimento na produção. A
companhia União Indústria estava ciente dos desafios a serem vencidos e procurou
21
BRASIL, Relatórios Companhia União Indústria: Relatório apresentado à assembléia geral legislativa,
Repartição dos negócios da Agricultura comércio e Obras Públicas. Rio de Janeiro, 1869. Relatório
Tipografado. ―Nos dizeres do comendador: ―Considerando, porém a diretoria que nas exposições o
grande estimulo é o premio, como está reconhecido nas duas grandes nações que primeiras estabelecerão
as arenas para as lutas da indústria.‖
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traçar ações estratégicas para o efetivo sucesso de seu projeto. A feira em formato de
exposição nos registros que encontramos estava marcada para acontecer de 10 a 23 de
junho de 1869, e por ter pretensões ambiciosas promovia não somente seu
estabelecimento escolar, mas também o encontro de produtores das províncias do Rio e
de Minas era um importante incentivo aos negócios agrícolas. Para o comendador,
somente com a concorrência os produtores de gêneros agrícolas e criadores de animais
veriam os benefícios do emprego de técnicas modernas de produção, teriam parâmetros
comparativos, na relação entre teoria e prática, portanto partimos do princípio de que as
exposições organizadas pela escola bem como a participação da mesma em outras
exposições teve um caráter extremamente pedagógico, no sentido de promover os
trabalhos realizados na escola como também papel modificador de culturas. Para a
realização do evento a companhia mesmo sem dispor dos recursos toma para si e
algumas câmaras associadas o total financiamento do evento, situação que contribuirá
com o endividamento da companhia União Indústria. O comendador Mariano Procópio
Ferreira Lage que conhecia muito bem o mercado produtor e as exposições Universais
na Europa não poupou esforços em reproduzir em solo Brasileiro uma instituição
educacional de nível superior de proporções a ―Escola Agrícola de Grignon na
França‖ citada no relatório em 1867 na ocasião da exposição Universal em Paris. O
apreço por exposições já era recorrente em Mariano Procópio Ferreira Lage basta
observarmos suas viagens pela Europa e Estados Unidos em busca de inovações como
também as participações da fazenda Fortaleza de Sant‘Anna em exposições. Mesmo
sem o apoio por parte do governo da província de Minas Gerais a diretoria da
companhia União Indústria como registrou seu diretor em relatório: ―Apezar de estar à
companhia União e Indústria fora da lei, espera a sua diretoria realizar a ideia, que
tão applaudida tem sido por aquelles que realmente se interessão pelo futuro da
província‖. Mariano Procópio Ferreira Lage ao expor sua indignação com aqueles
―desinteressados‖ pelo futuro da província certamente sabia do prejuízo que teria a
escola agrícola com a não realização do evento, por este fato o desejo de se ver
sacramentado um projeto servirá de motor propulsor das idéias, ao que nos serve a
documentação a realização da ―Exposição Agrícola e Indústria do Juiz de Fora‖ tinha
um caráter estratégico para a companhia que viria na exposição uma forma de se ter
concorrência entre os produtores e ainda uma estratégia de propagação de seu novo
projeto, o evento estava imerso a uma lógica implícita, ou seja, ao propor às exposições
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a escola estaria em evidência, poderia expor seus trabalhos e colocar a disposição seus
serviços. Dada a importância do evento para a companhia a diretoria da escola mesmo
com problemas financeiros realizou a exposição que além de ser um evento inaugural
teria a periodicidade anual, contaram para este fim com apoio de boa parte da elite
dirigente que administrava as câmaras municipais do Rio de Janeiro e Minas Gerais22.
Dyonisio Gonçalves Martins no relatório intitulado: ―A 1º Exposição agrícola e
industrial no Juiz de Fora em 1869‖, relato publicado na revista do Imperial Instituto
Fluminense de agricultura edição de setembro de 1871 discorre seu texto aproveitando o
espaço para trazer a tona colocações e discussões a cerca do atual estado da agricultura
nacional, atribuindo ao passado colonial Brasileiro o vício de uma agricultura arcaica,
nos dizeres do relator ―Lavradores primitivos‖ responsáveis pela implantação de uma
cultura devastadora, esta manifestação iria de encontro com o contexto da época,
momento em que se discutia muito ―A reforma agrícola‖. Certamente a exposição
servirá de recorte, ou seja, um rápido e breve diagnostico da produção agrícola nacional
o que provavelmente motivou o Sr. Dyonisio a contrapor o que foi apresentado pelos
expositores o que existia de maior primor na agricultura pelo mundo. Por fim este era o
objetivo, implantar a concorrência e o uso de técnicas modernas de produção usando
para este fim medidas estratégicas como a ―pedagogia das exposições‖. Após alguns
anos de estudos no ano de 1869 é inaugurada a Escola Agrícola União Indústria, o
cerimonial de inauguração segundo o livro de (STEHLING, 1979) registra entre outras
passagens:
―Às 9 horas do dia 24, o Sr. Bispo de Goiaz celebrou o Santo Sacrifìcio da
Missa, numa bonita capela construída pelos colonos alemães com auxilio de
alguns proprietários do lugar, e ao meio dia fez-se a cerimônia da
inauguração da Escola Agrícola União, assentada sobre uma ligeira
ondulação do terreno, do vasto e bem disposto edifício cercado de todas as
construções necessárias para os misteres da Agricultura. Depois da benção
lançada pelo Sr. Bispo de Goiaz, o Imperador penetrou no edifício e tomou
22
CIA UNIÃO INDÚSTRIA. (Carta) Out. 1868, Juiz de Fora (para) câmaras municipais. Juiz de Fora.
02f. ―A diretoria da companhia União Indústria reconhecendo os grandes commettimentos de que são
capazes os briosos habitantes da Província de Minas, pela sua perseverança e amor ao trabalho, concebo o
plano eu apresentou a ideia primordial no Relatório distribuído aos seus accionistas, de inaugurar os
trabalhos da Escola Agricultura com uma exposição industrial e agrícola, afim de que, concorrendo á feira
do Juiz de Fora, os melhores produtos da agricultura, criação e indústria mineira, attraia o concurso dos
habitantes do Corte e da Província do Rio de Janeiro, pondo assim em contato vendedores e compradores,
e offerecendo-lhes occasião de visitarem a Escola Agrícola, e de acompanharem a marcha,
desenvolvimento e progressos de um Estabelecimento, que deve excitar o interesse e a solicitude de
quantos se dedicão á principal fonte da nossa riquesa pública e particular.‖
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assento na sala principal, tendo a seu lado S.M a Imperatriz, S.A o Principe
Duque de Saxe, o Ministro da Agricultura e os seus semanários. O
comendador Mariano Procópio Ferreira Lage pronunciou um longo discurso,
dando a Escola Agrícola por inaugurada. Depois S.M o Imperador
pronunciou de improviso, as seguintes palavras: “A inauguração desta
Escola, devida aos perseverantes esforços da Companhia União Indústria e
da sua Diretoria, desperta com toda a razão geral contentamento. Tão
nobre exemplo, imitado nas outras províncias, há de concorrer para a
moralisação do trabalho de nossa principal indústria e sua maior
prosperidade” (STEHLING, 1979, Pág. 231)
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CONTRIBUIÇÕES DE PASCHOAL LEMME E ANÍSIO TEIXEIRA NO
CONTEXTO DA POLÍTICA EDUCACIONAL BRASILEIRA
Adriana Dias de Moura23
Resumo:
Este trabalho tem o objetivo de discutir a contribuição de Paschoal Lemme e Anísio
Teixeira na elaboração da política educacional brasileira, destacando a concepção de
educação e democracia defendida por cada um dos autores. O artigo está estruturado em
seções que discutem a política nacional e a política educacional, o contexto da história
da educação nas primeiras décadas do século XX, a concepção de educação e
democracia dos dois educadores e os reflexos na política educacional vigente.
Palavras-chave: História da Educação. Política Educacional. Paschoal Lemme e Anísio
Teixeira.
Abstract
This paper aims to discuss the contribution of Paschoal Lemme and Anísio Teixeira in
the development of educational policy, highlighting the concept of education and
democracy advocated by each author. The paper is divided into sections that discuss
national policy and educational policy, the context of the history of education in the
early decades of the twentieth century, the concept of education and democracy of both
educators and reflections on educational policy in force.
Keywords: History of Education. Educational Policy. Paschoal Lemme and Anísio
Teixeira.
Introdução
Este artigo tem o objetivo de discorrer sobre as contribuições de Paschoal Lemme e
Anísio Spínola Teixeira no contexto da política educacional brasileira. Utilizou-se como
procedimento metodológico a pesquisa bibliográfica acerca da temática, com destaque
para a obra ―Educação Democrática e Progressista‖ de Paschoal Lemme e ―Educação
para a Democracia: introdução a administração educacional‖ de Anìsio Teixeira. Neste
sentido, temos como questão orientadora deste estudo: como o pensamento de Paschoal
Lemme e Anísio Teixeira contribuiu com a política educacional vigente?
23
Mestranda em Educação (Educação, Cultura e Sociedade) na UFPA, orientanda da Profa. Dra. Sônia
Maria da Silva Araújo. Especialista em Gestão Escolar pela Universidade da Amazônia (UNAMA).
Graduada em Pedagogia pela UFPA. Endereço eletrônico: [email protected]. Djalma Dutra,
567, apto. 202-A, Telégrafo sem fio, Belém-PA. CEP. 66113-010.
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Partimos do pressuposto de que a história nos ajuda a conhecer o passado e a
compreender o presente e assim conjecturarmos o futuro. O movimento histórico
acontece numa conjuntura que propicia o desenvolvimento contínuo da história.
Mediante esta historicidade é que nos propomos fazer esse trabalho a fim de entender as
contribuições na política educacional brasileira desses dois educadores.
Paschoal e Anísio trabalharam juntos e tiveram importante atuação na educação
pública brasileira, embora tivessem pensamentos antagônicos. Anísio, de pensamento
liberal, defendia uma educação democrática e de qualidade que atendesse ao sistema
vigente, o capitalismo. Na outra ponta do debate, Paschoal tinha um pensamento
socialista pautado no materialismo histórico e dialético, embora nunca tenha se definido
como marxista.
Paschoal Lemme nasceu em 1904, no Rio de Janeiro, e começou sua carreira em
1924, trabalhando na educação pública como professor primário na zona rural, depois
ocupou cargos de assessoria de importantes nomes como Fernando de Azevedo,
Lourenço Filho e o próprio Anísio Teixeira. Trabalhou ainda na Superintendência dos
Cursos de Continuação e Aperfeiçoamento, na Superintendência da Educação de
Adultos do Distrito Federal, no Museu Nacional e no Instituto Nacional do Cinema
Educativo (INCE). Foi vice-diretor da Escola Amaro Cavalcanti e redigiu, juntamente
com Valério Konder, o Manifesto dos Inspetores de Ensino do Estado do Rio de
Janeiro. Foi técnico de Educação do Ministério de Educação e Saúde (MES), atuando
diretamente no Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), como chefe da
Seção de Documentação e Intercâmbio e de Inquéritos e Pesquisas.
Anísio Teixeira nasceu em 1900, na Bahia, e em 1924, no governo de Francisco
Góes Calmon, foi nomeado Inspetor Geral do Ensino da Bahia, tendo contato com a
educação pública pela primeira vez. Durante a vida profissional destacou-se pela
ocupação de cargos importantes na educação pública brasileira como a direção da
Instrução Pública do Distrito Federal (RJ), foi secretário geral da Campanha de
Aperfeiçoamento de Ensino Superior (CAPES), diretor do Instituto Nacional de
Pesquisas Educacionais (INEP) além da criação da Universidade do Distrito Federal
(RJ) e participação direta na fundação da Universidade de Brasília.
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Compreender os desdobramentos das contribuições da atuação desses
educadores na política educacional brasileira requer a compreensão do contexto em que
viveram e da história política e educacional do país.
A política nacional e a política educacional
Numa breve leitura do processo histórico do sistema educacional brasileiro,
constatamos que a política nacional está diretamente atrelada à política educacional. No
Brasil colônia (1500 a 1822) a educação esteve a cabo da Companhia de Jesus, com os
jesuítas, que visavam uma educação catequética a fim de humanizar os índios e adaptálos ao trabalho. A formação de nível médio e superior era ofertada apenas para os filhos
dos ricos e dos aristocratas, respectivamente, com a finalidade de preencher o tempo
livre de ―forma digna‖ e vislumbrando a estes ocuparem cargos na sociedade
aristocrática.
O modo de produção escravista da sociedade brasileira assim determinava que
todos os demais membros da população ficassem excluídos de qualquer tipo de
educação formal. A estes bastava a capacidade física para desempenhar funções
voltadas para o trabalho manual.
Somente no século XVIII, com o surgimento da mineração e, por consequência,
da emergente classe burguesa a educação passa a ser objeto de desejo de uma população
até então excluída do processo educacional vigente. Em meados desse século, a
educação passa a ficar sob a responsabilidade do estado imperial, com as reformas
pombalinas, porém, sem grandes rupturas pois a educação continuava com os traços da
educação jesuítica, ou seja, religiosa.
No entanto, no início do século XIX, em 1823, a Lei de 20 de outubro declarava
livre a instrução popular, ou seja, abria caminho à inciativa privada que era dominada
quase que exclusivamente pela igreja católica. Dessa forma, a igreja corroborava o
poder político que exercia há muito tempo na sociedade.
Porém, a pequena burguesia foi estabelecendo-se politicamente na sociedade e
exercendo seu poder. Uma vez que esta já alimentava ideias iluministas travou um
embate com a classe dominante em função do pensamento aristocrático-rural desta. Esse
embate contribuiu significativamente para a abolição dos escravos e a proclamação da
república.
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Segundo Saviani, ―A proclamação da República em 1889 significou
efetivamente, ao menos no plano institucional, uma vitória das ideias laicas. Decretouse a separação entre Igreja e Estado e a abolição do ensino religioso nas escolas‖ 24.
É oportuno destacar, no entanto, que apesar da república, o Brasil ainda trazia os
resquícios de uma sociedade latifundiária, escravocrata e aristocrática em função do
longo período colonial brasileiro. Saviani25 destaca que a educação popular ainda não se
tornou, nesse período, um problema do Estado Nacional dada a descentralização da
educação que ficou a cargo de cada Estado federado.
Com o forte processo de industrialização e urbanização vigente no Brasil, a
educação escolar passa a ser vista como instrumento de elevação do país para o
desenvolvimento social, político, econômico e cultural. Para isso precisava diminuir os
índices de analfabetismo e preparar a população para o trabalho industrial que o sistema
exigia.
Surgem então as reformas educacionais, no decorrer da década de 1920, que
foram pautadas por dois pensamentos filosóficos distintos, o positivismo e o liberal,
sendo que o primeiro primava pelo cientificismo e pelo pragmatismo e o segundo pela
igualdade de direitos, respeito às capacidades individuais e educação pública
universal26.
Além do processo de industrialização brasileiro também marcaram o momento a
Primeira Guerra Mundial (1914-1919), a Reforma Socialista (1917), a Formação do
Partido Comunista Brasileiro (1922), a Semana de Arte Moderna (1924) dentre outros
importantes acontecimentos, que foram contribuindo para o desenvolvimento político
do país e para a formação de Paschoal e Anísio que foram tomados pelo pensamento
democrático e desenvolvimentista que se pretendia estabelecer no país e, fizeram das
suas ações um ato político no sentido de que sempre buscaram modificar a realidade
social em que estavam imersos.
24
SAVIANI, Dermeval. A nova Lei da Educação: LDB trajetória, limites e perspectivas.11ª edição.
Campinas: Autores Associados, 2008, p. 5.
25
Idem.
26
MARÇAL RIBEIRO, Paulo Rennes. História da Educação Escolar no Brasil: notas para uma reflexão.
Paidéia, FFCLRP – USP, Ribeirão Preto, vol. 4, Fev - Jul, 1993.
38
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O contexto da história da educação na década de 1930
No início do século XX a educação foi tida como instrumento propulsor para a
industrialização que se pretendia implantar no país. Para isso, era necessária que a
escola atendesse a demanda de formação orientada pelo trabalho a ser desenvolvido nos
novos espaços de produção econômica oriunda da indústria, formando a mão de obra
para o trabalho.
As reformas educacionais implementadas a partir da década de 20 estavam
pautadas em um ideal de renovação e reconstrução da sociedade que vinha se firmando
em função da transformação social que pretendia romper com os resquícios da
colonização e atender as demandas da sociedade industrial que chegava. Assim, os
educadores que estiveram à frente da educação pública se empenharam em transformar
a educação escolar vigente a fim de impulsionar o desenvolvimento do país que não
correspondia aos anseios sociais. Surgiram assim os reformadores, dentre os quais
Fernando de Azevedo, Lourenço Filho e Anísio Teixeira.
Anísio Teixeira assumiu a Secretaria de Educação e Cultura do Distrito Federal
(RJ) de 1931 a 1935 implementando nesse período uma longa reforma educacional.
Nessas reformas, Paschoal Lemme teve atuação constante exercendo funções de
assessoria direta aos reformadores ou ocupando cargos em órgãos estratégicos para o
desenvolvimento dos princípios das reformas.
Para Saviani ―Efetivamente foi somente após a Revolução de 1930 que
começamos a enfrentar os problemas próprios de uma sociedade burguesa moderna,
entre eles, o da instrução pública popular‖27. Para ele, a criação, em 1930, do Ministério
da Educação e Saúde, assumido pelo ministro Francisco Campos, que implementou as
reformas do ensino superior (reforma administrativa) e do ensino secundário (reforma
organizacional) começava a encarar a educação como uma questão nacional.
Entretanto, o ensino primário ficava sob a responsabilidade dos estados e
municípios e este se desenvolvia de acordo com as condições socioeconômicas de cada
27
SAVIANI,Dermeval. A nova Lei da Educação: LDB trajetória, limites e perspectivas.11ª edição.
Campinas: Autores Associados, 2008,p.6.
39
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região. Em função disso as disparidades eram imensas e ainda prevalecem até os dias de
hoje.
Em 1932, um grupo de educadores que estavam impulsionados pelo movimento
de reconstrução que se passava na Europa do pós-primeira guerra mundial e,
insatisfeitos com os rumos da política nacional, resolveram fazer um movimento que foi
denominado de Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Essa proposta se
caracterizou como um movimento em defesa de uma política de educação nacional que
assegurasse um ensino público, gratuito e democrático, em que toda a população a ela
tivesse acesso, inclusive os menos favorecidos econômica e socialmente, e não apenas
aqueles que detinham o poder econômico.
A educação nova defendida por estes educadores levava em consideração a
capacidade biológica e intelectual de cada indivíduo, bem como os interesses, aptidões e
ideal de vida de cada um. A educação deveria ser pautada nos princípios da
cientificidade e da experimentação, buscando oferecer ao educando um ambiente
concreto e ao mesmo tempo dinâmico e natural que o estimulasse a novas experiências e
lhe permitisse o desenvolvimento pessoal de acordo com as suas necessidades. E a
partir daí, esse indivíduo seria capaz de se inserir na sociedade e no mundo do trabalho,
proporcionando, por consequência, o desenvolvimento do país.
Quanto a Escola Nova, tanto Paschoal quanto Anísio, embora tenham
participado ativamente do manifesto dos pioneiros da Educação Nova, tinham um
pensamento crítico quanto as limitações para a conquista dos objetivos pretendidos
pelos pioneiros por meio do modelo que estavam propondo. Tinham consciência de que
a Escola Nova não rompia com o velho modelo da Educação Tradicional. Brandão 28
afirma que:
Paschoal Lemme era pois bem mais cético do que a maioria dos educadores
da sua geração, a respeito do efeito corretor de uma escola renovada sobre as
iniquidades sociais e a miséria produzidas pelas relações sociais na ordem
capitalista. As reformas de ensino eram necessárias sim, mas insuficiente do
ponto de vista do projeto de uma sociedade verdadeiramente igualitárias.
Paschoal e Anísio assinaram o manifesto de 1932 e o de 1959, este, elaborado no
momento da tramitação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.O segundo
28
BRANDÃO, Zaia. Paschoal Lemme. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, EditoraMassangana, 2010, p.
42. (Coleção Educadores – MEC)
40
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manifesto ocorreu em função do substitutivo do deputado Carlos Lacerda que
modificava totalmente o projeto que havia sido encaminhado ao congresso com a
contribuição dos educadores. O substitutivo visava deixar a educação toda sob a tutela
da iniciativa particular, ou do ensino confessional que se utilizava do discurso da
liberdade contra o ―monopólio‖ exercido pelo Estado sobre a educação para assim
conseguir voltar ao comando da educação no Brasil 29.
Para Paschoal a educação pública havia sido a maior conquista da sociedade
moderna. Abrir mão dessa conquista, em função de um falso discurso imposto pela
igreja católica que queria retomar o seu poder na instrução educacional, significava um
retrocesso. Para ele, a educação proposta pelos progressistas sempre encontrava
barreiras nas forças reacionárias que se encontravam, especialmente, na igreja
católica30.
Anísio defendia que o ensino deveria ser laico, portanto, livre de qualquer
influência ou partidarismo. Nesse contexto, ressurge o conflito de ideias entre católicos
e educadores progressistas que propunham princípios diferentes para a educação
nacional.
A concepção de educação e democracia de Paschoal Lemme e Anísio Teixeira
Paschoal Lemme apesar de ter pensamentos divergentes de Anísio Teixeira, Fernando
de Azevedo e Lourenço Filho, trabalhou juntamente com eles porque acreditava no
propósito educacional defendido por eles, que era a construção de uma educação
democrática e uma escola única em que todos a ela tivesse acesso 31. Embora, ele
acreditasse que só seria possível uma educação democrática em uma sociedade também
democrática, o que não seria possível em um sistema capitalista.
Para Paschoal a educação era um fenômeno que apresentava dois aspectos
distintos porém correlatos. O primeiro é que a educação tinha um caráter permanente,
ou seja, era oriundo da capacidade natural que o homem tem de aprender na adaptação
29
LEMME, Paschoal. Educação Democrática e progressista. São Paulo: Editorial Pluma Ltda, 1961.
30
BRANDÃO, Zaia. Paschoal Lemme. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, EditoraMassangana, 2010.
(Coleção Educadores – MEC)
31
BUFFA, Ester. NOSELLA, Paolo. A educação negada: introdução ao estudo da educação brasileira
contemporânea. São Paulo: Cortez, 1991. Coleção biblioteca da educação. Série 1. Escola; v. 17.
41
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com o meio ambiente e social em que está inserido. Dizia ele que essa capacidade é
inata ao homem desde o seu nascimento até à morte. O segundo é de que a educação e o
ensino são fenômenos históricos, ou seja, variam de acordo com as características de
desenvolvimentos e tradições de cada região de cada país 32.
Partindo desse pressuposto, o entendimento é o de que não basta apenas ofertar
educação para todos, é necessário que todos os que têm acesso à educação escolar
tenham as mesmas condições para o pleno desenvolvimento do processo educativo.
É interessante ressaltar que Paschoal questionava a visão da educação enquanto
panaceia para os problemas econômicos e sociais. O autor acreditava que não era a
educação que tinha que proporcionar o desenvolvimento do país, mas, a educação era
sempre uma resposta ao desenvolvimento social e econômico de cada lugar. Essa
afirmação era feita com base nos índices educacionais discrepantes apresentados no
país. Os dados que Paschoal se pautou demonstrava que o grau de insucesso do sistema
educacional era maior exatamente nas regiões de menor desenvolvimento econômico.
Paschoal comungava do princípio de que uma educação verdadeiramente
democrática
significa a possibilidade do acesso de todos, a todos os bens culturais da
sociedade, sem quaisquer restrições, a não ser o desejo, a vocação e a
capacidade de cada um, isto quer dizer também que tal possibilidade é dada
pelas condições existentes em cada momento na sociedade criada pelo
homem33.
A concepção de educação em Anísio também era um fenômeno, porém de
civilização, assim como a arte, a literatura e a filosofia. Ele não acreditava na educação
como receita para a resolução dos problemas imediatos mas acreditava que a educação
enquanto um processo profundo e complexo seria capaz de transformar a sociedade.
Para Anìsio, a educação é ―a função natural pela qual a sociedade transmite a sua
herança de costumes, hábitos, capacidades e aspirações aos que nela ingressam para a
continuarem. A educação escolar é um dos modos por que se exerce tal função‖34.
32
LEMME, Paschoal. Educação Democrática e progressista. São Paulo: Editorial Pluma Ltda, 1961.
33
Idem. p. 147.
34
TEIXEIRA, Anísio S. Educação para a Democracia: introdução a administração educacional. Rio de
Janeiro: Livraria José Olimpio Editora, 1936, p. 24.
42
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Para Anísio toda educação escolar é técnica uma vez que objetiva explicar os
fenômenos e preparar para os vários tipos de ocupação. Daí a função reguladora, que
para ele a escola exerce, de distribuição social dos homens pelas várias ocupações e
meios de vida em que se estabelecem as atividades humanas.
Ancorado no pragmatismo idealista de Dewey, Anísio concebe a democracia
como valor e não como forma política, tendo o Estado democrático como instituição
social neutra e o processo histórico é que conduz à vida democrática. Portanto, concebia
que o Estado deveria ser o promotor de justiça social e realização individual, garantindo
a expansão das potencialidades dos indivíduos com oportunidades iguais35.
Partindo dessa concepção, depreende-se o entendimento de Anísio de que à
escola caberia a função de preparar o indivíduo para esse exercício da democracia por
meio de um método científico que considerasse a vida social do mesmo. Segundo
Araújo, Anìsio entendia que ―A escola se democratizaria e democratizaria a sociedade à
medida que, além de aberta a todos, garantisse que todos aprendessem‖ 36.
A partir dessa concepção compreende-se porque Anísio atribuiu grande
potencial de transformação social à educação escolar dentro do sistema capitalista.
Enquanto Paschoal acreditava só ser possível uma educação democrática quando
a sociedade também o fosse, pois essa seria o reflexo social, Anísio acreditava que por
meio da educação seria possível transformar a sociedade. Entretanto, dizia que era
preciso aprender com as civilizações desenvolvidas, em que a educação estava sempre a
serviço da sociedade e não dos interesses do Estado ou de ideologias partidárias. Anísio
afirmava que ―Democracia sem educação e educação sem liberdade são antinomias, em
teorias, que desfecham, na prática, em fracassos inevitáveis‖ 37.
Os reflexos na política educacional vigente
35
SILVA, S. M. Matrizes Filosóficas do pensamento de Anísio Teixeira. 2010. 320p. Tese (Doutorado em
Educação) – Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. 2010.
36
ARAÚJO, Sônia Maria da Silva. A concepção de ―Pedagógico‖ em Anìsio Teixeira. Ver a Educação.
Belém: Edufpa, vol. 9, Especial, p. 46, 2003.
37
TEIXEIRA, Anísio S. Educação para a Democracia: introdução a administração educacional. Rio de
Janeiro: Livraria José Olimpio Editora, 1936, p. 44.
43
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Esses dois educadores brasileiros atuaram na educação comprometidos com a função
social que a educação deve cumprir, reconhecendo as suas limitações sem, no entanto,
deixar de acreditar no processo histórico que move a sociedade e a contribuição política
do processo educacional escolar no (re) fazer histórico. Ambos fizeram parte da história
da educação brasileira de seus tempos e de tempos futuros. Seus fundamentos
repercutiram na concepção de uma educação voltada para a valorização dos sujeitos
oriundos das camadas populares e do seu modelo de educação alicerçado na luta e no
engajamento político e social.
Parte das propostas de Anísio Teixeira e Paschoal Lemme para a educação
brasileira só foram implementadas recentemente através da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional – LDB nº 9.394, de 1996.
Anísio defendia, dentre outras coisas, que a formação de professores deveria se
dar em nível superior, devendo estes profissionais atuarem como pesquisadores da
própria profissão. Este princípio está regulamentado nos Arts. 62 e 63, da LDB nº
9394/96. Anísio queria uma escola pública, gratuita e democrática e que o ensino
primário fosse ofertado em pelo menos cinco anos, o que só recentemente foi
implementado através da Lei nº 11.274, de 06 de fevereiro de 2006. Nesta Lei está
assegurada a ampliação do ensino fundamental de oito para nove anos, com entrada do
aluno a partir dos seis anos de idade, sendo que os cinco primeiros anos são
direcionados para o ensino fundamental menor.
Anísio propôs um projeto pedagógico que considerasse os aspectos sociais,
políticos e culturais pelo qual o Brasil passava. Ele propunha uma educação
democrática e mantinha a crença de que por meio dela seria possível transformar o país.
Por isso, pensou a educação brasileira de forma global, da educação primária ao ensino
superior, preocupando-se com o desenvolvimento da cultura e da ciência e fomentando
a pesquisa. Foi um dos mais importantes intelectuais brasileiros de seu tempo,
imprimindo no Brasil a sua visão de mundo e concepções políticas.
Paschoal tinha a preocupação com uma educação global e defendia a
organização da educação por cada unidade da federação sendo que a União ficaria
responsável pela orientação técnica e execução financeira. As unidades federadas teriam
a função de elaborar planos de ensino levando-se em consideração as características
44
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regionais e locais. Essa organização proposta por Paschoal está atualmente assegurada
na LDB 9394/96, no Título IV – Da organização da Educação Nacional, em que
estabelece um regime de colaboração entre as unidades federadas com a criação dos
sistemas de ensino e os respectivos planos de educação.
Outra preocupação de Paschoal era a de que a oferta do ensino superior
ocorresse por meio da responsabilidade direta da União. Infelizmente, grande parte da
oferta no nível superior está nas mãos da iniciativa privada, e com repasse da União, o
que Paschoal condenava absolutamente.
Acreditava Paschoal que uma das responsabilidades pelo fracasso do ensino
secundário (ensino médio) estava no fato de mais de 80% estar vinculado ao ensino
privado. Por isso defendia que o Estado assumisse a responsabilidade para com esse
nível de ensino. Só recentemente em 2007, com a Lei nº 11.974 que aprovou o Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB) é que a União assegurou
recursos para a educação infantil e para o ensino médio. Essa é uma política nacional,
conquistada com muita luta pelos educadores brasileiros, com vistas a assegurar a oferta
a todos os que necessitam da educação pública.
Paschoal teve ampla participação na defesa da escola pública, no manifesto dos
pioneiros, na elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 4.024 de
1961, nas reformas educacionais promovidas por Anísio Teixeira e Fernando de
Azevedo e nas questões de seu tempo. É possível observar na concepção de educação,
democracia e das ideias socialistas de Paschoal que o aspecto principal de seu
pensamento pedagógico era a valorização da educação política como instrumento para a
transformação da sociedade. Por isso primava pelo permanente aperfeiçoamento do
professor.
Anísio se envolveu com as questões políticas, sociais e educacionais do seu
tempo se posicionando, dentre outras questões, na polêmica entre a educação
confessional e a pública, denunciando as tradições culturais aristocráticas e formulando
um programa partidário. Segundo Casteller, ―Para Teixeira, a escola não deveria
assumir papel parcial na sociedade. A escola anisiana tinha o objetivo de formar o
45
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homem novo, no sentido de estar integrado ao mundo moderno e industrializado, um
homem sensível à realidade vivida coletivamente e capaz de transformá-la.‖38
Esses dois educadores integraram o movimento daqueles que lutaram por uma
educação pública, democrática, laica e obrigatória, com ampla participação na
Associação Brasileira de Educação (ABE) e fizeram de suas vidas um ato político,
deixando as contribuições na/para a história da educação brasileira além da vasta obra
produzida, por cada um. Seus legados não só contribuíram no pensamento educacional
brasileiro em seus tempos como está presente no pensamento filosófico educacional do
país.
38
CASTELLER, L. D. A centralidade de ―Experiência‖ na concepção educacional de John Dewey:
análise de apropriações no pensamento brasileiro. 2008. 114p. Dissertação (Mestrado em Educação) –
Universidade do Extremo Sul Catarinense. Criciúma. 2008.
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EXERCÍCIO ILEGAL DA MEDICINA OU CRENÇA RELIGIOSA? O
ESPIRITISMO NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA NA PRIMEIRA REPÚBLICA
Adriana Gomes
Resumo:
Com a Proclamação da República, o controle e o estabelecimento da ordem se
intensificaram em prol da modernização do Rio de Janeiro. Medidas relacionadas à
saúde pública estabeleceram critérios de civilidade para a Capital Federal. Nesse bojo,
práticas do espiritismo foram criminalizadas no Código Penal de 1890 e reafirmadas em
1904 com o Regulamento Sanitário. Sob essa legislação, Vicente Avellar respondeu a
um processo criminal instaurado em 1904 por infringir a norma penal de 1890 e o
Regulamento Sanitário.
Palavras-chaves: Espiritismo – Normas Penais – Vicente Avellar
Abstract:
With the Proclamation of the Republic, the establishment of order and control
intensified towards the modernization of Rio de Janeiro. Measures related to public
health criteria established for the Federal Capital civility. In this bulge practices of
spiritualism were criminalized in the Penal Code of 1890 and reaffirmed in 1904 with
Health Regulations. Under this legislation, Vicente Avellar responded to a criminal case
brought in 1904 by breaking the criminal standard of 1890 and Health Regulations.
Keywords: Spiritualism – Criminal Provisions – Vicente Avellar
No advento da Proclamação República, o controle e o estabelecimento da ordem se
intensificaram no Brasil. O novo regime não tardou em revelar o seu caráter
conservador e autoritário. A civilidade e a modernização na República ―vestiu a cidade
com outra roupa, mas o corpo permaneceu o mesmo, possuindo uma incrível
dificuldade de andar de salto alto‖. 39
Sob essas condições, as contradições na cidade do Rio de Janeiro se tornaram
mais visíveis. As diferenças entre a civilidade, que mascarou o centro urbano, tornaramse mais notórias nas outras regiões da cidade menos favorecidas. A modernidade da
capital acentuou o caráter excludente da cidade.
39
RODRIGUES, Antônio Edmilson Martins. Em algum lugar do passado: cultura e história na cidade do
Rio de Janeiro. In: AZEVEDO, André Nunes (Org). Capital e capitalidade. Rio de Janeiro: UERJ, 2002,
p. 28.
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No afã de modernizar o Rio de Janeiro e torná-lo uma cidade cosmopolita, aos
moldes da Europa ou da América do Norte, não foram consideradas as especificidades
de sua história e do país. Foram criadas visões distorcidas sobre o que se interpretava
como sendo moderno e civilizado. O futuro civilizatório estava na agregação dos
valores que vinham de fora, assim como, na regularização de uma vida social e de um
espaço público que não apresentava identificação com o passado. Sob esse prisma foi
construída a capital do regime republicano. A modernidade demarcou as diferenças e a
dependência, ―a cidade deixou de ser colonial, mas passou a ser cópia de um modelo
externo aos sentimentos brasileiros‖.40
O grande desafio que o regime republicano se propusera era transformar cada
cidadão brasileiro, sobretudo da capital federal, em cidadãos capazes de ocupar de
forma ordenada e correta as modernas funções que caberiam a uma sociedade
civilizada. Os poucos brasileiros ―civilizados‖ deveriam conduzir os muitos brasileiros
―atrasados‖ a alcançarem a ordem e o progresso, independente da ausência dos valores
identitários com a mudança ocorrida na capital federal em nome da civilização. Tudo
teria um objetivo em comum: alcançar em ordem, o progresso.
41
O estabelecimento da ordem provocava tensões sociais que eram sufocadas pela
ação policial sob a argumentação de que a repressão estaria atuando para a
implementação de um projeto de reformas em prol da civilidade. Através do uso da
força, se intimidava a insurgência de qualquer projeto alternativo que afrontasse a
ordem instituída em nome do progresso pelo regime republicano. Afinal, todos estariam
envolvidos num missionário projeto civilizador. 42
Como as reformas civilizatórias do Rio de Janeiro fluíam com rapidez, a
insegurança em torno delas era recorrente. Abria-se o caminho para o autoritarismo
ilustrado. Nessa ocasião, ganhou maior importância a legitimidade concedida pelos
laudos técnicos e científicos de instituições, que respaldariam a política do progresso na
capital federal: o Clube de Engenharia, que se definia como elaborador das leis da
reorganização urbana; a saúde pública, que estabelecia os critérios de civilidade e
40
Idem, p. 34.
41
Idem
42
Idem, pp. 28-29.
48
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atuava como controladora da vida social; e finalmente, a polícia, que garantia a
realização da modernização da cidade controlando os costumes da população, sendo a
mantenedora da ordem. 43
Dentre os aspectos da reforma urbana civilizatória implementada no país, o que
merece destaque para a compreensão da criminalização do espiritismo, foram os
atribuídos aos problemas sanitários e de saúde pública, pelos quais algumas cidades
brasileiras foram submetidas, sobretudo a capital federal.
O pensamento médico passou a estar atrelado à modernidade. Esse saber
direcionou a atuação governamental no Rio de Janeiro. A salubridade da cidade se
tornou a única autoridade capaz de dar contornos civilizados à capital. 44
A década de 1890 foi crítica nos surtos epidêmicos. As epidemias assolavam o
Rio de Janeiro durante o ano todo e desafiavam as explicações científicas consagradas,
propiciando muitas divergências entre as autoridades governamentais e os médicos,
enquanto milhares morriam impotentes às enfermidades. 45
Nesse bojo de modernização, civilização e aos problemas relacionados à
salubridade, que no Código Penal de 1890 o espiritismo se tornou um crime contra a
saúde pública. Os espíritas podiam ser enquadrados em três artigos da norma penal
(156, 157 e 158) e tiveram que responder processos criminais junto aos tribunais de
justiça.
O artigo 156 da legislação penal brasileira proibia o exercício ilegal da medicina
sem a habilitação profissional. Já o artigo 157 proibia a prática do espiritismo que
pudesse despertar sentimentos de ódio ou amor e inculcar a cura de enfermidades
curáveis ou incuráveis que pudessem subjugar a boa fé alheia. No artigo 158 ficou
estabelecida a proibição de prescrição de receitas médicas aos não habilitados a
43
Idem.
44
RODRIGUES, Antônio Edmilson Martins. História da Urbanização no Rio de Janeiro: a cidade capital
do século XX no Brasil. In: CARNEIRO, Sandra de Sá; SANT‘ANNA, Maria Josefina Gabriel (Orgs).
Cidade: olhares e trajetórias. Rio de Janeiro: Garamond, 2009, p. 97.
45
BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira passos: um Haussmann Tropical. Rio de Janeiro: Biblioteca
Carioca, 1992, p. 178.
49
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exercerem medicina. A ideia de mando e ordem das receitas pelos não habilitados
poderia comprometer o indivíduo na sua fisiologia e nas suas faculdades psíquicas. 46
Esses artigos ganharam um maior impulso quando em 1903 o sanitarista
Oswaldo Cruz elaborou um projeto de lei que foi aprovado em 8 de março de 1904, cujo
objetivo era reorganizar o serviço sanitário do país – o Decreto 5156.
O Decreto 5156 regulamentava que a Diretoria Geral de Saúde Pública passaria
a ter como atribuição tudo o que, na capital, fosse relativo à polícia sanitária, inclusive a
higiene nos domicílios. Já para a profilaxia e para o combate às doenças infecciosas foi
criado o Juízo dos Feitos da Saúde Pública. A atuação do Juízo seria na repressão ágil à
falta de higiene e, também, às irregularidades nos assuntos referentes à salubridade
pública. 47
A cidade do Rio de Janeiro ficaria dividida em dez distritos sanitários e cada um
deles teria uma delegacia de saúde. Os inspetores sanitários estariam subordinados aos
delegados de saúde, que seriam auxiliados por seis ou sete médicos, vários inspetores
sanitários e acadêmicos de medicina. Os inspetores sanitários, de acordo com o referido
decreto, seriam os profissionais que teriam contato direto com a população. Eles
atenderiam às reclamações, receberiam as notificações de doenças e efetuariam as
vacinas. Além disso, fiscalizariam a salubridade de construções, inclusive agindo em
casos de ilegalidade no exercício da medicina, a qual algumas práticas espíritas foram
enquadradas como crime. O decreto regulamentava nos artigos 250, 251 e 252 as
exigências legais para exercer a arte de curar e, mais uma vez, enfatizava a ilegalidade
do espiritismo pelo exercício na cura de moléstias, sobretudo nos artigos 250 e 251.48
46
Coleção de Leis do Brasil.
47
GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos: uma história da condenação e legitimação do
espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997, p. 134.
48
Art. 250. Só é permitido o exercício da arte de curar, em qualquer de seus ramos e por qualquer de suas
formas;
I. As pessoas que se mostrarem habilitadas por título conferido pelas Faculdades de Medicina da
República dos Estados Unidos do Brasil;
II. As que, sendo graduadas por Escolas ou Universidades estrangeiras oficialmente reconhecidas, se
habilitarem perante as ditas Faculdades, na forma dos respectivos estatutos;
III. As que, tendo sido ou sendo professores de Universidade ou Escola estrangeira oficialmente
reconhecida, requererem licença à Diretoria Geral de Saúde Pública para o exercício da profissão, a qual
50
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Aos inspetores sanitários coube a tarefa de fiscalizar o exercício ilegal da
medicina e condenar os saberes considerados ilegítimos para o exercício das práticas
médicas. Era o combate ao charlatanismo. Dentre esses saberes tidos como ilegítimos e
passíveis de punição estaria o espiritismo, conforme sinalizado no artigo 251 do Decreto
5156 e, também, no artigo 157 do Código Penal de 1890.
As infrações cometidas contra o Regulamento Sanitário, que era de competência
de fiscalização do Inspetor Sanitário, iam do desacato à ordem de demolições ou
interdições de construções, perpassando para a improbidade de gêneros alimentícios
comercializados para o consumo até a prática ilegal da medicina. Essas infrações foram
regulamentadas pela justiça sanitária através do Decreto 5224 que foi aprovado em maio
de 1904.
A habilitação para o exercício da medicina era indispensável, para que não
surgissem dúvidas quanto a capacidade de exercer a arte de curar. Já estava consolidada
a ―identidade de grupo‖ entre os médicos. Para os inspetores sanitários, não poderia ser
colocado no mesmo patamar, um médico diplomado com um charlatão ou curandeiro e
aventureiro, estes eram considerados imorais e antissociais.
O regulamento jurídico sanitário, Decreto 5224, estabelecia que
as
irregularidades sanitárias fossem identificadas, sobretudo, através de denúncias. A partir
das denúncias da população, que os inspetores sanitários iriam ao local da transgressão e
lhes poderá ser concedida se apresentarem documentos comprobatórios da qualidade aludida,
devidamente certificados pelo agente diplomático da República, ou, na falta deste, pelo cônsul brasileiro;
IV. As que, sendo graduadas por Escola ou Universidade estrangeira oficialmente reconhecida, provarem
que são autores de obras importantes de medicina, cirurgia ou farmacologia e requererem a necessária
licença à Diretoria Geral de Saúde Pública, que a poderá conceder, ouvida a Faculdade de Medicina e de
Farmácia do Rio de Janeiro.
§ 1º As disposições deste artigo serão também aplicadas às pessoas que se propuserem a exercer as
profissões de farmacêutico, de dentista e de parteira.
§ 2º A pessoa que exercer a profissão médica em qualquer de seus ramos, a de farmacêutico, de dentista
ou de parteira, sem título legal, incorrerá nas penas do art. 156 do Código Penal.
Art. 251. Os médicos, farmacêuticos, dentistas e parteiras que cometerem repetidos erros de ofício serão
privados do exercício da profissão, por um a seis meses, além das penalidades em que puderem incidir no
art. 297 do Código Penal.
Parágrafo único. Os que praticarem o espiritismo, a magia, ou anunciarem a cura de moléstias incuráveis,
incorrerão nas penas do art. 157 do Código Penal, além da privação do exercício da profissão por tempo
igual ao da condenação, se forem médicos, farmacêuticos, dentistas ou parteiras (Coleção de Leis do
Brasil).
51
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lavrariam os autos da infração com duas testemunhas. Esses autos, por sua vez, já
seriam indicativos de plena prova contra as irregularidades encontradas, sem que fosse
necessário que os funcionários que nele figurassem, viessem confirmar em juízo. A
parte contrária teria o direito de ilidir a fé, apresentando provas. O procurador dos feitos
da saúde pública poderia apresentar até três testemunhas de acusação. O autuado seria
intimado pelo juiz, que num prazo de 24 horas deveria pagar a multa pertinente ou
apresentar a sua defesa, a fim de requerer as diligências legais. Na audiência, dando
início ao processo, o escrivão faria a leitura do auto de infração e, se o infrator estivesse
presente ou representado por um procurador, as testemunhas de acusação e de defesa
dariam os seus depoimentos, respectivamente. As testemunhas de defesa, também,
seriam compostas por no máximo três pessoas.
Após esses trâmites, segundo o
regulamento jurídico sanitário, o procurador dos feitos da saúde pública reuniria as
alegações escritas e o juiz daria a sua conclusão. 49
De acordo com Giumbelli50 (1997, 135-136), o principal objetivo do Decreto
5224 era atribuir ao inspetor sanitário autonomia para punir as infrações sanitárias com
mais agilidade. Os números das testemunhas arroladas deveriam ser menores do que
ocorriam corriqueiramente nas autuações. Além disso, os prazos para as tramitações dos
processos deveriam ser num tempo bem mais abreviado. Situação que na prática não
ocorria.
Foi através de um discurso médico, que o espaço urbano passou a ser
administrado e fiscalizado. Assim como os agentes sociais, que nesse espaço atuavam,
passaram a ser vigiados e punidos em função da higiene pública da cidade. A
necessidade de sanear a cidade e ―civilizar‖ a população justificava ―a montagem de
uma estrutura administrativa e executiva extremamente disciplinadora‖.51
A cultura política autoritária se fez presente nas ações governamentais na
Primeira República ao longo da implementação do projeto civilizatório, sobretudo na
capital federal.
49
Coleção de Leis do Brasil.
50
GIUMBELLI, Emerson. Idem, 135-136.
51
Idem, p. 137.
52
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Ao inferir o autoritarismo como um dos elementos formadores das culturas
políticas brasileiras, contribui para a compreensão e assimilação mais pertinente das
motivações que conduziram os atos dos governantes do regime republicano brasileiro
em face ao projeto civilizatório da capital federal e na criminalização do espiritismo em
meio a um processo de secularização do Estado brasileiro.
A clarividência do emergir dessa faceta da política brasileira torna-se
perceptível, quando se insere no pensamento e nas práticas governamentais na
complexidade dos acontecimentos do momento histórico em discussão.
As mudanças vislumbradas para o país, em nome do progresso, foram
implementadas para o bônus de alguns, mas com o ônus para grande parcela da
população da cidade do Rio de Janeiro, formada por mestiços, afro-brasileiros,
desfavorecidos de uma forma geral e àqueles que não se inseriam de alguma maneira às
normas ―civilizatórias‖ preconcebidas, como os espìritas. E esses agentes sociais
tiveram que se enquadrar, mesmo com resistência, a um projeto imposto, unilateral, que
não contemplava com a devida importância a história e a cultura legada da capital.
A cultura política autoritária do Brasil é resultante de um processo sensível de
interiorização de ideias e na adoção de comportamentos políticos convenientes, que
permaneceram desde o período colonial. A sua emersão no projeto civilizatório, foi a
partir de uma visão comum criada ao longo da história do país.
O autoritarismo, enquanto cultura polìtica é uma visão partilhada, ―uma leitura
comum do passado‖
52
, que corroboram para a expressão de normas e valores
compartilhados na sociedade brasileira.
O pressuposto teórico de cultura política autoritária se fundamenta nas
argumentações de Serge Berstein
53
. Ele compreendeu como cultura política, os
comportamentos políticos de uma determinada sociedade, no decorrer da história. Esse
comportamento seria resultante de experiências vividas ao longo dos anos, por várias
gerações, que podem ser identificados no discurso, nos argumentos, nos gestos, nos
52
BERSTEIN, Serge. A cultura política. In: RIOUX, Jean Pierre; SIRINELLI, Jean-François (orgs.).
Para uma história cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 351.
53
Idem, pp. 349-363.
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comportamentos, dentre outros aspectos, num processo de construção na dinâmica de
uma sociedade.
Partindo desse pressuposto, a cidadania no Rio de Janeiro era outorgada. E,
dessa forma, restringia brutalmente através de ações autoritárias a noção de espaço
público no exercício dessa cidadania. Aqueles considerados indesejáveis deveriam ser
excluídos dos meios de circulação da capital federal.
Numa cidade cerceadora de liberdades, como a capital federal, só teria direito à
cidadania quem participasse, isto é, defendesse as reformas implementadas pelo
governo em nome do progresso do próprio país. Qualquer comportamento fora da
liberdade consentida pelo poder político, seria passível de ser considerada uma prática
de desordem pública. Os agentes sociais que não se enquadrassem as normatizações
impostas estariam, portanto, fora do projeto civilizatório. E ficariam sujeitos a enfrentar
as sanções legais impostas pelo governo por desrespeitarem a ordem estipulada.
E por desrespeitarem a ordem pública estipulada, que cidadãos espíritas tiveram
os seus direitos cerceados no Código Penal de 1890 e no Regulamento Sanitário. Eles
estariam praticando, segundo as autoridades políticas, policiais e médicas, uma faceta da
construção do que juridicamente se denominou charlatanismo, por exercerem
ilegalmente a medicina através de intervenções mediúnicas.
O espiritismo era compreendido pelas autoridades como sendo uma prática
antissocial e anômica, e não, uma prática religiosa. A partir dessa concepção, os
espíritas eram passíveis à vigilância das autoridades, a sofrerem invasões policiais em
seus domicílios e a responderem processos criminais, por estarem fora dos projetos de
salubridade e saneamento preconizados para o país.
Dentre os processos que fizemos análise, o caso de Vicente Ferreira da Cunha
Avellar54, instaurado em junho de 1904 e finalizado em 1905, tornou-se um dos mais
interessantes pelo manancial de informações e pela possibilidade de análise dos
discursos dos acusadores e do réu, das arbitrariedades e pela desconsideração à própria
norma instituída para que se punisse um cidadão que não era comprometido ao ideal
54
Processo nº 5102, Referência: BV.0.RMI.0666, Supremo Tribunal Federal, Arquivo Nacional.
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civilizatório sem que houvesse o mérito da prova material para a tramitação do
processo.
O professor Vicente Avellar foi denunciado pelo inspetor sanitário Sebastião
Barroso à Procuradoria dos Feitos da Saúde Pública, porque havia a suspeita de que ele
praticava o exercício ilegal da medicina através de práticas espíritas e por prescrever
medicamentos aos pacientes, cujo acesso era obtido através de uma farmácia situada no
pavimento térreo do sobrado onde se localizava a Sociedade Scientífica de Estudos
Philosóficos Jesus de Nazareno.
De acordo com o depoimento do inspetor sanitário, ele observou que no sobrado
havia uma rotatividade intensa de pessoas e que estas ao saírem da casa entravam numa
farmácia situada no térreo e de lá partiam conduzindo pequenos volumes que pareciam
frascos de remédios. E para esclarecer o que ocorria no local, supostamente, interrogou
Adelaide Drummond que na presença de três testemunhas, Luiz Rodrigues de
Figueiredo, Frederico Martins dos Santos e Antônio Gomes, declarou que havia se
consultado com Vicente Avellar, pois ele curava por meio do espiritismo e prescrevia
receitas cujos medicamentos eram retirados no térreo do sobrado e trazia consigo um
frasco de remédio e uma receita prescrita pelo professor.
Também nos autos de infração, o inspetor sanitário declarou que em posse
dessas informações dirigiu-se ao sobrado com as testemunhas Luiz Rodrigues de
Figueiredo, Frederico Martins dos Santos e Antônio Gomes. Já no local suspeito, ele
teria sido recebido por Vicente Avellar, Manoel Luiz Carrosa e Frederico Martins
Santos. Contraditoriamente, o inspetor sanitário declarou que Frederico Martins Santos
o acompanhava e ao mesmo tempo estava no sobrado com o professor Avellar.
O inspetor Sebastião Barroso descreveu todo o ambiente que encontrara: a sala
da frente era vasta, aparelhada com bancos e cadeiras alinhadas paralelamente. Defronte
havia uma mesa colocada sobre um estrado. Nas paredes da sala, quadros eram exibidos
com imagens, retratos e cartazes de agradecimento de curas realizadas pela intervenção
mediúnica do Vicente Avellar. Havia também no sobrado os estatutos da Sociedade
Scientífica de Estudos Philosóficos Jesus de Nazareno que, na sua interpretação,
comprovava a existência de um centro espírita no local.
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Após a inspeção, Sebastião Barroso convidou Avellar a prestar declarações aos
órgãos competentes, pois o professor seria um suspeito de exercer a medicina
ilegalmente praticando a magia, utilizando as ciências ocultas e o espiritismo.
Endossando a sua acusação, o inspetor declarou que após convidar o professor a prestar
esclarecimentos junto às autoridades policiais sanitárias, uma senhora chamada Barbara
da Conceição, chegou à sala para se consultar com o Vicente Avellar acompanhada de
suas filhas. O objetivo da senhora era que o professor atendesse uma das crianças que se
encontrava enferma. Segundo revelação da Barbara da Conceição, esse procedimento já
havia sido realizado há dois meses em sua outra filha, que havia conseguido a cura por
intermédio de Avellar.
Ao expor a sua versão da história no ofício de infração, o inspetor sanitário
Sebastião Barroso solicitou a instauração de um processo crime em junho de 1904, com
o endosso das testemunhas supracitadas. O acusado Vicente Avellar teria infringido o §
2º do artigo 250 e o § único do artigo 251 do Regulamento Sanitário, assim como havia
infringido, também, os artigos 156 e 157 do Código Penal. Como era de praxe, as
testemunhas foram também notificadas que dariam os seus depoimentos oficiais quando
fossem intimadas durante a tramitação do processo.
No entanto, esses depoimentos não se efetivaram.
A testemunha que
supostamente ouviu as declarações da senhora que havia se consultado com o Vicente
Avellar – Frederico Martins dos Santos – não foi encontrado no endereço fornecido à
justiça. Assim como, também não foram encontrados Luiz Rodrigues de Figueiredo e
Antônio Gomes. A testemunha chave para a acusação de exercício ilegal da medicina
pelo professor, senhora Adelaide Drummond, a suposta paciente que havia sido
medicada por ele, também não foi encontrada no endereço fornecido.
Na ausência das testemunhas de acusação na audiência do julgamento de
Avellar, o subprocurador dos Feitos da Saúde Pública, Edmundo de Almeida Rego,
solicitou em 12 de julho de 1904, que fosse intimado para testemunhar Azevedo Lima,
em outro dia designado pela justiça. A questão era: o intimado a testemunhar em
nenhum momento havia sido mencionado no ofício de infração para a instauração do
processo crime. Mesmo com as lacunas apresentadas, os trâmites continuaram e o
professor Avellar respondeu criminalmente perante o juiz dos Feitos da Saúde Pública.
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No processo foi anexada pela acusação uma ―declaração dos vizinhos‖. Segundo
o documento, os vizinhos do professor declaravam que um grande número de pessoas
entrava e saía da casa do Avellar e que após a passagem pela farmácia conduziam
pequenos embrulhos. Afirmaram também que era pública às consultas realizadas pelo
Vicente Avellar com o objetivo de obtenção de cura para moléstias através do
espiritismo e com o uso de medicamentos manipulados na farmácia local sob a
promessa de cura garantida.
Ao processo também foi anexado um cartão que dizia ―Acha-se em tratamento
desenganado por todos os médicos‖ e um exemplar de um periódico chamado A Fé, que
tinha em sua capa o nome do Vicente Avellar como o seu redator chefe. O escritório
desse periódico ficaria situado na Rua São Cristóvão, 201 no bairro de São Cristóvão no
Rio de Janeiro, local de funcionamento da Sociedade Scientífica de Estudos
Philosóficos Jesus de Nazareno.
Do jornal A Fé, o inspetor recortou e anexou algumas notícias que foram
publicadas em 12 de março de 1904, que compreendeu serem relevantes para o
processo. Uma delas dizia que na Rua Senador Eusébio, um centro espírita denominado
―Oriente Espìrita do Brasil‖ havia sido cercado pela polìcia e obrigado a fechar as
portas. O jornal denunciava que esse centro sobre a ―capa do espiritismo explorava os
incautos‖. Outra denúncia do Jornal A Fé foi a respeito de um psicólogo, cuja formação
havia sido adquirida na Escola Norte-Americana, e que este desejava introduzir
inovações ao espiritismo, porém fora desmascarado. O jornal sugeriu que ele voltasse
para os Estados Unidos, porque no Brasil não havia inovações cínicas ao espiritismo.
Ao processo também foi anexado um cartaz que, segundo o inspetor, estava
fixado na parede da sala. O cartaz era um aviso da ―Sociedade Scientìfica de Estudos
Philosóficos Jesus de Nazareno‖ para a normatização das consultas: as pessoas
deveriam sentar-se na sala da frente a fim de ouvirem as explicações necessárias e só
poderiam entrar no consultório se tivessem consentimento prévio do secretário. Os
atendimentos ocorriam nos dias úteis das 12 horas às 16 horas. O cartaz era datado de 1
de janeiro de 1904 e assinado pelo secretário Manoel L. Carrosa. O objetivo da
acusação era comprovar a existência de consultas espíritas realizadas por Avellar.
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Do jornal A Fé, também foi destacada a publicação de testemunhos de pessoas
que foram curadas pelo professor Avellar com os seus respectivos nomes e endereços. O
intuito do inspetor sanitário era procurar fundamentar as acusações de exercício ilegal
da medicina através do espiritismo por meio de provas documentais.
Mesmo com a ausência das testemunhas de acusação, o réu Vicente Avellar foi
interrogado pelo juiz Eliezer Gerson Tavares. Na Casa de Audiência do Juízo dos
Feitos da Saúde Pública, o advogado do professor, Sr. Borges, apresentou as
argumentações de defesa escritas ao juiz sobre a infração dos artigos 156 e 157 do
Código Penal e do artigo 250 § 2º e § único do artigo 251 do Regulamento Sanitário.
O advogado denunciou que a autoridade sanitária invadiu a casa do réu num ato
de violência e cometeu toda a ―sorte de abusos‖, sem que o mesmo soubesse as
motivações para o feito e pudesse fazer as ponderações cabíveis. O acusado negou
exercer a medicina ilegalmente em qualquer uma de suas formas e também negou
praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios.
A partir da suposta declaração da Adelaide Drummond, que fora transformada
em denúncia ao ser interceptada pelo inspetor, a defesa começou a desconstruir o relato
do inspetor sanitário Sebastião Barroso.
A primeira desconstrução foi sobre o Frederico Martins dos Santos. A defesa
sinalizou a impossibilidade do senhor Frederico, que foi declarado testemunha das
declarações da senhora Adelaide Drummond, portanto, testemunha de acusação que
estava na rua, também ter sido citada como uma das pessoas presentes no sobrado, ao
ponto de ter recebido o inspetor de polícia sanitária, como foi declarado na denúncia. A
defesa utilizou essa contradição como uma evidência de falta de verdade nas
declarações do inspetor contra o réu.
Outra inverossimilhança sinalizada pela defesa foi a informação que Adelaide
Drummond tinha se consultado com o professor Avellar e tinha em mãos um frasco de
remédio, que havia sido fornecido pela farmácia no pavimento térreo mediante uma
receita prescrita por Vicente Avellar. A defesa questionou o depoimento, pois em
nenhum momento foi apresentado materialmente a receita e muito menos o frasco do
remédio. Esses elementos, irrefutáveis para a acusação, não foram anexados no processo
como provas contra como réu.
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Sendo o réu acusado de exercer ilegalmente a medicina, o frasco do remédio e a
receita seriam provas indubitáveis contra ele. O crime seria uma constatação. A defesa
se posicionou como questionadora das atitudes do inspetor sanitário: como ele poderia
acusar o professor Avellar e, no entanto, deixar escapar um corpo de delito irrecusável
para a acusação?
A partir dessa ―falha‖ nos autos do processo, a defesa pressupôs que o inspetor
não deixou escapar a prova irrefutável, porque só se escapa algo que existe, que não foi
o caso do frasco do remédio e a receita. Esses nunca existiram. Assim como nunca
existiu farmácia alguma. Com essa argumentação, o advogado Borges procurou mostrar
ao juiz que Avellar não exercia a medicina em qualquer um dos seus ramos.
Sobre a sala da frente da residência do Vicente Avellar com bancos perfilados,
que o inspetor sanitário supôs ser um centro espírita, a defesa retrucou que nesse espaço
o professor Avellar exercia a sua atividade profissional e que ali também reunia os
membros da ―Sociedade Beneficente Scientìfica Jesus Nazareno‖, que o réu negou ter
qualquer ligação com a medicina e o espiritismo, portanto, com os delitos descritos nos
artigos 156 e 157 do Código Penal e dos artigos 250 e 251 do Regulamento Sanitário.
A defesa expôs ser verdade que entre os quadros de imagens fixadas na parede
da sala havia pequenos quadros de agradecimentos ao réu pelo restabelecimento de duas
pessoas de sua relação familiar. No entanto, esses quadros datam de 11 de outubro de
1902, muito antes do Regulamento Sanitário, portanto, não havia crime. O réu guardaria
os quadros como uma grata demonstração de amizade e gratidão. Essa afirmação da
defesa não foi questionada pela acusação, mas esta poderia ter argumentado que em
1902 já estava em vigor o Código Penal de 1890, que criminalizava essa prática.
Portanto, a afirmação poderia servir de depoimento de confissão.
Com a argumentação baseada em arbitrariedades da inspeção sanitária,
contradições no relatório e a falta de provas que comprovasse a denúncia, a defesa
afirmou ser improcedente a acusação que foi feita ao senhor Avellar, afinal se nada foi
provado, não havia crime.
A defesa ressaltou que a conduta pessoal do acusado era ilibada. O professor
Avellar era um homem de bons costumes, honesto, chefe de família exemplar e
cumpridor de suas atividades profissionais como se fosse um sacerdócio, pois instruía e
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educava com modéstia e vivia baseado nos princípios de moralidade. A atitude do
inspetor sanitário da 7ª Delegacia teria sido arbitrária e abusiva ao invadir o lar do
professor. Com essa atitude, Sebastião Barroso acabou infringindo as leis e os direitos
adquiridos constitucionalmente pelo cidadão Vicente Avellar.
No entanto, mesmo com as desconstruções das provas acusatórias inseridas nos
autos do processo e as lacunas ocorridas na audiência, Vicente Avellar foi condenado a
sete meses de prisão celular e ao pagamento de multa de 583.333 réis.
A defesa, porém, recorreu a Egrégia Câmara para a revisão do processo criminal.
Além das reiterações das argumentações já supracitadas, também foi questionado o erro
na condenação do réu a sete meses de prisão. De acordo com o artigo 156 e 157 do
Código Penal a pena máxima para prisão seria de seis meses. Outros questionamentos
também se sucederam: que critério foi utilizado para ser dada a penalidade? Em qual
artigo o réu foi acusado? Em ambos ou só um? O atropelo e a desorganização em que
foi construído o processo ficaram exarados na sentença condenatória sem as devidas
fundamentações que justificassem a penalidade.
Para a defesa, os autos não forneceram provas contra o suspeito, somente se
fundamentaram em alegações vagas ou em documentos específicos sem a necessária
autenticidade e preparos pela autoridade sanitária. Além disso, as testemunhas de
acusação não foram inquiridas pelas suas ausências na audiência, diante desse fato, as
testemunhas de defesa que deveriam ser inquiridas após as testemunhas de acusação –
Decreto 5224 artigo 4 § 4º do Regulamento Sanitário – não foram inquiridas por não
terem sido consideradas necessárias. O juiz compreendeu que todo o acusado deveria
ser intimado em uma só audiência e que a prova testemunhal não era essencial. Essa
conclusão contrariava as normas reguladoras de um processo crime.
Além desses fatores, a defesa alegou que a sentença seria insustentável com os
seus fundamentos alicerçados na declaração de uma senhora surpreendida. E que a
partir dessa suposta declaração foram feitas afirmações sem que fossem configurados na
figura de juízo. Outro documento que abriu precedentes para dúvidas e questionamentos
sobre a sua procedência e veracidade foi a ―declaração dos vizinhos‖. Uma das
assinaturas presentes no documento – Silva Souza Pinto – apareceu nos autos em um
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documento anexado pelo acusado afirmando o contrário do que estava na referida
declaração.
Em 31 de julho, o subprocurador dos Feitos reiterou todas as acusações
proferidas ao réu. Dessa forma, rejeitou o provimento da apelação de revisão do
processo criminal ao representante da Saúde Pública. A única retificação realizada foi
quanto ao ―pequeno engano da sentença‖. Edmundo de Almeida Rego alterou a punição
de prisão celular para seis meses, que seria a pena máxima estipulada no artigo 156 pelo
exercício ilegal da medicina em sessões espíritas. Nesse momento o réu também ficou
ciente em qual artigo foi condenado.
Diante dos fatos, em 17 de outubro de 1904 foi certificado pelo escrivão Hugo
Lemos Mello, junto aos órgãos competentes, o mandado de prisão do Vicente da Cunha
Avellar.
No entanto, em meio à certificação do mandado de prisão, em 23 de agosto de
1904, o Juiz Relator Desembargador Miranda Ribeiro, solicitou a nulidade do processo
pelas sequências de falhas nos autos de infração, na audiência e na sentença, sobretudo
nas argumentações do subprocurador dos Feitos da Saúde Pública. Segundo o juiz, o
subprocurador como um representante do Ministério Público deveria atuar como um
fiscal e também como um advogado na execução da lei visando unicamente agir dentro
―das fórmulas estabelecidas previamente pela lei‖.
Segundo o juiz Miranda Ribeiro, com o interposto de apelação da sentença
condenatória os seus efeitos ficariam virtualmente suspensos. O Supremo Tribunal
Federal que teria, a partir de então, a competência de analisar o processo com toda a
amplitude do órgão a fim de apreciar o mérito da prova do crime. O recurso ao Supremo
Tribunal Federal estava legitimado no § 1º do artigo 81 da Constituição Federal.
Para fundamentar as suas alegações na petição impetrada ao Supremo Tribunal
Federal em 7 de outubro de 1904, a defesa de Vicente Avellar procurou evidenciar que
os autos do processo eram repletos de lacunas e a ausência de revisores nos julgamentos
das causas relativas aos Feitos de Saúde Pública foi propulsor do cerceamento da ação
do Ministério Público, cuja representação foi através do subprocurador dos Feitos da
Saúde Pública, que prejudicou a defesa do acusado. O juiz considerou a revelia do
Ministério Público, que a prova testemunhal não era essencial e que o auto de infração
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faria prova plena. Dessa forma foi dissonante ao que estabelecia o Regulamento
Sanitário no seu artigo 4 § 4º. As violações das normas reguladoras do processo haviam
impedido o acusado a utilizar recursos legítimos para a sua defesa, pois não pôde
exercer o seu direito de ilidir a fé.
O artigo 156 do Código Penal foi discutido, em mais um processo, na sua
inconstitucionalidade. O artigo 72 da Constituição Federal no seu § 24 havia garantido
o livre exercício de qualquer profissão moral, intelectual e industrial. No entanto,
mesmo utilizando esse subterfúgio como argumento para a defesa do réu, o advogado
Borges reiterou o seu posicionamento quanto ao não exercício da medicina em nenhum
dos ramos citados no artigo por parte do Vicente Avellar. E se a acusação insistia em
criminalizar a conduta do réu, que a essa coubesse o ônus da prova através de meios
autênticos, legais, claros e iniludíveis.
O juiz desembargador Miranda Ribeiro também expôs na petição ao Supremo as
proposições sobre a falência dos autos, porque neles faltariam elementos indispensáveis
para a condenação. Assim sendo, não teria sido lícita a sentença porque o Juiz dos
Feitos da Saúde Pública, Eliezer Tavares, impôs pena grave com deficiência de
elementos coibindo a liberdade do cidadão Avellar.
Em 11 de outubro de 1904, o processo começou a ser analisado pelo Supremo.
Foram pedidos os autos, as provas, enfim, todas as argumentações necessárias para a
apelação. E em 18 de novembro de 1904 o ministro do Supremo Tribunal Federal,
Joaquim de Toledo Piza e Almeida, requisitou o processo de Vicente Avellar para
análise.
Eliezer Tavares, juiz dos Feitos da Saúde Pública, como a parte apelada ao
Supremo Tribunal, alegou que o réu sentiu-se prejudicado na defesa porque tomado de
surpresa não pôde apresentar as testemunhas na audiência e que nenhum momento o
acusado foi cerceado de seus direitos estabelecidos no Decreto 5224, o próprio que não
havia requerido as testemunhas para se apresentarem na audiência. Quanto às provas, o
juiz considerou que elas eram ―abundantes e esmagadoras‖ e com coerência ao
enquadramento nos artigos 156 e 157 do Código Penal, assim como, nos artigos 250 e
251 do Regulamento Sanitário.
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O processo ficou em juízo até 23 de agosto de 1905 quando os ministros do
Supremo, Aquino de Castro, Joaquim de Toledo Piza e Almeida, Bernardino Ferreira,
Hermínio do Espírito Santo, Ribeiro de Almeida, Oliveira Ribeiro, André Cavalcanti e
Epitácio Pessoa deram a sentença no caso de Vicente Ferreira da Cunha Avellar.
O Supremo Tribunal Federal interpretou que o réu deveria ser absolvido das
acusações intentadas por não haver prova de que ele teria cometido os delitos. Em
relação ao artigo 156 do Código Penal, as lacunas recaíram na ausência de especificação
sobre em qual ramo da medicina o acusado atuaria, da mesma forma que não houve uma
averiguação se o acusado fazia o exercício da medicina como profissão. E justamente
essa alegação consistiu na incriminação do réu. Quanto ao artigo 157, os juízes do
Supremo Tribunal não encontraram nos autos elementos essenciais que pudessem
incriminar Vicente Avellar de praticar o espiritismo.
Nas discussões referentes às testemunhas, o Supremo Tribunal Federal
questionou a argumentação de Eliezer Tavares por dar continuidade à audiência sem
considerar essencial a prova testemunhal. Segundo o Supremo, a atitude do juiz dos
Feitos da Saúde Pública infringiu a Constituição Federal de 1891, no seu artigo 48 § 1,
que preconizava pela força obrigatória das testemunhas nos autos do processo. Para o
Supremo Tribunal, se a aplicabilidade do Decreto 5224 limitou-se a desenvolver
princípios próprios para facilitar a execução das leis, isso não isentaria da obrigação no
cumprimento da lei federal, que deveria ser a fonte primária para a legislação do país.
A partir dessas proposições, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a
revisão do processo e absolveu o Vicente Ferreira da Cunha Avellar de todos os efeitos
legais impetrados.
A pena inicial para o professor Avellar, além da multa, foi de sete meses de
prisão celular. Da sentença instituída pelo juiz dos Feitos da Saúde Pública em 17 de
outubro de 1904 ao julgamento do Supremo Tribunal Federal em 23 de agosto de 1905,
o processo tramitou por cerca de dez meses. Portanto, ficou notória a morosidade dos
tribunais brasileiros: a tramitação do julgamento do processo durou mais tempo do que
a própria pena instituída ao acusado.
O caso do Vicente da Cunha Avellar foi um dentre muitos outros que cidadãos
foram levados aos tribunais de justiça por praticarem o espiritismo. No entanto, vale a
63
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pena ressaltar que na maioria dos processos apesar do desgaste de sua tramitação havia
certa tolerância à prática do espiritismo, sobretudo quando a Constituição Federal era
utilizada como principal argumento da defesa para legitimar os seus argumentos quanto
ao cerceamento da liberdade religiosa e ao exercício livre de qualquer profissão.
Contudo, quando o réu era um praticante de cultos afro-brasileiros a interpretação era
diferenciada. Como sinalizou Maggie (1992, p. 77), fazer o uso de pipoca, galinha e
outros materiais era considerada prática de magia e os sortilégios, pois iludia as pessoas
com a feitiçaria.
A percepção do juiz era um fator decisivo na sua absolvição ou condenação do
réu. Se o jurista compreendesse que o espiritismo realizado era uma crença religiosa, a
sua prática era considerada legítima e legal, pois se fundamentaria na Constituição
Federal de 1891. Já se a crença religiosa fosse compreendida como magia, a sua
interpretação era como charlatanismo e curandeirismo, por isso condenável.
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AS ELITES AGRÁRIAS E AS IRMANDADES: DEVOÇÃO E FESTA NO VALE
DO PARAÍBA FLUMINENSE55
Aguiomar Rodrigues Bruno
Resumo:
O presente artigo pretende discutir o papel das festividades religiosas na relação entre a
irmandade do Santíssimo Sacramento da comarca de Piraí e seus confrades - no vale do
Paraíba Fluminense - na segunda metade do séc.XIX. Ou seja, como estas festividades
religiosas poderiam ter contribuído para a manutenção do status quo de seus confrades.
Visto que eles pertenciam às elites na região. Todavia, este trabalho faz parte de uma
pesquisa fomentada pelo CAPES, através da UFRRJ.
Palavras-chave: Festividade, Irmandade, Elites.
Abstract:
This article discusses the role of religious festivities in the relationship between the
brotherhood of the Blessed Sacrament of the district of Pirai and his brothers - in the
valley of the Paraíba Fluminense - in the second half of the nineteenth century. In other
words, how these religious festivities might have contributed to the maintenance of the
status quo of their confreres. Since they belonged to the elites in the region. However,
this work is part of a research fostered by CAPES through UFRRJ.
Introdução
Inspiradas nas suas congêneres portuguesas espalharam-se de norte a sul pelo solo
brasileiro. Perpassaram no tempo, seja no período colonial e, mesmo, no próprio
Império sendo palco para a expansão de inúmeras devoções, que expressavam além da
fé católica a diversidade de grupos socioculturais. Desde os primeiros povoamentos
erguidos, os santos se faziam presentes. Na mesma medida que a estratificação social
ocorria multiplicavam novas invocações por meio dos devotos. Desta forma, as
irmandades se multiplicaram enquanto o único meio de associativismo de atitudes
caritativas reconhecido pelo poder monárquico e pela Igreja Católica. Elas além de
participarem na assistência espiritual e material de seus membros, refletiam e
exprimiam a identidade social e religiosa dos leigos, ou seja, expressões orgânicas e
sociológicas locais plenamente aceitas e reconhecidas por uma Igreja Católica militante.
Por outro lado, as irmandades espelhavam e legitimavam as diferenças sociais existentes
55
Aguiomar Rodrigues Bruno, mestrando em historia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ). Email: [email protected]. Orientado pela Profª.drª. Margareth de Almeida Gonçalves.
65
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na própria sociedade através das várias tipologias existentes que correspondia à natureza
sócio-cultural de seus membros. E, por fim, podemos e devemos analisa - las enquanto
instituições que espelhavam e retratavam os diversos momentos e contextos históricos
nos quais se inseriam.
Logo, este trabalho como parte de nossa pesquisa, focará as análises nos atos
festivos religiosos dessas irmandades situadas no interior do Império brasileiro, mais
precisamente no Vale do Paraíba Fluminense - comarca de Piraí - na segunda metade do
séc. XIX. A partir de um estudo de caso da irmandade do Santíssimo Sacramento,
veremos que as festividades religiosas patrocinadas pela irmandade podem ser
reveladoras de códigos e regras de conduta que regeriam uma dada ordem social. Neste
sentido, é possível ver através desses atos litúrgicos públicos mais das estruturas sociais
do que se pode imaginar. Além de promover a sociabilidade e o sentimento de
pertencimento a um determinado grupo social, expondo aspectos políticos, econômicos
e sociais. Por outro lado, as festas são momentos de ritualização, ou seja, modos
reveladores de valores, modos de ser, pensar, onde espaços e tempos tornam-se
sagrados e profanos pelos indivíduos.
Portanto, procuraremos trabalhar este texto com o enfoque na história social da
cultura, onde o interesse recai sobre os sujeitos produtores e receptores de cultura, como
também as práticas e os processos pelos quais se produz. Para tal escolha, o nosso tema
tornou-se fundamental, História da Religião, não para fazermos uma história da
instituição, mas como elemento importante para tratarmos as relações entre mudanças
sociais e sistemas religiosos, ou como determinados grupos sociais se apropriam do
discurso religioso. Da mesma forma, que esse tema liga-se a outros temas como as
festas. Por isso, a necessidade da utilização de múltiplas abordagens, tal como a história
serial, quantitativa e micro-historiográfica, para justamente dar conta de nossa proposta
de pesquisa em toda sua complexidade e dinâmica56.
Irmandades e grupos sociais no Vale do Paraiba fluminense
56
Para saber mais sobre enfoque, temas e métodos. Veja: BARROS, José D‘Assunção. Os lotes da
História. In: ______. O campo da História: especialidades e abordagens. 9ª. Ed. Petrópolis: Vozes, 2013,
p. 15-22.
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Segundo a mais recente historiografia sobre o tema, as irmandades surgiram e se
desenvolveram na América portuguesa ao longo do processo de colonização, tendo
como modelo as organizações fraternais portuguesas disseminadas na Idade Média.
Integraram-se facilmente ao cotidiano político, social e religioso ao assumirem várias
responsabilidades religiosas e assistencialistas. Elas por sua vez, além de múltiplas em
sua significação e adoração a inúmeros santos católicos, também caracterizaram pela
distinção dos seus membros, indo desde escravos negros e forros, passando pela ―arraia
miúda‖, até a ―boa sociedade‖57. Elas configuram-se como espaços privilegiados para o
desenvolvimento de múltiplas formas de sociabilidade como também um espaço de
distinção e poder, onde se buscavam formas ou veículos capazes de defender seus
interesses. Desta forma as irmandades influíram, de maneira objetiva, nos hábitos e na
forma de vida da população. Em virtude disso, procuraremos trabalhar neste capitulo as
diversas tipologias existente no Vale do Paraíba Fluminense, com ênfase na comarca de
Piraí. Isto significa que as características das várias irmandades foram distintas,
consoante ao espaço, ao grupo social e ao tempo. Sob estes aspectos veríamos inúmeras
delas nas diversas províncias do Império. Por mais que os dados sejam inconclusos, nos
serve como um parâmetro de amostragem na Província:
Comarcas do Vale do Paraíba
Vassouras
Resende
Valença
Volta Redonda
Barra Mansa
Irmandades
Irmandade da Santa Casa de Misericórdia
Irmandade Nossa Senhora da Conceição
Irmandade Santíssimo Sacramento
Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos
Irmandade Nossa Senhora da Conceição
Irmandade da Santa Casa de Misericórdia
Irmandade de Nosso Senhor dos Passos
Irmandade Nosso Senhor dos Passos
Irmandade Santa Casa de Misericórdia
Devoção de Nossa Senhora do Rosário
Irmandade Santíssimo Sacramento
Irmandade Santíssimo Sacramento
Irmandade de São Sebastião e Santa Efigênia
Irmandade Divino Espírito Santo
Irmandade Sacratíssimo Passos do Senhor
Irmandade Nossa Senhora do Rosário
57
BOSCHI, Caio César. Sociabilidade religiosa laica: as irmandades. In: BETHENCOURT, Francisco;
CHAUDHURI, Kirti. (Org.). História da Expansão Portuguesa. Vol. 3. Lisboa: Círculo de Leitores,
1998, p. 361.
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Piraí
Santíssimo Sacramento
São José e São João Batista dos Thomazes
Nossa Senhora da Conceição do Rumo
São Benedito
São Benedito e Santa Cruz
Santíssimo Sacramento
Nossa Senhora do Rosário
Nossa Senhora das Dores
Santíssimo Sacramento e São José
Fonte: Biblioteca Nacional; Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro; Arquivo de Piraí.
A priori, devemos salientar que trabalhamos com a perspectiva de grupo social
por Roger Chartier, e, não classe social. Para o autor os grupos sociais se constituem
para além das relações de produção58. Neste sentido, será possível compreendermos a
existência dos diversos grupos sociais e suas relações entre si, e com as confrarias.
Como foi o caso da irmandade Nossa Senhora dos Passos, em Valença, no ano de 1873.
Em seu compromisso salientava o culto a imagem todas as sextas-feiras, com procissões
e sermões na Semana Santa. Os confrades tinham direitos a sufrágios de cinco missas
mais dobres de sino - tudo isso acompanhado pela irmandade. A inserção nesta
associação passava por um critério seletivo bastante razoável, aceitava pessoa branca ou
parda de qualquer dos sexos - mas de boa conduta - pagando uma quantia de entra de
10$ e anuidade de 5$00059. Em 1854 a irmandade Senhor Bom Jesus dos Passos, em
Rezende, os confrades eram obrigados a comparecer a todas as solenidades religiosas.
Tendo, por sua vez, a irmandade a obrigação pelos sufrágios pelas almas de seus
confrades. Sendo o número de acordo com a posição social na hierarquia, sendo 10 para
os irmãos de mesa, e 15 para os oficiais. Em contra ponto, ela era mais liberal, pois
aceitava qualquer pessoa independente da cor e sexo, desde que fosse considerada pela
irmandade pessoa de qualidades necessárias, e que pagasse como entrada o valor de
1$000, e, mais 1$000 de anuidade60.
58
CHARTIER, Roger. Introdução. In:_______. A história cultural: entre práticas e representações.
Tradução: Maria Manuela Galhardo. 2ª. Ed. Portugal: DIFEL, 1982, p. 16-18.
59
BIBLIOTECA NACIONAL. Compromisso da irmandade Nosso Senhor dos Passos. Obras raras. Ano.
1873. v.254, 5, 3 nº. 22, p. 1-2.
60
BIBLIOTECA NACIONAL. Compromisso da irmandade Senhor Bom Jesus dos Passos. Obras raras.
Ano. 1854. v. 254, 5, 2 nº. 28, p. 3-4.
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Como podemos perceber a entrada nessas irmandades garantia um espaço de
sociabilidade e um enterro digno ao confrade, na mesma proporção a confraria se
intitulava intercessora entre o céu e a terra, o que garantia ajuda divina tanto na vida
cotidiana quanto na salvação das almas após morte. Como menciona João José Reis:
―As irmandades eram organizadas como um gesto de devoção a santos específicos, em
troca da proteção aos devotos (...)‖61. Outro aspecto eram as características
socioeconômicas de seus membros. Como já foi dito, uma das características das
irmandades eram as estratificações sociais. O caso entre a irmandade do Santíssimo
Sacramento e do Glorioso São Benedito, em Piraí, na segunda metade do séc. XIX,
torna-se um fato emblemático.
Para se ter uma idéia, enquanto a irmandade do Glorioso São Benedito pagava
2$00062 de entrada, a do Santíssimo Sacramento pagava-se 50$0063. Tudo isso definia o
perfil social do confrade. A entrada poderia significar a ascensão social ou até mesmo a
afirmação do status. Sob este aspecto o historiador Pedro Penteado tem algo a dizer:
―(...) maior integração e identidade por parte dos confrades e a busca de uma maior
distinção social no interior das comunidades‖64. Tudo isso tornava a irmandade um
espaço privilegiado e cobiçado. Como se observa o quadro de irmãos do Santíssimo
Sacramento no triênio 1870/3, abaixo:
Triênio 1870 a 1873
Nº. de confrades
Triênio 1873 a 1876
Nº. de confrades
Existiam em 26 de Junho de 1870..... 286
Existiam em 26 de Junho de 1873...... 394
Inscreveram-se no ano de 1870/71.... 50
Inscreveram-se no ano de 1873/74..... 30
Inscreveram-se no ano de 1871/72.... 42
Inscreveram-se no ano de 1874/75..... 28
Inscreveram-se no ano de 1872/73.... 39
Inscreveram-se no ano de 1875/76..... 12
Remiram-se........................................ 05
Remiram-se......................................... 03
61
REIS, João José. As irmandades. In: _____. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no
Brasil do séc. XIX. 5ª. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 59.
62
ARQUIVO DE PIRAÍ. Compromisso da irmandade do Glorioso São Benedito. Religiosos Diversos.
Ano. 1880. Nº. 001. 01.24, p. 01.
63
ARQUIVO DE PIRAÍ. Compromisso da irmandade do Santíssimo Sacramento de Santana. Ano. 1860.
Religiosos Diversos. Nº. 001.01.18, p.03.
64
PENTEADO. Pedro. Confrarias portuguesas da Época Moderna: problemas, resultados e tendências da
investigação. Lusitania sacra, 2ª série, 7 (1995), p. 28.
69
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Total................................................... 422
Total.................................................... 467
Deduzindo-se os finados do período.. 28
Deduzindo-se os finados do período... 31
Ficam existindo.................................. 394
Ficam existindo.................................. 436
Fonte: Arquivo Público de Piraí (relatório de 1870/3) e Arquivo da cúria Metropolitana do Rio de
Janeiro (relatório de 1873/6).
O fluxo numérico de confrades revela a importância da irmandade e sua
representatividade religiosa na região. A análise do ―Livro de Entradas‖, da irmandade
do Santíssimo Sacramento, de 1895 nos mostra que o quantitativo manteve-se constante
com 424 ―irmãos‖65. Se compararmos com do Glorioso São Benedito, no mesmo ano,
teremos um valor de 158 ―irmãos‖66. Podemos observar que, a irmandade era influente e
poderosa, tendo confrades espalhados em 5 províncias (Rio de Janeiro, Minas Gerais,
São Paulo, Espírito Santo, Paraná) inclusive na Europa (Portugal). No relatório da
confraria feito pelo Provedor Comendador Joaquim Manuel de Sá, no dia 29 de Junho
de 1873, descrevia que o patrimônio da irmandade, em Junho de 1870, se fundava em
25 apólices da dívida pública, no valor de um conto de réis cada uma a juros de 6% ao
ano. Três anos mais tarde o tesoureiro Francisco José de Souza Guimarães informava
que o patrimônio havia elevado para 35 apólices, que chegaram a produzir a renda anual
de 2:100$00 réis67. Esses dados reforçam nossas afirmativas sobre algumas irmandades
enquanto verdadeiros redutos para determinados grupos sociais, principalmente aqueles
considerados de elite68, para reforçarem ainda mais o prestigio e status perante a
comunidade. Muitas vezes, em nossa pesquisa foi possível ver que determinados
confrades ampliavam suas redes69 de sociabilidade para outros campos, como as
Câmaras. Este fato nos sugere uma ampliação dessas redes de influencia, e poder para
65
ARQUIVO DE PIRAÍ. Livro de Entradas da irmandade do Santíssimo Sacramento. Ano. 1895.
Religiosos Diversos. s/n. p. 14.
66
ARQUIVO DE PIRAÍ. Livro de Atas e Receita da irmandade do Glorioso São Benedito. Ano. 18951896. Religiosos Diversos. s/n. p. 11.
67
ARQUIVO DE PIRAÍ. Relatório da irmandade do Santíssimo Sacramento. Ano. 1873. Religiosos
Diversos. Caixa 2, p. 18.
68
HEINZ, Flávio M. O historiador e as elites – à guisa de introdução. In: _____. Por outra história das
elites. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 7.
69
BARNES, John. Clase y comitês em una comunidad islena Noruega. In: SANTOS, Félix Requena.
(Org.). Analisis de redes sociales: orígenes, teorias y aplicaciones. Madrid: Centro de Investigaciones
sociológicas, 2003, p. 127.
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outras instancias. Este era o caso da administração do Santíssimo Sacramento, em Piraí,
no ano de 1873/6. Vários sodalícios pertenciam simultaneamente a confraria e a
Câmara:
Quadro da irmandade S.S. ano 1873/6
cargo
Nome
Provedor
Joaquim Manuel de Sá
Secretário
Tesoureiro
Procurador
Eduardo Saraiva de Carvalho
Francisco José de Souza Guimarães
Victorino Joaquim da Fonseca
Conselheiro
Antonio José do Couto
Conselheiro
Conselheiro
Conselheiro
Conselheiro
Conselheiro
Conselheiro
Joaquim Moreira Mendes
Antonio Gonçalves da Rocha
Ernesto dos Santos Mello
Joaquim Gomes da Costa Palhares
Francisco Barbosa do Rego
Conselheiro
Conselheiro
Conselheiro
Conselheiro
João Álvares Rubião
Manoel José Pereira da Silveira
Joaquim Campos de Andrade
Conselheiro
Ocupação
• Delegado de Policia
•Advogado
• Juiz de Paz
• Professor
??????????????????
??????????????????
• Agrimensor
• Juiz Municipal (suplente)
• Açougueiro
• Fazendeiro
• Escrivão
• Fazendeiro
• Fazendeiro
• Negociante
• Alfaiate
• Coletor
• Fazendeiro
• Escrivão
• Procurador
• Solicitador
???????????
Joaquim Augusto Setúbal
Ovídio Paes da Silva
João Antonio de Souza Guimarães
Freguesia
Pirahy
Pirahy
???????????????
???????????????
Pirahy
Pirahy
Pirahy
Pirahy
Pirahy
Pirahy/ Arrozal
Pirahy
Pirahy
Pirahy
Pirahy
Pirahy
???????????
Fonte: CRL. Almanack Laemmert (1844-1889)
Esta constatação obriga-nos a refletir sobre a formação de verdadeiras redes de
clientelismos desenvolvidas a sombra das confrarias. Muitas vezes, servia como
estratégias para fortalecimento de pequenos grupos e/ou para defesa de interesses
familiares.
Logo, podemos pensar as irmandades como verdadeiros ―espaços‖ construìdos,
como menciona Michel de Certeau: ―(...) produzido pelas operações que orientam, o
circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de
programas conflituais ou de proximidades contratuais‖70. Por isso, por mais que o
discurso religioso fosse universalizante na práxis era bastante excludente. Neste sentido,
70
CERTEAU, Michel. Práticas de espaço. In: ______. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Tradução:
Ferreira Alves. 3ª. ed. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 202.
71
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corroboramos com Dominique Julia: ―(...) não é a condição de verdade das afirmações
religiosas, mas a relação que mantêm essas afirmações, esses enunciados com o tipo de
sociedade ou de cultura, que os explicam‖71. Portanto, apesar das irmandades
estimularem e legitimarem as diferenças existentes na sociedade, elas tiveram um papel
relevante na construção de espaços de sociabilidade e multiplicaram os tempos, os
espaços centrados em torno das cerimônias e festas religiosas.
As festas religiosas e as elites agrarias no Vale do Paraiba
As irmandades enquanto associações corporativas, no interior do qual se teciam
solidariedades fundadas na hierarquia social, prestavam sempre sua fé ao santo
padroeiro em busca de proteção. Segundo João José Reis, ao celebrar os santos de
devoção representava um investimento ritualístico tanto para a vida quanto para a morte
do confrade. Mas, nada era tão importante quanto às festas do santo de devoção.
Momento em que todos os irmãos vestiam seus aparatos de gala e saiam em procissões
pomposas, seguidas de danças e banquetes72. Como ficou registrado em Janeiro de
1879, no ―Livro de Receitas‖ da irmandade do Glorioso São Benedito, em Piraì, um
gasto de 46$420 com 10 dúzias de foguetes, doces, vinhos e velas 73. Seguramente uma
tradição que já vinha do período colonial, com fortes influencias das congêneres
portuguesas. Sobre este fato Caio César Boschi nos relata:
(...) a religiosidade portuguesa se expressaria por atos externos, pelo culto aos
santos e não por reflexões dogmáticas; muito mais por procissões e
ritualismos que por introspecção espiritual. A magnificência das cerimônias
religiosas não se opunha uma religião consistente e aprofundada na fé.
Acrescente-se ainda que, a religião em Portugal, desde as origens como
nação independente, fora uma fusão de elementos étnicos diversificados.
Etnia tão diversificada geraria religião essencialmente sincrética e eclética. O
resultado foi uma religião exteriorista, epidérmica, caracterizada por um
‗ritualismo festivo‘(...)74.
71
DOMINIQUE, Julia. História religiosa. In: LE GOFF, Jacques. (org.). História: novas abordagens. Rio
de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p. 108.
72
REIS, op. cit., p. 61.
73
ARQUIVO DE PIRAÍ. Atas de receita da irmandade São Benedito. Ano. 1879. Religiosos Diversos.
s/n. p. 1.
74
BOSCHI, Caio César. Religião e Igreja sob o Estado Absolutista português. In: ____. Os leigos e o
Poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986, p. 36.
72
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Uma religiosidade tipicamente tradicional 75. De todo modo, uma fé tradicional
católica com característica barroca, isto é, uma prática religiosa caracterizada pelas
demonstrações grandiosas externa de fé, com grandes celebrações laudatórias arrastada
pelas multidões76. Nessa visão barroca, segundo João José Reis, ―(...) o santo não se
contenta com a prece individual. Sua intercessão será tão mais eficaz quanto maior for a
capacidade dos indivíduos de se unirem para homenageá-lo de maneira espetacular‖77.
Neste sentido, veríamos tanto na Colônia quanto no Império, um clima de disputa entre
as irmandades em torno das festas em nome dos santos. O prestigio que estas festas
proporcionavam, refletiam na capacidade de recrutamento de novos membros e a
possibilidade de maior visibilidade na comunidade. Por isso, as irmandades
demonstravam toda sua força por ocasião das festas. Para Mary Del Priore, tudo
convergia para festa:
A decoração das ruas e das igrejas, a opa vermelha dos irmãos, o brilho dos
tocheiros, das luminárias e dos fogos. As procissões saíam com carros
alegóricos, músicos e bailarinos, misturando-se aos homens e mulheres que,
compungidos ou alegres, faziam suas preces - um carnaval de fé78.
As festas eram espaços privilegiados para a construção de redes de
sociabilidade, Caio César Boschi, enfatiza que os gastos em homenagem ao santo
padroeiro, eram compensados porque revitalizava os laços no interior das confrarias
como fortalecia externamente a imagem do sodalício perante a comunidade 79. Para o
antropólogo Roberto da Matta as festas religiosas como outras instâncias da vida social
são ritos que sem eles a sociedade não existiria como algo consciente. Dentro desta
perspectiva os ritos seriam senão a chave, pelo menos um dos elementos críticos para
entender a lógica do social, por isso magistralmente ele sintetiza: ―falar em vida social é
falar em ritualização‖80. Portanto, devemos analisar a dialética entre rotina/cerimônia,
75
OLIVEIRA. Anderson José Machado de. Devoção e caridade: irmandades religiosas no Rio de Janeiro
Imperial (1840-1889). Dissertação de Mestrado. Niterói, 1995, p. 39-40.
76
REIS, op. cit.., p. 49.
77
REIS, op. cit., p. 61.
78
PRIORE, Mary Del. A reforma pastoral, os fiéis e suas práticas. In: _____. Religião e religiosidade no
Brasil Colonial. 6ª. Ed. São Paulo: Ática, p. 42.
79
BOSCHI, Caio César. Sociabilidade religiosa laica: as irmandades. op. cit., p. 361.
80
MATTA, Roberto da. Introdução. In: _____. VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem.
Petrópolis: Vozes, 1978, p. 10.
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repetição/inauguração, sagrado/profano como fenômenos ritualísticos de transformação
onde os movimentos sociais coletivos passam por um período especial, invertendo ou
reforçando a realidade. Mas, não devem ser vistos como mera práxis social, ou
simplesmente como aquisição de conhecimento, para o antropólogo Victor Turner os
ritos efetua uma mudança ontológica no ser, criam homens e mulheres81.
Assim, as confrarias enquanto espaços de ritualização de um tempo e espaço
sagrado, os simbólicos sagrados como representações da fé aproximam-se do caráter
conferido por Clifford Geertz. Segundo ele o símbolo funcionaria como sintetizador do
ethos de um povo. Desta forma podemos perceber o orago enquanto uma visão de
mundo para os sodalìcios. Para o antropólogo, ―os sìmbolos religiosos formulam uma
congruência básica entre um estilo de vida particular e uma metafísica especifica e, ao
fazê-lo sustentam cada uma delas com a autoridade emprestada do outro‖ 82. Por isso, no
dia 11 de Abril de 1872 a irmandade do Santíssimo Sacramento, em Piraí, publicaria no
jornal do Commércio o convite para todos os sodalícios para festejar o santo padroeiro.
Tendo a administração desta irmandade de festejar o seu orago, expondo o
Santíssimo Sacramento com missa solene as 11 horas da manhã do dia 11de
Abril próxima, sermão ao Evangelho, e procissão depois da missa, ao redor
da igreja, de ordem da mesma convido aos nossos caríssimos irmãos e mais
devotos para comparecerem a este ato religioso 83.
Neste período, a ordem chegava a gastar quantias expressivas. Ao analisarmos
os relatórios da irmandade vemos que no triênio de 1870/3, chegou à importância de
783$360, enquanto no triênio de 1873/6 o gasto aumentaria para 891$310. Quando
aproximamos ao fim do Império, a confraria chegou a gastar em um único ano, a
quantia de 1:596$900 réis como foi registrado no ―Livro de Atas do Conselho‖ no dia 5
de Julho de 189684. Isto nos leva as algumas reflexões. As irmandades como a Igreja
Católica, na segunda metade do séc. XIX, tiveram que conviver e enfrentar uma
81
TURNER, Victor. Betwixt and between: o período laminar nos ritos de passagem. In: ____. Floresta de
símbolos: aspectos do ritual Ndembu. Tradução: Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto. Niterói: Eduff, 2005
p. 147.
82
GEERTZ, Clifford. A religião como sistema cultural. In: _____. A interpretação das culturas. 2ª. Ed.
Rio de Janeiro: LTC, p. 103-104.
83
BIBLIOTECA NACIONAL. Jornal do Commercio. Setor Microfilmagens. Ano. 1872. p. 20.
84
ARQUIVO DE PIRAÍ. Livro de Atas da irmandade do Santíssimo Sacramento. Ano. 1896-1964, s/n. p.
4.
74
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concorrência em relação aos novos tempos secularizantes que ganhavam espaços na
sociedade brasileira. Este momento foi marcado pela diversificação de discursos sobre a
realidade social, tal como o discurso médico, o pensamento liberal, as idéias de
secularização, a imprensa, o teatro. As irmandades enfrentavam oposições internas, da
própria Igreja. O movimento de Reforma Católica e Romanização consolidariam suas
posições por volta de 1840 no Brasil com a proposta de conduzir o antigo clero à
observação do celibato, e rejeitar as atividades religiosas tradicionais interpretadas
como profanas, atrasadas e supersticiosas. Este fato atingiria diretamente as praticas
religiosas das irmandades85.
Mas o séc. XIX foi marcado pela ambigüidade entre o Estado Imperial e a
Igreja. Este fato acabaria favorecendo as irmandades, pois a Igreja Católica acuada pelo
regalismo do Estado e pelas crescentes críticas que lhe eram formuladas, teve que
limitar sua atuação com relação às confrarias. Por outro lado, a Igreja teve que
reconhecer a importância delas para a manutenção da fé e do controle dos sodalícios.
Neste aspecto as confrarias eram vista com condescendência pelo Estado Imperial,
porque a religião era tida como um importante instrumento gerador de consenso político
e social. Apesar de todas as contradições na sociedade imperial, a irmandade do
Santíssimo Sacramento, em Piraí, não deixou de sair no dia 5 de Julho de 1896 para
festejar o santo padroeiro, em uma procissão extremamente laudatória e hierarquizada,
no qual o quadro administrativo composto por grandes comerciantes, fazendeiros e
políticos da comunidade figuravam na frente vestidos de gala simbolizando a
irmandade, o seu poder e prestigio, mas, por outro lado, simbolizando as estratificações
sociais e a persistência do catolicismo tradicional barroco.
85
OLIVEIRA, op. cit., p. 30-42.
75
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O PROCESSO DE OCUPAÇÃO DO VALE DO MACACU/RJ NO PERÍODO
COLONIAL
Ailton Fernandes da Rosa Júnior86
Resumo:
Este artigo propõe-se a realizar uma pequena contextualização sobre as dinâmicas da
ocupação do Vale do Macacu/RJ. Para tanto, buscaremos compreender o processo de
colonização e ocupação da região a partir de três lentes de análise: As dinâmicas
políticas, na qual buscaremos o modelo político-administrativo utilizado pela coroa
portuguesa na colonização. Os Aspectos ambientais, cuja rede hidrográfica foi um fator
de precocidade da ocupação. E, por fim, os fatores econômicos, especialmente as
características fundiárias e produtivas da região.
Palavras-chave: Colonização; Santo Antônio de Sá; História Ambiental.
Abstract:
This article proposes to conduct a little context on the dynamics of the occupation
Macacu Valley / RJ. Therefore, try to understand the process of colonization and
occupation of the region from three lens analysis: The political dynamics, which seek
the political-administrative model used in colonization by the Portuguese crown. The
Environmental Aspects, whose hydrographic network was a factor early occupation.
And finally, economic factors, especially land and productive characteristics of the
region.
Keywords: Colonization; Santo Antônio de Sá; Environmental History.
Este artigo responde à necessidade de compreender, ainda que brevemente, a história da
formação da Vila de Santo Antônio de Sá (objeto de minha pesquisa de mestrado) e a
sua inserção no processo de conquista e ocupação das novas terras ‗descobertas‘ pelos
portugueses no Brasil. Tal processo é de grande relevância para o estudo, ao passo que,
as diversas transformações sociais, econômicas e ambientais, expressam-se de maneira
mais clara a partir de um recorte de longa duração, onde as transformações presentes no
século XIX poderão ser devidamente relacionadas aos seus contextos anteriores.
Para tanto, teremos como ponto de partida a análise crítica das impressões
deixadas pelos viajantes estrangeiros e agentes da coroa que aportaram pelos sertões da
86
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e
Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Orientadora: Susana Cesco. E-mail:
[email protected]; Telefone: (21) 7119-2806; Endereço: Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro, Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Departamento de Desenvolvimento, Agricultura e
Sociedade. Avenida Presidente Vargas, 417/6º andar, Centro - 20071-003 - Rio de Janeiro, RJ – Brasil.
76
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Guanabara naqueles primeiros séculos de colonização. Porém, entendendo que tais
fontes de caráter escrito representavam para a iletrada sociedade colonial, a expressão
de uma elite socioeconômica, personificadas aqui pelo olhar científico europeu, pelos
agentes da administração colonial e eclesiástica. Vale ressaltar, portanto, a necessidade
de uma construção metodológica que possa dar conta de outros olhares e de outras
práticas concretas, envolvendo os demais atores sociais que compuseram a sociedade
local.
Dividiremos este artigo em três partes, cuja intenção será a de focalizar algumas
das dimensões, dentre a miríade de possibilidades, que julgamos pertinentes ao
entendimento do processo de ocupação dos entornos da Guanabara, entre os séculos
XVI e XVIII.
A dimensão política, representada através dos interesses da Coroa Portuguesa,
expressos pela estratégia de ocupação, e pelo próprio modelo administrativo, inspirado
na prática eclesiástica, do costumeiro padroado. O relevante fator ambiental,
representado principalmente pelas facilidades de entrada para o sertão oferecidas pelo
rio Macacu, além do seguro caminho de escoamento da produção agrícola e extrativista
até a Baía de Guanabara. E, por fim, as características produtivas da região, que
possibilitaram a precoce ocupação do vale do Macacu, entre as quais a produção de
alimentos e a relativa proximidade com o principal mercado (a cidade do Rio de
Janeiro), garantiram a rápida povoação por lavradores de mantimentos atraídos pelas
férteis terras e pelo transporte barato que os ligava ao principal centro de consumo da
capitania.
Dinâmicas políticas na ocupação territorial do Vale do Macacu
A Vila de Santo Antônio de Sá, objeto de nossa investigação, está localizada no
recôncavo da baía de Guanabara, mais especificamente na porção nordeste da mesma.
Dentro da conformação territorial que possuía na segunda metade do século XIX,
poderíamos dividi-la em duas regiões geograficamente distintas. Por um lado, temos
uma região de baixada, bastante alagadiça e de clima quente, cuja colonização, bastante
antiga, remete ao século XVI (Freguesias de Santo Antônio de Sá e São José da Boa
Morte) e, por outro, uma região mais elevada, de relevo serrano, com colonização mais
tardia (Freguesia de Santìssima Trindade de Sant‘anna de Macacu).
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Apesar da lamentável dificuldade de acessar os documentos referentes à doação
de terras realizadas através das Sesmarias nos primeiros séculos de colonização em
terras fluminenses, o pesquisador Maurício de Abreu, através da Relação das sesmarias
da capitania do Rio de Janeiro87 produzida pelo Monsenhor Pizarro em finais do século
XVIII, nos dá importantes informações a respeito da distribuição de Sesmarias e das
suas implicações políticas e econômicas.
A utilização da instituição da Sesmaria em terras brasileiras indica, ainda, a
responsabilidade da Coroa portuguesa em doar terras àqueles pleiteantes que
possuíssem as condições necessárias para cultivar as terras em questão, além da tarefa
de medir e demarcar suas respectivas propriedades. Ainda que a efetiva fiscalização
sobre os donatários, aliada a uma legislação aplicada de modo descontinuado, dispersa
em um amplo número de avisos, resoluções administrativas, cartas de doação, forais e
textos das Ordenações acabassem por criar uma legislação fragmentada, nem sempre
coesa, revogada e reafirmada de tempos em tempos ao sabor das necessidades da
administração portuguesa.
De todo modo, as exigências e tentativas do governo em estabelecer os reais
critérios para o cultivo, medição e demarcação das sesmarias foram em vão, tais
mecanismos não foram capazes de deter o processo de expansão praticado pelos
sesmeiros e por outros agentes sociais. Por tratar-se de um instrumento jurídico ligado
diretamente à ocupação e colonização das terras na colônia brasileira, além do incentivo
à produção e ao cultivo de produtos agrícolas e extrativistas, a sesmaria acabou por
aglutinar categorias sociais estranhas a ela própria. Muitos dos donatários, por exemplo,
preferiram arrendar suas terras, ou grandes parcelas delas, a arrendatários que, não raro,
as sublocavam a pequenos lavradores. Por outro lado, as dificuldades de fiscalização da
Coroa Portuguesa em verificar as suas exigências de cultivo e demarcação estimulou
também o crescimento da figura do posseiro, entendido aqui, de maneira bastante geral,
como aquele indivíduo que ocupa determinado trecho de terra, sem, no entanto, ser
detentor de um título legal de propriedade.
87
PIZARRO E ARAUJO, José de Souza Azevedo. Relação das sesmarias da capitania do Rio de Janeiro,
extrahida dos livros de sesmarias e registros do cartório do tabelião Antonio Teixeira de Carvalho, de
1565 a 1796. In: Revista do Instituto Histórico Geográfico, vol. 63 (Tomo I). pp. 93-153, 1900.
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Outro dado importante é perceber que dentro da organização política e espacial
do Recôncavo da Guanabara, a respeito da instituição das sesmarias, é interessante notar
como desde os primeiros anos da colonização as grandes propriedades, aquelas dos
donatários, coexistiram com a pequena e média propriedade, sendo estas últimas
àquelas que de fato predominaram no cenário agropastoril fluminense.
Ao final do século XVI, pudemos visualizar, através da Relação das sesmarias
da Capitania do Rio de Janeiro88, que todos os terrenos próximos às desembocaduras
dos rios que desaguam na Guanabara estavam oficialmente distribuídos por meio de
cartas de sesmarias. A ocupação efetiva dos ―sertões‖ do Macacu, porém, só foi
realizada nos séculos seguintes, com a entrada de colonos e a submissão dos nativos.
Foi também durante o século XVII que os primeiros povoados edificados pelos
donatários, nas cercanias da Guanabara, começaram a desenvolver-se a ponto de serem
elevados às categorias de freguesias e vilas. Nesse contexto, é colocada em prática uma
política centralizadora, preocupada em criar mecanismos de controle territorial, com a
fundação de freguesias, vilas e cidades, estas teriam a função de reduzir o poder de
mando dos sesmeiros dentro das esferas decisórias.
Ao buscar um recorte espacial capaz de orientar nosso trabalho, tendo em vista
as indicações de Maria Yedda Leite Linhares e Francisco Carlos Teixeira da Silva 89,
adotamos as freguesias como unidades político-administrativas relativamente
hegemônicas e capazes de conciliar o raio de ação dos principais centros produtores de
documentação histórica no Brasil oitocentista, o cartório e a igreja.
Por outro lado, as freguesias e vilas encontradas na documentação do século
XIX e início do XX não convergem diretamente para a atual divisão administrativa em
municípios. O pesquisador, entretanto, não deve prender-se em limites fisiogeográficos
e administrativos, dispondo de certa liberdade para operar reduções e ampliações nos
recortes analíticos sempre que necessário, nas palavras de Marc Bloch:
―(...) é absurdo aferrar-se a fronteiras administrativas tomadas da vida
presente, e não o é muito menos utilizar fronteiras administrativas do passado
88
PIZARRO e ARAUJO. Op. Cit., 1900.
89
LINHARES, Maria Yedda Leite e SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Região e História Agrária. In:
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, Nº. 15, 1995. p. 17-26.
79
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(...). É necessário que a zona escolhida tenha uma unidade real; não sendo
necessário que tenha fronteiras naturais dessas que não existem mais do que
na imaginação dos cartógrafos.‖90
A instituição das freguesias, ou paróquias, que cobriam o Brasil desde o período
Colonial perdurou até a República Velha. A persistência desta unidade administrativa é
interessante, na medida em que remonta ao período da reconquista ibérica, no século
XII, e a estreita relação entre o Estado português e a Igreja Católica, quando as
instituições religiosas deram provas de possuir maior resistência em relação às
instituições administrativas civis.
A colonização efetiva da região que dará origem à Vila de Santo Antônio de Sá
inicia-se ainda no século XVI, com a distribuição de sesmarias91 nos ‗sertões do
Macacu‘ que visavam, aparentemente, garantir o domìnio e a proteção do território
fluminense após a expulsão definitiva dos franceses em 1567 e criar centros produtores
de alimentos que possibilitassem o abastecimento da recém-criada cidade de São
Sebastião do Rio de Janeiro.
No decorrer do século XVII a povoação, ou arraial, de Santo Antônio foi
transformado em freguesia, através do alvará de ereção de 10 de fevereiro de 164792 e,
posteriormente, ―Sendo ja crescido o numero dos povoadores das terras além do Rio, e
assás distantes da Cidade, d'onde não podiam ter prompto o recurso em dependencias
ordinárias‖93 foi elevada a categoria de Vila em 5 de agosto de 1697.
A despeito das freguesias citadas anteriormente, a Vila de Santo Antônio de Sá
contava, no primeiro século de sua existência, com um território muito mais abrangente
do que aquele que encontramos no século XIX e que aprofundaremos nos capítulos
seguintes. Estavam submetidas à administração da Vila as freguesias de São João de
90
BLOCH, Marc. Les caracteres originaux de l‘historie rurale française. Paris: A. Colin, 1952. Apud:
LINHARES, Maria Yedda Leite e SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Região e História Agrária. In:
Estudos Históricos. Vol. 8, nº 15. Rio de Janeiro, 1995. p. 17-26.
91
Entre estas primeiras sesmarias, estão às concedidas a Miguel de Moura e Cristóvão de Barros, em
1567, apenas um ano depois da fundação do Rio de Janeiro e o início da ocupação das terras fluminenses.
Tais sesmarias abarcavam, respectivamente, 9.000 braças de largo pelo Rio Macacu e 12.000 braças para
o sertão e 6.000 braças de largura por 9.000 de comprimento para o sertão, respectivamente. Áreas que
mais tarde conformariam o território da extinta Vila de Santo Antônio de Sá.
92
PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza Azevedo. Memórias Históricas do Rio de Janeiro. Vol. 2. Rio
de Janeiro: Impressão Régia, 1820. p. 186.
93
Idem, 196.
80
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Itaborahy, Nossa Senhora da Ajuda de Sarnabetiba e Nossa Senhora do Desterro de
Itamby, que mais tarde, em 1833, formariam a Vila de São João de Itaborahy, além da
Freguesia de Nossa Senhora do Aguapey-mirim (Guapimirim), anexada à Vila de Magé
em 178994.
Para além do fato em si, a criação da Freguesia de Santo Antônio do Caceribu e
sua posterior elevação ao status de Vila, sob a denominação de Santo Antônio de Sá 95,
representa também a inserção do antigo povoado no campo das ações e efeitos do poder
da Coroa portuguesa, responsável pelos rumos da ocupação, exploração e controle das
populações e territórios da Colônia. Para tanto, os marcos estabelecidos nos anos de
1647 e 1697 não seriam apenas pontos de partida de uma narrativa centrada nos fatos de
natureza burocrática e administrativa, mas relacionam-se diretamente com os anseios
político-econômicos da casa dos Bragança e a sua estreita interdependência com aqueles
colonos e colonizados que ocuparam o território, construíram o povoado e
materializaram-no enquanto local estratégico a ocupação e fixação do domínio
português no Recôncavo da Guanabara.
Aspectos ambientais da ocupação
Pensar a história colonial brasileira é, em boa medida, pensar as formas de entrada e
efetiva fixação dos colonos no litoral e interior do território. Nesse ponto, é relevante
também ter em conta os elementos que favoreceram, ou dificultaram, o processo de
ocupação de um determinado território, assim como os aparatos técnicos disponíveis
para transpor os possíveis obstáculos criados pela geografia. Numa região onde a
navegação fluvial se estabeleceu como principal meio de transporte, esta história deve
ser considerada também como a história de seus diferentes rios e afluentes. Esta
afirmativa é válida até meados do século XIX, quando outros meios de transporte, com
destaque para a linha férrea, se estabeleceram como vetores de ocupação no Vale do
Macacu e Serra do Mar.
94
SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Magé na crise do escravismo: sistema agrário e evolução
econômica na produção de alimentos (1850-1888). 1994. (Mestrado em História)-Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 1994.
95
A alteração topônimo ‗do Caceribu‘ para o posterior ‗de Sá‘ deve-se a homenagem prestada ao General
Governador Artur de Sá e Menezes, responsável pela ereção da vila.
81
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A bacia do Macacu é protagonista da história econômica fluminense entre os
séculos XVI e XIX, sustentando os interesses mercantilistas europeus, com a sua farta
disponibilidade de recursos naturais. A abundância de madeiras em todo o Recôncavo
da Guanabara ensejou o extrativismo no século XVI, principalmente no baixo curso dos
rios, onde a navegação era possível e o transporte da mercadoria facilitado. A produção
da cana-de-açúcar, iniciada no século XVI, o escoamento do ouro, no século XVIII,
proveniente das minas gerais, e a produção de café já no século XIX foram outras
importantes atividades sustentadas na bacia.
Como sabemos, as terras do Macacu foram, dentre aquelas que se encontravam
no sertão, as primeiras a serem distribuídas através de cartas de sesmarias, inicialmente
a três donatários: Miguel de Moura, Cristóvão de Barros e Jerônimo Fernandes,
dispostos aqui respeitando não apenas a ordem em que receberam a carta de doação de
terras, mas também a localização das mesmas, sendo o primeiro aquele cujas terras
estavam mais próximas à Baía de Guanabara e o último, o donatário das terras
localizadas na base da Serra do Mar, mais ao sertão96.
Por exercer, então, o papel de artéria fundamental no escoamento da produção,
tanto de açúcar como de gêneros de primeira necessidade, foi através do Macacu que se
desenharam as rotas onde o intercambio de produtos e pessoas acabaram por criar
hábitos, fronteiras e povoados. Pouco a pouco, acompanhando o sinuoso traçado de suas
águas e a expansão do comércio, foram criados os primeiros portos, espaços de encontro
e conflito.
Nas margens do rio Macacu e de seus afluentes desenvolveram-se várias
freguesias e vilas, as mais notáveis são aquelas, já citadas anteriormente, que
compunham a Vila de Santo Antônio de Sá, mais tarde desmembrada também na Vila
de São João de Itaboraí. Além de muitos portos, como o da Villa Nova, das Caixas, da
Olaria, de João Massedo, da Villa de Santo Antônio de Sá, do Vendi, entre muitos
96
Todas estas sesmarias foram doadas nos primeiros anos de colonização entre 1567 e 1569. Ver:
PIZARRO E ARAUJO, José de Souza Azevedo. Relação das sesmarias da capitania do Rio de Janeiro,
extrahida dos livros de sesmarias e registros do cartório do tabelião Antonio Teixeira de Carvalho, de
1565 a 1796. In: Revista do Instituto Histórico Geográfico, vol 63 (Tomo I). pp. 93-153, 1900.
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outros97, tais portos tinham grande importância para o transporte de gêneros, dado
estado lastimável das estradas e caminhos.
Um olhar mais atento à Mata Atlântica é imprescindível a qualquer estudo que
se disponha a incluir uma análise ambiental em seus métodos. Entendendo que a área do
atual Estado do Rio de Janeiro era, no século XVI, de 92 a 95% coberta pela Mata
Atlântica (que se estende, como informamos antes, por boa parte do litoral brasileiro),
podemos intuir que esta formação florestal foi o principal meio físico-geográfico
utilizado por portugueses e brasileiros durante os séculos de colonização.
A floresta proporcionou ao homem, portanto, não só os meio objetivos de
trabalho e produção, mas sua própria localização. Para viver na floresta o colonizador
precisou removê-la. Apropriou-se, porém, de outras formas. Quando removida, a
floresta serviu não apenas de localização física para a morada, mas como unidade
produtiva, seja através de sua fértil terra a ser cultivada, seja através da exploração de
suas madeiras, animais e demais recursos.
A diversidade produtiva no Vale do Rio Macacu
Há, no Brasil, uma tradição historiográfica preocupada em enfatizar o caráter
monocultor da colônia e a relação de submissão à classe dominante metropolitana como
uma razão de ser desde os primeiros anos de colonização. Por conta desta tradição, a
história da agricultura de alimentos tem sido frequentemente omitida ou, quando citada,
apenas para reafirmar o seu caráter arcaico e o limitado papel que desempenhou no
conjunto da economia colonial brasileira, como indica Yedda Linhares:
Ora, nada mais defasado do que a manutenção dessa visão plantacionista,
marca persistente e conservadora da historiografia brasileira. Os trabalhos,
como os já mencionados de Stuart Schwartz bem como os que se
desenvolveram na linha da pesquisa agrária no Rio de Janeiro, nos últimos
quinze anos, tiveram por objetivo revelar a ―face oculta da lua‖ ao
enfatizarem os aspectos da pequena lavoura, voltada para a produção de
alimentos - inclusive a pecuária - e a caracterização dos sistemas agrários,
suas mudanças e seus limites no tempo.98
97
LAVRADIO, Marquês do. Relatório ao Vice-rei Luís de Vasconcelos (1769-1779). In: Revista do
IHGB. Tomo 76, 1913, p. 289-360.
98
LINHARES, Maria Yedda Leite. Pecuária, Alimentos e Sistemas Agrários no Brasil (Séculos XVII E
XVIII). In: Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, Le Portugal etl‘Europe Atlantique, le
Brésil et l‘Amérique Latine. Mélanges offerts à Fréderic Mauro, vol. XXXIV, Lisboa, Paris, Dez.,
1995.p.4.
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Vários foram os papéis da agricultura de alimentos no processo de colonização
do Brasil. Entre eles, destaca Linhares (1995), o de ocupar a terra, desbravando-a e
povoando-a e, ainda, a função de organizar, sob o regime familiar, as unidades
produtivas responsáveis por gerar excedentes agrícolas direcionados ao atendimento dos
crescentes núcleos urbanos99.
O setor de abastecimento não se caracteriza por uma oposição à grande
propriedade exportadora, ao contrário, estes dois modelos são complementares, e
harmonizam-se. Fazendo uso de formas não assalariadas de produção, as pequenas
propriedades eram capazes de suprir as demandas urbanas, além de fornecer víveres a
baixos preços à grande propriedade monocultora.
Durante todo o processo de ocupação do Vale do Macacu, além das fazendas de
produção de cana-de-açúcar e de café, estas últimas em menor quantidade, um grande
número de posses e outras situações foram constituídas nesta região. A partir das
informações concedidas por fontes, como a Discripção do que contém o Districto da
Vila de Santo Antônio de Sá de Macacu, o relatório do marquês do Lavradio, além de
relatos de viajantes que passaram pelas serras fluminenses nos séculos XVIII e XIX,
percebemos a existência, naqueles sertões, de um grande número de trabalhadores
mestiços, pobres e livres situados entre os dois extremos da pirâmide social brasileira.
No que diz respeitos ás fontes que nos informem sobre o caráter produtivo de
Santo Antônio de Sá, o relatório do marquês de Lavradio é particularmente interessante
e se distingue por abarcar uma maior variedade de informações: as características
geográficas como rios, relevos, profundidade dos portos, o caráter das pessoas, a
situação das fortalezas e das tropas, o balanço das principais ocorrências do governo,
etc., tratando amplamente e de forma bem articulada diversos conteúdos. Eles foram
produzidos prioritariamente para dar ciência ao sucessor das condições da colônia, com
o intuito de facilitar o início de sua administração, como atesta o próprio Marquês do
Lavradio. O Relatório apresenta ainda a produção discriminada das freguesias que
compõem a vila100, assim como um pequeno resumo sobre o estado em que se encontra
99
Idem, p.4.
100
Apesar de, ao final do século XVIII, a Vila de Santo Antônio de Sá possuir um número bem mais
expressivo de freguesias, nos limitaremos aqui àquelas que permanecem no termo da Vila na maior parte
do século seguinte.
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a região, seus portos, meios de transporte e população, no ano de 1778, onde constam as
seguintes informações:
Tabela 1 – Produção Agrícola - Santo Antônio de Sá – 1778101
Freguesia
Santíssima Trindade
St. Antônio de Sá
Açúcar
73
caixas
26
caixas
Aguardente
52 pipas
15 pipas
Farinha
28.000
alqueires
10.000
alqueires
Feijão
2.200
alqueires
400
alqueires
Milho
1.700
alqueires
500
alqueires
Arroz
3.500
alqueires
3.000
alqueires
Fonte:Relações Parciaes Apresentadas ao Marquez de Lavradio. 8 de outubro de 1778. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - IHGB, Tomo 76, Parte I. 1913
Depreende-se a partir da leitura dos dados que, apesar de preponderância
historiográfica em relação aos ‗produtos-rei‘, o açúcar e a produção de cana estiveram,
dentro do cenário produtivo do Vale do Macacu, em segundo plano, sendo a produção
de alimentos e madeiras as maiores atividades relacionadas. Com destaque especial a
produção de madeiras e taboados, sendo esta vila a maior produtora da capitania do Rio
de Janeiro, seguida por Campos dos Goitacazes e Angra dos Reis. Características estas
que se repetem, em maior ou menor proporção, em toda região que circunda a
Guanabara.
Considerações Finais
Esse breve artigo buscou responder às indagações iniciais da minha dissertação de
mestrado, ao buscar as características da produção de alimentos do Recôncavo da
Guanabara no século XIX e os modos de vida destes pequenos agricultores livres, fez-se
necessário recuar no tempo para entender quais os elementos que operaram na
conformação territorial da região.
Para tanto, buscamos entender quais as principais vias explicativas desta
prematura ocupação que remonta dos séculos XVI e XVII. Elegemos como fatores
principais: a política Portuguesa e sua necessidade de colonizar e demarcar as novas
terras, sempre orientada por suas estruturas eclesiásticas. O próprio fator ambiental,
101
Mantivemos aqui a unidade de medida mencionada na fonte, o alqueire era a antiga unidade de medida
utilizada para secos, cereais em especial, sua conversão mais usual para o sistema métrico é através de
litros. Cada alqueire equivale a 36,27 litros. Ver: ZUIN, Elenice de Souza Lodron. Por uma nova
arithmethica: O sistema métrico decimal como um saber escolar em Portugal e no Brasil oitocentistas.
Tese de Doutorado (em Educação Matemática). PUC/SP. São Paulo: 2007. p .313.
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onde a extensa rede de transportes formada pela bacia hidrográfica do rio Macacu
funcionou como uma artéria capaz de conduzir o colonizador aos pontos mais remotos,
mas também de fazer escoar a produção daqueles que lá se fixaram. E por último, as
possibilidades econômicas de uma região cuja localização, próxima à cidade do Rio de
Janeiro, demandou a conformação de um quadro produtivo bastante diversificado, cujos
excedentes estavam estreitamente ligados ao consumo urbano do Rio de Janeiro e outras
cidade.
86
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A DEPENDÊNCIA DO TRABALHO ESCRAVO E A IMPORTÂNCIA DO
PEQUENO PROPRIETÁRIO PARA O MERCADO INTERNO DO BRASIL MA
PRIMEIRA METADE DO XIX
Alan de Carvalho Souza 102
Resumo:
Busco analisar os desdobramentos das ações políticas a partir da chegada da Corte
portuguesa no Brasil. A proposta é examinar se houve ou não consequências das
atitudes tomadas pelo novo centro administrativo do Império Lusitano na região do
Vale do Paraíba fluminense, mas precisamente na vila de Paty do Alferes/Vassouras.
Logo, por se tratar de uma região voltada para o mercado externo se faz necessário o
entendimento sobre o volume de africanos importados e daqueles que sustentavam o
comércio escravo.
Palavras-chave: Política; Comércio e escravo.
Abstract:
I try to analyze the consequences of political actions from the arrival of the Portuguese
Court in Brazil. The proposal is to examine whether or not the consequences of actions
taken by the new administrative center of the Lusitanian Empire in the Vale do Paraíba
Fluminense, but precisely in the village of Paty's Ensign / Brooms. Therefore, because it
is a region facing the external market is necessary understanding of the volume of
imported Africans and those who supported the slave trade.
Keywords: Politics, Trade and Slave.
No artigo Tráfico atlântico, mercado colonial e famílias escravas no Rio de Janeiro,
Brasil, Ca. 1790-ca. 1830, Manolo Florentino busca redefinir algumas posições
clássicas acerca das relações entre o tráfico de africanos, o mercado colonial e algumas
práticas familiares dos escravos103 e pondera que a resistência por quase meio século da
pressão inglesa só foi possível se compreender e considerar o comércio negreiro como
um importante circuito interno de acumulação de riqueza 104. Somado a outros trabalhos,
os dados apresentados demonstram o quanto à sociedade daquele momento era
102
Mestre em História Social pela Universidade Severino Sombra e autor dos livros Terras e Escravos: a
Desordem senhorial no Vale do Paraíba e Cargos Comissionados: Clientelismo do Estado Social e
Democrático, ambos pela Paco Editorial.
103
FLORENTINO, Manolo. Tráfico atlântico, mercado colonial e famílias escravas no Rio de Janeiro,
Brasil, Ca. 1790-ca. 1830. In: História: Questões & Debates. Editora UFPR, Curitiba, n. 51, jul/dez.
2009, p. 69-119
104
FLORENTINO, Manolo. Tráfico atlântico... Op., Cit., p. 71.
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dependente do sistema escravista e o quanto a economia do Brasil foi montada e
desenvolvida pela dinâmica parasitária da sociedade de antigo regime 105.
Fragoso em seu estudo intitulado Homens de grossa aventura cujo objetivo é
entender as formas de acumulação que perpassam a economia escravista na virada do
século XVIII para o XIX106, assinala o crescimento do comércio de cativos para o
período de 1799 até 1811. Momento este, tido pelo autor como positivo para o Brasil107.
Manolo Florentino ao analisar o tráfico atlântico, também aponta o crescimento dessa
prática, segundo o autor cerca de dez mil africanos desembarcaram por ano no final do
século XVIII108. Já no trabalho O arcaísmo como projeto os autores também
demonstram a crescente do comércio. De acordo com os dados apresentados só nos
setecentos o Brasil importou quase 2 milhões de africanos109. Comparado ao século
anterior houve um aumento de aproximadamente 400%. Outra questão apresentada
pelos trabalhos acima citados é a conformidade de se tratar de uma sociedade escravista,
ou seja, uma elite que se reproduz mediante a exploração do trabalho cativo 110.
Retornando para a quantidade de escravos que desembarcaram no Brasil no período
compreendendo o final do século XVIII e início do XIX é possível constatar dados que
corroboram não só na reprodução de uma sociedade arcaica como dependente
economicamente do trabalho cativo.
Na análise realizada por Manolo Florentino no trabalho Tráfico Atlântico,
mercado colonial e famílias escravas, o historiador estabelece uma divisão para marcar
três momentos do desembarque de africanos no porto do Rio de Janeiro. Primeiro
apresenta a fase de estabilidade (1790-1808), num segundo momento a aceleração
105
FRAGOSO, João Luis. Homens de Grossa Aventura – acumulação e hierarquia na praça mercantil
do Rio de Janeiro 1790-1830. 2ª Ed, RJ: Civilização Brasileira, 1998, p. 70.
106
Ibidem, p. 19.
107
Idem.
108
FLORENTINO, Manolo. Tráfico atlântico... Op., Cit., p. 72.
109
FRAGOSO, João e FLORENTINO, Manolo. O Arcaísmo... Op., Cit., p. 118.
110
Apud FLORENTINO, Manolo. Tráfico atlântico... Op., Cit., p. 72.
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(1809-1825) e, por fim, a de 1826 a 1830 é apresentada como de crise de ofertas de
cativos111.
O período analisado por Manolo como de estabilidade no desembarque é
praticamente o mesmo que João Luís Ribeiro Fragoso apresenta como de boa fase
econômica para o Brasil. Para este, o momento favorável compreende os anos entre
1792 a 1815112. Esse momento de estabilidade no desembarque e de economia favorável
abarca a época de início do crescimento do comércio de cativos e de alastramento da
produção de alimentos113, que em sua maioria tinha como fim o mercado interno.
Fragoso afirma ainda que, a economia colonial é mais complexa que uma plantation114.
Em outras palavras, o mercado interno não era diretamente submetido às conjunturas
internacionais. Diante disso, é possível entender o crescimento econômico do Brasil no
momento de decadência da mineração observando a afirmação de Frédéric Mauro
quando disse que a diversificação da produção foi o traço marcante da economia 115.
Assim, essa diversificação pode ser interpretada, também, como alastramento da
produção.
Então temos uma economia movida pelo trabalho escravo em sua maioria que
sofre, não diretamente, as flutuações do mercado internacional ou externo. O que
tornava o Brasil responsável pelo sustento do sistema arcaico da Coroa portuguesa que
tinha no comércio de escravos cerca de 65% de sua arrecadação no período
compreendido entre o século XVI e a segunda metade do XVIII116.
De acordo com o trabalho O Arcaísmo como projeto a lavoura de subsistência do
sul de Minas era movida pelo trabalho escravo117, no entanto, não é prudente generalizar
que todo mercado interno/subsistência era movido exclusivamente pelo tipo de trabalho
111
FLORENTINO, Manolo. Tráfico atlântico... Op., Cit., p. 104.
112
FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura.... Op., Cit., p. 19-20.
113
Ibidem, p. 23.
114
Idem.
115
Apud CALDEIRA, Jorge. O Processo Econômico In: SILVA, Alberto da Costa. Crise Colonial e
Independência: 1808-1830 , Vol 1. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, p. 179-180.
116
Godinho, Vitorino Magalhães Apud FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura....
Op., Cit., p. 68.
117
FRAGOSO, João e FLORENTINO, Manolo. O Arcaísmo... Op., Cit., p. 152.
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citado. Ao analisar a inserção de Minas no mercado interno João Luís Ribeiro Fragoso
aponta a existência de outro tipo de trabalho além do escravo. Para o historiador 58,6%
dos cativos eram destinados ao trabalho forçado na agricultura, todavia esse setor não é
o principal da exportação mineira. A pecuária desempenhava papel de destaque nas
exportações para o mercado interno e, a agricultura absorvendo mais da metade dos
escravos fez com que o autor reforçasse a idéia que a produção mineira no geral não era
apenas escravista118.
A presença do trabalho familiar e camponês não era uma exclusividade de Minas
Gerais. São Paulo também apresentou a existência de mão de obra familiar/camponês ao
lado do escravo no abastecimento do mercado interno. Inicialmente, de acordo com o
trabalho Homens de Grossa Aventura, a maioria dos senhores de São Paulo se
encontrava voltada para o mercado interno e as fazendas de gado que abasteciam o
mercado de mineração passaram, após a decadência, a suprir o mercado interno o que
demonstra a não prevalência da agroexportação119. Outro dado é encontrado no trabalho
de Maria Luíza Marcílio que apresenta a porcentagem de 75% dos domicílios paulistas
sem a presença de cativos120para os anos de 1798, 1808, 1818 e 1828.
Assim sendo, parte da produção paulista que abastecia o mercado interno
provinha do trabalho familiar/camponês. Logo, surge o questionamento: e a
dependência econômica do trabalho escravo?
Para responder utilizarei os três estudos aqui apresentados. João Luís Ribeiro
Fragoso aponta para a criação, por parte do escravismo colonial, de formas de produção
não capitalista. Essa ponderação tem como base o complexo agropecuário de Minas
Gerais, São Paulo e da charqueada do Rio Grande do Sul 121. Para esse historiador ―a
118
Godinho, Vitorino Magalhães Apud FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura....
Op., Cit., p, 109-110.
119
FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura.... Op., Cit., p. 113-115.
120
Maria Luíza Marcílio Apud FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura.... Op., Cit., p.
115.
121
FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura.... Op., Cit., p. 120.
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presença de um escravismo não alocado na agroexportação e das formas de produção
não-capitalistas e não-escravista traz uma série de novos problemas‖122.
O interessante na apresentação do trabalho de Fragoso é que mesmo contando
com a presença do trabalho familiar/camponês, a produção voltada para atender as
necessidades do mercado interno era a que mais absorvia a mão de obra escrava, no
caso de Minas Gerais.
De acordo com os dados apresentados no trabalho em tela, em 1819 Minas tinha
a maior população cativa do Brasil, algo em torno de 168.500, o que representava
15,2% da população123. Algumas informações podem ser retiradas a partir dessa
constatação. A questão do mercado interno de acumulação endógena é nítida, a outra é:
mesmo com a existência do trabalho não cativo a utilização do braço africano era um
fator primordial para o ―sucesso‖ alcançado pelas regiões voltadas a produção para
suprir a demanda interna. Caso contrário, como se explicaria a alta concentração
escrava?
Ainda analisando o estudo de Fragoso, é possível observar o quantitativo de
entradas de escravos em diversas regiões, em especial a região sudeste. E é, de certo
modo, surpreendente notar que no período de expansão da lavoura cafeeira, Minas
continuavam a absorver mais cativos que o Vale do Paraíba fluminense e, se somar o
Vale com o norte fluminense, área voltada par o cultivo do açúcar, constata que as duas
regiões voltadas para o mercado exportador não alcançava o mesmo índice de
importação escrava de Minas Gerais.
Tabela 1 – Totais absolutos e relativos do tráfico para a regiões (1822-1833).
1822
1823
1824
1825
1826
1827
1828
1829
1830
1831
1832
1833
Minas
Nº
12
_
_
5.661
3.265
2.423
6.664
6.547
6.177
2.856
1.196
181
Gerais
%
15,0
_
_
59,9
43,6
45.3
43,5
51,9
46,2
47,8
54,7
10,6
São
Nº
_
_
48
808
319
761
81
950
607
375
215
43
Paulo
%
_
_
2,3
8,5
4,3
14,2
0,5
7,5
4,5
6,3
9,8
9,6
122
Ibidem, p. 120.
123
FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura.... Op., Cit., p. 104.
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Vale do
Nº
8
_
2
1.201
897
485
1.909
1450
1.581
388
157
51
Paraíba
%
1,1
_
0,1
12,7
12
9,1
12,5
11,5
11,8
6,5
7,2
11,4
Norte
Nº
446
467
1.696
1.485
2.637
1.393
3.954
2.974
4.458
1.091
202
40
Fluminense
%
59,8
65,5
79,9
15,7
35,2
26,0
25,8
23,6
33,3
18,3
9,2
8,9
Sul
Nº
256
199
333
270
341
271
288
486
522
134
126
86
Fluminense
%
34,4
27,9
15,7
2,9
4,6
5,1
1,9
3,9
3,9
2,2
5,8
19,1
Espírito
Nº
23
46
59
32
24
16
2
215
23
13
6
1
Santo
%
3,0
6,5
2,8
0,4
0,3
0,3
_
1,7
0,2
0,2
0,3
_
Outros
Nº
_
_
20
2
2
_
3
_
6
1.122
284
46
%
_
_
0,9
_
_
_
_
_
_
18,8
13,0
10,2
Nº
745
712
2.122
9.459
7.485
5.348
15.298
12.622
13.374
5.979
2.186
448
Total
Fonte: registros de saídas de tropeiros. Códices 421, 424 e 425. Arquivo Nacional Apud Homens de
Grossa Aventura....
Além de comprar mais escravos que as áreas exportadoras, Minas Gerais
apresentavam outro dado. Eram os pequenos senhores possuidores de três a cinco
cativos que detinham a maior parte da escravaria mineira 124. Ou seja, eram os pequenos
proprietários que absorviam o alto volume de importação de escravos superando os
números apresentados pelas regiões de plantation. A partir dessa constatação passa a
existir um novo questionamento: como foi possível?
Era possível uma região voltada para o abastecimento interno comprar mais
cativos do que àquelas voltadas para exportação em função das plantations não serem
auto-suficientes. As monoculturas do açúcar e do café dependiam de regiões com a de
Minas Gerais para suprir suas deficiências. Fragoso aponta que na década de 1830 um
quarto das despesas das grandes plantações era com gêneros para os escravos 125.
Apesar da quase não existência de circulação de moedas, a capitalização no
mercado interno pode ser verificada na compra de cativos pelas regiões direcionadas ao
abastecimento interno. E, de acordo com o autor acima citado, o escravismo criou
formas de produção não capitalista o que ocasionou a subordinação do mercado interno
ao agroexportador. Assim, de acordo com Fragoso o mercado interno foi articulado a
124
Ibidem. p. 147.
125
Ibidem, p. 148.
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responder as necessidades de reprodução do escravismo 126, o que subordinava esse
mercado a agroexportação, essa sim, totalmente pautada na utilização do trabalho
escravo.
Então, temos uma interpretação do mercado interno indiretamente submetido ao
externo e outra de submissão ao agroexportador. No entanto, toda estrutura tinha por
finalidade suprir a demanda de uma economia arcaica/parasitária. Como colocado
anteriormente, a pouca circulação de moedas ocasionava a realização de um sistema
baseado na troca de produtos e/ou por mais braços cativos para continuar a mover a
engrenagem daquela economia. Ou ainda, uma clara exemplificação da existência de
uma policultura a serviço da monocultura: ―a maioria dos artigos a produzir não são
para vender, mas sim para não ter de os comprar, ou seja, para aproveitar melhor o
dinheiro obtido pelos únicos produtos que interessavam verdadeiramente: os produtos
exportáveis‖127.
O controle do comércio cativo era realizado por uma elite estabelecida no Rio de
Janeiro que distribuía os escravos por todo o centro sul do Brasil. Todavia, foi a partir
da abertura dos portos que o volume de importação cresceu assustadoramente. Manolo
Florentino em seu estudo compreendendo o período de 1790 a 1830 o divide em três
intervalos, conforme já citado. O primeiro entre 1790-1808 é considerado de
estabilidade, a partir de 1808-1825 é de aceleração e, finalmente, o considerado de crise
de oferta de mão de obra 1826-1830128.
Os números de entrada de africanos em média para os intervalos eram: 9.967
cativos/ano; 20.908 e 38.434129 respectivamente. É nítido, por meio desses números,
que a abertura dos portos desempenhou papel fundamental para a expansão de uma
economia de base escravista.
Se comparar a lucratividade do comércio transatlântico com a plantation e com
os aluguéis urbanos, o máximo que os dois últimos davam de retorno em um ano era
126
Ibidem, p. 122.
127
WITOLD, Kula. Teoria Econômica do Sistema Feudal. Trad. Maria do Carmo Cary. Lisboa, Editorial
Presença, LDA, 1979, p. 35.
128
Ibidem, p. 104.
129
Ibidem, p. 75-76.
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algo em torno de 12% e 10% respectivamente. Por sua vez, o comércio de cativos tinha
uma média de 19%130.
A alta demanda por cativos a partir da abertura dos portos gerou um sistema de
importação de africanos e exportação de produtos para a África. O Rio de Janeiro se
transformou em escala dos produtos europeus, o que não se observava antes de 1808
131
.
O adiantamento era peça central de todo processo mercantil. Adiantavam-se
mercadorias com o objetivo de receber o pagamento em escravos.
Percebe-se que a engrenagem mestra da economia, principalmente do final do
século XVIII e início do XIX, era movida pelo escravo em função do modelo
econômico estabelecido. No entanto, é importante salientar que diferentemente do
apresentado no O Arcaísmo como Projeto o excedente não era totalmente transferido
para a metrópole132, caso contrário como se explicaria a acumulação endógena?
Assim, temos um mercado não capitalista movido pelo escravo que
proporcionou aos comerciantes estabelecidos no Brasil, porto do Rio de Janeiro, o
monopólio do comércio de escravos. Além desse fato, verifica-se após a abertura dos
portos o aumento superior a 100% na importação de cativos, afora todas as atitudes
tomadas pela Corte ao se estabelecer na cidade do Rio de Janeiro para melhor escoar a
produção, como a abertura de estradas. Juntando a esses dados o surgimento das
plantations voltadas para o cultivo do café, inicialmente no Vale do Paraíba fluminense.
Diante dessas transformações pode-se objetar o por quê da assinatura por parte de
Portugal de um acordo para o fim gradual do comércio de escravos no momento de
maior aumento do mesmo e de implicações favoráveis diretas na economia? Assim,
frente à assinatura de um Acordo que afetaria diretamente toda a estrutura da colônia, a
resistência era algo certo ainda mais se considerarmos o circuito interno de acumulação
de riqueza.
É de conhecimento que no início da década de 1810, Portugal assumiu o
compromisso de diminuir até extinguir o comércio de escravos. No período pré
130
FRAGOSO, João e FLORENTINO, Manolo. O Arcaísmo... Op., Cit., p. 230-231.
131
FLORENTINO, Manolo. Tráfico atlântico... Op., Cit., p.88.
132
FRAGOSO, João e FLORENTINO, Manolo. O Arcaísmo... Op., Cit., p. 225.
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independência do Brasil dois terços da população eram de cativos 133 e, Portugal, o país
mais envolvido com o tráfico. Os acontecimentos ocorridos na Europa, em função das
ações de Napoleão, posicionaram a Corte portuguesa em situação delicada e vulnerável
diante, principalmente, da Inglaterra e França. Se atendesse a imposição francesa de não
comercializar com a Inglaterra corria o risco de perder suas colônias e se não fechasse
os portos sofria a invasão das tropas de Napoleão. Optando por manter suas colônias, a
Corte sob a proteção da Inglaterra chegou ao Brasil e se estabeleceu no Rio de Janeiro.
A questão seria o preço a ser pago por desfrutar do apoio dos ingleses.
Um pouco antes, em 1807 os ingleses colocaram um ponto final no tráfico
africano, proibindo-o a partir de maio de 1808. Essa atitude encareceu todo o processo
de cultivo da cana de açúcar das colônias inglesas, pois não podiam contar mais com o
abastecimento escravo. Em consequência da abolição, a Inglaterra passou a pressionar
os seus concorrentes a realizarem o mesmo, visando deixar o custo produtivo de regiões
como o Brasil e Cuba no mesmo patamar de suas colônias.
Com a dependência portuguesa da Inglaterra para defender seus territórios e a
imposição, diria o preço, de toda a proteção, o regente d. João VI assina o Decreto de
dezoito de outubro de 1810 reduzindo a taxa de entrada dos produtos ingleses nos
portos de domínios portugueses, além de assumir o compromisso de abolir
gradualmente o tráfico de escravos. Cinco anos mais tarde Portugal assumiria o
compromisso com a Inglaterra de aboli-lo definitivamente e, em 1817 enquanto não
chegava o momento de cessar de forma definitiva, ratificou o Decreto assinado em 1815
visando providências necessárias para impedir o comércio ilícito de africanos.
Assim, passou a ser considerado ilegítimo o comércio em navio sob bandeira ou
de vassalos britânicos, sob bandeira portuguesa, mas de propriedade de Vassalos de
outra potência e, ainda, navios portugueses que tinham como destino portos fora do
domínio português e os portos africanos ao norte do equador.
Todos esses Decretos/Leis foram assinados por Portugal, o que demonstra a
obrigação de, sem uma data estabelecida, terminar com o tráfico. E o Brasil? Quais
eram suas obrigações? Esses Tratados ficariam em vigor em caso de independência?
133
BETHELL, Leslie. A Abolição do Tráfico de Escravos no Brasil. Trad. Vera Neves Pedroso. Rio de
Janeiro, Expressão e Cultura, 1976, p 17.
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O fim da escravidão, conforme almejavam os britânicos, acarretaria a falência,
pois a maior parte da receita era oriunda dos direitos de importação sobre os escravos e,
também, dos produtos exportados. E de quem era a mão de obra empregada na produção
dos produtos agrícolas voltados para a exportação?
Os escravos não só eram os braços dos brasileiros como, também, se
transformaram na principal força econômica e produtiva do país. Então, imagina se o
Brasil atendesse a aqueles tratados assinados entre Portugal e a Inglaterra.
Portanto, pergunto: seria a independência do Brasil somente em função de d.
Pedro ter se sentido desrespeitado por Portugal ao ser chamado de rapazinho e
brasileiro134? Ou pela tentativa de submeter o Brasil a supremacia portuguesa?
D. Pedro I no ano de 1821 pediu dispensa ao seu pai da função de regente do
Brasil por meio de uma carta alegando reconhecer o estado negativo das finanças da
antiga ―sede da monarquia [que revertera] ao seu primitivo e antiqüíssimo berço e todas
as provìncias, como deviam, aderiram a causa nacional‖ 135. Ou seja, após o retorno de
D. João VI, as demais províncias deixaram de contribuir. Considerando o pedido, o que
teria levado a separação do Brasil em 1822? A convocação do retorno a Portugal?
A existência no Rio de Janeiro de um grupo de negociantes organizado em
defesa de seus próprios interesses que atuava diretamente no comércio de escravos por
meio de crédito e fornecimento de novos braços para as sempre necessitadas fazendas
que, além dessa atividade, gozava de influência nos rumos da economia e da política do
país. Com toda essa influência conseguiu manter a escravidão como o fio condutor
sustentando a estrutura vigente.
Outro fator foi à união das elites em função das decisões das Cortes. As medidas
aprovadas pelos deputados em Lisboa, no entender das elites, eram consideradas
discricionárias e afetavam diretamente seus interesses. Com a recepção negativa daquilo
determinado por Portugal, o Brasil pôde ―contar‖ com o fortalecimento em torno dos
interesses defendidos a partir do Rio de Janeiro. No entanto, essa união não chegou a
134
Apud LUSTOSA, Izabel. Insultos Impressos: a guerra dos jornalistas na Independência (1821-1823).
São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 240
135
Cybelle Ipanema. D. Pedro I. Proclamações, cartas e artigos de imprensa. Apud NEVES, Lúcia
Maria Bastos P. A Guerra de Penas: os impressos políticos e a independência do Brasil. 1999, p.10.
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pleitear a independência política, limitava-se, inicialmente, a manutenção da estrutura
em vigor sendo a escravidão o carro chefe.
Com o repúdio das decisões das Cortes, principalmente, pelos interesses
sediados no Rio de Janeiro e, a necessidade dessa parte do Brasil de impor sua
hegemonia sobre as demais regiões, muito em função dos interesses econômicos e da
reprodução de um Estado onde fosse possível conviver com a existência da escravidão,
houve o início da cristalização de uma separação política definitiva.
Com a expansão da lavoura do café e, por conseguinte, o aumento da demanda
por trabalhadores, os envolvidos no tráfico sentiram o quanto perderiam se acatassem as
determinações de Lisboa e, muito mais, se a parte de cá se mantivesse vinculada a
administração portuguesa com todos os acordos existentes para cessar o comércio
transatlântico.
Sendo a importação de escravos uma das principais receita do Brasil e, somando
a isso, a demanda cada vez maior por braços fortes para serem utilizados nas plantações
que começavam a modificar a paisagem do Vale do Paraíba, mais toda a influência
exercida pelo grupo de negociantes e a distribuição de títulos honoríficos para os
representantes das povoações que se posicionaram contrárias as Cortes136, agiram como
uma argamassa unindo os interesses das elites em detrimento daquilo demandado pelas
Cortes.
Para o setor mercantil, manter a vigência da escravidão era extremamente
lucrativo e tirando proveito da influência, tanto no campo político quanto no
econômico, o grupo organizado de negociantes começou a trabalhar em prol daquilo
que se tornou o fio condutor da unidade do Brasil, a escravidão.
136
MENDONÇA,Sonia Regina de. A independencia do Brasil em perspectiva historiográfica. Rev.
Pilquen, Viedma, n. 12, jun. 2010 . Disponible en
<http://www.scielo.org.ar/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S185131232010000100009&lng=es&nrm=iso>. Acesso em 09 de janeiro de 2013, p. 5.
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A EMPRESA MAXWELL, WRIGHT & CO. NO COMÉRCIO DO IMPÉRIO DO
BRASIL (1826-1855): PRIMEIROS RESULTADOS
Alan dos Santos Ribeiro137
Resumo:
O presente artigo visa estudar os principais negócios da empresa norte-americana
Maxwell, Wright e Comp., radicada no Rio de Janeiro durante a primeira metade do
século XIX. A inserção deste agente comercial na economia e sociedade brasileiras da
época, notadamente na exportação do café, nos permite clarificar aspectos fundamentais
da economia brasileira do período. Sem esquecer que suas atividades processam sob os
contextos históricos mais amplos de construção do Estado Imperial brasileiro, formação
do mercado mundial e desenvolvimento do capitalismo.
Palavras-chave: empresa, comércio, café
Abstract:
The article aims to study the main business of the U.S. company Maxwell, Wright and
Comp. rooted in Rio de Janeiro during the first half of the nineteenth century. The
insertion of this commercial agent in the Brazilian economy and society of that time,
especially at coffee exports, allows us to clarify fundamental aspects of the Brazilian
economy in the period. Its activities took place under the historical contexts of Imperial
Brazilian state building, world market formation and the development of capitalism.
Keywords: company, trade, coffee
"as empresas são parte da sociedade e não se pode estudá-las sem levar em
conta as articulações recíprocas entre as relações sociais e as práticas
empresariais. A empresa é parte de um sistema de instituições inter-atuantes,
no qual lhe cabe a produção de bens [ou serviços]. Como parte orgânica da
sociedade, sua atuação repercute sobre a estrutura social na qual se
desenvolve e é, por sua vez, influenciada por ela.‖ 138
Introdução
A precisa definição inicial de Maria Bárbara Levy sobre o estudo histórico de empresas
se apresenta como um dos nortes deste trabalho. Será possível crer que a análise das
atividades econômicas de uma firma estrangeira radicada na praça do Rio de Janeiro
137
Mestrando do PPGH-UFF. Orientado pelo prof. Dr. Carlos Gabriel Guimarães. Email:
[email protected]
138
LEVY, Maria Bárbara. A Indústria do Rio de Janeiro através de Suas Sociedades Anônimas. Rio de
Janeiro, Editora da UFRJ/Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, 1994, p. 27.
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entre os anos de 1820 e 1850 não se relaciona especificamente com o processo de
construção do estado imperial brasileiro ou com os movimentos mais amplos da
economia brasileira de meados do oitocentos? É possível escrever a história deste
agente social particular sem estabelecer os laços entre a sua trajetória e os processos
históricos mais amplos como o desenvolvimento do mercado mundial capitalista no
século XIX?
O presente artigo visa apresentar o painel geral das atividades econômicas da
firma Maxwell, Wright & Co. desde a sua formação em 1827 até finais dos anos 1830,
ou seja, os primeiros resultados da pesquisa sobre esta empresa que atuará nos circuitos
atlânticos de comércio até os anos 1850. Essa sociedade comercial, especialmente ativa
no comércio do café brasileiro para os Estados Unidos, era formada pelo negociante
inglês José (Joseph) Maxwell, estabelecido no Brasil desde 1809, e pelo norteamericano da Virgínia, William Henry Wright. Este chega ao Rio de Janeiro em 1823
para exercer o cargo de cônsul dos EUA no Brasil entre 1825 e 1834139.
Em 1845, a Maxwell, Wright & Co. despachou um total de 178.034 sacas de
café
brasileiro
para
portos
norte-americanos.
Esse
número
representava
aproximadamente 32,3% das sacas exportadas pelo Brasil para os EUA naquele ano
(551.276 sacas) e 14,7% do total exportado pelos portos brasileiros para todo o mundo
neste mesmo período (1.208.062 sacas)140. Além de demonstrar a importância desta
atividade para a empresa e desta empresa para a própria economia cafeeira, essa cifra
aponta para uma história de ―sucesso comercial‖. Reconstituir uma parte desta trajetória
é o nosso objetivo central.
As três primeiras décadas do Brasil independente correspondem ao período de
formação do Estado Imperial brasileiro. Se o ponto de chegada deste processo coroa a
constituição de um estado centralizado, eliminadas as ameaças de fragmentação
territorial, coroa também a constituição de uma classe senhorial escravista, cujo grupo
dirigente, os saquaremas, logram imprimir uma direção política centralizadora deste
139
http://www.cbg.org.br/baixar/cemiterio_catumbi_3.pdf.; acessado em 08/08/2013. Sobre W. Wright:
Diário do Governo 29/7/1823, p. 144. Maryland Society Institute, Wright-May-Thom Family Papers
(1727), 1802-1965. Site: http://archive.mdhs.org/Library/Mss/ms002416.html. Acesso em 18 maio. 2013.
140
Anuário político, histórico e estatístico do Brasil. Rio de Janeiro: Firmin Didot Irmãos, 1846. p. 401 e
403.
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mesmo estado141. Contudo, esse processo não se dá sem rusgas. As lutas em torno da
cidadania e dos direitos políticos, do estabelecimento de instituições estatais, da
representação política e da aplicação dos dispositivos legais, marcantes do Primeiro
Reinado se prolongam pela década de 1830 adentro142. As revoltas do Período
Regencial, especialmente a Farroupilha, também compõem esse momento político
conturbado da formação estatal brasileira.
Nas palavras de Ricardo Salles,
―a construção do Estado nacional no Brasil se deu como parte do grande
contexto de desenvolvimento do mercado mundial capitalista, acirramento
das contradições e conflitos sociais, formação dos Estados nacionais e
recrudescimento da escravidão, assim como das resistências escravas, em
determinadas áreas das Américas. Essa construção foi resultado e resultou na
formação de uma classe senhorial escravista que estendeu sua dominação
sobre todo o território da nova nação. Nesse processo, ao mesmo tempo em
que se impôs, muitas vezes, pelo emprego direto da força por meio do Estado
imperial centralizado, a classe senhorial se expandiu como estilo de vida.‖ 143
Paralelamente, a construção do Estado brasileiro está relacionada, via economia
do café, ao processo de formação de um mercado internacional de ―consumo e insumos,
inclusive de mão-de-obra, em escala atlântica, propiciados pelo desenvolvimento do
capitalismo industrial‖144. Isto é, a produção cafeeira do Vale do Paraíba, um dos pilares
da constituição da classe senhorial e do Estado Imperial, se constitui enquanto uma
economia mercantil-escravista145.
Com o intuito de apreender o funcionamento desta economia, e principalmente a
atuação da Maxwell, Wright & Co., precisamos atentar um instante para a formação
economia brasileira de café e para o tráfico de escravos.
141
MATTOS, Ilmar R. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 1987.
142
RIBEIRO, Gladys S. & PEREIRA, Vantuil. ―O Primeiro Reinado em revisão‖. In: GRINBERG, Keila
e SALLES, Ricardo (org.). O Brasil Imperial, volume 1: 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2009, p. 141, 142.
143
SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo: Vassouras, século XIX – senhores e escravos no coração
do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 46.
144
SALLES, Ricardo. ―O Império do Brasil no contexto do século XIX. Escravidão nacional, classe
senhorial e intelectuais na formação do Estado‖. Almanack. Guarulhos, nº 04, 2º semestre de 2012. Ver
também: TOMICH, Dale W. Pelo Prisma da Escravidão: Trabalho, Capital e Economia Mundial. 2ª Ed..
Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: EDUSP, 201, p. 84 a 88.
145
MELLO, João Manuel C. de. O capitalismo tardio. 11ª ed. Campinas: Editora Unesp e Edições
Facamp, 2009, p. 49. MATTOS, op. cit.
100
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A produção brasileira de café cresce vertiginosamente ao longo das três
primeiras décadas do oitocentos até atingir a marca histórica de 67.000 toneladas em
1833, mesmo índice do montante da produção mundial no ano de 1790146. Na década de
1830, o Brasil passa a liderar o ranking dos produtores mundiais de café, com cerca de
650 mil sacas produzidas ao ano, de um total de 2,5 milhões globais, mesmo numa
conjuntura internacional desfavorável aos preços do estimulante 147. Após oscilações nos
anos 1830, a década de 1840 inaugura uma tendência crescente dos preços até finais do
século. A expansão da produção acompanha esta alta de preços, ao ponto de em
começos dos anos 1850 o Brasil se tornar o maior produtor mundial em termos
absolutos. Isso significa mais de 50% da produção mundial oriunda de terras
brasileiras148.
Conforme podemos observar no gráfico 1, as exportações do grão acompanham
a
produção brasileira. Os destinos fundamentais do café eram a Europa e
principalmente os EUA. Nas palavras de Tomich & Marquese:
―a escala e o caráter do mercado [de café] se modificaram de modo
igualmente profundo no século XIX. Na década de 1880, a produção total de
café no globo era dez vezes maior do que cem anos antes. Entre uma data e
outra, a grande novidade foi o aparecimento dos Estados Unidos como
comprador (...). Nesse período sua população aumentou 15 vezes e o
consumo per capita anual passou de apenas 25 gramas para quatro quilos.
Tratava-se de um mercado aberto, livre de tarifas de importação desde 1832,
que pouco exigia a respeito da qualidade do café adquirido. Os demais
grandes compradores do período, todos localizados no norte de uma Europa
em rápido processo de industrialização e urbanização, também se
distinguiram no século XIX pela explosão demográfica e pelo notável
146
MARQUESE, Rafael de B. & TOMICH, Dale. ―O Vale do Paraìba escravista e a formação do
mercado mundial de café‖. In: GRINBERG, Keila & SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil Imperial,
volume 2: 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 342, 355, 356. Ver também:
PRADO Jr., Caio. História Econômica do Brasil. 14ª Ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1971.p.167;
PINTO, Virgìlio Noya. ―Balanço das transformações econômicas no século XIX‖. In: MOTTA, Carlos
Guilherme. (org.) Brasil em perspectiva. 19ª ed. São Paulo: Bertrand, 1990, p. 134; DELFIM NETO,
Antonio. O problema do café no Brasil. 3ª edição. São Paulo: Ed. UNESP, 2009 (capítulo 1); BACHA,
Edmar. ―Polìtica Brasileira do Café: uma avaliação centenária‖. In: BACHA, Edmar e GREENHILL, R.
Marcelino Martins & Edward Johnston, 150 anos de café. 2ª ed. Revista. Rio de Janeiro: Salamandra C.
Editorial, 1992. MARQUESE, Rafael de Bivar. ―Estados Unidos, Segunda Escravidão e a Economia
Cafeeira do Império do Brasil‖. Almanack. Guarulhos, n.05, 1º semestre de 2013.
147
BACHA, E. op. cit. p. 18-21; MARQUESE & TOMICH, op. cit. p. 356. Segundo Virgílio Noya
Pinto, é nesta década de 1830 que o café supera em importância o açúcar e o algodão na pauta de
exportações brasileiras, passando a concentrar 43,8% do total exportado. PINTO, op. cit. p. 135.
148
BACHA, op. cit. p. 20-22; PINTO, op. cit, p. 139. Segundo Ilmar de Mattos, a dependência econômica
brasileira à época era minimizada pela obtenção do ―monopólio virtual da produção cafeeira‖, apesar da
crescente participação dos estrangeiros na comercialização e financiamento da produção. MATTOS, op.
cit. p. 99 e 101.
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aumento nas taxas de consumo per capita. Interessa destacar nisso tudo que a
passagem do mercado restrito e de luxo do século XVIII para o mercado de
massa industrial do século XIX foi claramente induzida pela oferta a baixo
custo do produto.‖149 (grifo nosso)
Nesse sentido, é essencial apontar o argumento de Harber & Klein sobre a
importância do mercado norte-americano para a economia do Brasil recémindependente. Segundo esses autores, ―o comércio dos Estados Unidos com o Brasil
duplicou em valores dolarizados entre a década de 1820 e a de 1830, e em seguida deu
um salto na década de 1850, alcançando em 1857 um valor seis vezes maior do que o
registrado em 1821‖150. Sem dúvida, ainda na primeira metade do XIX, EUA se
consolidam como o principal mercado para este grão brasileiro151.
Em segundo lugar, apesar da política restritiva da Grã-Bretanha no tocante ao
comércio de escravos e dos dispositivos legais de 1827 e 1831, que deveriam abolir o
comércio de cativos para o Brasil, o contrabando não só consegue se reproduzir como se
avoluma muito significativamente de 1835 a 1850, ano da Lei Eusébio de Queiróz,
conforme o gráfico 2 abaixo.
Gráfico 1: Exportações brasileiras de café 152
149
MARQUESE & TOMICH, op. cit. p. 361; MELLO, op. cit. p. 57. Segundo Tâmis Parron, a ―abertura
irrestrita de mercados – na França, na Inglaterra e, sobretudo nos Estados Unidos, onde o consumo da
produção brasileira aumentou 980% entre 1821 e 1842‖ fora fundamental para a constituição deste
mercado. PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826/1865. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2011, p. 93.
150
HARBER, S. e KLEIN, H. ―As consequências econômicas da Independência brasileira‖. NOVOS
ESTUDOS, nº 33, julho de 1992, p. 242.
151
PRADO Jr., op. cit. p.160; BACHA, op. cit. p. 18. PINTO, op. cit. p.134.Segundo Luis Henrique Dias
Tavares, de 1833 a 1849, os Estados Unidos se tornam o maior mercado para o café brasileiro.
TAVARES, Luis Henrique Dias. O Comércio proibido de escravos. São Paulo: Ed. Ática, 1988, p. 134,
135.
152
BACHA, op. cit. p. 324, 325.
102
milhões de sacas
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3,5
3
2,5
2
1,5
1
0,5
0
Gráfico 2: Entradas formais de escravos no Império do Brasil 153
80
milhares
60
40
20
0
1821
1826
1831
1836
1841
1846
1851
Todavia, após a assinatura do compromisso de fim do comércio negreiro em
1826, a sua permanência era incerta. Os números do contrabando atestam esta
contingência. Em 1828 e 1829, foram introduzidos pelo porto carioca cerca de 45.000 e
47.000 africanos, respectivamente. A elevação destas cifras, assim como a
intensificação da demanda de cativos e a alta dos preços dos escravos (especialmente
mulheres), se relacionava à crença minimamente difundida na eliminação total (ou
quase) do ―comércio de almas‖154. Após uma fase do contrabando residual (1831-34/5),
sem apoio explícito ou coeso do parlamento e da ausência de um discurso estruturado
153
www.slavevoyages.org; acesso em 29/09/2013.
154
PARRON, op. cit. p. 89 e 90. Ainda segundo Parron, a crença na ―coação efetiva do comércio‖ por
parte dos agentes econômicos brasileiros estaria atestada também nas cartas pessoais de fazendeiros. Ver
também MAMIGONIAN, Beatriz e GRINBERG, Keila (org.) "Dossiê – 'Para inglês ver?' Revisitando a
Lei de1831." Estudos Afro-Asiáticos, Ano 29, n.os 1/2/3, Jan/Dez 2007. p.87-340; MAMIGONIAN,
Beatriz Gallotti. "A proibição do tráfico atlântico e a manutenção da escravidão‖. In: GRINBERG, Keila
e SALLES, Ricardo (org.). O Brasil Imperial, volume 1: 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2009, pp. 207-234.
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pró-escravista, temos a fase do contrabando sistêmico (1835/6-1850), que exigiu o
engajamento político de certos setores sociais para a preservação deste comércio.
Nas palavras de Parron,
―nessas condições domésticas [desmobilização de revoltosos, aprovação do
Ato Adicional, morte de D. Pedro], começou a surgir a primeira resposta
brasileira à nova conjuntura mundial do abolicionismo, do desmantelamento
da escravidão nas Índias Ocidentais e da ampliação do mercado mundial. A
estratégia consistia, basicamente, em alavancar as plantations do Vale do
Paraíba por meio da reabertura do contrabando e, ao mesmo tempo,
minimizar os riscos de desordem social. Os dois objetivos pareciam
simultaneamente obteníveis na crítica da lei de 7 de novembro de 1831, que
minava a legalidade da escravidão contrabandeada, incriminava os
proprietários e consentia delações de quaisquer cidadãos. Foi assim que, nos
quadros da expansão econômica e do abolicionismo, uma reação não tardou a
aparecer.‖155
Nesse contexto, lideranças políticas como Rodrigues Torres, Paulino José Soares
de Souza, Carneiro Leão e Bernardo Pereira de Vasconcelos, articularam as pautas
básicas do movimento regressista (núcleo histórico dos futuros conservadores): revisão
do Ato Adicional, Reforma do Código do Processo e a defesa política e moral do
contrabando. Ao sinalizarem a não repressão do tráfico, mesmo através do silêncio
sobre ele, surgem inúmeras manifestações públicas em favor do contrabando, seja
através de discursos e panfletos, seja através das petições das câmaras do Vale do
Paraíba pedindo a revogação da lei de 1831. A geografia política desta autêntica política
do contrabando negreiro, isto é, a defesa sistemática deste comércio em várias
instâncias sociopolíticas, é muito importante. Segundo cálculos de Parron, se incluirmos
os municípios paulistas de Areias e Bananal ao eixo Rio de Janeiro-Vale do ParaíbaMinas Gerais, somente esta região apresentou 87% das 23 petições e representações
pró-tráfico recebidas pela Câmara e pelo Senado até 1840. A economia do Vale estava
umbilicalmente ligada à expansão da escravidão, obtida, até a Lei Eusébio de Queiróz
(1850), via o comércio de africanos. Dos 738 mil cativos importados pelo Brasil entre
1831 e 1850, cerca de 574 mil foram absorvidos pelo centro-sul.
Os negócios da empresa nos anos 1820 e 1830:
155
PARRON, op. cit. p. 129. Bem como todas as ideias deste parágrafo.
104
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Sem dúvida, a exportação de café constituía a principal atividade da empresa no
período estudado. Se complementada por outras formas de acumulação mercantil, os
despachos de café para os portos dos Estados Unidos da América, integrado às
importações de farinha de trigo, alavancaram os negócios e a riqueza da firma Maxwell,
Wright e Co.
Se o primeiro embarque de café da empresa data de 1828, seus registros oscilam
nas fontes pesquisadas156. Até 1840, somente em 5 dos 14 anos (1827, 1830, 1831,
1832, 1837) não foram encontradas exportações de café da empresa, o que está
obviamente subcontabilizado. O salto das exportações da empresa em 1838 e 1839 tem
evidente relação com o desenvolvimento da produção do Vale do Paraíba, o aumento do
consumo do produto nos mercados europeus e principalmente norte-americanos e o
crescimento geral das exportações brasileiras de café.
Em 1838, aproximadamente 55,1% das saídas da empresa (27 de 49
embarcações) se dirigiam aos ―portos‖ consumidores de café. Somente uma dentre essas
vinte e sete não foi para os EUA, mas sim para Trieste, principal porto franco do
Império Austro-Hungaro. No ano seguinte, os portos norte-americanos são o destino
exclusivo das exportações da firma: dos 39 navios despachados, 26 (ou 66,7%).
Interessante notar que apesar da diminuição no número total das exportações no ano, a
concentração de navios carregados de café se intensifica dentre o total exportado (de
55,1% para 66,7%), anunciando o aumento da importância dessa atividade para os
negócios da empresa. Baltimore e Nova Iorque eram seus principais destinos. O volume
total de sacas exportadas apenas nesses dois anos chegou a mais de 143.500 sacas de
café, 60.755 em 1838 e mais de 82.775 no ano 1839.
A centralidade do café para a economia do Império já foi amplamente discutida
acima. Contudo, outro aspecto, talvez oculto, inter-relacionado a este e ao
desenvolvimento do mercado e economia norte-americanos, se evidencia nos negócios
da firma; mas também nas palavras do historiador colombiano Carlos Valencia Villa:
156
Jornal do Commercio 02/01/1828. As fontes de estudo dessas atividades são os periódicos: Jornal do
Commercio, Diário do Rio de Janeiro, Diário do Governo, Diário Fluminense, etc. Nos anos 1830, as
seções de importações desses jornais são priorizadas em detrimento das exportações, por isso os registros
subcontabilizados das exportações da empresa.
105
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―lo que pretendìamos era constatar la existencia de un fuerte lazo comercial
entre las dos urbes capitales de grandes territorios esclavistas. Además,
queríamos mostrar, que ese lazo era fundamental para ellas, aunque a simple
vista los números gruesos no lo dejaran ver. Como vimos, Richmond
dependía de Río de Janeiro para abastecerse de café y, por su parte, Río de
Janeiro dependìa de Richmond para conseguir su harina de trigo‖ 157.
A Tabela 1 abaixo expõe o mapa de importações da Maxwell, Wright e Co.
Baltimore e Richmond lideram esses índices, seguidos por Boston e Nova Iorque, o que
demonstra a forte concentração dos negócios da empresa nos circuitos entre regiões dos
EUA e do Império do Brasil, especialmente o Rio de Janeiro. Os produtos saídos do Rio
da Prata, Montevidéu e Buenos Aires, apresentavam significativa importância, bem
como a pesca.
Tabela 1: Número e Local de origem das embarcações endereçadas à Maxwell,
Wright e Co., 1827-1839158
ANOS Baltimore Richmond Boston New York Montevidéu Philadelphia Buenos Aires Pesca Outros TOTAL
1827
3
1
4
1828
2
3
1
1
6
1829
4
1
2
1
1
1
3
13
1830
2
1
1
4
1831*
1
3
1832*
2
1833
2
1
1
4
1834
3
3
3
3
12
1835
2
3
3
1
4
2
15
1836
6
1
2
2
1
2
1
1
16
1837
3
2
1
1
2
9
1838
13
6
4
5
3
3
9
3
46
1839
13
4
2
3
1
2
9
5
39
Total
50
20
18
16
7
6
5
29
19
170
*há entradas sem identificação de origem, por isso o total é maior do que o somatório dos portos.
No que tange aos produtos importados, a farinha de trigo se destaca. Para além
do consumo carioca, o exame das linhas de comércio deste produto nos permite mapear
uma rede de distribuição mais extensa deste produto. Era comum a passagem das
embarcações da empresa pelos portos de Pernambuco e Bahia, provavelmente vendendo
157
VILLA, Carlos Valencia. ―Café negro com pan: vìnculos comerciales entre Virginia y Rio de Janeiro
em El siglo XIX‖. Texto apresentado no CLADHE III. 2012. p. 23.
158
Fontes: Jornal do Commercio, Diário do Rio de Janeiro, Diário do Governo, O Despertador; várias
edições. É fundamental ressaltar que todas as embarcações oriundas de Norfolk, região portuária de
Chesapeake, foram computadas no item Richmond; da mesma maneira procedi com as entradas de
Portsmouth, Porland e Plymouth que foram associadas ao porto de Boston.
106
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a farinha norte-americana159. Contudo, não somente o ‗norte‘ do Império se integrava a
esse eixo de comércio. Examinemos o caso do o brigue americano Mentor.
Após 53 dias no mar, este navio aportou no Rio de Janeiro em 30 de junho de
1838 trazendo ―1,150 barricas de farinha a Maxwell‖. Já no dia 4 de julho, a mesma
embarcação era despachada para Montevidéu pelo seu proprietário ―Maxwell e comp.:
com a carga, que trouxe.‖ Neste mesmo 4 de julho, a empresa norte-americana recebia
carne oriental, proveniente de Montevidéu160.
Ao quantificar as importações realizadas pela Maxwell, Wright e Co. percebe-se
a centralidade do comércio de farinha de trigo, uma das mais importantes atividades da
firma, constituindo cerca de metade das suas importações neste período. Os
carregamentos de farinha de trigo oriundos dos EUA, principalmente Baltimore,
Richmond e Philadelphia, estiveram presentes em 13 dos 14 anos pesquisados. Nos
anos de maiores volumes de registros, 1838 e 1839, o total acumulado de barricas de
farinha de trigo importadas chegou a 57.715. No primeiro destes anos, 22 das 46 (ou
47,8%) embarcações aportadas para a Maxwell, Wright e Co. traziam 36.489 barricas de
farinha dos portos norte-americanos. Já no ano seguinte, 48,7% (19 de 39) das
embarcações endereçadas à empresa carregavam um total de 21.226 barricas de farinha
de trigo.
Essa farinha podia ser vendida no endereço comercial da firma, ou na própria
zona portuária da cidade, em atacado161. Isso vale também para a ampla variedade de
produtos comercializados pela empresa: bacalháu, velas de espermacete, breu, fazendas,
bolachas, madeiras, vinhos, etc. A partir de trapiche próximo à atual Praça XV, do qual
era dona, a empresa construía embarcações, chegando a vender um total de 29, somente
nos anos 1828 e 1829. Era no porto também que esta firma recebia e retornava ao mar
159
Total de sete embarcações para todo o período até agora pesquisado: Diário do Rio de Janeiro
08/03/1834, 11/03/1838, 25/01/1839, 21/06/1839, 13/09/1839, 17/10/1839; Jornal do Commercio
03/11/1834.
160
Diário do Rio de Janeiro 02/07/1838 e 05/07/1838. O bergantim Ann realizou o mesmo circuito
comercial (Baltimore-Rio-Montevideu-Rio-Baltimore), concluindo o percurso na exportação para
Baltimore das carnes e couros oriundos Montevidéu, juntamente com o café obtido no Rio de Janeiro.
Diário do Rio de Janeiro 10/09/1838, Diário do Rio de Janeiro 04/09/1838, Diário do Rio de Janeiro
22/10/1838 e 26/10/1838.
161
Diário do Rio de Janeiro 08/03/1832; mesmo caso dos anúncios de 08/03/1832 e 05/09/1832, Diário
do Rio de Janeiro.
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suas embarcações pesqueiras, a segunda atividade econômica da empresa neste período,
atrás somente do comércio integrado do café com a farinha. Além disso, a Maxwell,
Wright & Co. emprestava dinheiro a particulares, sendo credora de negociantes
brasileiros e estrangeiros em ao menos quatro oportunidades. Essas atividades podiam
compor o financiamento de empreendimentos negreiros, comum às empresas norteamericanas do período162.
Conclusões parciais
As operações da firma Maxwell, Wright e Co. radicada na cidade do Rio de Janeiro se
concentrava na esfera da circulação de mercadorias, como uma expressão do capital
mercantil ou comercial e do capital usurário. A firma acumulava recursos a partir da
compra e posterior venda das mercadorias e do empréstimo a juros do capitaldinheiro163.
A análise das atividades da empresa nos permite apreender boa parte dessa
economia de hegemonia agroexportadora 164. Da mesma maneira, aponta para a
relativização da chamada preeminência inglesa no Império do Brasil165.
162
HORNE, Gerard. O Sul mais distante: os Estados Unidos, o Brasil e o tráfico de escravos africanos.
Tradução de Berilo Vargas. São Paulo: Cia das Letras, 2010, p. 64, 65; GRADEN, Dale T. ―O
envolvimento dos Estados Unidos no comércio transatlântico de escravos para o Brasil, 1840-1858‖.
Afro-Ásia, p. 28 e 29; TAVARES, op. cit.
163
MARX, K. O Capital: crìtica da economia polìtica: livro I. Tradução de Reinaldo Sant‘Anna. 22ª ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 186,194, 863, 864. Sobre a hegemonia do capital
comercial no período abordado ver: MATTOS, Ilmar. op. cit. p. 89, 96 e 97. MELLO, op. cit. p. 56. O
que era o caso de outras firmas importante do período como a poderosa Samuel Phillips; sobre ela, ver:
GUIMARÃES, Carlos Gabriel. A presença inglesa nas finanças e no comércio no Brasil Imperial: os
casos da Sociedade Bancária Mauá, MacGregor & Cia (1854-1866) e das firma inglesa Samuel Phillips
& Cia (1808-1840).São Paulo: Ed. Alameda, 2012.
164
Segundo Ciro Cardoso, boa parte do ‗segredo‘ dessas ―economias de exportação serão encontradas nas
empresas comercializadoras.‖. CARDOSO, Ciro F.S e BRIGNOLI, Héctor. Os Métodos da História. 2ª
ed., Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1979,. p. 343.
165
MANCHESTER, Alan K. Preeminência inglesa no Brasil. Tradução de Janaína Amado. São Paulo:
Brasiliense, 1973. Para relativizações dessa ―dominação‖ da economia brasileira pelos ingleses ver:
GUIMARÃES, Carlos Gabriel. op. cit. p. 221 a 254. GREENHILL, Robert. ―Edward Johnston: 150
anos‖. In: Marcelino Martins & Edward Johnston..., op. cit. p. 135-172.
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DISCURSOS INTERCRUZADOS: IDEIAS CIRCULANTES EM A GAZETA
PERNAMBUCANA E SENTINELA DA LIBERDADE NO BRASIL
RECÉM-INDEPENDENTE
Alexandre Bellini Tasca166
Resumo:
O mundo luso-brasileiro dos anos de 1820 passava por um momento de grande
turbulência política. Em meio aos debates e conflitos, circulavam impressos dos mais
diversos tipos: manifestos, periódicos e livros. Pretendemos nesta comunicação realizar
uma incursão primeira nos periódicos A Gazeta Pernambucana e Sentinela da
Liberdade escritos por José Cipriano Barata de Almeida, buscando identificar obras que
serviram de referência para essa importante figura do cenário político brasileiro.
Esperamos com isso melhor compreender as ideias circulantes no Brasil recémindependente.
Palavras-chave: Periódicos; Circulação; ideias.
Abstract:
The portuguese-brazilian world of the 1820s was experiencing a moment of great
political turmoil. Amongst the debates and conflicts, different types of press material
were circulating: manifestoes, periodicals, books. This paper attempts a brief survey on
"A Gazeta Pernambucana" and "Sentinela da Liberdade", both periodicals written by
Cipriano José Barata de Almeida, on an effort to identify works that were used as
reference by this important character of the brazilian political milieu. By this we intend
to better understand the ideas that were circulating in recently-independent Brazil.
Key-words: Periodicals; Circulation; ideas.
Na história dos homens, no tempo e no espaço, há certos períodos capazes de provocar
um fascínio particular. São tempos marcados pela instabilidade e pelas incertezas.
Épocas em que os contrastes de uma sociedade, e mesmo dos homens que as formam,
saltam aos nossos olhos. É difícil estabelecer parâmetros, identificar em que medida tais
épocas diferenciam-se das demais – supostamente mais estáveis – haja vista a
inacessibilidade direta ao passado. Desse, temos apenas fragmentos, através dos quais
uma infinidade de mosaicos pode ser configurada e reconfigurada, configurações que
marcarão, quer queira quer não, as percepções que do passado teremos. Cabe ao
historiador reconhecer suas limitações e, a partir delas buscar, de maneira ética e
166
Mestrando em História e Culturas Políticas pelo Programa de Pós-graduação em História da UFMG.
Orientador: Luiz Carlos Villalta. Email: [email protected]
109
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responsável, compreender tais configurações, saber lidar com os fragmentos que tem em
mãos – respeitando suas limitações e explorando suas possibilidades – trata-los como
vestígios do passado, mas possuidores de materialidade, produzidos em circunstâncias
determinadas e passiveis de serem compreendidos a partir de diferentes perspectivas.
Com essa consciência, passamos a ter o preparo para usar as ferramentas mentais
necessárias para a compreensão dos mosaicos que temos diante de nós, assim como das
formas como seus pedaços podem se relacionar. Exposto esse raciocínio, encontramos a
base para o estabelecimento de parâmetros para compreendermos as especificidades de
uma época.
Tomaremos como objeto de análise o contexto dos anos de 1820 no Brasil.
Como dito, certos momento mostram-se especialmente fascinantes e acreditamos que
este é um deles. Sem ignorar a subjetividade desta afirmação, reconhecemos neste
período possibilidades valiosas para o entendimento da história do Brasil, sobretudo no
que diz respeito aos seus aspectos políticos. Enquanto o continente europeu era palco de
ações restauradoras por parte da Santa Aliança – uma reação aos acontecimentos das
Guerras Napoleônicas – na América regiões, antes sobre domínio espanhol
conquistavam e consolidavam sua independência, aproveitando o caos que havia se
instalado na península Ibérica em decorrência da invasão francesa. Intimamente ligada a
esses acontecimentos, está a chegada da família real portuguesa para o Brasil em 1808.
Várias transformações de impacto tiveram lugar a partir de então. Iremos, contudo, nos
ater àquelas referentes à década de 1820. Isso porque foi a partir do movimento do
Porto, eclodido em 24 de agosto de 1820, que o rei de Portugal D. João VI, viu sua
Coroa posta em xeque. Promovido por homens dos mais diversos setores da sociedade
portuguesa – eclesiásticos, militares, comerciantes, homens de letras – o movimento
possuía um caráter liberal o que, de maneira geral, significava: desejavam o fim
absolutismo monárquico, submetendo o rei a uma constituição. Pressionado pelo
governo paralelo estabelecido em Lisboa, a Junta Provisional do Supremo Governo do
Reino, D. João viu-se obrigado a jurar a constituição que se faria através das Cortes
Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, assim como retornar imediatamente a
Portugal. Assim, o centro do império novamente seria deslocado para a Europa,
promovendo uma nova reviravolta geopolítica do mundo luso-brasileiro.
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De fato, o retorno da sede do Reino para a Europa foi motivador de grandes
mudanças, contudo, bem diferentes daquelas pretendidas pelos líderes do movimento
constitucional do Porto. Se esses pretendiam, com a volta de D. João VI para Lisboa e a
submissão deste à constituição, promover a chamada Regeneração do Reino Português
– viram a divisão deste, que acabara por perder seus domínios da América, que se
tornara o Império do Brasil, independente de Portugal, ainda que a casa de Bragança
tenha mantido seu domínio sobre o governo brasileiro tendo, na figura de D. Pedro I,
seu representante. Em um período de cerca de dois anos, observamos os portugueses da
Europa amotinarem-se contra o governo estabelecido tomando Porto e Lisboa, exigirem
o retorno de D. João VI, que de fato parte do Brasil no dia 25 de abril de 1821, levando
consigo boa parte da corte, dos livros e do tesouro; enquanto isso, em Lisboa, estava
reunida as primeiras Cortes Constituintes de Portugal, indicando uma ruptura com o
antigo modelo de regime, enquanto no resto da Europa, as tropas da Santa Aliança
agiam no sentido de restaurar e fortalecer as antigas dinastias europeias. No ano
seguinte, aquele movimento que poderia ser visto como uma tentativa de recolonização
do Brasil resulta na separação deste.
Se os três primeiros anos da década de 1820 viram uma intensa movimentação
no cenário político luso-brasileiro, os anos seguintes não seriam de calmaria para o
recém-fundado Império do Brasil. Diferentemente das ex-colônias americanas que, em
sua imensa maioria, adotaram um regime de governo republicano, o Brasil independente
mantivera a monarquia como forma de governo, buscando, contudo a elaboração de
uma constituição que limitasse os poderes reais. Se a separação dos reinos se dera
devido ao alegado despotismo de Portugal em relação ao Brasil, esperar-se-ia que, com
a independência, os liberais finalmente conseguissem instaurar um governo que
rompesse com o absolutismo do chamado Antigo Regime. Porém, o que se viu foi uma
intensa disputa política entre as diversas facções que buscavam seu espaço no poder,
conservadores, liberais moderados e liberais exaltados se atacavam a todo o momento e
é em meio a esse ambiente de disputa que D. Pedro dissolve a Assembleia Constituinte,
que estava reunida no Rio de Janeiro. Se o período imediatamente após a independência
do Brasil marcou-se pela abertura do campo de disputas políticas, dando margem para
uma aparente liberalidade de ideias, a perseguição e opressão daqueles que
questionavam a autoridade do monarca logo dominariam o cenário brasileiro, como
ficará exposto mais a frente. Apesar de dissolvida a constituinte, em 1824 uma Carta
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Constitucional seria outorgada por D. Pedro I. Porém, esta seria marcada pela
concentração de poderes na figura do Imperador, que assume o quarto poder no sistema
de governo, chamado poder Moderador que, dentre outras atribuições, detém o veto
absoluto. Nossa intenção neste primeiro momento, mais do que detalhar os
acontecimentos políticos, é de enfatizar a especificidade desse momento histórico,
marcado por grandes agitações políticas. Entretanto, qual a importância de tais
períodos? Porque estuda-los? E ainda, como fazê-lo?
Circulação de impressos, circulação de ideias: uma abordagem cultural do político.
Dizer que certo momento histórico é um momento de transição pode soar estranho em
inicialmente, afinal, o tempo sempre está passando, o presente é sempre o momento em
que o futuro se torna passado. Mas o tempo não é a única variável do conhecimento
histórico, estão envolvidos também os homens, o espaço e, portanto, a sociedade que se
forma. Não negamos, é claro, que as mudanças ocorrem na longa duração que, se
olhado de perto, todo objeto de análise apresentará transformações, assim como
permanências. Porém, o determinante é que, ao realizar um estudo do passado, o
historiador adota uma perspectiva e é através desta que será possível perceber
transformações significativas – fascinantes.
Talvez, se analisarmos aspectos sociais dos anos de 1820 no Brasil, não
encontraríamos grandes mudanças na estrutura social – contrariamente a uma análise
das últimas décadas do século XIX, que nos apresentaria uma reconfiguração dessa
sociedade, haja vista a aplicação da lei áurea, executada em 1888. No âmbito da
política, essas transformações também podem ser questionáveis, afinal, ainda que tenha
se emancipado da pátria-mãe Portugal, o Brasil continuou com o regime monárquico, o
governo manteve-se na mão da mesma dinastia, se havia uma esperança de maior
participação do povo no poder, representado através dos deputados por ele eleitos, a
dissolução da Assembleia constituinte e instituição do Poder Moderador garantiram a
manutenção do poder centrado nas mãos do Imperador. Se, ao menos na aparência, não
podemos observar grandes mudanças políticas ou sociais, qual perspectiva afinal, irá
nos permitir compreender o particularismo desse momento histórico?
Antes de responder essa questão, é necessário entender os motivos que levam
um historiador a estudar momentos particulares de uma determinada sociedade. Não
112
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pretendemos aqui uma discussão sobre a função da História ou do historiador, mas tão
somente, ressaltar a importância de momentos de grandes convulsões, ainda que não
resultem em transformações estruturais de uma sociedade (se é que podemos falar em
estruturas). Através dos conflitos gerados, podemos identificar os componentes em
contenda, seus anseios, seus mecanismos de luta, suas contradições são expostos; o que
eram articulações subterrâneas tem a terra que lhes cobrem revolvida. A escolha por
esses momentos tem suas consequências, se antes tais mecanismos e componentes
encontravam-se soterrados, agora temos uma visão nebulosa deles, turvada pela poeira
levantada. Retomando a metáfora inicial dos fragmentos de um mosaico, teremos os
fragmentos – nossos vestígios – partidos em milhares de pedaços pequeninos, das mais
variadas formas, mas ainda assim, vitais para a composição de nosso mosaico. Portanto,
o historiador, ao escolher os momentos de convulsões como seu objeto de estudo, deve
ter em mente que – mesmo tendo um acesso mais direto às articulações e mecanismos
de uma sociedade – sua visão será sempre indireta, fragmentada.
Isto entendido, podemos retornar à nossa questão, afinal, quais particularidades
dos anos de 1820 no Brasil? Ainda que a estrutura de poder político e a social tenha se
mantido – sobretudo se pensadas separadamente – acreditamos que este momento foi
especialmente rico para pensarmos aspectos culturais do fazer político brasileiro. Se
―No processo histórico, ideias, palavras, e acontecimentos precipitam-se numa solução
turva, que exige diversos ângulos de análise para fazer justiça à complexidade da
mistura‖167, temos justamente nos anos de 1820, uma explosão de ―ideias, palavras e
acontecimentos‖, material riquìssimo para ser analisado através do ângulo cultural do
polìtico. Cultural porque ―fornece os elementos para representações através dos quais os
indivìduos dão sentido à sua existência‖168, polìtico na medida em que busca ―o lugar da
articulação do social e de sua representação‖169.
Como, porém, podemos, efetivamente, acessar esse material? A resposta para
isso esta naquilo que nos traz vestígios desse passado, ou seja, fontes que nos permitam
167
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e constitucionais: a cultura política da
independência (1820-1822). Rio de Janeiro: Revan: FAPERJ, 2003, p. 21.
168
Ibidem, p.20.
169
ROSSANVALON, Pierre. ―Por uma Historia Conceitual do Polìtico ;9Nota de trabalho)‖. Revista
Brasileira de História. São Paulo: Editora Contexto: Anpuh, v.15, n.30, p.16, 1995.
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identificar o vocabulário utilizado à época, as ideias que se faziam presentes, que nos
tragam os acontecimentos. As possibilidades são variadas, interessa-nos, contudo, uma
específica: os impressos. O motivo para tal será tratado mais adiante, por hora,
preocuparemo-nos em apresentar um aspecto importante a ser considerado quando da
análise desse material: a compreensão da circulação dos impressos e, por consequência,
das ideias e informações neles contidas. Robert Darnton apresenta-nos uma perspectiva
para tal, segundo a qual os impressos possuem um ―ciclo de vida‖ e continua:
Este pode ser descrito como um circuito de comunicação que vai do autor ao
editor (se não é o livreiro quem assume esse papel), ao impressor, ao
distribuidor ao vendedor, e chega ao leitor. O leitor encerra esse circuito
porque ele influencia o autor tanto antes quanto depois do ato de
composição.170
Mais do que buscar compreender cada etapa desse ciclo, ele nos dá a dimensão
geral das diversas etapas percorridas pelos impressos e, portanto, por suas ideias. Os
desvios e apropriações realizados nesse percurso são inúmeros, entretanto não cabe aqui
sua exploração. Ressaltamos, porém, a complexidade para além da relação autor-leitor
que envolve múltiplos agentes sociais. Tal percepção nos interessa na medida em que dá
concretude à fonte com a qual trabalharemos: os periódicos panfletários.
A Gazeta Pernambucana e a Sentinela da Liberdade: vozes de um liberal exaltado
Compreendidos o contexto geral e as perspectivas de análise aqui adotadas,
consideramo-nos aptos para seguir adiante neste breve estudo dos anos de 1820 do
Brasil como nação recém-independente. Destacamos anteriormente que esse foi um
período de grande turbulência, palco de eventos de grande vulto para a história lusobrasileira: retorno das cortes portuguesas à Europa, independência do Brasil e outorga
da constituição são apenas alguns deles. Para compreendê-los em suas causas e
consequências, assim como em suas articulações, poderíamos nos ater aos aspectos
econômicos envolvidos, principalmente no que diz respeito às relações entre Brasil,
Portugal e Inglaterra. Outra possibilidade seria partir de um estudo biográfico dos
envolvidos, compreender suas motivações e interesses. Há ainda a possibilidade de
buscar entendimento acerca das estruturas de poder: relações das câmaras de governo,
170
DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. Trad: Denise Bottmann. São
Paulo: Companhia das letras, 2010, p. 112.
114
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funcionamento das eleições, etc. Porém, a escolha aqui realizada se deu, como dito, por
uma perspectiva cultural do político, à qual relacionamos diretamente os impressos.
O motivo para tanto está no fim da censura prévia, determinado em decreto de 2
de março de 1821171. Livre das dificuldades impostas para a produção e divulgação de
impressos até então vigentes, viu-se no Brasil uma explosão na circulação desse
material. A possibilidade de expressão, até então cerceada em sua raiz, encontrou um
terreno fértil para se desenvolver, haja vista o público letrado presente no Brasil –
sobretudo oriundo dos estudos na Universidade de Coimbra que: ―fazendo uso público
da razão, construía leis morais, abstratas e gerais, que se tornavam uma fonte de crítica
do poder e de consolidação de uma nova legitimidade política. Ou seja, a opinião com
peso para influir nos negócios públicos, ultrapassando os limites do julgamento
privado.‖172. Em um contexto marcado pela intensa atividade nas camadas de poder,
trazer para o espaço público opiniões privadas é poder, pela primeira vez, interferir de
forma ampla nos assuntos públicos.
A imprensa que se desenvolvia então, para além de se notabilizar pela exposição
de opiniões, sobretudo em relação aos assuntos políticos, ficou marcada também pelo
grande número de jornais panfletários, ou seja: ―impressos de combate imediato, de
apoio/ataque a pessoas e facções e de propagação das ―novas ideias‖, dirigidas ao povo
e à nação ou, quando fosse o caso, para formá-los.‖173. Talvez a maior expressão, dentre
aqueles que adotaram tal estilo de produção periódica, seja encontrada na figura de
Cipriano José Barata de Almeida, que ganhara grande vulto político nos primeiros anos
da década de 1820. Participando ativamente do processo que instalou a Junta Provisória
de Governo – indo ao encontro do movimento revolucionário do Porto – Barata
conseguiu, com facilidade, ser eleito deputado representante da província da Bahia às
Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa 174. Este seria o primeiro grande
passo para uma vida de intensa participação pública. Porém, embora tenha tido
171
Para leitura do decreto, acessar: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/decreto/Historicos/DIM/DIM2-3-1821.htm (acessado pela última vez em: 06/10/2013).
172
MOREL, Marco. Os primeiros passos da palavra impressa. In: MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tânia
Regina de (Orgs.). História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p.33.
173
Ibidem, p.35.
174
Cf. GARCIA, Paulo. Cipriano Barata ou liberdade acima de tudo. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.
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marcante participação nas Cortes, seria reconhecido, sobretudo pela sua produção de
impressos, dentre os quais se destacam manifestos, panfletos e periódicos, não havendo,
em contrapartida, nenhum livro publicado em seu nome.
A escolha pela análise dos escritos publicados por Cipriano Barata, no entanto,
não se dão somente pela preeminência atingida por sua figura no âmbito político, mas
pela amplitude geográfica e temporal que esses atingiram, alcançando um grande
público e, sobretudo, pelas ideias articuladas pelo autor em suas páginas. Buscaremos
assim, iniciar uma exploração acerca das ideias que circulavam pelo Brasil
independente, tentando reconhecer nos escritos de Cipriano Barata as leituras que este
realizou, fossem elas frutos de seus estudos em Coimbra, de livros que ele tivera em sua
biblioteca particular ou mesmo ideias que, por ventura, tenha conhecido apenas através
dos diálogos que estabelecia com seus contemporâneos.
Sentinela da Liberdade – na guarita de Pernambuco, foi o mais constante
periódico escrito por Barata. Seu primeiro número data de 9 de abril de 1823, cerca de 5
meses depois de seu retorno da mal fadada tentativa de elaborar uma constituição para o
Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves175. Publicada às quartas-feiras e sábados,
foram editados pelo baiano 66 números consecutivos, até novembro de 1823, quando o
redator foi feito prisioneiro. A partir de então, seus escritos se dariam de forma esparsa,
publicados nas mais diversas ―guaritas‖, sendo seus últimos exemplares datados de
1835. O Sentinela possuía uma escrita inflamada, mordaz, não muito rebuscada, afinal,
como exposto em seu primeiro número, ela se propões como uma alternativa no cenário
periodista do Brasil:
Têm aparecido em público dúzias de gazeteiros no Brasil e eu já estou
cansado de ler coisas que pouco ou nada podem concorrer para a ilustração
dos povos livres e bem da Pátria. Persuado-me que um gazeteiro é escritor
que pode ensinar, edificar e fixar opinião pública e até moralizar os homens:
meus desejos são estes. Hei de escrever para os da Cidade e da Aldeia,
homens, mulheres, sábios e pouco instruídos: mas todos os meus discursos
sem bem refletirem, hão de saber sempre ao bem da Pátria. 176.
175
Malfadada uma vez que, após mais de um ano de discussões, acabou não tendo validade no território
do Brasil.
176
BARATA, Cipriano. Sentinela da liberdade e outros escritos (1821-1835)/Organização e edição:
Marco Morel. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2008, p.161.
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Essa passagem muito nos ajuda a compreender não somente o Sentinela da
Liberdade, mas os escritos de Cipriano Barata em geral. Isso porque, como exposto pelo
autor, ele tem como pretensão ao mesmo tempo trazer ideias ilustradas, ou seja,
disseminar o conhecimento, a razão e atingir um grande público que, em geral, não
possui conhecimento acerca desse ―pensamento ilustrado‖. É, portanto, com essa
tentativa que Barata irá elaborar escritos onde se fazem presentes citações de escritores
da Antiguidade Clássica, da Europa renascentista e da Inglaterra e França
revolucionária, ao mesmo tempo, estamparão as páginas de seus periódicos cantigas
populares e poemas satíricos.
A influência francesa em seus escritos é patente. As Guerras Napoleônicas lhe
fornecem exemplos constantes para pensar os acontecimentos do Brasil. O quinto
número da sentinela, ao discutir a Declaração de D. Pedro I aos soldados do Exército
Brasileiro tecendo várias crìticas à ideia de um imperador general, diz: ―[...] nunca se
deve consentir que o Imperador seja Generalíssimo,[...] – a posse do poder excita o
abuso [ilegível] a História antiga e moderna oferecem mil exemplos e Bonaparte acaba
de nos abrir os olhos.‖ 177 [grifo nosso]. De fato, Barata irá buscas em leituras antigas e
modernas amparo para suas ideias. É possível identificar em suas páginas, por exemplo,
a leitura de Ovídio quando, ao criticar o envio de prisioneiros de guerra de volta a
Portugal, cita o poeta para defender o fim de quaisquer relações com os portugueses 178.
Outras passagens nos indicam que o baiano lera também as Vidas Paralelas de Plutarco.
Isso porque, vários personagens da antiguidade, biografados por Plutarco, são citados
em seu periódico: Cícero, Júlio César, Bruto, Fócion, entre outros. Porém, o que nos
indica a leitura da obra é a tripla referência de Barata a personagens tratados pelo
antigo. No número 16 de sua Sentinela da Liberdade Cipriano se coloca no lugar de
Clêomenes, como aquele que faria guerra à tirania. Logo em seguida faz referência à
passagem da Vida de Alexandre, quando, na Índia o imperador conhece um sábio de
nome Calano, o qual, em determinado momento, deita-se em uma fogueira, atirando-se
para a morte – nessa passagem, o jornalista baiano reconhece o imenso perigo que corre
ao publicar críticas tão vorazes aos governantes179. No número seguinte da Sentinela,
177
Ibidem, p.196.
178
Ibidem, p.388.
179
Ibidem, p.253.
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mais uma passagem representada na obra de Plutarco é referida – embora tal passagem
também seja narrada nas Histórias de Heródoto – quando, em uma crítica ao então
presidente da Junta de Governo do Pernambuco, Francisco Paes Barreto, Barata lhe
dirige a palavra, questionando-o se não se lembrava do diálogo de Sólon e do rei Creso,
quando o sábio grego alerta o rei de que ―enquanto se está sobre o Mundo ninguém tem
estado ou sorte segura!‖180.
A leitura de clássicos da antiguidade era recorrente entre os letrados da época,
mas, para além do interesse estético pelos escritos antigos, era comum buscar através de
sua leitura modelos de governo e sociedade ou, como nos casos citados, para fornecer
exemplos de personagens históricos, fosse para representar as virtudes que um homem
deve ter – como no caso de Fócion 181, fosse para serem rejeitados, como no caso de
Júlio César, que tomara para si o poder militar e civil. De qualquer forma, Cipriano
Barata não apresentava conhecimentos somente acerca da antiguidade, pelo contrário,
mostrava-se um leitor atento àquelas obras de maior repercussão em seu tempo, ainda
que muitas delas, em algum momento, tenham sido retidas pela censura portuguesa.
Prova disso, nos dá Hélio Vianna, ao dizer da biblioteca particular apreendida com
Barata quando este fora detido por envolvimento na Conjuração Baiana, em 1798.
Segundo o autor, além de livros de medicina, matemática, metafísica, história,
geografia, encontra-se também Lições de Direito Natural e das gentes e obras de
Condillac, escritor ilustrado francês, que foram alvo da Real Mesa Censória
portuguesa182. Os ilustrados franceses seriam, inclusive, as principais referências de
Barata. No nono número do Sentinela, o baiano lamenta o suposto desconhecimento dos
ministros do Rio de Janeiro acerca do ―Velho Testamento Polìtico de Montesquieu‖ 183,
citando logo em seguida uma passagem onde a espionagem e polícia política é tida
como característica de maus governos, não sendo necessárias aos bons monarcas (cap.
XXIII, livro XII). Se por um lado o Espírito das Leis teve circulação relativamente
180
Ibidem, p. 260.
181
Fócion (c.402 – Atenas, 318 a.C.) foi um político ateniense, eleito estratego múltiplas vezes no
contexto das invasões macedônicas. Grande defensor da austeridade como caminho para a virtude,
segundo Marco Morel, teria sido tomado por Cipriano Barata como paradigma do comportamento
político. Cf. Ibidem, p.369.
182
VIANNA, Hélio. Contribuições à história da imprensa brasileira (1812-1869). Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1945, p.450.
183
BARATA, op.cit., p.210.
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ampla no mundo luso-brasileiro, sendo apenas por alguns anos censurado, é sugestivo o
uso feito por Barata, que tece críticas diretas aos seus governantes, ainda que se dirija
aos ministros e não ao próprio imperador. Tanto que, meses depois, ele seria processado
pelas ideias expressas nessa edição do Sentinela184, acusado de crime de imprensa,
ficando detido por cerca de 6 anos.
Interessante notar que as relações de Cipriano Barata com as instituições de
poder muito se aproximam daquela estabelecida entre as obras às quais se refere em
seus escritos com as mesmas. No número 16 da Gazeta Pernambucana Cipriano faz
referência a dois célebres pensadores da ilustração francesa para elaborar sua tese acerca
das motivações daqueles que defendem o Governo Absoluto ou Despótico.
Primeiramente cita Volney, autor de Les Ruines ou meditátions sur lês révolutions des
empires185, o autor é utilizado para argumentar que duas das fontes dos males de uma
sociedade são o desejo de governar para ter poder e o segundo desejar possuir fortuna
sem trabalhar186. Em seguida, Barata recorre à obra clássica do abade Raynal – muito
embora tenha sido por muitos anos censurada – História fiosófica e política dos
Estabelecimentos e Comércio dos europeus nas Duas Índias. Cipriano Barata utiliza
dela para sustentar suas acusações acerca das relações corruptas entre monarcas e
membros da Igreja que utilizam de sua posição para enganar e denunciar aos
governantes aqueles que devem ser eliminados187. Ainda dentre os franceses,
observamos nos escritos de Cipriano Barata influência de Desttut Tracy, considerado o
responsável pela cunhagem do termo idéologie e reconhecido por sua ativa participação
na revolução francesa. Por pelo menos duas vezes Barata faz referências diretas ao
francês primeiramente no que diz respeito à substituição do ―dinheiro por papel‖,
possivelmente indicando a leitura da obra publicada em 1823 Traité d‘économie
184
Cf. Ibidem, pp. 505-511.
185
A mesma obra foi referida dentre as leituras realizadas pelos envolvidos no movimento baiano de
1798. Francisco Muniz Barreto afirma tê-la trazido em sua bagagem de Portugal. Cf. VILLALTA, Luiz
Carlos. Reformismo Ilustrado, censura e práticas de leitura: Usos do livro na América Portuguesa. São
Paulo: USP, 1999, 443 p. Tese (Doutorado) – Departamento de História, Faculdade de Filosofia, letras e
Ciencias Humanas, Universidade de São Paulo, 1999, p.211. Disponível
em:<http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br/estudos/teses/pdfs/Villalta99.pdf>. Acessado em 08
de outubro de 2013.
186
187
BARATA, op. cit. p.169.
Ibidem, p.170.
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politique. Para além da análise das ideias compartilhadas por Barata, é interessante notar
nesse caso a questão da circulação dos impressos. A referência à Tracy é feita de forma
direta, sendo citada a página de onde foi retirada, e mais, foi feita no Sentinela da
Liberdade na Guarita do Quartel-general de Pirajá Hoje Presa na Guarita da Ilha das
Cobras no Rio de Janeiro. Alerta!188 Com data de 22 de setembro de 1831. Portanto, o
jornalista estava preso já havia quase 7 anos (tendo ficado em liberdade menos de um
ano em 1830), ainda assim, mostrou-se inteirado acerca das publicações mais recentes.
O mesmo autor seria citado novamente no número seguinte do Sentinela, ainda na
Guarita da Ilhas das Cobras. Destacando que ―[tiraria] essa linha para quem não sabe
francês‖189 e então reproduz uma passagem onde é defendida a superfluidade do rei,
peça inútil e que só dá despesas para o governo. Percebemos ai, além de um ataque
direto à monarquia, a preocupação do baiano em facilitar o acesso dos leitores à sua
referência.
Compreender as nuances que perpassaram a circulação de ideias e dos impressos
de Cipriano Barata em si seria um trabalho que exigiria grande fôlego, não sendo esta
nossas pretensões no momento. Objetivamos aqui, sobretudo, demonstrar que – apesar
dos grandes questionamentos que podem ser realizados acerca de transformações
políticas, econômicas ou sociais efetivas com a proclamação da independência – houve,
de fato, no Brasil dos anos de 1820, uma grande transformação no que diz respeito aos
aspectos culturais do fazer político. A numerosa circulação de impressos fossem eles
manifestos, livros ou periódicos, provocou uma significativa ampliação do espaço de
debates acerca dos negócios públicos – estes não estavam mais restritos às mais altas
camadas sociais, pelo contrario, surgia, como mostramos, um esforço para a ampliação
desses. Assim, se não podemos dizer que vimos no Brasil o ―fim do Antigo Regime‖,
podemos perceber ao menos uma significativa ruptura com o antigo modo de fazer
política. Esta não era mais objeto exclusivo de uma elite aristocrática, mas sim alvo de
um debate a ser feito no espaço público que se constituía.
188
Ibidem, p.776.
189
Ibidem, p. 784.
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A FORTALEZA DO GURUPÁ E O TRABALHO INDÍGENA
Alexandre de Carvalho Pelegrino190
A presença portuguesa na América era muito tímida no século XVI.
Os lusitanos estavam deslumbrados com as imensas possibilidades de riquezas e
comércio proporcionado pela carreira das índias, por isso, o pequeno ímpeto em
aventurar-se nas novas terras. O plano inicial de dividir os custos com a iniciativa
particular através da doação de capitanias donatárias não teve o resultado esperado,
somente a partir de 1549 a colonização do Brasil toma rumos mais certos com a
fundação do governo-geral sediado na Bahia191. A lavoura açucareira, que cresceu no
final do século XVI e chegou ao seu ápice econômico nos inícios do século seguinte,
impulsionou de maneira definitiva a ocupação da faixa litorânea, mas, também, de
algumas partes do interior a partir de atividades ligadas à agricultura, como a pecuária192.
É possível afirmar que a expansão para as regiões mais ao norte dos engenhos de
Pernambuco e Bahia foi fruto deste processo. Contudo, a ocupação desta área, que ficou
conhecida como o Estado do Maranhão, explica-se mais por fatores estratégicos e
geopolíticos do que propriamente econômicos. A expansão em busca de novos terrenos
para cultivar cana de açúcar passou por idas e vindas muito grandes no litoral brasileiro,
já que alguns solos não ofereciam as condições ideais para a lavoura do produto 193.
Então, os lusitanos somente sentiram real necessidade de ocupar as partes mais ao norte
com o iminente perigo francês após a fundação do forte de São Luís em 1612 194.
190
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF),
financiadopela CAPES e orientado pelo professor Ronald Raminelli. E-mail:
[email protected]. Endereço: Rua Domingos Segreto, 336, 302. Telefone: (21)
99860360.
191
SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e Sociedade no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras,
2011.
192
PUNTONI, Pedro. A guerra dos bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do
Brasil (1650-1720). São Paulo: Hucitec: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 2002, pp. 22-48.
193
Muitas fontes atestam os solos improdutivos do Ceará, por exemplo. REIS, Arthur Ce zar
Ferreira.ocupação portuguesa do Vale Amazônico ‖.In:HOLANDA,Sergio Buarque de.Civilização
Brasileira, t.1; v.1. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
194
MARIZ, Vasco e PROVENÇAL, Lucien. La Ravardiere e a França Equinocial: Os franceses no
Maranhão
(162-1615). Rio de Janeiro: Topbooks, 2007.
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Depois de vencerem os franceses, várias iniciativas foram tomadas para ocupar a
região que compreendia a foz do principal rio da América do Sul e, além disso, era porta
de entrada para os ricos engenhos do nordeste brasileiro, possuía acesso fluvial para as
minas de prata do Peru e oferecia possibilidade de comunicação com a região do caribe.
Portanto, é possível entender a brevidade com que portugueses e espanhóis agiram
frente à possibilidade dos franceses estabelecerem uma colônia no Maranhão.
Entretanto, não é correto supor que os inimigos dos portugueses desistiram da região
amazônica após a derrota francesa: ingleses, holandeses e irlandeses tentavam ocupar o
amazonas pela margem oposta. Assim, nas primeiras décadas do nascente Estado do
Maranhão, criado em 1621, com um governador próprio e subordinado diretamente a
Lisboa, vários conflitos foram travados nos sertões para garantir as conquistas. Foi
exatamente nessas lutas que se fundou o forte de Gurupá, alguns historiadores e
cronistas colocam que o forte foi fundado sobre os escombros de uma antiga
fortificação holandesa no cabo do norte. A presença holandesa na região objetivava
comercializar com as populações indígenas: trocavam basicamente peixe-boi, madeiras
e escravos por instrumentos de ferro e armas, muitas vezes os holandeses vendiam esses
produtos nos circuitos comerciais caribenhosv195 . A ocupação dos portugueses do forte
do Gurupá não significou a expulsão definitiva dos inimigos, algo que na realidade
nunca ocorreu. Em 1642, o capitão do forte João Pereira e Cáceres escrevia ao rei sobre
os enormes perigos que uma relação mais estreita entre holandeses e índios poderia
representarvi196. Os homens que viveram experiências em áreas coloniais fronteiriças
tinham total consciência da fundamental importância dos índios nas guerras coloniais,
sem nenhuma dúvida eram os elementos que realmente desequilibravam os confrontos.
Os índios não eram fundamentais somente na guerra, mas também no cotidiano
daquela sociedade. Em primeiro lugar devemos tentar entender o regime de trabalho. Os
portugueses que emigraram para o Maranhão não tinham em seus horizontes depender
do seu trabalho manual para a sobrevivência. Todavia, diferentemente das regiões
economicamente mais dinâmicas do Brasil, onde o trabalho era realizado pelos escravos
negros trazidos da África, no Maranhão a escravidão negra africana foi pouco relevante
195
FARAGE, Nádia. As muralhas dos sertões: os povos indígenas no Rio Branco e a colonização. Rio de
Janeiro: Paz e Terra; ANPOCS, 1991. Destacaria também as pesquisas mais recentes de L. Hulsman.
196
AHU, Maranhão (avulsos), Cx. 2, Doc. 133 (1642).
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até o século XVIII. Sem alternativa, os moradores do Maranhão exploraram
intensamente a mão de obra indìgena, porém ,esta ―solução ‖ gerava problemas
incontornáveis nas sociedades coloniais.
Desde o século XVI, religiosos espanhóis já debatiam sobre a liberdade dos
índios americanos. O resultado, como todos sabem, foi favorável à liberdade do gentio,
não é à toa que a primeira lei de liberdade dos índios em Portugal data de 1570. A partir
daí até o diretório pombalino, quando a liberdade definitiva dos índios foi promulgada,
os monarcas e órgãos governativos da monarquia portuguesa produziram várias leis que
ora permitiam ora proibiam a escravização dos índios, não obstante, é possível fazer
uma generalização e identificar dois casos de escravização legítima dos índios: os
resgates e as guerras justas.
Os moradores, oficiais das câmaras municipais, governadores, capitães-mores,
donatários, ou seja, toda a sociedade colonial do Maranhão agia nas brechas oferecidas
pela legislação para conseguir trabalhadores indígenas. Os missionários, sobretudo os
jesuítas, eram os grandes defensores da liberdade dos índios, contudo, os inacianos não
eram contrários ao uso e exploração do trabalho indígena, opunham-se a escravização
desenfreada e sem limites praticados pelos moradores, no fundo estariam satisfeitos se a
coroa concedesse o controle da distribuição do trabalho indígena nas mãos das ordens
religiosas. Deste modo, minha análise não opõe de um lado os moradores e do outro os
missionários, tento encarar como esses grupos se relacionavam na questão mais
importantes para a reprodução daquela sociedade197.
Minha pesquisa identifica dois momentos distintos: uma primeira fase até 1640,
onde os conquistadores possuíam maior poder sobre os índios; após a restauração
portuguesa vejo um processo de maior presença da coroa na colônia, sobretudo no
maior controle da exploração dos índios. Essa segunda etapa passa por várias outras
fases menores e com características próprias, mas, acredito que no geral, os problemas
giram em torno do interesse régio em controlar o trabalho indígena.
O conflito entre o capitão do forte do Gurupá, António Botelho da Silva e o
governador António de Albuquerque Coelho de Carvalho (1667-1671) ocorre no
197
O modelo ideal do repartimento: 1/3 para o rei; 1/3 para os moradores e 1/3 para o missionários.
123
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desenvolvimento deste processo. Foi o último capitão do forte que teve problemas desse
tipo, os instrumentos de controle do trabalho indígena ainda não estavam bem
desenvolvidos, as missões religiosas começam a aumentar de tamanho e importância,
bem como as expedições de resgate. As décadas seguintes evidenciam as mudanças que
estou falando.
António de Albuquerque Coelho de Carvalho era filho do primeiro governador
do Estado do Maranhão Francisco Coelho de Carvalho. Esta família já possuía algum
prestígio, Feliciano Coelho de Carvalho, pai de Francisco, havia servido o rei no
ultramar como capitão-mor da Paraíba e nas lutas contras índios e franceses no nordeste
brasileiro. Francisco também serviu na Paraíba antes de ser nomeado para o recémfundado Estado do Maranhão em 1621. Na colonização do Maranhão esta família teve
importância crucial: Feliciano Coelho de Carvalho, filho do primeiro governador e
António
Coelho
de
Carvalho,
irmão
do
primeiro
governador,
receberam
respectivamente as capitanias donatarias de Cametá e Cumã (Tapuitapera), as capitanias
privadas foram uma solução encontrada pelo rei para estimular a colonização da nova
conquista198.
A trajetória pessoal de António de Albuquerque modifica-se com o governo de
Luís de Magalhães no Maranhão (1649-1652). Substituto de Francisco Coelho de
Carvalho, sobrinho do primeiro governador e filho de António Coelho de Carvalho,
Luís estava interessado em participar das atividades lucrativas da região, sem muitas
opções, engajou-se nas expedições de resgate. Além disso, tentou tomar para si os
rendimentos das capitanias donatárias da família Albuquerque Coelho de Carvalho,
aproveitando-se da brecha aberta pela morte de Francisco Coelho de Carvalho, Luís de
Magalhães confiscou um carregamento inteiro de tabaco produzido no Cametá.
Após essas confusões com Luís de Magalhães, António de Albuquerque passa a
ter grande interesse em tornar-se governador do Maranhão. Seu nome e serviços
aparecem em duas consultas diferentes para a decisão do novo governador do Estado do
Maranhão. Desde 1661, quando Rui Vaz de Siqueira foi escolhido, podemos constatar
que António se candidatava ao cargo
ix199.
Na consulta seguinte falhou parcialmente, o
198
A leva de capitanias privadas criadas no século XVII coloca em xeque a ideia de um fracasso total.
199
AHU, Maranhão (avulsos), Cx. 4, Doc. 433 (1661).
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escolhido foi d. Fradique da Câmara, que não mostrou disponibilidade para embarcar
para o Maranhão. Irritado com a demora de d. Fradique, o Conselho Ultramarino
decidiu escolher António de Albuquerquex200.
De fato António possuía acanhada folha de serviços, seus feitos se limitavam a
ter ocupado o cargo de governador das armas da província da Beira, sendo que durante
sua estada foi capaz de armar, a sua custa, uma companhia de infantaria, algo nada
desprezível. Pesquisas recentes têm insistido na importância dos investimentos
particulares para as guerras do período moderno. Elas partem da premissa de que as
monarquias eram frágeis e nunca iriam conseguir incrementar tanto suas tropas sem a
ajuda/investimentos de ricos comerciantes e nobres, claro que os reis deveriam prestar a
contrapartida e recompensar com mercês estes ―serviços ‖ xi201. David Parrott mostra que
muitos secundogênitos das casas nobres europeias se engajaram no financiamento das
guerras, a pensão de um fidalgo poderia ser suficiente para armar uma tropa e iniciar,
quem sabe, uma carreira de sucesso neste ―negócio ‖202. Será que o rendimento de duas
capitanias donatárias era o suficiente para financiar uma companhia de guerra? Talvez.
Mas, não podemos esquecer que a família de António possuía outros bens, tais como:
tenças, comendas e pensões203. Depois do seu governo na Beira passou três anos como
governador da comarca da cidade do Guarda. Porém, na consulta podemos ver que sua
linhagem era aquilo que mais o qualificava para tal cargo 204.
200
A demora de d.Fradique era nociva para o ―bem comum ‖.Os oficiais da câmara não estavam gostando
dosprocedimentos do governador Rui Vaz de Siqueira, muitos o acusavam de um intrometimento
excessivo naadministração dos índios, por isso, um novo governador deveria chegar logo para substituilo. AHU, Maranhão (avulsos), Cx. 4, Doc. 502 (1665).
201
―At a more mundane level,the great aristocratic families of Lombardy saw military service in the
Spanish armies, substantially at their own expense, as a means to preserve and reinforce their privileged
status and role within the spanish system.‖ PARROTT , David. The Business of war: Military Enterprise
and Military Revolution in Early Modern Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, p. 250.
202
O caso de Martin de Arana é exemplar:―The Spaniard Martin de Arana accepted a contract to build six
galleons for Philip IV in 1625 at a price that would envolve financial loss to himself, but saw this in the
wider contexto of social preferment for his family. For in return he received the military governorship of
Santander for himself and, more importante for the social aspirations of the Family, a knighthood in the
military Order of Santiago for his son.‖Idem, p. 251.
203
No Maranhão o investimento privado na guerra também ocorreu. Temos o exemplo do senhor de
engenho João de Sousa Soleima que investiu na fortaleza do Itapecuru e recebeu a patente de capitão-mor
como recompensa. AHU (avulsos) Maranhão, Cx. 6, Doc. 632 (1678). Além do caso de Manuel Guedes
Aranha e a fortaleza do Gurupá.
204
―e que seu pai Francisco Coelho de Carvalho e seu tio Feliciano Coelho de Carvalho foram pessoas de
merecimento e serviço e ocuparam o mesmo governo do Maranhão e o de São Thomé, e que ajudaram a
125
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Durante seu governo as tensões estavam igualmente presentes, não pode ser
ignorado que a administração das aldeias indígenas estava nas mãos dos leigos, o que
gerava constantes atritos entre as autoridades. Aqui, nos interessa narrar brevemente o
conflito com António Botelho da Silva. Este homem lutou por anos contra a coroa
espanhola pela restauração da monarquia portuguesa, especialmente no Algarve.
Passada sua participação na guerra, António Botelho foi nomeado para uma fortaleza
nas franjas do império colonial português, qual o interesse de um militar em ocupar um
cargo como esse? Ronald Raminelli defendeu que os serviços militares e a posterior
remuneração reforçavam os laços entre centro e periferias205. Uma passagem da sua
carta, onde se defende das acusações de António de Albuquerque, pode ajudar:
―que vagando a alguns anos a capitania do Gurupá cita no distrito do Estado
do Maranhão se pôs o suplicante a ela com o zelo de novamente ir servir, e
fazer a obrigação de soldado e juntamente pois ia a passar mares com tanto
risco, e dispêndio, também de caminho a lograr os lucros que seus
antecessores tiveram sempre no dito posto, e em consideração de seus
serviços foi V. A. servido, fazer-lhe mercê da dita capitania, e sendo assim
despachado, se aprestou logo com grande trabalho e empenho, e partiu para
aquele estado...‖206
Logo ao chegar ao Estado do Maranhão envolveu-se num longo conflito de jurisdição
com o governador António de Albuquerque no que toca ao provimento dos cargos. Contudo,
acredito que a via mais interessante para entendermos este conflito seja através dos interesses
particulares. Como António Botelho deixou claro na sua carta, os capitães antigos do Gurupá
costumavam lucrar com seus postos, seja no comércio de índios ou nas jornadas dos sertões,
afinal, a fortaleza, por muitos anos, foi considerada uma ―boca do sertão ‖, então,
provavelmente o desentendimento com o governador deu-se exatamente neste ponto207.
António Botelho não possuía longa folha de serviços nos sertões, acredito que isto se
explique pela época vivida: as possibilidades de ascensão social pelas guerras em espaços
privilegiados pela monarquia ainda estavam abertas, depois do final da guerra de restauração,
lançar das armas conquistas aos franceses que os ocupavam respeitos porque a memória deste apelido
naquelas partes, há bem a visto.‖ AHU (Maranhão) avulsos, Cx. 4, doc. 504 (1665).
205
RAMINELLI, Ronald. Viagens Ultramarinas: Monarcas, vassalos e governo à distância. São Paulo:
Alameda, 2008.
206
AHU (Maranhão) avulsos, Cx. 5, doc. 587 (1672).
207
Poderia ter explorado os vários outros conflitos que envolveram António de Albuquerque, a câmara de
Belém, sua capitania privada e seu filho mestiço António Coelho de Albuquerque tendo como foco as
repartições dos índios. Alguns deles foram narrados na crônica do padre João Felipe Bettendorff.
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somente com a guerra de sucessão as oportunidades viriam novamente, o que para uma
periferia como o Gurupá se reflete nos serviços de seus capitães. Acredito que a experiência
nos sertões era um elemento que o Conselho Ultramarino buscava deliberadamente para o
ocupante no cargo da capitania do forte do Gurupá, ou seja, homens com serviços nas guerras
―vivas ‖ eram exceções fruto de um recorte cronológico especìfico.A preferencia por homens
práticos nos sertões explica-se pela guerra nas sociedades coloniais, especialmente nas áreas
fronteiriças .A ―revolução militar ‖,se não se espalha rapidamente por toda a Europa,demorou
ainda mais para chegar aos confins da América208. Nesta passagem, por exemplo, a atuação de
Martim Soares Moreno nas guerras no Ceará é descrita como tendo matado:
―mais de 200 franceses e flamengos ‖,―me despia nu e me raspava a
barba,tingido de negro com um arco e flechas, ajudando-me dos índios,
falando-lhes de contínuo a língua e pregando-lhes o que já sabia bem
fazer.‖209
Várias outras indicações levam-me a concluir pela distância enorme qu e separava a
―guerra de flandres ‖ e a ―guerra do Brasil ‖: a precariedade das fortificações, a falta de
armamentos, munições, artilharia e soldados, já que os índios eram a maioria das tropas em
todos os conflitos.
O caso descrito é interessante se considerarmos todo o processo de consolidação da
―empresa ‖ dos resgates.Se no inìcio da colonização a coroa viu-se as voltas com o desejo dos
conquistadores de terem como prêmio dos seus serviços a exploração dos indígenas, num
momento posterior ela não só colocaria limites muito claros para a administração particular
como tentaria de diversas maneiras controlar a exploração indígena. É importante ficar claro
que não acredito que a coroa possuía poder imenso em domínios tão distantes no ultramar, de
fato, permitida ou legalizada a escravização dos índios foi levada a cabo pelos moradores,
contudo isto também não quer dizer que as iniciativas da coroa fossem irrelevantes, penso
justamente o contrário. Explico melhor.
Nos momentos anteriores das duas principais revoltas coloniais a coroa baixou leis que
alteraram a administração das aldeias indígenas. Na primeira revolta, de 1661, a região vivia
208
Só destaco as obras de David Parrot e Geoffrey Parker, autores que defendem não abandonam o
conceito de revolução militar, mas preferem matizar as conclusões tiradas por Michael Roberts nos anos
de 1950.
209
MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda Restaurada: guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654. São Paulo:
Editora 34, 2007, p. 289.
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período extremamente conturbado desde os anos de 1650 com o desastroso governo de Luís
de Magalhães. Após um período de reforço do poder missionário com a chegada do padre
António Vieira, do governador André Vidal de Negreiros e as leis de 1653 e 1655, que
legalizaram novamente os resgates, desde que acompanhados por missionários e previamente
autorizados, a situação voltou a ficar tensa após a saída de André Vidal do governo. Mesmo
isolado politicamente, o padre António Vieira, prosseguiu com o projeto missionário, ou seja,
maior participação dos religiosos da Companhia nas repartições e nos resgates. Reagindo a
essa situação, os moradores armam uma grande revolta que culminou com a expulsão da
Companhia de Jesus.
Após esse embate, o rei decide passar a administração temporal das aldeias para os
leigos, reservando somente a administração espiritual para os religiosos, claro que esta
situação abriu enormes brechas para os abusos dos moradores. Esse quadro teve uma
alteração significativa em 1680, quando foi criada uma lei de liberdade dos índios que não
guardava nenhum caso de escravização legítima. Sabendo que a reação dos moradores seria a
pior possível, d. Pedro II comprometia-se a enviar boa quantidade de escravos negros a preços
acessíveis aos moradores a partir de uma companhia de comércio fundada em 1682. A
iniciativa real falhou e dois anos depois os moradores de São Luís se rebelaram contra o
governador, o rei e o estanco.
Poucos anos após a revolta os moradores ―venceram ‖ novamente a queda de braço
com a coroa e em 1688 os resgates foram novamente regularizados. Contudo, acredito que a
partir desta data há outra ruptura: mais do que regularizados, ou resgates foram incentivados
diretamente pelo rei, ou melhor, pela fazenda real. As tropas seriam compostas com maior
regularidade, pelo menos uma vez a cada três anos, exatamente o período de tempo que um
governador permanecia no cargo, ou seja, cada governador faria ao menos uma tropa de
resgate. Além de maior regularidade, as tropas seriam em parte financiadas pela fazenda real,
com a condição de que na volta os escravos passassem pelas alfandegas, obrigando os
possíveis compradores a pagarem os impostos devidos. Assim, dos anos de 1690 até a metade
do século XVIII a coroa passa a ser grande incentivadora das tropas de resgate, parece-me que
ao invés de tentar coibir de todas as formas o trabalho indígena, a coroa portuguesa preferiu
fazer com que os lucros desse comércio entrassem também nos cofres reais, incentivando
desta forma a colonização.
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Não obstante, outro movimento fundamental iniciado no reinado de d. Pedro II foram
as primeiras tentativas de implantar o tráfico de escravos negros para o Maranhão.
Diferentemente do Rio de Janeiro ou Bahia, as praças de São Luís e Belém não possuíam
grupos mercadores capazes de transportar escravos em grande quantidade: o custo do
transporte era muito alto, consequentemente, o preço ficava fora da realidade dos moradores.
O tráfico de escravos negros no Maranhão antes das reformas pombalinas é uma questão que
levanta outras tantas: qual interesse da coroa em levar escravos negros para uma região como
o Maranhão? Porque escravos negros? Afinal, quem deseja os escravos: os moradores ou a
coroa?210
Rafael Chambouleyron escreveu artigo interessantíssimo sobre essa questão e ao
analisar a documentação concluiu que os lucros do comércio de escravos negros seriam
aplicados nas fortalezas da região211. Além disso, os escravos viriam da praça de Cacheu na
Guiné, formando uma espécie de ―atlântico equatorial ‖. Dessa forma, podemos tentar
entender as iniciativas da coroa: fazer um desenvolvimento integrado entre as partes do seu
império, ou seja, as praças africanas seriam fornecedoras de escravos e as áreas da América
seriam produtoras de gêneros agrícolas. Numa consulta do conselho ultramarino de 1690, os
conselheiros diziam c om muita clareza as vantagens de se implantar no Maranhão a
―solução‖ do Brasil (tráfico de escravos africanos): os moradores, dessa forma, abririam mão
dos índios, o que permitiria a pacificação dos sertões212. Para os membros do conselho
ultramarino, uma colônia não poderia ao mesmo tempo ser a produtora e consumidora dos
escravos, a produção de escravos geraria uma instabilidade indesejável para os núcleos
coloniais agrícolas. Ao mesmo tempo em que o Maranhão desenvolveria uma cultura agrícola
e Cacheu um tráfico de escravos, a fazenda real poderia recolher uma quantidade maior de
tributos, que, como já foi dito, seriam investidos nas fortificações, ou seja, na consolidação da
presença lusitana no vale amazônico.
210
Longo debate: Fernando Novais com a ideia de um tráfico impulsionado pela coroa, comércio muito
lucrativo. Ciro Cardoso, modo de produção próprio, demanda interna. Alencastro com a ideia de
formação do Brasil fora dele, e a importância do tráfico. Novais já abre brecha para pensarmos isso
quando questiona a tal inadaptação dos índios ao trabalho.
211
CHAMBOULEYRON, Rafael. Escravos. ‗Escravos do Atlântico Equatorial:tráfico negreiro para o
Estado do Maranhão e Pará (século XVII e inìcio do século XVIII)‘.Revista Brasileira de História, São
Paulo, v. 26, n. 52,
212
AHU (Maranhão) avulsos, Cx. 8, Doc. 869 (1693).
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O governo de António de Albuquerque Coelho de Carvalho (filho homônimo do
governador trabalhado anteriormente e que esteve no poder durante 1690-1701) é um período
importante para encararmos essas mudanças. Foi nomeado governador nos primeiros anos da
implantação das novas leis e da maior regularidade e regulamentação das tropas de resgate.
Não penso que foi por acaso a sua enorme popularidade, épocas de sertões abertos tendiam a
aliviar as tensões locais de uma sociedade carente de trabalhadores. Não podemos esquecer
que o final do século XVII foi um período de expansão geral para o interior do Brasil, a
expansão vinda do Maranhão tributária da pecuária foi para a parte oriental do Estado, já a
expansão para a região do rio negro deve-se muito mais às jornadas dos sertões, que voltavam
com as famosas ―drogas dos sertões ‖ e escravos. O próprio governador António de
Albuquerque era homem com larga experiência nos sertões, inclusive, fez várias guerras na
região do cabo do norte contra franceses e indígenas, até mesmo fundou o importante forte de
Macapá, ocupado pelos franceses nos anos de 1690 e posteriormente recuperado.
Sempre tento ter em vista a situação da economia maranhense para entender o trabalho
compulsório. A estrutura fundiária da região durante o século XVII não é muito conhecida,
porém, sabe-se que as grandes propriedades não eram em número muito significativo, sendo
boa parte da produção dos engenhos dedicada à aguardente 213. As principais riquezas do
Estado do Maranhão vinham das atividades extrativistas e para alcançar esta riqueza eram
necessárias as jornadas aos sertões, totalmente dependentes dos serviços prestados pelos
índios, seja para remarem as canoas, para compor a força de trabalho na coleta dos gêneros ou
para reforçar os contingentes militares em expedições que poderiam topar com grupos
indígenas hostis. O padre João Daniel, por exemplo, fala da preferência dos moradores para a
produção de aguardente:
―As engenhocas, que só têm feitoria de aguardentes, em tudo são
semelhantes aos engenhos ditos, exceto em não fazerem açúcar, nem
caldeiras, e mais requisitos para ele; têm porém mais alambiques que os
outros, necessitam de menos gente, fazem menores gastos e respective são
mais rendosas, não só por ser a aguardente o vinho usual daquelas terras, mas
porque têm corjas de muitos e grandes bêbedos; e dão gasto a quanta haja, e
se os feitores se esmeram em a fazer mais sabista, não lhes faltam logo
fregueses que lhe dêem gasto, e daqui fica respondido aos que se admiram da
pouquidade de açúcar que do Amazonas se embarca nas frotas para a Europa,
porque mais se ocupam com aguardentes, tanto que tem alguns anos em que
se têm experimentado grandes faltas de açúcar ainda nas mesmas cidades, e
povoações maiores, e se não fossem os privilégios que gozaram os senhores
213
Na documentação encontrei alguns conflitos envolvendo a produção deste produto e os interesses da
coroa portuguesa. Questões como a fiscalidade e destino dos escravos negros.
130
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de engenho todos se exporiam na fatura de aguardente; e apenas fariam só o
açúcar necessário para o provimento de suas casas, e família; e para isso
basta qualquer tacho sem a precisão de tantos petrechos,e gastos,que
necessariamente têm os engenhos de açúcar.‖
214
Deste modo, podemos ver que a maioria dos moradores não possuíam cabedais
suficientes para a montagem dos engenhos de açúcar, por isso preferiam investir nas
engenhocas e nas atividades extrativas. Isto me levou a pensar sobre o trabalho escravo na
região, segundo o mesmo padre João Daniel, era mais vantajoso para os moradores do Estado
do Maranhão as repartições das aldeias do que o investimento num plantel de escravos. Os
índios eram mais adaptados aos serviços necessários na localidade e receberiam remuneração
pelas atividades prestadas, já os escravos exigiam um investimento inicial grande e não
conheciam profundamente a realidade amazônica, sendo úteis somente nas grandes lavouras.
Comentando sobre as fazendas da Companhia de Jesus, João Daniel diz que:
―Uma das maiores fazendas que tinham era a que todos lá conhecem com o
nome de Jaquarari; é fazenda que tem dentro uma engenhoca, e fábrica, de
algumas aguardentes, que é o emprego de maior lucro naquele estado; tem
dentro uma famosa olaria, e muitos oficiais nela; uma oficina de ferreiros,
com bons mestres; fábrica de canos, tecelões, carpinteiros etc. ‖215
É possível, portanto, matizarmos uma busca desenfreada por escravos para produzirem
na grande lavoura, esta pode não ser a realidade da região amazônica. Acredito que boa parte
dos descimentos eram compostos por famílias indígenas e não indivíduos sem parentesco. As
pequenas aldeias formadas eram fundamentais para o sucesso da colonização, sejam
administradas por religiosos ou leigos elas produziam uma lavoura de subsistência
indispensável, constituíam um contingente populacional mínimo para a colonização, serviam
de tropas militares e forneciam a força de trabalho para a coleta das drogas dos sertões.
214
DANIEL, João. Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004, vol,
2, p.42
215
Idem, p. 203.
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MINEIROS EM SÃO MATEUS: VIOLÊNCIA EM ELEIÇÕES DO FINAL DO
DEZENOVE
Alexandre de Oliveira Bazilio de Souza216
Resumo:
Neste trabalho, o violento cenário eleitoral do norte do Espírito Santo nas últimas
décadas do Dezenove é usado como pano de fundo na análise da construção da imagem
do mineiro no imaginário dos habitantes daquela região. Conceitualmente, emprega-se a
psicanálise na compreensão das aparentes contradições nos discursos de violência, que
colocam o mineiro como seu principal agente. Assim, o estudo ultrapassa as relações
interpessoais para alcançar o foro íntimo dos denunciantes e entender o motivo de seus
ressentimentos.
Palavras-chave: violência – eleições – psicanálise
Abstract:
The violent electoral scenario in the north of Espírito Santo is used in the analysis of the
construction of the image of the "mineiro" by the inhabitants of that region.
Psychoanalysis was used to comprehend the apparently contradictions in the speeches
of violence, which characterize the "mineiro" as its main agent. Hence, this study
surpasses interpersonal relations to reach the intimidate feelings of the ones involved in
the conflicts, in order to understand the reasons of their resentments.
Keywords: violence – elections – psychoanalysis
Considerações Iniciais
O fenômeno eleitoral no Brasil Império é comumente conhecido por sua violência.
Diversos publicistas da época relatam tal característica em suas obras, a exemplo de
José de Alencar, Francisco Belisário, João Francisco Lisboa e Tavares Bastos. Em seus
textos, além das críticas a diversos aspectos das eleições (como a compra e falsificação
de votos, a corrupção das autoridades eletivas, o despreparo do votante e a imperfeição
216
Doutorando em História pela Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail:
[email protected]. Endereço: Laboratório de História, Poder e Cotidiano. Campus universitário
de Goiabeiras. Av. Fernando Ferrari, 514. Vitória - ES - CEP 29075-910. Telefone/Fax: 27 4009-2494.
Orientadora: Adriana Pereira Campos.
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da legislação eleitoral), a violência aparece como um dos mais graves problemas de
nossos pleitos, chegando a penetrar — e a mesmo se intensificar — na República217.
Em grande medida, os autores dos atos violentos eram agentes do próprio
governo. José de Alencar conta que, muitas vezes, a autoridade policial poderia prender
cidadãos pela estrada e os levarem ―a ponta de baioneta à mesa para prestarem um voto
arrancado à força‖218. Tavares Bastos219, similarmente, relata a constante intervenção do
governo por meio da força policial, que ameaçava, intimidava, espancava e, finalmente,
afugentava a oposição. Ao comentar sobre as eleições do Maranhão, João Francisco
Lisboa também identifica, em sua província, a presença constante da força policial em
épocas eleitorais, além de destacamentos, prisões e processos contra membros da
oposição, muitas vezes ―imediatamente sequestrados e aferrolhados nos calabouços
militares e porões dos navios de guerra, postos incomunicáveis, e sob ameaça de
chibata‖220.
A violência também era promovia por particulares, principalmente por meio da
figura conhecida como capanga de eleições: ―o ponto de apoio dos cabos de eleição:
sustentam suas opiniões, atordoam os adversários, intimidam-nos, dão coragem, força e
energia aos partidários‖221. Prática comum era quando juntavam-se em um bando de
vinte ou trinta para cercar o votante na hora de anunciar seu voto perante a mesa
eleitoral, já que o sufrágio à época era exercido oralmente.
No estudo da violência, as eleições modernas constituem lugar privilegiado. A
partir do liberalismo político instaurado — ou inspirado — pelo movimento iluminista,
o voto ganhou sentido bastante peculiar: transformou-se em uma das mais importantes
formas de manifestação de poder no mundo contemporâneo. Não foi então à toa que as
eleições do Império eram cenário de intensas disputas. Diferente da colônia — quando o
217
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 10º Edição. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001. p.38-41.
218
ALENCAR, José de. O Sistema Representativo. Brasília: Senado Federal, 1996. p.183.
219
BASTOS, Tavares. Os Males do Presente e as Esperanças do Futuro. São Paulo: Ed. Nacional, 1976
220
LISBOA, João Francisco; Carvalho, José Murilo de (org.). Jornal de Timon: partidos e eleições no
Maranhão. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.158-218.
221
SOUZA, Francisco Belisário Soares de. O sistema eleitoral no Império; com apêndice contendo a
legislação eleitoral no período 1821-1889. Brasília: Senado Federal, 1979. p.31.
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voto limitava-se às câmaras municipais e tinha como eleitorado apenas o restrito grupo
dos homens bons222 —, no Império as eleições eram fenômeno grandioso, que contavam
com ampla participação popular223 para escolha de ocupantes de inúmeros cargos, como
juízes de paz, vereadores, deputados (provinciais e nacionais) e senadores. Era também
no calor das eleições que muito dos sentimentos de seus participantes e telespectadores
manifestavam-se. Trabalhos como de Todorov224 apontam para a necessidade da
inclusão de fatores subjetivos no estudo sobre a violência, na medida em que ela pode
mostrar-se como resposta a sentimento individual, mesmo que socialmente construído.
Em seu trabalho, por exemplo, o autor procurou demonstrar que a atual onda de
xenofobia na Europa não seria fruto de mero choque de culturas, mas do medo que
assombra os habitantes do velho continente, revelado no encontro com o diferente.
É preciso reconhecer, entretanto, a dificuldade de se lidar com o fenômeno da
violência. Ao estudá-la, pesquisadores normalmente despejam na mesma categoria uma
série de comportamentos variados, sem preocupar-se com delimitação necessária para a
análise acadêmica. Misse225 reconhece a forma frouxa como o termo violência urbana é
muitas vezes empregado, o que acaba por gerar uma pauta de problemas nos trabalhos
mais tradicionais da área. O autor aponta falhas que vão desde a análise crítica das
fontes até a dificuldade de alguns pesquisadores em perceber a diferença entre o
discurso e a realidade; tal confusão acaba por criar a figura chamada pelo autor de
fantasma ou espectro. Nesse sentido, seria preciso separar os dados referentes à
222
O termo homens bons é de difícil precisão. Fagner França reconhece tal dificuldade e, ao adotar as
ideias de Maria Isaura Pereira de Queiroz e Victor Nunes Leal, considera-os os donos de terra ou os que
já ocupassem cargos públicos. Conferir em FRANÇA, Fagner Torres. "O processo eleitoral no Brasil
Colônia (1500-1822)". Revista de Humanidades. UFRN. Caicó (RN), v. 9. n. 24, Set/out. 2008. p.5.
Disponível em www.cerescaico.ufrn.br/mneme/anais (acesso em 12/12).
223
Em minhas pesquisas, encontrei taxa nacional de participação eleitoral de 11,2% para o ano de 1846.
No Espírito Santo, esse valor foi de 8,1%. Províncias como Alagoas, Sergipe e Piauí alcançavam cifras
superiores a 15%. Conferir em SOUZA, Alexandre de Oliveira Bazilio de. Reformas eleitorais no final do
Império: a reinvenção do cidadão brasileiro (1871-1889). In: XXVI Simpósio Nacional de História –
ANPUH, julho 2011. São Paulo. Anais. p.9. Disponível em
http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1312377523_ARQUIVO_AlexandredeOBaziliodeSou
za.pdf. Acesso em 09/13. À época, poucos países ostentavam números tão altos. José Murilo Carvalho
conta que, entre as grandes nações do período, somente os Estados Unidos tinham participação eleitoral
mais alta do que a brasileira, chegando a 18%. Conferir em CARVALHO, José Murilo de. Obra citada.
224
TODOROV, Tzvetan. O medo dos bárbaros: para além do choque das civilizações. Rio de Janeiro:
Vozes, 2010.
225
MISSE, Michel. Crime e violência no Brasil Contemporâneo: estudos de sociologia do crime e da
violência urbana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
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percepção da violência daqueles referentes aos fatos considerados pelo próprio
pesquisador como violentos.
De modo a evitar as armadilhas apontadas por Misse, o contorno do presente
trabalho deve ser cuidadosamente delimitado. Primeiramente, insta salientar que foi
escolhido o plano da percepção de violência, ou seja, sua denúncia. Nesse sentido, não
se está em busca de dados seriais, mas qualitativos: a violência aqui funciona apenas
como o cenário armado no qual se pode identificar o objeto de afetação dos agentes
históricos. Como alhures explicado, a violência presente nas eleições formam um tecido
especial, no qual as emoções dos agentes encontram-se afloradas. São nesses momentos
acalorados que os sentimentos apresentam-se de forma mais clara, quando a
preocupação com a imagem contida cede espaço para o extravasamento. 226
Especificamente, centralizo a análise na figura do agressor: do denunciado como o
causador da violência. Realizo o estudo por meio de um episódio específico, para então
traçar quadro de maior duração. Na seção que se segue, é descrito evento ocorrido em
São Mateus, no norte da província do Espírito Santo em finais do Oitocentos; em
seguida, é feita sua análise.
Eleições para Deputado Geral em 1876227: Carnaval em São Mateus
O ano de 1876 foi bastante expressivo em termos eleitorais no Brasil, devido à
coincidência de eleições para cargos locais e nacionais. De modo a agilizar os trabalhos,
o governo central marcou três pleitos para o mesmo dia: 1º de outubro daquele ano,
quando seriam realizadas, em todo país, eleições para eleitores, vereadores e juízes de
paz. No Espírito Santo, a eleição ocorreu nas 25 paróquias nas quais estava dividida a
província, que, por sua vez, formavam seis colégios eleitorais, onde ocorreriam as
226
Thompson fez trabalho nessa linha, no qual desenvolveu o conceito de normas surdas: regras de
conduta tão profundamente arraigadas que somente se revelam em momentos atípicos, quando há quebra
de deferência. O autor explica que tais normas podem referir-se tanto a condutas públicas sociais quanto
àquelas íntimas e domésticas. Conferir em THOMPSON. E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros
artigos. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2001.
227
A fonte da presente história foram os anais da Câmara dos Deputados. O estudo de todo processo
eleitoral na província referente a esse e outros pleitos encontra-se, em maiores detalhes, em minha obra
SOUZA, Alexandre de Oliveira Bazilio de. Das urnas para as urnas: juízes de paz e eleições no Espírito
Santo (1871-1889). Saarbrücken: Novas Edições Acadêmicas, 2013.
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eleições secundárias no dia 31 de outubro, quando os eleitores eleitos votariam para
deputado nacional228.
A votação, entretanto, não transcorreu tranquilamente em toda província; tanto
que, na eleição secundária, apenas 107 dos 202 eleitores previstos para a província
tiveram seu voto contabilizado. A câmara dos deputados justificou a invalidade dos
outros votos com base na anulação das qualificações das eleições primárias de 13
paróquias. Em cinco delas, a motivação seria a ocorrência de fraudes: São Mateus
estava na lista, juntamente com Viana, Nova Almeida, Cachoeiro e Itapemirim.
Um dos aspectos mais curiosos sobre as eleições do Império era sua duração.
Comumente, podiam durar muitos dias, o que aconteceu nas de São Mateus daquele
ano. De fato, nos dois primeiros dias de pleito, tudo parecia correr sem maiores
problemas na paróquia; na tarde de 3 de outubro de 1876, entretanto, o cenário mudou.
Clarindo Joaquim de Almeida Fundão, 4º juiz de paz, foi uma das testemunhas dos
eventos e contou que um grupo de homens desconhecidos invadiu a igreja matriz, onde
ocorriam os trabalhos eleitorais, e atiraram a urna ao chão. Enquanto cédulas eleitorais
voavam pela igreja, o grupo aproveitou para introduzir outras na urna. Diante da
situação, o
presidente da
mesa, Andrelino Leite de Barcelos, promotor público,
suspendeu os trabalhos. Não satisfeito, um grupo de opositores, formados por alguns
soldados e outros cidadãos, resolveram organizar outra mesa eleitoral: fecharam as
portas da igreja e proibiram Clarindo de entrar.
Em sua edição de 1º de dezembro, o jornal Da Reforma apelidou o episódio de
verdadeiro carnaval, já que máscaras armados com revólver, faca e cacete assaltaram a
igreja. Em tom semelhante, o Da Opinião Liberal, de 10 de dezembro, publicou
representação de 5 mesários, em que reclamaram sobre a ilegalidade da outra mesa e
relataram ameaças sofridas de capangas e mineiros armados, pagos pelo major Antônio
Rodrigues da Cunha e seu irmão para invadir a igreja. Outros 36 cidadãos do município
fizeram abaixo-assinado atestando os fatos e informando que a nova mesa, organizada a
mando do juiz de direito Antônio Lopes Ferreira da Silva, fez a eleição sem que todos
pudessem assistir aos trabalhos e alegar seus direitos de voto. De modo a juntar provas
do ocorrido, o inspetor de quarteirão Fabrício Euterpe Alfavaca enviou à câmara
228
Tratava-se, pois, de eleição em dois graus.
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municipal maço de células das que haviam se espalhado pela igreja. O delegado de
polícia João Afonso Lopes Santos Biboca, por sua vez, enviou a chave da urna
(apanhada pelo soldado Justiniano durante a confusão na igreja) e produziu inquérito
policial, em que seis testemunhas relataram os fatos daquele dia. Entre elas, estava José
Corrêa Machado Bié, negociante. O depoente contou que, durante o tumulto, sentava
em uma cadeira dentro da igreja, quando viu o tenente José Antônio Aguirra,
acompanhado de mineiros armados com faca, entrar com um revólver na mão e ir em
direção à mesa. Relatou também que os baronistas (os aliados de barão de Timboy 229)
foram proibidos de entrar na igreja, cujas portas eram protegidas por guardas mineiros
conservadores; finalmente, à noite, grupos de mineiros teriam saído pelas ruas gritando
―Viva o senhor Cunha! Fora Zabumba! Morra o barão!‖
De imediato, os conservadores rebateram acusações; seu candidato à cadeira na
câmara, José Fernandes da Costa, explicou que os relatos dos liberais constituìam ―triste
invento da polìtica local‖, ocasionado principalmente por conta de algumas nomeações
de autoridades policiais, como a do promotor público Andrelino Leite Barcelos. O
cenário em São Mateus, segundo relato do fazendeiro Francisco Antonio Motta, seria
dominado por dois grupos: um dirigido pelo barão de Timboy e outro pelo Dr. Raulino
Francisco de Oliveira, juiz de direito da comarca; e todo ardil político da região seria
causado pelo atrito entre os dois rivais.
Não por acaso, a versão dos conservadores em muito diferia das publicadas nos
jornais liberais. Francisco Motta contou, por exemplo, que, no dia 3 de outubro, por
volta de meio-dia, Lino Antônio de Chagas, crioulo, votante da parcialidade do barão,
entrou na igreja com uma faca na mão e pulou em cima da urna para roubá-la; e só não
teve êxito pois foi contido por alguns cidadãos. Mesmo assim, seu correligionário — e
membro da mesa eleitoral — João Pereira dos Santos aproveitou o tumulto e empurrou
229
Olindo Gomes dos Santos Paiva — o barão de Timboy — foi figura de destaque tanto na província
quanto em âmbito nacional. Deputado provincial nas legislaturas de 1870-1, 1872-3 e 1874-5, fazendeiro
e negociante em São Mateus, firmou contrato com o Governo provincial em 1870 para estabelecimento
de navegação no rio São Mateus (a empreitada, entretanto, fracassou e o contrato caducou). Grande parte
de suas terras localizava-se em vila da Barra de São Mateus, onde encontrava-se uma de suas mais
importantes propriedades: a fazenda Itaúnas. O título de barão foi concedido em decorrência de
financiamentos de causas públicas, como a linha telegráfica na região do norte da província e ajuda
financeira à Guerra do Paraguai. No alistamento eleitoral de 1881, o barão foi listado no 3º quarteirão de
Itaúnas quando contava 45 anos. Nunca se casou. Faleceu em São Mateus em 19 de agosto de 1883.
Conferir em SOUZA, Alexandre de Oliveira Bazilio de. Obra citada, p.146.
137
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com a mão direita a urna, que caiu no chão. Diante da confusão, foi requisitada presença
do tenente Pedro José Ribeiro, que colocou a urna intacta no lugar, faltando-lhe somente
a chave de uma de suas fechaduras. O tenente ainda acusou o presidente da mesa, o
promotor Andrelino (que fugira durante o conflito juntamente com os outros mesários),
de furtar a chave. No dia seguinte, Andrelino teria tentado suicídio com um revólver,
para o desespero de seus familiares, cujos gritos vinham da casa do promotor.
Finalmente, os conservadores afirmaram que as portas da igreja permaneceram sempre
abertas, livres para circulação de membros de ambos os partidos.
Mineiro: o estrangeiro
O episódio ocorrido em São Mateus não consiste em exceção nas arenas políticas do
Império. A partir do Segundo Reinado principalmente, quando os partidos liberal e
conservador já tinham sido plenamente estabelecidos, eram muito comuns disputas
partidárias que iam desde a cúpula do governo até a boca das urnas de pequenas
paróquias espalhadas por todo Brasil. Nesse sentido, os conflitos locais era
normalmente originados na própria corte, cuja prolongamento dava-se por conta das
associações políticas e da existência de cargos locais nomeados diretamente pelo
governo central. Tanto que Francisco Belisário denunciava a participação constante da
administração superior nas eleições locais, principalmente por meio de presidentes de
província, juízes de direito e detentores de alguma patente de guarda nacional, cujas
nomeações dava-se de forma direta pelo governo. Assim, havia mudanças de ―grupos
inteiros na câmara da
direita para a esquerda, sem que o país possa dar fé das
modificações políticas que por acaso se realizaram no seio do gabinete‖230.
Apesar de evidente importância para a compreensão do fenômeno político do
Oitocentos, o enfoque deste trabalho não está nas lutas partidárias. Conforme
supramencionado, o conflituoso ambiente eleitoral aparece aqui como pano de fundo, de
onde se pode apreender com maior evidência a figura do agressor no imaginário dos
personagens envolvidos. Nesse aspecto, há certa característica que parece bastante
peculiar na história relatada: a menção aos mineiros. Na citada reportagem do jornal Da
Opinião Liberal, mineiros armados são acusados de ameaçar os legítimos membros da
mesa eleitoral organizada na igreja matriz. Do mesmo modo, José Bié, testemunha no
230
SOUZA, Francisco Belisário Soares de. Obra citada, p.21.
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inquérito realizado, relatou que o tenente José Aguirra invadira o local acompanhado de
mineiros armados com faca. De fato, a testemunha usou reiteradamente a expressão,
quando falou por exemplo de guardas mineiros conservadores e grupos de mineiros que
gritavam nas ruas pela morte do barão de Timboy.
O uso da expressão mineiro merece análise cuidadosa. Muito mais do que mera
menção a possível origem de participantes do conflito, o adjetivo talvez revele
importantes informações sobre seus interlocutores: nomeadamente sobre seus medos.
Nesse diapasão, Koltai231 chama a atenção para o significado psicanalítico do Outro, ou
seja, do modo como a discriminação de determinados grupos é construção histórica
reveladora da subjetividade dos agentes discriminadores. A autora acredita que
fenômenos como o racismo seriam produzidos a partir do encontro com o
(aparentemente) diferente, quando o sujeito passa a identificar no Outro aquilo que lhe é
interno, mesmo que de forma inconsciente. Nesse cenário, negação e ressentimento da
identificação dessa igualdade tornam-se críticos, e a violência transforma-se em válvula
de escape. Crescem respostas de segregação, a exemplo do holocausto em tempos
recentes. Não por acaso, Lacan advertiu que o massacre nazista não foi acidente único
na história: nesse sentido, os processos de segregação estariam intensificando-se e não
diminuindo232. Fatores como o aumento das taxas de imigração e o convívio próximo
com o Outro não são traduzidos como oportunidades para aproximação e tolerância,
mas campo para o exercício das contradições do desejo. O ressentimento do sujeito
nasceria justamente de sua incapacidade de suportar o gozo do Outro, passando a
discriminá-lo.
Ressentimentos entre capixabas e mineiros talvez possam ser retraçados à
conhecida guerra dos emboabas, no início do Dezoito. É conflito que integra as
chamadas revoltas nativistas; ou seja, movimentos coloniais que tinham, em seu
epicentro, o sentimento de amor à pátria e de opressão da metrópole, a exemplo da
Revolta de Beckman, Insurreição Pernambucana e Guerra dos Mascates. Diferente
destes, entretanto, o conflito em torno das minas teve a peculiaridade de despertar,
dentro da historiografia sobre o tema, inúmeros posicionamento ideológicos,
231
KOLTAI, Caterina. Política e psicanálise: o estrangeiro. São Paulo: Escuta, 2000.
232
Ibidem, p.117.
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principalmente em torno da definição do grupo que deveria genuinamente ser
considerado o defensor da causa nacional: emboabas ou paulistas. É certo que tais
posicionamentos estão ligados muito mais com a própria crença política do historiador,
associação que fica clara desde os primeiros trabalhos sobre o tema, datados ainda do
século 18, a exemplo de Rocha Pita, Manuel da Fonseca, Pedro Taques Paes Leme e
Cláudio Manuel da Costa233. Como consequência direta, o conflito fez surgir a capitania
de Minas Gerais e delineou a política portuguesa em relação a exploração aurífera. A
proibição de ligação entre as larvas e o Espírito Santo talvez tenha a sido seu aspecto
mais marcante para a capitania litorânea, que viu então a perda de terras então nela
compreendidas234.
Desse modo, é somente a partir do Setecentos, com a descobertas das lavras, que
a figura do mineiro surge na história, embora, desde logo, já passasse a figurar no
imaginário receoso de seus vizinhos. A região de São Mateus viria a tornar-se elemento
central da cisão, uma vez que fora incorporada por Minas Gerais em 1800, por ocasião
do acordo de fronteiras entre as capitanias, que tomou como limite o rio Doce. A nova
configuração entretanto não durou muito tempo, tendo São Mateus retornado ao
território capixaba em 1823235.
Foi também nas primeiras décadas do Dezenove que a comunicação entre as
capitanias começou a ser estabelecida, fosse por meio do Rio Doce ou da então criada
estrada nova do Rubim, que ligava Vitória a Vila Rica. Já no Império, as condições da
estrada despertavam inúmeras preocupações, tendo sido contratada por isso sua reforma
na década de 1830. Nos anos que se seguiram, novas vias de comunicação foram criadas
e, até meados da segunda metade do dezenove, foram estabelecidas diversas rotas
terrestres e fluviais, partindo de norte ao sul da província capixaba em direção a Minas
Gerais236. A comunicação pelo norte, a partir de São Mateus, recebeu destaque entre as
233
ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração de minas: ideias, práticas e imaginário político
no século XVIII. Belo Horizonte: editora UFMG, 2008. p.114-5.
234
OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. Vitória: Arquivo público do
Estado do Espírito Santo: Secretaria de estado da cultura, 2008. p.187.
235
CÔGO, Ana Lúcia. História agrária do Espírito Santo no século XIX: a região de São Mateus. Tese
(Doutorado em História Econômica) – Programa de Pós-Graduação em História Econômica, USP, São
Paulo, 2007. p.22.
236
OLIVEIRA, José Teixeira de. Obra citada, p.274-5; p.340; p.385.
140
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propostas, sob o argumento inclusive de que, mesmo antes da criação de vila, já havia
ligação das regiões237.
Com o estabelecimento das novas vias, a queda da produção aurífera e o surto
agrícola a partir do Segundo Reinado, o fluxo de mineiros que imigraram para o
Espírito Santo, nomeadamente para a região norte, cresceu vertiginosamente,
impulsionado em grande medida por favores do governo imperial. A política tinha como
objetivo povoar os grandes sertões espírito-santenses, principalmente em torno do rio
Doce238.
O cenário para o choque estava armado. O episódio de 1876 teve lugar
justamente no período em que o fluxo imigratório disparava. O fator eleitoral
certamente contribuiu para o afloramento dos sentimentos ressentidos, formador de
possível círculo vicioso: nesse sentido, a disputa política seria não só causa, mas
também válvula de escape, como explica Koltai. O estrangeiro violento e fraudador das
eleições seria também os próprios conterrâneos e tal constatação um fardo que não se
queria carregar. Tanto que, em suas versões, cada facção indicava estar no Outro o
ilícito eleitoral. Meio de garantir que sua duplicata 239 seria a aceita? Em parte,
definitivamente. Mas não apenas de ardil político viviam aqueles homens no norte da
província, então de frente a mineiros que os relembravam de sua própria história de
rejeição e isolamento. Assim, em parte também era preciso extravasar os rancores... e
que melhor lugar para fazê-lo do que em meio a carnaval mateense...!
237
CÔGO, Ana Lúcia . Obra citada, p.105.
238
OLIVEIRA, José Teixeira de. Obra citada, p.373.
239
Duplicata era o termo usado pelos contemporâneos para se referir à ata eleitoral, usado principalmente
quando mais de uma mesa eleitoral fosse organizada, como ocorrido em São Mateus na história relatada.
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HISTÓRIA E REVOLUÇÃO EM NELSON WERNECK SODRÉ
Alexandre Manuel Esteves Rodrigues240
Resumo:
Este trabalho procura realizar um estudo sobre a relação entre história e revolução na
obra de Nelson Werneck Sodré, privilegiando as posições e análises desenvolvidas pelo
autor no livro Introdução à revolução brasileira, publicado em 1958. O referido livro
inclui conferências pronunciadas entre 1954 e 1956 e sofre modificações em edições
seguintes. Desde a sua primeira edição, a obra marca a interpretação do Brasil
desenvolvida pelo seu autor e a consolidação da categoria revolução brasileira no
debates políticos e intelectuais.
Palavras-chave: história, revolução, Nelson Werneck Sodré.
Abstract:
This paper aims to conduct a study on the relationship between history and revolution in
the work of Nelson Werneck Sodré, favoring the positions and analyzes developed by
the author in the book Introduction to brazilian revolution, published in 1958. That
book includes lectures given between 1954 and 1956 and undergoes changes in
subsequent editions. Since its first edition, this book marks the interpretation of Brazil
developed by the author and the consolidation of the brazilian revolution category in
political debates and intellectual.
Keywords: history, revolution, Nelson Werneck Sodré.
Na extensa obra do importante historiador marxista Nelson Werneck Sodré, o livro
Introdução à revolução brasileira, publicado em 1958, ocupa um lugar muito
particular. Ele está inserido, a um só tempo, em uma significativa inflexão teórica no
240
Alexandre Manuel Esteves Rodrigues – Professor do ISERJ/FAETEC. Doutor em História (UERJ).
Pós doutorando no PPGH / UERJ sob a orientação da Profª Drª Maria Emília Prado.
Email: [email protected] Tel (21) 7870-3479. Rua do Outeiro, 75. Andaraí. Cep:
20.510-330
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pensamento historiográfico e político de seu autor, e, também, no debate sobre
estratégia e revolução de uma importante parcela da esquerda brasileira.
No prefácio à 4ª edição da referida obra, sua composição é apresentada como
uma reunião de conferências, proferidas entre 1954 e 1956, abordando a evolução
social, econômica, cultural, racial e militar no Brasil. Será, entretanto, em um de seus
livros de memória, intitulado A luta pela cultura, que Sodré vai tratar com mais
precisão a composição da Introdução à revolução brasileira:
O livro comportava o estudo da Evolução da Sociedade, que era o curso
elaborado para o IBESP, em 1954, ―As classes sociais no Brasil‖; o estudo da
Evolução da Economia, que era outro curso elaborado para o IBESP naquele
ano; o estudo da Evolução da Cultura, que era o curso elaborado para o ISEB
em seu primeiro ano de funcionamento, em 1956, ―Elaboração da cultura
nacional‖ (que aparecera no volume Introdução aos Problemas do Brasil
como ―Estudo histórico-sociológico da cultura brasileira‖); o estudo da
Evolução Racial, que era a conferência realizada, em 1955, e já divulgada em
artigos, no Correio Paulistano; e a Evolução Militar, trabalho inédito,
preparado especialmente.241
O livro vai sofrer mudanças de composição nas duas edições seguintes. Na
segunda edição, do ano de 1963, foi retirado o estudo relativo à evolução militar
brasileira, que fora recebido com bastante polêmica. Esse estudo vai ser ampliado e
aprofundado para virar um outro livro: História Militar do Brasil, publicado em 1965.
Por outro lado, dois novos estudos são acrescentados. Um estudo sobre a
evolução polìtica, sob o tìtulo de ―Raìzes Históricas do Nacionalismo Brasileiro‖, tendo
sido uma conferência pronunciada no ISEB, em 1959, e um outro sobre a evolução
popular, ―Quem é o Povo no Brasil?‖, inicialmente publicado na coleção Cadernos do
Povo Brasileiro da Civilização Brasileira. Por fim, a terceira edição, aparecendo em
1967, traz um capìtulo intitulado ―Perspectivas‖, escrito em 1966, já procurando
atualizar a sua reflexão ao analisar o novo cenário gerado a partir do golpe de 1964.242
Até a primeira edição do livro em questão, Nelson Werneck Sodré já tinha
realizado uma intensa atividade editorial. Durante os anos compreendidos entre 1938 e
1945, ele contava com os seguintes livros publicados: História da Literatura Brasileira
(1938) e prossegue com Panorama do Segundo Império (1939), Oeste: ensaio sobre a
241
SODRÉ, Nelson Werneck. A luta pela cultura. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 1990, p.221.
242
Cf. SODRÉ, Nelson Werneck. Introdução à revolução brasileira. São Paulo: Ciências Humanas,
1978, p.7-8.
143
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grande propriedade pastoril (1941), Orientações do pensamento brasileiro (1942),
Síntese do desenvolvimento literário do Brasil (1943), Formação da sociedade
brasileira (1944) e O que se deve ler para conhecer o Brasil (1945). Com este último
livro, a sequência é interrompida por mais de dez anos.
Esse interregno é considerado pelo autor como ―o fim de uma fase, cuja pausa
seria aproveitada para estudos, já sob forma sistemática‖243. Esses estudos
proporcionaram
o
aprofundamento
da
teoria
marxista
que
ele
empreende
particularmente no decorrer dos anos 1950, superando as influências de materialistas
vulgares como Haeckel e Buechner, e da própria reformulação em curso da suas
posições acerca das formações econômico-sociais brasileiras, que realiza com grande
impacto a partir dos anos de 1960. Sendo assim, ele só retoma a atividade pela qual
vinha se notabilizando com textos publicados pelo ISEB (como As classes sociais no
Brasil e O Tratado de Methuen) e, mais claramente, com o livro inédito Introdução à
revolução brasileira, de 1958.
No sentido do aprofundamento de seus estudos sobre a teoria marxista,
encontramos nesse último livro uma utilização pioneira do marxista húngaro Georg
Lukács, o qual classifica como um ―mestre‖. Apoiando-se, por exemplo, no ensaio
―Marx e o Problema da Decadência Ideológica‖, de Lukács (1938), Sodré vai destacar a
―tendência irrecorrìvel para a apologética que a sociologia assume‖, expressando o fim
do perìodo ―heróico‖ da burguesia nas revoluções de 1848. Não se tratando mais de
conquistar o poder político, mas da manutenção do domínio da própria burguesia, o
proletariado deixa de ser aliado para se tornar o principal adversário de classe. Assim, as
análises científicas existentes nos primórdios da economia política burguesa vão
cedendo terreno cada vez mais para um discurso apologético da ordem social
existente244.
Ao abordar a chamada evolução da cultura brasileira, Nelson Werneck Sodré vai
criticar a ―falsa especialização‖ e a abordagem formalista dos fenômenos literários. Em
sentido diferenciado de grande parte da crítica literária de sua época, vai procurar
243
SODRÉ, Nelson Werneck. A luta pela cultura. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 1990, p.9.
244
SODRÉ, Nelson Werneck. Introdução à revolução brasileira. São Paulo: Ciências Humanas, 1978,
p.116-7. Cf. LUKÁCS, Georg. Marxismo e teoria da literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1968, p.49-111.
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integrar as análises dos fenômenos literários e culturais ao processo histórico em geral.
Articula esse processo histórico desde a os primórdios da colonização com uma intensa
dinâmica de transplantação cultural e de emergência de uma ideologia do colonialismo
que procura justificar a exploração econômica e sua dominação política. Não obstante,
acredita na possibilidade histórica de superação desses entraves:
E se hoje aqui podemos mostrar o travejamento interno dessa construção
pretensamente maciça e pretensamente eterna que foi a ideologia do
colonialismo, de que a transplantação cultural não passa do aspecto particular
e sintomático, é que já são diferentes as condições econômicas ,políticas e
sociais do país, de tal sorte que as forças interessadas em manter preconceitos
e absurdidades se enfraquecem, na medida em que as demais começam a
ponderar no cenário brasileiro.245
Nesse período de mudança e aprofundamento na perspectiva teórica adotada por
Sodré, deve-se considerar o seu ingresso no Instituto Superior de Estudos Brasileiros
(ISEB) e o debate proporcionado pelos adeptos do nacional-desenvolvimentismo que
propugnavam reforçar os segmentos mais dinâmicos e modernos da economia,
impulsionando a industrialização e as reformas sociais necessárias. Caio Navarro de
Toledo vai situá-lo, diferenciando-o do ―nacionalismo burguês postulado por Jaguaribe
e, em certa medida, por Guerreiro Ramos‖ e identificando-o com um ―nacionalismo de
orientação popular e democrática‖ como o de Vieira Pinto246.
No que diz respeito ao debate desenvolvido por uma importante parcela da
esquerda brasileira, convém destacar o papel desempenhado pela chamada nova política
do PCB. Para uma adequada compreensão dessa mudança política marcada pelos
desdobramentos dos debates provocados pelo XX Congresso do PCUS, torna-se
necessário salientar as principais proposições da Declaração de Março de 1958 e do V
Congresso do PCB, realizado em setembro de 1960.
Na
Declaração
de
Março,
encontra-se
uma
avaliação
positiva
do
desenvolvimento econômico do Brasil. O desenvolvimento capitalista nacional é
considerado um elemento progressista na nossa dinâmica econômica. Apesar dos
reconhecidos entraves que determinam uma situação de subdesenvolvimento, o
245
SODRÉ. Op. Cit., p.140.
246
TOLEDO, Caio Navarro. ―Nacionalismo e ISEB em Nelson Werneck Sodré‖. In: SILVA, Marcos
(Org.). Nelson Werneck Sodré na historiografia brasileira. Bauru/São Paulo: EDUSC/FAPESP, 2001, p.
47.
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documento defende que o referido desenvolvimento capitalista é conflitante com os
setores atrasados da economia, estando o exemplo mais simbólico na chamada relação
semifeudal no campo, e com o imperialismo norte-americano. Conforme o texto oficial
do partido, ―este desenvolvimento se processa através de contradições, de avanços e
recuos, mas é a tendência que abre caminho e se fortalece‖247.
Por sua vez, o processo de democratização também não é linear, sofrendo, em
determinados momentos, retrocessos ou interrupções, mas, sobretudo, é claramente
posto como uma tendência permanente. A situação internacional é marcada, nos termos
do documento, pelo ascenso do socialismo e dos movimentos pela paz e de libertação
nacional em todo o mundo, permitindo o crescimento das forças antiimperialistas e
democráticas.
O documento também destaca duas contradições fundamentais na sociedade
brasileira: a primeira contradição é entre nação e imperialismo norte-americano, e a
segunda entre as forças produtivas em desenvolvimento e as relações de produção
semifeudais no campo.
A sociedade brasileira encerra também a contradição entre o proletariado e a
burguesia, que se expressa nas várias formas da luta de classes entre
operários e capitalistas. Mas esta contradição não exige uma solução radical
na etapa atual. Nas condições presentes de nosso país, o desenvolvimento
capitalista corresponde aos interesses do proletariado e de todo o povo 248.
Considera que a perspectiva de desenvolvimento capitalista independente e
progressista não pode ser resolvida por nenhuma força social isolada. Sendo assim,
propõe uma frente única na luta por um governo nacionalista e democrático. Em virtude
do próprio processo de democratização, aposta no caminho pacífico da revolução
brasileira, de caráter antiimperialista, antifeudal, nacional e democrática.
Por fim, o documento ainda faz uma verdadeira convocação ao fortalecimento
do partido, à aplicação da nova política, ao combate às concepções dogmáticas e
sectárias anteriormente assumidas pelo próprio PCB, e, também, ao engajamento dos
comunistas nas atividades legais entre as massas. Dessa maneira, está bastante
consolidada a interpretação de que
247
―Declaração sobre a polìtica do PCB (março de 1958)‖. In: CARONE, Edgar. O PCB (1922-1943).
Vol. 2. São Paulo: Difel, 1982, p. 178.
248
Idem, ibidem, p.184.
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a Declaração de Março de 1958 (...) representa o início de uma nova fase na
vida do partido, redefinido a compreensão que os comunistas tinham do
movimento democrático e nacionalista, da política de frente única e do papel
da democracia na luta pelo socialismo. E é inegável que, a partir dela, o PCB
passou a se inserir de forma mais ativa na sociedade brasileira. 249
O Comitê Central do PCB lançou as Teses para Discussão em abril de 1960.
Durante os meses que antecederam a realização do V Congresso, foram travados
intensos debates que chegaram a repercutir nas páginas do semanário Novos Rumos. As
divergências ficam expostas ao público, com parte importante do antigo grupo dirigente
(João Amazonas, Maurício Grabois, Pedro Pomar e outros) apresentando resistências à
chamada renovação política do partido.
O V Congresso do PCB foi realizado em setembro de 1960. Em grande medida,
pode-se afirmar que foram confirmadas as linhas gerais da Declaração de Março de
1958. Portanto, seguindo as análises e proposições principais da já citada Declaração de
Março, as suas conclusões acerca da ação política podem ser sintetizadas da seguinte
maneira:
as tarefas fundamentais que se colocam hoje diante do povo brasileiro são a
conquista da emancipação do país do domínio imperialista e a eliminação da
estrutura agrária atrasada, assim como o estabelecimento de amplas
liberdades democráticas e a melhoria das condições de vida das massas
populares. Os comunistas se empenham na realização dessas transformações,
ao lado de todas as forças patrióticas e progressistas, certos de que elas
constituem uma etapa prévia e necessária no caminho do socialismo. 250
Tem sido muito recorrente enfatizar o tratamento dado à preocupação com o
processo de democratização da vida política nacional nesses documentos do PCB. Na
Declaração de Março, por exemplo, afirma-se com vigor que ―as forças progressistas
tem interesse em defender, estender e consolidar o regime de legalidade constitucional e
democrático‖251. Mas não se pode pôr de lado o fato de que esses mesmos documentos
partidários serviram para sustentar uma versão mecanicista da questão nacional e uma
análise dualista da sociedade brasileira, opondo um Brasil moderno ao atrasado. Isso se
verifica inclusive porque a abordagem da questão nacional teve um papel relevante no
249
NOGUEIRA, Marco Aurélio. ―Apresentação‖. In: PCB: vinte anos de política 1958-1979
(documentos). São Paulo: Ciências Humanas, 1980, p. IX.
250
Idem, ibidem, p. 39.
251
Idem, ibidem, p.9.
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conjunto da elaboração e encaminhamentos das posições dos comunistas em momentos
de grande destaque da luta política.
Questão nacional que está na raiz das virtudes do PCB no pré-64, e consiste
igualmente no seu principal vício. Virtude porque o aloja no centro da crise
da formação econômico-social, principal influência à esquerda do espectro
político, articulado com o governo, setores das Forças Armadas e frações de
diversos partidos por meio do movimento nacionalista, credenciando-o até,
via canais abertos pela estrutura corporativa sindical, à penetração no aparato
governamental. E, porque, ao se constituir no interior da frente única
nacionalista como a sua força mais radical e consequente, adquire uma
densidade política que transcende em muito o ainda reduzido número dos
seus militantes e sua escassa representação eleitoral. Vício na medida em que
sua política é dependente de um outro – o nacionalismo burguês – fundada
numa concepção objetivista e mecânica da inevitabilidade de um choque
entre as forças produtivas nacionais e os entraves estruturais ao seu
desenvolvimento, que o priva de uma ação independente junto às suas bases
de classe. 252
Acerca da relação entre as posições adotadas por Nelson Werneck Sodré e as do
PCB, convém enfatizar que elas não podem ser ligadas de maneira mecânica e sem as
devidas mediações. Nada está mais longe da realidade do que imaginar o eminente
historiador marxista como uma espécie de porta voz oficial ou um intelectual com
formulações autorizadas pelo PCB.
Ao contrário, trata-se de verificar os termos nos quais as afinidades entre as
posições de Sodré e do partido podem ocorrer, apesar de dinâmicas políticas e
intelectuais diferenciadas. Assim, como afirma Paulo Ribeiro da Cunha, ―seguramente
ocorre uma aproximação do autor (e suas teses) com as novas teses do PCB advindas da
Declaração de Março de 1958 (ou eventualmente aconteceu o contrário)‖, e, a partir
dessa aproximação, vai se consolidar ―uma singular mediação da polìtica militante em
sua reflexão teórica há muito gestada como um tenente‖253.
Uma proposição que não se encontrava na 1ª edição de Introdução à revolução
brasileira diz respeito ao problema dos ―resquìcios feudais‖ em seus estudos sobre os
modos de produção no Brasil. Essa problemática se tornou bastante conhecida em
função das inúmeras controvérsias e resultou de uma mudança de posição de seu autor.
A partir de uma avaliação positiva, Alberto Passos Guimarães assinala que Sodré, se
252
VIANNA, Luiz Werneck. ―Questão nacional e democracia: o ocidente incompleto do PCB‖. In: Novos
Rumos. São Paulo, v.3, n.º8-9, 1988, pp.171-172.
253
CUNHA, Paulo Ribeiro da. Um olhar à esquerda: a utopia tenentista na construção do pensamento
marxista de Nelson Werneck Sodré, Rio de Janeiro: Revan, 2011, p.284.
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―em trabalhos anteriores admitia a tese do ―capitalismo colonial‖ para caracterizar o
regime econômico da América Portuguesa (...), reformulou seu ponto de vista (...) em
seu magnífico livro Formação Histórica do Brasil‖254.
Em seu trabalho dedicado ao livro Introdução à revolução brasileira, José
Antonio Segatto afirma que ―a tese da feudalidade (...) aparece nessa obra (edição de
1958) de forma muito tênue‖. No entanto, o próprio Nelson Werneck Sodré, em um de
seus livros de memórias, explica que essa 1ª edição mereceu correções e uma delas foi
exatamente ―a retificação do conceito de capitalismo colonial‖. Desde então, prosseguiu
defendendo a existência de ―relações feudais‖, particularmente, nos dois primeiros
séculos nas áreas vicentina, pastoril sertaneja, amazônica, pastoril sulina ou mineradora
com o declínio da economia aurífera255.
Ao retomar esse debate em um de seus últimos livros, Capitalismo e Revolução
Burguesa no Brasil, de 1990, ele declara que não esperava tantas controvérsias e não
tinha encontrado motivos para alterar as suas teses. Refuta as críticas de que estaria
importando um paradigma marxista ―ortodoxo‖ e esquemático de sucessão dos modos
de produção. Para isso, lembra a sua tese da ―regressão feudal‖, na qual ―a passagem de
relações de produção escravistas a feudais, normalmente um avanço, coincide com o
declìnio econômico e todas as suas consequências‖. E isso ―discrepava frontalmente do
modelo paradigmático"256.
Sodré acredita, ainda, que toda essa controvérsia acerca do ―feudalismo
brasileiro‖ não se restringiu às motivações cientìficas. Para ele, tal controvérsia trazia no
seu bojo uma ―singular mistura entre ciência e ideologia‖.
Para ser mais claro: na controvérsia a propósito da existência ou não do
feudalismo brasileiro houve motivação mista, a motivação científica e a
motivação política. É interessante lembrar que os documentos políticos do
partido do proletariado brasileiro sempre se referiam, até algum tempo atrás,
a relações feudais ou semifeudais cuja superação se fazia necessária. Porque
divergiam da formulação, alguns elementos negavam a existência daquelas
254
GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968, p.27.
255
SEGATTO, José Antonio. ―Introdução à revolução brasileira‖. In: SILVA, Marcos (Org.). Dicionário
Crítico Nelson Werneck Sodré. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2008, p.220. SODRÉ, Nelson Werneck. A
luta pela cultura. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 1990, p.222.
256
SODRÉ, Nelson Werneck. Capitalismo e Revolução Burguesa no Brasil. Belo Horizonte: Oficina de
Livros, 1990, p.9,17 e 18.
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relações feudais ou semifeudais daqui. Era tolice, frisavam. Tratava-se, na
verdade, afirmavam categoricamente, de capitalismo, em forma ostensiva,
clara, insofismável. 257
De fato, uma adequada caracterização da formação econômica e social tem
grande relevância para a reflexão sobre estratégia e revolução. No que diz respeito à
Introdução à revolução brasileira, dois aspectos já constavam na ―Advertência‖ de sua
1ª edição como sendo fundamentais para a ―Revolução Brasileira‖: a ―manutenção e
ampliação do regime democrático‖ e a ―solução nacionalista dos problemas de
exploração econômica de nossas riquezas‖. Essas proposições se encontram
fundamentadas na interpretação de Brasil desenvolvida por seu autor258.
Ao abordar o desenvolvimento histórico da economia brasileira, Sodré destaca
as quatro fases consideradas bem definidas: ―Economia Colonial (1550-1780)‖,
―Integração na Economia Mundial (1780-1850)‖, ―Elaboração da Economia Nacional
(1850-1920)‖ e ―Estruturação da Economia Nacional (1920- ...)‖. Em relação a essa
última fase, os traços mais gerais destacados são os seguintes: ―ampliação e renovação
das técnicas‖, ―transformação nas fontes de energia‖, ―alterações no comércio exterior‖,
―desenvolvimento da produção industrial‖, ―preponderância do mercado interno‖,
―ampliação do mercado de trabalho‖, ―intercorrência de conflitos externos‖,
―desenvolvimento do setor estatal da economia‖, ―estruturação de uma economia
nacional‖ e ―luta contra o imperialismo‖.259
Os portadores sociais da ―Revolução Brasileira‖ devem contribuir para o
fortalecimento dos elementos modernos e nacionais da economia e, consequentemente,
com a superação dos seus entraves fundamentais. Sendo assim, a parte relativa à
evolução da sociedade, composta com o texto As classes sociais no Brasil, conclui
apontando a atualidade do problema segundo a perspectiva do seu autor:
O Brasil denuncia, na inquietação do presente, a antinomia de sua estrutura
colonial, profundamente associada aos interesses do imperialismo, enquanto
a sociedade, em seu desenvolvimento dinâmico, impulsiona a burguesia
nacional e o proletariado como forças capazes de proporcionar uma política
de transformação daquela estrutura nacional cujas linhas permitam a livre
257
Idem, ibidem, p.19.
258
SODRÉ, Nelson Werneck. Introdução à revolução brasileira. São Paulo: Ciências Humanas, 1978,
p.9.
259
Idem, ibidem, p. 64 e 112.
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expressão dos interesses e força reais das classes em que se divide a
sociedade brasileira. Surgem, no campo, evidentes sinais de mudanças e a
massa de trabalhadores rurais define-se como importante componente no
processo em desenvolvimento. O que significa, em suma, que existem agora,
no nosso país, os fundamentos econômicos e uma repartição em diferentes
classes suficientes para permitir aquele processo de renovação a que já se
convencionou de chamar Revolução Brasileira. 260
As contradições destacadas na Declaração de Março, de 1958, entre nação e
imperialismo e, também, entre as forças produtivas em desenvolvimento e as relações
de produção semifeudais no campo encontram sintonia com as preocupações
apresentadas por Nelson Werneck Sodré. Para ele, a caracterização da ―Revolução
Brasileira‖ como democrática e nacional significa concretamente o enfrentamento com
o imperialismo (―para a libertação econômica e polìtica‖) e com o latifúndio (―para
liberar as forças produtivas e possibilitar a ampliação democrática‖). Assim, trata-se,
pois, ―não de introduzir alterações socialistas, mas de ampliar relações capitalistas onde
elas são desconhecidas ou repelidas‖261.
A composição social da apregoada ampla frente nacionalista e democrática é
bastante clara quando Sodré vai definir quem é o ―povo‖ no Brasil. Ele acredita que em
cada período histórico corresponde uma composição específica do povo. Mas, mesmo
considerando essas especificidades históricas, ele não se furta a elaborar uma definição
geral. Nessa definição geral, o povo é ―o conjunto das classes, camadas e grupos sociais
empenhados na solução objetiva das tarefas do desenvolvimento progressista e
revolucionária na área em que vive‖262.
Em relação ao povo brasileiro daquele momento, ele compreende a alta e média
burguesia comprometida com o desenvolvimento nacional, a pequena burguesia
envolvida na defesa dos valores nacionais e democráticos, o campesinato, o
semiproletariado e, evidentemente, o proletariado. Segundo Sodré, ―é este o povo que
vai realizar a Revolução Brasileira‖263.
260
Idem, ibidem, p. 58.
261
Idem, ibidem, p.246-7.
262
Idem, ibidem, p.191.
263
Idem, ibidem, p.226.
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O nacionalismo que Luiz Werneck Vianna aponta como raiz das virtudes e
principal vício do PCB pré-1964 desempenha um papel importante no sentido de
conjugar os interesses de classe e permitir uma maior coesão desses setores que
compõem o chamado povo brasileiro. Para isso, Nelson Werneck Sodré vai afirmar que
É o imperativo de superar a contradição entre a burguesia nacional e a classe
trabalhadora que adota o Nacionalismo como expressão oportuna de uma
política. É a compreensão de que só passando a segundo plano, sem negá-la
ou obscurecê-la, a contradição entre a classe que fornece o trabalho, e que
ganha em consciência cada dia que passa, e a classe que necessita realizar-se
pela capitalização com os recursos nacionais e seu adequado aproveitamento,
poderemos subsistir como nação que apresenta o Nacionalismo como solução
natural e lhe dá essa força, essa penetração e esse poder catalisador que a
simples observação registra.
Dessa maneira, configura-se na discussão sobre a ―Revolução Brasileira‖ o
nacionalismo de orientação popular e democrática que Caio Navarro de Toledo
identifica tanto em Sodré quanto em Vieira Pinto. Pois, conforme o aforismo que Sodré
gostava muito de citar, ―só é nacional o que é popular‖264.
264
Idem, ibidem, p.140, 181 e 193.
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A INDUMENTÁRIA DA BELLE ÉPOQUE CARIOCA NARRADA PELO
CINEMATOGRAPHO DE JOÃO DO RIO
Aline da Silva Novaes265
Resumo:
Este trabalho volta-se para o estudo de textos da coluna Cinematographo, de João do
Rio (Paulo Barreto), publicada de 11 de agosto de 1907 a 19 de dezembro de 1910 na
Gazeta de Notícias. A partir da leitura do material selecionado, é possível perceber
como a indumentária do Rio de Janeiro no início do século XX já desempenhava um
papel social e vestia, para além de pessoas, identidades em uma época de
transformações e ressignificação de uma cidade que se desejava moderna.
Palavras-chave: Rio de Janeiro; belle époque; João do Rio; moda.
Abstract:
This paper draws on the study of Cinematographo column texts, by João do Rio (Paulo
Barreto), published from August 11th, 1907 through December 19th, 1910 on Gazeta
de Notícias. From the selected material reading, is perceived how the sartorial Rio de
Janeiro in the early twentieth century have played a social role and wore, besides
people, identities in an era of transformation and redefinition of a city that aims to be
modern.
Keywords: Rio de Janeiro; belle époque; João do Rio; fashion.
O passado volta como quadro de costumes em que se valorizam os detalhes,
as originalidades, a exceção à regra, as curiosidades que já não se encontram
no presente.
266
Beatriz Sarlo
No livro intitulado A cidade das letras, Rama afirma que as urbes latino-americanas,
desde a remodelação de Tenochtitlan, que ocorreu no século XVI, foram pensadas pela
inteligência e a partir da ordem. Afastando-se da cidade orgânica medieval, o que se tem
no espaço urbano é um novo ordenamento e novas formas de vivenciá-lo
e experienciá-lo.
Tiveram que se adaptar dura e gradualmente a um projeto que, como tal, não
escondia sua consciência racionalizadora, não lhe sendo suficiente organizar
os homens dentro de uma repetida paisagem urbana, pois também requeria
que fossem moldados com destino a um futuro, do mesmo modo sonhado de
265
Aline da Silva NOVAES, Doutora em Literatura, Cultura e Contemporaneidade. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Departamento de Letras. E-mail:
[email protected]. Telefone: (21) 97451981.
266
SARLO, Beatriz. Tempo passado. In: Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Belo
Horizonte: Ed. UFMG; São Paulo: Companhia das Letras/ UFMG, 2007.
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forma planificada, em obediência às exigências colonizadoras,
administrativas, militares, comerciais, religiosas, que se iriam impondo com
267
crescente rigidez (RAMA, 1984: 23) .
As palavras do pensador uruguaio servem de inspiração para a compreensão do
início do século XX, uma época marcada por grandes mudanças urbanas. As cidades
passavam a contar com um novo modelo que considerava também avanços técnicocientíficos e, por consequência, novos hábitos e formas de sociabilidade foram criados e
até mesmo impostos. A população é apresentada a novidades como o bonde elétrico, os
cafés, o automóvel, o saneamento e, além de outras coisas, o cinema. No Brasil, essas
transformações foram mais evidentes na cidade do Rio de Janeiro: a metrópole-modelo.
O Rio de Janeiro é apenas uma das tantas cidades do mundo que passou pelo
processo de modernização. Angel Rama, ao discutir a formação e a existência das urbes
na América Latina, aponta as semelhanças que há entre elas. O autor chega a ser ainda
mais radical quando reitera as palavras de Thomas More: ―Aquele que conhece uma das
cidades conhece-as todas, de tal forma elas são exatamente iguais, exceto no que a
natureza do terreno impede‖ (MORE apud RAMA, 1984: 32)268. Pode-se dizer que essa
igualdade é também notada na própria motivação que leva esses espaços a
transformações, reordenamentos, embelezamento, tornando-os, em alguns casos,
vulneráveis a atrocidades, justificadas pela racionalidade técnica e o desejo de um
futuro a alcançar. Nessa toada, pondera Rama:
(...) as cidades americanas foram remetidas desde as suas origens a uma
dupla vida. A correspondente à ordem física que, por ser sensível, material,
está submetida aos vaivéns da construção e da destruição, da instauração e da
renovação e, sobretudo, aos impulsos da invenção circunstancial de
indivíduos e grupos segundo seu momento e situação. Acima dela, a
correspondente à ordem dos signos que atuam a nível simbólico desde antes
de qualquer realização, e também durante e depois, pois dispõem de uma
inalterabilidade a que pouco concerne os avatares materiais. Antes de ser uma
realidade de ruas, casas e praças, que só podem existir e ainda assim
gradualmente, no transcurso do tempo histórico, as cidades emergiam já
completas por um parto da inteligência nas normas que as teorizavam, nos
atos fundacionais que as estatuíam, nos planos que as desenhavam
idealmente, com essa regularidade fatal que espreita aos sonhos da razão (...).
(RAMA, 1984: 32) 269
267
RAMA, Angel. A cidade das letras. São Paulo: Brasiliense, 1985.
268
Ibidem.
269
Ibidem.
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Sendo assim, a fundação da cidade se dá em busca da concretização de um
sonho. O nível simbólico constrói um padrão e, na tentativa de alcançá-lo, a urbe se
rende e condiciona sua formação a esse modelo. A cidade, então, se apresenta como
uma busca pela representação desse sonho, abrindo caminho para construções e
destruições sejam físicas ou, no que se refere aos citadinos, no campo psíquico. É na
direção dessa aspiração, atrelada ao interesse econômico, que o Rio de Janeiro se
urbaniza.
Entre 1903 e 1906, a então capital federal passou por um processo de reforma
urbana, que fora anunciado no discurso de posse do presidente da República Rodrigues
Alves. Para o presidente, era necessário melhorar a estrutura, a economia e, por
consequência, a imagem da cidade. A iniciativa deu origem a dois projetos. Um deles
era de responsabilidade do governo federal e tinha como peças fundamentais o ministro
Lauro Müller e o engenheiro Francisco Bicalho. O outro, por sua vez, foi tocado pela
Prefeitura do Rio de Janeiro e à frente estava o prefeito Francisco Pereira Passos. A bem
da verdade, a obra mais importante era a ampliação da zona portuária, ícone do
progresso material brasileiro, já que a cidade era a grande consumidora de produtos
importados. Além disso, era necessária uma estrutura urbana que facilitasse a
distribuição das mercadorias que chegavam.
A mudança do espaço deu-se sem respeitar os signos da cidade antiga, a
revigoração da região portuária foi pautada numa concepção racional e geométrica. Para
construir um melhor sistema de distribuição de mercadoria, foi necessária a abertura da
Avenida do Cais, Avenida do Mangue e da Avenida Central, atuais Rodrigues Alves,
Francisco Bicalho e Rio Branco, respectivamente. Vale observar que, mesmo
facilitando os acessos aos sentidos sul e centro da cidade, a fama da Avenida Central
deu-se, sobretudo, por ser sinônimo de progresso para a população:
Além de apresentar toda uma infraestrutura técnica das mais desenvolvidas
para os padrões brasileiros da época, com cabos de luz, fios de telefone e
tubos de gás subterrâneos, além de tecnologias modernas de calçamento
viário, a Avenida Central apresentou toda uma significação do progresso
material como propiciador da civilização, como era típico entre as elites
republicanas. Primeiramente, por ser uma perspectiva que se iniciava como
derivação do porto. A Avenida Central originava-se junto a este, que era a
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representação máxima do progresso material brasileiro. (AZEVEDO, 2003:
41) 270
A construção do Teatro Municipal aumentou ainda mais o glamour que existia
no final da Avenida Central. Era nesse trecho que se situava um significativo número de
instituições culturais como o Teatro Lyrico, a Escola de Belas Artes e o Palácio
Monroe. Esses ícones da cultura colaboravam ainda mais para que o centro da cidade
fosse sinônimo de civilização do país.
A cidade naquele momento apresentava características coloniais e era necessário
―criar uma nova capital, um espaço que simbolizasse concretamente a importância do
país como principal produtor de café do mundo, que expressasse os valores e os modi
vivendi cosmopolitas e modernos das elites econômica e política nacionais‖ (ABREU,
2006: 60)271, mesmo que de alguns fosse suprimido o direito de continuar a viver em
suas casas. Ainda que fosse necessário retirar tudo e todos que pudessem representar o
atraso nacional, Passos desejava camuflar o aspecto colonial da cidade:
Era preciso, pois, findar com a imagem da cidade insalubre e insegura, com
uma enorme população de gente rude plantada bem no seu âmago, vivendo
no maior desconforto, imundície e promiscuidade, pronta para armar em
barricadas as vielas estreitas do Centro ao som do primeiro grito de motim.
(SEVCENKO, 1983: 41)272
O que existiu então foi uma reforma excludente que beneficiou apenas uma
parcela dos que viviam naquele momento, isto é, um aburguesamento em detrimento
das camadas populares. A população de baixa renda ficou fadada a viver sem as
benesses oferecidas pelas renovações urbanas. Sem nenhum compromisso e respeito
com esses cariocas, o Rio de Janeiro foi sendo urbanizado nos moldes europeus, mais
especificamente, parisienses. No lugar da antiga colônia, começou a levantar uma
cidade que se fez moderna apenas para alguns.
Nessa linha, vale ainda pontuar que foram adotadas medidas como ―saneamento
urbano, desenvolvimento comercial, ampliação da arrecadação fiscal e captação de
270
AZEVEDO, André Nunes de. A reforma Pereira Passos: uma tentativa de integração urbana. Revista
Rio de Janeiro. Vol. 1, n. 10. mai/ago 2003. Ed. UERJ/LPP.
271
ABREU, Maurício de A. A evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPP, 2006.
272
SEVCENKO, Nicolau. A inserção compulsória do Brasil na Belle Époque. In: _____ (org). Literatura
como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983. p.
35-94.
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mão-de-obra estrangeira‖ (ABREU, 2006: 43)273. O aparecimento do automóvel, o
bonde elétrico, o surgimento do cinema, as novas vestimentas indicavam o início de um
momento novo e elitista. Tais coisas aumentavam gradativamente a importância da
cidade no contexto internacional.
Essas mudanças do início do século XX que transformavam o Rio de Janeiro em
uma belle époque tropical, como disse Jeffrey Needell (1993)274, eram narradas por um
grande número de autores que viveu essa época. Nesse sentido, destacamos as
produções de João do Rio, o escritor que incorporou a cidade na sua denominação mais
usada. A partir de agora, o presente estudo é um convite para caminhar com Joe 275, um
dos pseudônimos de Paulo Barreto, pela antiga capital federal. O objeto selecionado é a
coluna Cinematographo276, por meio da qual é possível observar o comportamento, as
novas formas de socialização e civilização da sociedade, sobretudo, a representação e
importância da indumentária da época.
A vida na nova urbe civilizada é descrita na coluna de Paulo Barreto. Em oito de
setembro de 1907277, discorre o quanto é chique jantar no Pavilhão Mourisco que,
segundo ele, remete a Paris, símbolo da modernidade da referida época. Já no dia 17 de
novembro de 1907, estabelece uma analogia entre a própria vida e a transformação do
Café Paris em um esplêndido restaurante. O cronista recorda sua trajetória profissional
na Gazeta de Notícias e conclui que a vida passa, consideravelmente, rápido. Como
pano de fundo, então, reflete a respeito de todas as mudanças que aconteciam na cidade.
Para finalizar, lamenta: ―Le bon vieux temps... Tudo se transforma. Daquele centro nada
mais existirá dentro em pouco. O largo é outro, o edifício será outro, as nossas ambições
273
ABREU, Maurício de A. A evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPP, 2006.
274
NEEDELL, Jeffrey D. Belle Époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada
do século. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
275
Joe foi o pseudônimo usado por Paulo Barreto para assinar a coluna Cinematographo.
276
A coluna Cinematographo surgiu assim que a Gazeta de Notícias adotou a impressão colorida. Teve
sua primeira publicação na edição Ano XXXIII/ número 223, em 11 de agosto de 1907 e permaneceu até
19 de dezembro de 1910, quando foi substituída por outra coluna intitulada Os dias passam... Publicadas,
em sua maioria, nas edições dominicais da Gazeta de Notícias, as crônicas que compunham a coluna
Cinematographo eram divididas em pequenos blocos pelos dias da semana.
277
JOE. Cinematographo. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 1907-1910. Semanal.
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são outras e a minha saúde, ah! a minha saúde é como aquele prédio velho a demolir...‖
(JOE, 17 de novembro de 1907).
Muitas vezes, os tipos urbanos são, para ele, o ponto de partida para
problematizar o cenário de transformação social. Assim, descreve e carateriza os
citadinos. Em um jantar no Smart-Club, evento que o cronista considera ―curioso‖, Joe
observa as pessoas que dividem o ambiente e, como consequência, mostra a nostalgia
pelo Rio antigo, sentimento de alguns naquela época.
começam a chegar os smart-dinners. Que curioso aspecto deste Rio moderno,
do novo Rio! Há franceses condecorados, de gestos vulgares; há ingleses de
smoking e parasita, americanos de casaca, e também de roupa de brim branco
com sapatos de jogar o futebol ou o law-tennis; há os nossos elegantes, essas
figuras que esperam uma pena como a do Abel Hermant para ficarem
imortalizados na galeria da insignificância com risos artificiais, risos
postiços, gestos a contragosto do corpo, todos eles bonecos vítimas da
diversão chanteclair; há os noceurs e os niches ricos ou jogadores, cuja
primeira refeição deve ser o jantar e que aparecem de olheiras, a voz pastosa
pensando no baccarat chemin de fer, no 9 de cara e nos pedidos do último
béguin... Que galeria! (...) homens, que se cumprimentam rápido, dizendo
apenas a última sílaba das palavras: — B‘jour Plo... deus. Algumas vêm
arrastando vestidos de três mil francos, preparadas como um centro de mesa;
outras têm atitudes simplistas dos primitivos italianos. Há na sombra
luminosa do terraço um desfilar de figuras que lembram Rossetti e Helleu,
Mirande e Capielo; Herman-Paul e também Abel Faivre, porque há cocottes
gordas, muito gordas e pintadas, ajaezadas de joias (o brasileiro gosta de
abundâncias) suando e praguejando. (12 de janeiro de 1908)
O autor discorre sobre as categorias dos presentes no jantar. Por meio de uma
narrativa irônica, percebe-se a crítica àquelas pessoas que aderiram com veemência à
modernidade, passaram a tomar como modelo comportamentos estrangeiros e, nessa
busca, acabaram sendo bizarros e passíveis de críticas. E é observando esses
personagens da modernização e ―atacando um prato de molho‖ ao som de uma valsa
que ele se pergunta onde está o antigo Rio, ―sem Smart-Club, sem cães, sem avenidas e
esse ruflo luminoso de pequenas fadas da noite cintilando por entre as mesas de um
jantar curioso...‖ (12 de janeiro de 1908).
Devoradas pelo progresso, a cidade e a sociedade vão se modificando
gradativamente. Em crônica publicada no dia 23 de agosto de 1908, Joe comenta que o
―carioca transformou-se‖. Uma dessas transformações está diretamente relacionada à
vontade de estar na rua para vivenciar a nova urbe.
Há gente, gente, muita gente. O aspecto é belo, de uma beleza de assombro,
tudo é luz, tudo é fogo, tudo é vida. Há renques de lâmpadas amarelas, de
lâmpadas verdes, paredes forradas dessa tricomia gritante. Os pavilhões
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riscam-se cordões luminosos. Grandes lâmpadas irrompem luz cinza clara, a
luz de metal branco, uma fulguração de luar. Em vários edifícios, e por trás
dessas cores, a luz de mercúrio, com uma cor de azul de céu, uma cor
maravilhosa e pesada cai como o ardente brocado de um docel — de espaço a
espaço. (...)
Que pensar? que dizer? Mesmo dentro do diamante, eu tenho a impressão de
que até o aspecto da multidão mudou, eu sinto aquele exército outro, diverso
dos das antigas festas, mais elegante, mais fino. Será porque passam lindas
senhoras da alta sociedade? Será porque envoltas em mantos de preços as
cocotes célebres desdobram por ali caminho dos bares, a onda do perfume? O
fato é que tudo parece extraordinariamente diverso.
— Que mudança, hein?
— É o Rio civilizado… (Ibidem)
As ruas iluminadas serviam como convite para os cariocas que passaram a sair
de suas casas e vivenciar a cidade. Como aponta Joe, transitar pela urbe era agora uma
atividade dos cariocas, especialmente, dos que desejavam exibir sua elegância. Tudo
isso fazia parte do projeto de civilização, logo aderido pelos que compunham a alta
sociedade da época.
Sendo a Europa modelo do que existia de mais civilizado no início do século
XX, o prefeito Pereira Passos estabeleceu também normas civilizadoras, enquadradas
nos padrões burgueses da França. Ocorre, então, uma imposição de um padrão urbano
burguês numa sociedade cuja tradição era escravista e heterogênea. O Rio de Janeiro era
habitado por ―capoeiras, ex-escravos biscateiros, (...) carroceiros, vendedores de perus,
de vìsceras, de leite retirado diretamente da vaca, trapeiros, rezadeiras, tatuadores‖
(AZEVEDO, 2003: 50)278 que conviviam com os cavalheiros e damas cariocas já
inseridos nos moldes denominados civilizados.
Mesmo comportando realidades antagônicas, o Rio serviu, desde o início do
século XX, como referência:
As áreas metropolitanas brasileiras são, na atualidade, uma das expressões
espaciais mais acabadas da formação social brasileira, refletindo a coerência
e as contradições dos sistemas econômico, institucional e ideológico
prevalecentes no país. O caso do Rio, então, parece ser ainda mais
significativo, pois, além de ter sido aí que se localizou a capital do Brasil de
1763 a 1960, a cidade foi a mais populosa do país durante quase todo esse
período, só perdendo essa posição privilegiada para São Paulo na década de
278
AZEVEDO, André Nunes de. A reforma Pereira Passos: uma tentativa de integração urbana. Revista
Rio de Janeiro. Vol. 1, n. 10. mai/ago 2003. Ed. UERJ/LPP.
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1950. Devido a isso, o Rio de Janeiro foi, durante muito tempo, um modelo
urbano para as demais cidades brasileiras. (ABREU, 2006: 16)
Como exposto, o Rio de Janeiro exerceu esse monopólio desde o processo de
modernização. A antiga capital federal vai buscar uma reorganização pautada no
modelo europeu e, logo, ser sinônimo de progresso e civilização. Os hábitos, as roupas e
os modos de viver parisienses chegam, primeiramente, ao Rio que serve como um
padrão para outros lugares do Brasil.
Sobre as novas normas de civilização, Joe dedica alguns de seus escritos.
Vejamos trecho de uma crônica publicada no dia primeiro de agosto de 1909 que fala
sobre o projeto de proibição de andar descalço nas ruas do Rio de Janeiro:
Como se sabe, o Sr. Tertuliano Coelho, intendente, apresentou um projeto
proibindo andar descalço nas ruas e praças da parte urbana da cidade.
Tertuliano tinha em primeiro lugar pena dos pés que se machucam por aí; em
segundo achava um pouco livre essa nudez de um membro tão importante;
em terceiro estava de acordo com todas as capitais civilizadas. (01 de agosto
de 1909).
Como em ―capitais civilizadas‖ não se viam homens e mulheres descalços, para
muitos que no Brasil viviam, a medida deveria ser adotada também no país. Segundo
Joe, seria este o primeiro passo para uma cidade civilizada, que só se consolida com
restrição de liberdade. Nessa linha, a crônica aponta a necessidade de regras e
instituições para controlar os citadinos.
O cronista também nos fala da nova forma de se viver, ou seja, da sociabilidade
dentro dessas novas normas. No dia seis de outubro de 1907, comenta sobre a festa do
Palace-Teatre, no luxo e refinamento como elementos desse local. Assim, demonstra a
percepção delicada, a cultura e a civilização presentes na cidade. Na mesma edição,
apresenta a gravata – acessório usado pelos cariocas – como símbolo de progresso. De
acordo com o escritor, desde sua invenção, a gravata é ―a nota suprema por onde se
afere a elegância e a civilização‖ (JOE, 06 de outubro de 1907).
Distanciando-se do conceito do senso comum que coloca a moda como sinônimo
de futilidade, em um momento de intensas transformações, a indumentária
desempenhava um papel social e vestia, para além de pessoas, identidades. Sobre a
importância dessa tendência, escreve Joe:
Gostar da moda é gostar do espírito da beleza. O espírito da beleza desde que
perdeu a sua augusta perfeição – e foi há muito no tempo, na Grécia Antiga –
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é um espírito inquieto, um espírito que procura, apalpa, cria, não se satisfaz,
desfaz e de novo tenta a obra, exagerando, desproporcionando... É esse
espírito de beleza meio alucinado que cria a moda em Paris todos os anos –
os sapatos de bico muito fino, as saias [ilegível], os chapéus colossais. Uma
mulher vestida pelo último figurino é sempre mais chic do que qualquer
outra. Porque afinal, apesar do exagero, há um sentimento geral de gosto nas
maiores maluquices – no sans-dessous, nos chapéus Napoleão, nas robes
fourreau. (16 de janeiro de 1910)
Em relação aos cariocas, vale pontuar que Paulo Barreto identifica essa
preocupação de se vestir bem. Antigamente, a mulher cuidava da roupa do cavalheiro.
Geralmente, cada profissão usava ―verdadeiras fardas à paisana‖ (06 de setembro de
1909); o médico, por exemplo, usava sobrecasaca preta e o poeta, por sua vez,
depravadas polainas. Após a abertura da Avenida, revela o cronista, despertou-se nos
homens e mulheres a vontade de ser chique, passaram então a se inspirar ―em Londres,
Paris e em Lisboa, onde é possível encontrar muita gente bem vestida, sem vintém, mas
nunca uma pessoa com algum dinheiro mal trajada‖ (Ibidem).
Apesar de tanta apreensão e dedicação, parece que o carioca não tem a
verdadeira elegância. É disso que Paulo Barreto se convence ao avistar uma ―enorme
senhora de vestido de veludo verde, grande chapéu sensacional, ajaezada de pedraria
que dava a impressão burlesca da condessa de Panadar da ‗Mascote‘.‖ (05 de abril de
1909). O escritor atenta ainda para a especialidade dessas senhoras de transformar a rua
em salão de baile e decreta: ―Elegante, realmente elegante só o é quem nasceu elegante‖
(Ibidem). O cronista conclui, então, que não é toda mulher que consegue se adequar a
esse novo padrão.
Certamente as senhoras brasileiras sabem muito bem usar a moda parisiense.
As cinquenta [ilegível] nos jornais, os leaders, principalmente. Mas, na moda
parisiense do Rio, há umas correntes, uns certos detalhes, crispantes de mau
gosto. As flores são em questões de mau gosto as grandes vítimas. Raras são
as brasileiras de condição menos rica que amam flores. Um ramo de violetas
é encanto numa midinette, é um trambolho inútil para qualquer menina
namoradeira da cidade nova. A generalidade despreza a flor pela simples
razão de que só a suprema civilização pode amar esse encanto da natureza.
De repente, há, entretanto, uma novidade. Um assassino qualquer, merecedor
da eletrocussão imediata, lembra-se de inventar as flores pintadas. É cortar o
cabelo de rosas-rosa ou de rosas chá e mergulhá-lo num pote de tinta. Que
invenção, hein? As rosas perdem a frescura, ficam como leprosas, duras, com
as pétalas enfardadas, horríveis. E todas as raparigas usam-nas. Isso sim, que
é bonito! O ano passado a dolorosa epidemia malsinou o Rio de Botafogo à
Gamboa. Até as copeiras de casa rica usam flores misto de tinta sardinha e
cor natural.
Era, porém, o bastante? Não! oh! não! Este ano, com janeiro tórrido apareceu
uma outra tremenda moda, de um mau gosto de exigir a intervenção policial:
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- os ramos artificiais. Sim! Há senhoras lindas, que não usariam duas rosas
frescas, mas que agora não saem à rua sem pôr à cinta um ramo de parma de
papelão ou duas príncipe Alberto, de seda vermelha! Ainda agora na Avenida
vejo uma senhora passar, aliás lindamente vestida, e no seu seio, tremenda,
um enorme ramo de hortênsias azuis, dessas hortênsias de que há campos
lindos em São Paulo, no Paraná, em Petrópolis.
Deuses! Que diria Montesquieu de Fezensac, o apaixonado das hortênsias
azuis se visse esse atentado? (16 de janeiro de 1910)
O diálogo entre Europa e Brasil, Paris e Rio pautava o projeto de modernização.
Paris era símbolo da modernidade e, em relação à indumentária, não era diferente. Na
citação, vemos que, embora algumas senhoras tenham se adequado bem à moda
parisiense, a falta de elegância é notada nos detalhes, como, no caso, no uso das flores.
A respeito dos homens, algumas dúvidas recorrentes são mencionadas em 22 de
maio de 1910: ―Deve-se ir de casaca ao Municipal? Com smoking a luva é branca ou de
cor? E a gravata? A sobrecasaca pode servir? E o casaco seco?‖. Para o cronista, tais
indagações soam como ―atraso nessas coisas de vestir‖ e ―demonstração de selvageria‖
(22 de maio de 1910). A opinião é retomada quando Joe personifica a casaca preta e
com ela estabelece um diálogo para discutir a elegância masculina.
— Essa era impossível. Vocês, evidentemente, têm feito progressos quanto
ao trajar dos homens. E progressos vertiginosos. Mas ainda hoje o carioca é o
sujeito que veste muito mal, dá o desespero quando vê um sujeito bem posto,
e é conhecido na Europa e no Prata, pelo — ―Homem do Guarda-chuva.‖
— Pois claro: o brasileiro é o único ocidental que se faz acompanhar de um
guarda-chuva, mesmo quando absolutamente não chove e o céu está azul.
Ora, esse homem não pode conceber elegância. Não que não seja faceiro. Se
permitires psicologia a uma pobre casaca preta, asseguro-te que o carioca é
na sua maioria faceiro. Mas com um mau gosto! Um mau gosto tão grande
que vai no excesso de reparar nos mais e só admitir no corpo alheio o que o
próprio veste. (18 de julho de 1909)
Por mais que errassem ao incorporar o padrão europeu de vestimenta, alguns
brasileiros queriam mesmo era se sentir participantes daquela modernização e se
arriscavam no novo padrão. No dia 11 de julho de 1909, na crônica intitulada ―O
exemplo do Progresso vertiginoso‖, Joe escreve sobre a expansão da Casa Colombo,
uma loja que oferecia produtos semelhantes aos das cidades mais modernas, que
inspiravam o processo de civilização do Rio de Janeiro. Por tal motivo, era muito
visitada.
— (...) Há um batalhão de empregados para servir um exército de fregueses.
Nas seções, a agitação cresce. É a liquidação de um grande estoque que se
eclipsa. Desde a bota até o chapéu o homem sai vestido da Casa Colombo. E
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sai por todo preço como em os grandes armazéns da Europa e da América.
Quanto deve fazer por dia essa casa? Sei lá! Não estou a fazer uma
―enquete‖, que aliás seria interessantìssima como um dos aspectos de
transformação da nossa feição primitiva. Indago apenas quantos pares de
Walk-Over vende por dia, porque o Walk-Over vende-se muito em toda a
Europa e por todas as casas é limitado.
— Uns mil pares por dia...
— ―Et voilá!‖ O grande Rio! Quem diria aos nossos calmos avós que em
1909 uma casa venderia mil pares de sapatos por dia? É Paris, iludo-me.
Penso estar numa dependência do Bon Marché. E é para os meus botões que
reflito.
— Tarda ou não a chegar o romancista que fixe este grande momento do
Brasil, como Balzac e como Zola fixaram grandes momentos da
transformação da França? (11 de julho de 1909)
A vontade de obter produtos como bota e chapéus movimentava o mercado da
moda. Pela descrição, notamos que a oferta era grande por conta da própria demanda. O
desejo por esses signos da modernidade era também marca do ―grande momento do
Brasil‖, como nos aponta Paulo Barreto. E, para ele, teria de existir um romancista
como Balzac ou Zola para narrar as transformações. Sabia o escritor que, em sua
coluna, ele mesmo eternizava esse processo de modernização e civilização? Relatou o
cronista todas as transformações estruturais da cidade, comportamentais e sociais da
população.
Pode-se dizer, portanto, que os textos do escritor documentam as variedades de
uma cidade considerada metonímia do Brasil, um país que não se desejava mais colônia,
queria ser transformado, conhecido e reconhecido; quem sabe até para todo o seu povo.
São também, cabe aqui salientar, registros que eternizam não só a indumentária, mas
todos os aspectos da belle époque carioca.
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A JUVENTUDE BRASILEIRA E O MODELO DE COOPTAÇÃO JUVENIL
ALEMÃO
Aline de Almeida Hoche279
Resumo:
Os regimes discricionários de direita que vigoraram em países europeus na primeira
metade do século XX preocuparam-se com a formação e o controle da juventude. Nesse
sentido, a Juventude Hitlerista foi manipulada para uso político, ideológico e mesmo
militar. No Brasil, após a instauração do Estado Novo, o Governo Vargas também
procurou estabelecer uma organização juvenil da qual pudesse tirar proveito. A
Juventude Brasileira serviu como projeto para formar uma sociedade que apoiasse o
governo em todas as suas ações.
Palavras–chave: Estado Novo; Juventude Brasileira; Projeto de mobilização.
Abstract:
The discretionary right regimes that were effective in European countries in the first
half of the twentieth century were concerned with the formation and control of youth. In
this sense, the Hitler Youth was manipulated to use political, ideological and even
military. In Brazil, after the establishment of the dictatorship regime of the "Estado
Novo", the Vargas government also sought to establish a youth organization which
could take advantage. The "Juventude Brasileira (Brazilian Youth) served as a project to
form a society that supported the government in all its actions.
Keywords: Estado Novo; Juventude Brasileira; Mobilization Project.
―A juventude alemã pertence à Juventude Hitlerista. Em toda parte, vê-se o
uniforme de cor mostarda e ouvem-se as pesadas botas marchando nos
calçamentos de pedra, clop, clop, clop, clop.‖.280
―É fundada uma instituição nacional, que se denominará Juventude
Brasileira, destinada a promover, dentro ou fora das escolas, a educação
cívica, moral e física da juventude, assim como da infância em idade escolar,
com o objetivo de contribuir para que cada brasileiro possa, realizando
superiormente o próprio destino bem cumprir os seus deveres para com a
pátria‖. 281
A preocupação com os jovens se apresenta como uma das características dos regimes
autoritários que se instalaram em alguns países durante a primeira metade do século
279
Mestranda em História pelo programa de pós-graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Bolsista da CAPES; Orientador: Professor Doutor Orlando de Barros; Email: [email protected].
280
Matéria do repórter americano Kenneth Roberts. Apud. BARTOLETTI, Susan Campbell. Juventude
Hitlerista: a história dos meninos e meninas nazistas e a dos que resistiram. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2006. p. 37.
281
Decreto-Lei Nº 2.072 de 8 de março de 1940. p. 1.
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XX. Na Europa, Mussolini, Hitler e Salazar criaram organizações para arregimentar
essa parte da população que era encarada como o futuro e a continuação da sociedade
modelada por aqueles regimes políticos autoritários.
Tendo múltiplos matizes, esses movimentos foram criados de acordo com a
ideologia de cada governo e visava servir aos seus propósitos. Na Alemanha, onde o
nazismo implementava uma política de expansão territorial e o viés militar era latente,
as crianças e os jovens foram alvos de um plano que continha um alto teor militarizante
e de extrema doutrinação.
A iminência de uma segunda grande guerra propiciou um ambiente de tensão
mundial, alguns países entenderam como necessário a mobilização da nação a favor de
toda a decisão que pudesse ser tomada em relação ao conflito. É neste sentido que os
movimentos de cooptação da juventude surgiram e foram espalhando-se através da
Europa, como uma verdadeira manifestação do espírito do tempo.
Refletindo essa tendência, durante o Estado Novo, o Brasil também organizou os
seus jovens nesse sentido, pois o projeto da Juventude Brasileira visava o apoio e a
cooptação dessa parcela da população como mais uma forma de enaltecimento e apoio
ao regime e às ações de Getúlio Vargas.
O projeto de mobilização dos jovens brasileiros foi criado em 8 de março de
1940, mas a sua criação já vinha sendo discutida tempos antes, ainda em 1938, quando
um primeiro plano de organização juvenil fora entregue à Getúlio Vargas pelo ministro
da Justiça, Francisco Campos.
Duramente criticado, a Organização Nacional da Juventude, nome dado
inicialmente ao movimento por Campos, possuía um caráter militarizante que
desagradou o governo brasileiro, pois em muitos aspectos possuía similaridades com o
modelo de arregimentação juvenil alemão, fato que podia configurar-se como um
problema para Getúlio Vargas que já vinha sendo acusado, principalmente pelos
Estados Unidos, de manter um governo fascista no país.
A rejeição do projeto do ministro da Justiça não significava a recusa de se
organizar a juventude brasileira, mas sim que tal plano teria que ser direcionado através
165
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de um viés mais brando. O modelo escolhido foi o da Mocidade Portuguesa, que tinha
como característica principal fomentar o patriotismo nos jovens participantes.
O presente trabalho tem o interesse de estudar o caso alemão, especialmente por
ter sido ele o exemplo extremo da mobilização dos jovens. Trataremos, também, do
projeto brasileiro que se tornou lei.
O Caso Alemão
A Juventude Hitlerista foi criada oficialmente em 1926, mas o ano de 1932 foi um dos
mais importantes para a Juventude e para o próprio partido nazista que alcançou, nas
eleições daquele ano, a condição de maior partido político da Alemanha, fato que fez
Hitler proferir um discurso de agradecimento, no mês de outubro, para 70 mil
integrantes do movimento jovem.
Quando pensamos que somente no ano de 1936 tornou-se obrigatória a entrada
para a Juventude Hitlerista, podemos ter a dimensão de que essas crianças e jovens
ingressaram nessa organização unicamente por sua vontade, mesmo que os pais
proibissem a vida desses jovens era agora uma vida de doação à Alemanha.
Preocupação com a pureza da raça, com a saúde e com a educação no modelo
nazista eram requisitos básicos para que os jovens alemães pudessem adentrar os
quadros da Juventude Hitlerista. Aqueles que não provavam possuir ascendência ariana,
uma saúde perfeita e não passavam na ―prova escrita para garantir que conheciam as
ideias nazistas‖ 282 eram impedidos de participar do movimento.
Enquanto as meninas eram treinadas para serem boas donas de casa, enfermeiras
ou praticantes de obras sociais, os meninos que completavam doze anos e possuíam
―excelentes qualidades de liderança eram selecionados para uma das três escolas de elite
criadas pelos nazistas‖.283 Nessas escolas praticavam exercícios físicos, tomavam lições
de ―ciência racial‖ e lealdade ao lìder alemão, além de receberem treinamento militar.
282
BARTOLETTI, Susan Campbell. Juventude Hitlerista: a história dos meninos e meninas nazistas e a
dos que resistiram. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006. p. 30.
283
Idem, p. 45.
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Sustentado por um excelente e bem articulado aparelho de propaganda,
organizado por Joseph Goebbels, ministro da cultura e da propaganda do governo
nazista, as crianças aprendiam, já na escola, a amar o seu Führer e a apoiar todas as suas
ações, em cada sala de aula havia um retrato de Hitler e com os braços estendidos
proclamavam: ―Adolf Hitler, guiai-nos para o novo Reich.‖.284
Foi com a censura e com a manipulação de notícias que Hitler arrastou milhares
desses jovens para a guerra, em 1943, ―os SS enviaram 10 mil recrutas para o campo de
treinamento da Bélgica… lá estudavam técnicas de camuflagem, diversos tipos de
armas pesadas e leves e problemas básicos de tática militar com tanques de guerra. Os
rapazes lutavam em batalhas simuladas com munição real‖.285
O doutrinamento a que essas crianças e jovens foram submetidos durou longos
anos, mesmo após o fim do terceiro Reich elas demoraram a compreender e a superar os
ensinamentos nazistas que tão profundamente penetraram em suas mentes. Para eles
tudo o que fizeram e passaram fazia parte de um plano grandioso, eles ―tinham se
sacrificado e trabalhado muito para criar uma Alemanha melhor e seus atos foram
motivados por amor ao povo e ao paìs‖.286
O caso alemão é o maior exemplo de como ocorreu a doutrinação dos jovens
nesse período. O Nacional-Socialismo promoveu uma das maiores mobilizações da
juventude já vistas, o governo de Hitler criou uma verdadeira máquina de cooptação e a
sua Juventude Hitlerista foi marcada não só pelo que viu e atuou na guerra, mas também
pelos ensinamentos a que foram submetidos.
O Caso Brasileiro
Instituído no dia 8 de março de 1940 o Decreto-Lei nº 2.072 estabelecia uma
―instituição nacional denominada Juventude Brasileira‖ que tinha como função dispor
284
Idem, p. 42.
285
Idem, p. 119.
286
Idem, p. 137.
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―sobre a obrigatoriedade da educação cìvica, moral e fìsica da infância e da juventude‖.
287
Quando analisamos os decretos que foram promulgados acerca do projeto
juvenil, evidencia-se o cuidado em ―moldar a sociedade […] para a construção da
nacionalidade brasileira‖, tratando essencialmente ―da formação cìvica e moral‖
288
da
camada juvenil da sociedade.
O controle da educação física também se encontrava presente, visando inserir
nos jovens ―os hábitos e as práticas higiênicas‖ tendo ―por finalidade a prevenção de
toda a sorte de doenças, a conservação do bem-estar e o prolongamento da vida‖.
289
Exibia-se assim, uma preocupação com o ―aperfeiçoamento da raça‖, conforme ideia
corrente na época, para que o país tivesse apenas cidadãos saudáveis e aptos a uma vida
de doação ao Brasil.
O projeto da Juventude Brasileira englobava uma ampla faixa etária, que
iniciava com as crianças de 7 a 11 anos – que integravam a Ala Menor – e a dos jovens
de 12 a 18 anos - que pertenciam a Ala Maior.
Uma das principais funções da Juventude Brasileira era o ensino cívico, onde a
exaltação da pátria era fundamental para a propagação dos ideais nacionais. Para tanto,
prestavam culto à Bandeira Nacional e o Hino Nacional era ―a expressão do seu fervor
em cada dia.‖ 290
O modo que a Juventude Brasileira possuía para realizar o seu propósito
consistia na ―educação ativa, realizando formaturas, solenidades, demonstrações,
trabalhos, exercìcios, excursões, viagens e divertimentos.‖
291
Entretanto, foram as
formaturas, ou desfiles, os eventos que se tornaram o principal caminho do regime para
desenvolver os objetivos em torno do movimento.
287
Arquivo Gustavo Capanema, 19 de setembro de 1938, p. 4. GC 38.08.09, pasta 1-3, série g. Apud.
SCHWARTZMAN, Simon; BOMENY, Helena M. B.; COSTA, Vanda M. R. Tempos de Capanema. São
Paulo: Paz e Terra: Fundação Getúlio Vargas, 2000. p. 145.
288
Idem, p.146
289
Ibidem.
290
Decreto-Lei Nº 2.072 de 8 de março de 1940. p. 2.
291
Ibidem.
168
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Dentre todos os eventos que propiciavam a mobilização da juventude, a
comemoração da data da Independência do país era a que recebia a maior atenção dos
governantes e dos membros do movimento. Nos anos de 1940 e 1941 saíram decretos
oficializando o dia que receberia o desfile comemorativo do mês de setembro e, tão
grande quanto o contingente que desfilava era o de pessoas que iam às ruas para assistir.
Outras datas eram comemoradas pela Juventude Brasileira, o ―Dia da Raça‖, por
exemplo, que por ser celebrado no dia 4 de setembro acabou tendo sua comemoração
fundida com a Independência do Brasil; o 10 e o 15 de novembro que eram,
respectivamente, o aniversário do Estado Novo e da Proclamação da República; o 1º de
maio; e o dia em que fora instituído a criação do movimento, isto é, o 19 de abril, que
era o dia da Juventude Brasileira e o aniversário do Presidente Getúlio Vargas.
Em uma ditadura como foi a do Estado Novo, onde os direitos civis foram
cerceados e a mobilização política autônoma era quase nula, esse tipo de evento era
muito bem recebido pela população que, mesmo de uma forma controlada pelo Estado,
tinha a oportunidade de se manifestar e de se mobilizar em torno de um ideal comum.
Os desfiles da juventude ocorreram por todo o país e durante o tempo que
existiu, de 1940 a 1945, suas solenidades ―chegaram a envolver dezenas de milhares de
participantes, assistidas em certa ocasião por 200 mil pessoas, meticulosamente
recenseadas pelo DIP.‖ 292
Com a criação da Juventude Brasileira percebeu-se a importância de ter ao lado
do governo um setor que esbanjava energia para ir às ruas para demonstrar todo o seu
apoio às medidas do regime. Com uma educação desenvolvida aos moldes estadonovistas e a imputação de sentimentos patrióticos, o Estado Novo formava uma ampla
camada de brasileiros para defendê-lo nas mais variadas situações.
Em janeiro de 1942 o Brasil tornava oficial o apoio aos Estados Unidos e aos
aliados no confronto mundial, necessitando de grande apoio, já que uma situação de
guerra nunca é fácil e enfrentá-la significa se expor a enormes sacrifícios, Getúlio
292
BARROS, Orlando 2005. Imagens da ―Juventude Brasileira‖. Texto apresentado ao IX Congreso de
la Sociedad Latinoamericana de estudios sobre América Latina y el Caribe (Solar). p. 3.
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Vargas necessitava de garantias de que a população ficaria ao seu lado em um momento
de tamanha dificuldade.
Visando principalmente o suporte da Juventude, que ele já havia provado com
tamanha eficiência, caso a situação beligerante se confirmasse, em fevereiro de 1942,
um novo Decreto-Lei foi promulgado, esse:
modelando a organização de jovens de modo que se transformasse em um
organismo mais ativo, mais abrangente e mais capaz de contagiar a sociedade
como um todo, em seu sentimento de patriotismo e fervor nacional, servindo
também para estimular a indignação geral diante dos atos de agressão do
inimigo, fazendo aceitar as restrições que viriam, caso a guerra fosse
declarada, o que de fato aconteceu. 293
O Decreto-Lei Nº 4.101 do dia 9 de fevereiro de 1942 é fortemente marcado pela
tentativa de direcionar o projeto nos moldes patriotas e atentar para a importância da
defesa de nosso país, aspectos ideológicos que vemos em destaque devido à situação
beligerante que o Brasil estava prestes a enfrentar.
O conflito mundial trouxe novo ânimo para as manifestações da Juventude, se
até 1942 ―as iniciativas cìvicas e patrióticas se organizavam em torno de temas que
beneficiavam especialmente a ìndole e a ideologia do Estado Novo‖, a partir deste ano,
o quadro de desfiles e mobilizações girou em torno de ―ações de solidariedade em face
da guerra.‖ 294
Do mês de junho até agosto de 1942, período que antecedeu o início da
participação brasileira no conflito bélico, diversas manifestações organizadas por
estudantes ocorreram na capital do país, ações que beneficiaram sobremaneira a imagem
do governo perante a sociedade, pois era oportuno que a população visse que grande
parte dos cidadãos exigia a entrada no conflito.
Como exemplo dessas manifestações a favor da participação brasileira no
conflito e de demonstração de apoio e de solidariedade ao governo podemos citar a ação
dos alunos do Colégio Pedro II, como nos aponta o autor Orlando de Barros:
293
BARROS, Orlando de. 2005. Op. cit., p. 3.
294
BARROS, Orlando de. O Colégio Pedro II no Estado Novo. In. Instituições Educacionais da cidade do
Rio de Janeiro. Um século de história (1850-1950). Org. Miriam W. Chaves, Sonia de Castro Lopes. Rio
de Janeiro: Mauad X: Faperj, 2009. P. 208.
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No dia 12 de junho de 1942, um grupo de alunos do Externato saiu em visita
às redações dos jornais, pedindo para divulgarem a passeata a se realizar no
dia seguinte, convidando os alunos dos demais estabelecimentos para se
juntarem a eles […] diziam querer manifestar o apoio incondicional ao
governo Vargas por causa dos torpedeamentos, e que, por isso, estavam
confeccionando um grande retrato do presidente com os seguintes dizeres:
'Apoiem o nosso Presidente'', 'Viva o Estado Novo!' e 'Viva o Brasil!' 295
As movimentações para a entrada do Brasil na guerra criaram um caminho de
contestação em favor das liberdades democráticas para os jovens brasileiros. O ano de
1942 apresentou-se como decisivo para o futuro do governo de Getúlio Vargas, pois a
Segunda Guerra Mundial e o estreitamento dos laços com os Estados Unidos,
representaram o início da desestruturação do viés ditatorial e anti-liberal do regime.
O Decreto-Lei que estabeleceu o encerramento da Juventude Brasileira data do
dia 20 de novembro de 1945, mesmo ano do fim do Estado Novo, já que:
Aproximando-se o fim da guerra, um novo quadro desenhou-se no país, com
forças politicas se organizando para tomar suas posições no inevitável fim do
Estado Novo […] nesta altura, a simpatia por Vargas, antes predominante
entre alunos e professores, começou a declinar rapidamente, até o ponto de
franca oposição. 296
Entendemos dessa forma, que a criação da Juventude Brasileira possibilitou ao
governo ter ao seu lado um setor da sociedade que esbanjava energia para ir às ruas a
fim de demonstrar todo o seu apoio às medidas do regime. Com uma educação
desenvolvida nos moldes estado-novistas e a imputação de sentimentos patrióticos, o
governo formava uma ampla camada de brasileiros para defendê-lo nas mais variadas
situações.
Percebemos, ainda, uma preocupação que ia além de apenas uma geração. Era
oportuno moldar de forma eficiente esses jovens para que pudessem transmitir os mais
estimados valores do regime para as gerações futuras, garantindo assim a continuação
do Estado Novo e de sua ideologia formadora.
Por fim, compreendemos que a Juventude Brasileira integrava um projeto
ideológico do governo Vargas, mas que também fora utilizado como forma de
cooptação dos jovens por outros países de regime autoritário, fazendo assim parte de um
espírito do tempo que cercava o período ora estudado.
295
Ibidem.
296
Ibidem.
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A MORTE COMO METÁFORA?
Aline Magalhães Pinto297
Resumo:
A proposta desse texto é apresentar alguns apontamentos em relação às potencialidades
de se explorar a imagem da morte como metáfora, tendo como aporte teórico as
reflexões de H. Blumenberg.
Palavras-chave: imagem da morte, metáfora, Hans Blumenberg, metaforologia.
Abstract:
The purpose of this paper is to present some notes about the potentialities to exploit the
image of death as a metaphor, by using the theoretical reflections of H. Blumenberg.
Keywords: Image of death, metaphor, Hans Blumenberg, metaphorology.
A finitude poderia ser compreendida como algo que se transfigura num gesto que
congrega imaginação e pensamento em escrita? Como abordar esta difícil e decisiva
transfiguração?
Procuramos nos aproximar da questão a partir da seguinte brecha – ou, hipótese,
lançada como aposta: o homem finito e por si mesmo, carente, mundano e mortal, se
vale da capacidade de escrever e se inscrever, abrindo veredas em labirinto, para
registrar, externalizar e imprimir o contato antropogênico com a morte. Nossa aposta
tem como fonte de inspiração a interpretação que G. Bataille confere às imagens
encontradas na gruta de Lascaux, descoberta em 1940. Bataille viu algo de miraculoso
nas enigmáticas pinturas ao fundo das cavernas, como se por elas fosse possível estar
mais próximo da inspiração mais profunda da vida. Estimulado pelas imagens de
Lascaux e explorando ao limite as fronteiras entre o animal e o humano, o pensador
francês publica na Critique de abril de 1953,
um artigo que seria
republicado como livro em 1955, chamado ―La peinture préhistorique, Lascaux où la
naissance de l'art‖298. Deste texto, retemos a ideia de que as imagens estabelecem-se
como passagem entre o mundo do trabalho e do conceito, orientando pela busca por
297
Doutora em História social da cultura/ Puc-Rio; Email: [email protected]
298
Bataille, G. La peinture préhistorique, Lascaux où la naissance de l'art‖
[1955] Genève, Skira, 1994.
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uma finalidade e um ganho, e o mundo do jogo e da metáfora, em que a finitude está
sempre à espreita como registro e ligação com a animalidade.
Todavia, aliamos à inspiração vinda do intenso pensamento de Bataille ao
desenvolvimento da questão apoiada na reflexão do filósofo alemão H. Blumenberg e
de sua ainda não tão explorada metaforologia. Propomos, portanto, pensar e imaginar a
morte como metáfora, na tentativa de constituir um estudo dessa imagem como
desdobramento temporal de um problema teórico.
Trata-se de pensar a posição da imagem da morte na trajetória de autointerpretação humana, ou caso se prefira, a ocupação antropológica do mundo. Para
tanto, uma reflexão que precisa enredar-se pelos sinuosos caminhos que temática da
morte oferece, deve lidar com o desejo de verdade de maneira oblíqua. Se a morte não é
―objeto‖ mas ponto de inflexão com o qual se trabalha, é preciso garantir, de alguma
maneira, as condições de sua inacessibilidade como essência ou substância. No intuito
de atender tais demandas e no sentido de clarificar a maneira pela qual a figura da morte
pode ser lida, lançar-se-á mão dos estudos sobre metáfora e mais precisamente da noção
de metáfora explosiva (Sprengmetaphorik), de Hans Blumenberg.
Para situar o ainda relativamente desconhecido filósofo alemão, recorremos à
pertinente citação do igualmente desconhecido Padre Vaz:
Entre as mais notáveis críticas de justificação da modernidade do ponto de
vista de uma reflexão sobre a cultura merece especial atenção a do filósofo e
historiador das idéias Hans Blumenberg (1920-1996). Autor de uma obra
multiforme que se estende a toda história da cultura ocidental e apoiada numa
vastíssima erudição Blumenberg reúne todos os fios da sua intensa meditação
justamente numa teoria da modernidade pensada e formulada como
demonstração da novidade e legitimidade da cultura moderna e recusa de
todo paradigma hermenêutico que faça uso do conceito de ―secularização‖ ou
de explicações que recorram a permanência de arquétipos teológicos no
universo conceitual da modernidade. (...) A obra em que expõe ex professo
sua leitura da modernidade denomina-se justamente ―A legitimidade dos
tempos modernos‖ na qual é posto em questão o paradigma da
―secularização‖. Não é pela transformação e um conteúdo teológico em
conteúdo mundano que a modernidade se define. (...) A modernidade se
caracteriza pela aparição histórica do vazio de sentido. Esse vazio solicita
imperiosamente a consciência ocupá-lo com um conteúdo novo.Todas as
iniciativas da consciência refluem, em última instância, para a auto-afirmação
(selbstbhauptung) como ponto fulcral do edifício simbólico da
modernidade.‖ 299
299
Vaz, Henrique Cláudio de Lima Escritos de Filosofia VII: Raízes da Modernidade, São Paulo: Loyola,
2002. P. 26-27
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No universo mais amplo da obra do autor, a reflexão sobre as metáforas não se
cumprem em separado da temática da secularização e legitimidade dos tempos
modernos e se liga à definição da indigência humana como característica antropológica
fundadora.
Para Blumenberg, o estudo sobre as metáforas não visa substituir e sim
enriquecer uma teoria crítica da cultura. Além disso, cada metáfora exige uma
interpretação conforme a função em cada um de seus usos. Os qualitativos com os quais
ele desdobra a metáfora para nela revelar seu potencial filosófico, não são atributos e
sim funcionalidades passíveis ou não de serem exercidas, conforme o caso300.
O ponto de partida será a paradoxal incongruência que marca um ser de desejos
infinitos e tempo de vida limitado. A criatura humana, mergulhada em um cosmos ou
como um observador-agente, está no mundo como um episódio entre o nascer e o
morrer. A inserção no mundo é conflituosa, assumindo faces distintas ao longo da
trajetória humana. Entrelaçando temporalidade e finitude, faremos a primeira
demarcação do problema da morte dentro do estudo que propomos, a partir da seguinte
formulação oferecida por Blumenberg: para o homem, há sempre menos tempo para
cada vez mais possibilidades e desejos.301
Reconhecendo nessa proposição - para fins de nossa reflexão teórica - uma
―validade geral‖, é inevitável não deixar de pensar que ela tem como limite duas
situações fundamentais: por um lado, o suicídio, evento no qual deve estar presente um
desarranjo temporal em relação ao desejo de permanecer vivo. Por outro, a ―boa morte‖,
evento no qual a simetria entre desejo e tempo constrói uma bela harmonia. A limitação
que condiciona a proposição pode ser, portanto, descrita como questão: por que somos
forçados a existir? Já que tão imemorial quanto a morte é o nascimento302.
Não obstante sua limitação, a formulação de Blumenberg permite identificar
uma estrutura antropológica: a incongruência entre o desejo de viver e a duração da
vida. Como lembra o filósofo alemão, a consciência atormentada por esta assimetria a
300
301
302
Blumenberg,H. Paradigmes pour une métaphorologie. Paris: Vrin, 2006. P.. 155-160
Blumenberg, H. [1986] Tiempo de la vida y tiempo del mundo. Valência, Pre textos, 2007. 63.
Ibidem.p:63-65.
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que a morte nomeia, ―surge‖ com a simples e obvia percepção de que o mundo não
começa nem acaba com a própria vida e se repete na falta de resignação à fatalidade de
cada geração. É uma espécie de consciência da fragilidade da vida e de não sujeição a
ela que incita e até mesmo exige o ―artefato‖ plástico que é a metáfora. Essa
consciência, que se intensifica na modernidade, é apontada por Blumenberg como
―fonte‖, não apenas do desejo de viver, mas também de sua decepção - uma vez que,
para a criatura humana, o tempo torna-se mais escasso enquanto as possibilidades e
desejos tornam-se mais amplas. Ainda segundo o filósofo:
Todos os demais desejos tem nessa assimetria a base de sua possibilidade,
mas também de sua fragilidade e de sua capacidade de produzir decepções na
medida em que a consciência permanece marcada pela finitude. O tempo é
aquilo de mais nosso, mas também o menos disponível. 303
Em termos dos modos temporais, a intensificação assume a forma de uma
aceleração. Em decorrência, permeando a conformação do sentido histórico moderno,
está o entendimento da reflexividade e da capacidade de autocompreensão humana
como uma relação de uma criatura frágil e ―carente‖ (num sentido que vamos
esclarecer) com seu ―destino‖ mais extremo: morrer.
O trabalho de Blumenberg é muito inspirado nas antropologias filosóficas de,
por exemplo, Cassirer e Gehlen, mas também bastante provocada pela fenomenologia
husserliana da qual ele parte. Blumenberg imprime uma inflexão crítica à
fenomenologia de Husserl que se estabelece ao mesmo tempo como um contraponto a
tradição heideggeriana. Contraponto que pode ser verificado em vários níveis de
discussão filosófica como uma divergência profunda304.
No que tange mais diretamente ao tema abordado neste trabalho, certamente é
possível relacionar a condição indigente que Blumenberg atribui à espécie humana à
temática da angústia em Heidegger. Pois em ambas as reflexões somos enviados ao
terreno que diz respeito ao ―peso‖ da condição mortal. Contudo, a partir da leitura de
Olivier Feron, considera-se que em Heidegger, a angústia deveria permitir ao Dasein se
confrontar a uma condição radical; mas essa radicalidade, ao ser reenviada ao Dasein
303
Blumenberg, H. Teoria da inconceitualidade. Theorie der Unbegrifflichkeit, Anselm Haverkamp
(editor a partir do espólio) Suhrkamp Verlag, Frankfurt a. M., 2007 Tradução de Luiz Costa Lima, Ed.,
UFMG 2013.P. 65
304
Trierweiler, Denis. De la dignité de l‘homme. In: Trierweiler, Denis (org.) Hans BlumenbergAnthropologie philosophique. Presses Universitaires de France, 2010. Pp. 9-24.
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naquilo que lhe é própria, isso é, a uma essência que lhe garantisse definição de sentido
e lhe permitisse conceber uma autenticidade garantida pelo Ser do qual o entendimento
participa a instauração do próprio sentido. Enquanto para Blumenberg, a angústia não
seria compensada por nenhuma promessa de sentido ou de autenticidade. Não há
reenvio ou reapropriação de si. Ao contrário, a angústia espia, vagueia, e sua atualidade
está diretamente ligada à questão da possibilidade de que a existência humana talvez
não faça sentido. Isso é, estamos expostos ao risco da possibilidade de falta de sentido
para estar vivo. E por isso mesmo, pelo nível de ceticismo, Blumenberg não pode
buscar recursos em alguma ontologia. A criatura humana deve ser entendida como o ser
sem essência do qual se ocupa a filosofia305.
Nesta perspectiva, em que o inalcançável surge como reflexo invertido da
substância ou essência, as metáforas não são apenas signos de persuasão e sedução, mas
um artifício que dribla uma carência insuperável. Elas se comportam como sinalizadoras
de estruturas fundamentais da vida humana. Na esteira de Herder, Blumenberg pensa o
homem como um ser de carência i.e., carente de disposições específicas necessárias a
um comportamento reativo face à realidade, em suma, sua condição é de uma pobreza
instintiva. Essa condição de carência representa o ponto de partida da questão
antropológica central que é entender como esse ser, a despeito da falta de disposição
biológica é capaz de existir. A resposta pode ser derivada da seguinte formulação: o
homem é o animal que não se engaja na realidade senão pelas relações mediadas. Para a
criatura humana está vetada qualquer relação de imediaticidade com o ―real‖.
A
relação do homem com a realidade é indireta, complicada, seletiva e mais que tudo:
metafórica. Recuperando fortemente a herança de Cassirer, Blumenberg pode afirmar
que: ―O animal symbolicum impera sobre uma realidade autenticamente mortífera para
ele na medida em que ela se deixa representar‖ 306.
Tendo esse panorama teórico como horizonte, Blumenberg define metáfora
como:
305
Feron, Olivier. Angoisse ete mise à distante. In: Trierweile, Denis (org.) Hans BlumenbergAnthropologie philosophique. Presses Universitaires de France, 2010. p. 41
306
Blumenberg, H. L‘imitation de la nature et autres essais esthétiques. Paris: Hermann Éditeurs, 2010:
2010. p 105
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(...) antes de tudo, em um texto determinado, uma perturbação das conexões,
da homogeneidade que possibilita a leitura mecânica. A metáfora bloqueia a
fluência da recepção do texto (...). Por certo, a metáfora ocupa, em um dado
contexto, uma posição de determinação fraca, que se põe em lugar daquilo
que, no contexto, seria bastante para satisfazer a expectativa implicada. A
expectativa pode ser rompida porque a determinação do contexto é bastante
fraca.307
Desta forma, perseguir as mudanças históricas de uma metáfora faz aparecer
tanto uma meta-cinética dos horizontes de sentido quanto pontos de vista historicamente
determinados. Isto porque as metáforas não são apenas capazes de movimento. Elas
representam - fazem ver - este movimento dentro do discurso. Ou seja, as metáforas –
mesmo aquelas restritamente definidas pela gramática e pela retórica - se encontram
intimamente ligadas ao impulso teórico-reflexivo.
Impulso profundamente antropológico, isso é: índice que marca a trajetória dessa
criatura que se constitui humana. Nesse sentido, vale citar a esclarecedora leitura de
Schnell, que demonstra que para Blumenberg, a intencionalidade – propriedade
fundamental da consciência de se orientar em direção a um objeto - e o que motivaria
segundo a fenomenologia husserliana sua virada em direção a um idealismo
transcendental, a saber, a evidência absoluta, são inconciliáveis. Este caráter
inconciliável repousa sobre o fato de que, contrariamente ao que afirma Husserl, a
reflexão não pode ser considerada a maneira pela qual a consciência se relaciona com
ela mesmo de forma imediata. Isso é, para Blumenberg não há uma identidade entre o
pensar e ser pensado. Não é que Blumenberg negue a existência do poder reflexivo.
Todavia, a reflexão não se constitui a fonte de uma evidência transcendental. Ela tem
um papel derivado. A capacidade reflexiva em Blumenberg emerge como um ―factum
anthropologique‖.308
Entendida em sua íntima relação com a capacidade reflexiva, a metáfora não
esvazia uma experiência, não lhe rouba a realidade. Quanto maior a força da metáfora,
maior a indeterminação da linguagem, i.e., sua não redução a um contexto determinado.
Isto, entretanto, não significa que maior seja sua incongruência com o fora dela. A
metáfora torna possível pensar uma vacância. Tendo-se em conta a recusa da premissa
307
Blumenberg, 2013 p. 39.
308
Schnell, A. In:Trierweiler , Denis (org.) Hans Blumenberg- Anthropologie philosophique. Presses
Universitaires de France, 2010. Pp. 96.
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de universalidade da congruência entre linguagem e pensamento, entende-se que num
discurso, a realização mimética - sendo a mímesis a estruturação interna do processo de
criação - e a representação metafórica caminham juntas.309
O pensamento filosófico, assim como toda atitude teórico-reflexiva, em seu
esforço para considerar o mundo ou aspectos do mundo, em sua totalidade, não pode
abrir mão do modo de relação expansivo que a metáfora permite. Para Blumenberg, ―a
filosofia tenta escapar às imagens como quem foge da própria sombra, mas ela reproduz
incansavelmente esta sombra, mesmo e exatamente em suas tentativas de dissolvê-la.‖
310
A despeito do fato de que, historicamente, a retórica, como domínio da metáfora,
tenha se consagrado como o contrário institucionalizado da filosofia, Blumenberg
afirma o potencial filosófico da metáfora. Para ele, metáfora se relaciona diretamente à
carência que define a criatura humana, criando um efeito de expansão. Essa expansão
escancara o estado de penúria que marca a relação imediata do homem com a realidade,
visto que o homem habita um mundo aberto, isto é, onde nada está naturalmente
estabelecido. Mas, no mesmo golpe, ela deixa ver um fundo de superabundância e
excesso em relação ao horizonte de necessidades da vida.
311
Longe de propor desistir ou se afastar do conceito, Blumenberg atenta para uma
particularidade da forma conceitual. Respondendo à problemas ligados à urgência das
―necessidades vitais‖, o conceito indica uma antecipação do possìvel, e nesse sentido, a
resposta implicada pelo conceito é uma situação de indeterminação. ―O êxito do
conceito é ao mesmo tempo o retorno a sua função : ele introduz o processo no qual um
objeto que se tornara tremendo, desconhecido, e como fonte de pavor, retorna como
objeto de fruição‖. Desta maneira, não há um abismo entre conceito e metáfora. A
relação entre conceito e metáfora é entendida como genética e funcional. Onde o
conceito atua como representação não imposta daquilo que ainda não está presente
(antecipação) a metáfora significará uma expansão. Ligando pensamento e imaginação,
309
Blumenberg, 2006.
310
Heidenreich, Felix. Inconceptualité – penser em images, penser ne concepts. In: Trierweiler, Denis
(org.) Hans Blumenberg- Anthropologie philosophique. Presses Universitaires de France, 2010. p. 80.
311
Blumenberg, 2013 p. 64
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―a metáfora tanto é natural da esfera de origem do conceito como continuamente faz-se
responsável por sua insuficiência e pelos limites de sua operação‖. 312
A produção do conceito visa representar a escala do que é sensivelmente
alcançável e está ligada às adaptações e precauções necessárias para manter o ser
humano vivo. O conceito é a elaboração antecipada do possìvel, i.e. ―o conceito faz com
que a disponibilidade do objeto se ponha ao alcance da mão‖. Nesse sentido, a
objetividade alcançada pelo conceito é antes um meio do que um fim. 313
Mas, para Blumenberg, a estrutura das operações pelas quais o homem emprega
sua força plástica não se restringe a responder às questões que envolvem a
sobrevivência deste sistema orgânico ameaçado. Essa estrutura ultrapassa o domínio do
conceito porque ―cria igualmente a liberdade de tomar o que percebe como antecipação
do possível (conceito) e ainda como propostas de atividade que tendem para a
fruição.‖314
Portanto, a pesquisa e reflexão de Blumenberg sobre o substrato metafórico
partem de uma visita ao pensamento kantiano e se relacionam à afirmação, por um lado,
de que o pensamento não se esgota na operação do conceito e articulações conceituais.
E por outro, a concepção da metáfora como uma ―ousadia‖ que se põe a serviço da
fruição. O modo de relação expansivo contido na forma metafórica define uma região
prévia de não-conceitualidade. 315
O estudo da capacidade operativa da metáfora, em Blumenberg, tem como eixo
a noção de metáfora absoluta. Metáforas absolutas são aquelas que não jamais se
dissolvem em um significado, e que por isso podem ser infinitamente deslocadas,
substituídas, suplementadas por outras. Tais metáforas estruturam o mundo, fornecem
uma orientação, um direcionamento, sem jamais poderem ser conhecidas pela
experiência. Uma metáfora absoluta não se revela por traços e características
determinadas. Como esclarece Jean-Claude Monod, as metáforas absolutas dão um
312
Ibidem, p. 15.
313
Ibidem 2013.p. 15.
314
Ibidem, 2013. p. 13-14.
315
ibidem, p. 32
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acesso a uma totalidade que permanece ainda irrepresentável, mas que por meio desse
acesso nós não podemos senão nos interrogar sobre como estamos nessa totalidade
compreendidos316
Para entender a força subterrânea mas incrível com que as metáforas absolutas seguindo o desenvolvimento do argumento de Blumenberg- atuam historicamente,
basta pensar que dentro dessa argumentação toda proposição que tem por sujeito termos
como o Ser ou o Mundo teria como predicado uma metáfora. Isto porque para este tipo
de formulação, altamente especulativa, ―as totalidades às quais o próprio observador
pertence e em que se encontra se subtraem à descrição ou a ela opõem dificuldades
bastante determinadas.‖ 317
Nesse sentido, a metáfora absoluta exerce a função teórica de oferecer um
acesso ―figurado‖ à totalidade em questão.
Quando, além disso, a metáfora assume a tarefa de indicar e induzir certa at
itude ou um ―sentimento‖ em relação ao mundo, ou seja, quando ela exerce no texto
uma função pragmática, estamos, segundo Blumenberg, diante de uma metáfora
explosiva. Se a metáfora ao mesmo tempo em que dá acesso ao todo (função teórica),
está a construir os limites do que pode ser objeto de uma apreensão conceitual, ela será
explosiva (Sprengmetaphorik), pois empreende a tentativa de trazer a linguagem para o
ponto de ruptura de sua lógica, em direção aos limites de qualquer intervenção humana.
Como afirma J-L Monod:
A Sprengmetaphor mostra que seu objeto não pode e não deve ser
representado pois está fora do raio do entendimento e da imaginação humana.
Esta abertura sobre o sentido da metáfora absoluta tem dois efeitos: por um
lado, ela incita a interrogação a respeito das relações entre a metáfora e a
metafísica; por outro fica claro através dela que a metaforologia transborda e
muito a função auxiliar da história dos conceitos318
A citação revela dois efeitos que constituem um plano de trabalho que estamos
desenvolvendo e do qual esse texto é, finalmente, apenas um primeiro esboço. De
qualquer forma, é importante registrar que esses primeiros resultados nos levam a
compreender a imagem da morte como uma metáfora explosiva, na medida em que
316
Monod, Jean-Claude. Hans Blumenberg. Voix Allemandes. Paris : Éditions Belin, 2007. P. 46
317
Blumenberg, H. 2013.p. 66.
318
Monod, J-C. 2007 :48-49
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antecipa na consciência e registra na escrita algo que ainda não se compreende e jamais
se compreenderá. Tal antecipação é explosiva e não simplesmente angustiada, porque o
―antecipado‖ – a morte- adentra o processo de intuição e violentamente provoca uma
imagem "sem conteúdo" da finitude temporal mas em seguida abandona tal processo
porque a finitude não pode ter uma imagem. Esse movimento de abandono representa
tanto o limite da realização teórica quanto o primeiro nível verbal da carência humana.
Nessa perspectiva, a metaforização ―aparece‖, para a situação em que a dor que
a morte do outro ressoa, como um recurso textual para a criatura carente que,
pressionada (Drang) a pensar e imaginar num mesmo gesto, tenta romper a
irrepresentabilidade da própria morte. Tal tentativa constituída por pensar e imaginar,
em junção, abre a possibilidade de transfigurar como escrita a morte, o próprio
desaparecimento e o desaparecer de todos os demais, os que estão vivos agora e aqueles
que viveram e viverão. A criatura carente e mortal singulariza-se desta forma como um
animal trópico. Ver-se marcado pela finitude estabelece um limite abaixo do sempre e
não um ponto final para o olhar. Introduz a questão: e depois?
A imagem da morte ganha dessa forma uma significação deformativa: nossos
planos e ações, nossas obrigações e relações interpessoais são mantidos em proporções
adequadas a uma vida cindida pela morte. A idéia de que ―vou morrer um dia, não sei
quando ou como‖ transmite uma certeza flutuante (morte certa, hora incerta) que se liga
de maneira inquieta, mas incisiva, ao desejo de ser, os esforços para existir. Nosso
trabalho continua no sentido de projetar e investigar os limites e possibilidades
produzidas por tal atuação metafórica da morte. Acreditamos que essa seara possa ser
explorada de maneira a enriquecer nosso entendimento sobre a contingência e devir
humano.
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A QUESTÃO DA REALIDADE NA LITERATURA: APROXIMAÇÕES ENTRE
AS IDEIAS DE ERICH AUERBACH E A OBRA DE DIAS GOMES
Aline Monteiro de Carvalho Silva319
Resumo:
O artigo reflete sobre o conceito de realidade e sua representação dentro da literatura.
Partindo do livro Mimesis de Erich Auerbach faço uma reflexão sobre a questão da
realidade na produção de Dias Gomes, especificamente em relação Meu Reino por um
Cavalo. Aproximo as ideias dos dois autores, pensando a busca por um novo espaço dos
intelectuais e artistas engajados do período da ditadura e sua adaptação ao pós-ditadura
militar, através da personagem fictícia da obra citada e do próprio autor.
Palavras-chave: Dias Gomes – Erich Auerbach – Realidade
Abstract:
The article reflects about the concept of reality and representation in literature. Based on
the book by Erich Auerbach's Mimesis and I reflect about the question of reality in
production Dias Gomes, specifically Meu Reino por um Cavalo. AI try to aproach the
ideas of the authors, thinking about the search for a new space of engaged intellectuals
and artists of the period of the dictatorship and their adaptation to post-military
dictatorship, through the fictional character of the work cited and the author himself.
Key Words: Dias Gomes – Erich Auerbach – Reality
A palavra mimesis, que dá título ao livro de Erich Auerbach 320, vem da Grécia Antiga e
de seus filósofos, como Aristóteles e Platão, e significava a representação da natureza.
Em sua obra, o filólogo faz suas interpretações a partir de textos literários lidos por ele
em sua língua original. Em Mimesis o autor faz da questão do realismo nas obras por ele
escolhidas seu mote principal; como destaca, existiriam realismos, para além de um
realismo. Alguns dos estudiosos do trabalho de Auerbach creditam a sua interpretação
da relação entre realidade e literatura a sua trajetória de vida e com o contexto político
do nazismo. Para alguns críticos, o autor acaba por igualar literatura com a realidade,
crítica que não parece ser justificada.
319
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense, sendo
orientada pela Profª Drª Denise Rollemberg na instituição. E-mail: [email protected]. Telefone: (21)
9106-4051. Endereço: Rua São Sebastião, s/n, Qd: 66, Lt: 05. Engenho do Mato – Itaipú, Niterói, RJ.
Cep: 24346-190. Este trabalho é financiado através da bolsa de doutorado da Capes.
320
O livro foi escrito durante seu exílio na Turquia, sendo lançado no ano de 1946, tendo algumas
variações, enxertos e etc. ao longo dos anos.
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Para Erich Auerbach, o realismo está contido no próprio texto; as obras, para
serem consideradas como realistas, têm de ter coerência e um destino, ou melhor, a
história das personagens tem de ser coerentes. Este conceito se encontra nas obras
quando nelas há a representação do cotidiano, mas não é uma mera cópia, uma simples
cópia da realidade. Para tal análise, ele procura compreender as mudanças ao longo do
tempo, principalmente as variações e refigurações na apreensão da realidade dentro dos
textos. Para além, há uma busca por aperceber as questões políticas, sociais, entre
outras, enfim, o contexto histórico da produção da obra.
O autor trabalha com a ideia do realismo como adequação – uma adaptação ao
tempo em que se está escrevendo, ao seu contexto. Para além, podemos destacar dois
pontos que nos interessam: a relação entre o texto e a realidade, onde não se é feita,
necessariamente, uma ficção sobre a realidade, mas sim há uma apreensão da essência
da realidade sobre a qual queremos falar, escrever, refletir, etc.; um segundo ponto versa
sobre o realismo como forma de convencimento sobre o que se fala no texto literário é
real, verdadeiro, e plausível. Essa narrativa tem de ser convincente, há de se conceber
que o escrito tem verdade em seu conteúdo.
As concepções discutidas por Erich Auerbach – a ideia de que a realidade ganha
sentido no discurso – são influenciadas pelo historicismo. Construída e desenvolvida a
partir de um mundo moderno, pós-revolução francesa e inglesa, afirmando-se como
uma reação ao iluminismo, o historicismo crê que as questões – política, social, etc. –
são resultantes de processos históricos, que podem ser reconstruídos e compreendidos
pelo homem. Em um determinado sentido, há a ideia, por alguns de seus pensadores, de
que o homem não faz a história, mas sim que a história faz o homem 321. O olhar
historicista do autor de Mimesis é usado como uma forma de olhar a realidade, realidade
essa que só pode ser compreendida através do tempo e, desta forma, compreendida
historicamente.
Utilizando-se dessa premissa, Erich Auerbach afirma que existem estilos de
pensamento: uma forma de pensamento histórico, que busca compreender através de um
pensamento histórico, de um processo histórico; há a relação entre a parte e o todo, onde
321
O termo historicismo foi consagrado pelo historiador alemão Friedich Meinecke em sua obra Die
Entstehung des Historismus, de 1936. Porém o termo já havia sido utilizado por Carl Menger, em 1883,
em algumas críticas sobre alguns membros da Escola Histórica.
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cada parte contém um todo e as partes determinam o todo, frações que formam um
conjunto. Assim, o modo de observar a vida do ser humano e da sociedade humana é
fundamentalmente o mesmo, quer se trate de assuntos do passado ou do presente; uma
modificação do modo de observar a história, necessariamente, se transfere, sem demora,
à observação dos assuntos presentes. [...]; então é de esperar que tais noções sejam
aplicadas à atualidade, de tal forma que também ela apareça como incomparavelmente
particular, movimentada por forças internas e em constante desenvolvimento; quer
dizer, como um pedaço da história, cujas profundezas cotidianas e cuja estrutura interna
de conjunto se tornam interessantes, tanto no seu surgimento, quanto na sua direção
evolutiva322.
Para o autor, há uma busca, a partir das origens, de um final que está pré-definido; um
momento, um fato anterior, que prepara para o posterior, para um destino histórico, para
um realismo relativista. O filólogo enfatiza a ideia de particularidade, da busca a
diferença, de olhar o específico, para o singular, além de uma concepção de que a
história só se conhece a posteriori, só é compreendida na medida em que acontece.
Portanto, a partir dessas conclusões, falar da realidade torna-se legítimo e
necessário. É importante aperceber o que acontece em determinado contexto, em
determinado momento histórico; é necessário e é preciso que se considere o
aparecimento das classes sociais na literatura, dentro produção intelectual. A partir
dessas reflexões há uma mudança no olhar, na percepção e observação atenta do
contexto, da origem do autor, do lugar de onde este fala, das trajetórias, etc.. Para Erich
Auerbach
pode-se comparar este procedimento dos escritores modernos com o que
alguns filólogos modernos que acham que da interpretação de poucas
passagens de Hamlet, Fedra ou Fausto, podem-se obter informações mais
importantes e decisivas sobre Shakespeare, Racine ou Goethe e sobre as suas
épocas, do que a partir de conferências que tratem sistemática e
cronologicamente das suas vidas e das suas obras; o presente trabalho pode
ser tomado como exemplo disso 323.
O texto, deste modo, não é a reprodução exata da realidade, mas sim uma forma
falar da realidade. Para além, a realidade é uma das estratégias de convencimento do
322
AUERBACH, Erich. Mimesis: A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo:
Perspectiva, 2007. p. 395.
323
Ibdem. p. 493.
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autor em relação ao leitor. Na compreensão do texto, temos que observar o contexto, o
autor, sua trajetória, seu estilo, seus lugares de fala. O contexto aparece influenciando o
texto:
Os caracteres, as atitudes e as relações das personagens atuantes estão,
portanto, estreitamente ligados às circunstâncias da história da época. [...]
(também) os escritos autobiográficos, apesar do ‗egoìsmo‘ caprichoso e
errático da sua posição estilística, estão ligados ao político, sociológico e
econômico da época muito mais estreita, essencial, consciente e
concretamente do que, por exemplo, os escritos correspondentes de Rousseau
ou de Goethe324.
Os autores estão inseridos em um mundo social, influenciando e sendo
influenciados pelo mundo em que vivem e por seus pares dentro deste. Há de se pensar
quem fala e de onde fala, não são ideias soltas, não relacionadas, pois as coisas só
ganham sentido em relação umas as outras. Em resumo, realismo é costurar a realidade
de determinada maneira, observando onde e como ela está inscrita em nossa realidade –
social, política, econômica –, e o lugar que ocupa no mundo social.
Ainda em Mimesis, Erich Auerbach procura analisar a realidade e sua influência
na feitura dos textos. O realismo do presente, para o autor, ―mistura estilos e representa
concreta e rigorosamente o polìtico e o econômico‖
325
, enquanto a mistura de estilos
em geral acaba aparecendo em assuntos históricos ou poético-fantásticos. Para o autor, a
partir de determinado momento, juntamente com as mudanças políticas que foram
ocorrendo, no transcurso da época moderna para a contemporânea, pode-se perceber
uma ―procura por aprender imediatamente a realidade prática e fundamentar o caso
particular sobre as circunstâncias gerais‖ 326. Percebe-se assim uma mudança, a partir do
momento em que há a reprodução literária da realidade, quando a realidade apresenta-se
no texto, quando utiliza-se de sua própria experiência nessas produções327.
Em resumo, Erich Auerbach afirma que seu livro trata sobre a interpretação da
realidade através da representação literária ou da imitação (mimesis) e que
o tratamento sério da realidade cotidiana, a ascensão de camadas humanas
mais largas e socialmente inferiores à posição de objetos de representação
324
Ibdem. p. 409.
325
Ibdem.p. 395.
326
Ibdem. p. 391.
327
Ibdem. p.393.
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problemático existencial, por um lado – e, pelo outro, o engarçamento de
personagens e acontecimentos cotidianos quaisquer no decurso geral da
história contemporânea, do pano de fundo histórico agitado – estes são,
segundo nos parece, os fundamentos do realismo moderno, e é natural que a
forma ampla e elástica do romance em prosa se impusesse cada vez mais para
uma reprodução que abarcava tantos elementos.328
No momento em que se estabeleceu, no século XX, o que os críticos e
estudiosos do tema chamam de teatro brasileiro moderno e a dramaturgia produzida na
televisão ganhou espaço nos lares do país329, Dias Gomes foi reconhecido e laureado
como um dos representantes desses movimentos. O dramaturgo foi, durante cerca de
cinquenta anos, um dos autores mais celebrados da dramaturgia nacional. Sua trajetória
pessoal se confunde com a história do teatro moderno e com a expansão da tevê
nacional, com destaque a sua relação com o concomitante crescimento da Rede Globo
de Televisão. Suas produções330 ganharam maior vulto durante os anos da ditadura
militar, período em que também fez a sua transição dos palcos para as telas de tevê.
Dias Gomes nasceu na Bahia, em 1922. Mudou-se com a mãe e o irmão para o
Rio de Janeiro ainda na adolescência – seu irmão veio falecer poucos anos depois – e
escreveu sua primeira peça aos quinze anos. Aos dezoito, começou a escrever para
Procópio Ferreira. Poucos anos depois sai da companhia de Procópio Ferreira e foi
trabalhar em São Paulo, na emissora de rádio de Oduvaldo Vianna (Pai). É nesse
período na capital paulista que filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro, retirando-se
dele na década de 1970. A carreira do dramaturgo ganhou vulto concomitantemente ao
crescimento e a afirmação do Teatro Brasileiro Moderno e sua vertente mais popular.
Em 1964, mesmo com a retomada do seu teatro e o sucesso de suas peças, o
dramaturgo voltou a trabalhar no rádio. Com o golpe em abril do mesmo ano, foi
demitido sumariamente da Rádio Nacional. Sem o emprego da Rádio Nacional, Dias
Gomes procurou outros meios de obter renda durante os cinco primeiros anos de
ditadura. O ano de 1969 foi um marco na carreira de Dias Gomes. O autor de O Santo
328
Ibdem. p. 440.
329
Para uma análise mais aprofundada sobre a televisão e seu alcance no Brasil: HAMBURGUER,
Esther. ―Diluindo Fronteiras: a Televisão e as Novelas no Cotidiano‖. SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.).
História da Vida Privada no Brasil. Contrastes da intimidade contemporânea, vol. 4. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
330
Entre os anos de 1960 e 1980, Dias Gomes escreveu algumas de suas obras mais conhecidas e
reconhecidas como O Pagador de Promessas, O Bem Amado e Roque Santeiro, por exemplo.
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Inquérito passaria então de reconhecido e respeitado teatrólogo a grande escritor de
telenovelas. Em fins dos anos de 1960 para de escrever para o teatro e rompe esse hiato
com a peça As Primícias, composta em 1977. Dias Gomes decidiu parar de escrever
novelas em fins dos anos de 1980, dedicando-se ao teatro e às minisséries televisivas.
Morreu em 1999, em meio à feitura de Vargas, adaptação de sua peça Dr. Getúlio, sua
Vida, sua Glória para a tevê.
A partir de 1980, em suas obras escritas a partir deste contexto, apresentam-se os
dramas, os questionamentos, as possibilidades, as reflexões e as representações do
dramaturgo sobre o processo de abertura da ditadura militar, a redemocratização do país
e a afirmação da chamada ―Nova República‖. Durante esse perìodo passa-se pelo
governo do General Figueiredo; pelas Diretas Já; pela euforia da eleição de Tancredo
Neves e a decepção com sua morte; pelo Governo de José Sarney; pela eleição, governo
e impechamant de Fernando Collor e a subida a presidência do seu vice, Itamar Franco;
e pela eleição e reeleição de Fernando Henrique Cardoso.
Neste novo contexto, onde a militância política e crítica ao governo perderam
espaço, os intelectuais e artistas atuantes do período anterior que tiveram de adaptar-se
às transformações e às novas conjunturas. Se antes da ditadura e durante o regime dos
militares a matéria-prima das produções de Dias Gomes eram a análise e crítica do
governo, o dramaturgo precisou readaptar-se a essas questões. Neste artigo pretende-se
perceber, nesta breve análise da peça Meu Reino por um Cavalo, como suas obras
produzidas pós-1980 exploraram tanto sua busca por um novo espaço nessa sociedade,
quanto tentaram redirecionar o alvo de suas análises e críticas sobre a sociedade em que
vivia.
Ao pensar a mudança do perfil e do papel dos intelectuais e artistas, a partir dos
anos de 1980, não podemos esquecer que as gerações anteriores a esse período
consideravam-se responsáveis, em muitos casos, pela construção da nação. Para eles,
nação e povo eram ideias indissociáveis e a população brasileira era quem garantiria a
unidade nacional. Intelectuais, como Dias Gomes, atuantes durante os anos de 1950,
1960 e 1970, acreditavam em seu papel como intérpretes das massas populares e em seu
auxílio na tomada de consciência de sua vocação revolucionária. Esses intelectuais
eram, em geral, ideólogos de um projeto que primava pelo desenvolvimento econômico,
pela emancipação das classes populares e pela independência nacional. Com as
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mudanças ocorridas no contexto político e social ainda no início da segunda metade do
século XX, começaram as disputas por novos espaços, tanto em relação ao mercado
quanto a sua influência331.
O auge produtivo de Dias Gomes pode ser delimitado entre os anos de 1950 e
1980. Após esse período, sua produção teatral e televisiva irá diminuir
consideravelmente até a sua morte, em 1999. Essa mudança e queda produtiva
aconteceram paralelamente ao fim da ditadura militar, a entrada na Nova República, o
aparecimento de novos atores políticos, sociais e intelectuais, além do fim da chamada
―grande famìlia comunista‖ 332. Há a perda das bases políticas, sociais e econômicas do
comunismo com a queda internacional de seu projeto e, também, no caso do Brasil, com
o fim do Partido Comunista Brasileiro.
As dúvidas e as incertezas de um intelectual na segunda metade da década de
1980. Partindo desta premissa aparentemente simples, Dias Gomes desenvolve a
história de Otávio Santarrita, um teatrólogo que está em meio a uma crise criativa,
intelectual e pessoal. Escrita em 1988 e tendo sido encenada pela primeira vez no ano
seguinte
333
, Meu Reino por um Cavalo traz para a ficção os dilemas e conflitos do
próprio dramaturgo. Antonio Mercado, diretor da primeira encenação da peça, diz que
no final dos anos de 1980, que se a dramaturgia brasileira parecia
debater-se num impasse de criatividade, não há saída senão mergulhar fundo
na crise. Dostoievsky anotava em seu Diário que as vezes é preciso
desesperar-se para que do desespero nasçam novas perspectivas. Em termos
de dramaturgia, isto implica em renunciar as fórmulas consagradas,
questionar os arquétipos teatrais de todos os tempos, repudiar a delimitação
tradicional das categorias estáticas, subverter as regras e as receitas de
construção dramática, na tentativa de inventar um palco adequado à
coreografia fantástica, alucinada e caótica das personagens do nosso tempo.
331
PÉCAUT, Daniel. Os Intelectuais e a Política no Brasil. São Paulo: Ática, 1990.
332
Este termo foi cunhado por Marcelo Ridenti em seu livro Em Busca do Povo Brasileiro. Precisamente,
ele considera que foi um grupo de intelectuais e artistas que, ao longo de várias décadas, especialmente os
anos de 1950, 1960 e 1970, pensou e produziu para um determinado Brasil e utilizou a arte para tal
produção. RIDENTI, Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro: Artista da Revolução, do CPC a Era da
TV. Rio de janeiro: Record, 2000.
333
A peça estreou em 17 de maio de 1988, no Teatro Nelson Rodrigues, no Rio de Janeiro. No elenco,
nomes consagrados como Paulo Goulart, Nicete Bruno e Ângela Leal como as personagens principais.
Contava ainda com Benjamin Cattan, Jandir Ferrari e Kiki Lavigne nos papéis secundários e além de um
elenco de apoio. O diretor dessa versão era Antônio Mercado e música e trilha sonora de Guilherme Dias
Gomes, filho do dramaturgo.
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No fundo, é isso que Otávio Santarrita tenta fazer nesta peça, inspirado por
Dias Gomes – ou vice-versa? 334
Misturando realidade e ficção, buscando produzir tanto uma reflexão para si
como para os leitores e espectadores da peça, Dias Gomes refletiu através da visão de
um intelectual e artista e suas novas vivências a partir da mudança política e social do
país. Concebida na Nova República, em meio ao processo de escrita e outorga da
Constituição de 1988, Meu Reino por um Cavalo relata não só os questionamentos do
teatrólogo fictício, mas também abre caminho para se refletir sobre o contexto vivido no
país nos primeiros anos pós-ditadura militar.
A trajetória de Dias Gomes nos dá elementos para compreender os novos
horizontes e novas escolhas possíveis para um intelectual e artista, que se reconhecia e
era reconhecido como de esquerda no período político anterior, diante do
reestabelecimento da democracia e do novo governo instaurado no país após os vinte e
um anos de ditadura. O texto escolhido traz em suas linhas ponderações sobre a vida
política e social do Brasil.
O enredo central de Meu Reino por um Cavalo gira em torno do escritor teatral
Otávio Santarrita e seu processo de criação de seu novo espetáculo. Porém, ao invés de
escrever uma única peça, está compondo quatro ao mesmo tempo, estando em meio a
um turbilhão de pensamentos e ideias. A sua volta, em uma mistura de realidade e
delírio, giram outras personagens. Duas das principais são Selma Santarrita, sua esposa
a mais de vinte anos e Solange Lopes, que será a protagonista de sua próxima peça e é
sua amante. Além deles, há também sua filha Soninha, de catorze anos, que está
grávida, porém não sabe qual dos três namorados é o pai do bebê; Tavinho, seu filho
mais velho, que está sempre contra o pai e é viciado em drogas; e outros pequenos
personagens que frequentam tanto a realidade de Otávio quanto os seus delírios, como o
Ladrão, o Produtor de sua peça, o Oficial, o Imortal – que visita a sua casa quando o
dramaturgo pretende uma cadeira na Academia -, e o Juiz.
Otávio se vê perdido em meio aos compromissos de trabalho, a falta – ou
excesso – de criatividade na feitura de sua peça, com os conflitos com sua mulher que
levam ao pedido de divórcio, com os problemas com os filhos, com seu relacionamento
334
GOMES, Dias. Meu Reino por um Cavalo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 1989. p. 9. Essa citação se
encontra no prefácio.
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com sua amante, entre outras relações conflituosas com as pessoas que o cercam. Para a
personagem as coisas estão saindo do controle, ―é o caos, o caos que está se instaurando
em volta e dentro de mim‖ 335.
Além de questionar suas relações interpessoais, Otávio pondera sobre o mundo
que em vive, os novos padrões, as coisas que eram e não são mais, as certezas
inabaláveis que caíram por terra. O teatrólogo se questiona durante todo o texto:
OTÁVIO – Será que só eu sou assim? Você. Você não tem dúvidas?
Ninguém tem dúvidas? Todo mundo sabe para onde ir, o que fazer, por que
lutar? Será que todo mundo acorda de manhã, escova os dentes, sai de casa,
sabendo exatamente como ocupar o resto do dia de uma maneira que dê
sentido à sua vida? Houve um tempo em que eu sabia, sim. O mundo era
dividido em dois, preto e branco. Nada de semitons. Os que queriam mudar
tudo e os que não queriam mudar porra nenhuma, Uma linha clara
demarcando os dois campos. Ou se estava de um lado ou se estava do outro.
E o sentido da História nos parecia cristalino. Tínhamos grandes causas,
grandes bandeiras. A campanha do petróleo... a luta pela paz... as Ligas
Camponesas... o CPC... a luta contra a ditadura.336
Os questionamentos do protagonista de Meu Reino por um Cavalo não revelam
apenas os conflitos de um dramaturgo fictício, mas também do próprio Dias Gomes. Há
uma relação intrínseca entre os pensamentos, os conflitos, a trajetória ficcional de
Otávio Santarrita e do autor de Roque Santeiro. Dias Gomes põe na fala da personagem
os seus próprios questionamentos. Em sua autobiografia, o novelista diz que a
identificação de Santarrita, escritor teatral, com o autor da peça era
inevitável. Apesar de muitas dessemelhanças, essa ilação tinha a sua razão de
ser: eu colocara em meu protagonista minha angústia na busca da forma de
retratar um mundo em alucinante transformação, na tentativa desesperada de
adequar o teatro ao mundo para dar-lhe a dimensão do nosso tempo, como já
tentara em Campeões do Mundo. 337
Um dos grandes motes do texto teatral era como se adequar à nova realidade em
que Otávio se encontrava. Para Santarrita, no lugar da luta e das certezas, havia muita
opção e pouca resolução. Ele já não entendia mais como as questões se articulavam, ele
não se encaixava, mas buscava se adequar aos novos tempos. Como diria Dias Gomes,
sua personagem estava baleada pela confusão ideológica do final do século XX 338. Meu
335
GOMES, Dias, Op. Cit, 1989. p. 50.
336
Ibdem. p. 16.
337
GOMES, Dias. Apenas um Subversivo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. p. 343-344.
338
Ibdem. p. 344.
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Reino por um Cavalo expressa os questionamentos e o posicionamento do dramaturgo
fictício e do real diante da nova realidade que se apresentava. A sensação de não
ajustamento ao novo contexto gerou as reflexões que Dias Gomes expos através de seu
alter-ego, Otávio Santarrita.
Nesta breve análise, busquei compreender e analisar, através da influência das
ideias de Erich Auerbach sobre a representação da realidade na literatura, da trajetória
de Dias Gomes e do texto de Meu Reino por um Cavalo, as marcas do contexto político
e social na obra do dramaturgo. Como intelectual do seu tempo, suas produções são
influenciadas pela realidade vivida e percebida por ele. Consideramos que as obras
literárias recebem essas influências, principalmente no caso de autores críticos da
sociedade em que vivem. No caso da obra especifica analisada, as rápidas e intensas
transformações que o país vivia no final da década de 1980 e os dilemas teatrais e
pessoais do autor acabaram por influenciar a obra estudada.
Essas questões são observáveis na literatura, principalmente quando elas afetam
a sua produção. Estes fatores estão apresentados nas linhas de Meu Reino por um
Cavalo: Otávio Santarrita se questiona sobre o que e como escrever neste mundo em
que o próprio autor não se entende e não compreende as rápidas mudanças que
derrubam as certezas anteriores. A relação entre história e literatura abre um campo para
se trabalhar, para além dos aspectos relacionados à trajetória e visão do autor, os pontos
políticos e sociais contemporâneos à produção da obra. Dias Gomes trabalhou com a
visão de um intelectual, de um artista em relação as suas novas vivências a partir da
mudança de realidade política e social do país. Concebidas entre a abertura,
redemocratização e a ―Nova República‖, abrem caminho para uma reflexão sobre o
contexto vivido nos anos pós-ditadura militar.
Dias Gomes representou em sua trajetória e em sua produção os embates, as
contradições, as polêmicas, as críticas, autocríticas e reformulações sobre este – e o seu
– lugar dentro do contexto do país. Essas questões foram vividas tanto pelas esquerdas
brasileiras, quanto pelos intelectuais militantes e atuantes nas décadas anteriores durante
o processo de abertura, redemocratização e durante a democracia plena. O autor era um
membro representativo da ―grande famìlia comunista‖, que também entrou em crise em
fins do século XX.
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Para além, a ideia de que ―cada memória social transmite ao presente uma das
múltiplas representações do passado que ela quer testemunhar. Entre diversos outros
fatores, ela se constrói sob influência dos códigos e das preocupações do presente, por
vezes mesmo em função dos fins do presente‖
339
nos é cara. A memória afeta a
formação das opiniões e visões posteriores do passado. Ela estabelece-se através de
múltiplas representações do passado; passado esse que, por vezes, tem o interesse de ser
construído de uma determinada maneira no presente. A memória, com sua natureza
militante e justiceira que por vezes parece perfeita a partir de seu ponto de vista –,
acentua-se ―ainda mais quando ela se faz portadora de questões ou mesmo de
reivindicações identitárias, [quando] leva a raciocinar sobre o passado em função
unicamente de fins do presente‖ 340.
As modificações nos espaços de atuação abalaram os intelectuais em fins do
século passado, que passaram a conjecturar sobre a natureza dessas transformações.
Houve uma crise de caráter político, ideológico e identitário. Os intelectuais, ligados a
uma determinada cultura política e a campos de forças ideológicas, acabam também
constituindo-se por conta do contexto de uma determinada época e pelas respostas
(ideológicas) obtidas. Assim, ―os grandes embates dos intelectuais ao longo do século
XX simultaneamente refletiram e nutriram as grandes tendências ideológicas que foram
se perpetuando e, ao mesmo tempo, se modificando ao longo de todo aquele século‖ 341.
Os intelectuais, e principalmente os de esquerda, eram dominantes em sua esfera
de influência no Brasil e em outras partes do mundo até a década de 1970. O colapso
dos regimes comunistas na Europa, o retrocesso do marxismo, o início do desgaste de
modelos alternativos de esquerda como o caso da China e Cuba, e da reavaliação da
questão do totalitarismo, fizeram com que essa crise política dos intelectuais começasse
a modificar sua imagem, diminuísse sua influência e credibilidade dentro da sociedade.
339
LABORIE, Pierre. ―Memória e Opinião‖. In: AZEVEDO, Cecìlia; BICALHO, Maria Fernanda
Baptista; KNAUSS, Paulo; QUADRAT, Samantha Viz; ROLLEMBERG, Denise. Cultura Política,
memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009.
340
Ibdem. p. 94.
341
SIRINELLI, Jean-François, ―Os Intelectuais do Final do Século XX: Abordagens Históricas e
Configurações Historiográficas‖. In: AZEVEDO, Cecìlia; BICALHO, Maria Fernanda Baptista;
KNAUSS, Paulo; QUADRAT, Samantha Viz; ROLLEMBERG, Denise. Cultura Política, Memória e
Historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009. p. 48.
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Essas questões também levaram esse grupo a uma crise identitária,
principalmente em razão do surgimento de novos formadores de opinião. Com isso,
―além de ultrapassados pela mìdia, os intelectuais corriam o risco de perder sua
condição de arautos das grandes controvérsias nacionais‖
342
, o que os levou também a
uma crise ideológica. Para ele, homens e mulheres que estavam ligados à mídia foram
alçados ao papel de formadores de opinião, com sua forte presença e manifestações
dentro dos meios de comunicação. Paulatinamente, os intelectuais perdiam os espaços
anteriormente adquiridos e precisam contornar a crise política, identitária e ideológica
que havia se constituído.
Ao trabalhar essa e outras obras de Dias Gomes, o insiro e a seus textos dentro
de um contexto específico. Reflito sobre este artista e intelectual, pensando as nuances
entre texto e autor, personagens e sujeito, obra e contexto. A ideia de que ―é verdade
que o passado humano não é um agregado de histórias separadas, mas uma rede de
ações e relações interdependentes, também é verdade que tal ‗totalidade estruturada‘
permanece indeterminada, constantemente modificada pela atuação dos sujeitos‖
343
,
nos é cara.
Neste artigo, foi essencial compreender a relação entre sua obra, o contexto
político-social em que foi escrita e a trajetória do dramaturgo. Em resumo, Dias Gomes
foi um intelectual que refletiu sobre o momento em que vivia – e apresentava as
contradições de seu tempo. Suas peças são documentos de época. Registram não apenas
um determinado momento político do país, mas, sobretudo, a interpretação deste
momento por um homem, dramaturgo e roteirista, mostrando como a realidade vivida, a
representação do cotidiano sem se tornar cópia, compreendendo as questões políticas,
sociais, e o contexto histórico da produção da obra como propõe Erich Auerbach em
Mimesis.
342
Ibdem. p. 51.
343
CHALHOUB, Sidney; PEREIRA, Leonardo Afonso de Miranda. A História contada: capítulos de
história social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 8-9.
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APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO NACIONAL EM JOSÉ DE
ALENCAR
Aline Rafaela Portílio Lemes344
Resumo:
As discussões a respeito do ―nacional‖ aparecem de maneira determinante na literatura a
partir do movimento romântico. Além disso, o indianismo será considerado um dos
principais temas definidores da nacionalidade. Nossa proposta é realizar apontamentos a
respeito da questão nacional presente na obra de José de Alencar, dando ênfase à
tematização do índio.
Palavras-chave: José de Alencar; Identidade Nacional; Representação do índio.
Abstract:
The national subject appears in a decisive way in literature from the Romanticism.
Furthermore, the Indianism will be considered a major defining subject of nationality.
We intend to indicate some questions about the national subject that appears in José de
Alencar‘s work, stressing the Indian issue.
Keywords: José de Alencar; National Identity; Representation of the Indian.
Se é verdade que a preocupação política central no Brasil pós-independência situava-se
na organização do Estado em seus aspectos político, administrativo e judicial, visando
garantir a sobrevivência da unidade política do país, e que as questões relacionadas à
formação da nação e à redefinição da cidadania só começaram a ser discutidas, no
âmbito político, ao final do período imperial; também é verdade que, após a
consolidação da unidade política em meados do século, o tema nacional surge com força
na literatura345.
Cano346 chama a atenção para a emergência da questão nacional já no momento
da independência política do Brasil. Os acontecimentos do ano de 1820 foram um
divisor de águas, que modificou a veia poética dos cortesãos. Especialmente no ano de
344
Realiza mestrado na Faculdade de Ciências e Letras de Assis/FCLASSIS/UNESP, conta com apoio da
CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e é orientada pelo Prof. Dr.
José Carlos Barreiro. E-mail: [email protected].
345
Cf. CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
346
CANO, Jefferson. O fardo dos homens de letras: o ―orbe literário‖ e a construção do império
brasileiro. Campinas, SP: [s. n.], 2001. (Tese de doutorado).
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1821, ocorre uma rica produção de panfletos anônimos, que têm por tema principal a
Constituição a ser jurada pelo rei após a vitoriosa revolução do Porto. Esses panfletos
apresentavam como violões da história os ―corcundas‖ (ou ―carcundas‖), em oposição
aos constitucionais ou liberais.
Esse debate político não se desenrolava apenas entre corcundas e liberais, mas
também ganham relevo nos folhetos de 1821 outras duas categorias políticas: as de
portugueses e brasileiros.
Ao chamar a atenção para a emergência da questão nacional no momento da
independência, no entanto, Cano não pretende situar esta questão em qualquer nível que
não seja o das divergências políticas e econômicas; nem reduzir os conflitos do período
a uma nacionalidade natural ou pré-existente. Ainda assim, mesmo trabalhos na
contracorrente da historiografia nacionalista apontaram para a existência, desde fins do
século XVIII, de um ―anti-lusitanismo latente‖, que teria como porta-vozes os letrados.
Afinal, como lembra Benedict Anderson, as nações são entidades históricas,
artefatos criados, mas não criados a partir do nada. Parece-nos, assim, que o
caminho percorrido até aqui já deve ser o suficiente para percebermos
algumas linhas mestras que se delineavam nas discussões daquele momento:
por um lado, a construção de uma identidade política do brasileiro, em
oposição à do português e, por outro, a constituição do campo das letras
como uma arena privilegiada da intervenção política, a partir da qual são
pensadas as especificidades desta nacionalidade 347.
Assim, ainda que a literatura panfletária dos anos de 1821/1822 não tenha
refletido um conflito aberto entre portugueses e brasileiros, ela serve como indício de
uma nova identidade que surge na oposição dos interesses desses dois grupos. Ainda
que essa oposição não se apresentasse como identidade política plenamente constituída
como nacionalidade, ela era ―(...) um ponto de partida, uma tendência a ser
desenvolvida neste sentido‖348. Esse debate seria aprofundado pelos homens de letras do
novo império.
O Romantismo será o grande palco onde se desenvolverão as polêmicas entre os
homens de letras imperiais a respeito da nacionalidade. Segundo Campato Júnior 349, é
347
Ibid., p. 127-128.
348
Ibid., p. 145.
349
CAMPATO JÚNIOR, João Adalberto. Retórica e Literatura: o Alencar Polemista nas Cartas sobre a
Confederação dos Tamoios. São Paulo: Scortecci, 2003.
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nesse movimento que a ideia de literatura brasileira adquire plena consciência de
autonomia em relação à portuguesa. Como veremos, a construção de um Estado-nação
brasileiro gerou polêmicas, debates e acirradas divergências – tanto em relação ao que
se considerar nacional como a que medidas tomar a respeito da massa populacional
heterogênea que manejava o território brasileiro.
É sintomático e expressivo dessa discussão a polêmica ocorrida a partir das
Cartas sobre a Confederação dos Tamoios, publicadas por José de Alencar sob o
pseudônimo de Ig. Nessas cartas, Alencar polemiza não apenas sobre o valor da obra de
Domingos José Gonçalves de Magalhães – A Confederação dos Tamoios, de 1856 – no
cenário de literatura nacional, mas também discute a posição que nela ocupa o autor.
Alencar busca apresentar argumentos que desqualifiquem Gonçalves de Magalhães
como chefe da literatura brasileira.
Segundo se deduz, tal lugar de destaque estaria reservado àquele que
compusesse o que Antônio Soares Amora (1977, p. 255) denominou ―epopéia
nacional‖, ideal artìstico que, desde a Geração de 30 do Romantismo
brasileiro, os escritores perseguiam. Tratava-se de uma obra em verso ou em
prosa, de dimensões épicas, que desenvolvesse assunto relacionado à história
brasileira (...) e que tivesse valor simbólico para nossa incipiente literatura,
que, à época, tomava plena consciência de sua autonomia em relação à
portuguesa350.
Tanto Magalhães como Alencar se lançam nesse empreendimento patriótico e
buscam desenvolver, de uma maneira ou de outra, concepções e planos românticos de
nacionalização. A polêmica gerada em torno d‘A Confederação dos Tamoios possibilita
a delimitação de alguns pontos em comum nos programas de nacionalização romântica
dos dois autores; são eles:
(...) a celebração das belezas do meio tropical, a tematização do índio e de
sua cultura, certa aversão à ideologia neoclássica, sobretudo, à mitologia
greco-latina; um interesse para com a história nacional e a consciência da
importância do gênio para a criação artística 351.
Nos ateremos a algumas questões em particular que são interessantes para
debatermos a representação do índio na criação de um romance nacional em José de
Alencar: a descrição da natureza, a tematização do índio e de sua cultura e a linguagem
350
Ibid., p. 11-12.
351
Ibid., p. 54-55.
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utilizada. Silviano Santiago aborda o primeiro ponto numa comparação entre o
romantismo brasileiro e o europeu:
Para nós [brasileiros], a descrição da natureza era parte de todo um processo
de (re) conhecimento em que o artista procurava tornar-se consciente dos
limites pátrios, do que o rodeava mais de perto, da paisagem tropical enfim. E
o que é forma de devaneio para o europeu, possibilidade de evasão (...), é
para nós uma aproximação maior do solo, um desejo de enxergar
objetivamente o que nos cerca352.
A tematização do índio, em segundo lugar, se constitui, para Santiago, como
reação política, social e literária contra Portugal, além de proporcionar um ―retorno à
verdadeira fonte do Brasil‖, signo de brasilidade, sentimento peculiar nosso.
Se para Montaigne era uma faceta da curiosidade humanista, ou ainda uma
peça que utiliza para dar o xeque-mate na Inquisição, se para Anchieta era
uma necessidade para a catequese, se para os viajantes (...) um desejo de
divulgação, se para Rousseau o achado com que, mentalmente, poderia
combater o faraísmo da sociedade parisiense (...), se para Chateaubriand
finalmente uma abertura de fronteiras, o exotismo, - para o romântico
brasileiro é uma bandeira político-social, é nacionalismo. Para o europeu, a
fuga; para nós, a afirmação final. Depois da independência política, a
literária353.
Juntamente com a reação política, a reação filológica. Uma das características
mais marcantes da prosa alencariana é o manejo peculiar da língua portuguesa e a
utilização de modismos brasileiros ou palavras indígenas. É inegável que Alencar
possuísse conhecimentos de tupi-guarani, bem como a ênfase à sua importância para o
escritor brasileiro. Essa ênfase pode ser comprovada pelas notas de rodapé abundantes
principalmente n‘O Guarani (1857). Elas ilustram o anseio do autor em realizar um
retrato verossímil dos costumes indígenas e brasileiros, bem como demonstram a
importância estética que a língua indígena possuía para Alencar.
Assim, podemos afirmar que Alencar possui consciência-estética do processo
que desenvolve. Ele manipula conscientemente duas línguas que possuem uma estrutura
diferente: a indígena, língua aglutinante, isto é, os vários afixos trazem significado
quando se juntam ao formarem as palavras; e a portuguesa, língua flexiva, nas quais os
afixos são meros condutores de conceitos.
352
SANTIAGO, Silviano. ―Alegoria e Palavra em Iracema‖. Luso-Brazilian Review. Madison,
Wisconsin: University of Wisconsin Press, 1965, vol. 2, n. 2, Inverno, p. 56. Disponível em:
http://www.jstor.org/stable/3512622, acesso em 06/06/2013.
353
Ibid., p. 57-58.
197
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Inicialmente, se desejarmos retraçar a gênese deste entroncamento em
Alencar, teríamos de falar do seu ideal (e como todo ideal inatingível) de
―traduzir em sua lìngua as idéias, embora rudes e grosseiras, dos ìndios,‖ e na
tradução necessário é que ―a lìngua civilizada se molde quanto possa à
singeleza primitiva da lìngua bárbara.‖ (p. 185). Seguindo o seu próprio
conselho, foi até a língua bárbara e de lá trouxe uma nova visão, um nôvo
―approach‖ para o problema lingüìstico no romance indianista (...). Criara
palavras, expressões, perífrases, em português, segundo os moldes do tupiguarani. Em outros têrmos, aplicaria o método da criação de palavras duma
língua aglutinante numa língua flexiva 354.
Podemos aprofundar nossas reflexões a respeito da utilização do personagem
indígena na construção de uma identidade nacional se pensarmos, como indica Cano355,
que (para os homens de letra imperiais) a nação, em última análise, só pode ser definida
em função do seu povo.
Ao longo do século XIX, se consolidou uma representação racial do povo
brasileiro. A mescla será vista como uma das marcas desta nova nação. Isso não
significa que esse foi um ponto consensual. Particularmente em relação à história
indìgena, uma opinião expressiva é a de Varnhagen em sua memória ―Como se deve
entender a nacionalidade na história do Brasil‖, que serviu de preâmbulo à sua História
Geral do Brasil antes de sua separação e independência de Portugal, que começou a
publicar em 1854. Para ele, ―a nacionalidade brasileira atual e futura não é neta da
antropofagia que a raça tupi havia trazido à nossa terra‖356. Essa questão, para
Varnhagen, relacionava-se muito mais ao futuro da nação do que ao seu passado, isto é,
implicava uma preocupação em solucionar o que ele via como um dos mais urgentes
problemas nacionais: a população. A heterogeneidade característica da população
brasileira era, para Varnhagen, um problema. A solução para o problema indígena,
especificamente, seria uma guerra civilizatória.
Crie o poeta, que exclusivamente o seja, suas utopias agradáveis; (...) diga
que os conquistadores tupis eram os verdadeiros donos da terra e chegue, se
for capaz, com o canto, a convocar os das matas do Amazonas a virem outra
vez tomar posse da baía de Niterói, como Apolo convocava as feras. (...)
Mais: cante seus heroísmos satânicos, louve sua covarde resignação forçada,
sua indolente improvidência etc.; mas tudo isso, como se costuma dizer, por
mera poesia (...) Porém, como História nacional não; porque a História
nacional deve ser a imagem da verdade histórica apresentada da forma que,
segundo a consciência do historiador, interessa e convém à nação. Por
354
Ibid., p. 61.
355
Op. cit.
356
VARNHAGEN, 1948, p. 236 apud CANO, op. cit., p. 177.
198
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ventura aspiramos nós a ser selvagens? ou a render culto e vassalagem aos
asquerosos sacrifícios da antropofagia?357.
Segundo Mota, nesse período
Uma das preocupações centrais era a questão da delimitação de territórios
fronteiriços, ocupados em larga escala por grupos indígenas. Outra
preocupação era o que fazer com os grandes contingentes populacionais
(grupos indígenas) que manejavam esses territórios, ou vagavam,
perambulavam, infestavam-nos, como se dizia na época. Tais territórios eram
de interesse dos potentados locais, que exigiam que o Estado retirasse deles
os grupos indígenas para deles se apossarem, o que fez com que o Estado
Imperial e os governos provinciais se obrigassem a elaborar políticas
indigenistas especìficas, na tentativa de aldear, ―civilizar‖, e integrar o
indígena na sociedade brasileira 358.
Não podemos generalizar essa opinião. Quando surge a polêmica, em 1856, em
torno d‘A Confederação dos Tamoios, a discussão sobre o papel da história indígena na
história do Brasil já estava solidamente fundada no terreno político. A crítica que
Alencar, no entanto, era antes de mais nada relacionada a incapacidade de Magalhães
para atingir a estatura poética que o assunto pedia, e não sobre o uso da história
indígena para tanto. Pelo contrário, como vimos, o indianismo será, para Alencar, um
elemento determinante na configuração da literatura nacional.
A tentativa, por Alencar, de encontrar uma solução literária para esta questão
veio a público no ano seguinte, não na forma de uma epopéia, mas de um
romance, O Guarani, publicado em forma de folhetins no Diário do Rio de
Janeiro. Talvez para fugir às críticas que viam como pura fábulas, e além do
mais pouco nobres, as tentativas de associar o povo brasileiro aos bárbaros
botocudos, Alencar enriqueceria seu romance de inúmeras notas de rodapé,
onde explicitava a fundamentação histórica de sua narrativa 359.
Assim, aparece Peri, o herói retratado como representante de uma raça pura, não
degenerada. Peri, ao atacar a tribo dos aimorés, distancia-se dos ―brutos antropófagos‖
contra os quais se debate.
Enfim, um caráter tão nobre quanto o deste índio, que fugia à fascinação dos
sentidos, seria um par à altura da virgem fidalga; e de fato, ao fim do
romance, Peri e Cecília seriam os únicos sobreviventes desta história. No
entanto, o desfecho do romance não resolve uma tensão existente entre dois
finais possíveis, nenhum do dois claramente apresentados ao leitor. Os
sobreviventes do ataque aimoré enfrentam desta vez uma enchente, vagando
sobre as águas agarrados a uma palmeira. Um dos finais possíveis é então
357
Ibid., p. 178
358
MOTA, Lúcio Tadeu. ―A Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e as
populações indígenas no Brasil do II Reinado (1839-1889). Diálogos. Maringá: DHI/PPH/UEM, 2006, v.
10, n. 1, p. 120, grifos do autor.
359
CANO, op. cit., p. 187.
199
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sugerido por Peri, que narra a Cecília o mito indígena do Tamandaré, espécie
de Noé guarani, que sobrevive ao dilúvio junto com sua companheira
abrigando-se sobre uma palmeira; quando as águas do dilúvio baixam,
Tamandaré e sua companheira povoam a terra. O outro final, bem diferente, é
Cecília que sugere, quando responde confiante à sentença de Peri – ―Tu
viverás!‖ – apelando para a esperança de vida em outro mundo: ― – Sim?...
viveremos!... lá no céu, no seio de Deus, juntos daqueles que amamos!‖ E
nem o próprio narrador consegue decidir entre o melhor desfecho, preferindo
deixar ao leitor a opção entre o gozo da vida eterna e o gozo de povoar a
terra360.
Podemos notar certa ―diferenciação generalizante‖ entre ―tipos de ìndio‖ feita
por Alencar. Isto é, à primeira vista temos Peri: o índio servo, escravo obediente de sua
senhora Cecília, que possui todas as virtudes possíveis aos indígenas: coragem,
lealdade, graça, força e inteligência. Virtudes incultas, no entanto, como apresenta o
próprio Alencar361. Em contraponto, temos os bárbaros Aimorés: um ―(..) povo sem
pátria e sem religião, que se alimentava de carne humana e vivia como feras, no chão e
pelas grutas e cavernas‖362. Há, porém, uma terceira diferenciação. Se Alencar mostra
simpatia ao representar Peri, expoente dessa ―raça inculta‖ que, porém, apresentava
certas virtudes, ele adverte logo no começo do livro, em note de rodapé:
(...) o tipo que descrevemos é inteiramente copiado das observações que se
encontram em todos os cronistas. Em um ponto, porém, variam os escritores;
uns dão aos nossos selvagens uma estatura abaixo da regular; outros uma
estatura alta. Neste ponto preferi guiar-me por Gabriel Soares que escreveu
em 1580, e que nesse tempo devia conhecer a raça indígena em todo o seu
vigor, e não degenerada como se tornou depois363.
Portanto se, pensando em Iracema de 1865, podemos supor que a tendência de
Alencar fosse, ao finalizar O Guarani, optar pela solução do Tamandaré, sugerindo que
os filhos de Peri e Cecília – cruzamento de duas raças nobres – seriam os povoadores
desta terra; por outro lado, a participação indígena na construção nacional se restringiria
a esse passado. Em Iracema, que possui uma estrutura muito mais simplificada e caráter
explicitamente alegórico, essa postura de Alencar se torna clara:
Neste sentido, o filho de Iracema e Martim será ―o primeiro cearense‖, e o
próprio nome de Iracema, que Alencar traduz num tupi todo seu como
―lábios de mel‖, mal disfarça um anagrama de América. Iracema era assim a
alegoria do mundo virgem conquistado, fecundado e, de certa maneira,
360
Ibid., p. 189-190.
361
ALENCAR, José M. O Guarani. 25ª. Ed. São Paulo: Editora Ática, 2001, p. 28.
362
Ibid., p. 76.
363
Ibid., p. 27, grifos nossos.
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também destruído pela civilização, já que deste contato só sobrevivem o
europeu, imutável ao longo do romance, e o seu filho, símbolo da nova raça,
mas não Iracema/América, virgem que acolhera ao primeiro e gerara o
segundo. Esta fora de fato aniquilada, e o que se via ao fim da história era já
um mundo novo que, apesar de sua origem e natureza próprias, pertencia
definitivamente à civilização, pois que então a ―jandaia cantava ainda no olho
do coqueiro; mas não repetia já o mavioso nome de Iracema. Tudo passa
sobre a terra.‖ [cap. 33]364.
Considerações finais
A ideia para nosso estudo surgiu da aparente contradição, também apontada por
Treece365: a representação heroica e idílica do índio dentro do indianismo romântico a
as políticas de extermínio a que os mesmos foram submetidos durante a maior parte da
história do Brasil pós-1500. Para Treece, a situação de marginalização a que os índios
estão submetidos até os dias de hoje contradiz sua representação harmônica no
imaginário da construção do Estado-nação brasileiro. Ou seja, para o autor tal quadro
representa o ―(...) registro medonho de que os estados-nação não nascem
espontaneamente por livre e boa vontade dos progenitores, mas ganham forma e
existência apenas à força de porretadas cruéis‖366.
Nesse quadro, a postura de Alencar, ao defender o papel positivo do índio na
formação nacional, pode parecer a princípio contraditória com sua figura de político
conservador escravista. Tanto parece contraditória que existe uma lacuna na obra de
Alencar que se tornou popular: a ausência de suas Cartas à favor da escravidão. Estas
cartas foram excluídas das coletâneas de obras completas do autor, ―(...) na provável
tentativa de expurgar sua memória artística de uma posição moralmente insustentável
para os padrões culturais hegemônicos desde o final do século XIX‖ 367. Parron368 elenca
quatro argumentos nos quais se baseava a defesa da instituição do cativeiro:
1) Cultura e raça: o trabalho escravo serviria para civilizar e moralizar os povos
―bárbaros‖.
364
CANO, op. cit., p. 191.
365
TREECE, David. Exilados, aliados, rebeldes: o movimento indianista, a política indigenista e o
estado-nação imperial. Trad. Fábio Fonseca de Melo. São Paulo: Nankin: Edusp, 2008.
366
Ibid., p. 13.
367
PARRON, Tâmis. ―Introdução‖. In: ALENCAR, J. Cartas a favor da escravidão. Organização Tâmis
Parron. São Paulo: Editora Hedra, 2008, p. 9. (Série Escola da Cidade).
368
Ibid.
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2) Questão político-social: o cativeiro não se constituía numa violência contra a
vida, sendo argumento incorreto a afirmação da baixa reprodução vegetativa
dos cativos. Se havia redução no número dos mesmos, isso seria decorrente
de ―escoamentos naturais‖, isto é, a alforria concedida pelo senhor, da
remissão e do ventre-livre.
Assim, entendia-se que o sistema escravista brasileiro guardava direitos
inalienáveis do homem (como o da propriedade e do casamento) e regulava a
inserção gradual dos escravos na sociedade livre. Não havia exemplo de
sociedade escravista na América, argumentavam eles, mais integrada do que
a imperial. Qualquer medida que precipitasse o processo de reinserção dos
cativos afro-descendentes na sociedade brasileira provocaria grandes abalos
sociais369.
3) Economia:
a
escravidão
tinha
por
missão
garantir
o
equilíbrio
macroeconômico dos cofres públicos e das riquezas nacionais. Para os
defensores do cativeiro, ―(...) todos os Estados da América que tinham
prescindido do trabalho escravo sofreram um processo de involução
econômica, social e polìtica‖370.
4) Identidade nacional: o cativeiro contribuía para a formação da identidade
nacional brasileira.
(...) estadistas a favor da instituição recorriam ao diploma de 1824 para
mostrar que ela abastecia o Brasil, mediante a alforria, de novos cidadãos.
Num passo adiante da polêmica, Alencar glorificava a densidade cultural
originária da mistura dos povos, atribuindo sua possibilidade ao comércio
negreiro e sua realização gradual à escravidão 371.
Assim, Alencar efetuou – provavelmente de maneira inédita e única em toda a
América oitocentista – uma defesa da escravidão baseada na mistura cultural dos povos.
A partir desses pontos, é possível compreender de maneira mais clara sua produção
artística. Já nos anos de 1857 e 1860, Alencar produziu duas peças teatrais, do gênero da
Comédia Realista – O demônio familiar e Mãe, respectivamente –, nas quais empregou
uma série de expedientes estéticos que imitavam a fala dos cativos.
Na mesma época, o escritor vinha desenvolvendo um projeto literário ousado
e sui generis, cuja plenitude alcançou em Iracema (1865), romance máximo
do indianismo no Segundo Reinado. Tanto no corpo da obra como no
369
Ibid., p. 27.
370
Ibid., p. 27.
371
Ibid., p. 28.
202
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posfácio de 1865, Alencar sustentou a idéia de que, além dos temas
indígenas, o aporte lingüístico dos nativos dava à língua e à literatura do
Brasil traços vigorosos que as distinguiam do português falado e escrito na
Europa. Após a Guerra Civil nos EUA, porém, à medida que o assunto da
escravidão penetrou com força a esfera pública, Alencar estendeu às falas dos
negros sua teoria da literatura nacional372.
Superando o aparente paradoxo inicial, o caráter revolucionário em letras e
conservador na polícia – repetida antítese de José Veríssimo sobre Alencar – não se
configura como uma oposição real. ―No problema do cativeiro, as letras revolucionárias
serviram perfeitamente à tribuna conservadora‖373.
372
Ibid., p. 30.
373
Ibid., p. 31.
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MÚSICA E POLÍTICA EM ANGOLA (1940-1980) 374
Amanda Palomo Alves375
Resumo:
O presente artigo objetiva enfatizar algumas reflexões sobre a música produzida em
Angola, durante as décadas de 1940 a 1980. Os registros fonográficos analisados até o
momento nos permitem acompanhar as transformações nos conteúdos das letras das
canções que abordam temas como cultura tradicional, resistência, luta anticolonial e a
construção de um novo nacionalismo, proposto pelo governo socialista do Movimento
Popular de Libertação de Angola (MPLA), no pós-independência.
Palavras-chave: Angola; musicalidade; luta anticolonial; MPLA.
Abstract:
This article aims emphasize some reflections about the music produced in Angola
during the decades from 1940 to 1980. The phonograph records analyzed to date allow
us to track the changes in the contents of the lyrics of the songs that cover topics such
as: traditional culture, resistance, anti-colonial struggle and the building of a new
nationalism, proposed by the socialist government of the Popular Movement for the
Liberation of Angola (MPLA), in post-independence.
Keywords: Angola; musicality; anticolonialism; MPLA.
O artigo que ora apresentamos objetiva destacar os primeiros resultados de nossa
pesquisa sobre a música produzida em Angola, entre as décadas de 1940 a 1980. Em um
primeiro momento, salientamos que a nossa proposta aponta para a possibilidade e
viabilidade em tratarmos a canção como uma fonte importante na pesquisa histórica.
Compreendemos a música como uma manifestação capaz de traduzir nossas múltiplas
identidades culturais, constituindo uma das formas de preservação da memória coletiva
e nos auxiliando nas leituras e interpretações sobre a sociedade. Observamos que a
trajetória dos músicos angolanos (do período supracitado) é singular e o conteúdo
expresso nas letras das canções interpretadas e compostas por eles oferece visibilidade
para questões como a luta pela descolonização e o nacionalismo em Angola, ou seja, é
uma produção fortemente influenciada pela história política do país.
374
Pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
375
Doutoranda em História - Universidade Federal Fluminense (UFF). Orientador: Dr. Marcelo
Bittencourt Ivair Pinto. E-mail: [email protected]
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Sabemos que durante muito tempo, os países africanos foram reféns de uma
historiografia eurocêntrica, que escrevia a história a partir de relatos dos
colonizadores376. Os estudos acerca da África lusófona se fortalecem a partir dos anos
1960 devido à difusão das lutas de libertação nacional em todos os territórios do sistema
colonial português e entre as décadas de 1960 e 1980 muitas análises acerca do espaço
africano lusófono foram realizadas fora dele, ou seja, por cientistas sociais
estadunidenses, ingleses, alemães, franceses, portugueses, canadenses, italianos, belgas
e brasileiros. Ao pensarmos na produção acerca da musicalidade em Angola,
verificamos que são raros os estudos que se dedicaram ao tema377. Todavia, a análise
das fontes e literatura que tivemos acesso até o momento nos permitem perceber que a
música popular angolana passou por diferentes fases, sobretudo, entre os anos quarenta
e oitenta do século XX. Notamos, ainda, que as manifestações de ordem políticomusicais decorreram, sobretudo, em função das históricas lutas contra o colonialismo.
Angola foi colônia de Portugal até 1975 e sua luta anticolonial possui
importantes características no cenário africano, como a produção literária de protesto,
denúncias escritas por intelectuais, diferentes e divergentes movimentos sociais e
políticos de luta pela liberdade, greves, desobediência civil e, também, a musicalidade.
Em relação aos movimentos culturais empreendidos, jovens intelectuais começaram a
conscientizar parte da população dentro das raras possibilidades legais existentes e são
nos centros urbanos que nascem - através de jornais escritos por intelectuais africanos as primeiras denúncias do modo violento com que se impôs a dominação colonial.
Durante os anos 1940 e 1950 jovens angolanos se reuniam em Lisboa com
demais estudantes das colônias de Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé
e Príncipe a fim de formarem organizações que combatessem o jugo colonial e em prol
da independência. Em 1951 surge em Lisboa o Centro de Estudos Africanos (CEA), que
376
Carlos Serrano relata que tais descrições eram feitas, predominantemente, por estrangeiros e nenhuma
destas pesquisas permitia uma visão objetiva sobre o significado de ser africano no contexto da luta pela
libertação e conquista da independência dos povos africanos. Em sua obra ―Angola: nascimento de uma
nação‖, o autor realiza uma análise sucinta das pesquisas efetuadas na área de ciências humanas que se
referem à África lusófona (Angola: nascimento de uma nação: um estudo sobre a construção da
identidade nacional. Luanda: Edições Kilombelembe, 2008, p. 61-77).
377
Cumpre ressaltarmos que este cenário começa a se modificar a partir de 2008 com a publicação da
obra Intonations: a social history of music and nation in Luanda, Angola, from 1945 to recente times, da
historiadora estadunidense Marissa J. Moorman.
205
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reuniu os principais futuros líderes dos movimentos pela descolonização das colônias
portuguesas: Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Mário de Andrade. O governo
salazarista pôs fim às atividades do centro, mas não findou os encontros daqueles
estudantes que deram continuidade à luta politica anticolonial na Casa dos Estudantes
do Império (CEI), através de uma intensa atividade cultural de reabilitação do
patrimônio histórico e cultural angolano. Um dos objetivos do grupo era recuperar o
patrimônio nacional, relegado pelas autoridades coloniais ao esquecimento, por meio da
fundação de revistas e jornais culturais378. Em 1948, jovens intelectuais urbanizados e
de origem pequeno-burguesa de Luanda começaram a se expressar através da literatura,
buscando reivindicar os valores culturais negados pelo colonialismo. Esses jovens se
reuniram num movimento cultural denominado ―Vamos descobrir Angola!‖ e grande
parte dos textos que produziam era publicada na revista ―Mensagem‖
379
, editada pela
Associação dos Naturais de Angola (ANANGOLA). Tem-se, então, uma nova fase de
reivindicações urbanas, baseadas na valorização da cultura africana. Importante ressaltar
que nem a revista e nem o movimento possuíam um programa político de luta contra as
autoridades coloniais, mas foram importantes enquanto elementos mobilizadores e de
conscientização daqueles que futuramente iriam encabeçar a luta anticolonial. O poeta
Viriato Cruz, um dos mentores do movimento, explica:
O movimento deveria retomar o espírito combativo dos escritores africanos
dos fins do século XIX e dos princípios do atual. Esse movimento combatia o
respeito exagerado pelos valores culturais do Ocidente; incitava os jovens a
redescobrir Angola em todos os seus aspectos através de um trabalho coletivo
e organizado; exortava a produzir para o povo; solicitava o estudo das
modernas correntes culturais estrangeiras, mas com o fim de repensar e
nacionalizar as suas criações tidas como positivas e válidas; exigia a
expressão dos interesses populares e da autêntica natureza africana, mas sem
que se fizesse nenhuma concessão à sede de exotismo colonialista. Tudo
deveria basear-se na inteligência, na vontade, na razão e no senso estético
africano380.
378
BITTENCOURT, Marcelo. ―Angola: tradição, modernidade e cultura polìtica‖. In: REIS, Daniel A.;
MATTOS, Hebe; OLIVEIRA, João P.; MORAES, Luís Edmundo S. e RIDENTI, Marcelo (orgs).
Tradições e Modernidades. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2010, p. 134.
379
A revista ―Mensagem‖, criada em 1951, foi a primeira tentativa de maior expressão na busca pela
reabilitação dos valores angolanos.
380
CRUZ, Viriato apud SERRANO, op.cit., p. 134.
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Laura Cavalcante Padilha381 argumenta que durante os anos 1950 começa a
ganhar força tudo aquilo que traz o traço da alteridade angolana. Segundo a estudiosa,
literatura e construção da nacionalidade são as duas faces de uma mesma moeda.
Nascem, ao mesmo tempo, a moderna literatura, a consciência da nacionalidade e a luta
pela libertação, sendo difícil separar os processos estético e histórico que estabelecem
entre si significativas interfaces, mesmo depois da independência. O contexto histórico,
a situação sócio-política e a expressão literária angolana são, portanto, aspectos
profundamente imbricados e os escritores dessa fase buscaram criar uma literatura
diferenciada dos moldes europeus, como explica Alfredo Margarido:
Se Viriato da Cruz adopta muitas vezes estruturas poéticas portuguesas, é
para as violentar, ao impor-lhes uma construção angolana. A mudança não é
somente temática no sentido de que ele tenta encontrar uma construção
especificamente angolana no interior das estruturas da poética portuguesa. O
recurso ao quimbundo, assim como às deformações fonéticas do português,
não são uma tentativa folclórica ou populista mas a busca duma semântica
angolana382.
O mais importante em apreendermos e registrarmos deste período é que a
ligação entre as associações culturais e a movimentação política foi o caminho possível
para se buscar a conscientização e a organização necessárias para o início do combate
ao colonialismo.
Em relação ao cenário musical, uma fase importante se dá entre décadas de 1940
e 1950, onde compositores e intérpretes recuperaram elementos do regionalismo. Neste
contexto de reivindicação, a produção musical do grupo ―N‘gola Ritmos‖, formado em
1947 pelo músico Liceu Vieira Dias, foi salutar. Um dos objetivos era preservar a
cultura angolana e, assim, compunham e interpretavam em kimbundu383 com a intenção
de elevar a cultura dos seus antepassados e estabelecer uma relação entre o campo e a
cidade. Em entrevista à jornalista Milonga Santos, Amadeu Amorim, ex-integrante do
―Ngola Ritmos‖, enfatizou o papel desempenhado pelo grupo e a reação das pessoas
quando ouviam os intérpretes cantando em língua nacional: ―quando cantávamos em
381
PADILHA, Laura C. Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século XX.
Niterói: EDUFF, 1995, p. 138.
382
MARGARIDO, Alfredo. Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua portuguesa. Lisboa:
A regra do jogo, 1980, p. 339.
383
Neste período, canções foram interpretadas em quase todas as línguas locais angolanas, mas o
kimbundu foi predominante.
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kimbundu, as pessoas viravam a cara meio envergonhadas, chamavam-nos os
mussequeiros. Parecia mal falar kimbundu; quem o falasse era considerado atrasado,
gentio‖
384
. A fala de Amorim nos remete a pensar que desde os princípios da
colonização, a colônia foi dividida em dois campos extremamente distintos e desiguais:
a sociedade colonial e a sociedade colonizada. Carlos Serrano e Kabengele Munanga 385
explicam que os conquistadores tiveram de legitimar seus empreendimentos, chamandoos de ―missão civilizadora‖, uma espécie de dever moral que o homem branco tinha
para levar o progresso e as vantagens da civilização aos povos conquistados, por eles
chamados de ―selvagens‖ e ―primitivos‖. A natureza violenta da conquista, somada ao
caráter de dominação, levou o colonialismo a negar e destruir permanentemente as
identidades culturais e nacionais dos vencidos. Ao estabelecer divisões entre
―indìgena‖386, ―nativo‖ ou
―assimilado‖ o colonizador prescreve categorias de
identidade e define o caráter da relação de si próprio com os que estão na situação de
dominados. Tal segregação facilitou a perseguição aos movimentos de libertação e aos
movimentos culturais que ansiavam valorizar a cultura nativa. Esta repressão gerou um
preconceito contra a língua e os ritmos musicais, então vistos como sinais de uma
cultura não civilizada.
Dada a dificuldade em transmitir as canções através do rádio ou da televisão, o
―Ngola Ritmos‖ se apresentava para amigos em aniversários, festas e espetáculos no
Bairro Operário, local onde a banda foi formada. Neste contexto, os musseques387 foram
espaços fundamentais. ―Musseque‖ é um termo originário do kimbundu e significa
―lugar de areia‖. O crítico musical angolano Jomo Fortunato388 explica que os
384
SANTOS, Milonga. Entrevista – ―Amadeu Amorim: a herança do N‘gola Ritmos deve ser
preservada‖. In: Casa de Angola, s/d. Disponível em:
http://www.casadeangola.org/arquivo/Cronicas/NGOLARITMOS/ngola.html. Acesso em março de
2012.
385
SERRANO, Carlos; MUNANGA, Kabengele. A revolta dos colonizados: o processo de
descolonização e as independências da África e da Ásia. São Paulo: Atual, 1995, p. 3-7.
386
A decisão portuguesa em avançar de fato com o projeto colonial em Angola implicou na elaboração de
uma legislação para dar conta desse processo, que envolveu a classificação e delimitação dos espaços
mais amplos da sociedade colonial angolana. Surgem, assim, os ―civilizados‖ e os ―indìgenas‖, africanos
não ―assimilados‖ que, na avaliação das autoridades coloniais, não dominavam os códigos culturais
europeus.
387
Musseques são bairros pobres com casas feitas, geralmente, de papelão e lata.
388
FORTUNATO, Jomo. ―Processo de formação da música popular angolana‖. Jornal de Angola. 19 de
outubro de 2009. Disponível em:
208
VIII Semana de História Política
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musseques seriam espaços de transição entre o universo rural e a cidade, um
―laboratório‖ de canções que iria absorver as expectativas do ambiente da cultura
urbana. As letras sinalizavam as experiências vividas no cotidiano, como a perda de
pessoas queridas, problemas no trabalho e a precariedade das residências. As canções
compostas e interpretadas por músicos desta fase voltavam-se para problemas sociais,
políticos e, também, para o sofrimento que os habitantes dos musseques vivenciavam
como pudemos notar na composição de Luiz Visconde, ―Chofer de Praça‖:
Mandei parar um carro de praça
Ancioso em ver meu amor
Chofer de praça então reclamou
Quando eu lhe disse que meu amor morava no subúrbio:
―Tempo chuvoso no subúrbio, não vou
Pois sou chofer de praça, não barqueiro‖
Então emplorei: ―Peço senhor chofer leve-me por favor
Ela não tem culpa de morar no subúrbio
Enquanto a chuva é obra de natureza‖389.
Outro importante momento da música popular angolana acontece a partir dos
anos sessenta do século XX, período em que o processo de descolonização é
desencadeado em toda a África. Em 1960, conhecido pela literatura que trata do tema
como o ―ano da África‖, dezoito ex-colônias proclamaram a independência no
continente. Apesar da tentativa das forças repressoras do regime português em evitar a
penetração dessa influência nas regiões africanas sob seu domínio, o clima de
efervescência era pulsante. Neste período há o predomínio de canções políticas de perfil
―brigadista‖. As letras abandonam as sutilezas das crônicas cotidianas que retratavam as
injustiças sociais, passando a acusar diretamente os portugueses e os seus aparelhos
repressores. De acordo com Teles de Menezes Júnior390 era um momento de intensa
mobilização em que todos tinham que dar a sua contribuição à causa da independência.
Os registros fonográficos disponíveis através do Brasil nos permitem perceber
que grande parte das composições se destinava ao apoio aos guerrilheiros, em particular,
àqueles vinculados ao Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). As letras
http://jornaldeangola.sapo.ao/17/35/processo_de_formacao_da_musica_popular_angolana. Acesso
em abril de 2012.
389
LUÍS VISCONDE. ANGOLA 60‘s (1956-1970). Buda Musique, s/d.
390
JUNIOR, Carlos Teles de Menezes. O nacionalismo musical angolano. Monografia defendida no
Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Rio de Janeiro, 1998, p.
16-17.
209
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revelam as influências político-ideológicas de alguns compositores inspiradas no
marxismo, matriz ideológica adotada pelo movimento. Constatamos, ainda, que o
grande alvo de crítica são os colonialistas e os partidos políticos que possuíam
orientações ideológicas diferenciadas. A produção de artistas como David Zé 391 e
Urbano de Castro392 é representativa deste contexto. As letras sinalizam um ―elo‖ entre
o movimento libertador e o povo, acusam a metrópole e os movimentos antagônicos e
fazem ―propaganda‖ em favor do MPLA, com mensagens que mostram diretamente a
orientação ideológica do movimento.
Com a emancipação política e o comando do país a cargo do MPLA, a partir de
novembro de 1975, observamos o início de outra fase na música angolana. As canções
deste período refletem um perfil panfletário, de caráter ideológico e legitimador do
partido dirigente. As letras exaltam a força do povo angolano, denunciando os perigos
do imperialismo. Os versos comunicam, também, a necessidade da construção de um
projeto nacionalista em torno das propostas culturais, cuja característica seria, entre
outras, a mitificação dos combatentes mortos. Em outras palavras, a música popular se
tornou uma das ferramentas de legitimação política e ideológica do MPLA e da
construção de um projeto nacional para Angola. Neste contexto, destacamos o álbum
―Angola Ano 1‖, gravado em 1975 por Carlos Lamartine393. O disco contém doze faixas
e, dentre elas, ―Faço-te este apelo camarada‖, composta e interpretada por Lamartine:
391
David Zé nasceu em vinte e três de agosto de 1944, em Kinfangondo, e em 1966 conheceu Urbano de
Castro, fato que o influenciou a ingressar na carreira musical. Assim como grande parte dos cantores e
compositores angolanos, sobretudo os que fizeram carreira no período colonial, David Zé abordou em
suas canções fatos e experiências vividas por ele, destacando os conflitos sociais e a valorização dos
costumes nacionais. Na fase final de sua carreira, compôs um número considerável de canções de cunho
polìtico, como ―A luta continua‖, e ―Mwangolé‖ (FORTUNATO, Jomo. ―Músico David Zé: a lenda da
canção‖. Jornal de Angola. 03 de janeiro de 2011. Disponível em: http://jornaldeangola.sapo.ao/. Acesso
em abril de 2012).
392
Urbano de Castro iniciou sua carreira, cantando sambas, boleros, merengues e sembas. Em 1970, aos
vinte e nove anos de idade, aderiu à revolução anticolonial e neste mesmo ano foi preso pela PIDE. A
canção ―Angola liberté‖, editada em single, é desta época e teve um grande efeito mobilizador
(FORTUNATO, Jomo. ―Angola: o percurso musical de Urbano de Castro‖. Jornal de Angola. 16 de
janeiro de 2012. Disponível em:
http://jornaldeangola.sapo.ao/17/0/o_percurso_musical_de_urbano_de_castro. Acesso em março de 2012.
393
Politicamente engajado, Carlos Lamartine fez parte de uma geração de músicos que elegeu como
princípios básicos de criação artística a exaltação da história política de Angola, a liberdade, a
independência e a defesa dos valores culturais do país. O artista começou a sua carreira em 1956, com o
grupo "Kissueias do Ritmo" e entre os anos 1974 a 1977 sua obra ficou conhecida pelo grande público
através de canções como: "Ene", "Ó dipanda mondo tulha ki‖, "Sucateou mil ela ia niquele-la",
―Quimbembe‖, ―Pala kl nu abessa ó muxima‖, ―Etu tuana ngola tua solo kiá‖ e ―Ene ando builé‖.
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Faço-te este apelo camarada
Para te fazer ver a razão
Que o povo quer independência total
Onde não há ricos nem pobres
Nem escravos nem patrão
Este povo demais escravizado
Pegou em armas pra se libertar
Da opressão e da exploração
Do imperialismo internacional
Camarada sei que sentes no sangue
O apelo deste teu camarada
Abandone o tribalismo
Avante a Revolução!
Abandone o regionalismo
Avante a Revolução!
Vem pro seio do MPLA
Vem pro seio do povo angolano
Avante a Revolução
Pelo poder popular394.
A escuta da canção de Lamartine nos suscita duas questões: o didatismo
revolucionário e o fato de que esta fase nacionalista se opõe à primeira, de exaltação do
regionalismo para se chegar ao nacional. Várias destas canções ajudaram, também, a
edificar o culto aos heróis nacionais. Tal ―mitifação‖ (na acepção de Roland Barthes) se
desenvolveu pela ação em recuperar e reafirmar personagens históricos, como a rainha
Nzinga e demais personagens que lutaram durante o processo de libertação de Angola.
É o caso de ―Hoji Ya Henda‖, ―N‘Gangula‖ e ―Deolinda‖, tìtulos de faixas do álbum
―Glória eterna aos nossos heróis‖395, cuja produção teve um efeito mobilizador numa
época em que os principais movimentos de libertação disputavam, entre si, a conquista
pelo poder em Angola.
Após a independência, em 1975, a atuação de conjuntos musicais como o
―Kissanguela‖, teve um papel primordial. O ―Kissanguela‖ foi constituìdo em 1974, em
Luanda, pela seção cultural da JMPLA 396. O objetivo principal do grupo era servir de
veículo transmissor das orientações e estratégias políticas do MPLA. A discografia do
grupo é constituída pelos álbuns ―Vitória Certa‖, ―Agrupamento Kissanguela‖, ―Rumo
ao Socialismo‖ e ―Progresso, disciplina, produção, estudo‖ - títulos que revelam o
compromisso político e partidário do conjunto, assim como as capas dos álbuns. ―Hoje é
394
CARLOS LAMARTINE. Angola Ano 1. CDA. Angola, 1975.
395
SANTOCAS. Glória eterna aos nossos heróis. Discoteca Pólo Norte. Angola, s/d.
396
Juventude do Movimento Popular de Libertação de Angola.
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dia de Revolução‖ é uma composição gravada pelo grupo e interpretada por El Belo.
Seus versos informam:
Hoje é dia de Revolução
Hoje eu canto para Revolução
Revolução nas Américas
Na Ásia
Na África
Oh, África!
África mãe-pátria
Conquistada pelo mundo imperialista
Servir a Revolução não é ser racista
Nem tribalista
Nem oportunista
Mas é como consolidar o internacionalismo proletário
Hoje é dia de Revolução 397.
Enfim, ao concluirmos este breve artigo, salientamos que a escuta atenta dos
registros fonográficos do ―Kissanguela‖ e demais músicos citados neste texto, assim
como a leitura de vários periódicos, têm nos feito refletir muito sobre os significados de
música política que, em português, pode adquirir diferentes nomenclaturas: canção
política de intervenção, canção de resistência, hino libertário, canção subversiva, arte de
combate, música engajada ou, ainda, canção progressista. Este tipo de produção musical
tende, no geral, para questionamentos dos sistemas sociais e políticos estabelecidos e
sua condição se dá pelo contexto social que a incorpora e a identifica 398. Os diversos
modos de contestação de um processo de dominação (como o colonialismo em Angola)
visam a transformação da sociedade e figuram como uma importante forma de
identidade e resistência. As canções compostas e interpretadas por músicos angolanos,
entre as décadas de 1940 a 1980, nos levam a depreender que uma organização musical
não ocorre e nem se estabelece num vazio temporal e espacial, pelo contrário, a
preferência no uso de determinados elementos da linguagem musical está associada à
visão de mundo do compositor e do intérprete. Nestes termos, é preciso atentar para as
peculiaridades presentes no processo de criação de uma canção, que envolve uma
realidade histórica específica.
397
AGRUPAMENTO KISSANGUELA. CDA, Luanda, s/d.
398
IKEDA, Alberto T. Música política: imanência do social. Tese. Escola de Comunicações e Artes –
ECA/USP. Universidade de São Paulo, 1995, p. 11-17.
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INFANTAS DE BRAGANÇA: PRINCESAS NA POLÍTICA DA PENÍNSULA
IBÉRICA
Ana Carolina Delmas399
Resumo:
As filhas de D. João VI tiveram suas biografias esquecidas pela historiografia. Além da
reconstituição de suas trajetórias, busca-se compreender sua importância no contexto
político brasileiro e da Península Ibérica, procurando esclarecer de que forma se fizeram
presentes e deixaram suas marcas nas relações e na política desses países. Tal estudo
visa contribuir com as historiografias brasileira e portuguesa, através de novos usos e
possibilidades das biografias, que vem reconquistando seu espaço por meio dos
enfoques da Nova História Política.
Palavras-chave: Biografias - Família Real Portuguesa - Política Ibérica
Abstract:
The biographies of King John VI´s daughters remain forgotten by historiography.
Besides the reconstruction of their trajectories, we try to understand their importance in
both Brazilian and Iberian politics, seeking to enlighten how they made their marks in
the relations and politics of these countries. This study aims to contribute to both
Brazilian and Portuguese historiography, through new uses and possibilities of
biographies, which have been reclaiming their space through the approaches of New
Political History.
Keywords: Biographies - Portuguese Royal Family - Iberian Politics
As atividades de pesquisa que desenvolvi desde a graduação tem entrado em contato
direto com o universo das biografias, inclusive minha dissertação, acerca das
dedicatórias impressas da Impressão Régia. Ao me debruçar sobre a bibliografia
produzida sobre D. João VI e demais membros da Família Real, bem como em sua
correspondência particular e outros documentos, deparei-me com personagens cujas
trajetórias eu desconhecia. São notórias as peripécias dos príncipes D. Pedro I e D.
Miguel, e, no entanto, mesmo os historiadores do período têm dificuldade em lembrar
todos os nomes das seis infantas, e seus feitos estão longe de serem reconhecidos. Para
grande parte da historiografia seu envolvimento com a política passou despercebido,
como se nenhuma interação com o contexto em que viveram tivesse ocorrido. Nos
levantamentos que desenvolvi acerca do que foi produzido sobre a vida dessas infantas
399
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da UERJ, sob orientação da prof. a dr.a
Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves.
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de Portugal, deparei-me apenas com quatro obras, três portuguesas. Sobre a vida da
filha mais nova de D. Carlota Joaquina, o Instituto Dom João VI, de Lisboa, publicou
em 2006 A Infanta D. Ana de Jesus Maria Infanta de Portugal - Marquesa de Loulé,
por Francisco de Vasconcelos. As demais obras são do historiador português Ângelo
Pereira: As senhoras infantas filhas de El-Rei D. João VI e Os filhos de El Rei D. João
VI. E ainda uma obra espanhola, La Princeza de Beira y los hijos de D. Carlos, escrita
em 1928 pelo Conde de Rodezno.
Quem melhor define a importância do estudo e conhecimento da história das
infantas de Portugal é o próprio dono da documentação sobre elas, uma coletânea de
cartas inéditas das princesas. O Marquês do Lavradio escreveu para a primeira obra um
charmoso prefácio de apenas duas páginas, intitulado "Duas Palavras", e é com algumas
dessas palavras românticas que apresento uma descrição inicial de:
"D. Maria Teresa, casada duas vezes com Infantes de Espanha, a grande
animadora das guerras carlistas, intransigente com os princípios liberais e
que, como a Duquesa de Berry, pos toda a sua atividade na defesa do
chamado princípio de legitimidade;
D. Maria Isabel Francisca, Rainha de Espanha, cuja prematura morte tão
sentida foi no país vizinho;
D. Maria Francisca de Assis, a turbulenta primeira mulher do Infante Carlos
de Espanha;
D. Isabel Maria, Regente do Reino pela morte de D. João VI e dirigente do
primeiro Ministério Constitucional;
D. Ana de Jesus, a linda Marquesa de Loulé, cujo amor por seu pai ressalta
de todas as suas cartas;
D. Maria da Assunção, que, vitimada pelo tifo em Santarém, desapareceu no
mesmo dia em que seu noivo, o jovem Conde de Redondo, vitima igualmente
da epidemia que grassava nas hostes miguelistas." 400
Tais personagens, carentes de biografias, são objeto de meu projeto de
doutorado, que busca começar a suprir o silêncio que as cerca. A história das infantas
portuguesas se confunde com o contexto de Portugal e Brasil que se estende do final do
setecentos ao oitocentos, e também da Espanha do século XIX. O estudo tem seu marco
inicial com o nascimento da filha mais velha de D. João e D. Carlota Joaquina: D. Maria
Teresa, princesa da Beira, no ano de 1793. O corte cronológico permite acompanhar as
mudanças ocorridas durante o período em que viveram, terminando com a morte da
400
PEREIRA, Angelo. As senhoras infantas filhas de El-Rei D. João VI. Lisboa: Editorial Labor, 1938.
s.n.p
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última das irmãs, D. Isabel Maria, em 1876; dessa forma é possível acompanhar as
trajetórias de todas em seu contexto mais amplo.
O estudo acerca das infantas filhas de D. João e D. Carlota Joaquina serve à
historiografia não apenas para desvendar mais sobre a própria história das princesas,
mas para compreender o contexto do mundo Ibérico e do Brasil que habitaram. A
construção e análise de suas biografias permitirão entender a cada uma, a seu papel
dentro das famílias reais a que pertenceram, e ao mundo que as cercava. Uma pesquisa
que pode render bons frutos não apenas para os historiadores e acadêmicos, mas para o
público leitor em geral, que tem se mostrado ávido por leituras afins.
Todas as seis infantas nasceram em Portugal, apenas alguns anos antes da vinda
da Família Real para o Brasil, entre 1793 e 1806. Sua história começa com a troca das
infantas, o casamento cruzado entre os príncipes de Portugal e Espanha em oito de maio
de 1785. Do João casou-se com D. Carlota Joaquina; e por sua vez D. Mariana Vitória,
irmã de D. João, casou-se com D. Gabriel Carlos, filho de D. Carlos III da Espanha. O
primeiro casal passou a residir em Portugal, e o outro na Espanha. Afirma a
historiografia que para D. João e D. Carlota o primeiro encontro trouxe uma
considerável decepção. A infanta tinha apenas dez anos, e somente oito anos mais tarde
nasceria a primogênita do casal, D. Maria Teresa401. Antes dessa data, em 1788,
faleceram D. Mariana Vitória e seu marido, deixando dois filhos: D. Pedro Carlos e D.
Carlos Maria Isidro, que se casariam com duas das filhas de D. João.
O nascimento da filha mais velha, D. Maria Teresa, foi um alívio para Portugal,
que viveu sob a tensão da falta de herdeiros durante alguns anos. Ainda que D. João não
fosse o primeiro na linha sucessória de D. Maria I, e nem fosse o rei desejado por
muitos, os frutos de seu casamento espantaram a sombra de uma nova União Ibérica.
Tendo seu irmão D. José falecido sem herdeiros, o nascimento da infanta D. Maria
Teresa alguns anos após o matrimônio afastou alguns temores do povo português. A
continuação da casa de Bragança abrandou as intensões de Madri de dominar Portugal,
401
CALMON, Pedro. O Rei do Brasil: Vida de D. João VI. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio
Editora, 1935. pp. 35-37.
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mesmo que este ainda estivesse altamente ligado à Espanha. 402 Tal sentimento pode ser
observado em uma das homenagens impressas publicada em Lisboa por ocasião do
régio nascimento:
―VI
As funestas imagens da Discordia,
Que a Lisia amedrontavam,
Dicipa Astro Brilhante
Formado pelo Ceo que tudo gera:
Portugal já respira,
Era Carlota toda a nossa esperança,
Gloria dos Reis, do Reino Segurança.
(...)
Assim, bella Princeza,
Tu foste quem á Patria consternada
Deste a Próle feliz, tão suspirada.
(...)
Ella com sabia Mão de seus Thesoiros
Tirou hum‘Alma nova,
Fazendo aos Lusos Povos,
O mais Rico Presente que dar pode:
Tal he, Princeza Augusta,
O Real digno Fructo que nos deste,
Pois á Patria com Elle a paz trouxeste.‖403
Mas D. João e D. Carlota contribuiriam ainda mais para a linha sucessória da
dinastia de Bragança. Ainda antes da virada do século nasceu D. Maria Isabel Francisca,
em 1797. O contexto turbulento dos anos de 1800 a 1807 foi ambiente para o
nascimento das demais quatro infantas: D. Maria Francisca (1800); D. Isabel Maria
(1801); D. Maria da Assunção (1805) e D. Ana de Jesus (1806). Entre os avanços de
Napoleão e as dúvidas sobre ceder às suas exigências ou enfrentá-lo com o auxílio dos
ingleses, as idéias de D. Rodrigo de Souza Coutinho, futuro Conde de Linhares,
acabaram vencendo. A transferência da corte portuguesa para o Brasil ocorreu em 29 de
novembro de 1807. A Família Real saía do porto de Lisboa dividida entre os navios da
esquadra para garantir sua sobrevivência, e a infanta D. Ana de Jesus não havia
completado um ano de vida.
Os treze anos entre o desembarque de D. João em Salvador em 1808 e seu
retorno a Portugal em 1821 foram intensos. Dentre as mudanças nos rumos da política,
402
COSTA, Fernando Dores & PEDREIRA, Jorge. ―Capìtulo 1: Nascimento e Juventude de D. João
(1767-1788)‖ e ―Capìtulo 2: Uma inesperada regência (1789-1799)‖ In: D. João: um príncipe entre dois
continentes. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
403
Ode ao feliz parto da Serenissima Senhora D. Carlota, princeza do Brasil &c. &c. &c. / por * * *.
Lisboa: Typ. Nunesiana, 1793. pp. 7-9.
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as indecisões entre permanecer ou partir, e acontecimentos como a Revolução de
Pernambuco e a Revolução do Porto, D. João acreditou em uma reconstituição dos
poderes anteriores à Europa de Napoleão. Portugal buscou entre 1814 e 1816 estreitar
relações com outras Cortes européias, principalmente através da política de casamentos
(D. Pedro casou-se com D. Leopoldina da Áustria, e as infantas D. Maria Isabel e D.
Maria Francisca de Assis com o Rei da Espanha D. Fernando VII e o Infante D. Carlos
Maria Isidro, respectivamente.404
Ao mesmo tempo, a recusa de D. João de retornar à Europa e a opinião corrente,
nos círculos do poder no Rio de Janeiro, de que era preferível conservar-se como uma
potência no Novo Mundo do que se sujeitar à condição de satélite de terceira ordem da
Inglaterra, na Europa, demonstravam o desejo da Corte de se enraizar na América. O
Império luso-brasileiro, contudo, não respirava total tranqüilidade. Mas as turbulências
da segunda década do oitocentos culminaram com o regresso de D. João VI a Portugal,
deixando o Brasil imerso em um período de instabilidade e de incertezas políticas que
antecederam sua Independência.
Cerca de um ano após o retorno a Lisboa e de um período turbulento, D. João e
D. Miguel assinaram a primeiro de Outubro a Constituição requerida pelas Cortes de
Lisboa. Apesar de jurada a Constituição e de instaurado um regime liberal, o período
que se seguiu não foi de calmaria. O ano de 1823 assistiu à Vilafrancada, revolução
absolutista liberada pelo infante D. Miguel e apoiada por D. Carlota Joaquina com o
intuito de provocar a abdicação de D. João e dar espaço para o governo de D. Miguel e a
restauração do absolutismo. No entanto, a insurreição de Vila Franca foi sufocada pela
reação de D. João VI. A Rainha D. Carlota e seus partidários não desistiram de seus
planos, e um ano mais tarde houve nova revolta, a Abrilada, que acabou por resultar no
exílio do infante D. Miguel. E cinco anos após sua volta para Lisboa, em 10 de março
de 1826, D. João faleceu.405
Sua morte deixou espaço para uma querela sucessória pela coroa portuguesa
entre os filhos D. Pedro e D. Miguel, e para o envolvimento das princesas com essas
404
PEREIRA, Angelo. Os filhos de El Rei D. João VI. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1946.
P. 147.
405
CALMON, Pedro. O Rei do Brasil: Vida de D. João VI. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio
Editora, 1935. pp. 286-322.
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questões. As infantas envolveram-se diretamente nos acontecimentos do Brasil,
Portugal e Espanha, principalmente D. Maria Teresa e D. Maria Francisca. A primeira
casada com o primo D. Pedro Carlos, ficaria viúva apenas dois anos após o matrimônio
(1810-1812), voltando em 1821 para Portugal com a corte. Porém seu tempo de
permanência e de seu filho, D. Sebastião em Lisboa foi pequeno, uma vez que a
princesa conseguiu autorização para ir viver na corte espanhola com seu filho e garantir
seus direitos como herdeiro dos Bourbon. Na mesma corte residiam D. Maria Francisca,
seu marido D. Carlos Maria Isidro e filhos. Juntas, as infantas passaram a exercer
grande influência sobre o rei, tio e cunhado, D. Fernando VII. Envolveram-se nos
acontecimentos políticos da Península Ibérica, tendo sido defensoras do movimento
carlista, e apoiado vigorosamente as ações de D. Miguel contra seu irmão D. Pedro.
Com a morte de D. Fernando VII, a derrota de D. Miguel e a Convenção de
Évora-Monte, D. Maria Teresa, D. Maria Francisca, seu marido e filhos partiram para o
exílio na Inglaterra. D. Sebastião, já casado, não os acompanhou. Ainda no Reino Unido
faleceu D. Maria Francisca, e D. Maria Teresa e os sobrinhos seguiram para Salzburg.
Ao mesmo tempo o movimento carlista atingiu seu auge, e D. Sebastião aderiu à luta,
bastante influenciado pela mãe. Esta manteve sempre correspondência com o cunhado,
e no auge da luta de D. Carlos e seu exército, foi realizado o casamento dos dois em
Granada, em 1838. Após a morte de D. Carlos. D. Maria Teresa se recolheu em Trieste,
vivendo praticamente isolada até seus oitenta anos, encerrados no ano de 1874.406
Além dos dois casamentos acima citados, outras infantas tiveram enlaces ligados
a alianças políticas. D. Maria Isabel Francisca casou-se com Fernando VII, tendo
vivenciado um turbulento casamento de apenas dois anos, interrompido por sua morte
em 1818. Há indícios de que D. Maria da Assunção teria se interessado pelo Marquês de
Loulé, mas acabara apaixonada e de casamento marcado com o penúltimo filho do
Marquês de Borba. No entanto o matrimônio nunca fora realizado: ambos faleceram de
febre tifoide em Portugal, aparentemente no mesmo dia, tendo sido sepultados juntos na
mesma igreja. Favorita de D. Carlota, D. Ana de Jesus Maria teve um casamento
turbulento com o Marquês de Loulé. Há registros de que mais de uma vez pedira ao pai
D. João para morar com ele na Quinta da Boa Vista, alegando que a mãe a maltratava.
406
PEREIRA, Angelo. As senhoras infantas filhas de El-Rei D. João VI. Lisboa: Editorial Labor, 1938.
pp. 43-59, 73-101.
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No ano de 1827 ocorreu o matrimônio, e houve comentários de que teriam recebido a
visita dos Marqueses de Lorna e de Fronteira apenas alguns dias depois. Estes teriam
sido recebidos pelas notícias do nascimento da primeira filha do casal, e de seu batizado
algum tempo depois. Tiveram três filhos, mas após alguns anos, tendo vindo morar no
Brasil e retornado a Europa juntamente com D. Pedro I, o casal se separou. Algumas
reconciliações de aparências não impediram que a infanta terminasse a vida em Roma,
morta por antraz e septicemia, sem o marido (que faleceria em 1875).407
A terceira infanta, D. Maria Isabel, foi escolhia pelo pai para assumir a regência
de Portugal após sua morte. Aparentemente, não aceitou com bom grado a regência,
pois mesmo pedindo conselhos a D. Pedro e justificando-se em correspondências por ter
assumido a posição de governante de Portugal, declarou em carta a um eclesiástico:
―so o que lhe digo he que dezejo quanto antes ficar no canto de huma caza
comendo humas sopas do que Governar pois de dia e de noite não tenho
senão desgosto e o que me conserva he amizade ao Mano Pedro e ver
também o danno que rezultaria nestas [ ] circunstancias tanto à Nação como
aos (pg.) direitos do Mano Pedro, são só estes motivos e nenhums outros‖ 408
Ainda assim, Isabel Maria foi regente entre 1826 e 1828, quando entregou o
comando do país ao irmão, D. Miguel. Foi exilada por este acusada de conspirar com D.
Pedro, e no entanto não foi recebida no Paço pela cunhada viúva D. Amélia para que
morasse com ela e a sobrinha. Nunca se casou, tendo doado quase tudo o que tinha para
a Igreja. Realizou várias visitas a Roma, todas mal vistas pelos portugueses. Teria se
arrependido do apoio a D. Pedro no fim de sua vida, e deixado o que lhe restava para D.
Miguel através do reitor do Seminário dos Inglesinhos. Não sem antes garantir o futuro
de um suposto filho ilegítimo cujos descendentes seriam conhecidos até meados do
século XX. Foi a última filha a falecer, com setenta e cinco anos, em 1875.
Como se pode perceber, as trajetórias das infantas de Portugal foram permeadas
de acontecimentos e envolvimentos com o cenário político da Península Ibérica, capazes
de despertar o interesse para pesquisas que esclareçam o que realmente ocorreu e o que
é mera especulação histórica. De fato, é interessante observar a riqueza de fatos e
eventos na vida de personagens tão negligenciadas pela historiografia. Faz-se necessário
407
PEREIRA, Angelo. As senhoras infantas filhas de El-Rei D. João VI. Lisboa: Editorial Labor, 1938.
pp. 63-70 141-148, 152-175.
408
Arquivo do Museu Imperial de Petrópolis, ref: I-POB-16.01.1826-IM.P.c
219
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descobrir mais acerca de suas trajetórias, para que seja possível uma análise destas em
meio ao contexto ao qual pertencem, e seu papel nesse cenário político. Muito mais que
apenas assegurar alianças políticas através de seus casamentos, algumas participaram
ativamente dos principais acontecimentos políticos da primeira metade do oitocentos.
Como é possível então permanecer sem conhecer melhor suas histórias?
Muito além de meros joguetes políticos nas mãos dos pais, desempenhando seus
papéis na política de alianças através de casamentos, essas princesas envolveram-se com
as questões concernentes as relações entre Brasil e Portugal, e principalmente entre
Portugal e Espanha. Tiveram voz na escolha de seus maridos, mudaram de corte para
proteger os direitos dos filhos, foram exiladas, regentes, tomaram partido e lutaram
ativamente nos problemas de sucessão dinástica entre D. Pedro e D. Miguel, e também
na corte espanhola. Suas vidas foram muito mais significativas do que se tem acreditado
até então, sendo ricos objetos de estudo ainda inexplorados que podem elucidar muitas
questões do contexto do Brasil e da Península Ibérica no oitocentos.
O envolvimento das infantas com as questões das casas de Bragança e de
Bourbon foi além de mera figuração enquanto consortes em uma política de casamentos
para assegurar alianças. No caso de D. Maria Teresa, as ações políticas foram ainda
maiores que as de seu marido (mesmo considerando o breve tempo de vida de D. Pedro
Carlos). Outro ponto é o envolvimento de algumas das seis infantas envolveram-se
diretamente com os acontecimentos políticos das primeiras décadas do oitocentos, tendo
a maior parte delas um papel mais relevante para o cenário cultural e político do que a
historiografia lhes atribuiu até hoje. Independentemente de não haverem sido educadas
para governar, desempenharam funções políticas e intimamente ligadas com os rumos
das dinastias portuguesa e espanhola.
As histórias das seis infantas são mais ricas do que se tem registrado e divulgado
até então. Envolvem cumprimento de seus deveres enquanto infantas de Portugal e
membros da casa de Bourbon, mas também escolhas que privilegiavam não apenas o
dever indicado por seus pais, como também suas personalidades e vontades. Além
disso, foram protagonistas de intrigas palacianas ricas em detalhes que envolvem
diversos outros personagens da história do século XIX, de amores e tragédias. E
excetuando-se D. Maria Isabel Francisca, por sua morte repentina após tão pouco tempo
como Rainha de Espanha, as cinco infantas dividiram-se em dois grupos distintos, se
220
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considerarmos sua postura política. D. Maria Teresa, D. Maria Francisca e D. Isabel
Maria atuaram ativamente nas questões políticas ibéricas - mesmo com opiniões
divergentes. Por sua vez, D. Ana de Jesus e D. Maria da Assunção parecem nunca ter se
envolvido com a política. A partir de um levantamento mais minucioso dessas posturas
políticas, a análise destas pode nos mostrar a identificação de "culturas políticas"
distintas dentro de uma mesma família.
Juntamente com essas hipóteses, busco investigar os motivos do apoio de D.
Maria Teresa e D. Maria Francisca ao mano Miguel em detrimento ao mano Pedro, uma
vez que o primeiro conspirara contra o pai. Quais seriam as motivações políticas por
trás desse apoio? Um exemplo do caráter forte dos registros epistolares das infantas é o
trecho da carta enviada por Maria Teresa a D. João em 29 de novembro de 1825.
Desejando votos de boa saúde e melhoras em sua perna, a princesa da Beira envia
notícias de Madri, e recrimina D. Pedro I:
"(...) Agora peço a V. M. que me desculpe, o não pôr no sobrescrito a V.M. o
Titulo de Imperador, pois nos disseram que sem que El Rey reconhece-se a
V.M., como Imperador não o devia-mos fazer, essa hé a razão porque assim o
fasso, V.M. apezas de injustiça q. me faz de duvidar da minha fidelidade, p. a
com V.M., não deicha de conhecer q. eu sempre tenho tido por V.M. todo o
amor, e respeito que devo, não o digo por gabar-me, pois nisso, só tenho feito
o meu dever, e por tanto seguro a V.M. q. m.to estimaria a ver V..M
Imperador, não como o hé, mas sim com todo aquelle decóro q. corresponde
a Augusta Pessoa de V.M. (...) confeço a V.M. que me horrorizou ver em
hum artigo do Tratado que o mano Pedro diz, q. anui a q. V.M. uzes do
Titulo de Imperador q. desgraça meu senhor ser Tratado deste modo por hum
Filho! Por q. Deos destinou a V.M. p. a sofrer, e assim espero q. lhe dará
forças p.a resistir e triunfar, pous como hé summam. te justo, não ajudará hum
filho rebelde."409
Da mesma forma, apurar se D. Isabel Maria realmente esteve ao lado de D.
Pedro em sua empreitada para retomar a coroa portuguesa, e os motivos que levaram a
cair em desgraça com a cunhada, D. Amélia. Apesar do projeto não ter foco em uma
questão de gênero, é interessante observar qual o grau de influência deste em suas vidas,
em suas escolhas. Juntam-se aos questionamentos iniciais do projeto, perguntas
suscitadas pelo trabalho de Natalie Zemon Davis 410, cuja principal contribuição para
meu enfoque foi o de fugir à tradição historiográfica de afirmar que mulheres de seu
tempo sempre se assemelhavam. É preciso reconstituir as trajetórias das princesas para
409
Arquivo do Museu Imperial de Petrópolis, ref: I-POB-29_11_1825-MT.c
410
DAVIS, Natalie Zemon. Nas margens : três mulheres do século XVII. Tradução de Hildegard Feist.
São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
221
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conhecer a fundo suas características e peculiaridades, para somente depois identificar
semelhanças e diversidades. Investigar suas redes de relacionamento, com quem
conviviam, e analisar de que forma suas vidas se diferenciavam das dos homens que as
cercavam, e em que pontos se assemelhavam. Sendo assim, por último, ao menos no
presente momento, antes de uma reconstituição mais precisa de suas vidas, fica a
questão acerca de em que aspectos se rebelaram, e em que aspectos corroboraram com
as tradições que as cercavam.
Para compreender a profundidade e importância das biografias das infantas, é
preciso distanciar-se de uma historiografia que buscou redimir a figura de D. João VI
em relação á má fama que lhe atribuíram os ventos da República. Ângelo Pereira
divulgou fontes de valor inestimável aos historiadores e pesquisadores, mas suas
tentativas até mesmo sentimentais de enaltecer o Príncipe Regente e Rei direcionaram
seu foco às emoções de D. João, acentuando ainda mais a imagem de Sancho Pança
desenhada por Oliveira Lima411. Ao passo que a maior parte da historiografia enxerga
maquinações políticas e segundas intenções perversas em D. Carlota Joaquina, resta ao
monarca a imagem de bonachão de bom coração. Somente nos últimos anos vem se
resgatando suas razões políticas e as habilidades que, a despeito de estar entre as
exigências inglesas e as investidas de Napoleão, mantiveram-lhe a coroa na cabeça.
Com relação ao sobrinho, D. Pedro Carlos, é comum encontrarmos referências a
um amor paternal por parte de D. João, e uma antipatia quase infantil de D. Carlota
Joaquina. As razões para que o primeiro quisesse o casamento do sobrinho com a filha
D. Maria Teresa, e que a mãe repudiasse a ideia parecem residir nesses sentimentos.
Deixa-se de lado o fato de D. Pedro Carlos ser o trunfo de D. João para assegurar o
domínio platino, roubando de D. Carlota a chance de ser regente dos domínios
espanhóis na América.412 Não por acaso ou por simples elogio, D. João nomeou D.
Pedro Carlos Almirante General da Marinha em 1808, cargo criado exclusivamente para
o sobrinho e com a pretensão de que ninguém mais o ocupasse.413 Sendo assim,
411
LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
412
AZEVEDO, Francisca Nogueira de. ―Capìtulo 4: Diamantes para Montevidéu‖ In: Carlota Joaquina n
Corte do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003.
413
Arquivo do Museu Imperial de Petrópolis, ref: I-POB-13.05.1808-JVI.P.d
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percebe-se que o incentivo ao matrimônio não se ateve aos motivos afetivos, mas serviu
também a propósitos políticos. Ainda encontra-se em investigação a escolha de D.
Maria Teresa em agradar ao pai, a quem servia de braço direito, ao invés de sua mãe.
O trabalho de construção e análise biográfica tem como fontes um grande
volume de correspondências encontrado em diferentes acervos. Aproveitando o fato de
que o estudo da correspondência recentemente ganhou importância e destaque como
fonte histórica, busca-se realizar uma análise da correspondência que não traz apenas
informações indiretas, uma vez que a maioria das cartas foi escrita, enviada pelas
princesas, constituindo sua correspondência ativa414. Além disso, são fontes não apenas
os documentos relativos à vida das princesas, mas também com um conjunto de fontes
que evidenciem o contexto em que viveram, os ambientes que habitavam, os indivíduos
com quem conviviam415. Fontes oficiais, como a Gazeta do Rio de Janeiro e a Gazeta de
Lisboa, além de outros periódicos do período; e obras saídas dos prelos da Impressão
Régia, contratos de casamento, decretos, relações de despachos, avisos e obras de cunho
laudatório serão analisadas diante de um cuidadoso conteúdo teórico metodológico que
parte da História Política renovada, passando pela revalorização das biografias e pelo
estudo das culturas políticas.
Partindo então de tais pressupostos teóricos, e tendo como objeto biografias
ligadas tanto ao campo do cultural quanto ao do político, a pesquisa sobre das filhas de
D. João VI e D. Carlota Joaquina não se atem a um resgate de trajetórias, ou um simples
encadeamento linear de fatos. É intuito conjugar o contexto histórico e político,
biografias e acontecimentos ligados a um período de circulação e transição de idéias
para compreender toda uma época. Este projeto se propõe investigar os diversos
aspectos que concernem as vidas de D. Maria Teresa; D. Maria Isabel Francisca; D.
Maria Francisca de Assis; D. Isabel Maria; D. Maria da Assunção e D. Ana de Jesus:
sua importância em seu ambiente familiar, que se confundia com o ambiente político,
suas ações e suas representatividades na história do Brasil, de Portugal e da Espanha;
ultrapassando as significações sociais e estendendo-se aos âmbitos cultural e político.
414
FERREIRA, Marieta de Moraes. "Correspondência Familiar e Rede de Sociabilidade". In: Angela de
Castro Gomes (org.). Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2004. pp. 242255.
415
LEVILLAIN, Philippe. ―Os protagonistas: da biografia‖. In René Rémond (org.). Por uma História
política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Editora FGV, 1996. pp. 152-155.
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CARTAS PARA PORTINARI: A RELAÇÃO DO PINTOR COM ARTISTAS,
INTELECTUAIS E POLÍTICOS DA BUROCRACIA VARGUISTA
ENTENDIDA ATRAVÉS DA SUA CORRESPONDÊNCIA (1920-1945)
Ana Carolina Machado Arêdes416
Resumo:
Este trabalho almeja entender como Portinari se relacionou com interlocutores que
gravitavam em torno da burocracia varguista, através da análise do seu acervo de
correspondências. Tal documentação revela como o artista atuou neste ambiente,
confeccionando trabalhos e organizando exposições de pintura no Brasil e no exterior,
assim como demonstra sua inclinação artística, sua concepção política e a maneira como
lidava situações cotidianas. As cartas revelam como o pintor tecia, aprofundava e
mantinha suas amizades através da troca epistolar.
Palavras-chave: Cartas, Portinari, Estado.
Abstract:
This work aims to understand how Portinari correlated with interlocutors who gravitated
around varguista bureaucracy, through the analysis of his collection of correspondences.
This documentation reveals how the artist participated in this environment, crafting
works and organizing painting exhibitions in Brazil and other countries, well as
demonstrates his artistic inclination, his political conception and how dealt everyday
situations. The letters reveal how the painter wove, deepened and kept his relationships
through the epistolary exchange.
Key-words: Letters, Portinari, State.
Este trabalho objetiva tratar das correspondências do acervo pessoal do pintor Candido
Portinari enquanto fonte e objeto da pesquisa histórica. O recorte cronológico adotado
compreende o período de 1920 a 1945. Na década de 1920, Portinari inicia sua carreira
como pintor no Rio de Janeiro, matriculando-se na Escola Nacional de Belas Artes. Daí
se destaca como pintor no cenário nacional, estabelecendo uma poderosa rede de
amizades, que está ligada intimamente ao governo Vargas, em especial ao regime
conhecido como Estado Novo, que se inicia em 1937 e tem fim em 1945.
Para a historiadora Ângela de Castro Gomes a utilização das correspondências
como fonte historiográfica é relativamente recente no Brasil. O interesse pela ―escrita de
416
Mestranda em História - Universidade Federal de Ouro Preto; [email protected];
Orientador: Prof. Dr. Valdei Lopes de Araujo ; Co-Orientador: Prof. Dr. Marcelo Santos de Abreu
224
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si‖ que abarca diários, cartas, biografias ou autobiografias, independentemente de serem
memórias ou entrevistas de história de vida, por exemplo, tem crescido
substancialmente nos últimos anos.417
Em paralelo ao uso deste tipo de documentação como fonte histórica, os
historiadores desenvolveram novas metodologias e categorias de análise, com a
finalidade de enfrentar a dimensão subjetiva destas fontes. Neste ínterim, a pretensão da
busca pela verdade na fonte histórica foi colocada em pauta, deveria ser encarada como
o ponto de vista e/ou de vivência do autor do documento. O pesquisador deveria ter em
mente que a ―escrita de si‖ assumiria a subjetividade do seu autor como dimensão
integrante da sua linguagem, que deixaria nela a ―sua‖ verdade.418
Gomes sustenta que entre os tipos de ―escrita de si‖, o uso das epìstolas por
historiadores tem se destacado, tanto como fonte histórica quanto como objeto de
estudo. Tal como as outras práticas da ―escrita de si‖, as cartas constituem,
simultaneamente, o sujeito e seu texto. Contudo, as missivas guardam uma
particularidade, já que têm um destinatário, com quem se estabelece uma relação. Sendo
assim, a troca epistolar implica uma interlocução entre quem escreve e quem lê.419
O filósofo Michel Foucault, que analisou a correspondência como uma ―escrita
de si‖, afirma que a missiva é um texto destinado a outrem, mas também dá lugar ao
exercício pessoal. A carta enviada atua, pelo próprio gesto da escrita, sobre aquele que a
envia, assim como atua, pelo exercício da leitura e da releitura, sobre aquele que a
recebe. Quem escreve ―deixa-se ver‖, ―revela-se‖ ao destinatário. De certa maneira,
quem escreve cartas se faz presente a quem as recebe, um tipo de presença simbólica,
quase física. O exercício epistolar não deve ser encarado como uma via de mão-única, já
que se configura em um quadro de trocas: de conselhos, opiniões, resoluções de
problemas cotidianos, pedidos, entre outros.420
417
GOMES, Ângela de Castro. (org.) Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2004. pp.7-8.
418
Idem. p.15.
419
Idem. p.19.
420
FOUCAULT, Michel. A Escrita de si. In: O que é um autor? Lisboa: Passagens, 1992.
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Quando se trata, como no caso desta pesquisa de uma troca epistolar entre um
círculo de artistas e intelectuais, a epístola pode testemunhar a dinâmica de um
determinado movimento artístico. De acordo com o pesquisador Marco Antonio de
Moraes, a correspondência da elite letrada é imbricada de sedução intelectual, em suas
linhas e entrelinhas, deixando à mostra, os bastidores da vida artística, revelando como
foram pensadas e criadas determinadas obras.421
Os historiadores Valdei Lopes de Araújo e Lúcia Maria Paschoal Guimarães
estudaram a dinâmica do sistema intelectual brasileiro através da análise da
correspondência do geólogo estadunidense John Casper Branner. Araújo e Guimarães
perceberam que Branner havia constituído uma poderosa rede de relações pessoais,
integrada por personalidades que circulavam nos campos das ciências e da produção
mineral, até homens públicos ocupantes de altos postos no governo, passando por
letrados, historiadores e diplomatas. O favor era conscientemente a moeda de troca
nestas relações. Como o ambiente institucional era precariamente desenvolvido, o
caminho mais fácil para a inserção profissional era o estreitamento dos vínculos
particulares. Contudo, nunca se pedia um favor sem se ter oferecido algo em troca.
Havia, dessa forma, certa lógica nestas relações. Os missivistas precisavam respeitar o
protocolo, que envolvia o reconhecimento de hierarquias, e, a escolha adequada da
forma de iniciar e finalizar as cartas. Neste jogo, imperava a busca da ―proximidade
cordial‖. A todo o momento era preciso ter e dar provas de amizade e consideração.422
De acordo com o pesquisador Michel Trebitsch, o espaço destinado à troca de
correspondências consistia em um espaço de sociabilidade intelectual. As cartas
trocadas entre a elite letrada, apesar da dimensão privada, tendiam a penetrar a esfera
pública. Trebitsch distingue a troca epistolar entre intelectuais em duas categorias, não
necessariamente excludentes. A primeira consiste no uso da correspondência como
construção de redes. Este grupo pode se estruturar em torno de uma ou mais figuras
referenciais, que podem, ou não, ter objetivos comuns. Geralmente, os intelectuais deste
primeiro grupo, ocupam posições diferenciadas, alguns com maior importância social
421
MORAES, Marco Antonio. Sobrescrito. Teresa – Revista de Literatura Brasileira da USP. nº 8/9. São
Paulo: Ed.34, 2008. p.6.
422
GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal. & ARAUJO, Valdei Lopes de. O sistema intelectual brasileiro
na correspondência passiva de John Casper Branner. In: GOMES, Ângela de Castro (org.). Escrita de si,
escrita da história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. pp.94-105.
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ou intelectual que os demais. A segunda categoria é formada por letrados que ocupam
posições semelhantes, ou fazem parte de um mesmo grupo ou corrente de pensamento.
Neste segundo grupo, observa-se a prevalência da amizade intelectual, certa
informalidade no tratamento, seus membros buscam um relacionamento profundo e
duradouro, baseado na troca de ideias e favores. 423
Este código implícito na troca epistolar, que dita o jogo da inserção no meio
intelectual, político e profissional, é percebido no acervo de correspondências do pintor
Candido Portinari, objeto do presente estudo. As epístolas trocadas entre o pintor,
artistas, intelectuais e políticos da época funcionam como um espaço de sociabilidade
intelectual, onde predominam trocas de favores, encomendas de trabalho, sugestões para
execução das obras, opiniões profissionais e pessoais, entre outros. Portanto, este
trabalho pretende utilizar as cartas como fonte da pesquisa histórica, mas, também,
como seu objeto de estudo.
Candido Portinari nasceu em Brodósqui, interior de São Paulo, em dezembro de
1903. Segundo dos doze filhos de um casal de imigrantes italianos que veio para o
Brasil engrossar a mão de obra da lavoura cafeeira. Portinari frequentou a escola do
vilarejo, mas não foi além do terceiro ano primário. Em 1919, partiu para o Rio de
Janeiro com o intuito de estudar pintura. Matriculou-se como aluno livre nas aulas de
desenho figurado da Escola Nacional de Belas Artes, instituição conhecida pelo
tradicionalismo acadêmico. Nesta escola permaneceu por oito anos, quando, no Salão de
1928, ganhou uma viagem para o exterior. Portinari apresentou um retrato do poeta e
amigo Olegário Mariano e isto lhe rendeu o prêmio mais alto que a instituição concedia.
O jovem pintor escolheu a França como destino, mas também visitou a Espanha, a Itália
e a Inglaterra.
No continente europeu, Portinari demonstrou uma baixíssima produção artística,
contrariando o hábito dos demais bolsistas da Escola Nacional de Belas Artes. O pintor
justificou-se, afirmando que não pintava no afã de visitar museus e poder ver de perto a
obra de grandes artistas. Cabe ressaltar, que neste período a Europa já experimentava as
transformações artísticas do Modernismo, quando artistas e intelectuais passaram a
423
TREBITSCH, Michel. Correspondances d‘Intellectuels. Le cas des letters d‘Henri Lefebvre à Norbert
Guterman (1935-1947). Disponível na Internet, via http://www.ihtp.cnrs.fr/Trebitsch/cahiers_20.html,
consultado dia 02/10/2013.
227
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questionar o papel social da arte, unindo arte e vida, demonstrando preocupação em
produzir uma arte atrelada às transformações sociais. Portinari teve contato com estes
movimentos e passou a questionar o ensino recebido. Para a historiadora Annateresa
Fabris, foi no continente europeu que Portinari repensou a pintura em sua expressão
específica e partiu em busca de suas raízes. Esta nova maneira de encarar a arte
marcaria toda sua produção posterior.424
De Paris, em carta que escreveu a antiga namorada, Rosalita Mendes, Portinari
demonstrou essa mudança:
Daqui fiquei vendo melhor a minha terra – fiquei vendo Brodósqui como ela
é. Aqui não tenho vontade de fazer nada. Vou pintar o Palaninho, vou pintar
aquela gente, com aquela roupa e com aquela cor. Quando comecei a pintar
senti que devia fazer a minha gente e cheguei a fazer o ―baile na roça‖425.
Depois desviaram-me e comecei a tatear e a pintar tudo de-cor – fiz um
montão de retratos, mas eu nunca tinha vontade de trabalhar e toda gente me
chamava preguiçoso – eu não tinha vontade de pintar porque me botaram
dentro de uma sala cheia de tapetes com gente vestida à última moda.426
Esta carta revela a vontade de modificar a temática de sua pintura, o desejo de
produzir temas sociais ligados à infância em Brodósqui. É um desabafo com Rosalita,
no qual demonstra que sentia desconforto no ambiente tradicional e rebuscado da Escola
Nacional de Belas Artes, assim como discordava dos padrões artísticos exigidos pela
instituição. Portinari permaneceu na Europa até 1931, quando retornou ao Brasil
trazendo pouquíssimas produções artísticas.
Vale destacar que, enquanto Portinari esteve na Europa, aconteceram
importantes mudanças no cenário nacional, com destaque para a Revolução de 1930,
que trouxe o gaúcho Getúlio Vargas ao poder de forma indireta. Em 1937, Vargas
aplicou um novo golpe, que deu início ao Estado Novo, período ditatorial de sua gestão,
que se estendeu até 1945. O governo Vargas se destacou, dentre outros aspectos, pela
ampla participação de intelectuais, das mais variadas correntes de pensamento, em seus
quadros.
424
FABRIS, Annateresa. Portinari, pintor social. São Paulo: Perspectiva: Editora da USP, 1990. p.43
425
O quadro à óleo Baile na Roça, de 1924, retrata um baile de camponeses, destacando-se dois casais
dançando, um sanfoneiro, um preto, um homem sentado à mesa e outras figuras dançando ao fundo. Tal
quadro foi feito quando Portinari era aluno da Escola Nacional de Belas Artes e foi duramente criticado
pela instituição em virtude do relaxamento da técnica. Fonte: Projeto Portinari.
426
Carta de Portinari a Rosalita Mendes de Almeida, de 12/07/1930. (Grifos de Portinari.)
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Cabe ressaltar que o Estado tomou a responsabilidade de fiscalizar e cuidar de
áreas que antes não competiam à política, tais como a educação, a cultura, a saúde e o
trabalho. Sendo assim, foram criados novos ministérios com a finalidade de prover estas
novas esferas de atuação governamental. O Ministério do Trabalho e o Ministério da
Educação e Saúde Pública são dois exemplos. Este último ministério foi gerido pelo
intelectual mineiro Gustavo Capanema, de 1934 a 1945, e foi um dos grandes
responsáveis pela produção cultural do período, já que concentrou um grande número
de intelectuais e artistas, tanto que ficou conhecido como o ―Ministério dos
Intelectuais‖.
Segundo o sociólogo Sérgio Miceli, desde a época imperial, cargos públicos
foram destinados a intelectuais. Contudo, a maior cooptação aconteceu na Era Vargas,
onde foram encaixados em praticamente todas as áreas: educação, justiça, serviços de
segurança, cultura, entre outras. A cultura, em especial, foi vista como um ―negócio
oficial‖, implicando um orçamento próprio, a criação de uma ―intelligentzia‖ e a
intervenção em todos os setores de produção, propagação e conservação do trabalho
intelectual e artístico. Os intelectuais tenderam a se concentrar nos cargos cujos
vencimentos eram os mais elevados, onde eram cercados de regalias e vantagens.
Poucos deles ocuparam posições típicas de pequenos funcionários. A elite letrada
trabalhava na burocracia em tempo parcial, prestando, em geral, serviços de consultoria
e congêneres, ocupando cargos de confiança e de direção dos órgãos governamentais,
preenchendo assim, os lugares das novas instituições que surgiam.427
Ângela de Castro Gomes afirma que os intelectuais sentiam menos desconforto
por participar do órgão público comandado por Capanema, como se a política realizada
por ele fosse distinta do restante do aparelho burocrático estatal. O Estado era
identificado como a opressão física e simbólica de um regime autoritário, já o território
Capanema era arejado por sua variedade e ousadia de ideias.428 Miceli corrobora esta
ideia ao sustentar que o ministério Capanema se tornou uma espécie de território livre
427
MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe-dirigente no Brasil. (1920-1945). In: CARDOSO, Fernando
Henrique (dir.) Corpo e Alma do Brasil. São Paulo/Rio de Janeiro: DIFEL, 1979.
428
GOMES, Ângela de Castro. Capanema: o ministro e seu ministério. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2000. p.14.
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do autoritarismo do regime, o que contribuiu para reunir um grande número de
intelectuais em seu quadro.429
A socióloga Maria Helena Bomeny expõe que neste período de mecenato do
Estado, o governo cooptou artistas e intelectuais das mais diversas atuações e extrações
sociais. Havia a necessidade de reconstruir o caráter do homem brasileiro e a geração
modernista se adequava bem a esta tarefa, uma vez que reinstauravam o tema da
brasilidade com feições militantes e eram os intelectuais disponíveis para preencher os
cargos públicos. De acordo com Bomeny, a relação destes intelectuais com o governo
era conflituosa, oscilava entre momentos de adesão e afastamento, enaltecimento e
crítica. Portanto, a fidelidade dos intelectuais em relação ao Estado era parcial. Todavia,
não deixavam de produzir para o governo, justificando sua atuação em nome da arte. A
arte transcenderia no tempo, se tornaria imortal e isto minimizava o constrangimento em
participar do aparelho burocrático de um Estado despótico.430 Para Miceli, o dilema da
participação em um governo autoritário, que remunerava seus serviços e custeava seus
trabalhos artísticos, era minimizado pelos intelectuais quando estes baseavam sua
produção cultural em ―álibis nacionalistas‖.431
Enfim, foi realizada uma sumária contextualização acerca dos acontecimentos
que marcaram o cenário nacional enquanto Portinari esteve na Europa. Em 1931,
quando o pintor retornou daquele continente, participou de uma exposição organizada
nos salões da Escola Nacional de Belas Artes, chefiada então pelo arquiteto modernista
Lúcio Costa. Em virtude da nova coordenação, a Escola havia se tornado menos
academicista e mais aberta a novas propostas artísticas. Neste salão não houve regras
para os trabalhos, todos poderiam expor.
Portinari apresentou obras que foram apreciadíssimas, em especial, pelo literato
Mário de Andrade. Mário se encantou com o óleo sobre tela intitulado O violinista432 e
429
MICELI, Sérgio. Op. Cit. p.161.
430
BOMENY, Maria Helena. Infidelidades Eletivas: Intelectuais e Políticas. In: Constelação Capanema :
Intelectuais e Políticas/ Helena Bomeny (Org.). Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas ; Bragança
Paulista(SP): Ed Universidade de São Francisco, 2001. pp.26-32.
431
MICELI, Sérgio. Op. Cit. p.159.
432
O Violinista, 1931. Retrato do violinista Oscar Borgerth até a altura dos joelhos, sentado no interior de
recinto fechado, segurando violino. Fonte: Projeto Portinari.
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pediu para ser apresentado a Portinari. Os dois se conheceram e se tornaram grandes
amigos. A amizade com o literato teve grande influência na vida do artista de
Brodósqui. Segundo, Annateresa Fabris, Mário sentia orgulho por ter introduzido
Portinari no círculo de artistas modernos, uma vez que o pintor era um artista ideal para
o momento modernista.433
As missivas trocadas entre Mário de Andrade e Candido Portinari foram
frequentes, literato e pintor tratavam, sobretudo, de assuntos pessoais e profissionais.
Geralmente, Portinari pedia conselhos para a execução de seus quadros e comentava
sobre seus trabalhos com o amigo:
Fiquei todo este tempo sem escrever porque comecei uma colheita de café
com 50 figuras – 2 metros e tal. Em tamanho é o maior que já fiz [...] A
colheita tá me dando um trabalho [...] Vou ser convidado para expor em uma
Exposição nos E. Unidos – Carnegie Institute.434
Mário, por sua vez, encomendava os trabalhos do pintor, tanto para si, quanto
para o Departamento de Cultura que presidia na Prefeitura de São Paulo:
Preciso sua colaboração pro Congresso da Língua Nacional Cantada!!! Em
que um pintor pode cantar no Congresso? [...] Ora os programas devem ter
capa, uma capa única, que quero firmada pelo maior pintor e maior
desenhista do Brasil: você.435
As missivas trocadas entre Mário de Andrade e Portinari deixam transparecer
um tom íntimo, bem pessoal. Os dois reafirmavam os laços de amizade a cada epístola,
trocavam ideias e pediam conselhos para resolver problemas do cotidiano pessoal ou
profissional. O tom da conversa era bem próximo, revelador, sincero. As despedidas, na
maior parte das vezes, continham lembranças afetuosas às respectivas famílias e a frase:
―Do seu amigo de sempre...‖.
Com a troca epistolar, Portinari foi progressivamente ampliando seu círculo de
amizades com intelectuais e artistas da época, ligados ou não à corrente modernista ou
433
FABRIS, Annateresa. Portinari, amico mio. Cartas de Mário de Andrade a Candido Portinari.
Campinas: Mercado das Letras – Autores Associados/ Projeto Portinari, 1995. (Coleção Arte: Ensaios e
Documentos). pp.13-14.
434
Carta de Portinari a Mário de Andrade, de 10/04/1935. Nesta carta Portinari descreve o início da
confecção da pintura Café, óleo sobre tela de 1935, que retrata uma colheita de café e foi premiada na
exposição do Carnegie Institute. Posteriormente, a tela foi adquirida pelo ministro Gustavo Capanema
para o Ministério da Educação e Saúde. Fonte: Projeto Portinari.
435
Carta de Mário de Andrade a Portinari, de 30/04/1937.
231
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ao Estado. Assim como vários outros componentes da elite letrada, o pintor participou
da burocracia varguista. Entre os principais trabalhos realizados e patrocinados pelo
Estado, destaca-se o encomendado pelo ministro Capanema, em 1936, que solicitou a
confecção dos murais da nova sede do Ministério da Educação e Saúde Pública. Este
trabalho absorveu o pintor por dez anos, mas o realizou plenamente, como ele afirma na
carta ao intelectual e político Ribeiro Couto: ―Comecei há um ano e meio o maior
trabalho de minha vida. Não sei se você sabe que estou pintando o novo Ministério da
Educação.‖436
O trabalho no Ministério da Educação e Saúde estreitou a amizade entre o pintor
e o influente Capanema, o que contribuiu para expandir os horizontes da pintura
portinariana, que já era reconhecida no cenário nacional e internacional. O pintor teve
muitas exposições e viagens custeadas pelo governo, como a viagem aos Estados
Unidos, em 1941, na qual foi a Washington, a convite de Archibald Macleish, diretor da
Biblioteca do Congresso, com a finalidade de pintar os murais desta instituição.
Macleish se interessou pelo trabalho do artista nos murais do MES. Dessa forma,
contratou o pintor para realizar as pinturas murais na ala da Fundação Hispânica. O
tema deveria ser comum a toda a América Latina, os motivos escolhidos foram então
relacionados ao descobrimento, como esquadras, marinheiros e padres catequistas. Em
carta, Macleish, após tecer elogios ao artista, agradece Vargas pela iniciativa:
Em nome da Biblioteca do Congresso portanto desejo agradecer a Vossa
Excelência pela gentilíssima atenção que prestou ao nosso convite feito ao
senhor Portinari para que considerasse a preparação dessas decorações e a
esplêndida ação de Vossa Excelência em mandar o distintíssimo pintor a
Washington com o motivo de executar os desenhos preliminares. 437
Portinari também escreveu ao presidente agradecendo a oportunidade concedida:
―Agradeço a V. Exa. mais uma vez o apoio moral e material que me tem dispensado
para realizar meu trabalho de pintor. De V. Exa., patrìcio e admirador.‖438
Em 1942, Portinari concluiu os trabalhos em Washington e voltou para o Brasil.
Enquanto estava nos Estados Unidos, o pintor interrompeu os trabalhos no MES. Em
carta ao Ministro Capanema pediu um pouco mais de tempo na América do Norte:
436
Carta de Candido Portinari a Ribeiro Couto, de 13/05/1938.
437
Carta de Archibald Macleish a Getúlio Vargas, de 17/09/1941.
438
Carta de Portinari a Getúlio Vargas, de 3/10/1941.
232
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Como o Sr. tem me apoiado em todos os sentidos para a realização de meu
trabalho de artista penso que não fará nenhuma objeção para que eu
permaneça aqui ainda 4 ou 5 meses. Creio também que os afrescos do
ministério lucrarão com isso.439
Capanema concordou com a estadia do pintor nos Estados Unidos pelo tempo
que fosse necessário:
Meus parabéns pelos seus trabalhos. Desejo que você os realize com a maior
perfeição, e para isto fique aí o tempo que for preciso. Você continua
presente no nosso afeto, você e os seus, a quem mandamos lembranças
afetuosas. Creia no alto apreço e cordial estima de seu amigo Capanema. 440
Nas cartas trocadas entre Portinari e Capanema, apesar do tom sempre atencioso
e amigo do ministro, o pintor possui um cuidado maior na forma de se referir e fazer
pedidos ao intelectual mineiro. Isto pode ser explicado pelo alto cargo ocupado por
Capanema na burocracia estatal. As cartas tratavam, sobretudo, de assuntos
profissionais, raramente de coisas pessoais. As missivas revelam uma amizade mais
respeitosa, mais cerimoniosa, com menos intimidade, em especial nas cartas remetidas
pelo pintor.
Quando voltou dos Estados Unidos, Portinari retomou os trabalhos no MES. Os
motivos dos afrescos faziam alusão aos ciclos econômicos brasileiros, temática sugerida
pelo Ministro Capanema. Enquanto trabalhava nos murais do MES, Portinari
comunicou a Capanema que desejava viajar novamente, desta vez para Buenos Aires, ao
que o ministro respondeu:
Meu caro Portinari: Infelizmente não posso ir hoje a sua casa, como esperava
e lhe falei pelo telefone. Amanhã espero ir. Meditei sobre a nossa conversa, e
falei a alguns amigos. Cheguei à conclusão de que a sua viagem agora a
Buenos Aires poderá comprometer o feliz coroamento de sua [?] obra no
edifício de nosso Ministério. É preciso ter em vista que, com algumas
semanas mais, estará findo o meu tempo de ministro. Receio que, com outro,
sobretudo se for um espírito prevenido contra a nossa orientação, aquelas
paredes venham a ter outro acabamento. O meu sincero desejo é, pois, que
você não vá. Julgo tão essencial aos interesses artísticos de nosso país a
conclusão de sua obra no edifício do Ministério da Educação, que ouso
sugerir o adiamento de sua viagem, a fim de que, neste mês ou até meado de
novembro (enquanto ainda temos tempo), você a conclua. Neste caso, porém,
a sua opinião é que é essencial. Sou seu amigo e aceito de boa vontade a
solução que você der. Amanhã, conversaremos. Afetuoso abraço de seu
amigo, Capanema.441
439
Carta de Portinari ao Ministro Capanema, de 3/10/1941.
440
Carta do Ministro Capanema a Portinari, de 17/10/1941.
441
Carta de Capanema a Portinari, de 16/10/1945.
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Nesta carta, Capanema demonstra preocupação em relação a sua sucessão no
ministério. O Estado Novo já vivia sinais de falácia. Esta missiva do ministro data de
outubro de 1945, o regime cai no mês seguinte, em novembro. Capanema dizia ter
preocupação com a concepção do novo governo, temendo que os painéis de Portinari no
MES não fossem concluídos. Além dos murais, Portinari realizou a composição dos
azulejos azuis e brancos da fachada do edifício, juntamente com o artista plástico Paulo
Rossi Osir. Logo em seguida, Portinari e Osir foram convidados a executar o trabalho
com os azulejos da Igreja da Pampulha, em Belo Horizonte, por Juscelino Kubitschek.
Os trabalhos de Portinari eram muito apreciados pela burocracia estatal, que era
grande incentivadora e patrocinadora de suas pinturas. Como o pintor estava bem
integrado no concorrido e agitado ambiente intelectual da época, suas missivas
permitem uma boa leitura dos acontecimentos que marcaram o período. Sendo assim, a
correspondência pessoal do pintor Candido Portinari proporciona a compreensão da
dinâmica do jogo intelectual, de inserção e participação social, predominante no
governo varguista.
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DISTINÇÃO E HEGEMONIA DE CLASSE NAS PÁGINAS DA RIO MAGAZINE
Ana Claudia Lourenço Ferreira Lopes442
Resumo:
A partir da teoria de Bourdieu em A Distinção, onde afirma que o ―gosto‖ é construìdo
socialmente e que o vestuário é geralmente melhor articulado por quem possui capital
cultural herdado, olharei para as imagens de moda dos anos 1950 da revista Rio
Magazine com o intuito de mostrar como a revista confirmava a hegemonia do gosto e
do estilo de vida da alta sociedade ao figurar as próprias damas da sociedade como
exemplos de elegância e bons modos.
Palavras-chave:
Abstract:
Using Pierre Bourdieu‘s theory from his work Distinction, where he affirms that ―taste‖
is socially constructed and that (good taste in) dress is generally better articulated by
people who has higher cultural capital, I will look at fashion images from the magazine
Rio Magazine from 1950s aiming to show how the title confirmed the hegemony of
high society‘s taste and lifestyle by showing the society‘s ladies as examples of
elegance and good behaviour.
Keywords:
Esse artigo parte da ideia de que o poder nem sempre se faz pela força física, podendo
ser alcançado também pela força simbólica, através de associações de indivíduos com
símbolos de poder, e nas representações de modelos hegemônicos. A partir dessa ideia,
analisarei a imagem de poder que a alta sociedade obtinha, através da moda, em sua
representação na revista Rio Magazine nos anos 1950. Essa análise é fruto de um
desmembramento da minha dissertação de mestrado, na qual a Rio Magazine está sendo
usada como fonte.
A Rio Magazine (1940-1962) foi uma publicação mensal443, voltada para a alta
sociedade, que se propunha a cobrir as festas, jantares, eventos e casamentos bem
frequentados. Havia matérias sobre moda e desfiles no Rio de Janeiro, e as colunas
sociais, inclusive do Ibrahim Sued, que descrevia com humor e ironia os hábitos e
442
Mestranda em História Social da Cultura, PUC-Rio. Orientador: Antonio Edmilson Martins Rodrigues.
Bolsista do CNpQ [email protected]
443
Apesar de divulgarem ser uma revista mensal, durante a pesquisa pôde-se constatar que alguns meses
eram pulados ocasionalmente e até duas edições por ano englobavam dois meses, por exemplo, novembro
e dezembro, ou abril e maio.
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fofocas dessa classe social. A revista também tinha a sessão ―Últimas de Paris‖, que
noticiava abertura de boutiques na capital francesa, o que dava um tom internacional à
revista e a sensação de proximidade com as capitais da moda. Em março de 1956, ela
começou a ter também a sessão ―Bilhete para New York‖, além de, ao longo dos anos,
ter publicado inúmeras matérias sobre turismo em outros países.
A circulação era de 5.000 exemplares, mas um anúncio sobre a Rio Magazine na
São Paulo Magazine de fevereiro de 1956, afirmava que cada exemplar era lido por
mais de quinze pessoas, totalizando um público leitor de 80.000 por edição. O anúncio
dizia também que ―cada leitor da Rio Magazine, pela sua categoria social e econômica,
equivale a 300 leitores de publicações populares‖444. A revista tinha, em 1957, uma
sucursal em São Paulo, e representantes em Recife, Paris e Nova York. Foram
pesquisadas as edições de janeiro de 1949 a março de 1960445.
A década de 1950 no Brasil, posteriormente conhecida como ―anos
dourados‖, foi de desenvolvimento em ritmo acelerado. Havia um sentimento de que o
Brasil estava a caminho de se tornar uma nação tão desenvolvida quanto os Estados
Unidos e alguns paìses da Europa. Palavras como ―modernidade‖, ―progresso‖ e
―desenvolvimento‖ eram constantes nesse perìodo, relacionadas a diversos âmbitos: à
indústria, à urbanização, e até mesmo à moda. Outra característica dos discursos do
período era o nacionalismo. Essa era uma das ideologias do discurso de Getúlio Vargas,
presente na campanha ―o petróleo é nosso‖, e que também pôde ser encontrada em
diversas matérias da Rio Magazine, relacionada a segmentos os mais variados – de
moda e decoração à desenvolvimento imobiliário, industrial, e até mesmo em relação à
elegância das senhoras da sociedade –, onde destacava-se o quanto o Brasil estava
desenvolvido, mas sempre usando como comparação uma nação estrangeira. O artifício
também é usado em relação às formas de representação do vestuário feminino e
elegância das damas e dos eventos sociais446: em uma matéria sobre um coquetel, diz-se
sobre as toilettes que ―como não podia deixar de ser, se remarcaram pelo acentuado
444
SÃO PAULO MAGAZINE. fev.,1956, p.2.
445
Os volumes foram acessados no acervo pessoal de Sonia Tomé, filha do diretor-fundador da revista,
Alfredo Tomé, já falecido. É importante fazer uma ressalva que as edições do ano de 1958, e as edições
de janeiro e fevereiro de 1960, não puderam ser analisadas pois esses volumes não estavam disponíveis.
446
Em todas as citações foram mantidas as ortografias originais, conforme impressas na revista Rio
Magazine.
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gôsto e capricho, qualidades nossos que já repercutem internacionalmente‖ 447; ou sobre
o ―Baile do Copacabana‖, ―que em nada ficou a dever aos notáveis acontecimentos
mundanos parisienses‖ e que ainda perguntava ―quem, no Brasil ou no estrangeiro, não
conhece ou, pelo menos, não ouviu falar nos tradicionais bailes da semana do
sweepstake nos salões do Copacabana?‖448.
Dessa forma, a partir dessa exaltação do produto nacional, dos eventos e da
elegância das senhoras brasileiras, afirma-se e reafirma-se a ideia de que o Brasil era
civilizado, tinha bom gosto e estava progredindo e se modernizando, ao mesmo tempo
que deixava em evidência a necessidade de comparação com as ―nações civilizadas‖.
A ideologia americana da modernidade da linha de produção e praticidade dos
produtos, já havia alcançado o Brasil. Na moda, entretanto, principalmente entre o
segmento de alto poder aquisitivo, Paris não tinha perdido o pódio. Os costureiros mais
mencionados na imprensa, no período de final dos anos 1940 e meados dos anos 1950,
são, principalmente, Christian Dior, Jacques Fath, Jean Dessés, Jacques Heim, Jacques
Griffe, Marcel Rochas, Carven, Pierre Balmain, Balenciaga, Magy Rouff, e ainda, com
menos intensidade, Robert Piguet, Worth, Bruyère, Manguin, Paquin e Molineaux todos com casas de Alta Costura estabelecidas em Paris.
É importante notar que são raras as referências à Hollywood – em relação à
figurinos, atrizes e cinema – na Rio Magazine durante o período pesquisado449, o que
pode significar que Hollywood não era referência entre os extratos elevados da
sociedade em termos de modas e modos, o que reafirma, dessa forma, a superioridade
da cultura francesa nesses segmentos.
Para confirmar essa hegemonia da influência de Paris na moda carioca, entre
1949 e 1959, pelo menos cinco costureiros (Christian Dior, Jacques Fath, Pierre
447
RIO MAGAZINE, jul., 1952, n.216, ano XIX, p.20-21
448
RIO MAGAZINE, ago., 1949, p.26-31
449
Entre janeiro de 1949 e dezembro de 1959, há somente três matérias na Rio Magazine com conteúdo
vindo da indústria cinematográfica americana: sobre os figurinos do filme ―O Aventureiro do Mississipi‖,
da Universal Internacional, estrelando Piper Laurie e Tyrone Power (mai., 1953, n.225, ano XX, p.48-49,
intitulada ―1853-modas-1953‖); sobre a atriz Eileen Christy, que havia sido escolhida para o papel de
Jeanie em ―Minha Vida Te Pertence‖ (Jan., 1954, n.232, ano XX, p.51);
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Balmain, Maggy Rouff, Givenchy), todos franceses450, trouxeram desfiles para o Rio de
Janeiro. Todos esses desfiles foram apresentados no Copacabana Palace, em eventos
muitas vezes beneficentes, patrocinados por damas da sociedade – voltaremos a isso
mais adiante.
As marcas francesas funcionavam como símbolos de distinção da alta sociedade.
E para ostentar esses símbolos, valia de tudo, até fazer com que cópias dos modelos se
passassem como originais, como deu a entender o colunista Ibrahim Sued na revista Rio
Magazine em março de 1960:
O nosso mercado de alta costura, está sem dúvida tendo atuação marcante na
nossa vida social. Hoje, uma mulher por mais elegante que seja não necessita
mais fazer compras nas grandes casas de Paris. Temos grandes costureiras,
grandes casas de alta costura e boas oficinas. Observa-se que antigamente
elas mentiam muito mais que hoje. Elas sempre diziam: - ―ah, êste é de
Paris‖, ―eu trouxe de minha última viagem‖ etc etc. Atualmente é comum
ouvirmos: ―Não, êste é de Mary Angélica. Eu trouxe a fazenda de Paris ou
Roma‖... Ou então, ―Este foi o José Ronaldo que fez‖... Todos êsses fatos
provam que, hoje o Rio já possui grandes costureiros. Em consequência, as
nossas elegantes não necessitam mais daquelas deliciosas ―mentirinhas‖,
mesmo porque o câmbio está muito alto, e são raros os milionários que
podem custear a vaidade de suas mulheres, vestindo-as nas casas de Paris...451
Segundo o filósofo francês Gilles Lipovetsky, ―a difusão da moda foi menos
uma forma de coação social do que um instrumento de representação e de afirmação
sociais, menos um tipo de controle coletivo do que um signo de pretensão social‖ 452.
Em A Distinção453, Pierre Bourdieu faz uma topografia das representações e afirmações
sociais ao analisar o sistema de julgamento e crítica social, ou, mais especificamente, o
―gosto‖. Essa análise será válida para pensarmos como a Rio Magazine reafirmava o
poder da alta sociedade carioca na moda dos anos 1940 e 1950, mas, em primeiro lugar,
é preciso determinar quem era a alta sociedade da época.
450
É possível que outros costureiros, de outras nacionalidades, tenham também apresentado coleções no
Brasil. Entretanto, se houve outros, esses eventos não figuraram como matéria na Rio Magazine e nem em
suas colunas sociais durante o período analisado, o que demonstra que, se ocorreram, eles não tiveram
relevância para o público da revista, ou seja, para a alta sociedade que está sendo pesquisada aqui.
451
RIO MAGAZINE, mar. 1960, n. 298, ano XXV, p.35
452
LIPOVETSKY, Gilles. O Império do Efêmero– A moda e seu destino nas sociedades modernas. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989, p.40.
453
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento [1979]. 2ed. Porto Alegre: Zouk
Editora, 2013.
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Através das reportagens da Rio Magazine sobre coquetéis, festas, chás
beneficentes, recepções privadas, e jantares da ―alta sociedade‖, procuramos apreender
quem eram os agentes nela representados. Observamos que o ―escol social carioca‖ 454
era formado por uma mistura de pessoas de procedências diversas: ―altas patentes
militares, ministros de Estado, governadores, senadores, deputados, ministros do
Supremo, acadêmicos, intelectuais e os nomes conhecidos e prestigiados da nossa
sociedade‖455; no coquetel no Vogue oferecido por Carlinhos Guinle e senhora, ―a gente
mais expressiva de todos os setores da nossa atividade estava ali. Financistas,
industriais, banqueiros, homens da sociedade, intelectuais, jornalista‖ 456; ―aconteceu
uma movimentada recepção que contou com a presença de governadores, ministros de
Estado, diplomatas, parlamentares, banqueiros, jornalistas e homens de negócio. Foi
uma noite elegante.‖457.
É importante lembrar que o Rio de Janeiro era então Capital Federal do Brasil e,
como vimos acima, representantes do Governo e suas esposas se misturavam com as
famílias tradicionais da sociedade, com empresários e até intelectuais, formando o que
era conhecido como ―alta sociedade carioca‖, ou ―escol social carioca‖. No comércio e
difusão da moda, inclusive, os políticos e suas esposas tinham papel de prestígio, em
decorrência de seu elevado poder econômico e influência social. D. Darcy Vargas,
primeira-dama do governo de Getúlio Vargas, foi patronesse de inúmeros eventos de
luxo, entre eles o desfile no Copacabana Palace com modelos de Christian Dior 458, e o
desfile em benefício do Abrigo Cristo Redentor com modelos da Canadá de Luxe 459
(considerada a maior casa de alta costura do Rio de Janeiro).
Dessa forma, estabelece-se como ―alta sociedade‖ pessoas de procedências e
profissões diferentes, e chega-se a conclusão que o que os unia em um grupo era o que
454
―Escól social‖ era uma expressão muito usada pela Rio Magazine nas matérias de cobertura desses
eventos. Segundo o Minidicionário Aurélio, ―escol‖ significa ―elite‖, ou ―conjunto das pessoas mais
cultas‖ (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1985, p.193).
455
RIO MAGAZINE, set., 1952, n.218, ano XIX, p.26-29
456
RIO MAGAZINE, jun., 1953, n.226, ano XX, p.62-63
457
RIO MAGAZINE, jul., 1953, n.227, ano XX, p.62
458
RIO MAGAZINE, mar.1951, p.10-17
459
RIO MAGAZINE, set., 1951, p.12-17
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Bourdieu chamaria de ―volume global do capital‖, que seria a junção do capital
econômico, capital cultural e capital social - este último associado à antiguidade na
classe por intermédio da notoriedade do nome, assim como da extensão e da qualidade
da rede de relações460 -; ou seja, a ―soma‖ do quanto a pessoa possui (simbolicamente)
em relação a dinheiro e cultura, e de onde ela vem. Para entender esse pensamento de
Bourdieu, que é a base para a investigação das distinções dentre agentes de uma mesma
classe, precisamos dar um passo atrás para compreender sua teoria.
Através de uma pesquisa aplicada por questionário em 1963 e em 1967-1968
com 1.217 pessoas de níveis de escolaridade e trajetórias diferentes, Bourdieu
argumenta que as noções de ―gosto‖ (ou julgamento do gosto) são socialmente
construídas e um produto da educação. Na construção do seu pensamento, ele estabelece
uma distinção entre o ―capital escolar‖ (avaliado pelos diplomas obtidos) e o ―capital
estatutário de origem‖ (ou ―capital cultural herdado‖, incorporado das gerações
anteriores, relacionado à origem social, nesse caso à nobreza, descendência, tradição).
Quanto mais elevada a origem social, maior o contato do indivíduo com a cultura,
através da família, antes mesmo da entrada na escola. Para os indivíduos de origem
social elevada, a formação escolar pode ser até vista como ―monótona‖, já que ensina de
forma metódica e acelerada o que eles se acostumaram a aprender de forma livre. Em
contraponto, para a burguesia, ou a pequena burguesia, a instituição escolar ganha mais
importância, já que ela é a fonte prioritária de cultura. Dessa forma, segundo Bourdieu,
a escola ensina o indivíduo a pensar e aprender de forma sistemática, enquanto o capital
cultural hereditário é apreendido de forma livre, quase inconsciente e insensível. É
como se os detentores da cultura legítima tivessem mais naturalidade, ou legitimidade,
para interagir com os signos da cultura. E é essa forma inconsciente e quase natural, que
confere a ideia de que o ―gosto‖ é algo natural. Para Bourdieu, o gosto nada mais é do
que a ―faculdade de julgar valores estéticos de maneira imediata e intuitiva‖ 461, fazendo
com que ―as diferenças inscritas na ordem física dos corpos tenham acesso à ordem
simbólica das distinções significativas‖462.
460
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento [1979]. 2ed. Porto Alegre: Zouk
Editora, 2013, p.115
461
ibidem, p.95
462
ibidem, p.166, grifo do autor
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Entre indivíduos de nível escolar idêntico, a origem social poderia estabelecer
uma distinção. Quem possui capital estatutário de origem tem vantagem pois aprende
mais cedo a maneira de portar-se a mesa, a arte da conversação, postura, garbo, cultura
musical ou pronúncia de uma língua - símbolos geralmente associados com a nobreza e
que em recepções, jantares, entrevistas, comitês, etc, tem mais valor que os saberes da
escola463. Esses atributos são, justamente, constantemente exaltados nas páginas da Rio
Magazine em relação às damas da sociedade que são anfitriãs em jantares e coquetéis.
Um exemplo é dado a seguir, num extrato tirada da sessão ―A senhora e o lar‖:
Dona Naná Winans, née Dinah Braga de Almeida, ou simplesmente Naná, é
uma das expressões mais perfeitas do mundo social brasileiro. Na esfera
mundana, Naná é uma síntese do Brasil moderno e civilizado.
Personalidade marcante, tanto pelo espírito como pela cultura, ela tem sido
orgulho e o padrão máximo da nossa alta sociedade.
Naná possui o título da melhor e mais requintada hostess do país. Esta
qualidade não foi adquirida, - isso Naná faz questão de frizar -, herdou-a
de seus pais, sr. Manoel Justino de Almeida e d. Julieta Braga de Almeida,
em cuja chácara em Santo Amaro, nos subúrbios de São Paulo, crearam uma
tradição de patriarcalidade, recebendo a todos os amigos e todos os dias a
sinceridade e a cordialidade de anfitriões vocacionais. 464
A função de hostess engloba justamente as qualidades de portar-se a mesa, a arte
da conversação, postura, garbo, além de estarem relacionadas também a fatores
estéticos, como a forma de se apresentar (aparência e vestuário), de arrumar a mesa, a
escolha do cardápio, a forma de servir, entre outras. Essas qualidades, em Naná Winans
(e, nessa época, qualidades relacionadas à função da mulher na sociedade), são frisadas
como tendo sido aprendidas com os pais. Ou seja, deixa subentendido que o título de
hostess número um do Brasil é devido à educação que Naná teve em casa. É interessante
ressaltar que é também com base nessas ―qualidades‖ que são constituìdas as listas das
―dez mais‖ (as dez mulheres mais elegantes), compiladas por colunistas sociais e
populares no Brasil nos anos 1950.
Mais interessante, Pierre Bourdieu ressalta que o nível de instrução e a origem
social determinam também as ―maneiras‖ de implementação das competências culturais
adquiridas465 – maneiras de ser ou de atuar. Essas maneiras também seriam um método
463
ibidem, p.87
464
RIO MAGAZINE, mai., 1953, n.225, ano XX, p.34-39, grifo nosso
465
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento [1979]. 2ed. Porto Alegre: Zouk
Editora, 2013, p.64
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de distinção, pois são manifestações simbólicas que emitem significados tanto para
quem as percebe quanto para quem as produz. Isso se faz notar principalmente em
relação à moda, decoração, à função de hostess, e outras formas de ―estilização da vida‖
– ―primado conferido à forma em relação à função, à maneira em relação à matéria‖ 466,
―que orienta e organiza as mais diversas práticas, por exemplo, da escolha do vinho de
determinada safra e de um queijo, ou decoração de uma casa de campo‖ 467. Bourdieu
ressalta que, por não serem temas que são ensinados/aprendidos na escola, não há
cartilhas quanto ao que seria ―certo‖ ou ―errado‖ em relação às ―maneiras‖ de
implementação. Dessa forma, são terrenos mais movediços para uma pessoa sem tanto
capital cultural herdado.
O efeito do modo de apropriação nunca é tão marcante quanto nas escolhas
mais comuns da existência cotidiana, tais como o mobiliário, vestuário ou
cardápio, que são particularmente reveladoras das disposições profundas e
antigas porque, situadas fora do campo de intervenção da instituição escolar,
devem ser enfrentadas, se é que se pode falar assim, pelo gosto sem disfarce,
fora de qualquer prescrição ou proscrição expressas, a não ser aquelas que
são estabelecidas por instâncias de legitimação pouco legítimas, tais como os
jornais femininos ou os semanários dedicados à casa.468
É válido então chamar atenção que, até janeiro de 1950, a Rio Magazine trazia
em sua sessão de moda damas da sociedade vestindo as últimas criações de grandes
costureiros internacionais, que elas mesmas haviam trazido de alguma viagem recente à
Europa ou Estados Unidos. No edição de maio de 1949, por exemplo, a ―Rio Magazine
focaliza, por uma gentileza da senhora do diplomata Sotero Cosme, recém-chegada de
Paris, as últimas creações da moda‖, apresentando na primeira foto a ―linha ultramoderna de Jean Dessés‖469. Isso, que poderia ser uma tática da revista para contornar a
falta de acessibilidade a fotos estrangeiras, dava credibilidade a essas senhoras como
exemplos de requinte e elegância, e também confirmava o alto poder aquisitivo dessas
representantes da sociedade carioca. Além disso, vale ressaltar que para as costureiras e
senhoras de renda mais humilde, as fotos poderiam ser fontes de referência para a cópia
dos modelos, e as senhoras retratadas poderiam servir como modelos de beleza e
conduta.
466
ibidem, p.13
467
ibidem, p.56
468
ibidem, p.76
469
RIO MAGAZINE, mai., 1949, p.20-21
242
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Segundo Bourdieu, as diferenças no âmago da classe dominante se estabelecem
justamente na maneira de aquisição da cultura, ou na ―diferença da estrutura do capital
possuìdo‖470. Colocando de forma mais clara, dentro do que chamamos de ―volume
global do capital‖, que seria a combinação do capital cultural, capital social e capital
econômico, poderia-se estabelecer diferenças entre indivíduos de acordo com a forma
de distribuição do capital entre as três espécies. Dessa forma, voltando à análise da alta
sociedade dos anos 1950, mesmo que altas patentes militares, ministros de Estado,
governadores, senadores, deputados, ministros do Supremo, acadêmicos, intelectuais,
jornalistas e os nomes conhecidos e prestigiados da nossa sociedade formem, juntos, o
que chamava-se de alta sociedade, que compartilhava o mesmo estilo de vida (ou
habitus, termo usado por Bourdieu que seria o princípio unificador e gerador de todas as
práticas), existiam diferenças entre cada um desses núcleos. A exemplo dos colunistas
sociais, podemos perceber que essas distinções eram claras para a sociedade da época, e
apesar dos membros do grupo, de modo geral, serem respeitados na sociedade, é
interessante notar como, vez ou outra, jornalistas e cronistas da época deixam escapar
sutilezas (ou ―alfinetadas‖) que indicam essas distinções:
O senhor Osvaldo Penido deve estar enfrentando um grande dilema. O baile
inaugural do Palácio da Alvorada, em Brasília, será o ponto chic da
inauguração da nova capital no dia 21 de abril. Ora, mesmo que o presidente
da Comissão de Festejos da Inauguração de Brasília, não queira (por falta de
capacidade dos salões da Alvorada), êle terá que convidar um grande grupo
top-set carioca, para que o baile seja realmente uma festa digna e sobretudo
elegante. Porque, o que está provado, é que um baile, ou uma grande festa,
com a presença apenas de espôsas e filhas do nosso mundo oficial, não
poderá nunca ter um aspecto de alta elegância. Não vai nisso nenhuma
irreverência, mas há uma frase muito verdadeira: - ―Granfino é granfino.
Burguês é burguês‖. Ora, só uma granfina passa um mês estudando um
detalhe de um vestido para uma festa, em consequência... O resto veremos no
baile do Palácio da Alvorada.471
Com essa exposição do pensamento de Bourdieu, aliada às matérias da Rio
Magazine, estou querendo mostrar que, mesmo num mesmo grupo social – conhecido
como ―alta sociedade‖ – havia nuances de distinção entre seus representantes, muitas
vezes subjetivas ou não verbalizadas. A moda era então usada como um elemento que
conferia valor ao indivíduo, se fosse bem usada. O vestuário e outros itens de estilização
470
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento [1979]. 2ed. Porto Alegre: Zouk
Editora, 2013, p.67
471
RIO MAGAZINE, mar. 1960, n. 298, ano XXV, p.35, nota na coluna do jornalista Ibrahim Sued
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da vida, poderiam demonstrar bom gosto e elevar a percepção social do indivíduo,
mesmo se ele não possuísse um elevado capital cultural hereditário.
Essas colocações são úteis para pensar os desfiles patrocinados pelas damas da
sociedade. Um em particular é digno de nota: o desfile de Christian Dior no Copacabana
Palace, patrocinado por Darcy Vargas, então primeira-dama, e Sarah Kubitschek, então
esposa do Governador de Minas Gerais. O curioso da reportagem desse desfile, é que,
em meio às criações de Dior, há um modelo criado por Salvador Dali que,
comprovadamente, foi desenhado pelo artista surrealista a partir de uma solicitação do
MASP (Museu de Arte de São Paulo), que na época procurou ampliar seu acervo da
recém-criada ―Sessão de Costumes‖. O Sr. Paulo Franco, dono da Casa Vogue em São
Paulo e representante da Casa Dior no Brasil, foi à França, a pedido de Pietro Maria
Bardi, diretor do MASP, e solicitou a Christian Dior que ele intercedesse junto à Dali
para a criação de um costume especialmente para o MASP 472. O pedido foi atendido,
dando origem ao ―Costume do ano de 2045‖. O traje foi confeccionado em São Paulo,
na Casa Dior, e doado ao museu por Paulo Franco. Sabe-se também que esse traje de
Dali foi apresentado junto a vestidos de Dior num desfile no MASP em 1951, e que o
mesmo Paulo Franco já havia intercedido junto ao próprio Dior para a doação de
modelos do costureiro ao MASP. É interessante notar que na matéria sobre o desfile,
publicada na Rio Magazine, não é mencionado que os esforços para a existência de um
vestido assinado por Dali no Brasil foram do MASP, ficando subentendido o crédito
total do ocorrido para as duas damas, Darcy Vargas e Sarah Kubitschek, dando a elas
uma posição privilegiada.
Ainda em relação à Darcy Vargas, em dezembro de 1952, a Rio Magazine
publicou croquis de modelos de alta costura criados pelo costureiro Jacques Fath, e
comprados com exclusividade pela primeira-dama. Os desenhos foram recebidos pela
revista diretamente da organização de Jacques Fath em Paris e serviam ―como
comprovante da exclusividade do modelo adquirido‖, além de, ―sob o ponto de vista da
472
SALLES, Joana Pedrassoli. ―Arte, moda e indústria no Brasil na década de 1950: Christian Dior,
Salvador Dali, Jacques Fath e Elsa Schiaparelli‖. IARA – Revista de Moda, Cultura e Arte. São Paulo:
Senac SP, vol.2, n.1, p.10, 2009. Disponível em:
<http://www.iararevista.sp.senac.br/arquivos/noticias/arquivos/49/anexos/pdf.pdf>. Acesso em: 30 set.
2013.
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diplomacia comercial, vem de ser uma consideração para com a sua freguesia‖473 deixando claro que a divulgação dos modelos era positiva para a imagem da senhora
que o havia comprado.
Levando em consideração as distinções estabelecidas por Bourdieu dentro da
alta sociedade, podemos elucubrar que a moda era usada por Darcy Vargas como fator
de afirmação social e, devido à sua posição de primeira-dama, até mesmo como poder
político, agregando valor à imagem do governo de seu esposo. Ao se vestir com
modelos dos costureiros mais renomados, e patrocinar desfiles de moda para a alta
sociedade, associa-se a ela uma imagem de bom gosto e distinção, usada para confirmar
um poder social, econômico, e mesmo político. É importante esclarecer que esse
artifício de usar a moda como distinção não era exclusivo de Darcy Vargas, mas de
todas as senhoras da sociedade, dentro de suas devidas proporções. Entretanto, usar a
primeira-dama como exemplo é interessante devido à sua posição política no período.
Considerações finais
Nesse artigo procuramos trabalhar, com base na teoria de Pierre Bourdieu sobre a
distinção, três pontos em que a moda, conforme apresentada pela revista Rio Magazine,
ocupa um papel significativo na construção de uma imagem que tem como intuito
afirmar um poder social e econômico.
Em primeiro lugar, vimos como os veículos de comunicação, nesse caso a Rio
Magazine, usaram a imagem de elegância e bons modos da alta sociedade como moeda
de comparação do Brasil com outros países desenvolvidos, usada como evidência da
elevação do capital cultural e econômico do país através de um discurso nacionalista.
Em segundo lugar, observamos como as representantes da alta sociedade têm
seu poder hegemônico reafirmado a partir da divulgação de suas fotos na Rio Magazine,
através de sua imagem associada ao que existe de mais moderno e de maior poder
simbólico na moda: as últimas criações dos costureiros mais aclamados no Ocidente.
Em terceiro lugar, analisamos como que representantes do governo – nesse caso
a primeira dama e a esposa do governador Juscelino Kubitschek – se apropriaram da
473
RIO MAGAZINE, dez.,1952, n.220, ano XX, p.58-61.
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moda como meio de inserção e afirmação de seu poder social na sociedade que, na
teoria de Bourdieu, seria uma forma ―natural‖ para rearfirmar sua distinção.
A partir desses três aspectos, vimos como a moda, e a mídia de moda, podem
ocupar o papel central para reforçar um posicionamento social ou uma imagem
hegemônica, não através uma força física, mas uma simbólica e subjetiva.
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A ESCUNA EMÍLIA E O FIM DO TRÁFICO DE ESCRAVOS NO BRASIL
Ana Paula de Oliveira Carvalho474
Resumo:
A proposta desse trabalho é ponderar acerca do processo de extinção do tráfico negreiro
no Brasil. E para isso, a análise de um caso específico será utilizada a captura de uma
embarcação acusada de traficar irregularmente escravos a escuna Emíla. Almeja-se,
através desse exame, elucidar o contexto de acordos e tratados firmados entre Portugal e
posteriormente o Império do Brasil com a Inglaterra, visando encerrar o infame
comércio.
Palavras-chave: Tráfico de escravos – tratados - escuna Emília.
Abstract:
The propose of this study is to conduct an analysis about the finish of the slave trade in
Brazil, using for that the specific case of the seizure of the schooner Emília, a ship
accused of illegal traffick of slaves. This article aims to clarify the context of
agreements and treaties between Portugal, later the Empire of Brazil, with Britain
intending to finish with the slave trade.
Keywords: Slave trade – treated - schooner Emília.
―Em 6 de novembro de 1821, o Morgiana chegou no Rio de Janeiro. O
comandante Finlaison contou-me sobre o comércio de escravos coisas que
me fizeram gelar o sangue a respeito dos horrores cometidos pelos navios
negreiros.‖475
O trecho acima citado é parte do relato feito por Maria Graham em seu diário. Narra o
episódio da chegada do navio de guerra britânico Morgiana ao porto do Rio de Janeiro,
após ter estado na Bahia por conta da apreensão de uma embarcação partícipe do tráfico
ilegal de escravos. Tal embarcação foi uma escuna denominada Emília.
O apresamento desta escuna insere-se no contexto de extinção do tráfico
negreiro, mais especificamente, no contexto de tratados e acordo firmados entre
Portugal - e posteriormente o Império do Brasil - e Inglaterra, para pôr fim ao comércio
de almas.
474
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História UERJ. Orientadora: Edna Maria dos Santos.
E-mail: [email protected]
475
GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil, 1824. In: VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do
tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de todos os Santos: dos séculos XVII a XIX.
Tradução: Tasso Gadzanis. – São Paulo: Corrupio, 1987, p. 410.
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Esse contexto começou em 1807, no episódio de transferência da Corte,
momento chave para o início das pressões britânicas contra o comércio de escravos haja
vista a situação complicada pela qual passava a Corte portuguesa 476. Tais pressões se
intensificaram em 1810, quando ocorreu a assinatura do Tratado de Aliança e Amizade,
no qual houve a inserção do artigo décimo, que fazia menção ao tráfico e marcava o
compromisso por parte de D. João VI em colaborar para a extinção gradual do infame
comércio em seus domínios, além de proibir o tráfico em áreas do continente africano
que não fossem pertencentes aos portugueses. Artigo, esse, que foi constantemente mal
interpretado e criador de querelas entre os dois estados, por ter sido compreendido pelos
oficiais da marinha britânica como proibitivo de se realizar o comércio ao norte do
equador.477
Em 1815 a questão da extinção do tráfico negreiro entrou em pauta no
Congresso de Viena. Os portugueses consentiram em pôr fim ao comércio de africanos
ao norte do equador. Em troca receberiam uma indenização financeira por parte da GrãBretanha478. E é assim que Portugal inseriu-se no grupo composto por Grã-Bretanha,
França, Espanha, Suécia, Áustria, Prússia e Rússia na assinatura da ―Declaração das oito
potências‖. Mesmo firmado esse compromisso, Portugal não realizou grandes esforços
para cumpri-lo.479
E por conta desse descumprimento, em 28 de julho de 1817 foi assinada a
Convenção Adicional ao tratado de 1815, determinando o direito de vistoria àqueles
navios suspeitos de realizarem o comércio ilegal. Houve também a criação de comissões
mistas para julgarem as embarcações apreendidas, tais comissões tinham a
responsabilidade de julgar todo navio capturado, levando a bordo escravos procedentes
de regiões onde o tráfico era proibido. É importante salientar que tais comissões
476
A exposição que se segue está baseada em: BETHELL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no
Brasil: A Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do tráfico de escravos 1807-1867. Rio de Janeiro/São
Paulo, Expressão e Cultura/EDUSP, 1976.
477
Em vista dessa interpretação errônea várias embarcações portuguesas foram capturadas acusadas de
fazerem parte do comércio ilegal. Para uma visão ampliada dos acordos bilaterais.
478
No dia seguinte é acertado que essa indenização seria transferida para aqueles comerciantes que
tiveram seus navios capturados irregularmente por conta de uma má interpretação do tratado de 1810.
479
A opção por só mencionar Portugal ocorreu devido a ser pertinente a abordagem proposta pela
pesquisa, mas sabe-se que Espanha e França também não empreenderam grandes esforços em cumprir o
compromisso firmado.
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estavam presentes dos dois lados do Atlântico e que acordos similares também foram
firmados entre Inglaterra e Espanha.
Após essas determinações, um impasse se estabeleceu. A independência ocorrida
em 1822 poderia representar uma inflexão em todos esses acordos, entretanto, visando
não retroceder nos avanços pela extinção do comércio de almas, a Grã-Bretanha se
dispôs a somente reconhecer a independência do Brasil, se fosse mantido aquilo
determinado pelos acordos e tratados anglo-portugueses antitráfico. Mas o tratado de
1815 e a convenção adicional de 1817 tiveram sua aplicação restringida após a
independência do Brasil, somente sendo passíveis de julgamento, com base nos acordos
bilaterais, aqueles navios identificados como portugueses. 480
As negociações desenvolvidas sobre o reconhecimento da independência do
Brasil duraram até 1826, e foi somente nesse ano que ocorreu a reafirmação dos acordos
assinados por Portugal, havendo mais uma exigência: O Brasil independente deveria
renunciar ao tráfico de escravos no período de três anos após a ratificação desse tratado,
a qual aconteceu em 13 de março de 1827.
Almeja-se, através desse retrospecto, narrar parte do percurso que culminou na
extinção do tráfico negreiro no Brasil para enfim poder inserir a problemática em seu
contexto. Tendo em vista, como já observada, a quantidade de tratados e acordos
criados para enfim encerrar o infame comércio se pode supor a complexidade desse
processo. O seu desenvolvimento foi marcado por vaivens, grupos contrários e outros
favoráveis, mudanças de conjunturas nacionais e internacionais que influenciaram as
diretrizes adotadas.
Se há algum tempo o foco de análise centrava-se na postura da Grã-Bretanha, a
qual, após proibir a escravidão nas suas colônias﴾1807-1808﴿ adotou uma atitude de
imposição pelo encerramento do tráfico de escravos por parte das demais nações ainda
escravistas entre elas Portugal e posteriormente o Império do Brasil, 481 hoje, atribui-se
480
MAMIGONIAN, Beatriz. ―A proibição do tráfico atlântico e a manutenção da escravidão‖. In:
GRINBERG, Keila e SALLES, Ricardo (Org.) O Brasil Imperial vol. I. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2009. p.219
481
O Sul dos Estados Unidos, a ilha de Cuba e o Império do Brasil foram as últimas regiões ocidentais a
abolirem o tráfico. Ver: PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865 Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.p.12-13.
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uma maior atenção as dinâmicas internas, dando assim ênfase aos jogos políticos
estabelecidos, revendo os debates parlamentares e recuperando os argumentos
contrários e os favoráveis a manutenção do trato negreiro.
De fato, a abolição do ―comércio de almas‖ trata-se de um tema já bastante
abordado pela historiografia, entretanto há elementos que ainda permanecem como
áreas que possibilitam fartas reflexões como: o destino dos africanos apreendidos nesse
tráfico irregular, a conjuntura que propiciou o estabelecimento de acordos, tratados e
comissões, as repercussões na sociedade desses acordos diplomáticos.
Dessa forma, nesse trabalho pretende-se abordar um caso específico, ocorrido no
período antecedente ao fim definitivo do tráfico legal de escravos. Trata-se da apreensão
da escuna Emília, embarcação que traficava escravos após a convenção adicional de
1817. Busca-se eleger esse fato como o fio condutor para se propor a elucidação de
como ocorria, na prática, aquilo que teria sido estipulado através de acordos
diplomáticos, além disso, propõe-se investigar a passagem do tráfico de um comércio
legítimo e apoiado pela população - que não via nas imposições externas motivo para
abolí-lo - para uma prática questionada e posteriormente abominada por uma esfera
significativa da sociedade, entendendo esse processo como sendo possível de se explicar
por meio do conceito de cultura política.
Em virtude dos fatos mencionados, entende-se que o esclarecimento dos
aspectos envolvendo a captura da escuna Emília pode contribuir para as reinterpretações
acerca do assunto, por possibilitar a ampliação da temática. Alguns trabalhos centram
suas análises na proibição de 1831, conhecida pela história como a ―lei para inglês ver‖.
Perceber que o infame comércio já era proibido, pelo menos em parte, anteriormente à
promulgação desta lei, constitui um dado enriquecedor para avaliar o processo que
culminou na extinção do tráfico de escravos no Brasil.
A apreensão da escuna Emília em análise
Para início das reflexões, cabe a realização de alguns esclarecimentos. A finalidade da
análise do episódio aqui proposta é, através da perscrutação do máximo possível das
informações que conseguimos, até o presente momento, extrair das fontes, propor um
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diálogo com o panorama político de implementação dos tratados antitráfico negreiro,
mais especificamente o que se tenta é apreender uma determinada realidade em uma
escala menor, portanto analisaremos o assunto utilizando-nos de uma abordagem microhistórica, entendendo esta por meio da definição oferecida por Ronaldo Vainfas −―um
gênero específico de narrativa e modo de fazer história482 corroborada pela
consideração de Giovanni Levi: ‖ A micro-história é essencialmente uma prática
historiográfica em que suas referências teóricas são variadas e, em certo sentido,
ecléticas.‖483
Por exatamente compreender que olhar o micro à luz do macro pode oferecer a
possibilidade de se conhecer aspectos que seriam negligenciados, se não ocorresse a
opção pela mudança de escala, é que legitimamos apreender o episódio em questão.
Em 1815, a questão da extinção do tráfico negreiro entrou em pauta no
Congresso de Viena. Os portugueses consentiram em pôr fim ao comércio de africanos
ao norte do equador. Em troca, receberiam uma indenização financeira por parte da GrãBretanha484. E é assim que Portugal inseriu-se no grupo composto por Grã-Bretanha,
França, Espanha, Suécia, Áustria, Prússia e Rússia na assinatura da ―Declaração das oito
potências‖. Mesmo firmado esse compromisso, Portugal não realizou grandes esforços
para cumpri-lo.485
Por conta desse descumprimento, em 28 de julho de 1817 foi assinada a
Convenção Adicional ao tratado de 1815, determinando o direito de vistoria àqueles
navios suspeitos de realizarem o comércio ilegal. Houve também a criação de comissões
mistas para julgarem as embarcações apreendidas, tais comissões tinham a
responsabilidade de julgar todo navio capturado, levando a bordo escravos procedentes
de regiões onde o tráfico era proibido. É importante salientar que tais comissões
482
VAINFAS, Ronaldo. ―História das Mentalidades e História Cultural‖. In: Domínios da História:
Ensaios de teoria e metodologia. p.147
483
LEVI, Giovanni. ―Sobre a micro-história‖. In: BURKE, Peter (org.), A escrita da história: novas
perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 1992, p.132.
484
No dia seguinte é acertado que essa indenização seria transferida para aqueles comerciantes que
tiveram seus navios capturados irregularmente por conta de uma má interpretação do tratado de 1810.
485
A opção por só mencionar Portugal ocorreu devido a ser pertinente a abordagem proposta pela
pesquisa, mas sabe-se que Espanha e França também não empreenderam grandes esforços em cumprir o
compromisso firmado
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estavam presentes dos dois lados do Atlântico e que acordos similares também foram
firmados entre Inglaterra e Espanha.
Nesse contexto inserimos o caso da Escuna Emília,a única embarcação julgada
e condenada pela comissão mista sediada no Rio de Janeiro, antes da independência do
Brasil.
Aos 14 dias do mês de fevereiro do ano de 1821 foi apreendida próxima à
latitude de 3°50‘ Norte e longitude de 3° 30‘ leste a embarcação denominada Emìlia,
uma escuna que navegava sob bandeira Portuguesa. Transportava 397486 escravos com
destino à Bahia e sua captura foi realizada por um navio de guerra britânico, o
Morgiana, comandado por Willian Finlaison. A possibilidade de se conhecer melhor os
detalhes dessa apreensão nos permitirá refletir sobre a prática do tráfico irregular, mas
também sobre o modo como a repressão a tal prática era efetivada.
E a escuna em questão foi exatamente um navio suspeito de traficar
irregularmente escravos, e fazendo valer-se daquilo acertado em 1817, o capitão
Britânico pediu visita a embarcação. Infelizmente, de acordo com as fontes consultadas,
não podemos saber, em exato, as condições nas quais o Morgiana se deparou com a
embarcação negreira Emília, mas constatamos terem ocorrido fatores que levaram essa
embarcação a ser acusada de compor o comércio ilegal.
Por exemplo a localidade em que o navio foi interceptado, a qual se deu na
região intitulada Golfo da Guiné, o que significa ser uma área acima da linha do
Equador e, portanto, localidade em que era vetada a busca de escravos.Entretanto, o
mestre da embarcação, Severo Leonardo, que navegava sob bandeira portuguesa, alegou
que a carga foi adquirida em Molembo e apresentou falsas notas de venda julgando,
assim, afastar a suspeita de terem sido os escravos embarcados no porto de Onim. Mas
as suas alegações e as provas apresentadas não foram suficientes para convencer o
Comandante William Finlaison, quem em documento dirigido aos senhores juízes da
comissão mista alega:
486
Segundo Mamigonian esse número seria de 352, mas na documentação analisada são mencionados
397. Desses dezoito homens e duas mulheres não foram reconhecidos pelo capitão do Emília, Severo
Leonardo, como pertencentes a sua carga.
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E declaro mais que a dita embarcação não pareceu em bom estado para
navegar parecendo meio duvidoso que os mantimentos [durassem] para
manter tanta gente, não me pareceu ser suficiente a água. Os escravos com a
exceção de três, muito pareceu adoentados, somente uma pipa de água usada
uma de cento e dez cana das que estavam vazias quando nós tomamos passos,
e pela quantidade de frutas maduras a grande porção de ave doméstica é
impossível que exceda por três ou quatro dias no mar. 487
De acordo com as informações contidas nesse trecho é possível compreender
que a partir da quantidade de mantimento e água contidas na embarcação suspeitava-se
que a escuna havia sido reabastecida há pouco tempo, e portanto, como o próprio
William Finlaison concluiu, era impossível estarem a mais de três ou quatro dias no
mar.
Somando-se a esses argumentos também se pode acrescentar o fato de o mestre
não ter apresentado o diário de bordo e ter alegado que a ―desrota‖- estar em rota tão
distinta daquela necessária para a finalidade apresentada- foi acidental. Justificativas
não aceitas pelo comandante, que concluiu ter sido a dita ―desrota‖ feita de propósito
para se tentar burlar a fiscalização.
Certamente tais constatações tiverem relevância quando a sentença considerando
a escuna Emília uma boa presa foi anunciada pelos juízes da comissão mista. Ao lado
das referidas constatações houve um fator, mas especificamente um testemunho,
fundamental para que ocorresse a condenação. Um tripulante confirmou serem os
escravos realmente originários de Onim. Como enfatizou William Finlaison: ―Todos os
escravos, conforme declaração de um marinheiro de nome Jorge, foram embarcados
havia três dias em Onim no Rio Lagos. Durante o tempo que dizem que a embarcação
chegou a Molembo.‖488
A essa peculiaridade cabe se destinar maior atenção. Porque um marinheiro
testemunharia em contrário à própria causa? O que teria levado Jorge a entregar a
verídica procedência dos escravos transportados? O documento analisado não apresenta
nenhuma pista que leve às respostas a tais questionamentos, mas uma série de
motivações poderia ter existido.
487
Arquivo Nacional ( Rio de Janeiro, ANRJ) Códice 184, vol. 3.
488
Idem.
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Sabe-se que a vida de um marinheiro no início do século XIX não era das mais
fáceis, ainda mais um marinheiro de uma embarcação negreira, privado por um período
extenso de uma alimentação variada, além do convívio das pessoas queridas; vulnerável
às tormentas e calmarias; receoso quanto à fuga da carga viva que transportava no
porão. E ainda, no caso das embarcações voltadas ao tráfico irregular, o risco de serem
apreendidos pela marinha de guerra inglesa era considerável. Tudo corroborava para
que a viagem fosse a mais penosa possível.
O que teria levado o marinheiro Jorge a dar o seu testemunho? Podemos
especular sobre discórdias entre ele e o próprio mestre da embarcação, sobre algum
interrogatório mais violento, alguma promessa de recompensa por parte do comandante
britânico, entre outras. Bem, as hipóteses são muitas, porém a possibilidade de
comprovar alguma por meio das informações presentes na documentação analisada
ainda é uma tarefa que exige mais pesquisa.
A própria captura da escuna demanda maior atenção: o que levaria uma
embarcação negreira a se arriscar no tráfico ilegal, podendo ter toda a carga, o barco e a
aparelhagem confiscados? Decerto, o risco era proporcional aos ganhos. E até mesmo
esse risco deve ser ponderado. Leslie Bethell apontou:
Não só havia poucos navios patrulhando as áreas de tráfico negreiro, como a
costa oeste africana tendia a ser uma espécie de depósito dos piores navios da
armada britânica. Muitos deles, virtualmente inúteis para as incumbências
que lhes eram atribuídas; grandes e lentas fragatas de quinta ou sexta classe,
veteranas das guerras napoleônicas, com mastros altos e facilmente visíveis,
ou então brigues menores, que velejavam com a agilidade de montes de feno,
eram facilmente ultrapassados e driblados pela maioria dos navios negreiros
que encontravam, muitos deles rápidos clíperes de fabricação norteamericana. 489
De acordo com a citação, percebe-se a qualidade dos navios destinados à
fiscalização do comércio ilegal de escravos. Os traficantes contavam com transportes
mais velozes, como é o exemplo da própria escuna. Possuindo dois mastros, figurava
entre o tipo de embarcação preferido pelo comércio negreiro nos anos de repressão mais
intensa promovida pelos ingleses.490 Dessa forma, as chances de serem interceptados em
mar não eram tão amplas e caso isso ocorresse sempre se poderia contar com as
489
BETHELL, Leslie. op. cit., p. 126
490
Rodrigues, Jaime. ―Arquitetura naval: imagens, textos e possibilidades de descrições dos navios
negreiros‖. Tráfico, cativeiro e liberdade. p. 101.
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artimanhas para comprovar ser a viagem legal, mesmo que muitas vezes os indícios
fossem contrários: a arquitetura interna do navio, com divisões para acomodar os
escravos, o disparate entre a quantidade de provisões e o número de tripulantes, o
considerável número de armas a bordo. Mas apenas os indícios não condenavam um
navio a ser uma boa presa. Era necessário mais.
No caso da Escuna Emília, o necessário ocorreu: a captura exatamente quando já
estava carregada em águas onde comprovadamente o tráfico era ilegal; os indícios de
que tinham sido os escravos embarcados no porto de Onim; e o testemunho do
marinheiro confirmando os indícios.
Assim sendo, provavelmente, todas as alegações e constatações mencionadas
pelo Comandante seriam levadas em consideração e, somadas, só legitimaram a
condenação da embarcação por parte da comissão mista como sendo procedente do
tráfico ilícito.
Em parte da documentação há um termo de desembarque em 12 de março de
1821 de dezoito escravos em Cabo Coroa, localizado em Serra Leoa. Os escravos foram
desembarcados porque o Mestre Severo Leonardo não os reconheceu como pertencentes
a sua carga. Do número total (dezoito) dezesseis eram homens e duas mulheres.
Provavelmente a documentação de venda forjada com a quantidade de escravos que
seriam transportados pela Escuna até a Bahia diferiu do número real de escravos
traficados pela embarcação. Talvez fosse uma prática comum os navios negreiros serem
abastecidos com um número maior de escravos, visando às perdas que ocorreriam na
viagem. E após recontagem, coube ao Mestre Severo Leonardo dizer que não
reconhecia os dezoito escravos como pertencentes ao grupo por ele transportado.
Mesmo com tantas provas de que era mesmo a escuna Emília participante do
tráfico ilegal, seu proprietário, Manoel Ferreira Moreira, conhecido comerciante da
praça da Bahia, representado na cidade do Rio de Janeiro pelo procurador Diogo Soares
da Silva de Bivar, não tardou em requerer indenização pela apreensão. E conforme o
expresso na reclamação:
Por outra parte Manoel Francisco Moreira proprietário e caixa da mesma
escuna por seu bastante procurador nesta cidade Diogo Soares da Silva de
Bivar pedia em reclamação que se lhe restituísse a dita escuna e sua carga
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contidas as perdas e danos, que o referido captor lhe havia causado com a
injusta detenção.491
Entretanto, se a ―injusta detenção‖ era alegada pelo proprietário do navio,foi vista
como justa pelos comissários.Eles declararam que nenhum dos argumentos utilizados por
Manoel Francisco Moreira era procedente e consideraram as provas existentes como
evidências do emprego da escuna Emília no comércio ilícito de escravos no porto de Onim.
Tendo sido a escuna despachada para o porto de Molembo, atribuíram ao comissário a
irregularidade do despacho, provavelmente ocorrida a partir de ordens do Mestre Severo
Leonardo. E ainda acrescentaram que a qualidade da ―carga‖ transportada não era do mesmo
tipo que se comerciava em Molembo ou Cabinda. E a prova de que os escravos seriam
originários de Onim, deu-se por serem pertencentes às conhecidas nações: jeje, hauçá e nagô.
Após a condenação, os navios eram vendidos. Sendo assim, o valor obtido com a
venda era dividido entre os dois governos; e os africanos, vitimas do tráfico ilegal, alforriados,
ficando sob a responsabilidade do Estado ou de particulares e cumprindo um período de
serviço. Foi exatamente o que ocorreu com a escuna em questão. O destino desses africanos,
os quais adquiriam a categoria jurìdica de ―africanos livres‖,representa uma extensa
possibilidade de se refletir acerca da inserção desses indivíduos na sociedade brasileira, pois
as definições acerca do que ocorreria com eles só foi acertada após a independência do Brasil,
mas essa questão ultrapassaria as nossas pretensões nesse ensaio.
491
ANRJ, Códice 184, vol. 3.
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REPRESENTAÇÃO SIMBÓLICA DA MODA BRASILEIRA: IMAGENS E
RELAÇÕES DE PODER DAS COSTUREIRAS EM DOMICÍLIO NOS ANOS
DE 1950.
Ana Paula Lima de Carvalho492
Resumo:
Relações de poder estabelecidas entre quem produz e quem consome moda brasileira
nos anos de 1950. Apresentamos uma face da história da produção de moda por
costureiras em domicílio, que não só confeccionavam o que as senhoras da elite da
sociedade carioca determinavam, mas davam o diferencial na criação. Para isso
entrevistamos duas senhoras que fazem parte da memória viva da moda brasileira: Mena
Fiala e a costureira no anonimato que representa a voz das costureiras em domicílio.
Palavras-chave: Moda brasileira. Costureiras em domicílio. Magazines.
Abstract:
Symbolic representation of Brazilian fashion: images and power relations of the
seamstresses at home in 1950s. Power relations established between those who produce
and those who consume Brazilian fashion in the 1950s. We present a face of the history,
observing a fashion production by seamstresses at home, which not only confected what
the ladies of carioca elite society determined, but gave the difference in creation. In
orther to did this we interviewed two ladies who are part of the living memory of
Brazilian fashion: Mena Fiala and seamstres in anonymity that represents the voice of
the seamstresses at home.
Keywords : Brazilian fashion. Seamstresses and at home. Magazines.
Introdução
Os estudos de história da produção de moda no Brasil se enriqueceram com dois
depoimentos de representantes da moda dos anos 1950, de D. Mena Fiala, gestora de
moda da Casa Canadá e de D.Maria Elita, uma costureira em domicílio, que não só
confeccionava o que as senhoras da elite da sociedade carioca determinavam, mas dava,
como outras iguais, o diferencial na criação. Para isso, entrevistamos estas duas
senhoras: uma enquanto referência da história da moda no Brasil, associada à Casa
Canadá e outra, dona Elita, representante das vozes das costureiras em domicílio. O uso
da técnica de entrevistas semiabertas com essas senhoras é uma tentativa de preservar a
492
Mestre em Design PUC-RJ;
Docente Senai/Cetiqt [email protected] (21) 9675-0700
257
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memória coletiva493, pois esta vem somar com o material obtido em documentos oficiais
que, muitas vezes, não está diretamente apresentado como os relatos informais, as
discordâncias nos dados, que o historiador deve interpretar. Assim, as narrativas nos
possibilitam diversas formas de mostrar as diferentes versões dos sujeitos que
compartilharam dessa história. A memória viabiliza o ―resgate do passado‖ quando
permeia o presente com referências de uma memória viva ou do que se quer preservar
por meio das lembranças.
Na verdade, acreditamos que resgatar a memória daqueles que constituem uma
história – D. Mena e as costureiras do anonimato – é compreender melhor uma projeção
do futuro no campo da construção da moda brasileira. Portanto, são os fragmentos de
lembranças494 que lançam referências da produção de moda, a partir do contexto
histórico dos anos de 1950. As entrevistas realizadas já permitem vislumbrar, por um
tecido de palavras cheias de significados, que as relacionamos com o contexto da
sociedade e da política brasileiras em transformação no Pós Segunda Guerra.
O período demarcado traz à tona a memória viva desse universo de trabalho das
costureiras no imediato pós Segunda Guerra Mundial até os anos de 1960, quando há
uma alteração significativa nas atividades de consumo, em que as costureiras em
domicílio, gradativamente, perdem espaço para os grandes magazines, como Sloper
(1948), Mesbla (1952) e Sears (1949) e para o surgimento das butiques gerando uma
nova forma de desenvolvimento do consumo de moda.
A metodologia deste estudo parte de uma pesquisa bibliográfica e do uso da
técnica de entrevistas semiabertas, previamente marcadas, com senhoras hoje
octagenárias, que no período delimitado para este artigo exerceram o ofício de
costureiras, somado às entrevistas feitas com D. Mena. O objetivo é de correlacionar o
ofício das costureiras em domicílio com o trabalho de gerenciamento na Casa Canadá e
estabelecer, ainda, a inserção dos magazines como o espaço da democratização495 da
493
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo:
PUC-SP. Nº10.1993. pp. 7- 28.
494
CARVALHO, Ana Paula L. Uma construção no imaginário social da moda brasileira no pós segunda
guerra In: Colóquio de Moda, VII, 2011. Maringá- Paraná.
495
LIPOVETSKY, Gilles. ―A Moda Aberta‖ In: O império do efêmero. Tradução Maria Lucia Machado,
1.ed, 7 reimp. São Paulo, Companhia das Letras, 2004. pp. 107- 152.
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moda feminina no período em questão. Cabe ressaltar que ainda estamos em fase de
elaboração de entrevistas com senhorinhas moradoras de Copacabana, seja por meio de
conhecimento entre os moradores da cercania, seja estabelecendo contato com a
Associação de Moradores de Copacabana, para obtermos uma amostragem mais ampla
do universo que compõe esses relatos e lembranças de um ofício que, na época,
representava uma produção, ainda que artesanal, mas de criação de moda.
Em um segundo momento, trabalharemos com o conceito de moda presente na
Casa Canadá, sob o comando de Dona Mena Fiala e de sua irmã Cândida Gluzman, que
nos serviu de referência para estabelecer um contraponto entre o ofício de costureira e a
mais sofisticada forma presente no sistema da moda, denominada de alta costura.
Com base nesta proposta, analisaremos o percurso da moda brasileira a partir das
costureiras entrevistadas, como também de D. Mena, cuja atuação administrativa e
criativa permitiu que a Casa Canadá fosse sinônimo de imagem de bom gosto da moda
carioca. Os conceitos de referência no campo do design de moda como silhueta,
comportamento e consumo, se estabelecem independentemente das relações de poder
que estes se apresentaram nos anos de 1950. As entrevistadas pontuam com mais
intensidade um ou outro conceito que, por sua vez, se completam e constituem uma
malha de conceitos presentes na pesquisa bibliográfica.
Desse modo, optamos por discutir primeiramente como foi a construção da
profissionalização das costureiras em domicílio fazendo um contraponto com a moda
produzida na Casa Canadá, que denominamos Costureiras em domicílio e Casa
Canadá: Dois expoentes de produção de moda.
Na segunda parte do artigo, intitulado Da exclusividade à padronização da
moda, mostraremos a gradativa substituição da profissão de costureira em domicílio
com a presença dos magazines, especificamente o caso Sears, no contexto histórico do
imediato Pós-Guerra, que constituiu um cenário de aproximação das relações de poder
dos Estados Unidos com o processo de americanização da moda brasileira, no slogan
American way of life que, ao mesmo tempo, se adaptava às novas tecnologias têxteis no
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setor industrial, e importavam artigos de luxo, como as meias de náilon e tecidos com
texturas industrializadas tipo rayon, helanca, entre outros materiais têxteis496.
E, por fim, apresentamos algumas conclusões preliminares acerca dessa
investigação em andamento, frente ao universo das costureiras se contrapondo aos
magazines - caso SEARS- e a presença de Dona Mena gerenciando a moda na Casa
Canadá, à luz do imaginário social brasileiro como um conceito de moda brasileira.
Costureiras em domicílio e Casa Canadá: dois expoentes de produção de moda
No período do Pós Segunda Guerra era comum a presença da alta costura, assim como a
gradativa inserção dos magazines no eixo Rio de Janeiro e São Paulo, em busca de
ampliação de mercado consumidor. As costureiras se dividiam em dois segmentos: as
em domicílio e as vinculadas às Maisons. Nesse modo, a produção oscilava entre a
manufatureira com o requinte e a qualidade de acabamento feito a mão, que as Maisons
exigiam no setor de alta costura.
O Brasil da década de 1950 foi marcado pela influência dos Estados Unidos em
todos os níveis, desde o político até o processo de aculturação dos costumes em que o
sistema da moda497 não fugiu à regra expressa, tanto no ready to wear (usaremos o
mesmo significado, mas em francês- prêt-à-porter), quanto no estabelecimento dos
magazines com referências de consumo de uma sociedade em busca da modernização.
Nesta conjuntura histórica, a alta costura francesa mantinha o status que conquistou
desde o final do século XIX, no sentido de ditar moda, mas agora implementando a
indústria têxtil por meio do estabelecimento do prêt-à-porter.
Se partirmos da ideia de que ready-to-wear é a produção industrial de roupas
com menor custo e confeccionadas em tamanhos padronizados, isto é ―prontas para
usar‖, sem dúvida, a alta costura teve seu nicho de mercado assegurado, devido à
produção exclusiva, ao refino do acabamento, à contratação de costureiras qualificadas,
em que o produto final tem preço elevado devido à personalização.
496
CARVALHO, Ana Paula L. A Moda Do Prêt-à-porter Dos Anos Cinquenta: permanências e mudanças
culturais, Revista Vozes em diálogo (CEH/ UERJ) nº3. Jan-jun 2009.
497
BARTHES, Roland. ―Moda‖. In: O Sistema da moda. Tradução, Ivone Castilho Benedetti. São Paulo:
Martins Fontes, 2005, pp. 257-373.
260
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Neste contexto, enquanto a França buscava mecanismos de fortalecimento da
indústria da moda não só pela tradição – alta costura, mas com a propagação do prêt-àporter em escala internacional, os Estados Unidos inclinavam-se para estabelecer suas
filiais no Brasil, por exemplo, com os magazines, para emprestar o arsenal industrial
têxtil, desde as máquinas até ao financiamento das primeiras oficinas de tecelagem.
Portanto, o Brasil, a cada ano, deixava de ser uma estrutura agrário-exportadora, para
aderir às novas exigências urbano-industriais expressas com a modernização. Desse
modo, o desenvolvimento industrial se ampliou por meio da moda. Conforme Braga
menciona: ― [...] se comparado a outros setores industriais, e o meio favorável para o
seu desenvolvimento permitiram com que as pessoas ingressassem no meio industrial
através da moda, com as primeiras oficinas de tecelagem [...]‖498.
Para Bourdieu499, a dinâmica do consumo perpassa pela circulação de
mercadorias, a venda e a própria aquisição de bens e de objetos (relacionados enquanto
signos), mediante uma linguagem e um código proveniente da sociedade que se
comunica e expressa seus desejos. Talvez este discurso nos permita afirmar que a
dinâmica do consumo da década de 1950, que recebeu a alcunha de ―Anos Dourados‖,
viabilizou também a moda como um bem simbólico, portanto, contribuindo com a
indústria cultural brasileira500.
Neste contexto, podemos considerar a moda como um bem simbólico, um
produto gerado pela lógica industrial que, neste estudo, representa a construção do
conceito de moda brasileira a partir dos anos 1950 em que pudemos constatar uma
dinâmica da moda, por meio da introdução do prêt-à-porter, para atender ao segmento
mais abastado, como também pelo estabelecimento dos magazines, que contemplavam
cada vez mais a classe média urbana. Nesta dinâmica, o conceito de moda ampliou-se
na medida em que houve um significativo processo de democratização da moda,
compreendida nos diversos segmentos sociais que passaram a ―consumir moda‖ no
Brasil, além da alta costura e da costura em domicílio.
498
BRAGA, João e PRADO, Luis André. Alta moda surge no Brasil com costureiros do jet set In:
História da Moda no Brasil das influências às autorreferências. 1ªEdição. São Paulo: Pyxis editorial,
201, pp. 185- 269.
499
BOURDIEU, Pierre. O mercado dos bens simbólicos In: A economia das trocas simbólicas. Tradução
Sergio Miceli. São Paulo: Perspectiva, 1974.pp. 99-181.
500
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2005. pp. 8- 61
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Para melhor compreender essa dinâmica, optamos por transcrever algumas
narrativas contendo os depoimentos de senhoras que fazem parte da memória da moda
brasileira, como D. Mena Fiala e as costureiras Neuza 501 e Maria Elita que, no
anonimato, representam as vozes das costureiras em domicílio. O pesquisador João
Braga menciona que havia ―(...) um exército de costureiras anônimas ou as próprias
donas de casa continuavam a prover a maior parte das roupas das famílias de classe
média. (...)‖502.
É interessante ressaltar que, essas ―costureiras da famìlia‖ 503 se mantinham
semanas a fio no processo de confecção de trajes, para toda e qualquer ocasião na
residência da freguesa, pois o objetivo era de atender a nova demanda de mercado
proveniente do fortalecimento econômico da classe média brasileira em ascensão nos
anos de 1950.
A pesquisadora e jornalista Cristina Seixas entrevistou algumas costureiras da
época, como dona Neuza e dona Maria Elita, para compor um dos objetivos de sua
dissertação de mestrado, quando discutia a questão da cópia e do trabalho original sob o
olhar dessas costureiras. Aqui nos apropriamos dos depoimentos com o intuito de
apresentar a rotina das mesmas no espaço domiciliar, em que a criação do design de
moda se fez acontecer. Dona Neuza, hoje falecida, mas na época da entrevista (2000)
estava com 89 anos, afirmou que "[...] tinha ateliê próprio, em Ipanema, bairro em que
morava. Aprendeu a costurar com a mãe, e começou costurando para as irmãs, as
primas e a empregada. A "prática" foi seu grande aprendizado, tendo frequentado aulas
de costura só mais tarde, em idade mais madura, após o casamento". 504
Quanto ao processo criativo, dona Neuza mencionou que ―[...] a freguesa
escolhia um vestido no l'Officiel, difícil de talhar...de noite quando me deitava... ficava
na minha mente... eu dizia: vou fazer assim, vou talhar assim...mentalmente eu resolvia
501
SEIXAS, Cristina Araújo. A Questão da Cópia e da Interpretação no Contexto da Produção de Moda
da Casa Canadá, no Rio de Janeiro da Década de 50. Dissertação de Mestrado. Programa de PósGraduação em Design. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2002 .p. 224.
502
BRAGA e PRADO, op. cit. p. 187.
503
BRAGA e PRADO, op. cit. p. 188.
504
SEIXAS, Cristina. 2002, pp. 78-84
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o problema...‖505.Desse modo, o desenvolvimento projetual da peça em construção se
fazia de forma criativa e mental, para depois ser executada enquanto produto de moda.
Já dona Maria Elita mencionou que "[...] trabalhou muito em Copacabana, em
domicìlio... eu andava muito chique... você sabe... era a representação [...]‖ 506. Assim
percebemos que, para ela, a apresentação enquanto uma ―profissional da costura‖ tinha
que ser impecável, desde a roupa propriamente dita até a sua apresentação como um
todo, para garantir o sucesso do seu trabalho em domicílio.
Em 15 de fevereiro de 2010, fiz também uma entrevista com dona Maria Elita,
que narrou não só como era o seu cotidiano profissional, mas o quanto ela dispendia de
tempo para ter uma boa aparência no vestir, pois sabia que ela era um canal de
referência entre a moda daquele momento e as suas freguesas. Ela mencionou que ―[...]
ia na casa das madames e deixava o vestido ou qualquer outra peça semipronta, pois eu
gostava de fazer o modelo que a madame desejava, muitas vezes interferia em um
detalhe ou na escolha dos aviamentos para obter um feitio mais elegante [...].‖ Portanto,
o toque da sua criação dava-se nos mínimos detalhes, inclusive sugerindo mudanças na
peça a ser confeccionada para garantir o bom acabamento do traje. Dona Maria Elita,
assim como dona Neuza, só obteve o diploma de costureira bem mais tarde, em 22 de
dezembro de 1961, pela Academia de Corte e Costura (situada no bairro do Largo do
Machado), assinado por Madame Cesar (Maria de Jesus Pombal Cesar). Segundo o
depoimento de dona Elita, a professora se orgulhava em dizer que havia feito curso com
o costureiro Jean Patou (1880-1936) e ensinava o método de produção dele em suas
aulas.
De qualquer forma, a profissão de costureira passou a ter então duas direções: as
costureiras que executavam seu ofício nas Maisons e nas produções destinadas ao prêtà-porter, e as costureiras que atendiam à demanda dos magazines em expansão.
Portanto, as costureiras em domicílio foram perdendo espaço a partir de 1960, devido à
ampliação da indústria têxtil e de todo o sistema da moda instalado no Brasil.
Da exclusividade à padronização da moda
505
Idem. Entrevistada por Cristina Seixas em 22 de setembro de 2000).
506
Idem. Ibidem. Entrevistada por Cristina Seixas em 22 de setembro de 2000)
263
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O setor de alta costura, antes mesmo dos anos de 1950, obteve uma ampliação de
mercado, ainda que seleto, quando em 1944, a produção da Casa Canadá inaugurou a
linha ―Canadá de Luxe‖ , que foi orquestrada por D. Mena e por sua irmã Cândida. Esta
última se preocupava com a escolha dos tecidos e dos moldes que eram importados para
atender exclusivamente a alta sociedade brasileira. Para Braga507, esta coleção foi
apresentada em 17 de julho de 1944, como a primeira a ter um desfile de moda com
manequins, todas orientadas por Mena Fiala juntamente com sua irmã Cândida
Gluzman e, ainda com a divulgação das tendências pela imprensa e, consequentemente,
para o público em geral.
A produção de moda se ampliou para as demais classes como um ―efeito
dominó‖, ou seja como um ―fenômeno social ou cultural, mais ou menos coercitivo,
que consiste na mudança periódica de estilo, e cuja vitalidade provém da necessidade de
conquistar ou manter, por algum tempo, determinada posição social (...)‖508.
Assim sendo, como se estabelece num primeiro momento, as mudanças de
comportamento alteraram os trajes e também o aumento de circulação de mercadorias –
tecido, aviamentos, elaboração de modelagem e confecção de modelos por
determinados grupos sociais, pertencentes à sociedade carioca. Talvez só seja possível
explicar essas mudanças no comportamento, na silhueta e nas vestimentas através das
representações simbólicas presentes, tanto nas imagens da época, quanto nas narrativas
contidas nas entrevistas, em que a palavra mudança se apresentou em todas as formas,
inclusive no desenvolvimento industrial da moda brasileira.
D. Mena assegurou que, neste período, a moda brasileira sofreu uma
[...] mudança geral, nós que vivíamos do importado, porque o Brasil
importava tudo, chegamos a um momento de não ter linha na agulha para
coser o vestido. [...] No pós-guerra houve muita produção devido à procura
por causa do jejum, quando abriu todo mundo queria comprar coisa nova,
queria voltar aos bons tempos [...]. Havia uma saudade do que era bom, todo
mundo foi voltando rapidamente. Todo mundo gosta do que é bom509.
(CARVALHO 2001, P. 74).
507
508
.BRAGA e PRADO. op.cit p. Braga, p. 226.
CIDREIRA, Renata Pitombo. Os sentidos da Moda. São Paulo: Annablume, 2007.p.30.
509
CARVALHO, Ana Paula L. O Cenário da Moda do Prêt-a-Porter no Brasil, do Pós-Guerra aos Anos
50. Produção de Vestimentas Femininas. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em
Design. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2001. p. 152.
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Mesmo sendo uma representante efetiva da Casa Canadá e, por conseguinte, das
classes abastadas, D. Mena deixa claro que todos, independentemente de classe, devem
ter bom gosto. A questão é o que se determinou por bom gosto em uma época de
consumo, com mais referência nos valores simbólicos510 dos Estados Unidos do que na
tradição do bom gosto parisiense.
Na Europa e também nos Estados Unidos houve um crescimento acelerado na
indústria de confecção durante a Segunda Guerra Mundial e, consequentemente, o
ready-to-wear conquistou espaço no mercado americano para, logo depois, exportar
esse sistema para os demais países, assim viabilizando as vendas de peças de vestuário
a preços acessíveis, por exemplo no Brasil, para as classes médias urbanas em ascensão.
Dessa maneira, as lojas de departamento ganharam espaço no eixo Rio de Janeiro - São
Paulo, até porque houve uma mudança de comportamento no universo feminino, que
cada vez mais saía do ambiente de casa para o espaço público e, assim, também
conquistava participação mais ativa no mercado de trabalho511.
Na verdade, ao longo da Segunda Guerra já havia um incentivo de produção do
vestuário com o uso das próprias máquinas de costura, a necessidade de reutilização de
materiais devido à escassez dos mesmos e à alta de preços, que permitiram um aumento
significativo da capacidade produtiva na indústria têxtil brasileira, sobretudo com o uso
do algodão (BRAGA, PRADO, 2011). Assim sendo, o processo de democratização da
moda foi datado a partir do pós Segunda Guerra, pois o que era antes limitado a um
segmento social mais privilegiado economicamente, com consumo de peças de
vestuário exclusivas, abriu espaço para o ready- to- wear. Esta democratização
viabilizou o consumo de produtos de moda com um design atualizado, às vezes com
qualidade e preço baixo. Braga e Prado 512 afirmam que ― (...) Não era mais possìvel que
a moda continuasse a ser um privilégio de poucas mulheres em condições de pagar por
peças únicas. Todas queriam ter acesso à moda. Era uma demanda da moderna
sociedade de consumo que as roupas de moda fossem produzidas em série‖.
510
BOURDIEU, op.cit. p. 17.
511
GRAGNATO, Luciana. O desenho no design de moda. Dissertação de Mestrado. Programa de PósGraduação Stricto Sensu em Design da Universidade Anhembi Morumbi: São Paulo, março, 2008. p.
150.
512
BRAGA e PRADO. Op.cit.p.191.
265
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Para Lipovetsky513, a democratização da moda não era sinônimo de
padronização do vestir, uma vez que novos códigos, como os presentes nas marcas,
continuaram a assegurar as funções de distinção social. Um exemplo é estou com um
Dior, que permite reconhecer a classe a que o sujeito pertencia, mesmo a partir do
processo de democratização, que significou uma diminuição dos símbolos referentes à
distância social entre as classes. Os signos presentes entre o produto a ser comprado e a
associação com a marca cheia de tradição da sua origem de alta costura, limitam a
possibilidade de ampliar o consumo para os demais segmentos sociais.
A partir do pós Segunda Guerra diversos magazines se instalaram no Brasil, com
maior presença no eixo Rio de Janeiro - São Paulo. Para este estudo, selecionamos a
Sears Roebuck S/A, que teve suas duas lojas inauguradas no mesmo ano de 1949,
primeiro em São Paulo e posteriormente no Rio de Janeiro. A localização de ambas era
nos centros de consumo da classe média urbana em ascensão; a primeira no bairro
Paraíso e a segunda no número 400 da Praia de Botafogo, as quais apresentaram
diversidade de produtos, com base na política de americanização do consumo já
apontado neste artigo.
Conforme descreve Varotto
514
, havia os mais variados produtos à venda, no
setor moda, a loja contratava empresas de confecção, com etiqueta própria para os
diversos segmentos do mercado. Tinha produtos para todas as faixas etárias, do bebê
aos adultos, masculino e feminino, além de acessórios. O periódico Life 515 afirma que a
inauguração no ―Rio de Janeiro contou com a presença de 123.000 clientes que
compravam de algodão a geladeiras. Ao final do dia a empresa tinha vendido todo seu
estoque de geladeiras‖. O lema era: ―Satisfação garantida ou seu dinheiro de volta‖.
Vale lembrar que este magazine também oferecia vendas em catálogo. Portanto, o
estabelecimento deste sistema de lojas de departamentos ampliou o consumo e,
paralelamente, houve a democratização da moda. Tivemos a oportunidade de entrevistar
algumas senhoras, moradoras do bairro de Copacabana que, na época, tinham 16 anos, e
513
LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero. Maria Tradução, Lucia Resende. São Paulo,
Companhia das Letras, 1989.p.296.
514
VAROTTO, L. F. Ponto de vista- História o varejo. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas. V.5,
n.1, 2006.pp80-90 1974.
515
LIFE. Estados Unidos: TIME Inc. v.26, 116p. 1949.
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uma delas, a sra. Neida, mencionou que chegou a ―[...] comprar dois vestidinhos, mas
não era muito barato, mas dava para ela que era esposa de militar comprar!‖516. A partir
do contexto histórico, somado ao depoimento, podemos afirmar que o estabelecimento
dos magazines não só ampliou o consumo para a classe média urbana, como também
abriu novas frentes de consumo.
Conclusões
O contexto histórico da década de 1950 foi marcado por mudanças estruturais na
construção de uma ―nação moderna‖, regada por otimismo frente às conquistas do
sistema capitalista. Mello e Novais afirmaram que obtivemos ganhos materiais do
capitalismo com a persistência dos traços de cordialidade, criatividade e de tolerância
pertencente ao povo brasileiro517.
Desse modo, independentemente do tipo de costureiras a que nos estamos
referindo – aquelas que costuravam em domicílio ou as da Casa Canadá - todas nos
levam a perceber que o sistema da moda no Brasil foi iniciado com base na dialética
entre a produção artesanal e a industrial, o saber fazer e o saber criar, o reproduzir os
modelos dos costureiros das Maisons e a busca constante da originalidade. Portanto, as
costureiras em domicílio fomentaram uma maior circulação da moda nos demais
segmentos que não tinham acesso à alta costura, e, muitas vezes, nem ao Prêt-à-Porter
em expansão ao longo da década estudada. Sem dúvida, os magazines viabilizaram o
consumo de massa e a gradativa americanização dos costumes expressos no consumo
diário de produtos industrializados de toda ordem, do vestuário aos eletrodomésticos,
que representavam progresso e ascensão social, como se pertencêssemos ao Primeiro
Mundo.
Finalmente, para dar um desfecho a este estudo que muito se amplia, a moda
brasileira foi sendo construída e alterada sob todas as formas, isto é, da exclusividade à
padronização, da costura em domicilio às Maisons. Entretanto, o que vale a pena
516
GALVÃO, Neida. depoimento [ 6 de outubro de 2013]. Rio de Janeiro. Entrevista concedida à Ana
Paula de Carvalho.
517
Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. In: História da vida privada no Brasil. Contrastes da
intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, v.4, p. 560, 1998.
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destacar é que esses fatores são resultantes das transformações políticas e culturais
ocorridas na sociedade brasileira e, na medida do possível, permitem desvendar alguns
agentes sociais que, no anonimato, elaboraram peças do vestuário que representam o
modo de vestir, tanto da alta sociedade carioca, quanto dos demais segmentos sociais
em ascensão, que viabilizaram a democratização da moda da Capital Federal de então, a
Cidade do Rio de Janeiro.
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COMO LENDÁRIOS ESPARTANOS518
Anderson Alexandre Cruz Vilhena519
Resumo:
Partindo do pressuposto de que o ato da proclamação da República foi um marco
sociocultural que inicia o desenvolvimento efetivo da construção dos militares
brasileiros enquanto classe. Esse artigo busca, através de textos de quatro importantes
militares paraenses de fins do século XIX sobre a guerra de Canudos, perceber a
possibilidade de um discurso de classe que possa representar as características
discursivas dessa ―nova classe‖ social no estado do Pará.
Palavras-chave: Militar – Canudos – Discurso.
Abstract:
Assuming that the act of the proclamation of the Republic was a socio-cultural
milestone that starts the effective development of the making of the Brazilian military as
a class. This article seeks, through texts of four major military personalities from Pará
State of the late XIX century about the Canudos War, realize the possibility of a
discourse of class that can represent the discursive features of this "new social class" in
Pará State.
Keywords: Military – Canudos – Discourse.
O embarque das forças paraenses rumo a São Salvador, e, por conseguinte, ao arraial de
Canudos, sucedeu na tarde do dia 5 de Agosto de 1897, a confiar na imprensa local, no
entorno das 14:00 horas, em seguimento a pomposa cerimônia que teve lugar no então
chamado Largo da Pólvora, a atual Praça da República. A coluna seguiu ao cais do
porto de Belém, onde deram revista às tropas o recém-eleito Governador do Estado,
José Paes de Carvalho e seu Vice-Governador, Major520 Antônio Baena, bem como as
518
Citação extraída da obra de MARRECA, Orvácio Deolindo da Cunha. Histórico da Polícia Militar do
Pará: desde seu início (1820) até 31 de dezembro de 1939. Belém: Oficinas Gráficas do Instituto Lauro
Sodré, 1940. p. 297.
519
Bacharel e Licenciado em História – UFPA Mestrando em História Social da Amazônia –
PPHIST/UFPA
Orientação Prof. Dr. William Gaia Farias
[email protected]
520
Como alternativa à constante repetição, as patentes e postos militares serão escritos por extenso em
primeira aparição no texto e posteriormente abreviados em consonância com o Manual de Campanha C
21-30: Abreviaturas, Símbolos e Convenções Cartográficas. Estado Maior do Exército. EGGCF. 2002,
salvo o posto hoje inexistente de Alferes que adotei por ―Afr‖ e as graduações de Furriel que adotei por
―Frr‖ e Aspençada que adotei por Asç (para evitar confusões com o moderno posto de Aspirante -aOficial: Asp.)
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magistraturas e autoridades locais, representantes de ambas as Forças Armadas
existentes à época, Exército e Marinha e toda a sorte de entes da sociedade civil 521 para
testemunhar a partida dos dois únicos Corpos de Infantaria – CI‘s com os quais a força
pública paraense contava. Subira a bordo do vapor nacional chamado Pernambuco,
deixando a segurança no estado à verde – e criada para essa ocasião – Guarda Cívica de
Belém, às recentemente restabelecidas Guardas Locais do interior e ao Corpo de
Cavalaria522.
Nesse momento é significativo o discurso proferido em Ordem do Dia (OdD)
pelo comando, publicado no dia 06 de Agosto de 1897, já no interior do navio, no qual
o Coronel Comandante do Regimento José Sotero de Menezes ordena que seja feito
constar no assentamento de todos os praças e oficiais que estiveram presentes no
embarque a ―convecção e enthusiasmo com o qual [todos] se mantiveram na ocasião de
deixar a Pátria Paraense‖523. Nesta ordem o Cel Sotero se refere a pontos centrais que,
podemos supor, acreditasse que elevariam o brio e o orgulho da tropa paraense, fim para
o qual ele trabalha diversos signos que serão recorrentes nos discursos de militares
encontrados ao longo da campanha. Diante da ainda incipiente pesquisa, o avanço sobre
os significados que os diversos termos que formavam o discurso militar assumiram
neste momento será feito apenas até onde o estágio de análise documental permitiu.
Patriotas de uma nação maior.
Ao início do discurso, enquanto ainda agradece à soldadesca, o Cel Comandante afirma
que não poderia acorrer a tal risco confiante do triunfo, se não fossem estes membros do
Regimento, ―[se]ja como soldados arregimentados, [se]ja como cidadãos de cujo
civismo não se pode negar, [...] firmado nos bellos princìpios da disciplina‖. Aqui se
identifica princípios de ordem e disciplina que se impõem sobre a vida, indistintamente,
civil e militar, e que se coadunava com a tradição militar positivista presente na Escola
521
FARIAS, William Gaia. ―A brigada Militar do Pará na Guerra de Canudos‖. Revista Alpha. UNIPAM.
Patos de Minas – ago 2010. p.65
522
Alguns termos e nomes foram encontrados nas fontes com formas de escrita divergentes, motivo pelo
qual optei pela grafia atual de tais palavras, à exceção de citações, nas quais será mantida estritamente a
grafia do documento.
523
Governo do Estado do Pará / Arquivo Público do Estado do Pará (APEP) / Secretaria de Segurança
Pública / 2º Corpo de Infantaria / Ordens do Dia / OdD nº 505. (grifos meus).
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Militar, responsável por formar os oficiais do Exército e berçário da mocidade militar
que desfechara a Proclamação da República524.
Sotero invoca o ―patriotismo‖ e a ―abnegação‖ de seus comandados, bem como
o ―nunca desmedido amor às instituições republicanas e à causa da legalidade‖,
estabelecendo um paralelo com outros já reincidentes argumentos contra Antônio
Conselheiro que, com seus exacerbados ataques ao laicismo republicano e que dentro de
sua área de influência se estabelecia como autoridade política, o que já fora
diagnosticado pelo vigário de Bom Conselho, que alertava para a transformação do
humilde peregrino em um como que ―Governador, [que] promulga leis e desafia a
hierarquia‖525, firmando-se já por três expedições como um desafio a outro ideal
recorrente nos discursos militares, a ordem instituída.
Sotero trata de agradecer aos soldados sem os quais este não poderia ―correr com
risco em busca do cumprimento de deveres [...] já que no socegado remanso [de] nossos
lares soou a hora extrema de corrermos em defesa da Pátria ‗amada‘‖. Percebe-se aqui
uma característica da época quando o comandante busca exaltar esse patriotismo. Não à
toa o último terço do seu discurso é norteado pela reincidência da palavra Pátria, esta
sempre em letra inicial maiúscula como nome próprio, e em destaque no papel.
É interessante notar, contudo que Sotero não usa o termo fazendo referência ao
país como mais contemporaneamente se faria, mas ao Estado do Pará.
Não que
desapareçam as referências à unidade maior, de modo algum. Entretanto os adjetivos
para o Brasil são usualmente ―a República‖, ―a federação‖ ou ―o paìs‖, enquanto os
laços afetivos mais próximos, que serão mostrados pouco mais a frente, e que são
considerados inerentes a uma pátria, são resguardados para o estado natal, sinalizando
um regionalismo subjacente a esse discurso nacionalista.
Isso é algo que se identifica na república tão cedo quanto a primeira mensagem
do, também militar, primeiro governador eleito do Pará, Lauro Sodré, que ao tratar da
―memorável revolução de 15 de Novembro de 1889‖, da qual foi partìcipe, acentua a
524
Sobre a mocidade militar, ver: CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e Política no Brasil.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. para uma visão de processo, bem como para um enfoque no próprio
fenômeno ver: CASTRO, Celso. A Proclamação da República. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
525
GALVÃO, Walnice Nogueira. O Império do Belo Monte: vida e morte de Canudos. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 2001 p. 59.
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independência regional que teve seu coroar com o fim do centralismo imperial e trouxe
a:
conquista dos foros de Estado autônomo e independente, [pois] Somos um
grande Estado, que hoje, na posse da sua autonomia, e gerindo-se ao seu
alvedrio, vê rasgados diante de sí grandíssimos horizontes. [Contudo que]
Para encetar essa vida nova não devem saltear-nos infundados receios de que
possam periclitar as instituições políticas vigentes. 526
Em relatório ao governo federal Lauro Sodré, seis anos antes dos eventos
catastróficos do sertão baiano e do discurso de Sotero, já relaciona discursivamente o
progresso ao regime republicano e condiciona ambos à autonomia de seu estado. Algo
que pode ser igualmente encontrado quando percebemos que o Cel Sotero usa o termo
―República‖ como um sinônimo do paìs. Nesse discurso, a partir da Proclamação os
laços entre o país e o novo regime político não podem mais ser visualizados, pois eles
são, virtualmente, um a mesma e inseparável entidade.
Outra inter-relação entre discursos, esta indireta, aparece quando Sodré trata de
garantir a estabilidade das instituições. Sotero afirma correr ao perigo e partir em defesa
da pátria. Mas como o arraial conselheirista527, incrustado no árido do sertão nordestino,
poderia representar à pátria, discursivamente o estado do Pará, um perigo real, quando
está fisicamente tão longe, se não justamente pelo que representava, por seu caráter
simbólico.
Podemos inferir a existência aqui de um jogo de significados deveras longo.
Estavam tão entrelaçados o regime republicano e o país, que o violar das instituições
republicanas ameaçava mesmo a existência do Brasil como nação. Pelo discurso de
Sodré podemos perceber que, de forma até um pouco paradoxal, o progresso do Pará e
mesmo sua existência não podem ser desvinculados da existência do país, pois a
liberdade estadual é condição sine qua non para o futuro. Nesse sentido o país é o
526
Center for Research Libraries: global resource network / Brazilian Government Documents /
Provincial Presidential Reports (1830-1930) / Pará / Mensagem 1891 p. 03, 11-12.
527
Opto aqui pelos termos ―conselheiristas‖, ―canudenses‖ ou ―jagunços‖ para designar indistintamente
os partidários de Antonio Mendes Maciel, o ―Conselheiro‖, que optaram por assentar-se no povoamento
de sua fundação, servindo em especial este último para designar os defensores armados da povoação.
Estes nominativos de uso corrente na documentação da época foram escolhidos para fim puramente
ilustrativo, sem qualquer conotação pejorativa, preconceituosa ou tentativa de generalizar a diversidade
de grupos que formaram a população e as forças de defesa de Canudos, sendo reconhecido que mesmo
essa categorização marginal nem chega a se aproximar de um reflexo da complexidade das relações que
se teciam dentro desse assentamento tão singular na história brasileira.
272
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baluarte das liberdades de cada unidade da federação, seu papel é justamente garantir o
futuro de cada estado brasileiro, resguardando seus direitos. Não há separatismo por trás
desse regionalismo, já que não é mais concebível o progresso da pátria sem a existência
do país. Desse modo, e por fim, seria então Canudos uma afronta e uma ameaça à
república, ou seja, ao país e, por extensão, também ao estado do Pará.
Cidadãos e soldados da Pátria.
Aparentemente Sotero busca também alcançar os sentimentos menos jacobinos acerca
da república em seu discurso, pois não se ausenta deste a famìlia como apelo, ―esta
aggregação santa de imagens queridas‖, na qual ―nossas esposas e mães ao despedir-se
saudosas sabiam que caminho da glória íamos a defesa em sua honra que é a honra
nacional!‖. Vemos figurando agora também o traço caracterìstico brasileiro, a famìlia
nuclear e o papel ―protetor‖ do homem sobre esta, bem como a sua honra familiar, lado
a lado com a honra nacional caracteristicamente identificada, ou mesmo
instrumentalizada na imagem sexista da ―dama República‖ cuja obrigação de todo
homem da nação era defender, como bem trabalha Peter Beattie528.
Não apenas Sotero, mas um discurso muito próximo segue o então TenenteCoronel, Antonio Sérgio Dias Vieira da Fontoura, à época Comandante do 2º Corpo de
Infantaria e futuro Comandante Geral e patrono da força. Este aparentemente teria
iniciado sua vida militar em 1890 como Cap do Corpo Provisório de Linha, ex e futuro
Corpo de Polícia do Estado, sendo desta forma o que mais se aproximaria de um oficial
―natural‖ da força pública, na medida em que não aparenta ter passado por formação
oficial militar, mas de ter alcançado o posto por ―grandes serviços prestados à
República‖, serviços os quais não são citados. Em seu discurso por ocasião da tomada
de Canudos529 – in facto um misto de declamação poética, narrativa heroica e relatório
documental publicado no dia 06 de outubro, ele faz eco aos autores anteriores
Igualmente, encontramos no discurso de Fontoura o apelo pátrio personificado
na imagem feminina semi-maternal de uma ―alma de joelhos‖ que agredida por seus
528
BEATTIE, Peter M. ―Ser Homem Pobre, Livre e Honrado: a sodomia e os praças das forças armadas
brasileiras‖. In: Nova História Militar Brasileira. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2004. pp.272-273.
529
Governo do Estado do Pará / Arquivo Público do Estado do Pará (APEP) / Secretaria de Segurança
Pública / 2º Corpo de Infantaria / Ordens do Dia do 2º Corpo de Infantaria / OdD nº 538.
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próprios filhos clama por outros filhos seus que sejam ―melhor compenetrados dos
sacratissimos deveres de libertal-a‖, empenhando-se os soldados em agir corretamente
em frente da pátria que aguardava sob suas vistas esse ―povo de bravos‖ diante dos
quais após a derrocada do ―Recanto de Selvagens‖ simultaneamente ―curva-se banhada
em lágrimas‖ pelos caìdos e ―sorri... abençoando aqueles que sobreviveram‖.
Algumas das figuras que Fontoura utiliza fazem também referência a conceitos
retornam ao episódio do fim do Império que ficou conhecido como a ―Questão
Militar‖530, na qual pela primeira vez os militares teriam respondido como uma ―classe‖
definida a uma cadeia de incidentes que terminaram por fomentar, ou ao menos
estruturar, uma oposição entre, de um lado o que poderia ser um primeiro esforço de
estabelecer uma identidade militar, e do outro a sociedade civil. A classe política
imperial como representante da sociedade civil foi especialmente alçada a ―inimiga da
farda‖, já que afrontava ideologicamente bens simbólicos como a ―honra‖ e os ―brios‖
militares que passaram a ser tratados como o que tinha de mais caro o militar, levando a
uma unidade de ação que possibilitou ao pequeno grupo do baixo oficialato que iniciou
a Proclamação a ter um apoio tácito dos militares em geral em nome da ―farda‖.
No do 2º Corpo Fontoura recorre a simbolismos militares como o ―pavilhão auriverde‖ sob o qual todos se reuniam e que fazia referência justamente ao momento
crítico de um combate no qual o ponto de concentração e referência seria a bandeira
aliada, no caso do Exército brasileiro, a nacional, tal qual a ―bandeira tricolor do
Corpo‖, a qual hoje se desconhece, que os guiou à vitória. Vitória essa cujo sìmbolo é
justamente o ato de hastear as bandeiras do Corpo e do estado sobre os casebres em
ruínas dos canudenses derrotados, tanto no dia 25 de Setembro, quanto no 5 de Outubro,
materializado o salvamento da ―honra da República‖, afirmando e acendendo os ―brios
d‘este grande povo‖ que lutou bravamente contra a suposta ameaça à estrutura
republicana e em prol da manutenção das ―Instituições democráticas‖.
Fontoura defende que, ao participarem da campanha de Canudos ao lado das
forças federais, estavam os militares do Norte ―honrando como sempre as paginas da
530
Para uma explicação mais extensa sobre a Questão Militar ver: SCHULZ, John. O Exército na
Política: origens da intervenção militar, 1850 – 1894. São Paulo: EDUSP, 1994. pp. 95-112. e para uma
compreensão dos reflexos acerca da unidade de ação do Exército ver CASTRO, Celso. A Proclamação da
República... pp. 28-32.
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História Paraense‖, estabelecendo um provável paralelo com outros momentos nos
quais a província ou estado do Pará teve participação em eventos de âmbito nacional,
como a tomada de Caiena, ou a guerra do Paraguai. Por isso considera que o Pará
cumpre, como sempre cumpriu, o dever de levar a cabo essa ―missão‖. E que, ainda que
com pesar pela ―lucta fraticida empenhada entre degenerados [...] brasileiros
obscurecidos pelo fanatismo e bravos e intemeratos do engrandecimento social‖, o
Regimento como instituição, a personificação de um progressista povo paraense, os
mantenedores do desenvolvimento estadual, o ―Pará em armas‖ tanto quanto o exército
deveria ser o ―Brasil em armas‖, estava também satisfeito por ter a oportunidade de
prestar seus valorosos serviços à Nação. Seria uma obrigação à qual de forma alguma se
podia furtar o estado do Pará, o ―monithor estrondoso e gigantesco do Collossal
Amazonas‖.
O discurso de Sotero o acompanha. O Comandante relaciona e define aquela
pátria regionalista extensamente no que resume como ―conjunto de ideais e sublimadas
crenças‖, ou seja, recua à formação pessoal e cultural de cada indivíduo para a região a
qual pertence, o meio social que ajuda a formar a sua conduta moral. Seria a pátria ainda
aquela ―conjugação de seres cuja concatenação de sentimentos fez progredir sob o
influxo da paz que temos sabido fazer respeitar‖. Sendo então igualmente o ―lar‖, o
local onde se encontram os valores pessoais, materiais e morais de um sujeito, o lugar
que concentra tudo aquilo caro a um homem e que, por tanto, que vale ser protegido.
Daqui percebemos a abrangência que Sotero de Menezes pretende ao seu discurso, onde
ambas as definições buscam um sentido de conjunto, um senso de unidade de ação e de
opinião sobre o qual se fundamenta o sentimento de pertença, este pertencimento ao
conjunto está discursivamente dirigido mais uma vez ao progresso e à estabilidade
política.
Marreca e a saga de Canudos.
Tal intencionalidade discursiva – menos conceitual, mas tão simbólica quanto – também
está presente no narrador por excelência do episódio de Canudos para a policia
paraense, Orvácio Marreca. Segundo Gregório Gomes Filho o trabalho de Marreca não
seria o primeiro sobre o tema, datando duas obras de Artur Viana, uma de 1899 e outra
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de 1904531, das quais a nenhuma foi encontrada para contribuir a esta pesquisa. Quanto
ao trabalho de Marreca, será apenas 40 anos depois da queda de Canudos que seu ―A
Milìcia Paraense e sua Heróica Actuação na Guerra de Canudos‖ será publicado. Obra
igualmente não encontrada, sendo aqui apenas analisado seu trabalho de 1940 que,
realizado a pedido do Comando Geral da Brigada, tem o fim oficialmente expresso de
narrar com fidelidade as suas funções capitais, as fáses de instrução
intelectual, moral e física, os seus surtos de progresso, em fim, a sua vida
laboriosa e fecunda, que une fraternalmente todo um passado a um presente
cheio de úteis atitudes, [e] por isso mesmo, a fonte em que todos os seus
componentes vão buscar os elementos sólidos e indispensáveis para
consubstanciar os seus [da corporação] trabalhos ou narrativas cívicomilitares.532
Nascendo com a finalidade de fomentar a criação de uma tradição e cultura policial
militares.
Marreca, imbuído da autoridade de uma testemunha ocular da campanha, narra
com verborragia e riqueza de detalhes o combate, o cenário de campanha e alguns
personagens que considerou merecessem destaque durante o desenrolar da história,
levando a uma ―verdadeira jornada pelos campos de combate do sertão baiano‖ 533.
Gomes Filho considera que Marreca apresenta uma ―tendência‖ de retratar os
membros do Regimento de forma heroica, e de transformar o combate de 25 de
Setembro no ―combate decisivo para a vitória das forças governamentais‖ 534. Quando
tratando do momento em que, no leito do rio, a tropa recebia seu ―batismo de sangue‖, o
quadro que o leitor é levado a pintar delineia uma situação extremamente dramática:
Crepitavam os tiroteios initerruptos, zuniam as balas esfusiantes, do outro
lado, crepitava feroz, continua e ensurdecedora a trabucada, as lazarinas
ligeiras, os bacamartes ‗boca de sino‘ e as ‗manoliches‘ dos ‗conselheiristas‘.
As baixas aviltavam as dezenas; o leito do rio já se achava juncado de
cadáveres, o heroico capitão Cordeiro, ao ver recrudecer o combate, se
colocará a frente de sua companhia, onde o projetil de um trabuco inimigo
531
GOMES FILHO, Gregório Ferreira. Extremos na Historiografia Brasileira: Marreca e o Regimento
Militar do Pará na Campanha de Canudos. Monografia (História Bach/Lic.). UFPA. Belém, 2006. p. 48.
532
MARRECA. Histórico da Policia Militar..., pp. 39-40.
533
GOMES FILHO. Extremos da Historiografia Brasileira..., p. 50.
534
Idem, p. 51.
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traspassou-lhe o peito, atirando-o ao solo, instantaneamente morto; apezar de
procurar ampara lo, pegando num de seus braços, o tenete Rosa Chavez 535
Deve-se, entretanto, manter em mente a usual dramaticidade estilística inerente
às obras da época. Mesmo quando pretensamente racionalistas, na nascente escola
literária realista/naturalista, elas ainda eram influenciadas pelo romantismo do XIX
como Euclides da Cunha536 e mesmo a picaresca obra de Manoel Antonio de Almeida537
são igualmente exemplos. Claro que não se pode negar o aparente esforço de exaltar o
heroísmo da tropa, ainda que a favor de Marreca o leitor deva levar em conta o impacto
psicológico da situação ímpar de estar em combate.
Exemplo dessa construção de ―heróis‖, o Tenente Rosa Chavez, mesmo já
exposto em campo aberto, se expôs ainda mais na tentativa de socorrer seu Capitão, e os
períodos curtos com as seguidas descrições de tiros que a passagem acima nos mostra
parecem buscar justamente acentuar a urgência inerente a um combatente desesperado.
Este não foi o primeiro e nem será o último momento da narrativa em que esse
caráter emergencial da situação acompanhado da disposição em ajudar seus
―camaradas‖ foi evocado.
Enquanto marchava com a 1ª e 2ª Cia do 1º Corpo ao encontro da linha de
ataque, o próprio autor testemunha que o primeiro ferido que viu, o Sargento Raimundo
de Vasconcelos, recuava ―amparado por dois músicos, para o Hospital de Sangue,
ligeiramente improvisado e rapidamente instalado no acampamento do 2º Corpo‖538.
Quando ―A ala direita do 2º Corpo foi, em cumprimento a ordem recebida por
Fontoura, pressurosamente posta em forma e se aprestava para seguir...‖539. A postos
estava também o Sgt José dos Santos que trazia a requisição para uma ala do 1º Corpo a
este chegou ―esbaforido e arquejante‖ pela jornada em acelerado. Logo em seguida:
535
MARRECA. Histórico da Polícia Militar..., p.87.
536
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. vol. I & II. São Paulo: Nova Cultural, 2003., bem como um estilo
presente em suas anotações pessoais sobre a guerra de Canudos, posteriormente publicadas em ____ .
Canudos: Diário de uma Expedição. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2009.
537
ALMEIDA, Manuel Antonio de. Memórias de um Sargento de Milícias. São Paulo: Saraiva, 2006.
Que é considerada uma obra de transição, alcançando personagens que representam os ―tipos sociais‖ da
escola realista, entretanto mantendo um enredo e narrativa com fortes características românticas.
538
MARRECA. Histórico da Polícia Militar..., Loc. cit. (grifos meus).
539
Idem. p.86. (grifos meus).
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...num ápice estava todo o Corpo em formatura regular.
Ouvir ao emissario e cumprir a ordem recebida foi cousa de rapidos
momentos; gastando-se alguns instantes, apenas, em retirar de forma muitas
praças e alguns oficiais que insistiam em querer seguir para o combate, o que,
entretanto, só foi conseguido em parte (...).
De armas suspensas e em fogoso acelerado, a ala direita do 1º Corpo venceu
a distancia que medeia entre a Favela e o Forte ‗7 de Setembro‘, em rapidos
instantes...540.
De mesmo modo solícito o Comandante da Brigada, Cel Sotero, ferido, será
carregado nas costas pelo Alferes do 24º Batalhão de Infantaria José Campelo. Quando
ordenado à retirada, Marreca considera que a Fontoura ―custava-lhe mais que todos os
sacrifícios até então suportados [...] Abandonar [...] aquele terreno coberto de sangue de
seus companheiros‖541 e o mesmo zelo se atestará posteriormente em uma solicitação
administrativa de Fontoura, apelando para que, o Comando intercedesse pelos feridos
que se encontram em más condições no hospital improvisado 542.
Sem dúvida estas demonstrações de disposição em socorrer os companheiros em
necessidade de forma indistinta, praças ou oficiais, buscava pintar as cores do
companheirismo e unidade ideais do contingente que, independentemente de postos,
seria formado por homens livres cujas vidas importavam ao Regimento e ao corpo de
militares como um todo, de modo que era papel do grupo zelar pela integridade de cada
um de seus membros. Ainda que esta camaradagem não seja corporificada idealmente
em uma figura específica, está pulverizada no comportamento recorrente de diversos
militares paraenses, e é transcrita por esse mesmo termo, usado tanto por Fontoura
quando por Sotero. Quando, em uma ocasião importante, pretendem evocar os valores
do Regimento como um todo, sempre recorrem aos seus ―Camaradas!‖.
Neste sentido simbólico de materialização de valores, encontra-se mesmo o uso
singular de uma figura poética. No momento de invadirem à baionetas os
abarracamentos, Marreca compara os soldados paraenses avançando quase em fila para
540
Idem. pp.86-97.
541
Idem. p.92.
542
Governo do Estado do Pará / Arquivo Público do Estado do Pará (APEP) / Secretaria de Segurança
Pública / 2º Corpo de Infantaria / Ordens do Dia do 2º Corpo de Infantaria / Informes do 2º Corpo ao
Comando da 2ª Brigada da Divisão Auxiliar nº 488.
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o interior do arraial com ―carneiros de Panúrgio‖ 543. Personagem do escritor francês
Rabelais, Panúrgio se desentende com um vendedor de carneiros em uma viagem de
barco, então compra-lhe o carneiro que mais balia e atira-o ao mar, levando todo o
rebanho a segui-lo por instinto, inclusive o próprio vendedor que buscava salvar sua
mercadoria. Desde então a expressão seria usada para designar pessoas que seguem
outras sem refletir, mas o tom elogioso do uso desta metáfora é revelador do
comportamento que Marreca espera das praças, as quais, uma vez incitados pelo
carneiro que mais balia, amantes da ordem e disciplina, deveriam acompanha-lo sem
refletir, alheios à própria segurança.
Tanto se percebe na cena que se segue, não sem motivo escolhida dentre tantas
outras para ter destaque na narrativa do autor:
Dando cumprimento á ordem recebida, José Lourenço leva a corneta aos
lábios, tendo nesse momento sido arrebatada a mesma, por uma bala que
levou-lhe o respectivo bocal.
Calmo, sereno, sem o menor traço de agitação, José Lourenço junta o
instrumento arrebatado e, metendo a mão no bornal, tira outro bocal e inicia o
toque, interrompido ao soar a primeira nota por outra bala que, atravessandolhe o peito prosta-o morto no solo.
Um outro corneteiro então executa o toque ansiosamente esperado por
Fontoura.544
Este momento, em que, preso ao leito do Vaza-Barris, Fontoura opta pelo toque
de carga para desentrincheirar o inimigo e salvar seus homens da derrota. O CornetaMor, impávido, cumpre sua ordem, não lhe importa o perigo a que se expõe, menos
ainda o grave e assustador impedimento ao cumprimento da ordem que recebeu, possuía
ainda outro bocal, a munição de seu ofício. Então continuou, de forma abnegada e
desprendida de sua própria segurança, a missão que lhe havia sido delegada, pagando
com a vida pela obstinação.
Homólogo comportamento se segue, no ponto alto da narrativa do combate, e
repete a figura do comportamento de carneiro, quando descrita a carga de baionetas.
...era assaltada á baioneta a trincheira ‗conselheirista‘, (...) cujos defensores,
num último lance de desespero, fuzilam os atacante com redobrada
intensidade.
543
MARRECA. Histórico da Polícia Militar..., p.90.
544
MARRECA. Histórico da Polícia Militar..., p.89.
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O impeto foi leonino, o movimento foi geral; aquele rebanho inteiro de
homens agiu como se fora movido por uma unica personalidade...545
Tanto a unidade de ação quanto a disposição da tropa de fazer o que fora
designada são reincidentes, bem como novamente a figura do movimento de rebanho
que corporificava essa comunhão entre os militares do Regimento. Unidos pelo dever e
guiados pela personalidade de seu líder, tudo mais além de seus objetivos era de menos
importância, a segurança pessoal seja de praças, seja de oficiais, estava relegada a uma
posição posterior ao objetivo.
Combatentes, salpicados de sangue, com a morte dita dos olhos, êntre
milhares de projetís que rebentava sem cessar, tropeçando sobre cadáveres,
feridos e agonisantes, todos se empenhavam na luta com louco ardor,
avançando, avançando sempre, levando tudo de vencida...546
Em suma, este militar ideal, destemido, disciplinado e disposto ao combate, tem
como sua principal característica e o valor maior de seu papel a ação. A atividade regida
por seus superiores qualificados a exercer funções de liderança. Sob cujo comando
mesmo que diante da pior ameaça não se furta ao cumprimento dos deveres a ele
atribuídos. Agindo de bom grado e com a ferocidade que lhe é devida pela paixão que
deve ter pelos ideais que o movem. Análises anteriores acerca do Regimento mostram,
entretanto, uma tropa que mesmo não sendo teoricamente constituída nas mesmas bases
sociais que o exército, demonstra lidar com problemas e limitações bem parecidas em
termos de manutenção de efetivo e de indisciplina547.
Aqui encontra-se talvez o reflexo de 1916 na obra de Marreca, um dos
comandantes ―exonerados‖ por seus próprios homens nessa data. Em sua narração da
campanha de Canudos, encontraremos nos praças que narra um comportamento
inteiramente inverso. Os soldados paraenses formam um modelo de soldado,
apaixonados pelos ideais que os mobilizam, estes representantes da ―Pátria paraense‖
são a sinédoque da sociedade paraense. Com o adendo de que, ainda que sejam
545
Idem. p.89. (grifo meu).
546
Idem. p.190.
547
Ver especialmente o primeiro e segundo capítulos em VILHENA, Anderson A. C. Canudos: Memória,
história e identidade policial militar paraense. Monografia (História Bach./Lic.). UFPA. Belém. 2011.
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―corações inflamados‖ pela causa, ainda assim são dóceis a seus comandantes,
docilidade ausente no ―colapso da disciplina‖ que Marreca tanto condena em 1916548.
Conclusão.
O discurso patriótico, nacionalista e republicano de Sotero de Menezes parece buscar
projetar sobre a força pública a carga ideológica mesma que se identifica na ―mocidade
militar‖ que arquitetou a Proclamação. Conteúdo e linguagem similares são encontrados
nos discurso do expoente republicano paraense Lauro Sodré, no futuramente lendário
Cel Fontoura e de seu bardo, Marreca. O discurso desses oficiais militares de diferentes
origens e formações, e que atingiram destaque de formas diversas deixam perceber uma
linguagem comum. Mais que veículos de um discurso militar que chegara ao poder
político e buscava se estruturar e expandir, eles representam discursos guiados,
expressavam um projeto de civilização mesmo. Mas o ponto em questão é a
possibilidade de, através desse discurso, encontrarmos tanto esses projetos quanto suas
nuances mais evidentes, seus conflitos internos diretos e, talvez, a atribuição de sentido
a termos-chave desse discurso.
Mas para além da constatação desses discursos, é importante perceber a
reelaboração dele ao longo do tempo. Negociando com a sociedade circundante ele se
flexibiliza, como ocorre no caso do termo ―Pátria‖ e o regionalismo encontrado no Pará.
Poderíamos dizer então que esse projeto se articula e reconstrói em um diálogo
estabelecido com a realidade social em questão. Certamente, ao longo criação desse
ideal de militar e de sociedade paraense/brasileira, e mesmo desse ideal de militar,
devemos considerar a força de demandas sociais como as das praças – que formavam
porcentagem esmagadora do Regimento – e da sociedade paraense que esses militares
pretendiam representar – ou se pretendia, representassem – como subterrâneas, mas
decisivas para o processo. Um campo amplo que ainda aguarda a possibilidade de ser
analisado.
548
MARRECA. Histórico da Polícia Militar..., p.154.
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A CELEBRAÇÃO DOS VULTOS HISTÓRICOS NACIONAIS NO GOVERNO
VARGAS: UMA ANÁLISE DO PROJETO “OS NOSSOS GRANDES MORTOS”
André Barbosa Fraga549
Resumo:
O presente estudo analisa a celebração de personagens históricos no governo Vargas,
mostrando como eles foram fundamentais para a elaboração de uma identidade
nacional. Dentre as muitas iniciativas político-culturais elaboradas com o propósito de
fazer os vultos nacionais presentes na memória da população, aprofundamos nossa
análise em uma delas: a série de conferências intitulada ―Os nossos grandes mortos‖,
criada pelo Ministério da Educação e Saúde e apresentada de 1936 a 1938.
Palavras-chave: Memória; Governo Vargas; Heróis nacionais.
A “recuperação do passado nacional” e a celebração de vultos nacionais
Nas décadas de 1930 e de 1940 o governo Vargas empregou um projeto de valorização
de vultos históricos brasileiros e de construção de heróis nacionais. Essa valorização,
em grande medida, foi estimulada como resposta ao golpe ocorrido em novembro de
1935550, que tinha o objetivo de derrubar o presidente Getúlio Vargas e instalar um
governo socialista no Brasil, que ficou conhecido como Intentona Comunista. Tal
evento pode ser considerado um marco que desencadeou, entre outras coisas: um
processo de institucionalização da ideologia anticomunista no interior das Forças
Armadas‖551, o fortalecimento da figura de Vargas, o aprofundamento de uma
propaganda nacionalista e cívica e o recrudescimento do regime.
Apesar de ter sido uma revolta frustrada, aquele movimento demonstrou que o
―perigo comunista‖, que há pouco tempo parecia distante, mostrou-se o mais próximo
possível. Além disso, o episódio da chamada Intentona Comunista deixou claro que
havia comunistas no Brasil dispostos a chegar ao poder por meios revolucionários.
549
Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFF. E-mail:
[email protected].
550
Esse movimento ficou conhecido como Intentona Comunista e foi posto em prática entre os dias 23 e
27 de novembro, por integrantes da Aliança Nacional Libertadora (ANL). O governo, que já vinha
reprimindo as atividades dessa organização de esquerda, decretou o seu fechamento em 11 de julho de
1935.
551
CASTRO, Celso. A invenção do Exército brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. P. 49.
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Porém, para o governo, o que se mostrou ainda mais perigoso foi a descoberta da
atuação de estrangeiros ligados ao Komintern, a Internacional Comunista, no
movimento, o que fazia dos brasileiros participantes elementos ―a serviço de Moscou‖
e, portanto, traidores da pátria552.
Qual a solução encontrada pelo governo para que episódios como esse não se
repetissem? Havia duas formas de combater o comunismo e de restringir a atuação de
seus seguidores. A primeira, imediata e fundamental, era o uso da força física, com
repressão, o que ficou a cargo da polícia553. A segunda, de caráter preventivo e de longo
prazo, estava assentada na ideia de que para que as pessoas não pensassem em trair a
pátria era preciso que amassem a mesma. Para isso, o governo realizou medidas para
fortalecer o sentimento cívico na população. O primeiro passo para que as pessoas
passassem a amar o Brasil era conhecê-lo. E conhecer o Brasil em grande medida é
conhecer o seu passado. Sendo assim, a partir principalmente de 1935 o governo Vargas
acionou uma quantidade considerável de investimentos públicos em iniciativas culturais
de valorização do passado, da cultura e da história do Brasil, buscando incentivar o
amor à pátria e, assim, afastar as ideias socialistas advindas da União Soviética,
eliminando sua influência na sociedade.
Para alcançar o objetivo de fazer dos heróis nacionais figuras lembradas e
queridas, optou-se por diversificar os campos de atuação, agindo em diversas frentes,
com políticas culturais as mais diversas, dentre as quais cabe mencionar a construção de
estátuas, a composição de músicas, a celebração de datas marcantes na vida dos
personagens selecionados e a elaboração de discursos. No próximo ponto, voltaremos
nossa atenção a outro produto cultural que tem sido indispensável a qualquer projeto de
glorificação de personagens históricos, que vislumbre fazê-los se perpetuarem na
memória dos grupos aos quais se destinam: a biografia. A produção de coleções
biográficas vai despertar nos integrantes do governo Vargas um interesse políticoideológico. A partir principalmente de 1935 e, com ainda mais intensidade no Estado
Novo, essas coleções biográficas vão ser consideradas lugares estratégicos para se
colocar em prática o projeto de celebração de personagens históricos e de construção de
552
Idem. P. 50 e 51.
553
Ver: FERREIRA, Jorge. ―Estado e repressão polìtica no primeiro governo Vargas‖. In: Trabalhadores
do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1997. Pp. 91-122.
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heróis nacionais elaborado pelo regime, ávido pela valorização da história do Brasil e
pela ―recuperação do passado nacional‖. De tão estratégicos vão se tornar mais um dos
elementos culturais desenvolvidos por Vargas.
Portanto, logo o governo Vargas tratou de produzir as suas próprias coleções
biográficas, tendo sido as principais delas ―Os nossos grandes mortos‖ e ―Vultos. Datas.
Realizações‖, elaboradas, respectivamente, pelos dois órgãos mais influentes tanto na
produção de políticas culturais do regime quanto na exaltação da imagem de Vargas e
de seu governo: o Ministério da Educação e Saúde (MES) e o Departamento de
Imprensa e Propaganda (DIP). ―Os nossos grandes mortos‖ consistia em uma série de
conferências apresentada de 1936 a 1938 e publicada em livros em 1945, pela editora
Agir. Já ―Vultos. Datas. Realizações‖ consistia em uma coleção de livros publicada nos
anos de 1944 e 1945554. Nesta parte final do artigo, analisaremos de forma sucinta o
projeto ―Os nossos grandes mortos‖.
A criação e a implementação do projeto “Os nossos grandes mortos”
A elaboração de conferências visando à valorização de personagens históricos
brasileiros teve origem com a ideia inicial do ministro da Educação e Saúde, Gustavo
Capanema, de realizar palestras sobre os maiores vultos militares do país. No entanto,
como ele revelou ao auditório presente na primeira conferência da série ―Os nossos
grandes mortos‖, ao entrar em contato com Rosalina Coelho Lisboa 555, para discutir o
assunto, foi-lhe sugerido ampliar o recorte inicial e passar a abordar as grandes figuras
do Brasil, fossem civis ou militares. Ou seja, ―todos aqueles que, de qualquer modo,
tivessem contribuìdo para a grandeza do paìs‖ deveriam ser contemplados; uma
sugestão que foi imediatamente aceita556.
É fundamental atentar para o fato de que a principal motivação para a elaboração
desse projeto foi, sem dúvida, o combate à ―subversão‖. Portanto, as palestras não
554
Para uma análise dessas duas coleções, ver: FRAGA, André Barbosa. Os heróis da pátria: política
cultural e História do Brasil no governo Vargas. Dissertação de mestrado em História. Niterói/RJ: UFF,
2012.
555
Rosalina Coelho Lisboa (1900-1975) foi poetisa, romancista, conferencista e diplomata extremamente
ativa nos anos 30, escrevendo para revistas literárias e diversos jornais ao longo da vida. Ver: Dicionário
Histórico-Biográfico Brasileiro – DHBB, CPDOC-FGV, Verbete LISBOA, Rosalina Coelho.
556
―Os nossos grandes mortos‖. Jornal do Brasil, quinta-feira, 16 de julho de 1936. P. 12.
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podem ser pensadas dissociadas das consequências desencadeadas pela frustrada revolta
comunista, empreendida em novembro de 1935. Não é por acaso que, oito meses após a
chamada Intentona Comunista ter sido deflagrada, a primeira conferência foi realizada.
Nela, a intelectual convidada, Rosalina Coelho Lisboa, alertou para ―o perigo da
invasão armada da Rússia‖ e empregou em sua fala, que possuìa um caráter inaugural,
duras críticas ao comunismo, defendendo a necessidade de cada brasileiro, sem piedade,
combatê-lo557.
No arquivo Capanema, foi possível encontrar um documento no qual está
registrada a justificativa do ministro para a criação da série, estando claramente afinada
com os ideais anticomunistas daquele contexto:
No momento grave em que as tempestades subversivas carregavam
sombriamente os nossos céus com os seus estampidos e as suas ameaças,
fazia-se preciso despertar no seio da mocidade o amor das nossas tradições e
o respeito dos nossos grandes homens.
Foi com esse pensamento generoso e patriótico que o Ministério da Educação
e Saúde organizou a série de conferências sobre – ―os nossos grandes
mortos‖558.
As palestras buscavam ―estimular no espìrito dos brasileiros (...) o respeito e
veneração pelos seus maiores [vultos históricos]‖559, destacando o exemplo e as lições
que a vida desses ―grandes homens‖ proporcionavam para formar o espìrito patriótico
do homem brasileiro. Ao evocar as grandes figuras da nacionalidade, ―que encheram a
nossa história com o prestígio do seu heroísmo, do seu trabalho, do seu talento, do seu
saber, da sua virtude, [seria possível mostrar] aos moços os verdadeiros padrões
557
―Os nossos grandes mortos‖. Jornal do Brasil, quinta-feira, 16 de julho de 1936. P. 12. Rosalina
Coelho Lisboa era adepta da Ação Integralista Brasileira (AIB), tendo escrito inúmeros artigos e
pronunciado vários discursos sobre a necessidade de combater-se o comunismo, cujas teorias considerava
inadaptáveis ao continente americano. Dentro desse pensamento, enfatizava a importância da adoção do
ensino de educação moral e cívica nas escolas. Em relação à chamada Intentona Comunista, considerou-a
uma ação irrefletida e selvagem, exigindo a punição dos envolvidos e parabenizando a forma como o
governo havia sufocado o levante. Ver: Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – DHBB, CPDOCFGV, Verbete LISBOA, Rosalina Coelho.
558
Arquivo Gustavo Capanema, GC g 1935.09.26. Microfilme rolo 35 fot. 0108/1. Pasta II.
FGV/CPDOC.
559
Idem.
285
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brasileiros de sua conduta cìvica, moral e intelectual‖ 560, proporcionando, como
consequência, ―o nosso engrandecimento polìtico, econômico, moral ou intelectual‖ 561.
Tendo em vista o caráter e a função das conferências, era preciso mobilizar o
maior número de pessoas possível, de preferência de diferentes classes sociais,
sinalizando para sua intenção de amplo alcance. Para tanto, Capanema concebeu o
evento com entrada franca em local espaçoso, o salão Leopoldo Miguez562, do Instituto
Nacional de Música563, uma das mais importantes salas de concertos do país, com
capacidade para 800 pessoas.
Basicamente, as palestras, durante todo o período da série, seguiram uma mesma
lógica em sua elaboração. Iniciavam-se às 17 horas, principalmente às quartas ou
sextas-feiras564, no salão Leopoldo Miguez, do Instituto Nacional de Música565, quando
crianças cantavam o Hino Nacional 566, acompanhadas do público. Gustavo Capanema,
que esteve presente em todas as palestras, presidindo-as, pronunciava, em seguida,
breves considerações sobre a figura histórica homenageada, logo cedendo a palavra ao
560
Idem.
561
Arquivo Gustavo Capanema, GC g 1935.09.26. Microfilme rolo 35 fot. 0108/2. Pasta II.
FGV/CPDOC.
562
Leopoldo Américo Miguez foi um compositor, violinista e maestro brasileiro, sendo de sua autoria o
Hino à Proclamação da República, ao ter vencido o concurso nacional para sua composição. Menos de
dois meses após a Proclamação da República, o Conservatório Imperial foi extinto e, em seu lugar, criado
o Instituto Nacional de Música, localizado na Praça da República, do qual Leopoldo Miguez tornou-se o
primeiro diretor. Em 1913, o Instituto transferiu-se para um imóvel localizado na Lapa, que passou, em
1922, por reformas de ampliação, momento no qual foi criado o salão que recebeu seu nome, uma
homenagem aos serviços que prestou à frente da direção do órgão. Ver: MARIZ, Vasco. Vida Musical.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. P. 101.
563
Com exceção de 4 conferências. As três primeiras de 1937, apresentadas por Marcos Carneiro de
Mendonça, sobre o Intendente Câmara, em 8 de janeiro; por Jorge de Lima, sobre Dom Vital, em 7 de
abril; e por Helio Lobo, sobre Araújo Porto Alegre, em 26 de maio; e a única de 1938, apresentada por
Afonso de Taunay, em 24 de maio, sobre José Bonifácio, que foram realizadas no salão nobre da Escola
Nacional de Belas Artes. Para essa informação, ver, respectivamente, ―Os nossos grandes mortos‖. Jornal
do Brasil, sexta-feira, 8 de janeiro de 1937. P. 6; ―Dom Vital‖. Jornal do Brasil, terça-feira, 7 de abril de
1937. P. 6; ―Araújo Porto-Alegre. O patriota esquecido‖. Jornal do Brasil, quinta-feira, 27 de maio de
1937. P. 6; e ―A personalidade de José Bonifácio estudada pelo historiador Afonso Taunay‖. Jornal do
Brasil, terça-feira, 24 de maio de 1938. P. 10.
564
Conforme consultado no Jornal do Brasil, das 28 palestras apresentadas, onze foram realizadas às
quartas-feiras, dez às sextas-feiras, cinco às terças-feiras e duas às quintas-feiras. Portanto, 75% delas
aconteceram às quartas ou sextas.
565
Excetuando-se quatro delas, apresentadas no salão nobre da Escola Nacional de Belas Artes.
566
Na primeira conferência da série, o Hino Nacional foi cantado por alunas de escolas municipais do Rio
de Janeiro. Já da segunda em diante, a tarefa coube ao Orfeão Infantil do Instituto Nacional de Música.
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conferencista – não sem antes tê-lo apresentado –, que expunha para a plateia, por volta
de uma hora, a vida do personagem selecionado. Após o término da palestra, encerravase a solenidade com mais uma execução do Hino Nacional. Elaboramos, abaixo, um
quadro que mostra o homenageado das palestras ocorridas, o dia em que foram
apresentadas e o nome dos palestrantes567.
Tema da conferência
Conferencista
Data de apresentação
1°
Olavo Bilac
Rosalina Coelho Lisboa
15/07/1936
2°
Carlos Gomes
Renato de Almeida
22/07/1936
3°
Duque de Caxias
Gustavo Barroso
25/08/1936
4°
Pereira Passos
Sampaio Correa
28/08/1936
5°
Couto de Magalhães
Aureliano Leite
30/09/1936
6°
Benjamin Constant
Ivan Lins
16/10/1936
7°
Visconde de Cairú
Alceu Amoroso Lima
23/10/1936
8°
Quintino Bocaiúva
Múcio Leão
09/12/1936
9°
Intendente Câmara
Marcos Carneiro de
Mendonça
08/01/1937
10°
D. Vital
Jorge de Lima
07/04/1937
11°
Manuel de Araújo Porto
Alegre
Helio Lobo
26/05/1937
12°
Castro Alves
Agripino Grieco
02/07/1937
13°
Barão de Cotegipe
Wanderley Pinho
14/07/1937
14°
José do Patrocínio
Oswaldo Orico
21/07/1937
15°
Padre José Mauricio
Luís Edmundo
04/08/1937
16°
João Caetano
Lafaiete Silva
25/08/1937
17°
Manoel Antonio de
Almeida
Marques Rebelo
21/09/1937
18°
Barão do Rio Branco
Gilberto Amado
30/09/1937
19°
Teófilo Otoni
Basílio de Magalhães
06/10/1937
567
A elaboração completa dessa tabela só foi possível por conta do exaustivo trabalho de cruzamento das
informações encontradas no arquivo Gustavo Capanema com as presentes no Jornal do Brasil, dada a
imprecisão de algumas datas de realização das conferências que constam nos seguintes documentos:
Arquivo Gustavo Capanema, GC g 1935.09.26. Microfilme rolo 35 fot. 0091 e 0104/1. Pasta II.
FGV/CPDOC. Essa extensa pesquisa nos permite afirmar, com uma certa segurança, que essas foram as
conferências realizadas ao longo do projeto, embora não possamos descartar a possibilidade de ter havido
outras, principalmente nos anos de 1938 e 1939. Porém, ainda assim, o quadro se aproxima do número
total de palestras apresentadas.
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20°
D. Pedro II
Pedro Calmon
15/10/1937
21°
Jackson de Figueiredo
Tasso da Silveira
22/10/1937
22°
Marquês de Barbacena
Rodrigo Octavio Filho
29/10/1937
23°
Alexandre Rodrigues
Ferreira
Rodolfo Garcia
05/11/1937
24°
Euclides da Cunha
Venancio Filho
18/11/1937
25°
Farias de Brito
Jonathas Serrano
23/11/1937
26°
Capistrano de Abreu
Raja Gabaglia
26/11/1937
27°
Alphonsus de Guimarães
Henriqueta Lisboa
07/12/1937
28°
José Bonifácio
Affonso Taunay
24/05/1938
Podemos dizer que, no final de 1937, quando a maior parte das conferências já
havia sido realizada, o alcance delas, caso fizéssemos o exercício de mensurá-lo, deu-se
entre as pessoas que compareceram ao Instituto Nacional de Música e à Escola Nacional
de Belas Artes e prestigiaram o evento nos dias em que foi realizado; os leitores de
jornais, já que, muitas vezes, a palestra era publicada completa ou em partes, no dia
seguinte à cerimônia, em diversos periódicos do Rio de Janeiro, muitos de circulação
nacional568; e os ouvintes de rádio, uma vez que algumas palestras foram transmitidas, o
que não pode, efetivamente, ser mensurado. Gustavo Capanema, procurando dar mais
duração à série ―Os nossos grandes mortos‖, mobilizou-se no intuito de publicá-la em
livros. Depois de algumas negociações, decidiu publicar pela recém criada editora Agir.
A editora Artes Gráficas Indústrias Reunidas S. A., ou simplesmente AGIR, foi criada
no Rio de Janeiro, em 1944, com o objetivo de ampliar no mercado editorial brasileiro o
espaço reservado às publicações católicas, e teve como seu principal fundador Alceu
Amoroso Lima, que assumiu, de imediato, na empresa, o cargo de diretor literário 569.
568
No Jornal do Brasil, a palestra completa que Sampaio Correia fez para a série ―Os nossos grandes
mortos‖, em 28 de agosto de 1936, foi publicada no dia seguinte, em suplemento chamado ―Centenário de
Pereira Passos‖, presente nas páginas 11 e 12; já a palestra de Múcio Leão sobre Quintino Bocaiúva,
realizada em 09 de dezembro de 1936, foi publicada no dia seguinte, quase na íntegra, nas páginas 7 e 10.
Em relação a outros jornais, encontramos, por exemplo, no IHGB, uma cópia da conferência proferida por
Wanderley Pinho, em 14 de julho de 1937, sobre o Barão de Cotegipe, que foi arquivada junto com
exemplares do Jornal Correio da Manhã e O Jornal, que haviam publicado, no dia seguinte, a palestra em
sua totalidade. Ver Arquivo do IHGB/Fundo Wanderley Pinho, Lata 1568, Pasta 43.
569
Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro, CPDOC-FGV, Verbete LIMA, Alceu Amoroso; e
RODRIGUES, Cândido Moreira. Alceu Amoroso Lima: matrizes e posições de um intelectual católico
militante em perspectiva histórica – 1928-1946. Tese de doutorado em História. São Paulo: UNESP,
2006. P. 13.
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Ao todo, 07 livros com os textos originais das palestras organizadas por Capanema
foram lançados pela Agir dentro de sua série ―Os nossos grandes mortos‖.
O texto em seu contexto: o patriotismo de “Os nossos grandes mortos” no combate
ao comunismo
Para encerrar este artigo, passamos a analisar alguns dos aspectos que marcam o
conteúdo dos textos escritos pelos biógrafos, lidos como conferências e, posteriormente,
publicados em livros570. Primeiramente, não podemos deixar de ressaltar o papel central
de Gustavo Capanema no resultado final das produções biográficas. Não devemos
perder de vista que havia, sem dúvida, um limite para a autonomia dos autores, tendo
em vista que precisavam escrever seus trabalhos atendendo a certas expectativas do
ministro da Educação e Saúde, que agia como o editor da coleção.
Era, portanto, dentro de um enquadramento já definido a priori que a
criatividade dos biógrafos teria margem para se movimentar. As instruções de
Capanema requisitavam a elaboração de uma narração de elogio à vida e à obra do
biografado – por ordem cronológica – que mostrasse a influência do vulto nacional
sobre a sua época e o seu meio, os serviços que prestou ao Brasil e a lição que a sua
vida proporcionava para as novas gerações. O tamanho da obra deveria respeitar o
limite de 30 a 60 páginas impressas. Uma análise mais geral dos livros publicados pela
Agir mostra que, embora o estilo da redação das palestras tenha variado conforme o
autor, ora se aproximando, ora se afastando mais desse modelo pré-determinado,
nenhuma das biografias rompeu com ele. Basílio de Magalhães 571 foi, entre os autores
das conferências publicadas pela editora Agir, o que melhor encarnou em seu texto
570
Dada a dificuldade de se encontrar e reunir os textos originais das palestras, a nossa análise será feita
com base apenas nas conferências editadas pela Agir, portanto, a respeito de D. Vital, Jackson de
Figueiredo, Manuel de Araújo Porto Alegre, Intendente Câmara, Caxias, Teófilo Otoni e Alphonsus de
Guimarães.
571
Basílio de Magalhães (1874-1958) nasceu em Minas Gerais. Diplomou-se engenheiro na Escola de
Minas, em Ouro Preto. Mais tarde, tornou-se professor de História do Instituto de Educação, no Rio de
Janeiro, e, em seguida, diretor. Ao longo de sua vida, foi historiador, folclorista, professor, jornalista e
político. Escreveu dezenas de livros e pertenceu a inúmeras associações culturais, como o Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, do qual se tornou membro em 28 de setembro de 1914.
MAGALHÃES, Augusto Franklin Ribeiro de. ―Basìlio de Magalhães‖. Revista do IHGB, V. 315, abr/jun,
1977. Pp. 254-282.
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sobre Teófilo Otoni as indicações do ministro da Educação e Saúde; e Henriqueta
Lisboa572, ao escrever sobre Alphonsus de Guimarães, a que menos.
Além disso, por terem sido produzidas no pós 1935, tais obras deviam também
se alinhar à conjuntura de combate ao comunismo da época. Por isso, trabalharemos
com as obras procurando mostrar por qual maneira os autores buscaram construir uma
percepção sobre o passado e sobre os personagens históricos que o habitaram a partir de
questões postas no presente, como também de que forma os biógrafos acabaram por
desenvolver uma versão da trajetória desses vultos nacionais selecionados, que se
aproximasse da proposta anticomunista que preocupava Capanema. Como e em que
grau os reflexos da chamada Intentona Comunista vão estar presentes nesses textos?
Enfim, objetivamos compreender se a construção que foi feita dos ―grandes homens‖
contribuiu para legitimar as ações de combate ao comunismo, demonstrando como as
biografias formam, portanto, uma rica fonte de análise da maneira pela qual, em um
período específico da história, e sob certos interesses, são mobilizados determinados
usos do passado.
O primeiro aspecto observado na análise das biografias é que, apesar de terem
muitos elementos em comum, cada autor usou estratégias distintas para construir a vida
de um personagem histórico. Por exemplo, no que tange à fonte consultada, enquanto
Tasso da Silveira573 utilizou muito da própria memória, uma vez que conviveu com
Jackson de Figueiredo; Hélio Lobo 574 valeu-se principalmente do diário de Manuel de
572
Henriqueta Lisboa (1901-1985) nasceu em Minas Gerais, formou-se normalista e, em 1926, mudou-se
com a família para o Rio de Janeiro, onde cursou Letras. Dedicou-se à poesia, ensaios, traduções e
antologias. Considerada, pela crítica especializada da época, como uma das grandes expressões da lírica
moderna, ela teve, a partir de 1940 até 1945, o acompanhamento profissional de Mário de Andrade. Foi a
primeira mulher eleita para a Academia Mineira de Letras, em 1963. Recebeu muitas premiações, dentre
as quais o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra, em
1984. COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico de escritoras brasileiras: (1711-2001). São Paulo:
Escrituras Editora, 2002. Pp. 258-561.
573
Tasso da Silveira (1895-1968) nasceu em Curitiba, Paraná. Formado em Direito, no Rio de Janeiro, foi
poeta, jornalista, professor, ensaísta, romancista e dramaturgo. Pertenceu ao grupo dos fundadores da
revista Festa, com Cecília Meireles, Murilo Araújo, Francisco Karam e outros. Ao longo de sua vida,
publicou, principalmente, poesias e ensaios. NEJAR, Carlos. História da literatura brasileira. Rio de
Janeiro: Relume Dumará/Copesul/Telos, 2007. P. 222.
574
Hélio Lobo Leite Pereira (1883-1960) nasceu em Minas Gerais. Bacharelou-se, em 1903, pela
Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, ingressando a seguir na carreira diplomática. Também historiador
e ensaísta, foi eleito, em 1918, para a Academia Brasileira de Letras, tendo sido, inclusive, membro do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Ao longo de sua vida, publicou inúmeros livros, direcionados
à temática histórica e diplomática. Ver: Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – DHBB, CPDOCFGV, verbete LOBO, Hélio.
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Araújo Porto Alegre para elencar informações sobre o mesmo. Já quanto ao estilo
narrativo empregado, enquanto Gustavo Barroso 575 compôs seu texto sobre Caxias por
meio da exposição dos fatos marcantes de sua vida; Henriqueta Lisboa analisou a vida e
a obra de Alphonsus de Guimarães, empregando, em grande parte, um texto
dissertativo-argumentativo.
Uma das características mais presentes nas conferências é o patriotismo. Não por
acaso, no governo Vargas, muitos brasileiros, por conta da chamada Intentona
Comunista, foram considerados e perseguidos como traidores da pátria. Para que
episódios como esse não se repetissem, ou seja, para que brasileiros não pensassem em
trair o país, era preciso amá-lo acima de tudo, conhecendo bem seu passado. Daí a
preocupação dos biógrafos em construírem seus personagens como exemplos de
brasileiros que amaram a pátria a qualquer custo576, dedicando a vida a prestar
relevantes serviços ao Brasil577. Por conta disso, palavras derivadas de pátria
(patriotismo, patriota, patriótico, patrioticamente), de nação (nacional, nacionalidade),
de civil (cívico, civismo) e de Brasil (brasilidade) são constantes nos textos e vão
aparecer várias vezes para qualificar os vultos nacionais578.
575
Gustavo Dodt Barroso (1888-1959) nasceu em Fortaleza. Formou-se nos primeiros estudos em 1906.
No ano seguinte, ingressou na Faculdade de Direito de Fortaleza. Em 1910, transferiu-se para o Rio de
Janeiro e matriculou-se na Faculdade de Direito, bacharelando-se em 1912. Ao longo de sua carreira
como advogado, foi professor, político, caricaturista, romancista, poeta, teatrólogo, tradutor e ensaísta.
Fundou e dirigiu alguns jornais, além de colaborar com outros. Em 1923, entrou para a Academia
Brasileira de Letras. Em 1933, Gustavo Barroso aderiu à Ação Integralista Brasileira (AIB), tornando-se
um dos principais defensores e divulgadores de sua doutrina. Ver: Dicionário Histórico-Biográfico
Brasileiro – DHBB, CPDOC-FGV, verbete BARROSO, Gustavo.
576
Por exemplo, para Basílio de Magalhães, Teófilo Otoni é ―(...) um exemplo edificante para todos
quantos amam sinceramente esta nossa grande e esplendorosa pátria‖. Em sua opinião, ―à semelhança do
patriarca da nossa independência, [ José Bonifácio], Teófilo Otoni podia também pedir que lhe gravassem
na pedra sepulcral os versos: ―Eu desta glória só fico contente: – que a minha terra amei e a minha
gente!‖‖. As duas citações encontram-se, respectivamente, em: MAGALHÃES, Basílio de. Teófilo Otoni.
Rio de Janeiro: Agir, 1945. P. 43 e 39.
577
Para Gustavo Barroso, ―a ordem, a firmeza, a bravura, a lealdade eram em Caxias virtudes decorrentes
do seu devotamento ao serviço da Pátria. Tudo para ela. Tudo por ela‖. O autor acrescenta ainda que
―ninguém teve maior fé nos destinos da Pátria e ninguém a serviu com maior brasilidade‖. BARROSO,
Gustavo. Caxias. Rio de Janeiro: Agir, 1945. Respectivamente: P. 14 e 19. Já em Hélio Lobo, Manuel de
Araújo Porto Alegre ―tinha servido ao paìs com lealdade e desinteresse‖. LOBO, Hélio. Manuel de
Araújo Porto Alegre. Rio de Janeiro: Agir, 1945. P. 33. E na fala de Basìlio de Magalhães: ―antes dessa
vitória política [tornar-se senador por Minas Gerais], havia ele [Teófilo Otoni] prestado à pátria mais um
relevantìssimo serviço‖. MAGALHÃES, Basìlio de. Teófilo Otoni. Rio de Janeiro: Agir, 1945. P. 35.
578
Chegando ao ápice com a palestra de Basílio de Magalhães sobre Teófilo Otoni, na qual elas foram
empregadas 16 vezes.
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Além disso, tão importante quanto valorizar a pátria para combater o
comunismo, era prezar a soberania do Brasil, que estava ameaçada pela tentativa
comunista de controlar o país a serviço da União Soviética. Precisávamos, portanto,
construir um passado habitado por defensores da independência e da liberdade. Os
biógrafos, ao selecionarem as informações importantes da vida dos personagens
históricos, deram grande destaque a essa questão. Assim, ficamos sabendo, por
exemplo, que o Intendente Câmara579, Manuel Ferreira da Câmara Bethencourt e Sá, ao
pedir demissão de seu cargo, em 6 de abril de 1822, foi eleito ―representante de Minas
no Conselho Geral de Procuradores das Províncias, recém formado, e que passou a ter
decisiva atuação em prol da proclamação da nossa Independência Nacional‖ 580.
Já Manuel de Araújo Porto Alegre sempre lutou contra o despotismo581, e sua
propensão à liberdade o fez criar, em 1866, um plano de abolição gradual da escravidão
sem ônus para o tesouro, por meio da formação de colônias agrícolas. A escravidão era
para ele uma herança intolerável, por conta dos efeitos maléficos que causava no caráter
nacional582. Porém, Teófilo Otoni foi o vulto que mais representou o espírito da
liberdade583 e da democracia584, ao lutar contra desmandos585 e despotismos586,
579
O Intendente Câmara foi o primeiro brasileiro a ocupar a função de Intendente Geral das Minas e dos
Diamantes do Distrito Diamantino e Comarca de Serro do Frio, da capitania de Minas Gerais, posição na
qual atuou de 1807 a 1822.
580
MENDONÇA, Marcos Carneiro de. O Intendente Câmara. Rio de Janeiro: Agir, 1945. P. 49. Marcos
Carneiro de Mendonça (1894-1988) nasceu em Minas Gerais. Esportista, destacou-se no futebol em
vários clubes, tendo sido o primeiro goleiro da Seleção Brasileira. Após a aposentadoria, pôde dedicar-se
a pesquisar e a escrever livros sobre a história do Brasil, especializando-se no século XVIII. Em 13 de
julho de 1954, foi eleito sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Ver: TAPAJÓS, Vicente.
―Homenagem aos sócios falecidos‖. Revista do IHGB, V. 149, out/dez, 1988. P. 601.
581
Segundo Hélio Lobo, ele deixou em seu testamento as seguintes palavras que configuravam a síntese
de sua vida: ―sofri pela amizade e pela justiça, porque sempre detestei a deslealdade e o despotismo. E do
meu paìs, de meu Soberano, dos homens honestos, fui sempre respeitoso e dedicado amigo‖. LOBO,
Hélio. Manuel de Araújo Porto-Alegre. Rio de Janeiro: Agir, 1945. P. 66.
582
Para Porto Alegre, a escravidão corrompe a família e desnatura os sentimentos. Hélio Lobo ainda
seleciona a seguinte passagem dos escritos do personagem histórico: ―O menino que se habitua a mandar
e a punir descricionariamente, ganha os vícios do orgulho senhoril, da violência, da tirania, e não pode ser
bom cidadão. É impetuoso na cólera, desensofrido em seus desejos, impaciente na adversidade,
preguiçoso na pobreza, soberbo na miséria, e está sempre disposto a romper com todas as repreensões que
o contrariam (...) Todos querem ser senhores, e todos se julgam melhores que seus irmãos‖. Idem. P. 56 e
57.
583
Basílio de Magalhães utiliza-se da expressão criada por Daniel de Carvalho, em livro de 1934, para
caracterizar Teófilo Otoni: ―campeão da liberdade‖. MAGALHÃES, Basìlio de. Teófilo Otoni. Rio de
Janeiro: Agir, 1945. P. 19.
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possuindo, para Basílio de Magalhães, um ―espìrito que voejava tão alto na esfera da
ideologia polìtica, ao ponto de quase atingir às raias da república‖ 587. Ou seja, o regime
republicano é a representação maior da ideia de liberdade para Magalhães.
Se o passado mostrava que o destino do Brasil era a conquista da liberdade,
também revelava que era preciso buscar a ordem e a disciplina. As revoltas comunistas
de novembro de 1935, deflagradas em Natal, Recife e Rio de Janeiro, possuíam um
elemento em comum: foram orquestradas e conduzidas, principalmente, por militares,
que rompiam com os dois pilares máximos da instituição: a hierarquia e a disciplina 588.
O personagem, entre os livros analisados, que melhor reuniu em sua
personalidade a busca da ordem, da obediência e da disciplina foi Caxias589. Gustavo
Barroso inicia seu texto com Caxias adulto participando das guerras do período
regencial, não recuperando a origem do personagem e a sua infância. A prioridade do
autor é mostrá-lo como um grande símbolo da unidade nacional590. Um bom exemplo,
584
Ver, por exemplo, a seguinte passagem do livro: ―já se viu como foi que ele açacalou as suas primeiras
armas, a fim de terçá-las em prol do ideal democrático, o único que, com clarividente patriotismo, julgava
compossìvel com a marcha progressiva da coletividade brasileira‖. Idem. P. 20.
585
Segundo o autor, em conseqüência da agitação política de Portugal por conta da morte de D. João VI,
iniciara D. Pedro I, no Brasil, uma ininterrupta série de desmandos. Por conta disso, Teófilo Otoni ―não
hesitou em enfileirar-se na falange dos que estavam dispostos a todos os sacrifícios, para impedir que a
nossa nacionalidade, – auspicioso orgulho da civilização americana, recentemente libertada dos
absolutismos da Espanha e de Portugal, – se submergisse [em] (...) uma retrógrada autocracia, colimada
então pela dinastia bragantino‖. Idem. P.15.
586
―Para agir em mais eficiente cooperação com outros não menos ardorosos patriotas (...) [e] combater a
sinistra ameaça do despotismo, que pairava então sobre a gigantesca e dominiosa cerviz do Brasil recémindependente, e defender triunfalmente a liberdade e a democracia, idéias que foram o supremo objetivo
de toda a sua abnegada e operosa existência‖. Idem. P. 15 e 16.
587
Idem. P. 21. Em outra passagem, o autor ainda acrescenta: ―tivesse ele vivido mais alguns meses, por
certo que houvera assinado o manifesto republicano de 3 de dezembro de 1870, – porque o digno filho da
terra de Tiradentes foi, insofismavelmente, um dos que aplainaram, com a clarividente atuação do seu
tenaz e inabalável civismo, a lìmpida senda da incruenta jornada de 15 de novembro de 1889‖. P. 38.
588
CASTRO, Celso. A invenção do Exército brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. P. 50 e 51.
589
Um exemplo paradigmático da tentativa de combater a indisciplina dentro do exército está presente na
seguinte citação: ―[Durante a Guerra do Paraguai] a um oficial exacerbado que lhe fala de modo atrevido,
por se ver contrariado numa pretensão, não deixa prender. Manda submetê-lo a exame de sanidade,
porque é seu papel não admitir a indisciplina senão como um gesto de loucura. Linha impecável de
conduta que o obrigou a protestar contra a genial interpretação pictórica de Pedro Américo no quadro da
Batalha do Avaí: – ―Onde esse pintor me viu algum dia com a farda desabotoada?!...‖‖. BARROSO,
Gustavo. Caxias. Rio de Janeiro: Agir, 1945. P.25.
590
Ver, por exemplo, as seguintes passagens: ―A experiência republicana da Regência cria um decênio de
anarquia (...) A missão daquela espada era conservar a unidade nacional (...) Desde esses memoráveis
sucessos estava definitivamente traçado o rumo da sua vida. Caxias foi a espada que sustentou longos
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entre os muitos apresentados pelo autor, é o episódio no qual Caxias, ainda major,
testemunhou a abdicação de D. Pedro I, como sub-comandante do Batalhão de guarda
do imperador. Em um determinado momento, todos os militares aderem ao movimento
contra o soberano e deixam o Palácio de São Cristóvão. Já Caxias, ―fiel à ordem e ao
trono que a representa como governo legìtimo, permanece sozinho no seu posto‖ 591 e
propõe a D. Pedro I que monte em seu cavalo, fuja para a Fazenda de Santa Cruz e arme
os escravos. O imperador agradeceu tal demonstração de fidelidade, mas recusou a ideia
e assinou a abdicação.
A busca pela ordem592 foi também abraçada por Jackson de Figueiredo, que, na
opinião de Tasso da Silveira, seu biógrafo na coleção, não poderia ser realizada se não
em associação com a doutrina da Igreja Católica. Não é por acaso que, em 1921, ele
funda ―a revista A Ordem, na qual propugna o retorno do espírito brasileiro à sua fonte
de formação cristã e a constituição dos católicos em partido político, para fazer frente
aos desvirtuadores do destino brasileiro‖593.
Por fim, a chamada Intentona Comunista mostrou ao governo que ideias
consideradas alienígenas à cultura e à tradição brasileira estavam circulando no Brasil e
era preciso que elas não encontrassem adeptos. Sendo assim, fazia-se necessário
estimular a valorização dos aspectos que formariam uma identidade brasileira. Amar o
Brasil era amar as tradições do país, e uma das mais importantes era o catolicismo. Daí
anos o Império, combatendo e, mais do que combatendo, pacificando‖ e ―lembrando nesta hora grave
para o mundo e para a nossa querida pátria a ação do Grande Soldado Pacificador do Norte, do Centro e
do Sul, ergamos nossas preces ao Altíssimo para que o seu espírito inspire e anime as gerações de hoje e
as gerações de amanhã na manutenção da unidade nacional‖. Idem. Respectivamente: P. 19 e 26.
591
Idem. P. 18.
592
Tasso da Silveira, assim como Gustavo Barroso, destaca a importância da ordem nas forças armadas
brasileiras: ―a ordem, na vida polìtica do Brasil, dada a função precìpua que sempre exerceram as nossas
forças armadas na formação da nacionalidade, com a sua lição de abnegado heroísmo e de ânimo de
sacrifício nos momentos de perigo para a pátria, – a ordem, no Brasil, dizia eu, se concretizava para
Jackson principalmente no espírito de disciplina dessas mesmas forças armadas, ou seja, no absoluto
respeito, por parte delas, do princípio de autoridade. O levante de quartel ou de unidades da esquadra, ou
a simples interferência de militares em acontecimentos políticos, motivados, que fossem, pelo mais sadio
desejo de servir à Nação, representavam, para o pensador atento ao sentido íntimo de tudo, um golpe
funesto contra o próprio destino brasileiro‖. SILVEIRA, Tasso da. Jackson de Figueiredo. Rio de Janeiro:
Agir, 1945. P. 31.
593
Idem. P. 30.
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a importância de figuras como D. Vital, cuja biografia foi escrita por Jorge de Lima594, e
Jackson de Figueiredo. Este último, por exemplo, destaca seu biógrafo, propunha o
―retorno do espìrito brasileiro à sua fonte de formação cristã‖ e criou o Centro Dom
Vital, ―que se faria, com o correr dos tempos, o sólido núcleo central de resistências da
consciência católica do paìs‖595.
Manuel de Araújo Porto Alegre, por sua vez, procurou desenvolver suas obras no Brasil
buscando uma essência brasileira, sem copiar a Europa, seja na arte 596, seja na
arquitetura597, afinal, ao longo da vida ―(...) imaginou e pregou que fôssemos sempre
nós mesmos e nada mais‖598. Já para Gustavo Barroso, a forma de fazer frente às
ameaças e aos perigos era utilizando a nossa tradição como escudo, o que estaria
presente na lição que nos legaram os nossos antepassados e que possui duas fontes
principais: ―uma, espiritual, a religião católica, o cristianismo. Outra, social e polìtica, a
unidade nacional através de todas as dificuldades, que conservou um patrimônio de
cultura e de sentimento em dilatadíssimo patrimônio territorial‖599.
594
Jorge de Lima (1893-1953) nasceu em União dos Palmares, Alagoas, onde cursou parte do ensino
primário, concluído em Maceió. Iniciou, em 1911, a faculdade de Medicina, em Salvador/BA,
concluindo-a em 1915, no Rio de Janeiro. Retornou a Maceió para exercer a profissão. Em 1931,
transferiu-se para o Rio de Janeiro e passou a lecionar Literatura Brasileira na Universidade do Brasil. Ao
longo da vida, foi médico, pintor, desenhista, ilustrador, escultor, poeta, romancista, professor e político.
Ver: PAULINO, Ana Maria. Jorge de Lima. São Paulo: Edusp, 1995. Pp. 147-152.
595
SILVEIRA, Tasso da. Jackson de Figueiredo. Rio de Janeiro: Agir, 1945. As duas citações encontramse na página 30.
596
[D. Pedro II mandou] propor nas Câmaras a criação de uma cadeira de História das Belas Artes, que
lhe destinava, pretendendo também nomeá-lo diretor da Academia. Porto-Alegre relutou (...) seu fim era
mais modesto, mais patriótico, mais sólido: cuidar no ensino e estabelecer-lhe uma base permanente e
progressiva; substituir o método imitativo pelo método racional, fazer criadores em vez de copistas. Mas
só o conseguiu em parte. Nacionalizar a arte dando-lhe feição nossa, tal a sua ambição. Pois haveríamos,
até na tela, de copiar o estrangeiro, quando a natureza brasileira pedia intérpretes? LOBO, Hélio. Manuel
de Araújo Porto-Alegre. Rio de Janeiro: Agir, 1945. P. 32.
597
―Foi assim que o Ministro do Império lhe solicitou parecer sobre a construção do teatro nacional.
Porto-Alegre fizera esboços, com a mesma origem, em 1853, 1856 e 1857, e achou, como então, que
devìamos considerar nosso meio e nossas condições, sem o afã de copiar o alheio, só porque europeu‖.
Idem. P. 43.
598
Idem. P. 32.
599
BARROSO, Gustavo. Caxias. Rio de Janeiro: Agir, 1945. P. 28.
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A GUERRA DO CHACO (1932-1935): OCULTAÇÃO E PARTICIPAÇÃO
INDÍGENA
André Henrique Eltz600
Resumo:
A guerra do Chaco foi um conflito entre a Bolívia e o Paraguai em um território distante
de suas principais cidades. O enfrentamento se deu em função de discussões sobre
fronteiras nacionais e territórios ainda não conquistados pelos Estados. Através de
análise bibliográfica observamos como algumas obras historiográficas nas suas
narrativas ocultam a participação dos diferentes povos indígenas no conflito. Em
contraposição ao ocultamento há uma bibliografia que escreve a história do período
dando visibilidade ao indígena.
Palavras-chave: Guerra do Chaco, Bolívia, história indígena.
Abstract:
The Chaco War was a conflict between Bolivia and Paraguay in an area distant from its
major cities. The confrontation took place because of discussions about national borders
and territories not yet conquered by the states. Through literature review noted how
some historical works in their narratives conceal the participation of different
indigenous peoples in conflict. In contrast to concealment there is a bibliography that
writes the history of the period giving visibility to indigenous.
Key words: Chaco War, Bolivia, indigenous history.
Introdução
A Guerra do Chaco foi um conflito travado entre Bolívia e Paraguai durante os anos de
1932 e 1935. As fronteiras da região não foram muito bem definidas pelo colonialismo
espanhol, e durante o processo de independência do que viria a ser a Bolívia e o
Paraguai cada um queria a maior parte da região do Chaco para si. O conflito deixou um
saldo de aproximadamente 60 mil bolivianos e 30 mil paraguaios mortos, tendo
resultado na derrota dos bolivianos e a perda e anexação de parte de seu território pelos
paraguaios.
Há algumas interpretações clássicas sobre os motivos da guerra, entre as mais
importantes segundo Carlos Mesa (2008), estão as teorias de uma guerra pelo suposto
600
Mestrando em História pela Universidade Federal de Mato Grosso/UFMT. Orientador: Ernesto
Cerveira de Sena. Email: [email protected]. Professor Dr. do Programa de Pós-Graduação em
História da UFMT. Email: [email protected]
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petróleo da região e da busca da Bolívia por uma ligação fluvial e marítima com o resto
do mundo.
Além destas duas teses explicativas para as causas da guerra a outra questão que
norteia o conflito se refere às disputas territoriais de longa data entre os dois países
beligerantes. Com a formação das duas repúblicas os limites territoriais não foram
muito bem definidos, pois, várias tentativas em se encontrar uma solução para a questão
foram desenvolvidas ao longo do século XIX. Tratados foram discutidos entre os dois
Estados sempre sem sucesso, ora a Bolívia não aceitava as condições, outrora o
Paraguai. Segundo Dalla-Corte (2010, p. 29), na visão internacional a importância do
espaço disputado se dava mais em função das expectativas geradas em torno dos
recursos potenciais existentes. A guerra foi, portanto, uma luta pela soberania de
territórios e por delimitação de fronteiras nacionais. Foi uma guerra defensiva onde o
inimigo foi sendo forjado com constantes denúncias de invasão do território nacional
reforçando os ideais de soberania nacional.
Segundo Carlos Mesa (2008, p. 453), os limites internacionais da Bolívia
estavam baseados nos títulos coloniais herdados pela república e reconhecidos
internacionalmente. O governo boliviano apresentava suas pretensões baseadas em
documentos da época colonial considerando que suas fronteiras incluíam todas as terras
da antiga Audiência de Charcas601.
No mesmo sentido, para o Paraguai a principal tese defendida como causas do
conflito diz respeito às questões territoriais. Apresentando também documentação
colonial este país afirmava que o Chaco era região territorial pertencente a Assunção. A
historiografia paraguaia pesquisada afirma que o Chaco é região do Paraguai desde os
primeiros anos da colônia espanhola. Bejarano (1959) em seus estudos sobre as
expedições que transitaram pelo Chaco ao longo dos séculos após o a chegada dos
espanhóis à América defende que o lugar é posse paraguaia.
A disputa territorial ao nosso entendimento parece ser a tese mais convincente
para as causas do conflito. As delimitações territoriais segundo Souza (2009) são um
601
A Audiência de Charcas, hoje República de Bolívia, era a mais alta autoridade jurídica e
administrativa no sul do vice-reinado do Peru durante os três séculos da colônia. A Real Audiência de
Charcas foi criada pela Cédula Real de 18 de setembro de 1559 expedida pelo rei Felipe II com o nome
original de Audiencia de La Plata de Charcas. (MESA; MESA; GISBERT, 2008).
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fator importante para os modernos Estados-nação, pois, em sua formação no século XIX
a fronteira geopolítica era essencial, fazia parte do discurso de legitimação das elites
responsáveis pela formação da nação.
Mas, o território é muito mais que simples delimitações lineares de espaços
geográficos. O território é um espaço onde grupos exercem relações sociais complexas,
onde esse espaço é constantemente transformado por essas relações. Assim, o espaço
perpassado pelas relações de poder é o espaço vivido pelas experiências individuais e
coletivas, ou seja, tem, sobretudo, um caráter humano. Segundo Roncayolo (1986), a
identidade dos grupos provém mais da cultura, ou seja, da produção do espaço através
das relações sociais do que do espaço físico propriamente dito. Pensando então no
Estado com grande poder de territorializar espaços, de acordo com Roncayolo (1986, p.
281), em lugares onde o povoamento é mais contínuo a tendência é que o Estado exerça
um domínio mais forte, a fronteira tende para uma ―linha ideal‖. Porém, nos limites
territoriais estabelecidos entre Estados onde supostamente o domínio é mais fraco não
se apagam a multiplicidade das relações entre os dois lados. Conforme Sena, a
―produção de espaço não gera necessariamente uma fronteira linear entre Estados, pois
participam também dessa política de tomar áreas geográficas para si povos sem Estado,
ou com vìnculos frouxos com este [...]‖. (SENA, 2013, p. 115).
Ernesto Sena (2013) destacando a grande influência das discussões de Claude
Raffestin sobre ―territorialização‖ e ―fronteira‖ nos atenta para que pensemos que a
fronteira não é apenas espacial, ela também é temporal. Sena em sua análise sobre as
fronteiras entre Brasil e Bolívia observa que:
Para a República da Bolívia e para o Império do Brasil, recorrer à antiguidade
seria procurar um suposto fundamento superior localizado no passado
colonial, como se tivesse acontecido um acordo indissolúvel, unânime e
inquestionável entre as antigas metrópoles. Mas além de os antigos tratados
nunca terem sido consolidados nas suas demarcações, eram frequentemente
anulados depois [...]. (SENA, 2013, p. 124).
A mesma análise pode ser utilizada para o caso das fronteiras entre as repúblicas
da Bolívia e do Paraguai. Sendo as fronteiras não apenas espaciais, mas também
temporais, ou seja, a fronteira é datada, entendemos que as documentações que os dois
países utilizavam para defesa de seus territórios não serviam de garantia alguma.
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É fato que as discussões sobre as fronteiras nos anos anteriores a 1932 não
evitaram o confronto entre os dois exércitos nacionais. Assim, conforme Richard
(2008), entendemos que a chegada dos militares no Chaco se traduziu na ocupação e no
controle direto dessa região por parte dos Estados, provocando profundas alterações nas
sociedades que habitavam o local. Instalou-se na região uma complexa rede de relações
a partir do contato com um elemento externo levando os diferentes povos indígenas a
estabelecer estratégias de resistência e interação, redefinindo seus espaços, suas
identidades.
Pensando dessa maneira, vou demonstrar que alguns autores que são referência
na escrita de história da Bolívia e de história da guerra em suas narrativas ocultam a
participação indígena no conflito. A cultura, a sociedade, o cotidiano dos indígenas se
transformou com o conflito e com a presença de elementos externos. Assim, vou
demonstrar ainda um pouco da história indígena na guerra através de construções
históricas que dão visibilidade aos indígenas. Vou utilizar os conceitos de mestiçagem e
etnogênese para analisar brevemente a dinâmica de um grupo indígena conhecido como
Nivaclé, especificamente a história de um personagem deste grupo, o sargento Tarija.
A história da guerra e o apagamento dos indígenas
Alguns livros de História da Bolívia são referência neste país por fazerem construções
históricas que privilegiam os grandes heróis nacionais, os grandes fatos históricos, ou
seja, se preocupam com assuntos de ordem política e social. Neste sentido estas obras se
aproximam da história narrativa tradicional dos historiadores positivistas. Assim, nessas
construções históricas os indígenas aparecem geralmente como passivos. Enfatizamos
que estes livros de História da Bolívia são construções sobre história geral do país
produzidas para atingir o grande público. Uma obra que é referência na Bolívia se
chama ―Historia de Bolivia‖602. Existem ainda outras produções que são de história
específica da guerra do Chaco que também seguem as mesmas características.
A história escrita por esses autores apresenta o território chaquenho como um
lugar despovoado, deserto, vazio, de um meio ambiente hostil e de uma natureza
selvagem e perigosa.
602
MESA, José de; MESA, Carlos; GISBERT, Teresa. Historia de Bolivia. 7. ed. La Paz: Editorial
Gisbert y Cia, 2008.
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Carlos Mesa (2008) apresenta o Chaco como sendo uma região com
aproximadamente 290.000 km² a uma altitude de 225 m sobre o nível do mar. A região
é formada por grandes extensões planas cobertas de vegetação herbácea e espinhosa
com solo muito arenoso e seco. O autor afirma ainda que nos anos do conflito o Chaco
―contaba con una población total de no más de 70.000 almas [...]‖. (MESA, 2008, p.
456).
Por ser uma região onde a presença do Estado era praticamente inexistente,
considerar o Chaco como um lugar despovoado fazia parte do discurso de mobilização
do Estado em relação ao conflito. Segundo Capdevila (2010, p. 16, 17), na descrição do
Chaco como um ―deserto‖ foi disseminada a ideia de ocupar, colonizar e civilizar,
sendo que a essas três ações estão articuladas com a ideia de que as terras chaquenhas
são um pedaço do território nacional. Ainda, a ideia de ―deserto‖ estava ligada a
territórios por se colonizar, não significando que estavam vazios, apenas não estavam
habitados pelo Estado, estavam habitados por índios.
Além de descrever o Chaco dessa maneira, percebe-se que a historiografia
pesquisada utiliza poucas linhas para descrever quem são os habitantes do Chaco e os
militares que combateram diretamente nas linhas de frente, principalmente em relação
aos soldados já que em se tratando dos oficiais a identificação é mais fácil de ser
percebida. Podemos observar a seguir as poucas referências aos indígenas de um autor
que escreve sobre o conflito.
O Tenente da reserva do exército boliviano Juan Granier Chirveches escreveu
sua vivência no conflito em um diário que foi publicado por sua filha em forma de livro
em 2004603. Ele ingressou no conflito como voluntário no dia 9 de outubro de 1932, já
que era oficial da reserva e sua classe não havia sido chamada para a guerra. No livro
podemos ter acesso a seus relatos dia a dia desde a sua incorporação até o dia 16 de
setembro de 1935 quando ao fim do conflito sua baixa é dada das fileiras do exército.
Durante os três anos que esteve na guerra podemos ver através do seu ponto de vista de
que maneira a Bolívia atuou no conflito. O autor faz uma narrativa de todos os seus
deslocamentos pela região do Chaco, pelos fortes que passou, pelas cidades onde esteve.
603
Diario de campaña: fragmento de una vida patriótica en la Guerra del Chaco. (GRANIER, 2004).
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Narra ainda as principais batalhas e os bastidores do conflito. Ele faz poucas referências
sobre a composição étnica dos grupos locais.
Em 9 de dezembro de 1932 ele descreve um pouco do forte Platanillos: ―es un
fortín boliviano que fundó el Cap. Víctor Ustarez, descubridor del lugar en el año 1931,
donde encontré varias sendas. Algunos indicios de las muchas tolderìas […]‖.
(GRANIER, 2004, p. 65). Podemos notar que em sua descrição é enfatizado o referido
Capitão como se ele fosse realmente o descobridor do lugar. De acordo com um mapa
étnico do Chaco Boreal604 o lugar onde foi instalado o forte Platanillos era área do
grupo Chulupi. Quando o autor fala de tolderías há uma referência explicando que o
termo significa ―casas eventuais de indìgenas nômades do lugar‖. Podemos observar
que Granier faz referência aos moradores locais.
No dia 1º de novembro de 1933 Granier conta que saiu do forte Saavedra às 8h
da manhã em uma patrulha nas redondezas. Outras patrulhas também haviam saído em
outras direções. Granier relata que recebeu a informação de que uma patrulha de quatro
homens havia se infiltrado por trilhas e que haviam tido contato com os índios locais.
Ao retornar à Saavedra Granier fala: ―Al regreso, sólo encontré en el trayecto un
campamento de indios de la tribu de los Chulupis, raza miserable y sucia‖. (GRANIER,
2004, p. 175).
Novamente em seu diário, no dia 18 de outubro de 1934, há um relato de contato
com índios Chulupis quando em companhia do Major Santa Cruz em uma
movimentação pela região do forte Ballivián: ―Visitamos una tribu de indios Chulupis,
donde tomé unas fotografías en que Santa Cruz rodeado de indios cuya vestimenta es la
desnudez, pues viven en estado salvaje‖. (GRANIER, 2004, p. 262).
Apenas essas três referências aos habitantes do Chaco podem ser observadas ao
longo da obra. É possível ainda observar nas suas anotações que ao longo dos dois anos
e meio que atuou na campanha do Chaco Granier narrou acontecimentos que envolviam
os bastidores da política nacional, principalmente a relação entre os comandantes do
exército e o Presidente boliviano Daniel Salamanca. Sua narrativa está fundada em um
604
(COMBÈS, 2010, p.8).
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quadro histórico que prioriza os feitos diplomáticos, políticos e militares em detrimento
da figura indígena.
Outro autor que escreve sobre a guerra605, Roberto Querejazu Calvo, foi também
militar do exército boliviano. O soldado de primeira linha narra a história da guerra do
Chaco a partir das batalhas onde pode ser observada em detalhes toda movimentação
dos exércitos pelo território em disputa. Querejazu ingressou na guerra ao que nos
parece como recruta da classe de 1932. Na apresentação do livro feita pelos editores é
salientado que a obra foi escrita por um soldado. Os editores falam que é um grande
livro escrito com o próprio sangue de seu autor. Porém, em quase duzentas páginas da
obra podemos observar que em nenhum momento é possível identificar quem são os
habitantes do Chaco ou quem é o soldado boliviano que combateu no Chaco. Nem a
história do próprio autor é tratada no livro.
Observamos que Carlos Mesa, Juan Granier Chirveches e Roberto Querejazu
Calvo fazem pouca referência aos indígenas em seus textos, portanto, há um
ocultamento do indígena em suas narrativas históricas.
Participação dos povos indígenas na guerra
A guerra alterou profundamente a dinâmica dos povos indígenas da região. Com o
início das mobilizações da Bolívia e do Paraguai em direção a esse território distante do
centro das duas nações, a estrutura de funcionamento dos povos indígenas da região
passou a sofrer com mais intensidade a presença de uma cultura diferente. O Estado no
momento que intensifica sua presença na região impõe suas práticas culturais levando
diversos problemas às populações locais que diante das adversidades ficaram em
situação passiva e ao mesmo tempo ativa, criando estratégias de sobrevivência,
modificando seu cotidiano e alterando sua identidade. A chegada dos exércitos e o
desenrolar do conflito provocaram mudanças significativas no mapa da região. A guerra
trouxe mortes, provocou migrações forçadas, destruição de aldeamentos e profundas
trocas culturais ao ponto de fazer desaparecer antigos costumes e inserir novos.
Pensando a partir das intensas trocas culturais que a guerra proporcionou à
região e utilizando os conceitos de mestiçagem e etnogênese é possível mostrar que os
605
(QUEREJAZU, 1998).
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povos indígenas do Chaco não passaram despercebidos diante dos fatos, ao contrário,
tiveram importante participação no conflito.
Mas, o que vem a ser a mestiçagem e a etnogênese? Para Boccara (2002, p. 56,
57) a etnogênese que primeiramente se tratava da emergência física de novos grupos
políticos através da influência de um grupo externo, tende hoje em dia a caracterizar
processos muito diversos de transformações não somente políticas como também nas
formas de definição identitárias de um mesmo grupo através do tempo. Ao desvincular
a noção de etnogênese de sua concepção biológica é possível enfatizar as capacidades
de adaptação e de criação das sociedades indígenas começando a considerar a
possibilidade de que novas configurações sociais se desenharam através da incorporação
de elementos alógenos e mediante as consecutivas modificações nas definições si
mesmo.
Nessa mesma perspectiva, Ratto (2005, p. 182) afirma que a mestiçagem não foi
só biológica, se estendeu a todo tipo de contato em que o empréstimo e a mescla de
características culturais foram uma parte intrínseca. Isso reflete a necessidade que
grupos têm de inventar diariamente modos de coexistência e soluções para sobreviver.
Boccara e Ratto utilizam o conceito de ―middle ground‖606 para pensar esse
espaço de contato onde não há limites impostos pelo Estado-nação. O espaço de contato
é entendido tanto como um espaço real como simbólico onde se desenrolam novas
formas de comunicação e comportamento. Portanto, a fronteira nessa concepção é um
espaço formado por um complexo processo de intercâmbio cultural, equilíbrio de poder
e criação de novas formas sociais. Para Ratto (2005, p. 183) a ideia de sociedade
fronteiriça multicultural oferecia uma visão alternativa de encontro onde era possível
detectar a convivência pacífica e o acomodamento criativo dos sujeitos em contato.
Assim, pensamos o espaço territorial dos povos indígenas do Chaco como um
espaço que foi transformado por novas relações de poder que se estabeleceram com os
primeiros contatos entre índios e a cultura ocidental (Estado, militares), sem esquecer
que essa transformação é datada, ela é temporal607.
606
Segundo Silvia Ratto e Guillaume Boccara, esse conceito foi elaborado por Richard White.
607
(SENA, 2012, p. 124).
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Dessa maneira, processos de etnogênese e mestiçagem ocorreram com diversas
etnias do Chaco. Utilizando bibliografias que escrevem a história indígena através de
estudos etno-históricos e antropológicos, podemos demonstrar como se deu esse
processo. As principais bibliografias que representam estes estudos são ―Mala
Guerra‖608 e ―Los Hombres Transparentes‖609. Os autores dos diversos artigos que
compõem essas duas obras trazem exemplos das profundas alterações sofridas pelos
povos com a guerra. Alguns desses autores são membros do programa de investigação
―Los indìgenas en la guerra de Chaco‖ financiado pela Agência Nacional de
Investigação da França, vinculada à Universidade de Rennes 2, França. Publicadas
respectivamente nos anos de 2008 e 2010, as duas obras tem como objetivos demonstrar
que a guerra não aconteceu sobre um deserto, e sim em uma região habitada por
sociedades humanas, e, ainda, repensar a guerra através da história indígena.
Entre as etnias mais afetadas pelo conflito temos os Chulupis, grupo que se
localizava as margens do rio Pilcomayo, uma região onde foram travadas as batalhas
mais intensas. Chulupi era o nome deste grupo em 1931 610. Porém, os autores
trabalhados utilizam o nome atual deste grupo, os Nivaclés.
Mestiçagem e etnogênese entre os Nivaclés
Um grupo que sofreu profundas alterações em seu cotidiano foram os Nivaclés.
Tradicionalmente os Nivaclés ocupavam a região do rio Pilcomayo médio, em sua
margem direita. Esta região era reivindicada pelos dois países, sendo que o Estado
boliviano considerava o território Nivaclé dentro de sua fronteira e o Estado paraguaio
considerava como pertencente a sua nação. Os momentos de instabilidade entre os
grupos Nivaclés ocorreram ainda no período anterior a guerra, com o avanço da
colonização de colonos ―brancos‖ no norte argentino e a instalação dos fortes bolivianos
na região a partir de 1925. Além dos contatos citados, em 1934 os Nivaclés sofreriam
ainda o contato com os militares paraguaios em seu avanço sobre os fortes bolivianos.
Entre os diferentes momentos que alteraram a dinâmica dos Nivaclés a guerra foi o mais
608
Mala Guerra: Los indígenas en la Guerra del Chaco (1932-1935). (RICHARD (comp.), 2008).
609
Los hombres transparentes. Indígenas y militares en la guerra del Chaco (1932-1935).
(CAPDEVILA; COMBÈS; RICHARD; BARBOSA, 2010).
610
(COMBÉS, 2010, p. 8).
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intenso período de pressão sobre eles. O impacto do conflito provocou um efeito
desarticulador na estrutura Nivaclé reterriorializando seus espaços através das múltiplas
variáveis que a guerra trouxe.
Segundo Fritz (2008), os primeiros conflitos entre os militares bolivianos e
indivíduos Nivaclés se deu após a instalação dos diversos fortes sobre o espaço
indígena611.
A chegada desses novos elementos na região a partir do final do século
XIX foi determinante para a modificação das relações internas e externas desse grupo.
A história de um indivíduo Nivaclé que teve sua vida alterada com a chegada
dos militares bolivianos e a instalação do forte Esteros na região do rio Pilcomayo
médio é um bom exemplo de mestiçagem e etnogênese. O personagem é o sargento
Tarija. A história de Tarija começou quando sua família topou com uma patrulha militar
boliviana e foi desencadeado um pequeno conflito onde seu pai foi morto, seus irmãos
conseguiram escapar e ele foi feito prisioneiro e levado para o forte Esteros612. Tarija
tinha em torno de 10 anos quando ocorreu o incidente. No forte os militares criaram
Tarija, lhe deram o que comer, ensinaram a ler e escrever. De acordo com Barbosa e
Richard (2010, p. 154) quando jovem Tarija foi transformado em soldado deste forte.
Os autores não conseguem definir muito bem a data do acontecimento, mas acreditam
que foi na época da estruturação de Esteros, portanto, quando inicia a guerra Tarija
devia ter em torno de 30 anos.
O forte Esteros era a última fortificação boliviana as margens do rio Pilcomayo.
Segundo Barbosa e Richard (2010) devido a grande distância em relação às cidades
bolivianas, o abastecimento do exército era feito pelo norte argentino e, portanto, por
território Nivaclé. Assim, a relação entre os militares e o grupo Nivaclé era constante.
Nos anos posteriores a fundação do forte Esteros a relação entre o dispositivo militar e o
611
Miguel Fritz é um padre missionário oblato que atua em comunidades Nivaclés no que hoje é o Chaco
paraguaio. As missões dos oblatos são de religião católica procedente da Alemanha e se instalaram na
Bolívia em 1925, a pedido do então Presidente Juan Bautista Saavedra. A instalação das missões oblatas
se deu em território Nivaclé, sobre a margem direita do rio Pilcomayo nas proximidades do forte Esteros.
Os Missionários Oblatos de Maria Imaculada são uma congregação missionária presente atualmente em
67 países do mundo. Vivem em comunidades apostólicas de padres e irmãos, unidos a Deus pelos votos
da vida religiosa: pobreza, castidade e obediência. Ver mais sobre a história da congregação em
http://www.omi.org.br/#!histrico/cdvv. Disponível em: < http://www.omi.org.br/#!histrico/cdvv> Acesso
em 08 de ago de 2013.
612
Nos anos de 1906 e 1907 o exército boliviano fundou os fortes Guachalla, Ballivián e Esteros.
(BREMEN, 2008, p. 340).
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espaço indígena era relativamente equilibrada e estável. A partir de 1923 com a
intensificação da presença militar, Esteros serviu como base para o avanço boliviano em
direção à região central do Chaco. Estando o forte dentro do espaço Nivaclé, as relações
entre indígenas e integrantes do corpo militar eram intensas. O trânsito de homens e
mulheres Nivaclés ao interior do forte era constante, diário. Segundo Barbosa e Richard
(2010, p. 160), Tarija fazia a mediação desse contato. Tarija levava muitos Nivaclés ao
forte boliviano. Também havia a presença de mulheres Nivaclés no forte. Nesse sentido,
os autores destacam que a relação entre militares e mulheres se deu assimetricamente,
não havia somente passividade por parte das mulheres. Num depoimento de uma mulher
Nivaclé613 fica evidente que as mulheres não estavam no forte em situação passiva,
desenvolveram estratégias em suas relações com os militares: ―Las mujeres que se
juntaban con los bolivianos […] trabajaban asì como lavanderas, cocineras, y la comida
que sobraba después se la llevaban a su gente en las aldeas‖. (BARBOSA; RICHARD,
2010, p. 163). Há relatos que as mulheres serviam também como prostitutas para os
militares bolivianos. Barbosa e Richard (2010) destacam o caso de uma liderança
indígena que atuou em 1980 na Bolívia, Alberto Santa Cruz, filho de uma mulher
Nivaclé e do comandante do forte Esteros na época, o oficial boliviano de nome Santa
Cruz.
Barbosa e Richard (2010) descrevem que em determinado momento, entre idas e
vindas às aldeias Nivaclés e a eminência da guerra Tarija organizava a vingança da
morte de seu pai. Transitando entre a identidade de militar boliviano e a identidade
Nivaclé, Tarija deixa de ser boliviano e incorpora sua raiz Nivaclé. Segundo Barbosa e
Richard (2010, p. 167), nas suas visitas aos acampamentos, vestido como militar, com
seu uniforme, Tarija alertava sobre a iminência da guerra com os paraguaios e
aconselhava os indivíduos que foram recrutados a desertar e os integrantes dos grupos a
se deslocarem para locais distantes dali onde nem paraguaios nem bolivianos fossem
capazes de encontrá-los. O conselho dado por Tarija surtiu efeito. Os Nivaclés
arregimentados desertaram em grande quantidade levando consigo armas e uniformes
recebidos dos militares: ―Por consejo de Tarija, los jóvenes conscriptos van
613
María Candia é seu nome, foi entrevistada em 19 de agosto de 2008 na missão de San José de Esteros
(atual território paraguaio). (BARBOSA; RICHARD, 2010, p. 163).
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abandonando el fortín, llevando consigo las armas y uniformes recibidos de los
bolivianos‖. (BARBOSA; RICHARD, 2010, p. 168).
A vingança de Tarija começou a se concretizar quando ele conseguiu progredir
na hierarquia militar chegando a graduação de sargento, o que lhe possibilitava
comandar um grupo de dez a vinte militares em patrulha pelos caminhos entre os fortes.
Sua primeira patrulha oficial como sargento foi em direção ao forte Tinfunqué. No
caminho encontraram quatro soldados paraguaios pescando em uma canoa. Por ordem
de Tarija a patrulha matou três e deixou um sobrevivente para que avisasse sua gente
sobre o incidente. A ideia de Tarija era provocar uma resposta paraguaia às mortes.
Assim, Tarija multiplicou sua estratégia levando uns atrás de outros grupos de
bolivianos às posições paraguaias. Sua tática era desenvolvida quando ordenava que os
soldados parassem para descansar e comer. Nesse momento Tarija deixava-os sozinhos
e esperava a chegada dos soldados paraguaios que matavam os bolivianos sem grandes
dificuldades. Assim foram muitas as emboscadas provocadas por Tarija em sua
vingança. Sobre o fim do sargento Tarija, Barbosa e Richard (2010, p. 169-172)
afirmam que existem variadas versões, mas que todas são unânimes em afirmar que ele
nunca voltou aos grupos Nivaclés.
Podemos observar através da história do sargento Tarija que sua identidade foi
se alterando de acordo com sua situação diante do contato com o ―outro‖.
Primeiramente com sua identidade étnica foi capturado pelos militares bolivianos e
criado através de uma cultura diferente. Assim, incorporou a identidade de boliviano
como soldado e posteriormente sargento. Quando decide vingar a morte de seu pai
parece fazer em nome da identidade Nivaclé esquecida ou pelo menos ocultada em
determinados momentos. Mas, com a vingança concretizada vemos que ele se livra
dessas duas identidades, à medida que sua deserção do exército libera seu vínculo de ser
boliviano e sua fuga e não retorno a sua etnia de origem lhe livra também de sua
identidade étnica. Portanto, Tarija ao executar sua vingança se livra de seus dois
sentidos de pertencimento.
A guerra certamente não iniciou o contato dos Nivaclés com o mundo dos
―brancos‖, mas, foi responsável por intensificar a mestiçagem cultural entre os dois
mundos, criando tensões até então inexistentes e aumentando os conflitos internos entre
os grupos da região do rio Pilcomayo. A dinâmica dos diversos grupos indígenas no
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lugar onde foram desencadeados com maior intensidade os combates da guerra, as
margens do rio Pilcomayo, foi alterada de maneira tão intensa que ao final do conflito
não foi mais possível retomar a normalidade antes existente.
Conclusões
Abordamos nesse artigo brevemente a Guerra do Chaco através de duas principais
questões que fazem parte das narrativas desse acontecimento ocorrido na primeira
metade do século XX na América Hispânica. A primeira foi o ocultamento que as
construções históricas fazem da participação indígena na guerra. A segunda questão foi
a participação indígena escrita de maneira a dar visibilidade a esses grupos, onde foi
utilizado como exemplo o grupo Nivaclé.
As produções que ocultam em seus textos a participação indígena usam como
referência o processo de homogeneização das diferenças culturais executados pelos
Estados nacionais durante o processo de construção de identidade coletiva e de
sentimento de pertencimento nos séculos XIX e XX. Este processo procurou eliminar
qualquer forma de diversidade. Assim, alguns textos históricos que escrevem a história
indìgena na América Hispânica utilizam termos como ―raça‖ para identificar e
categorizar os diversos grupos indígenas. Em contraposição novas produções estão
revendo a história indígena da América Hispânica procurando dar visibilidade ao
indígena, ou seja, repensando acontecimentos a partir da heterogeneidade e da
multiplicidade cultural colocando os indígenas na posição de atores.
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A LEI ÁUREA EM BARRA MANSA
André Rocha Carneiro614
Resumo:
Este artigo tem por objetivo analisar os impactos da Lei Áurea em um município do
Vale do Paraíba Fluminense, mais precisamente, Barra Mansa, através do jornal A
Imprensa Barramansense, de José Celestino de Aguiar, e de orientação liberal. Esta
região muito utilizou o trabalho escravo durante o Segundo Reinado, tornando-se a mais
rica do país. A abolição da escravidão foi um duro golpe na região, representando o
aprofundamento da crise econômica e a perda do apoio dos seus escravagistas ao
Império.
Palavras-chave: Lei Áurea.Vale do Paraíba. Barra Mansa
Abstract:
This article aims to analyze the impacts of the Áurea Law in a city of Vale do Paraíba
Fluminense, more precisely, Barra Mansa, through the newspaper The Press
Barramansense, of José Celestino de Aguiar, with liberal orientation. This region very
used slave labor during the Second Empire, becoming the country's wealthiest. The
abolition of slavery was a blow in the region, representing the deepening economic
crisis and the loss of support from their slavery to the Empire.
Keywords: Lei Áurea. Vale do Paraíba. Barra Mansa
Introdução
O processo de abolição da escravidão no Brasil foi um caminho longo e tortuoso.
Depois de três séculos de escravidão colonial, que introduziu uma cultura arraigada do
escravismo entre a população brasileira, quando o ideal era ser dono de homens e terras,
a crise do sistema colonial como um todo também provocou a crise do escravismo. A
história do Brasil independente já nasceu sob o signo da crise da mão de obra escrava. A
pressão inglesa para o fim do tráfico já se fizera notar nos tratados de 1810 com
Portugal, quando D. João procurou ganhar tempo e restringiu a ação do império
português apenas aos territórios africanos dominados por Portugal. Em 1815, após o fim
das guerras napoleônicas, a Inglaterra proibira o tráfico de escravos africanos acima da
linha do Equador. Em 1817, os ingleses passaram a ter o direito de visita em alto-mar
aos navios negreiros. Em 1826, juntamente com o tratado que formalizava o
reconhecimento da independência brasileira e a ratificação, por parte do governo
614
Mestrando pelo PPGH – UERJ; e-mail: [email protected]. Orientadora: Edna Maria dos Santos.
309
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imperial brasileiro, dos acordos anteriores feitos entre Inglaterra e Portugal, o Brasil se
comprometera a terminar com o tráfico no prazo máximo até 1830. Esse acordo foi um
dos fatores do desgaste de D. Pedro I com a classe senhorial brasileira, principalmente
do Vale do Paraíba Fluminense, que não pretendia abrir mão de sua força de trabalho
escrava. Finalmente é votada, já na Regência, em 1831, a primeira lei antitráfico, que
ficou conhecida como a lei ―pra inglês ver‖, ou seja, uma lei de fachada que pretendia
enganar o governo inglês e seus navios de guerra, que aprisionavam as cargas dos
navios negreiros. Os africanos escravizados continuavam entrando no país por portos
clandestinos, com a complacência do governo imperial. A proibição do tráfico traria
grandes dificuldades para a manutenção dessa força de trabalho. Por isso, a resistência à
lei foi muito grande. As autoridades não conseguiam fiscalizar o tráfico e muitas ainda
não se esforçavam a contento. As poucas autoridades que resolveram combater o tráfico
se sentiam ameaçadas615. Houve mesmo pressão para que a lei fosse revogada.
Estávamos em um período em que a produção do café no Vale do Paraíba
Fluminense provocara o recrudescimento da mão de obra escrava devido à necessidade
de trabalhadores para as diversas atividades a serem desenvolvidas nas fazendas de café,
como o plantio, a colheita, o beneficiamento, o conserto de estradas, pontes e cercas, o
cuidado com as tropas de mulas que transportavam o café, etc 616. Entretanto, além da
contínua pressão inglesa, um novo problema para a manutenção da escravidão surgira
no horizonte dos escravocratas do sudeste cafeicultor: a grande concentração da
população escrava617, o que provocara o haitianismo, ou seja, o terror de revoltas
escravas como ocorrera no Haiti, em 1891, e que levara à morte violenta de diversos
615
Emília Viotti da Costa comenta a respeito do juiz de direito de Ilha Grande, em Angra dos Reis, que
oficiava às autoridades superiores sobre suas dificuldades em combater o tráfico na localidade devido
estar toda a população envolvida no contrabando de escravos, à desorganização da Guarda Nacional e ao
temor pelo risco de perder a própria vida. Cf. COSTA, E. V. da, Da senzala à colônia. São Paulo:
UNESP, 1998, p. 77.
616
A força da escravidão como projeto hegemônico no Brasil se explica pelo alto grau de disseminação
que possuía na sociedade Oitocentista. Quase todos os setores sociais livres dispunham de pelo menos um
escravo. A propriedade sobre a pessoa escravizada era, portanto, um valor e uma prática comum aos
homens livres do Império. Cf. MUAZE, M. O Vale do Paraíba Fluminense e a Dinâmica Imperial, p. 330.
Disponível em http://www.institutocidadeviva.org.br/inventarios/?page_id=8. Acesso em 07/09/2012.
617
De acordo com o Relatório do Presidente de Província, de 1856, no ano de 1840, Barra Mansa contava
com uma população cativa de 56,36%. São João Príncipe tinha 55,80% de cativos entre sua população.
Valença, de 70,63% de cativos. Vassouras, de 69,61% de cativos. Piraí, de 64,91% de cativos. Como se
pode observar, a maioria da população destes municípios era composta de escravos, sendo uma grande
quantidade de africanos.
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escravocratas daquela colônia francesa. Os boatos de levantes escravos no Vale do
Paraíba causavam verdadeiro pânico e os fazendeiros logo se apressavam em reprimir
quando as revoltas de fato ocorriam. Combinando estes dois fatores, a pressão inglesa
pelo fim definitivo do tráfico (o que levara à aprovação do Bill Aberdeen em 1845, em
que os ingleses, na prática, não reconheciam mais a soberania brasileira em nosso
próprio território, pois apreendiam cargas mesmo em águas nacionais, sendo seus
executores julgados por pirataria pelos tribunais do almirantado inglês) e o haitianismo
resultaram na aprovação da Lei Eusébio de Queirós, em 1850. Esta lei, que desta vez foi
levada a sério devido aos problemas que o Brasil e os escravocratas poderiam enfrentar,
apontava um primeiro limite temporal à subsistência desta forma de trabalho no país.
A década de 1870 marcou o início do fim do escravismo no Brasil. A
participação do Brasil na Guerra do Paraguai, na década de 1860, demonstrou os limites
de uma sociedade escravista em uma guerra. Sem ter soldados suficientes, o governo
liberou os seus próprios e apelou para que os fazendeiros liberassem os seus escravos
para a guerra. Muitos desses escravagistas alistaram seus cativos no exército tendo por
objetivo conseguir honrarias e títulos nobiliárquicos, além do agradecimento do
Imperador, como também receber dispensa do alistamento próprio ou de seus parentes.
Os escravos que participassem da guerra seriam libertos, juntamente com sua família. A
grande quantidade de escravos em meio aos exércitos brasileiro e aliados constrangeu o
governo imperial e seus generais. Além disso, a derrota dos confederados na Guerra de
Secessão americana e a abolição da escravidão naquele país em 1865 colocava o Brasil
em uma posição isolada na América, já que era o único país independente a manter a
escravidão (secundado apenas pela possessão espanhola de Cuba). A Coroa brasileira
temia que as potências estrangeiras, principalmente Inglaterra e EUA, aumentassem a
pressão sobre o país e o nosso constrangimento618. Assim, o seguinte passo foi a Lei do
Ventre Livre, de 1871, que colocou o governo imperial em rota de colisão com sua
principal base de sustentação política, os cafeicultores do Vale do Paraíba. A partir de
então, a escravidão e a monarquia brasileiras pareciam estar com seus dias contados.
618
SALLES, R. As Águas do Niágara. 1871: crise da escravidão e o ocaso saquarema, in O Brasil
Imperial, vol. III – 1870 – 1889, in Grimberg, K. e Salles, R. (org.), Civilização Brasileira, Rio de
Janeiro, 2009.
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Apesar de um novo limite temporal ter sido estabelecido para o fim da
escravatura com a Lei do Ventre Livre, posto libertar os filhos dos escravos, o governo
se apressou em aprovar a Lei dos Sexagenários, em 1885, o que, na verdade, aliviou os
custos da manutenção dos escravos idosos devidos pelos escravistas. O movimento
abolicionista, ainda incipiente nas décadas anteriores, estava a pleno vapor na década de
1880. Vários setores sociais não dependiam mais do trabalho escravo e, aos poucos,
aqueles que ainda o utilizavam, começaram a se desfazer de seus escravos. Fazendeiros
paulistas começavam a se utilizar da mão de obra do imigrante europeu. Clubes
abolicionistas foram criados, como também fundos para a compra e libertação dos
cativos619. Os fazendeiros que resistiam viam-se ameaçados pelas constantes revoltas e
fugas de seus plantéis, agora com apoio popular. A imprensa abolicionista se expandia
criticando a desumanidade do tratamento dado aos escravos e a falta de nossa sintonia
com os países civilizados e o restante da América (até mesmo Cuba extinguira o
trabalho escravo em 1880).
Entretanto, apesar dos sinais dos tempos apontarem para o término não muito
distante da escravidão, muitos escravocratas mantiveram-se apegados a esse patrimônio.
Isso ocorrera principalmente com os fazendeiros do Vale do Paraíba Fluminense, pois
os das demais regiões já vinham fazendo a transição ao trabalho livre há décadas e os
paulistas estavam substituindo o trabalho escravo pelo do imigrante, mais rentável. A
Lei Áurea veio pegar muitos destes escravagistas fluminenses em uma situação já de
fragilidade, pois o café também estava em decadência nesta província devido,
principalmente, ao esgotamento dos solos620. A crise destes setores afetou também a
monarquia, que acabou não resistindo por muito tempo.
Quanto aos libertos de 13 de maio de 1888, a situação não mudou
significativamente. Muitos não foram avisados por seus ex-proprietários, trabalhando
ainda um bom tempo como escravos. Os demais tinham liberdade para escolherem onde
trabalhar e ganhariam agora um salário. Entretanto, a crise na província fluminense não
deixaria a eles muita escolha de emprego. Vários deles nem saíram de suas fazendas.
Outros foram para as cidades, onde eram mal vistos e discriminados pela população que
619
COSTA, E. V. da. A Abolição. São Paulo: UNESP, 2008.
620
MACHADO, H. F. Escravos, Senhores e Café. A Crise da Cafeicultura Escravista do Vale do Paraíba
Fluminense: 1860-1888. Niterói: Cromos, 1993.
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tanto comemorara sua libertação, para viver em bairros pobres. Nem os abolicionistas e
nem o governo se preocuparam com o seu destino, abandonando-os à própria sorte.
Os Impactos da Lei Áurea em Barra Mansa – Vale do Paraíba Fluminense
A Lei Áurea, que aboliu a escravidão no Brasil, foi promulgada em 13 de maio de 1888
e é um marco no movimento de afirmação do negro como cidadão na sociedade
brasileira. Entretanto, como se sabe, essa abolição, no Brasil, não ocorreu de um dia
para o outro; foi, sim, um processo que perdurou durante décadas. Sua implantação
também não ocorreu de modo exatamente pacífico e definitivo, o que se comprova no
fato de o Brasil ter sido o último país independente do continente americano a abolir
completamente a escravatura. As consequências do fim da escravidão foram enormes
para o país e para a própria monarquia que, segundo o Barão de Cotegipe, um político
escravagista da época, juntamente com a Lei Áurea, escrevia seu próprio atestado de
óbito.
Vejamos especificamente o caso do impacto da Lei Áurea sobre a cidade de
Barra Mansa, a partir das notícias veiculadas pelo jornal semanal A Imprensa
Barramansense, fundado em 5 abril 1887, por José Celestino de Aguiar621.
Segundo este periódico, no mês de maio de 1888, o movimento abolicionista
teria ganhado mais força na região do Vale do Paraíba Fluminense e também no Brasil,
pois já se sabia que a abolição integral estava prestes a acontecer, devido aos debates no
parlamento. Muitos senhores de escravos começaram a libertar seus cativos para
demonstrar um abolicionismo de última hora e não serem mal vistos pela sociedade.
Com a notícia da apresentação do projeto de lei da abolição no parlamento no dia 8 de
maio, foi a vez do fazendeiro barramansense Custódio de Carvalho libertar os seus.
Muitas vezes esse acontecimento ocorria em meio a uma festividade ou sarau para que
desse ao ―filantropo‖ maior visibilidade da sua ―boa ação‖.
De acordo com A Imprensa Barramansense, a promulgação da Lei Áurea em 13
de maio parece que foi bastante comemorada em Barra Mansa, cidade que muito havia
contado com a força de trabalho do escravo durante o período em que o Vale do Paraíba
621
Jornal ―A Imprensa Barramansense‖, edições de maio, junho e julho de 1888.
313
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Fluminense foi o maior produtor de café do Brasil, no século XIX. Nessa época, era
corrente um dito popular, no qual se afirmava que o ―Brasil era o Vale‖ e o ―Vale era o
Café‖. Para comemorar, o povo saiu em manifestação de júbilo pelas ruas, tendo à
frente a banda de música Recreio dos Artistas e parando, em cortejo, em frente às casas
das personalidades ilustres do município. Manuel Ribeiro de Souza Barata era um
desses ilustres; ele discursou ressaltando a satisfação que a abolição causara e foi muito
aplaudido. Na rua do conselheiro Andrade Figueira (escravagista renitente), o vigário
José Martins Pereira de Barros também discursou pelo dever e a honra do povo
barramansense, recebendo vivas da multidão à Princesa Izabel, ao imperador D. Pedro
II, ao Gabinete ministerial formado em 10 de março, aos abolicionistas Joaquim
Nabuco, Quintino Bocayuva e José do Patrocínio. O povo passou ainda pelo largo da
Matriz com novas vivas e se dispersou apenas por volta das 21 horas. Durante as
manifestações, o comércio e demais estabelecimentos fecharam as portas em sinal de
respeito.
Entretanto, nem tudo eram flores na terra de Macunaíma. Muitos fazendeiros
não estavam contentes com a perda de seus escravos, ainda mais sem indenização
(apesar de não se pensar em indenizar o escravo pelo trabalho forçado a que o
submeteram). Boatos foram espalhados sobre a intenção dos fazendeiros de Bananal,
em sinal de protesto, em alugar um trem para mandar seus ex-escravos para a princesa
regente, a fim de que ela deles cuidasse. Apesar de desmentido pelo redator J.A.
Magini, do jornal de Bananal, o Nova Phase, o simples fato de ter existido o boato já
demonstra o clima de animosidade entre os fazendeiros da região quanto à abolição da
escravidão.
Sinais dessa animosidade podem ainda ser encontrados nas notícias que
circulavam à época no jornal A Imprensa Barramansense, de tendência liberal, que,
segundo informação contida no próprio periódico, parece ter sido o único jornal que
comemorou a abolição da escravidão em Barra Mansa. O exemplar veiculado no dia 24
de maio de 1888 noticiava que um liberto, de nome Benedicto do Norte, fora à fazenda
do Sr. Manoel Cardoso, na freguesia do Amparo, buscar uma liberta, com quem vivia, e
a filha do casal. O fazendeiro, entretanto, opôs-se a entregá-las e discutiu com
Benedicto, que foi preso e teve o braço fraturado em 2 lugares. Essa ocorrência
demonstrava a conivência das autoridades competentes quanto à manutenção da
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situação de cativo dos já libertos. Se não fosse por isso, não haveria motivo para o
aprisionamento do liberto, que estava, apenas, requerendo o direito recém-adquirido por
sua companheira e filha. O jornal termina a matéria com o emprego da expressão
―Bonito‖, o que demonstra certa ironia e revela seu posicionamento crìtico em relação
ao fato ocorrido. No mesmo exemplar, na seção seguinte, A Imprensa Barramansense
publica o poema Não mais, do poeta abolicionista Castro Alves.
O Jornal do Comércio, um periódico da Corte, em 22 de maio publicou um
artigo denunciando que pedidos teriam sido feitos às autoridades do município de Barra
Mansa para prenderem os libertos que vagavam pela cidade, o que foi desmentido, na
Imprensa Barramansense, por alguém que se intitulava O Abolicionista. Segundo esse
―Abolicionista‖, a notìcia dos pedidos era falsa, já que era raro ver algum liberto
―vadiando‖, pois ―eles têm se portado como ‗devem‘‖. Provavelmente, para ―O
Abolicionista‖ os libertos deveriam se comportar de modo que não andassem pelas ruas
da cidade. Corriam, ainda, boatos sobre o fato de a população querer ―correr‖ com os
negros que se ajuntavam nas ―casas de negócios‖ aos domingos. Como antes os
escravos nem podiam ir à cidade fazer suas compras, possivelmente essa nova situação
incomodava muita gente.
Outra ocorrência importante em relação ao posicionamento dos cidadãos
barramansenses ante a abolição é o fato de muitos ex-escravos continuarem mantidos
nas fazendas sem serem informados do grande acontecimento por seus ―exproprietários‖, ou, se informados por outra forma, os fazendeiros não permitiam que
partissem, teimando em burlar a Lei Áurea. Um deles, o fazendeiro Rocha Velho,
chegou a ser denunciado pela manutenção do trabalho escravo em sua fazenda. Por isso,
o Chefe de Polícia da província, Salvador A. Muniz Barreto, enviou circulares aos
delegados, nos dias 26 e 28 de maio, informando que a exigência dos serviços dos
escravos com condição de liberdade e dos serviços dos ingênuos (filhos de escravos)
tinha terminado com a extinção da escravidão. Portanto, as ―autoridades‖ e fazendeiros
não lhes podiam embaraçar o livre gozo da liberdade, numa alusão à participação e/ou
conivência, inclusive, das autoridades do município. Aos delegados cabia apenas manter
a ordem pública, ―obrigando‖ os libertos a tomarem ocupação quando se entregassem à
vadiagem ou se aglomerassem nas estradas e centros populosos, uma vez que as
aglomerações, principalmente em domingos e dias santos, eram muito temidas pela
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população barramansense. A Imprensa Barramansense noticiou que, por conta disso, no
dia 5 de junho, a polìcia prendeu 13 ―vagabundos‖. Ou seja, os negros eram livres, mas
não tinham um dos direitos humanos mais básicos, o de ir e vir.
Embora, o Visconde de Rio Branco, político e autor da Lei do Ventre Livre, já
houvesse prevenido os escravagistas para o fim da mão-de-obra escrava, previsto para
ocorrer em 10 anos após a Lei do Ventre Livre, muitos senhores de escravos
mantiveram o trabalho cativo até o fim. Teimavam em não acreditar que a abolição
integral ocorreria, mesmo assistindo ao incremento do movimento abolicionista, às
emancipações voluntárias cada vez em maior número, à Lei do Ventre Livre, de 1871,
que libertava os filhos dos escravos, que deveriam ser criados pelos proprietários até os
8 anos de idade, o que por si só projetava o fim da escravidão para o futuro, e à Lei dos
Sexagenários, de 1885, que libertava os escravos acima dos 60 anos (um presente para
os escravocratas, pois não precisavam sustentá-los na velhice). Devido a essa atitude, a
abolição criou um problema para a mão-de-obra dos fazendeiros fluminenses que não se
prepararam para a nova realidade. Jornais da região, como O Resendense e o Itatiaya,
citavam a possibilidade de ruína da lavoura devido ao abandono das terras pelos exescravos. Comentavam que teria sido conveniente (para os dois lados) que os
fazendeiros tivessem, aos poucos, cedido a liberdade aos escravos, com incentivo a que
ficassem nas fazendas. A conveniência residia em manter a mão de obra e, ainda,
impedir que libertos fossem ―atirados de chofre à sociedade, sem recursos e sem
tirocínio da vida social, convencidos de estarem melhor do que na fazenda‖.
O que ocorreu, entretanto, foi o contrário do que recomendara os jornais
resendenses. O jornal A Imprensa Barramansense, em 24 de maio, afirmou que os
libertos de 13 de maio abandonavam as fazendas em Barra Mansa, pois seus senhores
não lhes tinham a confiança e não eram vistos como ―amigos‖ e sim como interesseiros
que não lhes minoraram antes a condição de escravos. Afirmou também que ainda era
tempo de se tratar os libertos com ―agrado‖ e ―delicadeza‖; era importante que se
combinasse um ordenado fixo para que ficassem, pois o abandono se acirrava com o
aparecimento de agricultores que acorriam de outras localidades para contratar colonos
de Barra Mansa, retirando mais braços do município. Segundo o jornal, foram
observadores e inteligentes o Tenente Coronel Caetano Ferraz, o Alferes Quintino de
Medeiros (ambos da Guarda Nacional - força paramilitar criada em 1831 para manter a
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ordem oligárquica local), João Pedro de Carvalho, Francisco Ferreira Franco e outros
poucos fazendeiros de Barra Mansa que implantaram o sistema colonizador e tiveram
como seus colonos os próprios libertos de suas fazendas. A Lei Áurea, portanto, não
lhes teria causado abalo algum.
A abolição foi fatal para a monarquia que tinha nos escravocratas fluminenses
sua principal base de sustentação política. Políticos monarquistas tradicionais, em
desagravo, começaram a passar para o lado dos republicanos, os chamados
―republicanos de última hora‖. Câmaras municipais de todo o paìs representavam aos
poderes competentes sobre a necessidade de se rever a Constituição. Chegou-se mesmo
a eleger comissões assinando manifestos que combatiam o 3º Reinado. Em Barra
Mansa, não foi diferente. Políticos do partido dominante na cidade, o Conservador
(havia no Segundo Reinado apenas os partidos Liberal e Conservador. O partido
Republicano foi criado apenas a partir de 1870), marcaram uma reunião, no dia 12 de
junho, na freguesia do Amparo, para constituir o Partido Republicano no município. O
jornal A Imprensa Barramansense, no dia 12 de julho, publicou um editorial no qual se
demonstrava perplexo com o incremento do movimento republicano de Barra Mansa;
reportava-se ao fato de conservadores e liberais ―de sempre‖ terem passado a sustentar,
repentinamente, com todo o entusiasmo, as ideias republicanas. Não foi à toa que,
apenas um ano e meio depois da abolição da escravidão, em 15 de novembro de 1889, a
monarquia ruiu e ocorreu a Proclamação da República.
Conclusão
Como se pôde observar, também no Vale do Paraíba Fluminense o processo de abolição
da escravatura e de inserção do negro na sociedade não ocorreu de forma tranquila. A
história reconstruída no exame do jornal A Imprensa Barramansense mostra-nos que,
diferentemente do que deveria ocorrer, a abolição jogou o ex-escravo sem indenização,
sem estudo, sem dinheiro e sem qualquer programa de inclusão social em uma
sociedade que não havia se preparado para recebê-lo e, portanto, discriminava-o. Essa
situação, aliás, foi um dos fatores da marginalização negra durante o século XX e, de
certa forma, perdura na atualidade. Ainda hoje, cento e vinte e três anos depois de
assinada a Lei Áurea, movimentos sociais lutam pela afirmação do negro como cidadão
na sociedade brasileira.
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ENTRE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS: GONÇALVES DIAS COMO ÍCONE DE
IDENTIDADE BRASILEIRA E MARANHENSE
Andréa Camila de Faria622
Resumo:
O presente trabalho procura entender de que forma a memória do poeta maranhense
Gonçalves Dias se formou e se consolidou destacando-o tanto no cenário nacional
quanto no imaginário regional maranhense. Nesse sentido estamos trabalhando com as
noções de identidade e memória, tendo em mente que a identidade e a memória de
Gonçalves Dias estão mescladas à identidade brasileira que se construiu a partir do
império e também a uma identidade maranhense que se quer ao mesmo tempo particular
e nacional.
Palavras-chave: Gonçalves Dias, memória, identidade.
Abstract:
This study seeks to understand how the memory of the poet Gonçalves Dias from
Maranhão has been formed and consolidated, highlighting he on both national scene and
regional imaginary of the Maranhão. In this sense we are working with the notions of
identity and memory, keeping in mind that identity and memory of Gonçalves Dias are
merged to the Brazilian identity constructed from the empire and also an identity from
Maranhão which wants to be at the same time private and national.
Keywords: Gonçalves Dias, memory, identity.
As províncias do norte do Brasil foram as que mais tarde aderiram à
independência do Império. Caxias, então chamada Aldeias Altas no
Maranhão, foi a derradeira. A independência foi ali proclamada depois de
uma luta sustentada com denodo por um bravo oficial português que ali se
fizera forte. Isto teve lugar à (sic) 1° de Agosto de 1823. Nasci a 10 de
Agosto desse ano.623
Segundo Joël Candau não podemos recordar um acontecimento do passado sem que o
futuro desse passado seja integrado à lembrança, isto é, lembrar uma história nunca é
recuperá-la sem as influencias de seu futuro, pois ―o tempo da lembrança não é o
622
Mestre em História Política pelo Programa de Pós-Graduação em História da UERJ. Bolsista do
Programa de Treinamento e Capacitação Técnica da FAPERJ no projeto Núcleo de Estudos sobre
Biografia, História, Ensino e Subjetividades (NUBHES) coordenado pela Profª Drª Marcia de Almeida
Gonçalves. [email protected].
623
DIAS apud PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1943,
p. 09.
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passado, mas ‗o futuro já passado do passado‘‖624. Nesse sentido, toda recordação é,
segundo o autor, tributária da natureza do acontecimento memorizado, do contexto
passado desse acontecimento e também daquele momento de recordação 625. Em suas
palavras,
O narrador parece colocar em ordem e tornar coerente os acontecimentos de
sua vida que julga significativos no momento mesmo da narrativa:
restituições, ajustes, invenções, modificações, simplificações, ―sublimações‖,
esquematizações, esquecimentos, censuras, resistências, não ditos, recusas,
―vida sonhada‖, ancoragens, interpretações e reinterpretações constituem a
trama desse ato de memória que é sempre uma excelente ilustração das
estratégias identitárias que operam em toda narrativa. 626
Recuperar uma lembrança, especialmente uma lembrança autobiográfica
é criar uma memória, uma identidade, e esse movimento nos permite vislumbrar
algumas das estratégias de criação identitária, mesmo que nem sempre elas estejam
perfeitamente às claras ou pareçam deliberadas.
No caso de Gonçalves Dias é sintomático que o poeta, ao escrever nota
autobiográfica a pedido do francês Fedinand Denis, tenha relacionado diretamente seu
nascimento ao ―nascimento‖ da pátria, na menção a consolidação da independência com
a rendição do Maranhão em agosto de 1823. Está claro que para o menino que nascia a
10 de agosto daquele ano, o fato de que o país estava recém-saído de sua condição
colonial e de que sua província natal resistira a essa metamorfose, não era questão
importante, aliás, nada que não dissesse respeito aos cuidados maternos requisitados por
um bebê recém-nascido devia importar.
Mas para o homem de letras que se consolidara já em 1846, quando da
publicação de seus Primeiros Cantos, como o maior poeta do Brasil, membro do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, parte ativa dos projetos de (re)construção da
nação, estabelecer esta relação significava criar para si próprio uma identidade e uma
origem singular. Nas palavras da biógrafa Lucia Miguel Pereira, a nota é:
importantíssima, pelo que diz, e pelo que omite. Mais ainda pelo que omite
do que pelo que diz. Com efeito, ligando o seu nascimento aos sucessos
políticos, patenteia Gonçalves Dias que foi profundamente marcado por eles.
624
CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011, p. 66
625
CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011, p. 71.
626
CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011, p. 71.
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Que o fato de nascer com a independência da sua província influiu no seu
feitio, na direção que imprimiu à sua obra. Do contrário não mencionaria a
coincidência nessa concisa informação, em que mais nada adiantou sobre a
sua vida particular.627
Na interpretação da biógrafa, em seu silencio Gonçalves Dias deixava
transparecer a inquietação de seu lugar social, de sua posição de filho natural de uma
mãe mestiça e um pai português que resistira à independência do Brasil. Era o silencio
revelador de um estado d‘alma628. Não nos cabe aqui aprofundar ou debater tal
interpretação, embora deva se pensar que talvez sua condição de mestiço tenha pesado –
positivamente, devemos dizer – para sua identificação como ícone da nacionalidade
brasileira. Mas seja como for, ao estabelecer esta relação, o poeta firmou para si um
pertencimento e uma vinculação particular com sua pátria, numa imagem que ajudou a
perpetuar o seu nome junto à memória nacional.
Para Marcia de Almeida Gonçalves, ao estabelecer esta relação, Gonçalves Dias,
mais do que um pertencimento, firmava um compromisso de representar por meio de
sua vida particular – e aqui entendemos também por meio de sua obra – a comunidade
imaginada, sentida e significada como nação629.
De alguma maneira podemos dizer que Gonçalves Dias decidira proclamar-se
como brasileiro desde o nascimento, identificando-se ao Brasil cuja imagem ajudava a
divulgar e (re)construir, num exercício onde o presente e o futuro pesavam
decisivamente sobre a memória do passado. Ele era brasileiro desde o nascimento,
mesmo que ser brasileiro nesse momento ainda fosse algo em construção.
Operações complexas, a reconstrução de um passado e a conseqüente construção
de sua memória, demonstram alguns dos objetivos escondidos atrás desses movimentos.
Movimentos que, no caso das narrativas pessoais, buscam tornar estável, verossímil e
previsível os projetos que norteiam ou nortearam a vida daquele indivíduo. Nesse
sentido, como afirma Candau, ―todo aquele que recorda domestica o passado e,
sobretudo, dele se apropria, incorpora e coloca sua marca em uma espécie de selo
627
PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1943, p. 09.
628
PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1943, p. 09.
629
GONÇALVES, Marcia de Almeida. ―Histórias de gênios e heróis: indivìduo e nação no Romantismo
brasileiro‖. GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Org). In: ______. O Brasil imperial 1831-1889. v. 2.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009b, p. 428.
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memorial que atua como significante da identidade‖630. Assim ao relacionar diretamente
seu nascimento ao nascimento da pátria, Gonçalves Dias procurou criar para si uma
identidade que o vinculava diretamente ao seu objetivo, ao seu projeto de vida.
O projeto de Gonçalves Dias era o de fazer brilhar o seu nome tornando-se ―o
primeiro poeta do Brasil, e, se houver tempo, o primeiro literato‖ 631, como comentou
certa vez em carta ao amigo Alexandre Teófilo. Como sabemos, o poeta alcançou seu
objetivo já em 1846 com a publicação de seus Primeiros Cantos. Tal sucesso merece,
contudo, ser melhor problematizado.
A publicação que trazia à público a hoje tão aclamada Canção do Exílio, veio á
luz sem grande alarde. O grande sucesso só viria após a divulgação da crítica de
Alexandre Herculano sobre o livro de estréia do jovem poeta maranhense. No artigo em
questão, intitulado Futuro Literário de Portugal e do Brasil, publicado no tomo 7 da
Revista Universal Lisboense (1847-1848), o escritor português afirmava:
Nós somos hoje o hilota embriagado, que se punha defronte da mesa nas
filiais de Esparta, para servir de lição de sobriedade aos mancebos. O Brasil é
a moderna Esparta, de que Portugal é a moderna Helos.
Estas amarguradas cogitações surgiram-me na alma com a leitura de um livro
impresso o ano passado no Rio de Janeiro, e intitulado: Primeiros Cantos:
poesias por A. Gonçalves Dias. Naquele país de esperanças, cheio de viço e
de vida, há um ruído de lavor íntimo, que soa tristemente cá, nesta terra onde
tudo se acaba. A mocidade, despregando o estandarte da civilização, preparase para os seus graves destinos pela cultura das letras; arroteia os campos da
inteligência; aspira as harmonias dessa natureza possante que a cerca;
concentra num foco todos os raios vivificantes do formoso céu, que a
alumina; prova forças enfim para algum dia renovar pelas idéias a sociedade,
quando passar a geração dos homens práticos e positivos, raça que lá deve
predominar ainda; porque a sociedade brasileira, vergôntea separada há tão
pouco da carcomida árvore portuguesa, ainda necessariamente conserva uma
parte do velho cepo. Possa o renovo dessa vergôntea, transplantada da
Europa para entre os trópicos, prosperar e viver uma bem longa vida, e não
decair tão cedo como nós decaímos!632
630
CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011, p. 74.
631
DIAS, Gonçalves apud PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1943, p. 85.
632
HERCULANO In: DIAS, A. Gonçalves. Poesia e prosa completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1998, p. 98-99.
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E ainda ponderava que os Primeiros Cantos eram ―inspiração de um grande
poeta‖ e que o poema Seus Olhos eram as composições mais mimosas que já havia
lido633.
O artigo de Herculano chegou às mãos de Gonçalves Dias através de seu amigo
português Gomes de Amorim, que o transcreveu e enviou para o Brasil na certeza de
que o escrito surpreenderia e em muito alegraria o poeta maranhense. Os meios que
levaram os Primeiros Cantos às mãos do ilustre letrado português, infelizmente nos são
desconhecidos, talvez tenha influído para isso as sociabilidades portuguesas de
Gonçalves Dias, mas o que é certo é que sua repercussão foi de grande importância na
vida do jovem poeta, lançando-o de vez a um posto de destaque no cenário das letras
nacionais.
Nesse sentido, José Henrique de Paula Borralho, afirma que
A repercussão do artigo de Alexandre Herculano nos jornais do império foi
imediata e pesou decisivamente para a visibilidade e dizibilidade do cantor
timbirense e de sua utilização pelo império brasileiro dentro do projeto
criador da nação.634
Num momento em que a nação se construía e se firmava receber a declaração de
independência literária pelas mãos de um dos mais aclamados homens de letras da
antiga metrópole certamente que se revestia de um aspecto mais do que simbólico, pois
era também político. Com a exaltação de Gonçalves Dias feita por Herculano, o Império
Brasileiro não era mais apenas independente politicamente, ganhara o aval para ser
autônomo em sua literatura e história, e não seriam justamente essas duas esferas entre
as principais responsáveis pela construção da nação?
Gonçalves Dias parecia ter plena consciência da importância que essa
―aprovação‖ possuìa, prova disso é que ao organizar em 1857 uma publicação que
reunia seus Primeiros, Segundos e Últimos Cantos – intitulada Cantos – precedeu-o
pelo artigo de Herculano, num claro recurso de (re)afirmação de sua obra e de sua
imagem. No prólogo da edição ele afirmou:
633
HERCULANO In: DIAS, A. Gonçalves. Poesia e prosa completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1998, p. 99-100.
634
BORRALHO, José Henrique de P. A Athenas equinocial: a fundação de um Maranhão no Império
brasileiro. 2009. Tese (doutorado em História) - Departamento de História, Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2009, p. 208.
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A colecção de poezias, que agora reimprimo, vae illustrada com algumas
linhas de A. Herculano, a que devo a maior satisfação que tenho ate hoje
experimentado na minha vida litteraria.
Merecer a critica de A. Herculano, já eu consideraria como bastante honroso
para mim; uma simples mensão do meo primeiro volume, rubricada com seo
nome, desejava-o de certo; mas esperal-o, seria da minha parte demasiada
vaidade.
Ora, em vez da critica inflexível, que eu devera, mas não ousava receiar; em
vez da simples noticia do apparecimento de um volume, que não seria de
todo ruim, pois que teria merecido occupar a sua attenção; o ilustre escriptor
poz por alguns momentos de parte a severidade que tem direito de usar para
com todos, quando é tão severo para consigo mesmo, e, benevolamente
indulgente, dirigio me algumas linhas, que me fiserão comprehender quão
alto eu reputava a sua gloria, na plenitude de contentamento, de que as suas
palavras me deixarão possuido.635
Gonçalves Dias ia assim firmando sua imagem de literato, mas mais do que isso,
firmava sua imagem de poeta nacional, criando e recriando sua memória a cada novo
escrito ou publicação, fixando seu nome na memória da nação.
Nesse sentido é interessante lembrar que nenhum de seus poemas fixou tão bem
seu nome na memória nacional quanto sua Canção do Exílio. Incessantemente repetida
e parafraseada, a Canção atravessou os séculos, fixando seus versos e a memória de seu
autor como ícone de brasilidade. Nas palavras de Maria Helena Rouanet, os versos
―Nosso céu tem mais estrelas,/ Nossas várzeas têm mais flores,/ Nossos bosques têm
mais vida,/ Nossas vidas mais amores‖ foram tão eficazes em proclamar a diferença
entre o eu e o outro, o nacional e o estrangeiro – a polaridade norteadora da construção
de identidade (nacionalidade) no romantismo – que além de serem reproduzidos por
vários outros poetas românticos, acabaram se institucionalizando de vez na letra do
Hino Nacional636.
Mas essa institucionalização torna-se curiosa se pensarmos que esse poema foi
escrito em Coimbra, em julho de 1843637, quando Gonçalves Dias era ainda um jovem
de 19 anos, distante de sua terra natal já há 4 anos. Aliás, quando nos referimos a sua
terra natal precisamos deixar claro que não estamos nos referindo ao Brasil, esta
635
DIAS, A. Gonçalves. Cantos: collecção de poezias. Leipzig: F. A. Brockhaus, 1857. Disponível em
Brasiliana Digital: http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/00647200. Acesso em 26 jun 2010, p.
VII.
636
ROUANET, Maria Helena. ―Nacionalismo‖. In: JOBIM, José Luìs (org.). Introdução ao romantismo.
Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999, p. 22-23.
637
Segundo a datação publicada nos Primeiros Cantos.
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unidade nacional tão evocada, mas a uma pequena partícula desse todo, ao Maranhão,
ou antes, a Caxias, esta sim, sua terra natal.
Ao partir para Coimbra em 1838 o jovem Gonçalves Dias não conhecia mais do
que Caxias, o sítio de Boa Vista, onde nascera, e a capital da província, São Luiz 638.
Uma parte do Maranhão era o máximo de Brasil que ele conhecia. Aliás, o próprio
poeta ao publicar sua Canção fez questão de ressaltar: ―Quando eu compuz esta canção,
ou como melhor se chame, tinha apenas visto algumas das Províncias do Norte do
Brasil‖639. Esta simples nota nos faz pensar que talvez aquele que é o poema nacional
por excelência, conhecido nos quatro cantos do país, incessantemente reproduzido nos
manuais didáticos, não seja exatamente nacional, mas antes, regional.
Não queremos com isso, contudo, retirar Gonçalves Dias de sua posição no
panteon nacional. O que nos importa é problematizar essa figuração, entende-la como
uma construção, como mais uma das muitas construções de memória que são
responsáveis por criar uma identidade comum. Nesse caso, nos parece que a propagação
de Canção do Exílio como poema nacional por excelência se deu sem que se levasse em
conta o regionalismo que a produzira, ou antes, desconsiderando-se propositalmente
essa característica a fim de torná-la um símbolo que bem representasse o sentimento
nativista que se queria construir, nosso nacionalismo. Nesse caso, sem que Gonçalves
Dias planejasse, seu poema foi alçado ao posto de canção nacional e seu autor, por
conseguinte, ao de cantor da pátria, de iniciador da literatura brasileira, numa
construção de memória que merece, no mínimo, ser demarcada.
De acordo com Joël Candau, ―‗fazer o nome‘ é agir para a posteridade, ter a
esperança estéril de não desaparecer no esquecimento‖640, e essa busca requer o esforço
de fazer escolhas, de jogar luz sobre os aspectos que se quer exaltados e jogar na
penumbra aqueles que podem dificultar seu ―sucesso‖. Nesse sentido é curioso pensar
que nessa mesma edição dos Cantos, onde procurou dar destaque às palavras de
Herculano sobre sua obra e sobre futuro da literatura brasileira, Gonçalves Dias tenha
638
cf. PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1943.
639
DIAS, A. Gonçalves. Primeiros Cantos. Rio de Janeiro: Laemmert, 1846. Disponível em Brasiliana
Digital: http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/00634200. Acesso em 26 jun 2010, p. 09
640
CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011, p. 69
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deixado de republicar a nota que pontuava a Canção do Exílio como fruto da inspiração
de um jovem que quase nada conhecia de Brasil, o que, como já dissemos, acabava
insinuando ao poema uma forte marca de exaltação regional.
Mas ao pensarmos isso somos forçosamente direcionados a pensar nos meios
pelos quais a memória de Gonçalves Dias, criada por ele ou não, se fixou e se transmitiu
ao longo dos anos, especialmente após a sua morte. Nesse caso, parece-nos claro que os
textos biográficos sobre o poeta foram determinantes em fixar sua memória/identidade
de poeta nacional.
Ainda segundo Joël Candau o trabalho da memória nunca é um ato individual.
Em suas palavras,
A forma do relato, que especifica o ato de rememoração, ―se ajusta
imediatamente às condições coletivas de sua expressão‖, o sentimento do
passado se modifica em função da sociedade. (...) Muitas de nossas
lembranças existem porque encontramos eco a elas, observação que conduziu
Halbwachs a elaborar a noção de ―quadros sociais da memória‖. Por isso, é
um tecido memorial coletivo que vai alimentar o sentimento de identidade. 641
Nesse sentido está claro para nós que se Gonçalves Dias se fixou na memória
nacional não foi apenas pelo sucesso de seu projeto de fazer seu nome ou, dito de outro
modo, seu projeto de muito pouco valeria se a memória que procurou criar de si não
encontrasse eco na memória coletiva, social. Dessa forma, seu projeto foi vitorioso
porque ao criar-se como brasileiro, sua voz ressoava junto ao projeto nacional,
garantindo-lhe posição de destaque perpetuo entre os nomes ilustres do país.
Para isso contribuiu além de seu próprio esforço em construir sua memória, a
fixação feita por seus biógrafos. Desde sua morte em 1864, suas biografias
proliferaram-se, mas nesse cenário de vastidão não há grandes novidades, o que vemos
sempre é o paralelo entre a vida do homem e a obra, numa constante fixação da imagem
de Gonçalves Dias como o poeta do Brasil, imagem que ele mesmo havia se
encarregado de criar.
A nosso ver, contudo, essa fixação foi iniciada pelas obras de quatro autores
específicos: Joaquim Manuel de Macedo, Antonio Henriques Leal, Lucia Miguel
Pereira e Manuel Bandeira. Cada um desses autores e de suas respectivas obras possui
641
CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011, p. 77
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características específicas que ajudaram ou a manter e reforçar a memória de Gonçalves
Dias que o próprio poeta havia forjado ou a criar/identificar novos valores que ajudaram
a consolidar a figura do poeta no imaginário nacional.
Não nos interessa pensá-las aqui, contudo. Mas cabe ponderar apenas que se
houve a nacionalização de Gonçalves Dias, sua institucionalização como brasileiro por
excelência, houve em contra partida, uma re-apropriação de sua imagem pela sua
província natal, como forma de alçar o Maranhão – decadente econômica e socialmente
– novamente à um posto de destaque no cenário nacional. Nesse sentido seus coprovincianos propagavam: Gonçalves Dias era Brasileiro sim, mas era antes
Maranhense!
Ainda hoje a antiga província, hoje estado do Maranhão, orgulha-se de seu
ilustre filho. Não há uma só publicação sobre maranhenses ilustres que não apresente
seu nome com destaque e ostente sua imagem na capa642. Simbolicamente a maior
estátua em sua homenagem foi erguida na capital S. Luis e não em Caxias, sua cidade
natal.
Mas mais significativo do que a disputa por sua memória, nacional ou regional, é
constatarmos o real alcance dessa memória. Um recente projeto da Universidade
Federal do Maranhão em parceria com o Instituto Histórico e Geográfico do
Maranhão643 para que fosse publicado um livro de mil poemas em homenagem aos 190
anos de nascimento de Gonçalves Dias, completados em 10 de agosto de 2013, recebeu
poemas de autores de várias partes do Brasil e do mundo, até mesmo da África, onde o
poeta maranhense nunca esteve. A dimensão dessa publicação recém lançada nos
permite vislumbrar o alcance da memória do poeta. E sem entrarmos no mérito da
642
Em recente visita ao Maranhão me deparei com um grande número de publicações de caráter
biobibliográfico que buscavam destacar os ilustres filhos do estado e em quase todas o nome de
Gonçalves Dias estava presente e sua imagem figurava na capa, em geral rodeada de algumas palmeiras.
Até mesmo em uma publicação sobre nomes ilustres da cidade de S. Luis, Gonçalves Dias era figurava na
capa, embora tenha nascido em Caxias.
643
Refiro-me ao projeto ―Mil poemas para Gonçalves Dias‖, organizado por Dilercy Aragão Adler e
Leopoldo Gil Dulcio Vaz. O projeto foi complementado ainda por um convite para que pesquisadores
produzissem estudos sobre a vida e a obra do poeta, originando a publicação ―Sobre Gonçalves Dias‖,
onde possuo artigo publicado em co-autoria com a Prof.ª Dr.ª Marcia de Almeida Gonçalves. Cf.
ADLER, Dilercy Aragão; VAZ, Leopoldo Gil Dulcio (Orgs). Antologia mil poemas para Gonçalves
Dias. São Luís: EDUFMA, 2013. / ADLER, Dilercy Aragão; VAZ, Leopoldo Gil Dulcio (Orgs). Sobre
Gonçalves Dias. São Luís: EDUFMA, 2013.
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qualidade dos textos, são ao todo 757 páginas dedicadas à memória de Gonçalves Dias.
757 lembrando o seu nome.
Antonio Candido em seu célebre estudo sobre a gênese da literatura nacional vai
afirmar – surpreendentemente sobre I-Juca Pirama e não sobre a Canção do exílio –
que ―é dessas coisas indiscutidas, que se incorporam ao orgulho nacional e à própria
representação da pátria, como a magnitude do Amazonas, o grito do Ipiranga ou as
cores verde e amarela‖644. Digamos surpreendentemente não em desmerecimento de IJuca Pirama, mas parece claro que Canção do exílio tornou-se muito mais célebre,
incessantemente repetida e incorporada ao imaginário nacional do que o ―canto de
morte do filho do norte‖. Mas o que incorporamos não foi somente o I–Juca Pirama, foi
a memória do próprio poeta.
Se ainda hoje vemos referencias à Canção do exílio surgirem aqui e acolá, seja
repetindo-a ou parafraseando-a é porque estes versos se incutiram de tal forma no
imaginário nacional que é como se sempre tivessem existido, como se não fosse
necessário pensar sobre as especificidades de sua produção e circulação, sua força
nacional está dada, como está dado que as cores verde e amarela representam o Brasil,
como apontou Antonio Candido, mas esquecendo-se que estas mesmas cores foram
fruto de escolhas e debates.
Assim, ao completar 190 anos de nascimento, Gonçalves Dias é o poeta
nacional. Mas o é porque era esse o seu projeto e porque a construção que fez de si, de
sua identidade, encontrou eco e espaço na memória coletiva que se criava, de alguma
forma ele de fato nasceu junto com sua pátria, não porque veio ao mundo junto com a
consolidação da independência, mas porque criou sua identidade ao mesmo tempo em
que se forjava a identidade nacional. Mas é também o poeta maranhense, dando eco aos
anseios de parte desse imenso país que ainda busca a glória de outrora. É o poeta do
exílio, se fixando na canção que percorreu o mundo e é ao mesmo tempo apenas uma
pequena parte de um quebra-cabeça chamado identidade brasileira.
644
CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1993. v.2, p. 85.
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ENTRE PÉROLAS E VIOLETAS: MULHERES NA MONTAGEM DO
SISTEMA DE PROTEÇÃO SOCIAL
Andréa Ledig de Carvalho 645
Resumo:
Este trabalho trata de ações instituintes da rede de proteção social no Brasil, tendo por
base a configuração de discursos maternalistas que formatam representações sociais de
protagonismos femininos vinculados a práticas filantrópicas e do Serviço Social.
Examina duas trajetórias femininas: Pérola Byington, em São Paulo e Violeta
Campofiorito Saldanha da Gama, no antigo Estado do Rio de Janeiro, na conjuntura
dos anos 1930 / 1960. Essas trajetórias associam-se a desempenhos femininos que
deslocam mulheres para o espaço público.
Palavras-chaves: Mulheres. Proteção social. Maternalismo.
Abstract:
This work deals with nursing care of the social protection network in Brazil, based on
the configuration maternalistas discourses that shape social representations of female
protagonists tied to philanthropic practices and Social Services. Examines two female
trajectories: Pearl Byington, São Paulo and Violet Campofiorito Saldanha da Gama, the
former State of Rio de Janeiro, at the juncture of the year 1930/1960. These trajectories
are associated with female performers that women moving into public space.
Keywords: Women. Social protection. Maternalism.
Introdução
Trazer à tona a experiência das mulheres na construção da rede de proteção social é
uma possibilidade de restituir o sentido das particularidades com que se fazem a
instituição dos serviços sociais. Estas reflexões resultam do estudo de trajetórias
recortadas de duas biografias: a de Pérola Byington e a de Violeta Campofiorito,
presentes na montagem do sistema de proteção social brasileiro. São trajetórias que
permitem distinguir dois estilos de ação: na de Byington distinguimos a de filantropa
que, a frente da Cruzada Pró-Infância, em São Paulo, entre as décadas de 1930 e 1960 ,
criou diversos programas direcionados para crianças e mulheres pobres no Estado de
São Paulo; a de Violeta Campofiorito, através de sua atuação na Escola de Serviço
Social de Niterói, consolidará uma ação que, recorre à filantropia, mas compromete o
1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade Federal Fluminense.
Sob orientação da Professora Doutora Suely Gomes Costa. E-mail. [email protected].
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Estado na montagem de uma vasta rede de proteção social no antigo Estado do Rio
Janeiro. As duas experiências situam caminhos abertos para o ingresso das mulheres no
mundo público, tecendo a montagem do sistema de proteção social como
―missão‖/tarefa feminina.
As ações no campo da filantropia e da assistência social, da primeira metade do
século XX moveram as mulheres em direção a novos lugares e novos papéis. O discurso
social desse tempo, ao transformar a maternidade no principal papel social feminino e
num dever patriótico, conferiu às mulheres autoridade para exercerem no mundo
público o que lhes é outorgado no mundo privado, à administração da casa, dos filhos e
da família646. Nas experiências de homens e mulheres, tarefas ligadas aos cuidados
implicam responsabilidades e compromissos que irão se configurar diferentemente.
Neste sentido, o pensamento maternalista, inscrito em práticas ligadas ao cuidar,
naturaliza-se como próprio ao universo feminino.
Nessas ações vinculadas ao discurso maternalista,
verifica-se o paradoxo
descrito por Joan Scott647: as mulheres vão se apropriar do discurso da diferença sexual
que historicamente as excluía da vida pública, para reivindicar sua inserção no mundo
público a partir da maternidade. A qual lhe confere as aptidões necessárias ao exercício
de determinadas funções que atua na emergência e na consolidação de direitos de
cidadania. Os discursos maternalistas produzirão novos deslocamentos femininos no
plano político, dando novos sentidos à percepção de que as mulheres tinham do mundo
e de si mesmas e redefinindo seus significados.
A mulher, assim, no singular, coletivamente imaginada, expressa-se como um
ser ―dotado de certas qualidades, que poderiam regenerar a sociedade, (...). Do mesmo
modo, reconhecia-se no movimento social da época um modo de sua organização :
―(...) imprescindìvel era a tarefa das feministas para a formação dessa nova mulher e,
conseqüentemente, dessa nova sociedade‖648. Mulheres, sobretudo dos segmentos
646
COSTA et. al., ―A História das mulheres. Cultura e poder das mulheres: Ensaio de Historiografia‖
.In: Revista Gênero, V2, nº 1, Niterói:EDUFF, 2º semestre 2001, p. 23.
647
SCOTT, Joan Wallach. A cidadã paradoxal: as feministas francesas e os direitos do homem.
Florianópolis. Ed. Mulheres, 2002.
648
VIEIRA, Claudia Andrade. ―Mulheres de elite em movimento por direitos polìticos‖. In: Revista
Gênero, V2, nº 2, Niterói: EDUFF, 1º semestre 2002, p. 118.
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sociais médios, foram então chamadas a ―sair‖ dos seus lares, para exercerem a
―maternidade social‖. Com trajetórias pessoais diferentes, Pearl E.McIntyre , ou apenas
Pérola Byington como se tornou conhecida
chamado e inauguram
e Violeta Campofiorito, atendem a esse
diferentes frentes de atuação feminina no campo da proteção
social , que têm no sentimento ―de cuidar‖ compartilhado em diferentes tempos, a
matéria política que irá identificá-las e imprimir as suas trajetórias significados
singulares.
Duas trajetórias femininas no campo da proteção social.
Em agosto de 1930, Pérola Byington então com 50 anos, participa juntamente com a
Associação de educadoras sanitárias da fundação da Cruzada Pró- Infância na cidade de
São Paulo649. Trata-se de uma instituição dirigida e administrada exclusivamente por
mulheres, para atuar junto ao grave problema da mortalidade infantil. Proclama
conceitos a partir de um padrão de excelência de ―ser mãe‖, inscrito num dado discurso
maternalista vigente na sociedade da época 650:
Exmas Sras.: Milhares de crianças morrem todos os dias, em todos os
lugares, em todos os países. A mortalidade infantil constitui um problema
que não é nosso porque é universal. Combatê-la é um dever que se impõe à
consideração de todos que se interessam pelo futuro da raça. Defender a
criança- essa flor de carne e de inocência, promessa e esperança do porvir ,
cujo o corpo imaculado encerra os germens de um destino- defendê-la com
todo amor, com toda nossa compaixão, com toda nossa inteligência contra os
males que a ameaçam _ a miséria, a ignorância, a enfermidade _ é uma
obrigação moral. A Associação de Educação Sanitária que tem em seu
programa a proteção à criança desde antes de seu nascimento, lança pois , um
649
O curso de educadoras sanitárias ―foi criado em 1925 e era destinado a professores públicos do
Estado e tinha por objetivo difundir conhecimentos teóricos e práticos de higiene formando uma
consciência preventiva na população, além de cooperar em campanhas profiláticas( combate à peste
bubônica, a febre amarela, aos mosquitos etc.) Os profissionais_ melhor dizendo as profissionais , pois
embora destinado aos dois sexos, o curso foi freqüentado sobretudo pelo sexo feminino _ atuavam em
postos de saúde, em escolas , nas fábricas e nos domicílios . Os principais alvos eram as crianças em
idade escolar e as mães‖. MOTT, Maria Lucia. ―Estudos biográficos e filantropia: uma reflexão a partir
da trajetória de vida de Pérola Byington. In:Revista Gênero , V3, nº 2, Niterói:EDUFF,2003,p.26. A
Associação das Educadoras Sanitárias foi fundada em abril de 1930 e tinha como Presidente Maria
Antonieta de Castro. ―Além da defesa dos interesses de classe a associação tinha como proposta apoiar
as iniciativas que tivessem por finalidade a defesa da saúde pública e a proteção à criança e à gestante‖
MOTT, Maria Lucia. O gesto que salva: Pérola Byington e a Cruzada Pró-Infância‖. São Paulo. Grifos
projetos históricos e editoriais ,2005,p.40.
650
O reconhecimento da cidadania feminina vai se dá, ―não apesar de, mas por serem mães‖, exaltando a
maternidade como um dos fundamentos dos direitos e deveres das mulheres, ora privilegiando o acesso
delas as profissões que são uma expressão da ‗maternidade social‘.O maternalismo constrói uma
identidade feminina no campo da proteção social. BOCK, G. ―Pobreza feminina, maternalismo e direitos
das mães (1890-1950)‖. In:. História das mulheres no Ocidente. O século XX. Porto: Ed.
Afrontamento/São Paulo: EBRADIL, 1994, pp.435-477.
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apelo as nobres paulistanas, no sentido de ser organizada uma grande
comissão de Combate a Mortalidade Infantil Pró-Infância com o fim de
congregar esforços em prol desse movimento 651.
Sua atuação a frente dessa instituição, entre 1930 e 1963 (ano de seu
falecimento), permite constatar de que forma a filantropia estará contribuindo para o
ingresso das mulheres no mundo público e para ações sociais que atuam no
reconhecimento do direito à vida, o que significa também o de cidadania. Pérola atuou
no inicio de sua trajetória na Cruz Vermelha Norte-americana, durante a I Guerra
Mundial, obtendo, por isso, reconhecimento oficial, sendo premiada com uma medalha.
Ao retornar ao Brasil na década de 1920, associa-se à Cruz Vermelha de São Paulo,
onde exerceu diversos cargos: membro da comissão de propaganda, tesoureira,
secretária, diretora do departamento feminino. Sua experiência no trabalho voluntário
da Cruz Vermelha, sua boa relação com as elites paulistas e os recursos financeiros da
família Byington lhe trouxeram o reconhecimento e o capital social necessário ao
exercício a frente da Cruzada Pró-Infância. Mas foi o trabalho desenvolvido a frente
dessa instituição, que consolidou sua identidade social de ―mãe do ano‖ 652.
O Programa de ação da Cruzada visava inicialmente complementar, através do
trabalho voluntário das sócias, a atuação da Associação das Educadoras Sanitárias. O
alvo das ações eram crianças em idade escolar e mães. ―As crianças, pois se acreditava
que aquilo que foi aprendido na infância sobre higiene não desaparecia na idade adulta;
e as mães, porque eram consideradas as principais responsáveis pela mortalidade
infantil‖
653
. No princípio, a entidade não tinha sede e todas as atividades (reuniões da
diretoria, reuniões semanais das voluntárias para confecção de enxovais e bebê, o
atendimento as pessoas que queriam se filiar ou, que buscavam ajuda) aconteciam na
residência de Pérola. Inúmeras vezes, nesses mais de 30 anos a frente da entidade, sua
casa voltou a ser palco das atividades da Cruzada.
O objetivo inicial da Cruzada era ajudar individualmente algumas associações
filantrópicas, famílias e pessoas. Pouco a pouco, a entidade foi-se estruturando. Em
651
Ata da Associação de Educadoras Sanitárias de 12/08/1930. In. MOTT, op. cit. 2003, p.25
652
Pérola Byington recebeu várias prêmios, medalhas e títulos honoríficos pelo trabalho realizado junto
a Cruzada . Em 1952, recebeu do presidente da República a Comenda da Ordem Nacional de Mérito; em
1957, foi escolhida ― mãe do ano ― por indicação popular, em concurso promovido pelos Diários
Associados ― ‖.In: MOTT, op. cit. , 2003,p.32.
653
Idem, p. 26.
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janeiro de 1931 rompe com a Associação de Educadoras Sanitárias e,
torna-se
autônoma. No mesmo ano sua primeira sede é inaugurada.654 Apesar da presença
constante das educadoras sanitárias, os rumos da instituição foram sendo centralizados
nas mãos de Pérola Byington , ao mesmo tempo que buscava recursos para suas obras
junto ao poder público e à iniciativa privada, como também junto à sociedade em geral,
atuava na supervisão do trabalho administrativo e no planejamento e na organização
dos serviços.
Durante a gestão de Pérola Byington, as ações da Cruzada Pró-Infância
direcionaram-se para: assistência social, assistência médica, educação sanitária,
educação infantil e serviços especializados de combate à mortalidade infantil, além de
diversas campanhas educativas. A partir da construção do hospital em 1959, a medicina
curativa torna-se uma preocupação maior da entidade. O público atendido era composto
majoritariamente por mulheres e crianças e, numa época em que muitas entidades
filantrópicas eram voltadas apenas para grupos específicos (segundo a nacionalidade,
religião ou grupo profissional), tinha como diferencial o atendimento a todos sem
qualquer distinção.
Pérola personificou o discurso maternalista no campo da proteção social de
então pelo viés da ação voluntária, desenvolvida por diversas mulheres no âmbito da
filantropia. Como sinaliza PERROT, ―a filantropia constituiu para as mulheres uma
experiência não negligenciável, que modificou a sua percepção do mundo, e a idéia que
tinham de si mesmas e, até certo ponto, a sua inserção pública.‖
655
. Ao garantir
visibilidade e respeitabilidade, as ações filantrópicas levam as mulheres a outras arenas
políticas. Em julho de 1931, Pérola representa a Cruzada no II Congresso Internacional
Feminista, organizado pela Federação Brasileira pelo Progresso Feminino dirigida por
Bertha
Lutz.
Em
1932,
após
ter
participado
ativamente
do
Movimento
Constitucionalista656, participa da fundação da Associação Feminina em São Paulo, com
654
A entidade passou a funcionar num velho casarão alugado, na Rua Santa Madalena, 58. Situado entre
a Avenida Paulista e o bairro da Bela Vista. Em dezembro 1935 a nova sede é inaugurada , em imóvel
próprio, na Av. Brigadeiro Luis Antônio, 638,aonde funciona até os dias de hoje. MOTT, op. cit. 2005.
655
PERROT, M. ―Sair‖. In: ―História das mulheres no Ocidente. O século XIX.‖ Porto: Ed.
Afrontamento/São Paulo: EBRADIL,1994.p.504
656
― Em meados de 1931, começou um crescente movimento regionalista no estado de São
Paulo,chefiadopelas elites políticas locais , contra o regime Vargas recém-instalado‖
332
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o objetivo de promover as mulheres como cidadãs e mães. Graças à mobilização da
associação, Carlota Pereira de Queiroz é eleita a única mulher para a constituinte de
1934.
Pérola Byington vai vivenciar momentos de transição da montagem do sistema
de proteção social brasileiro, sobretudo, através da formação e ampliação do
voluntariado feminino para a profissionalização das práticas assistenciais pré-existentes.
É assim que no inicio da década de 1930, a Cruzada organiza dois cursos: enfermagem
(para mulheres no instituto de Higiene e para homens no hospital do Brás) e formação
de assistentes sociais, destinado a senhoras da sociedade. O objetivo desses cursos era
capacitar o voluntariado para as atividades da assistência materno-infantil hospitalar e
domiciliar.
De atividades voluntárias como as realizadas por Pérola à frente da Cruzada PróInfância, as práticas vinculadas ao ―cuidar‖ tornam-se campo de várias profissões
femininas, entre as quais destacamos o Serviço Social. Espaço que, entre as décadas de
1940 e 1970, solidifica a trajetória profissional de Violeta Campofiorito657. Desta forma,
Pérola e Violeta elaboraram o próprio estilo, quando o campo da proteção social
brasileira vai se consolidar, definindo-se nele múltiplas possibilidades de construção de
novos signos sociais e de novas experiências pessoais e profissionais para as mulheres.
Assim como Pérola, Violeta inicia seu trabalho voluntário sob os auspícios da
guerra, no seu caso a II Guerra mundial quando Violeta e muitas mulheres advindas das
.WEINSTEIN.Barbara.Inventando a ―Mulher paulista‖: Política, Rebelião e a generificação das
identidades regionais brasileiras. In: Revista Gênero, V5, nº 1, Niterói:EDUFF,2004.
657
Violeta Campofiorito nasceu em 1909 na cidade de Belém do Pará e faleceu em 2003. Filha caçula dos
quatro filhos (dois homens e duas mulheres), do pintor e arquiteto Pedro Campofiorito, italiano e
professor da Escola de Belas Artes de Roma, que veio para o Brasil a convite do governador do Pará, para
dirigir os serviços artísticos de Belém no início do sec. XIX e de uma imigrante espanhola, exímia
costureira e dona de casa, Delfina Paniagua, que veio com a família fugida da guerra dos árabes na
Europa para Belém, no período do ciclo da borracha. Aos sete anos, migrou com a família para Niterói.
Em 1928 aos 19 anos, forma-se professora pela Escola Normal, hoje Colégio Estadual Liceu Nilo
Peçanha no ano seguinte, casa-se com o Comandante da Marinha Mercante Eduardo Arnould de Saldanha
da Gama, 11 anos mais velho, com quem teve duas filhas. GAMA, Violeta Campofiorito Saldanha da.
Violeta Campofiorito (depoimento, 2001). Rio de Janeiro, CPDOC/Ministério da Previdência e
Assistência Social – Secretária de Estado de Assistência Social, 2002.
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cidades do interior do estado do Rio de Janeiro participam do curso de visitadoras
sociais658 para atuar junto às famílias dos pracinhas.
A propósito dessa campanha que vem sendo recebida com simpatia pela
mulher fluminense, ouvimos, ontem, na sede da Legião, a professora Violeta
Campofiorito Saldanha da Gama, elemento de destaque no nosso magistério
e monitora chefe das visitadoras sociais de Niterói. Assim nos falou aquela
distinta legionária do setor de educação popular _ O espírito de sacrifício e
obrigação das visitadoras sociais representado por um trabalho árduo e
desinteressado, demonstra uma compreensão nítida e inteligente da
solidariedade humana, útil e apreciada em todos os tempos, mas
principalmente numa época de emergência como a atual. 659
Para realizar o curso de Visitadoras Sociais, de onde saíram às pioneiras do
serviço social fluminense, foram convidadas professoras primárias da capital e do
interior do Estado do Rio de Janeiro. Característica, também presente do grupo de
Educadoras Sanitárias, que juntamente com Pérola Byington criaram a Cruzada PróInfância. Como afirma Corrêa: ―A figura da mãe vai se desdobrar na de professora
primária e na da assistente social‖
660
. A função materna tornava as mulheres
moralmente aptas e sujeitos privilegiados para a prática educativa junto a crianças e
mulheres pobres. No cotidiano de suas ações, essas mulheres estabelecem relações de
poder e identidade com as mulheres pobres, na conformação do sistema de proteção
social, tornando-as sujeito e objeto das práticas protecionistas.
Com o fim da II Guerra Mundial, as atividades da LBA se voltam para o público
materno-infantil. Violeta é então nomeada por Alzira Vargas chefe do Serviço Social
das obras sociais da LBA fluminense. Nesse período, objetivando dar uma melhor
formação profissional às mulheres que atuariam na rede de proteção social do antigo
estado do Rio de Janeiro, a LBA inaugura no dia 23 de agosto de 1945, na Rua
Tiradentes 148 – Ingá – Niterói, a Escola de Serviço Social de Niterói, a qual no inicio
658
Com o objetivo de ajudar, orientar e dar apoio às famílias dos Pracinhas, que em 1942 foram
convocados pela FEB (Força Expedicionária Brasileira) para as linhas de frente na Itália, é criada pela
primeira dama D. Darci Vargas a LBA, com o objetivo de: ajudar, orientar e dar apoio às famílias dos
pracinhas. No antigo estado do Rio de Janeiro é criada a LBA Fluminense por D. Alzira Vargas do
Amaral Peixoto. Para capacitar o voluntariado a atuar junto as famílias. Organizam-se cursos de:
Visitadoras Sociais (percurso da Escola de Serviço Social): Noções de enfermagem; Defesa Civil;
Nutricionistas e outros. GAMA, Violeta C..S. da. Memórias: Homenagem aos 50 anos da ESSN (19451995. Niterói/RJ. EDUFF, 1995
659
Artigo do Jornal O Estado de 1945 apud COSTA, op. cit. 1995, p. 42.
660
CORREA, Mariza. ―A cidade de menores: uma utopia dos anos 30‖. In. FREITAS, Marcos Cezar
(org.). História Social da Infância no Brasil. – 6° ed. – São Paulo: Cortez, 2006. P. 86
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de sua vida institucional estava plenamente voltada para os programas assistenciais da
LBA.
Assim, o ingresso na ESSN constrói novos valores e símbolos, que vão
compor uma cultura feminina no interior das relações sociais, trazendo
rupturas e continuidades na trajetória das mulheres, entre o mundo publico e
o mundo privado Trata-se de uma escola criada por mulheres e que foi
gerenciada em grande parte, por estas mãos. Mulheres de Niterói, mulheres
do interior do Estado que saíam de seus cotidianos e adentravam o mundo
público na tentativa, nas palavras de uma de suas primeiras alunas, de ‗dar
uma melhor formação técnica às visitadoras sociais‘ que já atuavam com
dedicação e certa eficiência 661
As pioneiras do Serviço Social fluminense foram arregimentadas dos segmentos
sociais médios, no meio do funcionalismo público, formado, principalmente, por
professoras primárias. ―A LBA e o Estado concederam bolsas de estudo; àquela
instituição para suas funcionárias e, este último, para professoras primárias com
exercìcio no interior do Estado do Rio de Janeiro‖662 . Ao mesmo tempo em que a
ESSN, se apresenta como espaço de formação profissional e campo de possibilidades,
onde essas jovens, principalmente as advindas do interior do Estado do Rio de Janeiro,
buscam construir suas trajetórias profissionais, também se apresenta como uma
extensão do espaço privado. Ao residir na mesma pensão onde moravam as alunas
oriundas do interior, a diretora da Escola a Sr.ª Yolanda Maciel exercia um controle da
vida privada das discentes, ―(...) sob a responsabilidade da direção suas saìdas eram
cuidadosamente controladas por uma intensa troca de bilhetes, cartas e ofícios com
familiares das alunas‖663
Embora o fornecimento de bolsas de estudos, tenha se constituído numa
estratégia do governo, para capacitar as moças que atuariam no atendimento a pobreza
no interior do Estado, ―a quase totalidade das professoras portadoras de bolsas de estudo
não retornou para as cidades de onde vieram, permanecendo na capital fluminense;
661
Entrevista de Violeta Campofiorito _ acervo NPHS/CRD- In FREITAS, 2009.
662
Das 15 alunas inscritas no curso de serviço social em 1946 todas eram professoras primárias. GOMES,
Leila Maria Afonso. ―Assistência Social no Estado do Rio de Janeiro: significado da Escola de Serviço
Social da UFF no período de 1945/1964‖. Tese de Doutorado em Serviço Social. São Paulo; PUC,
Faculdade de Serviço Social, 1994.p.135.
663
COSTA, Suely Gomes. Signos em Transformação: a dialética de uma cultura profissional. São Paulo:
Cortez. 1995.p.49.
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algumas assumindo a docência na própria escola em que se tornaram assistentes
sociais.‖ 664.
Diante da necessidade de conclusão de seu curso na Escola Nacional de Belas
Artes e, devido sua atuação à frente do setor de Obras Sociais da LBA, Violeta não
participa dessa primeira turma do curso de Serviço Social. Todavia, por se chefe do
setor de Obras de Sociais da LBA (e a ESSN era considerada uma obra social), ela
estava intimamente ligada a essa unidade de ensino como responsável pelo pagamento
de todos os seus funcionários, inclusive professores. Seu ingresso no corpo discente vai
se dá em 1948. Em 1951, ao terminar o curso é nomeada por Alzira Vargas diretora da
ESSN permanecendo no cargo até 1966. Em 1966, sob os auspícios do regime militar,
D. Violeta pediu demissão do cargo de diretora, porém permaneceu na Escola como
docente até sua aposentadoria em 1977. Sua trajetória acompanha a de formação e
consolidação da ESSN como unidade de ensino superior.
Sob seu comando a escola vivenciará na década de 1950 uma verdadeira
―revolução‖. Em 1952 a unidade deixa de ser feminina e torna-se mista; em 1954
passou a ser integralmente mantida pelo Estado; em 1956, foi reconhecida como
instituição de nível superior, criando-se o sistema de vestibular para ingresso e o curso
noturno para atender aos estudantes trabalhadores e, em 15 de maio de 1959 foi criado o
Diretório Acadêmico Maria Kiehl (DAMK) 665.
Os anos 1960 marcaram para o mundo um período de profundas mudanças
culturais e sociais. No Brasil, tal década iniciou-se marcada pela abertura política e por
demandas sociais postas pelo crescente processo de urbanização. Sob o comando de D.
Violeta Campofiorito Saldanha da Gama, a ESSN vivenciará essa efervescência política
e cultural.
Em sua tese de doutorado, Leila Maria Alonso Gomes, identifica Violeta
Campofiorito como uma mulher firme em suas posições, mas que procurava caminhos
sem impactos para atingir seus objetivos: ―O seu relacionamento polìtico e a sua
664
GOMES, Leila Maria Afonso, op. cit., p.136.
665
O Diretório Acadêmico recebeu esse nome em homenagem a uma notável assistente social que
estudou em São Paulo e atuou no planejamento e organização da Escola, em seus primórdios . GAMA,
op. cit. 1995, p. 17.
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habilidade política deram uma dimensão diferenciada ao encaminhamento da Escola de
Niterói‖666. Tais características foram confirmadas no depoimento da professora Suely
Gomes Costa667, aluna da escola, no perìodo em que Violeta a dirigiu. ―Pelo menos
nessa escola eu não tive cerceamento de liberdade, quando nela estudei.‖ O contato das
alunas de Serviço Social com as ideias que circulavam na sociedade brasileira, trouxe
mudanças para a formação acadêmica, oportunizou a renovação dos signos sociais da
cultura profissional.
Durante o período que esteve à frente da ESSN, Violeta atuou na montagem da
rede de proteção social no Antigo Estado do Rio de Janeiro. Em 1955, foram criados
três grandes programas na ESSN: O COSAM ( Conselho de Obras e Serviços de
Assistência ao Menor ); o CRACEF ( Cruzada de Recuperação e Assistência ao Cego
Fluminense ) e o FARIS ( Fundação de Assistência, Recuperação e Integração Social –
Albergues Sociais) 668.
A Proteção social se constituirá em lugar de formação de mulheres intelectuais,
um espaço de criação e de mudança de valores, de práticas e representações sociais
muito variadas, formatadas no entrecruzar da história política e da história cultural.
Abre-se para as mulheres a possibilidade da profissionalização. Pérola, apesar de ser
professora primária, nunca exerceu a profissão; fez sua inserção na esfera pública
através do trabalho voluntário. Violeta, no entanto, já atuava como professora primária
na rede pública
669
e apesar de ter iniciado sua trajetória pelo campo do voluntariado,
profissionalizou-se e construiu uma carreira acadêmica a frente da Escola de Serviço
Social de Niterói. Através de suas trajetórias pode-se perceber o contraste entre essas
666
GOMES, Leila Maria Afonso. Op. Cit, p. 122.
667
Idem, p. 123.
668
Ver GAMA, Violeta C..S. da. Memórias: Homenagem aos 50 anos da ESSN (1945-1995) Niterói/RJ.
EDUFF, 1995.
669
Violeta Campofiorito iniciou sua carreira como professora primária no município de Nova Iguaçu –RJ
no final da década de 1920. Já na década de 1930, após a maternidade ingressou por concurso de provas
e títulos como professora catedrática de desenho técnico e artístico da Escola Industrial Henrique Lage
Localizado na Rua Guimarães Junior, 182 – Barreto- Niterói - RJ. Neste período inicia o curso de
desenho na Escola Nacional de Belas Artes. Entrevista de Violeta Campofiorito _ acervo NPHS/CRD- In
FREITAS, 2009
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duas atuações no campo da proteção social. Pérola pela filantropia e Violeta pelo
Serviço Social.
Pérola Byington, se consagrou no espaço político, através de um padrão de
maternidade social que vincula as mulheres às ações filantrópicas e voluntárias. Na base
desse discurso maternalista, está à idéia de que a natureza especifica da maternidade
confere à mulher aptidões para o exercício de atividades relacionadas ao cuidar, tanto na
esfera privada quanto na esfera pública. Isso se expressa em circunstâncias do cotidiano
as mais banais : ―Quantas vezes, em Brasìlia, no grande salão do Congresso, era vista
uma senhora idosa, vestida como uma dona de casa (...) disputando verbas para suas
obras assistenciais.‖ (Mott.2003:22). Nessa experiência, a montagem do sistema de
proteção social se faz com continuidade e também com rupturas de práticas filantrópicas
de longa duração, que compõem o imaginário social, os papéis femininos (pré)
definidos na divisão sexual do trabalho, sempre vinculando as mulheres à prática dos
cuidados.
Quando Violeta Campofiorito se insere no campo da proteção social, o padrão
filantrópico das ações assistenciais presentes na Cruzada Pró-infância, já vinha sendo
deslocado pelo padrão profissionalizante presente nas escolas de serviço social. A
Assistência Social se consolida como campo específico da atuação profissional e do
conhecimento feminino; a maternidade se transforma através da ciência. As mulheres
consolidam o que Maria Martha Freire (2006), vai denominar ―maternalismo
cientìfico‖, matéria pertinente ao campo da história dos intelectuais. Esse movimento de
―saìda‖ das mulheres e de ingresso no mundo público também mudou. Pérola e Violeta,
duas trajetórias que se entrecruzam no tecer da rede de proteção social.
Considerações finais
Minha intenção neste artigo foi trazer a tona, o significado social do discurso
maternalista na montagem do sistema de proteção social brasileiro, a partir de duas
trajetórias femininas: Pérola Byington a frente da Cruzada Pró-Infância em São Paulo e
Violeta Campofiorito Saldanha da Gama à frente da Escola de Serviço Social do antigo
Estado do Rio de Janeiro. Os estudos biográficos permitem localizar processos
históricos pouco examinados, concernentes às perspectivas que ampliam a chegada das
mulheres a um campo de profissões que tanto reforçam lugares e tarefas de cuidar,
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marcando-o como campo profissional feminino, como politizam seus agentes ao tratar
da pobreza e das desigualdades sociais.
Por caminhos e campos políticos
diferentes, Pérola Byington - pela ação
filantrópica e atuação no movimento constitucionalista - e Violeta Campofiorito - pela
formação profissional do Assistente Social vinculada ao governo Vargas – transformam
as práticas vinculadas ao cuidar e/ou educar em campo específico do conhecimento e do
poder feminino. Consolidando o que Marta Freire (2006) vai denominar: maternalismo
cientifico.
Encontramos nessas trajetórias as mutações do discurso maternalista, que avança
e conforma diferentes gerações de mulheres que vão interagir no campo da proteção
social. Há ainda muitos eventos a observar, daí, os tempos curtos, as conjunturas, mas
também há manifestações no tempo longo - não perceptíveis - forjadas, em ―estruturas‖
submersas, entrelaçadas ou não a esses mesmos eventos, redefinidas ou não; elas estão
na história dos maternalismos por conhecer. Assim, cabe rever conceitos colhidos em
fontes históricas disponíveis em novos modos de fazer pesquisa histórica. Faz se
necessário repensar biografias e os modos de lê-las. Bem como associar a esse esforço
novas fontes históricas, documentais e orais.
No que diz respeito ao Serviço Social, percebe-se que a produção historiográfica
tem distinguido pouco a experiência dos maternalismos na montagem dos sistemas de
proteção social. É preciso ampliar o conhecimento das mulheres que forjaram nos
marcos da construção das políticas públicas um dado discurso maternalista, que ainda se
faz por conhecer e que está na origem das profissões femininas, entre as quais
destacamos o Serviço Social.
Ao consolidar o campo assistencial, como um espaço privilegiado da mulher,
no âmbito das práticas de proteção social, este não se configurou como um lugar
especificamente feminino, mas como um lócus de relação entre os sexos. Assim essas
ações filantrópicas/assistenciais, vão se dar sob aplausos masculinos, que apontam o
―consentimento e a aceitação‖ dessa prática social, possibilitando o desenvolvimento de
diversas atividades, com diferentes profissionais homens e mulheres, que atuam na
proteção social, estabelecendo-se enquanto um espaço de relações de gênero.
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VIII Semana de História Política
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É preciso dar voz as ―Pérolas e Violetas‖, que ao ingressarem no campo da
proteção social, aceitaram o desafio, reinventaram-se a si mesmas, abriram novos
espaços de atuação profissional e novas formas de ingresso do feminino na esfera
política.
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DO ARENA PARA O OLYMPIA: “UPA, NEGUINHO” E AS
TRANSFORMAÇÕES MUSICAIS NA TRAJETÓRIA DE ELIS REGINA
Andrea M. Vizzotto A. Lopes670
Resumo:
A partir das várias interpretações de Elis Regina para a canção Upa neguinho, de Edu
Lobo e Gianfrancesco Guarnieri, discuto as mudanças em sua obra, entre 1968 e 1969,
recuperando a sua trajetória no período e considerando os trabalhos realizados no
exterior como importantes para entender essas transformações, em um cenário de
reconfiguração musical no Brasil após a emergência do tropicalismo e em meio ao
acirramento da repressão e da censura no Brasil durante o regime militar instaurado
após 1964.
Palavras-chaves: Música Popular Brasileira; Indústria Fonográfica; Performance
Vocal.
Abstract:
Upa neguinho (Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri), was performed with great success
by Elis Regina. I discuss the changes in their work, between 1968 and 1969, recovering
her trajectory in this period and focusing on television programs‘s that Elis made in
another countries. I think they are important to understand her musical transformations
in a scenario of Brazil‘s musical reconfiguration after the emergence of tropicalism and
with the intensification of repression and censorship during the military regime
established after 1964.
Keywords: Brazilian Popular Music; Phonographic Industry; Vocal Performance.
Introdução
A canção Upa neguinho, de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri, foi um dos grandes
sucessos da carreira da cantora Elis Regina. Originalmente, Upa negrinho integrava o
musical Arena conta Zumbi, dirigido por Augusto Boal com textos dele e de Guarnieri,
e músicas de Edu Lobo. Estreou no dia 1º de maio de 1965, no Teatro de Arena,
iniciando uma longa temporada de apresentações que durou quase dois anos,
dramatizando a resistência do Quilombo dos Palmares para representar a resistência de
todos os oprimidos. Assim como o musical Opinião – escrito por Oduvaldo Vianna
Filho, Paulo Pontes e Armando Costa –, que estreara em dezembro do ano anterior,
670
Doutoranda em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com orientação
do Prof. Dr. Marcos Bretas. Esta pesquisa está sendo desenvolvida com recursos da CAPES. Mestre em
História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e especialista em Música pela Faculdade de Artes
do Paraná (FAP). E-mail: [email protected].
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VIII Semana de História Política
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Arena conta Zumbi também discutia os problemas socioculturais do país, na perspectiva
de uma canção engajada ou ―de protesto‖, como era conhecida na época, ressoando
alguns dos pressupostos ideológicos do Centro Popular de Cultura (CPC) e inspirandose no projeto estético de Mário de Andrade, ao escolher temas folclóricos ou associados
à tradição musical brasileira para reelaborá-los musicalmente, tanto a partir do diálogo
com as propostas musicais da bossa nova quanto com técnicas composicionais
eruditas.671 Em Arena conta Zumbi, é o samba o gênero escolhido para representar a
cultura popular e a resistência dos escravos e para significar também a luta contra a
opressão de todos os povos, e naquele contexto específico, pode-se considerar que
pretendia significar também a resistência contra o regime militar instaurado em 1964.
Em meio a um debate político e estético, alguns gêneros considerados mais
nacionais e ―autênticos‖ são valorizados na defesa de uma cultura nacional-popular,
como a moda de viola e o samba, inseridos em um projeto de renovação musical que
rejeitava a influência do rock e de certa música estrangeira, sobretudo aquela produzida
nos Estados Unidos e que vinha conquistando um grande espaço nos meios de
comunicação. Para Marcos Napolitano, além da intenção de conscientização popular e
resistência ao regime militar, outro objetivo presente em espetáculos como Opinião e
Arena conta Zumbi era ―resolver o problema de repertório e massificar uma cultura
musical nacional-popular‖.672 Objetivo que ele considera foi bem-sucedido.
Neste artigo, procuro discutir aspectos da inserção mercadológica e profissional
da cantora Elis Regina, em um cenário de transformações estéticas e políticas,
destacando que durante os anos 1960, quando se fixa a sigla MPB para representar uma
determinada produção musical brasileira, o consumo da obra de Elis conseguiu ampliarse para além de um ―circuito fechado‖ de comunicação de uma cultura de esquerda
formada por intelectuais e jovens de classe média, a que constantemente se costuma
fazer referência na pesquisa acadêmica sobre o tema. Considerando que essa sigla e seu
conceito surgem nos palcos dos festivais de música e dos musicais televisivos, a
671
CONTIER, Arnaldo Daraya. ―Edu Lobo e Carlos Lyra: O Nacional e o Popular na Canção de Protesto
(Os Anos 60)‖. Rev. bras. Hist. São Paulo, v. 18, n. 35, 1998 . Disponível em:
<<http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0102-01881998000100002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 01 Out. 2013.
672
NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB
(1959-1969). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001, p. 72.
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participação de Elis é fundamental para entender esse processo de construção da MPB.
Vários estudiosos vêm desenvolvendo pesquisas e reflexões sobre essa produção
musical e um imaginário compartilhado pelas esquerdas e seus projetos políticos e
culturais, tema que não pretendo aprofundar nesse artigo.673 Contudo, tenho procurado
problematizar análises que ainda sugerem espaços diferentes de consumo dessa
produção musical da década de 1960, que era considerada engajada mas que era
também popular. Concordo com Marcos Napolitano, quando afirma a importância de
Elis Regina – e também de Chico Buarque – para a ampliação do consumo de MPB,
trazendo o público de rádio que ouvia boleros e sambas-canções, constituindo-se em
uma canção hìbrida ―que é mercado, que é engajamento, que é populista, que é
revolucionária, enfim, que é tradição e modernidade ao mesmo tempo‖.674
Metodologicamente, tenho buscado e encontrado em vídeos e comentários na
internet, especificamente no youtube, fontes que têm me ajudado a sugerir algumas
indagações a respeito da trajetória da intérprete também no exterior. Embora esses
vídeos e alguns LPs gravados e lançados apenas no exterior nesse período – quando a
acessibilidade a esse material não era facilmente obtida como hoje em dia, com o
recurso dos vídeos disponibilizados em redes sociais – não tenham circulado e sido
recebidos no Brasil por um público mais amplo, acredito que o contato com o cenário
musical mundial, o convívio e a experiência com outros músicos pode ser considerada
importante para as transformações na obra da artista, em um momento de transição, não
só da carreira de Elis Regina como da de outros artistas brasileiros que também estão se
redefinindo musicalmente.
O final dos anos 1960 foi também um período em que Elis Regina direcionou
suas atividades musicais para o objetivo de atingir sucesso também no exterior, embora
já houvesse realizado turnês em outros países. Como desenvolvo pesquisas com
recepção, ampliei o meu campo de estudo para a sua presença em outros países.
Teoricamente, ao discutir a sua inserção no mercado fonográfico e o sucesso que
673
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. São Paulo: Record, 2000. NAPOLITANO, Marcos.
A síncope das ideias: a questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 2007. SOUZA, Miliandre Garcia de. Do teatro militante à música engajada: a experiência do
CPC da UNE (1958-1964). São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007.
674
NAPOLITANO, Marcos. ―A canção engajada nos anos 60. Marcos Napolitano‖. In: DUARTE, Paulo
Sérgio; NAVES, Santuza Cambraia (org.). Do samba-canção à tropicália. Rio de Janeiro: Relume
Dumará: FAPERJ, 2003, p. 134.
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conquistou a sua obra, considero igualmente importante pensar nos mediadores
culturais, nas formas possíveis de interação entre o artista e o seu público, considerando
que a ―massificação‖ cultural não implica em perda de qualidade estética do produto
musical.675 E essa mediação era realizada pelos produtores de televisão, pelos
programadores musicais, e por jornais e revistas, tanto de crítica especializada quanto de
consumo mais amplo, no Brasil e no exterior.
Quando Arena conta Zumbi estreou, Edu Lobo já havia se consagrado como o
compositor vitorioso do I Festival Nacional de Música Popular, realizado em abril pela
TV Excelsior, com a canção Arrastão, em parceria com Vinicius de Moraes, defendida
por Elis Regina. E também integrava o repertório do espetáculo Dois na Bossa, com
Elis e Jair Rodrigues, que estreou logo após a final do festival da TV Excelsior, e
resultou no LP homônimo lançado pela gravadora Philips, que se tornou recordista de
vendagens até aquele momento, com estimativas de 500 mil cópias vendidas.676
Com a estreia, em 17 de maio, do programa O Fino da Bossa, na TV Record,
apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues, a obra de Edu Lobo – igualmente
contratado pela emissora para participar desse e de outros programas – ampliava ainda
mais a repercussão da sua obra. No segundo LP da série Dois na Bossa, gravado ao vivo
durante o programa O Fino da Bossa e lançado em 1966, Elis já aparece interpretando a
canção Upa neguinho, que será um dos seus maiores sucessos, sendo reinterpretada em
diversas ocasiões até o fim da sua carreira. 677 Essa foi uma uma das canções que ela
interpretou em sua apresentação no Mercado Internacional de Discos e Edições
Musicais (MIDEM), em Cannes, em janeiro de 1968.
Os loucos e lúcidos festivais da canção
675
LAMARÃO, Luisa Quarti. A crista é a parte mais superficial da onda. Mediações culturais na MPB
(1968-1982). Tese. UFF. História, 2012. 270f.
676
Outros dados falam em um milhão de cópias vendidas. Ver: SILVA, Walter. Vou te contar: histórias
da música popular brasileira. 2. ed. São Paulo: Códex, 2002, p. 19. Mesmo problematizando esses
números, a popularidade de Elis Regina também pode ser percebida em consulta a diferentes jornais e
revistas do período.
677
Do mesmo musical Arena conta Zumbi, Elis Regina também interpretou Zambi no açoite, que se
transformou em Zambi, presente no LP com o Zimbo Trio, O Fino do Fino, lançado em 1965, e A mão
livre do negro, transformada em Estatuinha, presente no LP Elis, de 1966.
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Os festivais realizados em meados da década de 1960 são considerados pela pesquisa
acadêmica como importantes espaços de atuação polìtica, ou ―eventos de oposição ao
regime militar‖, como define Marcos Napolitano, frente ao cerceamento de outros
espaços de participação.678 Foram também palcos férteis de experiências estéticas e
propostas de renovação da música popular brasileira, seja pela inspiração das ideias de
Mario de Andrade no tratamento musical erudito de temas populares e folclóricos por
Edu Lobo, seja pelo hibridismo das técnicas composicionais eruditas de vanguarda com
a linguagem pop e a cultura popular, desenvolvido pelos tropicalistas com inspiração do
pensamento de Oswald de Andrade, ou ainda pela pesquisa musical realizada pelo
Quarteto Novo (Hermeto Pascoal, Theo de Barros, Heraldo do Monte e Airto Moreira),
conjunto criado por Geraldo Vandré para acompanhá-lo em suas apresentações.
O samba era um dos gêneros bastante performatizados por Elis Regina, presente
em discos gravados quando ela ainda morava em Porto Alegre – com um repertório que
incluía também o samba de bossa nova – e nos palcos e discos realizados em meados da
década de 1960, com experiências como o sambajazz, mais ligado ao hot jazz, quando
as diversas propostas de modernização da música popular brasileira estavam ainda
sendo chamadas de MPM (música popular moderna) e outros acrônimos, antes de a
sigla MPB se consolidar.
O sucesso crescente da produção musical associada ao programa Jovem Guarda
desde o início de 1966 acirrou os debates em relação aos rumos da música popular
brasileira, confundindo-se o debate ideológico com as estratégias de promoção dos
artistas. Até então, Elis Regina desfrutava de grande popularidade, apresentando um
programa com altos índices de audiência, transmitido em São Paulo pela TV Record e
pela Rádio Panamericana, e em videoteipes para outras capitais do Brasil. Ao mesmo
tempo vendia muito bem o LP Dois na Bossa, com Jair Rodrigues. Como expressão
dessas tensões – ou querendo revitalizar a sua programação –, a TV Record sugeriu o
lançamento de um novo programa, o Frente Única da Música Popular Brasileira – que
substituiria o programa Fino 67679 – para o qual foi realizada uma passeata de
678
NAPOLITANO, Marcos. ―Os festivais da canção como eventos de oposição ao regime militar
brasileiro (1966-1968)‖. In: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. (Org.).
O golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois (1964-2004). Bauru: Edusc, 2004, p. 203-216.
679
Em 1966, o programa O Fino da Bossa passou a chamar-se O Fino, por questões contratuais, pois um
dos produtores do musical, Horácio Berlinck, era o ―proprietário‖ do nome e se desligou do programa.
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divulgação, que ficou conhecida como a ―passeata contra as guitarras elétricas‖, pois era
um programa que pretendia fazer a defesa da música popular brasileira, e essa defesa
passava pela não aceitação de elementos considerados estrangeiros, emblematicamente
representados pela guitarra. Participaram da passeata alguns dos integrantes do
denominado grupo da Frente Única, como Elis Regina, Geraldo Vandré, Jair Rodrigues,
Gilberto Gil, entre outros.
Analisando algumas fontes, como os dados do Ibope, Marcos Napolitano
desconstrói o ―mito da ameaça da jovem guarda‖, argumentando que o crescimento do
movimento do programa Jovem Guarda não levava ao declínio de O Fino da Bossa –
que se manteve estável nos patamares de 1965, chegando a aumentar o seu índice no
ano seguinte –, pois eram transmitidos em dias e horários diferentes. Em relação ao
público, havia um segmento difuso que acompanhava os dois programas, o que
estimulava a competição entre eles.680 E esses artistas também dividiam o mesmo palco
em programas da TV Record e eram tocados pelas mesmas emissoras de rádio.
Entretanto, mesmo que esses dados mostrem que efetivamente não havia essa ameaça,
houve essa percepção de ―ameaça‖ por parte de artistas e intelectuais, que resultou em
debate realizado pela Revista Civilização Brasileira, que propunha uma reflexão sobre a
―crise atual da música popular brasileira‖, percebida pela emergência do iê-iê-iê,
considerada, por alguns debatedores, uma música de qualidade inferior e ―alienada‖ e
―desligada da realidade‖, e que vinha ganhando um espaço cada vez maior nos meios de
comunicação.681 Também a alta sociedade se interessava mais pelo iê-iê-iê, que
começava a agradar não só o público juvenil, mas também o adulto. As formas de
inserção no mercado e a relação com os meios de comunicação eram temas da
discussão.
Durante o Festival de Música Popular Brasileira promovido pela TV Record, em
1967, as canções tropicalistas de Caetano Veloso e Gilberto Gil, Alegria, alegria e
Antes de acabar, em julho de 1967, era apresentado apenas por Elis Regina, com o nome O Fino 67. O
programa Jovem Guarda acabou no início de 1968, semanas após a saída de Roberto Carlos, em janeiro.
Elis e Roberto continuaram, mas com programas individuais.
680
NAPOLITANO, Marcos. Op. cit., 2001, p. 101-4.
681
Os participantes do debate eram: Flávio Macedo Soares (crítico), Caetano Veloso (compositor),
Nelson Lins de Barros (crítico), José Carlos Capinam (poeta), Gustavo Dahl (cineasta), Nara Leão
(cantora), Ferreira Gullar (poeta). BARBOSA, Airton Lima. (coord.) ―Que caminho seguir na música
popular brasileira?‖ Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, n. 6, p. 375-385, maio 1966.
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Domingo no parque, levaram para o palco dos festivais o debate sobre a cultura
nacional-popular e o aproveitamento estético das tradições musicais brasileiras com a
linguagem pop. Durante o ano seguinte, as discussões tornaram-se ainda mais acirradas,
entre os ―nacionalistas‖, os artistas ―engajados‖, que acabaram sendo identificados com
a tradição e o arcaico, e os ―tropicalistas‖, que ficaram identificados com a inovação
estética, em um discurso que parece reverberar até hoje. Em artigo escrito para o jornal
Última Hora, em 9 de dezembro de 1968, intitulado ―Nem toda lucidez é velha, nem
toda loucura é genial‖, Chico Buarque defende-se das acusações de ―ultrapassado‖ ou
de músico antiquado, apegado às tradições, negando que seja contrário às inovações
estéticas na música popular, pois, para ele,
é certo que se deve romper com as estruturas. Mas a música brasileira, ao
contrário de outras artes, já traz dentro de si os elementos de renovação. Não
se trata de defender a tradição, família ou propriedade de ninguém. Mas foi
com o samba que João Gilberto rompeu as estruturas da nossa canção. 682
O seu artigo foi motivado pela provocação de um repórter, ―Mas como, Chico,
mais um samba? Você não acha que isso já está superado?‖, mostrando que a
diversidade estética e a pluralidade de estilos e gêneros musicais não era uma prática
bem aceita, em meio a um cenário de lutas culturais e mesmo com a defesa de um ―som
universal‖. O artigo tem sido bem menos discutido pela historiografia e pesquisa
acadêmica que o debate promovido pela Revista Civilização Brasileira683, no qual
formulou-se a expressão ―linha evolutiva‖, mas é significativo por explicitar as tensões
do período, quando Chico Buarque fala das críticas que recebera de antigos colegas
músicos:
Fiquei um pouco desconcertado pela atitude do meu amigo, um homem
sabidamente isento de preconceitos. Foi-se o tempo em que ele me censurava
amargamente, numa roda revolucionária, pelo meu desinteresse em participar
de uma passeata cívica contra a guitarra elétrica. Nunca tive nada contra esse
instrumento, como nada tenho contra o tamborim. O importante é ter
Mutantes e Martinho da Vila no mesmo palco.
Recuperando o cenário de lutas culturais do período, é possível perceber as
tensões presentes na defesa de um projeto estético – e político –, mas que é também a
682
Disponível em: <http://www.chicobuarque.com.br/texto/artigos/artigo_lucidez.htm>. Acesso em: 20
abr. 2012.
683
Considerando a dificuldade de acesso ao texto da Revista Civilização Brasileira, pois o artigo de
Chico Buarque está disponível na internet, Walter Garcia incluiu o artigo, na íntegra, no livro organizado
por ele, João Gilberto, lançado em 2012 pela editora Cosac Naify.
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defesa de um espaço no mercado fonográfico. Nesse cenário de tensões, Elis Regina
produz mudanças, direcionando sua carreira também para o exterior, e o samba Upa
neguinho torna-se uma canção significativa desse momento.
A repercussão com o MIDEM
Em janeiro de 1968, Elis Regina e Roberto Carlos participaram do Mercado
Internacional de Discos e Edições Musicais, realizado em Cannes, por serem os artistas
brasileiros recordistas de vendagens em suas gravadoras, a CBS e a Philips,
respectivamente. Era considerado um importante evento internacional, pois os artistas se
apresentavam para mediadores culturais, como jornalistas, representantes de gravadoras
e produtores musicais. Naquele momento, o responsável pelo setor de divulgação da
gravadora Philips era Fernando Lobo, jornalista e compositor que atuara na Rádio
Nacional e na gravadora Odeon, que viajou para Cannes com Elis Regina, o conjunto
Bossa Jazz Trio, que iria acompanhá-la, e o seu empresário, Marcos Lázaro.
Upa neguinho era uma pequena canção executada com acompanhamento de
flauta, violão e percussão, que entremeava os textos do musical Arena conta Zumbi, e
era considerada inexpressiva pelos seus compositores. Na releitura que fez durante o
programa O Fino da Bossa, com o conjunto Bossa Jazz Trio, Elis acrescentou algumas
mudanças na canção, como os breques com percussão antes dos versos ―capoeira /
posso ensiná / ziquizira / posso tirá / valentia / posso emprestá / mas liberdade só posso
esperá‖ e acentuando com palmas, sem a voz, a quarta repetição da introdução,
enfatizando o caráter rítmico da composição e destacando a capacidade de divisão da
intérprete, características marcantes e bastante presentes em sua obra. Melodicamente,
era uma canção de fácil memorização e entoação pelo público. Os finais dos versos,
com a vogal ―á‖, afastam-se dos padrões da norma culta do português, ao suprimirem o
―r‖ final dos verbos, e fazem referência ao dialeto africano. A temática social referia-se
ao trabalho escravo e à opressão social que mantinha muitas crianças naquela situação.
A interjeição ―upa‖ confere graça ao falar do menino que tropeça com os primeiros
passos mas que tem que aprender a se levantar e a lutar pela sua liberdade. Apesar do
sofrimento, era necessário sobreviver, de alguma forma.
A apresentação foi considerada sucesso pela imprensa, que acompanhava – e
também estimulava – as tensões entre as diferentes propostas musicais naquele
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momento. O Jornal do Brasil destacava o momento importante vivido pela música
popular brasileira – no embate com o chamado iê-iê-iê e o programa Jovem Guarda –
com o auditório lotado e mais de mil pessoas batendo palmas, inclusive junto com o
arranjo, e não após a execução da canção. Desta maneira, Elis Regina conseguia
também atingir o seu objetivo de estabelecer uma grande comunicabilidade com o
público.684
O arranjo e a interpretação vocal de Elis Regina se caracterizam por um ―som
pra fora‖, ―som pra frente‖, como definiam os integrantes do Zimbo Trio – conjunto que
também tocava com Elis – a sua proposta estética.685 Era uma proposta consciente de
artistas que procuravam aumentar o espaço de atividade da música instrumental no país,
que tocavam em boates e bares e que conceberam um estilo com a intenção de passar à
frente, aos palcos, e não fazer apenas uma música de fundo para os clientes. Com Elis
Regina, essa proposta de um ―som pra frente‖, expressivo, trazia a informação sonora
das vozes das cantoras do rádio. A MPB que surgia em meados da década de 1960
incorporava o ―excesso‖ aos arranjos, às interpretações vocais, pelos desdobramentos
vindos da canção de protesto, do tropicalismo, e do sambajazz, com fundamental
contribuição de Elis Regina.686
Sobre a realização musical, considero o conceito de ―mundo artìstico‖, de
Howard Becker, pensando em uma ação colaborativa, em que são as pessoas e
organizações envolvidas em um ―mundo artìstico‖ que reconhecem o seu trabalho como
arte, que entendem os códigos musicais, as convenções previamente acordadas, que
partilham uma mesma experiência musical. Para o autor, ―é possìvel entender as obras
de arte considerando-as como o resultado da ação coordenada de todas as pessoas cuja
cooperação é necessária para que o trabalho seja realizado da forma que é‖. 687 Acredito
684
ELIS pede passagem pra sambar. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 ago. 1966, Caderno B, p. 8.
Gravações nos LPs Arena conta Zumbi SMLP-1505, Discos Som/Maior Ltda (1965), e LP Dois na Bossa
n. 2, P 632 765 L, pela Companhia Brasileira de Discos (1966).
685
Sobre o Zimbo Trio, conjunto musical fixo do programa O Fino da Bossa, ver: MACHADO, Cristina
Gomes. Zimbo Trio e o Fino da Bossa: uma perspectiva histórica e sua repercussão na moderna música
popular brasileira. Dissertação. UNESP. Artes, 2008. 410f.
686
NAVES, Santuza Cambraia. ―Da bossa nova à tropicália: contenção e excesso na música popular
brasileira.‖ Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 15, n. 43, 2000, p. 35-44.
687
BECKER, Howard. ―Mundos artìsticos e tipos sociais‖. In: VELHO, Gilberto. Arte e sociedade:
ensaios de sociologia da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1977, p. 9.
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ser importante ressaltar que não se trata de retirar do intérprete ou do compositor a sua
qualidade e capacidade criativas, transferindo-as para o arranjador, instrumentistas ou
produtores musicais, mas reconhecer a importância dos vários agentes envolvidos na
atividade de criação musical.
O conceito de performance proposto por Paul Zumthor tem ajudado a pensar a
trajetória e a obra de Elis Regina, assumindo que intérpretes também produzem sentidos
quando executam uma obra e considerando a performance como uma ação complexa
em que, em nosso caso, a música é simultaneamente transmitida e percebida, colocando
em comunicação e confronto emissor, música (texto) e receptor.688 Na apresentação
durante o MIDEM, também com o conjunto Bossa Jazz Trio, Elis Regina novamente
consegue estabelecer grande comunicação com o público, como se percebe ouvindo o
áudio da gravação realizada ao vivo, em que aplausos já surgem na metade da canção,
após o trecho em que repete a introdução quatro vezes, executando a última apenas
batendo palmas. Nessa inter-relação com o público, podemos considerar que a sua
interpretação também se transforma, reiniciando a canção com um riso que se ouve nos
versos e com vigor musical e físico que perdura até o fim. Uma alegria com o resultado
obtido e pela importância da apresentação naquele espaço, entre tantos artistas, alguns
pouco conhecidos no exterior, como ela, e outros já com muita popularidade, como o
conjunto Supremes, de Diana Ross.689
Com o sucesso que obteve no MIDEM, Elis foi convidada para uma temporada
de quinze dias no Teatro Olympia, de Paris, a partir de 6 de março, o que resultava em
ampliação do seu reconhecimento como artista e em novas propostas de trabalho no
exterior. Nessa temporada ela dividiria o palco do teatro com vários outros artistas,
sendo o argelino Enrico Macias uma das atrações principais. O Teatro Olympia era um
espaço privilegiado para a apresentação de artistas populares, como Edith Piaf, que em
1958 já havia convidado a cantora Marlene para dividir o palco, e que também já
contara com outra brasileira, Leny Eversong, nesse mesmo ano. Além dos espetáculos,
688
ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Tradução de Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Pochat e
Maria Inês de Almeida. São Paulo: Hucitec, 1997.
689
Sobre a apresentação de Elis Regina, ver: SARSANO, José Roberto. Boulevard des Capucines: Teatro
Olympia, Paris 1968: Elis Regina e Bossa Jazz Trio em uma época de ouro da MPB. São Paulo: Árvore
da Terra, 2005. A gravação, lançada em compacto simples, está presente na coletânea em CD Elis 20
anos de saudade, lançada em 2002 pela Universal Music.
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havia os compromissos com a televisão e a divulgação dos shows. E a agenda de Elis
esteve cheia, participando de programas televisivos, como o de Sacha Distel, com
bastante audiência, e o de variedades musicais Dim Dam Dom, da Office de Radio
Télévision Française (ORTF).690
No retorno ao Brasil, após o MIDEM, Elis Regina apresentaria o seu novo
programa na TV Record, o Elis Especial, produzido pelo seu marido, Ronaldo Bôscoli,
e durante o ano de 1968 continuou destacando-se com o samba, ao vencer a I Bienal do
Samba, com Lapinha, de Baden Powell e Paulo César Pinheiro, promovido pela TV
Record. Durante esse ano, com a intensificação das lutas culturais e pelo mercado
fonográfico, o debate com o tropicalismo acentua-se e o samba é o gênero ao qual
vários artistas recorrem, como Elis Regina e Chico Buarque, resultando em cobranças
estéticas e em posicionamentos, como o de Chico Buarque. O novo LP de Elis tinha o
mesmo nome que o seu programa televisivo e era feito em estúdio, o que não ocorria
desde o lançamento de Elis, dois anos antes. Com arranjos de Erlon Chaves, traz o
sucesso Upa neguinho, e mostra uma fase de transição para a produção musical que ela
realizaria a partir do ano seguinte e indefinição em relação ao caminho musical que
deveria seguir, distante do sambajazz que a popularizara, ainda rejeitando o
tropicalismo e sem incorporar o pop, o soul e o rock, como faria nos próximos discos.
No final de 1968, é decretado o AI-5 e Caetano Veloso e Gilberto Gil são presos
e depois exilados. Chico Buarque, que estava na Itália, estende a sua temporada no país.
E Elis Regina busca o reconhecimento musical no exterior, capitalizando-o também no
Brasil. Nesse mesmo ano, André Midani assumiu o cargo de gerente-geral da filial da
Philips no Brasil, a Companhia Brasileira de Discos, e uma das suas metas era
impulsionar a carreira de Elis no exterior. Ela realizou turnês pela Europa, e retornou ao
Teatro Olympia, em novembro, para nova temporada, dividindo o palco com outros
artistas, e sempre com Upa neguinho recebendo destaque em suas apresentações.
Em 1969, Elis Regina gravou e lançou no exterior dois LPs. Um com o gaitista
Toots Thielemans, em Estocolmo, e Elis in London, no qual aparece a canção Upa
neguinho, agora com arranjos de base de Roberto Menescal, aos quais seria
690
A apresentação de Elis Regina no programa Dim Dam Dom está disponível em:
http://www.youtube.com/
watch?v=1J72otb-u08. Acesso em: 23 jul. 2013.
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acrescentado o arranjo orquestral do maestro inglês Peter Knight. Nesse disco, Elis
revisita canções da bossa nova e alguns clássicos internacionais, cantando em inglês, e
aproxima-se do samba-rock de Jorge Ben, com Zazueira, e do iê-iê-iê ao fazer uma
releitura de Se você pensa, da dupla Roberto e Erasmo Carlos. A gravação da voz foi
realizada no estúdio em Londres, ao vivo e junto com a orquestra, ou seja, a versão
musical final foi a realizada lá. As mudanças no repertório de Elis, o que inclui os
arranjos, traduzem a necessidade de readaptação a um cenário modificado pela
emergência do tropicalismo e também da explosão da soul music, que começava a
tornar-se extremamente popular, reverberando, principalmente, no Festival da Canção
de 1970. Assim como Roberto Carlos, Chico Buarque e outros músicos, Elis produzia
mudanças em suas obras levando em conta a recepção do público, um elemento que
considero sempre esteve presente em sua concepção de cantora popular. Conciliar o
sucesso popular com o prestígio perante certos segmentos da crítica especializada e da
intelectualidade seria um desafio que Elis enfrentaria a partir da década de 1970.
O contato com outros cenários musicais, com o que estava sendo realizado em
outros países, deve ser considerado nesse momento de transição da carreira de vários
artistas no Brasil. Em busca de novas sonoridades e propostas estéticas, a obra de
Milton Nascimento, que já inspirava jovens músicos, como Gonzaguinha, que vencia o
II Festival da Canção Universitária da TV Tupi, em 1969, com O trem, também será
fundamental para as mudanças que Elis começará a executar em algumas canções já a
partir de 1969, mas, sobretudo, a partir de 1972, quando o LP Clube da Esquina é
lançado, demarcando uma sonoridade singular para a MPB e sugerindo um outro
hibridismo com o rock, que será de grande importância para a trajetória de Elis durante
a década de 1970, quando ela estabelece um diálogo com o rock, mas com outras
referências estéticas.
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O BAIRRO DA RIBEIRA E A CRISE DO ESPAÇO: O PROCESSO
MIGRATÓRIO DO COMÉRCIO EM NATAL – RN
Anna Gabriella de Souza Cordeiro
Resumo:
As áreas urbanas centrais, no desenrolar do século XX, têm amargado o declínio
econômico e, em consequência, um processo de deterioração. Na cidade de Natal o
bairro da Ribeira, que outrora fora o centro comercial, perdeu suas funções no contexto
urbano devido a vários fatores. Dentre eles, a migração do comércio para o bairro de
Cidade Alta, o que contribuiu para que o bairro da Ribeira perdesse mais um traço de
sua identidade, dificultando assim a conservação da memória citadina.
Palavras chave: História Urbana, Bairro da Ribeira, Áreas Urbanas Centrais.
Abstract:
The central urban areas, in the course of the twentieth century, have embittered the
economic decline and, therefore, a process of deterioration. In Natal the Ribeira district,
which was once the commercial center, lost their functions in the urban context due to
several factors. Among them, the migration of trade to the neighborhood of the Upper
Town, which contributed to the Ribeira district's lost over yet another trace of its
identity, thus hindering the maintenance of the memory city.
Keywords: Urban History; Ribeira District; Central Urban Areas.
Introdução
No início do século XX, o bairro da Ribeira se caracteriza na Cidade de Natal como
centro urbano, espaço que agregou atividades diversas como: espaços de sociabilidade
(Teatro, Cinema, Cafés, Hotéis), bancos, lojas, escritórios e diversos serviços públicos.
Este assumiu o papel de congregar as atividades sociais da cidade, se distinguindo pela
sua estrutura funcional. A presença do porto e da estação ferroviária foram fatores que
influenciaram decisivamente no desenvolvimento e na caracterização do bairro da
Ribeira no contexto urbano da Cidade de Natal. Estes fomentaram o comércio e o
desenvolvimento dos serviços, influenciando na valorização do espaço, uma vez que a
capital comunicava-se com o resto do mundo através do porto e da Great Western.

Mestra em História e Espaços pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, PPGH-UFRN. Sob a
orientação do Prof. Dr. Haroldo Loguercio Carvalho. E-mail: [email protected]. Telefone
celular: (84)9905-5777. Residente à avenida Prudente de Morais, 1728, Condomínio Jardim Tirol, Bloco
A1, Apto 102, CEP: 59.020-400 Tirol, Natal/RN.
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Dessa forma, o centro urbano nada mais é que um espaço que concentra as
atividades comerciais e sociais da sociedade. Para Villaça691, os centros são locais
estratégicos voltados para o exercício do poder e da dominação, seja exercido pelos
dirigentes políticos ou pelo fetichismo da mercadoria. A partir de então reconhecemos o
centro como espaço urbano dotado de grande representatividade, constantemente
favorecidos pelas políticas e programas de intervenção urbana, como de fato ocorreu
com a Ribeira no período inicial do século XX. Para Castells 692, ―[...] o termo de centro
urbano designa ao mesmo tempo um local geográfico e um conteúdo social.‖ Contudo,
no caso do bairro da Ribeira, sua centralidade sucumbiu aos agenciamentos sociais, cuja
mudança de práticas acabou resultando no processo de decadência do espaço e de suas
funções no contexto urbano da Cidade de Natal.
Na dinâmica do sistema capitalista, as crises estão ligadas ao próprio modo de
produção. Com o término da Segunda Guerra Mundial, o bairro da Ribeira enveredou
em uma grave crise econômica e social. No decorrer desta pesquisa, pensada na
tentativa de evidenciar a trajetória da decadência do bairro da Ribeira, buscamos
identificar os fatores que influenciaram nesse processo, dentre eles hora citamos: o
Plano da Cidade Nova, que proporcionou um local exclusivo para as elites em busca de
diferenciação; o surgimento de novos centros urbanos; a segregação social; a crise dos
meios de transporte tradicionais; a migração do comércio para o bairro de Cidade Alta;
dentre outros. Nesta pesquisa, abordaremos a crise do espaço, objetivando
problematizar a questão da migração do comercio e como este fator atuou no fenômeno
de decadência do bairro da Ribeira.
A crise do espaço
As áreas urbanas centrais, no desenrolar do século XX, têm amargado o declínio
econômico e, em consequência, um processo de deterioração ou degradação. Esse
fenômeno tem se intensificado nas cidades brasileiras. A expansão do sistema capitalista
e o desenvolvimento econômico e tecnológico contribuíram para a transformação do
modo de vida urbano, que será refletido na organização da cidade em relação ao seu
691
VILLAÇA, Flávio. O espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel/ FAPESP/ Lincoln
Institute, 1998.
692
CASTELLS, Manuel. A questão urbana. São Paulo: Paz e Terra, 2006, p. 311.
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antigo centro. A expansão do espaço urbano, obtida com o desenvolvimento dos meios
de transporte e a facilidade de locomoção irão dilatar em Natal as zonas periféricas,
enquanto as zonas centrais perdem gradativamente a sua importância. O investimento
privado nessas áreas tende a minguar, assim como os investimentos públicos, que são
direcionados para as áreas nobres do ascendente subúrbio, assim como os projetos
habitacionais e imobiliários. Enquanto isso, no centro, os imóveis são sublocados e as
residências, por vezes, são abandonadas. Sobre a descentralização, Corrêa afirma:
O processo de descentralização implicou que as atividades como que
pulassem do núcleo central para as áreas mais distantes: a demanda de espaço
na zona de transição parou. O uso residencial com base em uma população de
baixo status social e a deterioração física da área estigmatizou-na, criando
uma imagem de pobreza, vício e crime. 693
A partir dessa ótica, percebemos a importância dos agenciamentos sociais na
construção e na desconstrução dos espaços. Os usos e funções do espaço se constituem,
de acordo com Certeau694, devido às práticas que caracterizam o espaço urbano como
sendo dinâmico e mutável. Tendo o espaço como fonte inesgotável de experiências
emocionais que transcendem a abstração pessoal do espiritual e do conceitual,
Schama695 observou as formas com que realizamos manutenção das paisagens, quando
nos deparamos com o fato de que elas se tornam o produto resultante de nosso processo
civilizatório, e que para mantê-las vivas, precisamos dessa interação. A paisagem como
jurisdição, ocupação humana, pelo próprio significado do termo léxico, objeto a ser
pintado ou fotografado, o que lhe imbui o sentimento de envolvimento emocional que
lhe confere indubitavelmente uma gama de significados. O espaço não exprime apenas a
formação geográfica, mas também a percepção, pelas lembranças da alegoria e da
experiência de gerações anteriores.
Simon Schama segue ressaltado o fato de que os historiadores lamentam a
anexação da natureza pela cultura. Contudo, não é negada a ideia de que a paisagem em
si empreende um texto, um texto que deve ser lido para não passar inerte pelos
caminhos da história, que construímos e reconstruímos através do espaço/tempo,
expondo assim a junção dos elementos humanos e geográficos. A partir desse
693
CORRÊA, Roberto Lobato. O Espaço Urbano. São Paulo: Ática, 1989, p. 71.
694
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano I. Artes de fazer. Petrópolis: Ed. Vozes, 2003.
695
SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
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pressuposto empreendemos aqui uma das possíveis leituras que abarcam a valorização e
desvalorização do bairro da Ribeira. Consideramos a cidade um texto onde podem ser
lidos os códigos mais amplos da sociedade, tornando-a democrática e capaz de abrigar
diversas visões de si mesma, e, devido a sua complexidade, sendo escrita e reescrita por
seus habitantes. Para Roland Barthes, ―a cidade é um discurso, e esse discurso é
verdadeiramente uma linguagem [...]‖696. A cidade nos fala de seus critérios de
segregação, de como a hierarquia social se traduz no espaço, assim como os
deslocamentos ou desterritorializações podem ser observados na escrita urbana.
Não só a cidade pode traduzir-se em discurso, como o discurso pode traduzir-se
em cidade. A Cidade de Natal, em 1909, apesar de procurar se modernizar, não
apresentava indícios de uma modernização capaz de ser a inspiração de Manoel Dantas
para seu discurso ―Natal daqui a cinquenta anos‖. Mas o desejo de modernização e de
valorização da cidade em questão está presente nos sonhos da elite natalense que tem
em Manoel Dantas a representação de seu discurso modernista. Como era um homem
culto e possuidor de muita leitura, um dos livros que provavelmente o inspirou foi
―Paris no século XX‖, apesar de sua visão ser bem diferente da de Jules Verne. Manoel
Dantas busca traduzir a modernização da cidade através do capitalismo e da
industrialização, não esquecendo as artes e o meio ambiente. Esse texto constitui um
documento importante para a história da urbanização e do urbanismo de Natal,
apresentando um modelo de cidade ideal e possui um caráter que varia da alegoria à
lenda, do mito à ficção. Contudo, a preocupação com o urbanismo e manutenção da
memória, não através das antigas edificações e traçados das ruas, mas sim com
monumentos à modernidade, a total negação do passado como se este houvesse sido um
castigo divino. Para Pedro de Lima 697, ―na concepção de Dantas, é a própria cidade,
com cada um de seus elementos, que seduz a população para as conquistas do espírito
humano e para a realização do projeto de modernidade.‖ No entanto, o que nos interessa
nesse momento é a visão de Manoel Dantas, em 1909, de como seria o bairro da Ribeira
em 1959. Ele escreveu que:
696
BARTHES, Roland. A aventura semiológica. Lisboa: Edições 70, 1985, p. 224.
697
LIMA, Pedro de. O mito da fundação de Natal e a construção da Cidade Moderna segundo Manoel
Dantas. Natal: Cooperativa Cultural, Sebo Vermelho, 2002, p. 51.
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A Ribeira, cortada em xadrez de ruas, praças e avenidas, é o bairro do alto
comércio, da bolsa, dos grandes estabelecimentos bancários. O ―Banco do
Natal‖, com seu capital de mais de cem mil contos, pode construir na
Avenida Tavares de Lira, um edifício soberbo, que atesta a sua prosperidade.
Os mostradores dos bazares imensos ostentam, numa exibição fantástica, as
mais variadas mercadorias, destinadas a despertar a cobiça ou a prover as
necessidades de gente que por ali passa num vai e vem contínuo. Num dos
ângulos da Praça Augusto Severo, admira-se o Palácio da República, com
seus vinte andares, donde saem diariamente as três edições disputadas pelos
seus milhares e milhares de leitores. No alto deste edifício, num mostrador
enorme, que, à noite, a eletricidade ilumina de cores caprichosas, são
exibidas, de minuto em minuto, as notícias de última hora que vão chegando
de todas as partes do mundo pelo telégrafo sem fio e as linhas especiais
[...]698
Observamos na citação acima, o otimismo do autor em relação ao bairro da
Ribeira, uma vez que este, na época em que o discurso foi escrito, apresentava-se em
pleno desenvolvimento de suas atividades comerciais. Negando o passado do bairro,
Manoel Dantas corta as ruas irregulares da Ribeira em um ―moderno traçado xadrez‖.
Para ele, o bairro continuaria sendo o centro comercial da cidade, ainda dotado dos
melhores estabelecimentos, inclusive com uma bolsa de valores, para ele o
desenvolvimento econômico do bairro seria inevitável. Hall 699 afirma que as ideias
causam impacto e materializam-se no espaço, principalmente nas cidades, que são
tratadas por ele como expressões das ideias advindas do núcleo social formador dos
recortes geográficos. Apesar disso, as dinâmicas urbanas, por vezes, são imprevisíveis,
o comércio da elite migrou para o bairro de Cidade Alta e o jornal A República, tão
aclamado pelo autor, não existe mais. A Ribeira tornou-se inerte durante o processo de
expansão da Cidade de Natal, tornando-se, quando comparamos com os períodos
iniciais, obsoleta.
A deterioração dessas áreas centrais – deterioração econômica, física, social e
ambiental – corresponde à decadência advinda pelo fato da estrutura existente
no local não estar mais satisfazendo ao papel funcional que lhe é exigido pela
cidade e, consequentemente, às expectativas definidas pelo mercado
fundiário700.
A deterioração do bairro da Ribeira foi inevitável devido às várias imbricações
sintetizadas acima por Simões Júnior, uma vez que o espaço também é mercadoria e
698
DANTAS, Manoel. Natal daqui a cinqüenta anos. In: LIMA, Pedro. O mito da fundação de Natal e a
construção da cidade moderna segundo Manoel Dantas. p. 55-79, Natal: Sebo Vermelho, 2000, p. 71-72.
699
HALL, Peter. Cidades do amanhã: uma história intelectual do planejamento e do projeto urbano do
século XX. São Paulo: Perspectiva, 2002.
700
SIMÕES JÚNIOR, José Geraldo. Revitalização dos centros urbanos. São Paulo: Publicações Pólis,
1994, p. 12.
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está sujeito a variações. De acordo com Marx 701, ―a mercadoria é, antes de mais nada,
um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades
humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da
fantasia‖. Câmara Cascudo observou a perda das funções do bairro da Ribeira, e
registrou que ―Esse parque, maravilhoso de justiças urbanísticas, foi sendo pouco a
pouco guerreado e acabou no que está, praça banal entre praças belíssimas. [...]
Mutilado e sem função é um lugar por onde se passa e nada sugere parar e
descansar‖702.
Portanto, quando a mercadoria (referente ao espaço) perde sua função,
consequentemente perde seu valor. Ao analisar a perda das funções do bairro da
Ribeira, agora abordaremos a perda da sua função enquanto centro comercial da Cidade
de Natal.
A migração do comércio para o bairro Cidade Alta
O bairro de Cidade Alta, apesar de ter sido o primeiro da capital, sempre fora
predominantemente residencial. Contudo, após meados da década de 40 do século XX,
este sofreu uma invasão por parte do comércio. Tal invasão intensificou-se
posteriormente. A respeito dessa dinâmica, o colunista do jornal A República, Aderbal
de França, publicou em 1946: ―invadindo o centro urbano, o comércio já está
modificando profundamente a característica da Avenida Rio Branco, onde as famílias se
afastam para que se instalem mais casas de negócios‖703. Contudo, foi a partir de 1950
que o bairro transformou sua estrutura urbana: foram surgindo vários prédios
comerciais, dentre eles destacamos o Edifício Amaro Mesquita (1953) de cinco andares,
localizado na esquina das Avenidas Rio Branco e João Pessoa; e o Edifício São Miguel
(1956) de seis andares, na Avenida Rio Branco. Apenas na Avenida Rio Branco,
durante a década de 1950, foram inauguradas diversas casas comerciais, sobre elas
afirma Souza:
701
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2008, p. 41.
702
CASCUDO, Luís da Câmara. História da Cidade do Natal. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1980, p. 131.
703
FRANÇA, Aderbal de. ―No lar e na sociedade‖. A República, Natal, 9 nov. 1946.
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As casas comerciais mais importantes que se instalaram na Rio Branco, na
década de 1950, foram as seguintes:Casa Duas Américas (outubro de 1951);
Casa Régio, de eletrodomésticos, de Reginaldo Teófilo da Silva, inaugurada
em agosto de 1956; Casa Utilar, de Jessé Pinto Freire, instalada no andar
térreo do Edifício São Miguel (dezembro de 1956); Casa Rio, de Alcides
Araújo (julho de 1957); A Livraria Universitária, de Walter Pereira (janeiro
de 1959) e a Nova Paris, loja tradicional de Bijuterias e artigos para presentes
(abril de 1959).704
Nesse mesmo logradouro, no decurso de pouco mais de dez anos (1962-73) se
instalaram doze agências bancárias, fato que modificou totalmente a fisionomia do
bairro de Cidade Alta. Este, que era apenas residencial, passou a concentrar o principal
comércio da cidade. A partir da migração do comércio para o bairro de Cidade Alta, o
bairro da Ribeira deixa de ser o bairro comercial de Natal, perdendo mais um traço de
sua identidade.
O bairro de Cidade Alta passou a monopolizar o comércio, principalmente com
relação aos estabelecimentos voltados para atender as classes mais altas. Com isso, a
concorrência entre os dois bairros tornou-se inevitável, como veremos no anúncio
―Atenção, Escolares! Não desçam à Ribeira para comprar seus livros. Procurem a
PAPELARIA E CHARUTARIA COSTA. Além de servi-lhes com presteza, evita-lhes o
transporte de ônibus‖705. Nesse processo observamos a mutabilidade do urbano, da
passagem, da migração, não apenas de pessoas como também na substituição de funções
desse espaço construído. Esse espaço é suscetível de atribuição de valor; a cidade não é
feita apenas da dureza das pedras, é produzida pelo homem, e aqui ele aparece como
fruto dos desejos dessa sociedade. O espaço não se encontra na dimensão de uma
função, está sim na dimensão da sua existência. Essa existência implica na
mutabilidade, e no caso da Ribeira, na sua não adequação aos novos tempos.
Os grandes empórios tinham emigrado para a Cidade Alta, trocando a estreita
e velha Dr. Barata pela larga, imponente e nova Avenida Rio Branco. O
comércio grossista, atendendo ao chamado dos novos tempos, fizera do
Alecrim a sua moderna Meca. E abalizadas organizações haviam sido
superadas, ou por novos métodos comerciais ou não resistindo à transferência
de comando de seus fundadores para novas mãos, cerravam portas, portas
que só acreditamos cerradas, tão fortes e inexpugnáveis eram elas, porque
como o Repórter Esso – outro que desapareceu – fomos testemunhas oculares
da história706.
704
SOUZA, Itamar de. Nova História de Natal. Natal: Departamento Estadual de Imprensa, 2008, p. 175.
705
―Anúncios‖. A República, Natal, 9 fev. 1950
706
GARCIA, José Alexandre. Acontecências e tipos da Confeitaria Delícia .Natal: Clima, 1989, p. 44.
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Não podemos dizer que o bairro da Ribeira dos anos de 1920 é o mesmo dos
anos de 60, este se descaracterizou totalmente em relação as suas funções, a sua
existência, apesar de permanecer no mesmo espaço.
Considerações finais
O bairro da Ribeira, desde então, sofreu drásticas transformações, o que comprometeu
sua função no contexto urbano da Cidade de Natal. A questão da decadência ou
degradação do espaço torna-se um desafio para a própria ciência, que busca
compreender esse fenômeno, a partir de debates e discussões. De acordo com Argan
(2005, p. 205): ―é mais fácil projetar as cidades do futuro do que as do passado‖. Sendo
assim, esse fenômeno acelera-se em função do desenvolvimento das áreas periféricas da
cidade, aliado ao deslocamento das atividades comerciais exercido sem uma
estruturação ou reestruturação do antigo centro.
O uso do espaço é de suma importância para a vida do mesmo, visto que o
espaço não praticado tende a desaparecer no contexto de seu pertencimento anterior.
Esses referenciais sofrem alterações com as transmutações do cotidiano das cidades,
uma vez que os usos anteriores não são mais inerentes ao cotidiano praticado na
atualidade. Observamos que estas formas antigas entraram em um processo de
degradação pela alteração social de suas práticas. Muitos desses símbolos de riqueza e
poder do passado chegaram até nós transmutados pela ação do tempo, empobrecidos,
mutilados. Os espaços que no início do século XX eram utilizados pela Zona Central da
sociedade e passaram a ser praticados por uma classe social inferior ou periférica, o que
gerou a sua degradação, a sua subutilização ou o seu total abandono. A cidade é ao
mesmo tempo, um processo de produção e uma forma de apropriação do espaço
produzido. Ou seja, é condição e meio para que hajam as relações sociais, que resultam
nas apropriações e os padrões de uso.
A forma de ocupação do bairro da Ribeira foi realizada de forma divergente em
diferentes recortes temporais. O uso desse espaço é orientado pelo mercado, que assume
o papel de fundamental mediador das relações que se estabelecem na sociedade
capitalista e as funções do espaço só podem ser compreendidas através do contexto
urbano de cada época específica. Sendo assim, o bairro da Ribeira foi sendo
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descaracterizado a partir da migração do comércio para o bairro de Cidade Alta e de
outras modificações importantes realizadas no contexto social e no contexto espacial de
toda a Cidade de Natal.
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DISCURSOS DAS AUTORIDADES DIANTE DA SITUAÇÃO
SOCIOECONÔMICA E DA CRIMINALIDADE EM ALAGOINHAS E
INHAMBUPE NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX
Antonio Hertes Gomes de Santana*
Resumo:
O presente trabalho pretende analisar alguns discursos das autoridades sobre os
principais problemas que atingiam Alagoinhas e Inhambupe (Bahia), na segunda metade
do século XIX, enfatizando o olhar sobre crimes cometidos por trabalhadores livres,
sobretudo contra a propriedade. São utilizados como fontes de pesquisa
correspondências dessas autoridades (juízes, delegados, representantes do legislativo),
relatórios de presidente de província, jornais e processos criminais. Percebemos que os
discursos eram contraditórios, mas na maioria das vezes, as autoridades demonstravam
muita preocupação com os problemas.
Abstract:
This paper discusses some authorities speeches on major issues that affected Alagoinhas
and Inhambupe (Bahia), in the second half of the nineteenth century, emphasizing the
look on crimes committed by free workers, especially against the property. Are used as
research sources such correspondences authorities (judges, prosecutors, representatives
of the legislature), governor of the province reports, newspapers and criminal cases. We
realize that the speeches were contradictory, but most of the time, the authorities
showed much concern with the problems.
Eram recorrentes, no Brasil oitocentista, sobretudo na segunda metade do século –
quando os movimentos abolicionistas e as discussões sobre o abolicionismo se
intensificaram – as preocupações, por parte das autoridades, com os problemas que
afligiam a sociedade. Muitas vezes os discursos das autoridades sobre esse assunto eram
contraditórios. Algumas pesquisas historiográficas mostram isso, a exemplo dos
trabalhos de Maria Helena Machado e Sidney Chalhoub.
Em ―O plano e o pânico‖, Maria Helena Machado, ao analisar documentos do
chefe de polícia de São Paulo de 1883, atenta para as contradições nesses documentos.
Segundo a autora, essas autoridades descreviam a situação da provìncia ―com tintas
mais suaves‖ e depois passaram a escrever a real situação de ―descontrole‖ e ―pânico‖.
*
Mestrando em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ); Orientadora:
Fabiane Popinigis; [email protected]
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Nesse caso, havia um plano por parte das autoridades, ou melhor, uma ―estratégia de
desinformação e censura no tratamento público da questão escrava‖, evitando o pânico
das populações1.
Sidney Chalhoub, em ―Machado de Assis historiador‖, analisa os debates do
Legislativo sobre a emancipação e observa que os legisladores tinham a ―arte de
bordejar‖, ou seja, de oscilar nas opiniões ou de fazer rodeios para evitar falar
diretamente sobre o assunto especìfico. Segundo o autor, ―no geral, e apesar de toda a
condenação retórica à escravidão, é impressionante a resistência que os conselheiros
opuseram a qualquer iniciativa pela emancipação em abril de 1867‖ 2.
Em Alagoinhas e Inhambupe, como podemos observar a partir da leitura atenta
das fontes, as autoridades oscilavam nos discursos sobre a situação socioeconômica na
segunda metade do século XIX3. Em alguns momentos, afirmavam que as vilas se
encontravam em boa situação, não precisando de nenhum auxílio externo. Mas são
recorrentes mesmo as preocupações com a situação de pobreza da população, a
criminalidade ou as desordens como um todo.
Este trabalho tem como principal objetivo analisar as falas das autoridades
diante dessa situação em Alagoinhas e Inhambupe na segunda metade do oitocentos,
visto a importância do recorte temporal para a historiografia sobre a escravidão e
liberdade e a importância da região para a Bahia. Antes, porém, é necessário tentar,
sucintamente, inseri-lo num projeto maior de pesquisa e falar sobre parte da história da
região no período, além de justificar a escolha das principais fontes utilizadas.
A pesquisa sobre as condições socioeconômicas de Alagoinhas e Inhambupe na
segunda metade do século XIX surgiu como necessidade de preencher um vazio
deixado pela historiografia. Aliás, há poucas pesquisas que tratam da região e a maioria
1
MACHADO, Maria Helena. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da abolição. 2ª
edição revista. Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 23-26.
2
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 151152.
3
Analisamos principalmente os relatórios de presidente de província, algumas correspondências do
legislativo municipal, dos juízes e delegados do período aqui estudado. Com exceção dos relatórios de
presidente da província que encontramos no sítio da Universidade de Chicago, os demais documentos se
encontram no Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), na seção de arquivos coloniais e provinciais.
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aborda o processo de modernização a partir da chegada da rede ferroviária ou outros
temas referentes ao século XX. Há uma documentação pouco explorada no Arquivo
Público do Estado da Bahia que nos permite analisar parte da história desses municípios
a partir dos olhares das autoridades. O ponto mais importante da pesquisa, porém, é
atribuir sentido político em algumas ações cotidianas de pessoas comuns, trabalhadores
(principalmente do setor rural) diante das situações de dificuldades. Iniciamos os
estudos com processos criminais envolvendo trabalhadores livres ou libertos da
escravidão, sobretudo crimes contra a propriedade (furtos). Parecia frequente na região,
os furtos de animais de grande porte, como podemos observar na documentação 4.
Alguns documentos sinalizam para um possível movimento organizado que praticava
tais delitos5. Paralelo a isso, as autoridades frequentemente se preocupavam com essas
ações, com a manutenção da propriedade, bem como as condições socioeconômicas da
região. Por isso a importância de estudar essa questão na pesquisa.
Os municípios de Alagoinhas e Inhambupe estão localizados no nordeste da
Bahia e têm considerável importância para a região. No século XIX, a agricultura era a
principal atividade econômica. Analisando os dados do Recenseamento de 1872,
podemos observar que as vilas, nas últimas décadas do século XIX, possuíam uma
população de livres muito grande em relação à de escravos, e que esses livres viviam
principalmente de trabalhos agrícolas ou não tinham uma profissão6. O número de
lavradores e dos sem profissões (principalmente de pessoas desocupadas) nos faz crer
que a região vivia em más condições socioeconômicas, situação semelhante à grande
parte da Bahia e da região nordestina da época. Os números do recenseamento, portanto,
4
No Arquivo Púbico do Estado da Bahia (APEB) encontramos 22 processos criminais de Alagoinhas,
sendo que 7 referem-se a furto. De Inhambupe encontramos 94 processos, sendo que 23 referem-se a
furto no período aqui estudado. Em resumo, dos 30 processos referentes a furto em Alagoinhas e
Inhambupe encontrados até então, 19 são contra a propriedade rural: foram extraídos animais de fazendas
e, em número menor, alguns produtos da terra, como mandiocas.
5
A exemplo do jornal ―A Verdade‖ de 11/02/1877 onde há, na parte de noticiários, duas informações
referentes a uma possìvel ―sociedade de furto de animais‖: ―TENTATIVA DE FUGA DE PRESOS – Na
tarde do dia 5 do corrente, às 5 horas, o preso de nome Joaquim Travassos, um dos implicados na
sociedade de furto de animaes, e de que demos notícia em o nº passado, tentou evadir-se da prisão,
arrombando a cadeia; mas para isto bastou lhe dar um grande empurrão na parede da frente, a qual veio
abaixo pelo máo estado em que se achava...‖ (APEB, Jornal A Verdade, 11/02/1877); ―INQUÉRITO
POLICIAL – No dia 9 do corrente pelo Juizo Municipal foi remetido ao Dr Promotor Público o inquérito
policial contra Antonio Pedro, Joaquim Travassos e Manoel Cyriaco, implicados em furto de animaes,
sobre que demos notìcia em o nº passado‖. (APEB, Jornal A Verdade, 11/02/1877)
6
RECENSEAMENTO DO BRAZIL EM 1872; Bahia (Extraído de: http://biblioteca.ibge.gov.br)
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podem nos ajudar a pensar na ideia de que os trabalhadores livres pobres necessitavam
de outros meios de sobrevivência, de outras ‗estratégias de autonomia‘. Daì, por
exemplo, as práticas de furto.
No primeiro capìtulo de sua obra ―Mendigos, moleques e vadios na Bahia do
século XIX‖, Walter Fraga Filho aborda as condições socioeconômicas da Bahia na
primeira metade do século XIX. A cidade de Salvador era uma das mais importantes do
período, ficando atrás apenas do Rio de Janeiro. Porém, a prosperidade da cidade se
apoiava em bases muito frágeis, ou seja, a riqueza que havia ai foi ―construìda ao custo
do empobrecimento da grande maioria da população‖. Atento aos estudos de Kátia
Matoso, Fraga observa que cerca de 90% da população baiana vivia no ‗limiar da
pobreza‘. E essa pobreza era, sem dúvida, a responsável pelo grande número de
mendigos nas ruas. Aliás, sem muitas oportunidades, o homem livre pobre podia estar
condenado à mendicância. ―Como ocorreu em outras sociedades escravistas, a economia
baiana mostrou-se pouco flexível à incorporação da mão-de-obra livre ao mercado de
trabalho. Por conta disso, o homem livre assumia a condição de verdadeiro deslocado‖ 7.
A vida econômica da Bahia desse período foi marcada por crises. A carestia de
gêneros de primeira necessidade tornava a população ainda mais pobre. Outros fatores
de empobrecimento foram as epidemias e o clima (período de chuvas excessivas, cheias
e secas constantes)8.
Na década de 1850, quando Alagoinhas se tornara município independente de
Inhambupe, a Câmara de vereadores e a Assembleia Legislativa Estadual discutiram e
aprovaram as normas de regulamentação das terras agrícolas, visando a manutenção da
economia açucareira e fumageira, as mais importantes da região no período. Inclusive
aparece explicitamente a obrigatoriedade de se plantar cana, café e tabaco como gênero
de exportação. Os demais produtos seriam para a subsistência local 9. Ou seja, havia de
fato uma preocupação dos legisladores com a economia agrícola que era mantida
7
FRAGA FILHO, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. São Paulo/ Salvador:
Editora Hucitec; EDUFBA, 1996, p. 22-23.
8
A epidemia de varíola e a pobreza na região aqui estudada (Alagoinhas e Inhambupe) foram os temas
mais frequentes na documentação analisada, nesse caso, as correspondências de juízes e delegados
enviadas ao presidente de província.
9
Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), Seção legislativa, livro 855, 1860.
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principalmente com a mão-de-obra livre e escrava. Além disso, em toda a segunda
metade do século XIX, houve a necessidade de se estabelecer o controle das atividades
nas quais os grupos mais pobres, livres ou egressos da escravidão ocupavam, como a
agricultura, os serviços pesados, os serviços informais, etc. E mais ainda, era necessário
vigiar e, se possível, punir os grupos livres ou libertos considerados ociosos ou vadios.
Os controles iam desde os produtos que deviam ser cultivados na terra, o que podia ser
tirado da natureza (caça, pesca) até os instrumentos de trabalho que se poderia utilizar.
No setor rural, as posturas tratavam mais da proibição de colheitas e derrubadas de
madeiras. As proibições eram acompanhadas de pagamento de multas e em alguns casos
prisões. No setor urbano, nos primeiros anos em que a feira foi implantada, por
exemplo, houve uma preocupação com o uso do carro de mão, pois o legislativo alegava
que ele era usado também em construções e no transporte de lixo, e portanto deveria ser
controlado ou proibido10.
Os códigos de postura das câmaras municipais aprovados no período, nos
permitem analisar como as autoridades viam o trabalho e o trabalhador, e como deviam
ser punidos os ‗desocupados‘, os ‗vadios‘, entre outros grupos inferiorizados. Nessa
documentação, encontramos preocupações principalmente com o setor rural e com a
organização da produção agrícola. Alguns códigos de postura eram enviados junto às
correspondências para o presidente da província.
As correspondências das câmaras e dos delegados pareciam as que não possuíam
contradições, ao contrário das correspondências de juízes.
No período compreendido entre os anos 1862 e 1889, as correspondências da
Câmara Municipal de Alagoinhas tratavam de comunicar a aprovação da postura que
tratava da criação de animais e das plantações, da criação da feira no município; da
epidemia de varíola que assolava a população; de um pedido de verbas para a
iluminação pública, visto o aumento de roubo a casas comerciais à noite; dos conflitos
envolvendo criadores de gado e agricultores (estes reclamavam da falta de cerca,
determinação da postura municipal)11. Semelhantes são as correspondências da Câmara
10
Biblioteca Pública do Estado da Bahia (BPEB), Leis e resoluções da Assembleia Legislativa Provincial
da Bahia, nº 2574 a 2579 no ano de 1887.
11
Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), Seção de Arquivo Colonial e Provincial,
Correspondências da Câmara Municipal de Alagoinhas (período de 1862- 1889) nºs 1241 e 1242.
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de Inhambupe do mesmo período, que tratavam também da criação de animais e da
produção agrícola em aberto e dos conflitos daí gerados; sobre a mudança do local da
feira; sobre os limites do município e pedido para abertura de estrada que ligasse o
município até Alagoinhas12.
Analisamos as correspondências de delegados de Alagoinhas e Inhambupe
enviadas ao presidente de província, do período compreendido entre os anos de 1866 e
1889, e observamos a ênfase dada nos casos de violência que ocorriam na região, bem
como as epidemias que afligiam a população 13. Ao contrário do que se afirmavam os
juízes em alguns momentos, a região não parecia viver momentos de paz durante essas
décadas. Os anos de 1868 e 1869 pareciam dos mais agitados pelo conteúdo das
correspondências: havia informações desde a ocorrência de um motim (com uso de
armas) em Alagoinhas até roubo de cavalos e prisão de escravo por suspeita de
assassinato de sua senhora. Foram solicitados, em muitos momentos, reforços de praças
para a manutenção da tranquilidade pública.
Tratando sobre o recrutamento e envio de praças, o delegado de Alagoinhas, em
20 de Agosto de 1869, fala ao presidente da província que todos os recrutas enviados
dessa delegacia são aptos para o exercìcio, e que só prendia ―aquelles que nenhuma falta
faz a lavoura, por serem indivíduos que vivem vagando, e lá em um ou outro dia
alugando-se e por conseguinte sem meio certo de vida: Por que até hoje tenho sempre
considerado aquelles que vivem empregado no ramo da lavoura‖. Em outras palavras,
havia uma preocupação com a manutenção da mão-de-obra para a lavoura e com a
necessidade de punir as possíveis vadiagens que ocorriam na localidade.
Na década de 1870, as principais queixas feitas ao presidente da província foram
os surtos de varíola que tomavam conta da região e, assim como os juízes, os delegados
pediam providências. Além disso foram solicitados reforços policiais para conter as
desordens.
12
Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), Seção de Arquivo Colonial e Provincial,
Correspondências da Câmara Municipal de Inhambupe (período de 1862- 1889) nºs 1319 e 1320.
13
Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), Seção de Arquivo Colonial e Provincial,
Correspondências de delegados (período 1866-1889), nºs 2995; 2996; 2997; 2998; 2999)
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A década de 1880 também foi marcada por agitações na região, como
mencionam os delegados nas correspondências. São relatados casos de prisão por roubo
em Alagoinhas, prisão de escravos africanos e de livres em Catu e Alagoinhas, sobre os
diversos delitos que ocorriam em Entre Rios. É válido citar uma manifestação de
garimpeiros, ocorrida em Maio de 1885, contra a prisão de um colega de trabalho em
Entre Rios: Em três correspondências enviadas ao presidente da província, o delegado
conta que os ―trabalhadores desordeiros‖ do Timbó, em grupo de vinte, armados,
tentaram assassinar o comandante responsável pela prisão do garimpeiro desordeiro, e
ainda fizeram saques em armazém, além de violentarem mulheres e crianças por onde
passavam. O resultado foi a morte de dois garimpeiros rebeldes. O delegado aproveitou
a circunstância e solicitou o envio de reforço policial, visto que só haviam dois praças
naquele momento.
Em suma, na documentação enviada por representantes do Legislativo e pelos
delegados de polícia não encontramos nenhum tipo de divergência de ideias ou opiniões
entre as autoridades. Ao contrário, foram documentos enviados mais para informar
sobre a situação geral das localidades e fazer pedidos necessários para seu melhor
funcionamento. Só houve um momento em que um delegado enviou uma carta ao
presidente da província afirmando que devolveria uns soldados para a capital, visto que
não havia tanta necessidade, que a localidade vivia numa relativa paz.
As correspondências de juízes de Alagoinhas e Inhambupe enviadas ao
presidente de província no período compreendido entre os anos de 1859 e 1889 são
marcadas por ambiguidade nos discursos, ou melhor, por oscilações no que tange às
informações sobre a situação socioeconômica das localidades.
Parece que havia necessidade de o juiz de Inhambupe sempre lembrar ao
presidente da província que a paz e a tranquilidade reinava na localidade, mesmo não
sendo assim na maior parte das vezes. Em correspondência datada de 05 de agosto de
1859, ele afirma que ―durante o mês preterito, nada occorrera de notavel, que mereça
levar ao conhecimento de V. Exª, permanecendo antes n'ella pás e tranquilidade,
segundo as paticipaçoens officiaes, que tenho recebido das authoridades dos termos e
mesmo pelo que tenho observado‖. No mês de outubro foi enviada outra
correspondência semelhante, dando a mesma informação referente ao mês anterior. Mas
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em junho a situação não parecia das melhores, como conta o próprio juiz João Victor de
Carvalho:
Illmo e Exmo Senh,
Conforme V, Exª me ordenou, tenho a dizer que desde os ultimos 15 dias no
meu termo nada succedeu que me conste, e que eu deva levar ao alto
conhecimento de V Exª em relação a segurança e tranquilidade pública e
individual, alem de que passo a expor.
A carestia de generos alimenticios tem aqui chegado a um preço tal que não
ha noticia de haver sido assim em qualquer outra epocha, e d'ahi resulta que a
fome é geral e que...os furtos se succedem de dia em dia, tal que a pobreza
levada pelo desespero lança mão desse meio reprovado pela lei e pela moral
que pode occorrer a sua necessidade, de que tem resultado varias prisões.
(…)14
No ano de 1860, as correspondências tratavam de passar informações sobre os
crimes ocorridos nas duas localidades (com destaque para o assassinato do alferes João
P. Benevides dentro dos pastos do engenho do seu pai, José P. Benevides) e dos casos
de varíola, além de solicitação de vacinador para a localidade. Aliás, a partir desse ano,
a maioria das reclamações do juiz era sobre a situação crítica de saúde pública e da
pobreza geral.
Illmº e Exmo Senhor,
Tenho o desprazer de levar ao conhecimento de V. Exª da população d´esta
villa soffre desde Março – e augmentado de então pra cá – o terrível flagello
de uma febre de caracter funesto, que faz diariamente muitas victimas.
Recrudescendo sempre – é a pobreza – ordinariamente quem mais soffre a
falta de recursos medicos, e de medicamentos adequados, e reconhecendo eu
que V. Exª se não negará a accudir de prompto aos reclamos e gemidos de
um povo de dicado ao ilustrado Governo de V. Exª, tomei a deliberação de
levar as suas críticas circunstancias ao criterio de V. Exª para providenciar
como for justo.
Vila de Inhambupe 6 de Maio de 1866.
Manuel Pinto de Carvalho
Juiz de Pas em exercício 15
Pareciam comuns nessa localidade desentendimentos entre as autoridades. Em
1872, como consta numa correspondência datada de 8 de Maio, o delegado denunciara o
juiz ao presidente da província por ter abandonado a vila por alguns dias. O juiz alegou
14
Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), Seção de Arquivo Colonial e Provincial,
Correspondências de juízes de Inhambupe, ano 1859, maço nº 2412.
15
Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), Seção de Arquivo Colonial e Provincial,
Correspondências de juízes de Inhambupe, ano 1866, maço nº 2412.
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que, por conta da epidemia de febre, sua família ficou muito doente e ele teve que sair
às pressas para procurar tratamento em outras localidades. Pediu ao presidente da
província que levasse isso em consideração e atentasse para o fato de que o delegado
estava o perseguindo16. No ano de 1975, o juiz denunciou o adjunto da promotoria por
ter protegido réus que respondiam processos de crimes graves e solicitava ao presidente
da província a exoneração do cargo17.
Nas décadas de 1870 e 1880, além das várias queixas sobre as epidemias, a fome
e a pobreza em geral, os juízes reclamavam da falta de segurança necessária para manter
a paz e a ordem na vila. Mencionavam as desordens em dias de eleição, saques,
atentados, entre outros delitos18.
Os relatórios de presidente de província também nos oferecem dados valiosos a
cerca dos problemas da região, bem como as diversas ocorrências registradas pelos
agentes de polícia. Na maioria dos relatórios analisados até então, as ocorrências sobre a
região aqui estudada aparecem minimamente, principalmente referentes a crimes contra
a propriedades (furtos). Aliás, esse tipo de crime sempre apareceu como de menor
importância para as autoridades, mas isso não significa que de fato ele não trouxe
preocupações para proprietários e para as próprias autoridades. É importante frisar que
não era comum, no século XIX, a abertura de processos crimes por furto e, talvez por
isso, também que não os encontramos em grande quantidade nos arquivos nem nos
relatórios de polícia ou de presidente de província. O fato é que nem mesmo as
epidemias que assolavam a população durante décadas na região foram sequer
mencionadas nos relatórios. Parecia que as autoridades do período queriam mascarar
essa realidade.
Enfim, houve alguns momentos em que as autoridades – principalmente juízes
dos municípios e presidente de província – não falavam dos problemas mais sérios que
assolavam a região. Não sabemos ao certo se era algum tipo deu estratégia esconder a
16
Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), Seção de Arquivo Colonial e Provincial,
Correspondências de juízes de Inhambupe, ano 1872, maço nº 2412.
17
Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), Seção de Arquivo Colonial e Provincial,
Correspondências de juízes de Inhambupe, ano 1875, maço nº 2413.
18
Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), Seção de Arquivo Colonial e Provincial,
Correspondências de juízes de Inhambupe, ano 1875, maço nºs 2413, 2415, 2416.
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realidade. Mas sabemos que na maioria das vezes, a situação era crítica e eles percebiam
que era necessário tomar medidas urgentes para tentar resolver os problemas. Podemos
concluir que, de fato, assim como em grande parte do Brasil, na região aqui estudada, as
últimas décadas de escravidão foram marcadas por profundas crises econômicas,
epidemias, rebeliões, deixando as autoridades em constante alerta.
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“PARA COMPREENDEREM OS INTERESSES DA MONARQUIA DE
PORTUGAL NA CONSERVAÇÃO DOS DOMÍNIOS DE ÁFRICA”:
MILITARES, COMÉRCIO DE ESCRAVOS, POVOAMENTO E
TERRITORIALIZAÇÃO (SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII)
Ariane Carvalho da Cruz707
Resumo:
Este trabalho visa discutir algumas políticas propostas para o Reino de Angola na
segunda metade do século XVIII. Abordaremos algumas propostas reformadoras para
esta conquista portuguesa, especialmente as políticas de territorialização, povoamento,
as questões referentes ao comércio de escravos e, por fim, das tropas. Enfatiza-se a
grande importância dos militares para a implementação das reformas propostas. Por
meio da análise de leis, providências e ofícios dos governadores de Angola é possível
ter uma dimensão das principais preocupações para o domínio no referido período.
Palavras-chave: comércio de escravos, território, militares
Abstract:
This paper aims to discuss some policy proposals for the Kingdom of Angola in the
second half of the eighteenth century. Discuss some proposals for reforming this
Portuguese conquest, especially policies toward the territory, population, issues relating
to the slave trade and finally the troops. Emphasizes the importance of the military to
the implementation of the proposed reforms. Through the analysis of laws, measures
and offices of governors of Angola is possible to have a dimension of the major
concerns for the area in that period.
Keywords: slave trade, territory, military
O Império Ultramarino português passou por importantes transformações na segunda
metade do século XVIII. O ponto de viragem importante é a coroação de D. José I como
rei de Portugal, em 1750, e a nomeação de Sebastião José de Carvalho e Melo como
Secretário de Estado do Reino (Primeiro-ministro) no mesmo ano. Este momento é
marcado por uma redefinição do campo de atuação do Estado, com a tentativa de incluir
todos os setores sociais na esfera da soberania, freando tendências desagregadoras do
Estado. Tais transformações também foram importantes em Angola, que desempenhava
papel crucial na manutenção do domínio português na África.
707
Mestranda da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro/Bolsista Capes; Orientador: Roberto
Guedes Ferreira; email: [email protected]
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De acordo com Catarina Madeira Santos, a Coroa portuguesa, preocupada com a
manutenção do tráfico de escravos e das ameaças constantes da presença de estrangeiros
(ingleses e franceses, sobretudo), desenvolveu o programa pombalino de povoamento e
de riquezas. Com a reorientação da política portuguesa, a valorização do controle dos
territórios ultrapassa em importância a do controle das rotas marìtima: ―[...] o Império
Português assumia novas tendências, em que era necessária a efetivação da posse dos
territórios, além da eficaz exploração e controle das riquezas nele existentes‖708. Neste
período, emerge o valor da policia, que se caracteriza como um projeto racional que
visava introduzir, por meio de uma administração ativa, uma nova forma de disciplina
social, contrário ao valor de justiça do Antigo Regime como modelador da ação
política709. As formas de organização e relacionamento tomam novos rumos,
considerando as reformas e novas estratégias de controle político.
O comércio de escravos e a disciplina no sertão
Um dos principais objetivos das reformas pombalinas propostas era a diminuição dos
óbices ao comércio de escravos. O reconhecimento do valor de Angola e da importância
desta atividade é expresso em um corpus documental extenso, a exemplo da Coleção
das providências leys e ordens que restauraram a Navegação, o Commercio, a Policia
e a Disciplina Militar dos Reynos de Angola, Congo e Benguela, Loango e Prezidios
708
WAGNER, Ana Paula. População no Império Português: recenseamentos na África Oriental
Portuguesa na segunda metade do século XVIII. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Paraná,
Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduaçao em História: Curitiba, 2009, p.
19.
709
Ao se tratar das concepções de Antigo Regime e da noção de justiça, Antônio Manuel Hespanha
afirma que a perfeição da Criação estava na heterogeneidade das coisas, já que o mundo é um reino de
diversidade, de diferenças e estas diferenças são hierarquizadas. A sociedade é composta por partes
autônomas e desiguais que são hierarquizadas de acordo com a função que cada um. Trata-se na noção
corporativa da sociedade, ou seja, ―a criação era como que um corpo, em que cada órgão competia uma
função, e que estas funções estavam hierarquizadas segundo a sua importância para a subsistência do
todo.‖ Esta percepção de uma sociedade como um todo ordenado de partes autônomas e desiguais é
utilizada como moldura explicativa do modo de ser das estruturas institucionais modernas, tanto
metropolitanas como coloniais, sendo traduzida pela autonomia político e jurídica dos corpos sociais.
Dentro do paradigma corporativo da sociedade, o rei representava a cabeça do corpo, sendo responsável
por manter a harmonia entre as demais partes e realizar a justiça, atribuindo a cada um aquilo que lhe é
devido de acordo com a sua função 709. O estado do indivíduo é algo natural, é um direito adquirido pelo
tempo e com o reconhecimento do estatuto pelo público. Este estatuto comportava direitos e deveres. A
classificação social é entendida como decorrente da natureza das coisas. HESPANHA, Antônio Manuel.
Imbecillitas: as bem-aventuranças da inferioridade nas sociedades de Antigo Regime. São Paulo:
Annablume, 2010; Cf. também HESPANHA, A.M. e XAVIER, Ângela Barreto. A representação da
sociedade e do poder. In MATTOSO, José (dir.). História de Portugal. O Antigo regime (1620-1807).
Lisboa: editorial Estamba, s/d.
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daquela utilíssima parte da Africa, dos grandes estragos em que Sua Magestade a
achou quando succedeo na Coroa destes reynos e motivos, que constituíram o espírito
de cada huma das ditas Leys, ordens e providencias710. Esta documentação esta
dividida em três partes/épocas: a primeira consta a cópia dos Alvarás de 11 e 25 de
janeiro de 1758 com comentários sobre os motivos de cada uma delas; na segunda
consta um parecer do conde de Oeiras baseado em leis, resoluções, cartas régias e
providências; já a terceira parte trata-se de uma Introdução Prévia sobre as fraudes nas
sobreditas Providências. O livre comércio é a justificativa à edição das leis que
cessaram com o Contrato de Escravos de Angola 711.
A partir da leitura desta fonte é possível encontrar um sentido comum para as
políticas empreendidas por Pombal para Angola, a extinção do regime de contratos do
tráfico de escravos. No entanto, outras matérias faziam parte do programa pombalino
em Angola, a exemplo das políticas de povoamento branco, do desenvolvimento da
agricultura e da melhora nas condições dos meios militares.
A preocupação com a navegação, o comércio, a disciplina militar e a polícia
estão presentes nas leis e ordens direcionadas para toda Angola. A justificativa do
interesse nesta parte da África esta relacionada com a conservação do Brasil, que, neste
momento, necessitava dos braços escravos.712 Além disso, o provimento que se dava as
nações da Europa de alguns produtos como o marfim, ouro e cera bruta também servem
de argumentos suficientes para a manutenção deste domínio. Por isso, Marquês de
Pombal afirma: [...] fácil era de ver que não devíamos abandonar-lhes estas vantagens,
mas antes usar delas como próprias nas nossas navegações da América e Ásia.713
Sendo Angola o principal centro exportador de cativos africanos, que constitui
umas das principais bases, senão a principal, da vida econômica de todo o Reino, não
seria interessante que esta atividade fosse prejudicada, ou melhor, que os lucros da
Coroa fossem afetados por qualquer motivo. Por isso não era bem visto o suposto
710
Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Coleção Conselho Ultramarino (CCU), Angola, códice 555.
711
GUEDES, Roberto. Exóticas denominações: manipulações e dissimulações de qualidade de cor no
Reino de Angola (segunda metade do século XVIII). No prelo.
712
AHU, Angola, códice 555, fl. 1.
713
AHU, Angola, códice 555, fl. 2.
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monopólio dos Jesuítas e contratadores, que dificultavam a entrada de vassalos nos
sertões. O bode expiatório para a incapacidade da administração portuguesa eram os
jesuítas, como se nota na dita Coleção714. Os referidos domínios se encontram:
[...]em uma parte inteiramente fechada para os seus vassalos, em outra parte
conquistados pelos denominados jesuítas a favor de seus particulares, e
sórdidos interesses; e pela outra parte abandonado às Nações estrangeiras,
que a eles iam desfrutar, e neles dispor como na Casa própria[...]715
Para declarar livre a todos os moradores de seus domínios o comércio nos
sertões de Angola na lei de 11 de janeiro de 1758, o Conde de Oeiras faz uma ampla
crítica ao suposto monopólio dos jesuítas e dos contratadores, que dificultava os
negociantes na venda de seus escravos. Até mesmo os negociantes de maiores capitais,
que mandam fazendas por sua conta para Angola, não conseguiam concorrer com o
comércio realizado pelos contratadores716 considerados ―pessoas poderosas, que por
meios indiretos e ilícitos, o monopolizavam com utilidade sua particular em prejuízo
público [...].‖717
Apesar de mencionar apenas os jesuítas e os contratadores como
empecilhos ao livre comércio de escravos, a documentação não alude aos africanos
como obstáculos a este comércio.
A falta de vantagens comerciais motivou a dispersão dos demais homens para
Benguela, para o leste de Luanda, entre os rios Cuanza e Dande, em busca de
alternativas. Mas também puderam consolidar suas posições como capitães-militares.
Com essa dispersão o acesso a barcos estrangeiros foi facilitado. No Dande e no Bengo,
próximo a Luanda, alguns mestiços começaram a atuar e desviar suas caravanas para
poder vender produtos aos estrangeiros, a fim de obter em troca mercadorias europeias
ou asiáticas com preços mais baixos do que os contratadores monopolistas ofereciam
em Luanda718.
714
―[...] um dos primeiros e principais objetivos dos chamados Jesuìtas desde a sua entrada em Portugal
foi a de usurparem e fecharem a beneficio da sua insaciável cobiça todos os sertões dos Domínios
Ultramarinos deste Reyno.‖ AHU, Angola, códice 555, fl. 5.
715
AHU, Angola, códice 555, fl. 2v.
716
AHU, Angola, códice 555, fl. 5.
717
AHU, Angola, códice 555, fl. 66v.
718
MILLER, ―A economia polìtica do tráfico angolano de escravos no século XVIII‖. In Selma Pantoja e
José Flávio Sobra Saraiva (orgs.). Angola e Brasil: nas rotas do Atlântico Sul. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1999, pp. 23 e 24.
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Para propor a liberdade de comércio e diminuir os prejuízos causados pela falta
de domínio nos sertões de Angola, uma das maiores preocupações dos governadores foi
a disciplina na circulação destes locais. Os brancos estavam proibidos de entrar no
sertão e, a partir de 1761, os mercadores só poderiam adentrá-lo com uma guia ou carta
de legitimação passada pela Junta da Justiça. O que motivou estas medidas foi a
indisciplina comercial que constituiu uma das maiores causas das desordens no sertão e
da instabilidade sócio-econômica-religiosa. Segundo Carlos Couto, só procurava o
sertão quem não tinha meios de subsistência na capital, degredados, aventureiros,
vagabundos, ciganos, desertores convergiam para o sertão em busca de meios de
subsistência719.
Nos governos de Antônio de Vasconcelos (1758-1764) e de D. Francisco
Inocêncio de Sousa Coutinho (1764-1772), houve a tentativa de implementar medidas
para regularizar a presença dos portugueses e aliados no interior. Algumas propostas
foram elaboradas para disciplinar o sertão a exemplo do Regimento dos CapitãesMores, de 1765, que dentre outros assuntos, tratava da ausência de harmonia nas
relações comerciais no interior e das desordens nos núcleos populacionais. Nesse
sentido, a política sertaneja foi assentada na ordem, na disciplina e na justiça, o que
garantiria o progresso da província, não disponibilizando lugar no sertão para os
considerados, pelos governantes, como vadios e vagabundos 720.
Na segunda metade do XVIII, a partir do governo de Antônio de Vasconcelos, a
situação de Angola tomaria novos rumos com o lançamento de fundamentos para uma
nova sociedade: sã, ordeira e trabalhadora. Por sua vez, com D. Francisco Inocêncio de
Sousa Coutinho, a organização defensiva do território é modificada, e reformando-se os
presídios, disciplinando as guarnições, satisfazendo os soldos, dentre outras medidas721.
O sertão tornou-se alvo de preocupação porque, no século XVIII, comércio
sertanejo estaria decadente, e a agricultura, praticamente inexistente. Os mantimentos
tinham preços altos, os soldados andavam esfarrapados e famintos e os moradores
719
COUTO, Os Capitães-Mores em Angola no Século XVIII. Subsídio para o Estudo da sua Actuação,
Luanda, Instituto de Investigação Científica de Angola, 1972, p. 134.
720
Ibid., p. 138.
721
Ibid., p. 143.
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estavam arruinados. Mas também havia preocupação com Benguela, já que este local
possuía uma grande relevância, devido a sua situação geográfica, ao tráfico de escravos
e ao comércio de cera e marfim, ou seja, em Benguela giravam todas as atividades ao
Sul do Cuanza722.
A Coroa tentou de toda forma restringir o comércio no sertão, mas não
conseguiu evitar que continuasse a se praticado por homens de negócio, muitos destes
capitães-mores, acusados de todos os abusos. Os capitães-mores eram, nos seus
domínios, diretamente responsáveis pela ordem, mas por razões de conveniência muitas
vezes realizavam suas atividades da forma que era conveniente para estes homens. Por
isso a preocupação dos governadores na intensa e cuidada atividade policial. Carlos
Couto afirma que para D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho o progresso da
província estava assentado na ordem, na disciplina e na justiça e, por conseguinte, ―não
podia haver lugar no sertão para os vadios, para os vagabundos e para os corruptos
que, a cada passo, cometiam os maiores latrocínios contra as autoridades
tradicionais.‖723
Sendo assim, o interesse no comércio de escravos e de outras mercadorias fez
com que muitos comerciantes vasculhassem o sertão em busca de vantagens
comerciais724. Vantagens que nem sempre eram revertidas para a Coroa, por isso toda a
preocupação em disciplinar este local, com efetivo militar, inclusive.
Os militares
Uma questão que merece nossa atenção na documentação analisada é a situação das
tropas e de seus fardamentos, questão há muito tratada nos diversos ofícios entre a
Coroa e Angola.
Em 1755, um parecer do Conselho Ultramarino sobre uma representação do
Governador de Angola, D. Antônio Álvares da Cunha (1753-1758), sobre a situação
722
Ibid., pp. 79-92
723
Ibid., p. 138
724
MILLER, ―A economia política do tráfico angolano de escravos no século XVIII..., pp. 12, 13.
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militar, corrobora a situação de miséria das tropas militares, sobretudo da falta de
armamentos.
O Governador e Capitão General do Reino de Angola em Carta de vinte de
junho do ano passado faz presente a Vossa Majestade por este Conselho em
como por toda a parte daquele Reino se experimentava a falta de tudo o que
lhe era preciso, para o seu Respeito defensa e Conservação. Que pelo aviso
que lhe tinha feito o Capitão mor de Benguela Francisco Cordeiro da Silva
entrara no conhecimento, que aquela Fortaleza estava arruinada pela parte do
mar, não só na cortina, mas tão bem nos baluartes, e que os soldados não
tinham armas, nem havia pólvora na praça[...] 725
Em 1756, em correspondência de D. Antônio Álvares da Cunha enviada para o
Marquês de Pombal as queixas sobre a situação das tropas militares ainda estavam
presentes, evidenciando sua a importância para a manutenção do território. Ao ser
questionado sobre a conveniência da descoberta de ouro nos sertões, o governador
responde:
[...] devo Responder a Vossa Excelência sobre a duvida que me insinua de ser
ou não conveniente o descobrimento do ouro nestes sertões em quais senão
acha-se consolidada a defesa deste País, não deixo de conhecer,
Excelentíssimo Senhor, que na forma em que este Reino se acha sem
fortalezas, sem armas e sem homens que o defendam, mas útil nos seria não
haver hum motivo tal com este que forçosamente e há de causar inveja as
nações marítimas do Norte, e estas não ignoram oz nossos descuidos, e o
desprezo em que temos administrado estes domínios que se assim não
sucedesse poderiam ser mais uteis a Sua Majestade ainda não o vendo neles
ouro do que todos da América; [...] tenho pedido já o Regimento podia estar
completo, e com oficiais capazes, já podia haver duas companhias de Cavalos
e para este fim fiz vir da América os que bastam para se completarem, tenho
presentemente sessenta muito bons e bem tratados, e espero três Navios que
os foram buscar ao Rio de Janeiro e todo este trabalho e despesa esta inútil,
porque não somente não tenho soldados para os matarem, mas nem tenho
quem me trata deles, de que serve presentemente hum Quartel que fiz para a
infantaria, outro que estou achando p.ª aa Cavalaria ambos grandes e
magníficos, se estão sem gente e só povoados de Ratos. As fortalezas
Excelentíssimo Senhor em nenhum tempo hão de defender este Reino porque
toda a sua dilatada Marinha é de mar pacifico bons surgidouros[sic] e de fácil
desembarque, pelo que só cavalaria pode suprir a falta das forças que não
pode os ter, neste ponto, tenho trabalhado com desvelo, e se me tivessem
chegado os soldados que eu tantas vezes tenho pedido estaria este Reino com
Respeito e com bastante segurança enfim Excelentíssimo Snr. não procuras
os descobrimentos do ouro como fica dito e só se empregou o meu cuidado
na conservação e solido estabelecimento das tropas que acham defender por
serem estas as verdadeiras muralhas dos domínios[grifo meu] e a que os
conservam sem contradição em toda a parte com segurança a seu
Senhor[...]726
725
AHU, Angola, 05 de fevereiro de 1755, Caixa 40, documento 6.
726
AHU, Angola, 22 de janeiro de 1756, Caixa 40, documento 74.
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A partir da leitura desta documentação percebemos a fragilidade da ocupação
militar em Angola, na perspectiva da administração reinol. Segundo Jaime Rodrigues, o
governador Miguel Antônio de Melo considera os presìdios de pouca serventia já que ―a
fraqueza dos efetivos militares portugueses e das construções não impedia o
contrabando feito pelos estrangeiros e tampouco quebrava a resistência dos africanos à
interiorização lusa.‖727 A situação dos presídios no século XVIII seria uma das piores
pela falta de ordem, disciplina e material defensivo728.
Na correspondência de D. Antônio Álvares da Cunha729, não se menciona o
problema com os jesuítas ou contratadores, mas da falta de homens, de investimentos
por parte da Coroa na construção de fortalezas, que auxiliariam no melhor
guarnecimento desta região. Esta vulnerabilidade prejudica o desenvolvimento de outras
atividades, a exemplo da procura pelo ouro. Há ainda a falta de experiência militar,
ainda mais em um território estranho onde existem muitas barreiras para adentrar o seu
interior. Ao se queixar da falta de militares em Angola, D. Antônio Álvares da Cunha
consegue destacar a importância destes para a manutenção territorial já que são ―as
verdadeiras muralhas dos domínios‖730. O problema é que o tipo de militar não é
explicitado.
Essa vulnerabilidade explicitada nos governos anteriores pode ser um fator
explicativo para a grande preocupação com os militares nas reformas administrativas
em Angola, já que, para tentar dar corpo ao projeto de territorialização em Angola, o
papel dos militares foi de grande importância, uma vez que um território extenso como
o de Angola precisava de maior controle. De acordo com Roquinaldo Ferreira, o tráfico
de escravos era dependente do controle territorial, e para haver esse controle, era
necessário o apoio dos militares. Assim, a necessidade de reforçar o comércio de
escravos pode ter influenciado nas decisões sobre guerra e controle territorial 731.
727
RODRIGUES, Jaime. De Costa a Costa: Escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de
Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 59.
728
COUTO, Os Capitães-Mores em Angola no Século XVIII..., p. 140.
729
AHU, Angola, 22 de janeiro de 1756, Caixa 40, documento 74.
730
AHU, Angola, 22 de janeiro de 1756, Caixa 40, documento 74.
731
FERREIRA, Roquinaldo A. Transforming Atlantic Slaving: Trade, Warfare and Territorial Control in
Angola, 1650-1800. A dissertation submitted in partial satisfaction of the requeriments for the degree
Doctor of Philosophy in History. University of California: Los Angeles, 2003, pp. 285, 286, 431.
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Percebemos também que a militarização, a guerra e o comércio em Angola eram
processos intrinsecamente ligados.
A política de povoamento
O povoamento também é assunto presente na Coleção com a menção à falta de homens
brancos em Angola. Os brancos idos para Angola foram acometidos por doenças,
estavam mortos, ou espalhados pelos sertões732. A falta de homens brancos em Angola
também pode ser uma justificativa para a presença de negros nas tropas militares, pois
muitos brancos não suportavam o clima angolano e morriam. Tudo isso era visto pelo
militar Elias Alexandre da Silva Corrêa 733 como algo desestabilizador da presença
militar portuguesa, no que o clima também pesava decisivamente.
Elias Alexandre da Silva Corrêa, ao seguir uma carreira militar em Angola, nos
dá uma dimensão de quais objetivos a serem alcançados e uma avaliação plausível do
que era servir neste local. Para o autor, havia uma grande necessidade da presença
militar em Angola, pois este seria um ambiente propício a revoluções, sublevações,
assassinatos, dentre outros problemas; afinal, os africanos seriam propícios a
desobediência e, consequentemente, o ambiente não era favorável aos interesses da
justiça734. Todas estas críticas estão relacionadas à necessidade de um povoamento
branco em Angola.
Conforme Carlos Couto, Angola era o túmulo do homem branco, o que gerava a
falta de gente proveniente de Portugal. Dessa forma os apelos dos governadores pedindo
gente eram constantes, não importando a sua qualidade; todos seriam bem vindos a uma
terra sem moradores.735 No entanto, a qualidade dos homens também era motivo de
queixa entre os governantes. Em 1756, D. Antônio Álvares da Cunha escreveu para o
então Secretário dos Domínios Ultramarinos, Diogo de Mendonça Corte Real, sobre a
732
AHU, códice 555, fl. 56v.
733
Elias Alexandre da Silva Corrêa, natural do Rio de Janeiro, era um militar que serviu em Santa
Catarina. Foi alferes de infantaria de linha em Lisboa e, posteriormente, em 1782, aceitou ir para Angola.
Era um militar instruído que se encarregou de escrever dois volumes da História de Angola. Por meio
dessa obra podemos conhecer alguns detalhes sobre o serviço militar em Angola.
734
CORRÊA, Elias Alexandre da Silva. História de Angola. Lisboa: Coleção Dos Clássicos da Expansão
Portuguesa No Mundo, 1937. Volume I. (Série E - Império Africano), pp. 69, 77.
735
COUTO, Os Capitães-Mores em Angola no Século XVIII..., p. 32.
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infelicidade da falta de homens capazes para os empregos necessários, sobretudo para as
funções militares.736 Na Coleção, o problema da falta de homens brancos também é
exposto e uma das providências em que afirma ser o fim destes problemas o envio de
mulheres brancas ou de ―gente de melhores costumes‖737.
O programa de povoamento estava relacionado à ideia de fundação de uma
sociedade polida nos moldes europeus. Para os administradores alinhados com as novas
diretrizes pombalinas, os africanos não possuíam as ideias de comércio, cultura,
indústria, ou seja, de civilização. Assim, a fundação de uma sociedade estava
relacionada com a criação de uma colônia de povoamento sendo a população um dos
temas centrais deste modelo. Catarina Madeira Santos afirma que o que prevalecia em
Angola era a população negra, pois os brancos que tinham ido para Angola estavam
quase extintos, ou pelas doenças que os acometeram ou pela dispersão pelos sertões 738.
Isso esta relacionado na documentação com os problemas que acometiam o Reino de
Angola, por isso o modelo ideal de civilização só seria difundido pelo povoamento
branco.
Também a instalação de novas povoações constituía uma modalidade original
que estava inserida nas reformas propostas para Angola. O sertão de Benguela e a
jurisdição dos presídios ordenados pela linha do rio Cuanza eram os locais privilegiados
para a construção destas povoações. Estas povoações pagariam o dízimo como já
acontecia nos presídios, o que levaria a um aumento das rendas por meio da cobrança de
impostos e seriam chefiadas por um regente e um juiz ordinário. Além disso, cada
recente povoação dispunha de um juiz, capitão-mor de ordenança, pároco com igreja e
freguesia. O maior direcionamento para a fundação de novas povoações civis foi o
sertão de Benguela, mas o hinterland de Luanda também foi lembrado nesta nova
política, sobretudo nas zonas de circulação comercial739. Tratava-se em suma, da
qualidade das pessoas em pontos chaves da política de povoamento.
736
AHU, Angola, 14 de março de 1756, Caixa 40, documento 119.
737
AHU, Angola, códice 555, fl. 56v.
738
SANTOS, Um governo "polido" para Angola..., pp. 69, 70.
739
Ibid., pp. 154-157.
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Considerações finais
Diante de todas estas propostas e tentativas de reforma, devemos considerar também
que o programa de instalação territorial em Angola possuía muitos limites pela extensão
das terras, pelos costumes coloniais de Antigo Regime, pelas dificuldades de
comunicação, dentre outros aspectos. É importante notar que o direito consuetudinário
era criticado principalmente pelos reformadores, mas em Angola não havia como
escapar das questões locais.
Conforme Ana Paula Wagner houve um distanciamento entre os objetivos do
conjunto de reformas empreendidas no século XVIII e o resultado dessas ações. Limites
foram impostos às ações administrativas, motivados pela distância entre o Reino e seus
domínios ultramarinos, pela descentralização do poder que fazia parte da lógica do
Império e também pelo problema das jurisdições mal definidas. Ou seja, as ações
administrativas sofrem alterações em função das realidades locais 740. Também Carlos
Couto afirma que o modelo da administração portuguesa esteve longe de ser aplicado
fielmente a todos os territórios. Mas foi enriquecido a partir das experiências da vida
local. A adaptação aos condicionalismos locais foi um dos grandes méritos da
colonização portuguesa que tinha uma preocupação constante o bem-comum dos
povos741.
Deste modo, podemos concluir que realizar um projeto reformista em Angola
por meio da territorialização e militarização esbarrou nos direitos costumeiros africanos
e também em forças políticas tradicionais de Antigo Regime, logo, punham barreiras ao
projeto reformista da administração pombalina em Angola e à razão de Estado
pretendida.
740
WAGNER, População no Império Português..., pp. 47, 48.
741
COUTO, Os Capitães-Mores em Angola no Século XVIII..., p. 26.
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“QUARENTA HORAS DE VIBRAÇÃO CÍVICA”: ESTADO NOVO E CINEMA
NO RECIFE
Arthur Gustavo Lira do Nascimento742
Resumo:
Este artigo se propõe a contribuir com o debate sobre a relação História e Cinema, a
partir da análise do documentário ―Quarenta Horas de Vibração Cìvica‖, que retrata a
visita de Getúlio Vargas ao Recife, em outubro de 1940. Procura, simultaneamente,
focar no estudo das principais ações do Estado Novo quanto à política cultural e
propaganda governamental, bem como na forma que este documentário específico
construiu as esperadas mensagens de progresso, trabalho, ordem e paz social
propiciados pelo regime.
Palavras-chave: Cinema, Estado Novo, Propaganda.
Abstract:
This article intends to contribute to the debate on the relationship History and Cinema,
from the analysis of the documentary ―Quarenta Horas de Vibração Cìvica‖, which
portrays the visit of Getúlio Vargas in Recife, in October 1940. Searching for,
simultaneously, focus on the study of the main actions of the Estado Novo as cultural
policy and government propaganda, as well as this specific documentary built expected
progress messages, work, order and social peace propitiated by the regime.
Keywords: Cinema, Estado Novo, Propaganda.
Entre os dias 18 e 20 de Outubro de 1940, Pernambuco recebia a visita do chefe da
nação, Getúlio Dornelles Vargas. O Estado Novo, instaurado em 1937, foi marcado pelo
poder centralizador e a política de massas, caracterizado sob a influência dos regimes
totalitários europeus. A vinda do presidente ao estado foi bastante significativa,
podendo ser inserida no projeto do regime de uma nova forma de sensibilidade política
exaltando o papel do líder e sua relação com as massas. Getúlio Vargas é recebido com
comemorações, festas cívicas e homenagens destinadas ao homem que não só
representava a nação, mas que havia salvado a pátria.
A relação entre Vargas e a sociedade brasileira deste período – bem como a
relação entre cultura e política – é característico do regime autoritário, onde imagens e
símbolos desenvolvem um papel significativo na transmissão das mensagens do
742
Mestrando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE) e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
Orientador: Prof. Dr. Flávio Teixeira Weinstein. Email: [email protected].
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governo743. Através do controle aos meios de comunicação e da propagação de
mensagens de paz e progresso trazidas pelo regime, o Estado Novo buscava legitimação
e o apoio da população brasileira. Nesse cenário, a propaganda política desenvolve um
papel essencial para fortalecer a ideia de unidade e harmonização.
O governo do Estado Novo voltou sua atenção ao controle ideológico,
instituindo pela primeira vez no Brasil uma máquina estatal de propaganda política que
buscava enaltecer o regime e a imagem do próprio chefe da nação. Foi com o rádio e os
jornais que o governo voltou sua maior atenção à propaganda política, bastante
influenciada pela estrutura fascista. Segundo a historiadora Maria Helena Rolim
Capelato: ―No regime fascista, a imprensa tornou-se instrumento do Estado a serviço da
nação: notícia e informação deveriam ser não um fim em si mesmo, mas instrumento de
desenvolvimento e modelagem da consciência nacional‖ 744. Pautada por convicções
semelhantes, a imprensa brasileira acabou por reproduzir os discursos varguistas,
divulgar os feitos do governo e exaltar a imagem de Vargas, estabelecendo relação
muito próxima entre censura e propaganda745.
Influenciados pelos regimes totalitários, o Estado Novo brasileiro teve a censura
e a propaganda como forma de controle social. O regime, nascido de um golpe, por um
lado precisava inibir qualquer posição contrária ao governo. Por outro, buscava o apoio
das massas através da propaganda política.
Fosse por pressão do governo, troca de favores ou concordância, a imprensa de
todo o Brasil foi cooptada a garantir os interesses e pontos de vista do regime 746. O
jornal Diário de Pernambuco, associado ao grupo de Assis Chateaubriand, antigo
opositor do grupo político vitorioso no Movimento de 1930, mas que acabará por
enaltecê-lo durante o Estado Novo, reverenciava a vinda do presidente ao estado. Nas
páginas do dia 16 de Outubro de 1940, na semana da vinda do chefe da nação, o jornal
notificava a visita com a manchete ―Pernambuco receberá, sexta-feira (18), o chefe do
governo‖747. O mesmo acontecia no jornal Folha da Manhã, que por sua vez, era ligado
743
CAPELATO, Maria Helena Rolim. Multidões em cena: propaganda política no varguismo e no
peronismo. 2º edição. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 38.
744
Ibidem, p. 85.
745
Ibidem, p. 86.
746
Ibidem, p. 87.
747
Diário de Pernambuco, Recife, 16 Out. 1940, p 3.
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diretamente ao interventor pernambucano, Agamenon Magalhães. As matérias
confirmavam a hora da chegada, o trajeto e convidava a população do Recife a recebêlo no Campo do Ibura, no Recife, no dia 18. Diversos grupos sociais fizeram questão de
ressaltar o convite, atenuando também as celebrações aos quais Getúlio Vargas iria
participar junto à sociedade recifense.
As cerimônias cívicas tornaram-se um marco do governo de Vargas. A
propaganda política instituída no início do Estado Novo buscava exaltar as
sensibilidades, provocar paixões e o entusiasmo, característico não apenas do regime de
Vargas, mas de diversos regimes autoritários do Século XX748. O imaginário, como o
conjunto de imagens guardadas no inconsciente coletivo, explorou significativamente o
nacional, nos quais o papel desempenhado pelos meios de comunicação e da arte foram
fundamentais. Aspectos expressivos para analisar a cultura política e ideológica do
Estado Novo.
Os jornais, o rádio, o cinema, o teatro e a literatura vêm ocupando uma posição
significativa na historiografia, pois se tratam de veículos de comunicação de massa
profundamente ligados ao lado simbólico, fortalecendo a construção e afirmação de um
imaginário, gerando representações coletivas que traduzem a maneira como grupos
sociais se relacionam. Esses veículos também se tornam relevantes para a compreensão
da estrutura política. Para Roger Chartier, as representações do mundo social são
expressas por discursos que tendem a impor alguma autoridade749. O real é a forma com
que a realidade é construída. São sempre determinadas pelos interesses de grupos que as
forjam. As imagens edificadas pelo governo de Vargas, com a ajuda de grupos
específicos da comunicação e das artes contribuíam para o fortalecimento da ideia
criada de um caminho apropriado para a sociedade, representando o papel de um Estado
centralizado, forte e consoante com a nação, gerando práticas sociais que sustentaram o
controle social.
Por essas condições, esses veículos tornaram-se alvo da atenção do regime
varguista. O controle aos meios de comunicação tornou-se base para o projeto social e
748
De acordo com Capelato: ―As emoções tendem a se exacerbar nos espetáculos festivos organizados
pelo poder. A teatrocracia regula a vida cotidiana dos homens em sociedade, afirma George Balandier.
Nas políticas de massa as potencialidades dramáticas são mais fortes e o mito da unidade ligado à imagem
do lìder torna o cenário da teatralização especialmente adequado ao convencimento‖. CAPELATO,
Maria Helena Rolim. Op. Cit., p. 41.
749
CHARTIER, Roger. História Cultural – Entre Práticas e Representações. Tradução: Maria Manuela
Galhardo. Lisboa, Difel/Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. 1988, p. 17.
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para a propaganda política. Não por acaso, a vinda de Vargas foi acompanhada de perto
por cinegrafistas pernambucanos e cariocas que registravam os feitos do governo em
Pernambuco. As quarenta horas de contato do chefe da nação com as massas são
exaltadas através de uma vibração cívica, na montagem produzida pela Meridional
Filmes. Dentro dos relatos sobre a programação do presidente no estado, sobressaem os
informes e regras quanto a essas celebrações. Na edição do dia 15 de Outubro de 1940
do Folha da Manhã, destaca-se:
Filme sobre a chegada do presidente [manchete]: O Departamento de
Imprensa e Propaganda do Rio de Janeiro filmará todos os aspectos da
chegada. A Meridional Film desta cidade também preparará dois ou três
films, fazendo, para isso, funcionar quatro operadores. Estes trabalhos serão
feitos em cooperação com a Directoria de Estatística, Propaganda e
Turismo.750
A notícia também foi reiterada no dia seguinte pelo Diário de Pernambuco.
Infelizmente, até onde se sabe, dos dois ou três citados no jornal apenas um filme fora
produzido pela Meridional sobre a vinda do presidente, intitulado Quarenta Horas de
Vibração Cívica, um documentário sobre as realizações do chefe da nação no estado de
Pernambuco. Um dos primeiros trabalhos cinematográficos com sonorização do estado.
A produção de documentários em curtas metragens era comum durante o Estado
Novo. A relação de Getúlio Vargas com os cineastas brasileiros começou antes mesmo
do regime. Quatro momentos foram decisivos: Primeiramente, em 1932, durante o
Governo Provisório, quando Vargas instituiu a Lei de Obrigatoriedade de exibição dos
filmes nacionais751; depois, em 1936, com a criação do Instituto Nacional de Cinema
Educativo (INCE); e por último, especialmente, a criação do Departamento de Imprensa
e Propaganda (DIP).
No cenário mundial, o cinema foi visto por muitos governos como um
instrumento político, o Estado vai se utilizar da sétima arte como um forte veículo de
propagação ideológica. Segundo as perspectivas do historiador Marc Ferro, ―(...) desde
que os dirigentes de uma sociedade compreenderam a função que o cinema poderia
750
Folha da Manhã, Recife, 14 Out. 1940, p. 3.
751
Fortalecida em 1934, quando foi regulamentado a ―lei do curta-metragem‖, que dava obrigatoriedade a
exibição de um curta-metragem brasileiro em todas as sessões do país. OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Sinais de
Modernidade na era Vargas: vida literária, cinema e rádio. In: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília
de Almeida Neves. (org.) O tempo do nacional-estatismo: do início da década de 1930 ao apogeu do
Estado Novo. 5º ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 336.
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desempenhar, tentaram apropriar-se dele e pô-lo a seu serviço (...)‖752. Durante a
Segunda Guerra Mundial, a utilização do cinema como ferramenta a serviço dos
Estados nacionais vai se tornar uma prática bastante comum. Os Estados Unidos
produziram vários filmes de caráter patriota e antinazista que serviram de propaganda
de guerra, enquanto que na Alemanha nazista, o próprio Hitler financiou produções de
diversas películas que enalteciam o nazismo 753. O Estado se apropriava do cinema, para
propagar seus ideários, influenciar e ter o apoio das massas754.
Getúlio Vargas se mostrou favorável aos anseios do cinema nacional. O que
fortaleceu sua relação com os cineastas brasileiros. Enquanto que a República Velha
mantinha-se fechada às reivindicações da classe, a lei nº 21.240 de 4/4/1932, que
obrigava a exibição de filmes nacionais contribuiu para que o presidente fosse
considerado o ―pai do cinema brasileiro‖. Porém, a maior aproximação durante esse
período entre o cinema brasileiro e o Estado, entretanto, foi a criação do INCE. O órgão
iria determinar a principal proposta do novo regime aos meios de comunicação: a
criação de um cinema nacional doutrinário.
O INCE incentivou execução de filmes e documentários de caráter educativo. A
criação de um cinema ―educativo‖ era uma iniciativa do governo para que o cinema
retratasse valores da cultura brasileira como sua história, sua geografia e seus artistas,
fortalecendo assim a proposta de uma unidade nacional. O cinema servia assim como
uma ferramenta de criação de identidade, característico da política propagandística do
Estado Novo755. Deve-se ressaltar que: ―Nas perspectivas de Getúlio Vargas, o cinema
752
FERRO, Marc. Cinema e história. Trad.: Flávia Nascimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010, p. 16.
753
Leni Riefenstahl, famosa cineasta alemã, por exemplo, foi convidada pelo próprio Hitler a filmar o VI
Congresso do Partido Nazista, Segundo Eksteins: ―(...) a cineasta (...) evocou a ‗beleza‘ do nazismo,
provinha de uma fascinação conjunta pela ‗arte‘ do controle social‖. EKSTEINS, Modris. A sagração da
primavera: a grande guerra e o nascimento da era moderna. Tradução de Rosaura Eichenberg. Rio de
Janeiro: Rocco, 1991. p. 406.
754
No caso da Alemanha Nazista, segundo Alcir Lenharo: ―A escala eleitoral dos nazistas teve muito a
ver com a utilização do cinema, 'um dos meios mais modernos e científicos de influenciar as massas', de
acordo com a afirmação de Goebbels, através de seu 'efeito penetrante e durável', confirmou Hippler,
diretor da Seleção Cinematográfica no Ministério da Propaganda, do próprio Goebbels‖. LENHARO,
Alcir. Nazismo: ―o triunfo da vontade‖. 3º edição. São Paulo: Ática, 1991. p. 52.
755
―Foram produzidos ao longo de 1936 a 1945 cerca de 233 filmes pelo INCE. A produção do instituto
inclui filmes de caráter instrutivo (...). Os anos heroicos do INCE, tendo Roquette-Pinto na direção,
reuniam uma equipe de profissionais dispostas a tornar realidade o projeto de seu diretor: fazer um
cinema que fizesse o Brasil conhecido dos próprios brasileiros‖. OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Sinais de
Modernidade na era Vargas: vida literária, cinema e rádio. In: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília
de Almeida Neves. (org.) Op. Cit., p. 336.
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constitui um dos ‗mais úteis fatores de instrução de que dispunha o Estado moderno‘,
educando ‗sem exigir o esforço e as reservas de erudição que o livro requer e os
mestres, nas salas de aula reclamam‘‖756.
As películas produzidas com o apoio estatal eram, em sua grande maioria, a
própria visão do Estado Novo sobre a sociedade brasileira, onde os discursos getulistas
eram propagados757. Tal relação era um reflexo também da aproximação ideológica do
governo varguista com as tendências europeias, nazifascistas. Que também pode ser
vista na criação de órgãos específicos ao controle aos meios de comunição e a
propaganda governamental758.
Criado em 1939, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) buscou
fortalecer o controle e a manutenção da sua política propagandística, substituindo o
antigo Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC). Segundo Sidney
Ferreira Leite, seu principal objetivo era: ―sistematizar a propaganda e exercer o poder
de censura aos meios de comunicação‖759. Uma das realizações mais significativas do
órgão no cinema foi o Cinejornal Brasileiro, documentários exibidos obrigatoriamente
antes de cada sessão que traduzia as principais realizações do Estado Novo, como
propaganda do regime760. Noticiários oficiais do governo federal, exibidos no cinema
como uma espécie de trailer, esses documentários foram uma das formas de propaganda
mais vigorosas do Estado Novo. ―Mostravam as comemorações e festividades públicas,
756
ALMEIDA, Cláudio Aguiar. Cinema como agitador de almas: Argila, uma cena do Estado Novo. São
Paulo: Ed. Annablume, 1999, p 77.
757
Em O cinema como ―agitador de almas‖: argila, uma cena do Estado Novo, Cláudio Aguiar Almeida
analisa esta questão a partir do filme Argila (1940) do diretor Humberto Mauro. ALMEIDA, Cláudio
Aguiar. Cinema como agitador de almas: Argila, uma cena do Estado Novo. São Paulo: Ed. Annablume,
1999.
758
Em março de 1933, foi criado na Alemanha Nazista o Ministério de Informação e Propaganda Alemã,
que possuía um departamento específico destinado ao cinema, o qual inspiraria a política cultural e
propagandística do governo brasileiro. ALMEIDA, Cláudio Aguiar. O Cinema Brasileiro no Estado
Novo: o diálogo com a Itália, Alemanha e URSS. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, Nº 12, 121129, jun. 1999, p. 123.
759
LEITE, Sidney Ferreira. Cinema Brasileiro: das origens à Retomada. São Paulo: Editora Fundação
Perseu Abramo, 2005.
760
O Cinejornal Brasileiro é uma das coleções mais significativas presente no acervo da Cinemateca
Brasileiro (São Paulo).
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as realizações do governo e os atos das autoridades‖761. Significou também, uma
aproximação cada vez maior entre cineastas, produtores e o Estado brasileiro.
Influenciados pelos Cinejornais, muitos interventores estaduais contratavam
produtoras locais para realização de documentários sobre seus governos. Isso acontecia
especialmente mediado pelo Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda (DEIP),
que nos outros estados, não possuía um aparato técnico tão bem equipado quanto à do
Distrito Federal. Em Pernambuco, cineastas como Manuel Firmo da Cunha Neto esteve
ao lado do interventor Agamenon Magalhães produzindo comerciais e propagandas que
exaltavam os feitos do presidente e do líder do Executivo pernambucano.
Firmo Neto, como era conhecido, foi um dos principais nomes da trajetória do
cinema pernambucano. Acriano nascido em Providência em 1917 chegou ao Recife
durante o primeiro ano de regime estado-novista. Dois anos depois, em 1939, passou a
trabalhar na Companhia Cinematográfica Meridional Filmes, onde realizou trabalhos de
fotografia, direção e cinegrafia. No início da década de 1940, junto a Meridional, Firmo
Neto realizou alguns experimentos de sonorização dos filmes, que serviram de
inspiração para a concretização do primeiro longa-metragem sonoro de Pernambuco.
Firmo Neto e o também cineasta Newton Paiva foram os precursores deste cinema
sonoro no estado produzindo o longa-metragem Coelho Sai, em 1942, que,
infelizmente, teve sua única cópia perdida em um incêndio762.
Dentre os seus maiores registros destinados ao Estado Novo, encomendadas pelo
governador de Pernambuco Agamenon Magalhães, estão a filmagens do primeiro
calçamento da Avenida Caxangá, em 1940, no Recife, e a visita de Getúlio Vargas a
Pernambuco, também em 1940, que gerou o curta-metragem sonoro Quarenta Horas de
Vibração Cívica. Trata-se de um material realizado em 35 mm, em preto e branco,
produzido pela Meridional, sob a direção de Firmo Neto.
O filme retrata a vinda do chefe da nação a Pernambuco, de 18 a 20 de outubro
de 1940, portando mensagens de progresso, trabalho, ordem e paz social propiciada pelo
Estado Novo. Compõem imagens desta obra o desfile cívico-militar, recepção festiva e
calorosa do povo pernambucano ao presidente, sua visita à Penitenciaria Agrícola de
761
CAPELATO, Maria Helena Rolim. Op. Cit., p. 106.
762
FIGUEIRÔA, Alexandre. Cinema pernambucano: uma história em ciclos. Recife: Editora FCCR,
2000, p. 30.
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Itamaracá, a inauguração de sede da Destilaria Central do I.A.A., a homenagem de
operários da Cia. de Tecidos Paulista e a saudosa despedida.
As imagens compactuam de forma similar com as ideias propostas pelos regimes
autoritários do século XX para uma propaganda doutrinária. O despertar nacional foi
mobilizado para as massas através da propaganda. A trajetória de muitos cineastas do
Estado Novo está ligada à construção de uma identidade nacional produzida por um
discurso hegemônico controlado através dos meios de comunicação. Nesse momento, o
governo reconhece a importância de tais veículos, e os utiliza invocando no cinema, por
exemplo, o papel de formador e propagador da nacionalidade.
Um dia antes da chegada, associações, cooperativas, sindicatos e clubes
convidavam os seus membros nas páginas dos principais jornais a participar das
homenagens que seriam prestadas. Assim como na obra alemã, a chegada de Vargas
também se deu como um messias que descia dos céus: ―Precisamente às 16h, surgiu ao
sudeste do campo do Ibura o aparelho em que viajava o presidente da República. Após
cruzar o Recife, juntamente com outros aparelhos do exército. Logo depois, retornava
ao Ibura, realizando sua aterrissagem‖ 763. O povo pernambucano recebia com
entusiasmo o chefe da nação no campo do Ibura. A recepção foi feita pelo o Interventor
federal e outras autoridades, junto a representações de todas as classes. Fazer parte
dessas celebrações era um ato de cidadania de qualquer bom brasileiro. O Folha da
Manhã referenciava que mais uma vez, Pernambuco não negava sua tradição heroica de
civismo: ―O Recife se tornou o eco consciente da voz da nação para apontar no
presidente Vargas o restaurador de nossas tradições e o homem providencial cujo
governo nos conduz à posse tranquila do nosso patrimônio de grandezas e de
progresso‖764.
A entrada triunfal do presidente na cidade se deu pela Av. Boa Viagem, onde foi
recebido pelas famílias pernambucanas. Na praça de boa viagem foi armado um
imponente arco recoberto de uma vegetação verde e amarela. De um lado estava o
retrado de Getúlio Vargas e do outro do interventor Agamenon Magalhães, ambos em
alto relevo e encimados por uma bandeira nacional. ―Quando o presidente atravessou o
763
Folha da Manhã, Recife, 19 Out. 1940, p. 3.
764
Folha da Manhã, Recife, 19 Out. 1940, p. 16.
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arco triunfal, dois mil pombos correios foram soltos, enquanto salvas de foguetes
estrugiam e a multidão batia palmas‖765.
O cortejo seguiu pelo bairro do Pina, Rua Imperial, Rua da Concórdia, Praça
Joaquim Nabuco, Rua Nova, Praça da Independência, Rua do Imperador e Praça da
República, de onde o Vargas seguiu para o Palácio do Governo. A concentração popular
se manteve na praça. Uma cerimônia oficial saudou o presidente, com um discurso
caloroso feito pelo professor Andrade Bezerra766. Durante a noite, na Praça 13 de Maio,
a banda de música da Força Policial realizava um concerto em homenagem ao chefe da
nação, tocando, dentre outras composições, famosa sinfonia ―Guarany‖, de Carlos
Gomes.
Com o concerto, encerravam-se as primeiras oito horas de vibração cívica.
Tendo continuidade no dia 19, em que ao longo de todo o dia Getúlio Vargas visitou o
Cabo, Itamaracá e retornou para o Recife participando da inauguração da Escola
Superior de Agricultura. Durante a noite, o presidente participou de um banquete oficial
no Clube Internacional, reunindo as principais autoridades e membros da elite
pernambucana.
As matérias dos jornais recifenses que falavam sobre a vinda do presidente a
Pernambuco ressaltavam os benefícios que Vargas trouxe ao poder ao longo dos 10
anos que estava no Governo – de 1930 a 1940. O Diário de Pernambuco traz em uma
das reportagens do dia 18, duras crìticas ao liberalismo ―individualista‖, referenciando
como a nova ordem salvara a Nação. Inclusive, exaltando o Pernambuco do Estado
Novo, através da figura de Agamenon Magalhães. Tais temas também podem ser vistos
nas matérias da Folha da Manhã. O discurso da imprensa corrobora com aquelas
trazidas em Quarenta Horas de Vibração Cívica.
A trajetória da comitiva presidencial em Pernambuco esteve acompanhada dos
jornalistas, radialistas, fotógrafos e cinegrafistas. Atentos à construção de imagens não
apenas positivas, mas glorificantes do Estado Novo. Dentre os acertos feitos pelo
governo, cineastas e fotógrafos estavam à necessidade de se representam um Recife
765
Folha da Manhã, Recife, 19 Out. 1940, p. 3.
766
Diário de Pernambuco, Recife, 19 Out. 1940, p. 3.
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moderno, com o esplendor de suas praças, ruas e pontes, sendo vetadas as imagens de
seus becos e mocambos, associadas à velha República. As imagens no documentário da
Meridional Filmes e em outros realizados pelo país ressaltam os aspectos de um cenário
urbano bem representado. Ao falar sobre os documentários, tendo como palco a
metrópole urbana, Eduardo Morettin nos revela que:
[...] há que se verificar de que maneira a cidade e seus eventos são
representados como espaço de celebração da modernidade e como espaço em
que se reproduz uma clara divisão social entre o que é objeto primeiro do
olhar da câmera (teatros, hospitais e edifícios públicos identificados com o
progresso e o bom gosto burguês) e aquilo que pela sua presença institui um
elemento de tensão, ou seja, a presença de elementos populares. 767
A produção da Meridional corresponde a um importante testemunho das
experiências vividas durante o período. Quarenta Horas de Vibração Cívica, trata-se de
produto da cinematografia do Estado Novo sobre o Estado Novo. Porém, devemos
considerar que os feitos realizados naqueles dias estavam destinados ao cinematógrafo.
O espetáculo das imagens sustenta em sua essência a representação da própria
representação, a emersão da ―verdade‖ dentro de uma experiência encenada.
Amparando uma compreensão de verdade que é ela própria fruto de um ou mais
discursos que proporcionam um efeito de verdade no qual os grupos sociais
compreendem a realidade768.
As cenas que seguem Quarenta Horas de Vibração Cívica nos permite o
reconhecimento de uma política de massas, que caracterizou o Brasil nas décadas de
1930 e 1940. Os descolamentos e controle social impostos pelo novo regime
conquistaram o apoio da grande população, penetrando não apenas em determinados
grupos ou classes, mas integrando as massas. Atuando em diversas camadas da
sociedade e suas produções, como a própria arte. O filme nos mostra a representação
criada não apenas de um líder político, mas de um messias pronto para salvar o país,
trazendo-lhes força, ordem, paz e progresso. As imagens são carregadas por inúmeros
767
MORETTIN, Eduardo. Dimensões históricas do documentário brasileiro no período silencioso. In:
MORETTIN, Eduardo; NAPOLITANO, Marcos; KORNIS, Mônica Almeida (org..). História e
Documentário. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012.
768
Aplicam-se aqui as propostas do filósofo francês Michel Foucault: ―Vivemos em uma sociedade que
produz e faz circular discursos que funcionam como verdade, que passam por tal e que detêm, por este
motivo, poderes especìficos‖. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução: Roberto Machado.
Rio de Janeiro: Graal, 1979. p. 231.
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símbolos que ressaltam uma arquitetura de significados fortalecedora do Estado Novo
diante de um imaginário social.
O filme é por sua natureza a invenção de um próprio tempo-histórico, refletindo
as considerações de Jacques Rancière769, todo o filme roda em função de um cenário
construído. Esse limiar põe em cheque considerar as fronteiras existentes entre a
concepção do documentário como realidade em contraponto com o ficcional. O próprio
Estado Novo privilegiava as imagens documentais, das realizações e atos do governo,
baseados numa perspectiva positivista de realidade770. Partindo de Robert A.
Rosenstone, é relevante pensar que um filme, assim como qualquer produção
historiográfica escrita, não é o real. Os filmes, como os livros, pertencem ao campo das
representações, são produções que ―referem-se a acontecimentos, momentos e
movimentos reais do passado e, ao mesmo tempo, compartilham do irreal e do
ficcional‖771
O documentário também compartilha com diversos elementos do ficcional. A
montagem de seus cenários e de sua própria narrativa como estrutura de um discurso
que vai além do real pode exprimir aquilo que referenciado por Rosenstone, John
Grierson chamou de ―um tratamento criativo da realidade‖772. Semelhante à importância
da literatura no campo da nova história cultural, o gênero cinematográfico também se
torna uma leitura da visão de mundo de como grupos sociais davam significado à
realidade.
Trazendo a discussão do cinema pernambucano durante o Estado Novo, além de
explorar as lacunas existentes sobre o tema, este trabalho se propõe a compreender o
regime sobre novos ângulos, como nos indica Maria Helena Rolim Capelato 773.
769
RANCIÈRE, Jacques. A fábula cinematográfica.Tradução: Christian Pierre Kasper. Campinas, SP:
Papirus, 2013.
770
Capelato aplica essas considerações ao uso das imagens fotográficas, referenciando uma preferência há
uma chamada ―representação objetiva da realidade‖, que segundo a autora, talvez possa ser explicada
como um traço da cultura brasileira, fortemente marcada pelo positivismo. O mesmo se aplica em nosso
trabalho, a questão das imagens documentais, ainda mais sedutoras com a massificação do cinema.
CAPELATO, Maria Helena Rolim. Op. Cit., p. 55.
771
ROSENSTONE, Robert A. A história nos filmes, os filmes na história. Tradução: Marcello Lino. São
Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 14.
772
Apud ROSENSTONE, Robert A. Op. Cit., p. 111.
773
CAPELATO, Maria Helena R. Estado Novo: Novas Histórias. In: FREITAS, Marcos Cezar de (org.).
Historiografia brasileira em perspectiva. 2ª edição. São Paulo: Contexto, 1998, p. 191.
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Quarenta Horas de Vibração Cívica é um importante registro da cinematografia
pernambucana, como uma construção do imaginário estado-novista, nos fornecendo
interessantes leituras sobre a posição política e social, dispondo da possibilidade de
pensar suas dinâmicas e representações. Assim como toda produção humana, os filmes
são frutos de seu tempo e dos interesses dos grupos que os forjam. Consideram-se,
assim, as relações entre o Cinema e História importantes para um novo fazer
historiográfico promulgado ao longo do século XX, cuja interdisciplinaridade entre
esses referidos campos têm nos proporcionado novos olhares, novas coordenadas, novas
maneiras de pensar o homem e seus espaços.
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MEMÓRIA E PRÁTICAS MUSICAIS DE PIABETÁ (RJ)
Artur Costa Lopes774
Resumo:
Este artigo descreve parte da pesquisa, em andamento, realizado no CIEP 127,
município de Magé (RJ), com o principal objetivo de estudar a memória musical do
bairro de Piabetá, tal como analisar e comparar suas práticas musicais atuais através de
uma pesquisa ação. Com base em estudos da etnomusicologia foi apresentado ao grupo
de 8 alunos possibilidades de se realizar um estudo dos sons produzidos no Bairro.
Palavras-chave: práticas musicais; Piabetá; memória.
Abstract:
This article describes part of the project, that has on progress at this moment. It has
done in CIEP 127, in the city of Magé (RJ), with the main intention to study the musical
memory of the Piabetá neighborhood, such as analyze and compare its current musical
practices through an action research. Based on studies of ethnomusicology, it was
presented to the group of 8 students opportunities to conduct a study of the sounds
produced in that district.
Keywords: musical pratices; Piabetá, memory.
Um pequeno debate sobre a relação entre música e história
Antes de apresentar como está sendo realizado o projeto proposto, é importante destacar
os objetos motivadores da escolha de uma prática transdisciplinar que abrange música e
história, sociologia, filosofia, antropologia, literatura e psicologia, além de seu contato
com a comunidade do entorno escolar.
A etnomusicologia é o resultado de um dos encontros entre as ciências humanas
no caso, a antropologia e a música (MENEZES BASTOS, 1995). Ela admite as
perspectivas disciplinares constituintes (antropologia e música), o que parece indicar
que o encontro supracitado é inesgotável, nele os dois pontos de vista nunca se anulam
(MENEZES BASTOS, 2004). Essa ciência vem ganhando bastante força no Brasil
desde a década de 80, a partir do momento que os estudos sobre música começaram a
privilegiar uma visão mais crítica sobre o fazer musical, ou seja, a relação da música na
cultura que está inserida tal como o papel do artista na sociedade.
774
Professor de música na Rede Municipal do Rio de Janeiro e de história na Rede Estadual. Pósgraduando em História na UCP. Email: [email protected]
395
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A afirmação da etnomusicologia no Brasil ganhou mais destaque em 2001,
quando foi criada a ABET (Associação Brasileira de Etnomusicologia). Isso iniciou um
processo revolucionário no campo dos estudos musicais tal qual (comparando, a grosso
modo) quando surgiram os primeiros artigos publicados pela Escola dos Annales na
área da história, que promoveram uma ruptura com a história política tradicional,
ampliando o campo de pesquisa e promovendo um maior diálogo do historiador com
outras disciplinas e fontes (BURKE, 1990)
Dessa forma, como afirmam Ana Assis, Flávio Lana e Marcos Filho, em artigo
intitulado Música e história: desafios de uma prática interdisciplinar,
Pensar a música é, assim, pensar sempre uma conjuntura. Por isso, de certo
modo, o terreno interdisciplinar é o mais propício para o tratamento da
música, o que não quer dizer que ele não traga consigo dificuldades
específicas. São justamente elas que conduzirão a sequência desta discussão
(ASSIS; LANA; FILHO, 2009, p. 19).
Portanto, nesse campo complexo, a verdadeira interseção de métodos e saberes,
a relação Música e História se apresenta como uma das articulações possíveis,
cujos desafios maiores podem ser resumidos em duas direções: 1) levar em
conta e absorver os avanços das demais práticas investigativas existentes no
campo musical; 2) evitar simplesmente amoldar o fenômeno musical a
procedimentos costumeiros da prática historiográfica, como se a música não
tivesse suas relevantes especificidades (ASSIS; LANA; FILHO, 2009, p. 21).
Sendo assim, um estudo que tenha como objetivo aliar a pesquisa histórica com
a musical não pode ter como frutos apenas dados estatísticos, deixando que o leitor tire
suas próprias conclusões, mas sim novos temas para debates, tanto nos agentes
produtores quanto os que desfrutarão da pesquisa posteriormente.
Por isso, essa pesquisa visa não retroceder a estudos com essas características
―ultrapassadas‖, entretanto sem desvaloriza-las, visto que são de suma importância para
o conjunto da obra.
Metodologia e referencial teórico
Com relação à metodologia utilizada, houve a opção por uma abordagem da
microhistória, inspirada nos escritos de Giovanni Levi (LEVI, 2000) e Carlo Ginzburg
(GINZBURG, 1986. Esses dois autores foram importantes para fazer o recorte sobre o
contato da música com a comunidade local, suas relações de pertencimento, além da
396
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utilização da história oral que auxiliou bastante na sistematização de interpretações
diferentes sobre como reage essa sociedade.
Na área da Etnomusicologia utilizamos os trabalhos de Samuel Araújo
(ARAUJO, 2006) e Sinésio Silva (SILVA, 2011), que realizam projetos semelhantes na
comunidade da Maré, no município do Rio de Janeiro. Esses associaram a prática da
dialógica de Freire, além da bagagem que o aluno trás de sua experiência de vida
(FREIE, 1996) aliada ao conceito de paisagem sonora 775 de Schafer (SCHAFER, 1991).
Além desses dois citados, foram de suma importância os textos de Bruno Nettl
(NETTL, 2002) e Francisca Marques (MARQUES, 2003) tanto para a construção de
debates para o encontro quanto para enriquecer a parte teórica do trabalho através de
outras experiências, como no recôncavo da Bahia.
Alguns pontos tiveram bastante relevância nos debates. Onde se pode destacar
os conceitos de cultura, memória. Para tal nos baseamos em alguns autores, também
fora da área da etnomusicologia. Esses foram: Jô Gondar (2005) e Halbwachs (2006).
É importante salientar que o grupo que participa da pesquisa é composto por
alunos dos segundo e terceiro anos do ensino médio776, que, voluntariamente, aceitaram
o convite para ingressar na pesquisa, seja por afinidade com a disciplina história, por
gostar de música ou por estar exercendo uma atividade que ele considera valorosa
dentro da escola.
A opção do desenvolvimento do projeto se encaminha através da pesquisa ação,
onde todos (o professor e o grupo de alunos), ao passo que participam dos estudos de
campo, também, traçam metas e organizam reflexões sobre o que estão desenvolvendo,
onde o professor-mediador auxilia em questões como disponibilização de materiais não
encontrados pelos alunos, elaboração de entrevistas, organização das questões centrais
da pesquisa e relevância da mesma para o local e as pessoas do bairro.
1 Esse autor afirma, resumidamente, que qualquer som é matéria prima para o fazer musical, e que esse
material sonoro, por estar presente constantemente em nosso cotidiano, é mais íntimo para o nosso
domínio.
776
Os alunos são: Adriele de O. de Moraes, Amanda Leal Lopes, Stefanny Silva de Oliveira, Valquer
Clayton Paes Gandra, Natália Bastos de Carvalho e Stephani Chimenes.
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No decorrer dos encontros utilizamos algumas estratégias que estão sendo
fundamentais para o andamento do projeto. Essas são: entrevistas, debate de leituras,
gravações, filmagens e reflexões em grupo sobre as praticas observadas. Além disso, foi
exibido o longa-metragem ―Narradores de Javé‖, dirigido por Eliane Caffé, para que
eles pudessem ter uma outra visão de como pode ser importante, ou não, a preservação
da memória local.
Como a pesquisa tem como foco os templos religiosos, as entrevistas, são
direcionadas aos líderes dessas instituições e a quem está inserido no meio musical na
área de performance. Portanto, a ação pretende vir como resultado do ato continuo de
pesquisa e envolvimento com os pesquisados. A partir disso, os debates com os alunos
ocorrerão a partir da analise de levantamento de dados que serão realizadas durante as
atividades do grupo.
A pesquisa com os alunos
No final do ano de 2012, foi elaborado um projeto para ser apresentado à direção da
Escola Estadual CIEP 127, no município de Magé (RJ). Seus principais objetivos eram
pesquisar a memória musical do bairro de Piabetá, tal como analisar e comparar suas
práticas musicais atuais.
O eixo central do problema a ser investigado nessa pesquisa era como poderia
ser possível analisar as práticas musicais existentes no bairro de Piabetá (Magé - RJ) e
que reflexões poderiam ser pertinentes para a população local e para os pesquisadores.
Ou seja, como, através de uma pesquisa ação crítica (SANTOS, 2005) 777 poderíamos
gerar reflexões sobre os tipos de locais e de música que foram e que são produzidas
nessa localidade?
Portanto os objetivos secundários seriam:
● Analisar e comparar suas práticas musicais atuais, realizando, conexões entre
o passado e o presente no decorrer da pesquisa.
777
De acordo com a autora esse tipo de pesquisa ação valoriza a construção cognitiva da experiência,
sustentada por reflexão crítica coletiva, com vistas à emancipação dos sujeitos e das condições que o
coletivo considera opressivas, essa pesquisa para então, ir assumindo o caráter de criticidade.
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● Organizar um acervo a respeito das práticas musicais analisadas para
disponibilizar a população local.
● Estimular a valorização da cultura local para os alunos através da pesquisa
ação crítica.
De acordo com a proposta, o projeto deveria ser feito em parceria com um
grupo, selecionado, de alunos orientados pelo professor. No primeiro semestre de 2012
ocorreram os primeiros encontros semanais com duração de no máximo 30 minutos,
sempre após as aulas do turno da manhã.
A partir disso, foi apresentado ao grupo de oito alunos, uma gama de
possibilidades que poderia ser encaminhada a proposta originária de alguns estudos
sobre memorialistas e da etnomusicologia (NETTL, 2002; PINTO, 2001; ARAUJO,
2006). A escolha da maioria foi por direcionar a pesquisa, para o estudo de campo dos
sons que podem ser encontrados nos templos religiosos da região, bem como a história
de como essas se inseriram em tal sociedade. Os fatores principais dessa escolha foram
por serem locais que estavam ao maior alcance e porque alguns já se identificavam
(inclusive frequentando) com algumas denominações religiosas. Essas foram:
Catolicismo, Batista, Metodista, Candomblé, Espiritismo e Mormons.
Com isso, foram realizadas entrevistas com líderes religiosos e membros da
parte musical de cada religião. As perguntas foram construídas em conjunto com os
alunos, contendo elementos a respeito do repertório, instrumentação, importância da
música, compositores, vivência musical fora dos templos além do conhecimento sobre a
história do entrevistado sobre a religião que ele prega.
O importante, nessa fase então, foi tentar perceber porque os entrevistados
tomam certas atitudes e não outras para responder as perguntas. Observamos que fatores
como inibição, tentativa de valorizar a sua religião, desconfiança do entrevistado e
preocupação em não saber responder algumas perguntas foram fundamentais nas
respostas. Entretanto, como as perguntas foram todas abertas, essa análise serviu apenas
como complemento e comparação entre os agentes e seus discursos. Paralelo a isso, era
apresentado (vezes por mim, vezes pelos próprios alunos) um pouco de algumas
correntes historiográficas das religiões apresentadas.
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No decorrer dos encontros surgiram algumas questões que poderiam render
frutos para outros trabalhos, por isso preferimos não nos aprofundar, mas deixar
registrado para uma pesquisa futura. Uma delas, que merece ser destacada, foi com
relação à utilização do pandeiro em diversas igrejas protestantes menores 778. Como a
bagagem cultural e o conhecimento empírico dos alunos foi muito aproveitado, sempre
recorríamos às lembranças. Sendo, quando analisamos as perguntas referentes às
formações instrumentais dos templos religiosos, observamos que, com exceção do
centro espírita de Piabetá, que não utiliza música nos seus ritos, focando apenas nos
estudos dos livros, as formações se apresentaram das diversificadas possíveis. Entre os
instrumentos estão a guitarra, bateria, baixo, violão, percussões, trombone, trompete,
flauta, teclado e piano. Porém, quando nos remetemos s lembranças de outras igrejas
que eles conheciam no bairro – em locais mais periféricos e com menos fiéis - , viam
que o único instrumento era o pandeiro.
Sendo assim, através de perguntas fora das entrevistas, com membros de
algumas igrejas, chegamos à conclusão de que ao mesmo tempo que diversas
denominações protestantes persistem em demonizar práticas religiosas afro, elas se
utilizam (bastante) de instrumentos originários dessa mesma cultura africana. Além
disso, o instrumento, mesmo sendo essencial para a ―animação‖ do culto, é colocado em
segundo plano pelas igrejas matrizes. Então por que a utilização e, ao mesmo tempo, a
rejeição dele?
Conclusões
Essa pesquisa, ainda em andamento, está sendo bastante proveitosa pelos alunos. Isso é
perceptível pela dedicação dos mesmos com a pesquisa, pelos comentários dos
professores, que observam que a parte interpretativa, no que diz respeito ao senso crítico
é facilmente vista por eles, além da timidez que vai dando lugar a uma curiosidade mais
aguçada sobre certas questões.
É importante destacar que temos diversas dificuldades ao longo da pesquisa,
onde as mais prejudiciais são os horários dos encontros, que sempre se realizam em
intervalos (buracos) entre um tempo e outro ou ao final das aulas, e algumas faltas, que
778
Esse termo refere-se ao tamanho do espaço físico e por não serem a matriz da igreja no bairro.
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não conseguimos reunir todo o grupo. Porém, nada que atrapalhe a pesquisa por
completo, apenas atrasa um pouco nosso calendário.
Por fim, pretendemos encerrar a pesquisa no final do ano letivo, e apresentá-la a
escola e interessados em forma de debates e um documentário, composto pelas
filmagens, gravações e narrações sobre o que estamos estudando. Além disso está sendo
elaborado um artigo de conclusão da pesquisa, para que possamos anexar, mais
detalhadamente como essa foi realizada.
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O ENCONTRO NA FRONTEIRA DO SUL DA BAHIA OITOCENTISTA: OS
“BOTOCUDOS” E AS AUTORIDADES IMPERIAIS NO PROCESSO
“CIVILIZATÓRIO” E DE EXPANSÃO TERRITORIAL EM CACHOEIRA DE
ITABUNA-BA
Ayalla Oliveira Silva779
Resumo:
Na historiografia da região sul baiana, é recorrente o testemunho dos indígenas Guerens
como opositores ao processo de expansão territorial em Cachoeira de Itabuna, durante o
século XIX. Entretanto, os Guerens não foram sempre obstinados opositores dos
empreendimentos imperiais naquela região. Sob a perspectiva do encontro,
procuraremos realçar nas correspondências das autoridades de Ilhéus enviadas a
Presidência da Província, certas especificidades, objetivando perceber aquele processo
enquanto espaço de fronteira, onde diferentes sujeitos atuaram acerca de um objetivo
comum: a terra.
Palavras-chave: Guerens; Expansão territorial; Cachoeira de Itabuna.
Abstract:
In the historiography of southern Bahia, is the testimony of the appellant indigenous
Guerens as opponents to the process of territorial expansion in Waterfall Itabuna, during
the nineteenth century. However, Guerens were not always obstinate opponents of
imperial ventures in the region. From the perspective of the meeting will seek to
highlight the correspondence of the authorities of Islanders sent the President of the
Province, certain specificities, aiming to realize that process as an area border, where
different subjects acted on a common goal: the land.
Keywords: Guerens; Territorial expansion; waterfall Itabuna.
O século XIX é marcado por uma ampla discussão acerca das políticas indigenista e de
terra no Brasil, nesse contexto, o Império brasileiro está preocupado com a expansão de
suas fronteiras, por conseguinte todos os esforços serão empregados para a garantia da
expansão das fronteiras do império e para a manutenção dos espaços apropriáveis, como
bem lembra Cunha (1992)780.
779
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro; e-mail: [email protected]; Orientadora: Professora Dra. Vânia Losada Moreira.
780
CUNHA, Manuela Carneiro da. ―Polìtica Indigenista no século XIX‖. In: CUNHA, Manuela Carneiro
da (org.). História dos índios do Brasil. São Paulo: FAPESP, Companhia das Letras, 1992, p. 133-153.
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Em meio a todas as discussões e divergentes propostas de ―assimilação‖ e
―civilização‖ dos indìgenas na primeira metade do século XIX, o projeto mais aceito na
assembleia Legislativa, segundo Manuela Carneiro da Cunha, foi o de José Bonifácio:
―os seus ‗Apontamentos para a civilização dos ìndios bravos do Império do Brazil‘
receberam parecer favorável, aprovado a 18 de junho de 1823‖ 781. E segundo Marina
Machado, ―a falta de outros projetos que abordassem a temática indìgena, não apenas no
princípio do século XIX, mas durante grande parte dos anos imperiais, levou o projeto
de José Bonifácio a ser tomado praticamente como um discurso oficial‖782.
Assim, é no decorrer das discussões que vislumbravam atender às demandas
políticas e econômicas do Império brasileiro que, nos meados do século XIX, mais
precisamente em 24 de julho de 1845, foi editado o Decreto nº 426, contendo o
Regulamento acerca das Missões de cathequese, e civilização dos Índios, mais
conhecido como ―Regulamento das Missões‖.
O objeto da presente pesquisa, O aldeamento São Pedro de Alcântara e a
ocupação do território da Cachoeira de Itabuna, Bahia (1814-1877)783, se insere no
bojo destas discussões que estão totalmente imbricadas, isto é, a legislação indigenista e
a legislação de terras do século XIX, e que se intensificam com a vigência do
Regulamento das Missões. O objetivo da dissertação deste texto é analisar
especificamente as relações estabelecidas entre autoridades imperiais e indígenas não
aldeados, momento que pode ser definido como antessala do processo de aldeamento, a
partir de algumas correspondências encaminhadas pelas autoridades de Ilhéus à
presidência da província da Bahia na década de 1840784.
Durante todo o século XIX, os grupos indígenas historicamente resistentes ao
processo colonizador e considerados ―selvagens e bravos‖ eram genericamente
denominados ―Botocudos‖ ou ―Tapuias‖ - os gentios como são frequentemente
781
Idem, p. 138.
782
MACHADO, Marina Monteiro. A trajetória da destruição. Indios e Terras no Império do Brasil.
Dissertação de mestrado. UFF, Niterói, 2006, p. 47.
783
Pesquisa de mestrado em andamento.
784
As correspondências trocadas entre as autoridades de Ilhéus e a Presidência da Província da Bahia,
analisadas ao longo deste trabalho, encontram-se sob custódia do Arquivo Público do Estado da Bahia APEB.
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descritos nos relatos imperiais. Esta generalização resultou numa construção histórica
que tentava afirmar uma homogeneidade tapuia, negando assim, as especificidades
culturais de cada grupo. Dessa maneira, é praticamente impossível identificar os
diversos grupos inseridos naquele processo nas correspondências imperiais. Assim,
Aimoré, Ambaré, Guaimuré ou Embaré era a denominação que lhes era
atribuída pelos Tupi e que foi amplamente utilizada no século XVI. Essa
denominação seria uma corruptela de aib-poré (os moradores das matas), ou
de aiboré (malfeitor), ou de aimb-buré (os que usam botoques de emburé), ou
ainda de guaimuré (gente de nação diferente). A partir do século XVII, são
referidos como Guerén, Grên ou Kren (cabeça), que seria auto-denominação
do grupo. Essa denominação foi substituída pela de Botocudos no século
XIX, numa alusão aos botoques labiais e auriculares que usavam como
adorno785.
A população do aldeamento São Pedro de Alcântara, Ferradas, era de
denominação Camacã, Pataxó e Gueren. Seguindo as descrições presentes nas
correspondências, o indígena denominado Botocudo que habitava as cercanias do
aldeamento e descrito como bravo e perigoso, era o Gueren. Neste texto, procuraremos
explicitar as nuanças das relações estabelecidas entre os Guerens e autoridades
governamentais e religiosas no processo de expansão territorial de Cachoeira de
Itabuna, sul da Bahia, na década de 1840, momento escolhido por caracterizar-se como
espaço temporal emblemático para se pensar a ação dos sujeitos no contexto de maior
intensificação de uma política indigenista, a saber, o Regulamento das Missões de 1845.
A maior preocupação da política imperial com relação às populações indígenas e
a ocupação dos sertões – os espaços ainda ―não civilizados‖ – era a assimilação dos
―gentios‖ aos aldeamentos de catequese através do contato com os indìgenas já
aldeados, ou até mesmo a expulsão daqueles dos territórios a serem colonizados. Nesse
contexto os Guerens eram caracterizados como verdadeiros entraves ao progresso da
nação.
Desse modo, analisaremos a atuação das autoridades regionais consonante ao
projeto nacional do Império, com relação aos indígenas não aldeados que viviam na
circunvizinhança de Cachoeira de Itabuna. Estão presentes em toda a documentação
consultada os relatos de ―fereza‖ dos Pataxós e principalmente dos Guerens,
785
FREITAS, Antônio Fernando Guerreiro de; PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Caminhos ao encontro
do mundo: a capitania, os frutos de ouro e a princesa do sul-Ilhéus, 1534 – 1940. Ilhéus: Editus, 2001,
p.13.
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denominados nas correspondências como Botocudos, bem como a preocupação em
proteger o aldeamento São Pedro de Alcântara de suas ações ―perversas‖ e,
concomitantemente, inseri-los ao projeto nacional de civilização indígena e ocupação
das fronteiras do império, através da catequese e contato com os aldeados.
É interessante ressaltar que os Guerens nem sempre representaram primordial
ameaça aos interesses coloniais e imperiais. Maria Hilda Paraíso lembra que durante o
século XVIII, quando do auge do ciclo da mineração, momento em que os interesses
políticos e econômicos não estavam voltados para a exploração dos territórios
historicamente pertencentes aos denominados Botocudos, eram menos intensas as
investidas contra os mesmos. Paraíso, destaca a estratégia colonial de transformar a
zona de acesso às minas de Minas Gerais em ―tampão que inviabilizasse o acesso sem
controle‖786, enquanto uma medida que permitiu os ―Botocudos‖ ―até 1760, manterem
seus padrões sociais e a integridade de seus territórios‖787. Além desse aspecto, segundo
a autora, também contribuìa para isso ―a baixa densidade demográfica que caracterizava
a ocupação nacional na região das fronteiras do sertão‖788.
No entanto, como sugere Paraíso, a decadência da zona de mineração levou o
Império a estabelecer uma nova configuração para seus espaços exploráveis no Sul da
Bahia, recaindo sobre as populações indígenas que ocupavam aquele território intensa
perseguição e tentativa de assimilação destes ao projeto colonizador. Essa nova
configuração acirrou os conflitos nas relações entre os diferentes grupos sociais. Tal
realidade pode ser evidenciada através dos discursos gestados nos espaços de discussão,
onde os indígenas resistentes ao processo de expansão das fronteiras do império são
tidos como ―seres indolentes e hotis‖, justificando assim a atuação do império para
subjugar os ―selvagens‖.
Nos discursos oficiais foram produzidas ideias acerca da ―fereza‖, ou seja, da
―animalidade‖ dos Botocudos e, como ―feras‖, seria muito difìcil trazê-los à civilização.
Sendo assim, não era consonante a ideia de catequização dos ditos ―gentios‖ e sim a sua
786
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. ―Os Botocudos e sua trajetória histórica‖. In: CUNHA, Manuela
Carneiro da (org.). História dos índios do Brasil. São Paulo: FAPESP, Companhia das Letras, 1992,
p.415.
787
788
Idem, p. 415.
Idem, p.415.
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afugentação (e até mesmo extermínio), o que se configurava num grande problema, pois
tal prática de perseguição aos indígenas no território brasileiro se contrapunha às idéias
modernas de nação civilizada.
Em relação ao caráter de ―fereza‖ atribuìdo aos ―Botocudos‖, é bem ilustrativa a
fala do Presidente da Provìncia de Minas Gerais quando afirma: ―Permita-me V. Exa.
refletir que de tigres só nascem tigres, de leões, leões se geram e dos cruéis Botocudos
(que devoram e bebem o sangue humano) só pode resultar prole semelhante‖ 789. Esta
fala corrobora a idéia vigente à época acerca da incivilidade dos ―Botocudos‖, presente
tanto nos discursos políticos quanto nos relatórios e cartas oficiais das autoridades do
período.
John Monteiro (2001) explicita inúmeras falas das autoridades das províncias do
Brasil sobre o caráter de animalidade dos indígenas denominados Botocudos, dentre
elas a fala de Teófilo Benedito Otoni levantando questionamento sobre a perseguição e
extermínio desses grupos indígenas em Minas Gerais e no Espírito Santo nas décadas de
1830-1840. Se referindo ao depoimento de um militar das Divisões do Rio Doce, Otoni
destaca: ―[...] ouvi-lhe a medonha declaração de que quando os seus cães davam no
rastro de algum destes infelizes sentia ele as mesmas emoções que os outros caçadores
quando os cães dão na batida do veado‖790.
Nas correspondências das autoridades administrativas de São Pedro de Alcântara
à Presidência da Província da Bahia, está recorrentemente presente o discurso sobre o
caráter hostil dos ―Botocudos‖ ao projeto de colonização daqueles territórios, algo bem
parecido com as falas veiculadas também em outras Províncias do Império:
Tendo hua horda de índios selvagens hostilizando atraiçoando e
progressivamente, há quaze cinco annos a povoação de S. Pedro de
Alcântara, chove da estrada do sertão para esta Vª habitada por laboriozos
índios Camacans, cathequizados, e dirigidos pelo muito respeitável Pe.
Missionario Fr. Ludovico de Leorne, já vindo aquelles bárbaros cercar a
Povoação a ponto vedarem aos ditos habitadores de hirem as suas rossas 791.
789
NAUD, 1971, p.319 apud MONTEIRO, John Manuel. TUPIS, TAPUIAS E HISTORIADORES
Estudos de História Indígena e do Indigenismo. Tese de livre docência. Unicamp. Campinas, 2001, p.142.
790
OTONI, 1858 apud MONTEIRO, John Manuel. TUPIS, TAPUIAS E HISTORIADORES Estudos de
História Indígena e do Indigenismo. Tese de livre docência. Unicamp. Campinas, 2001, p.151.
791
APEB; Seção Arquivo Colonial e Provincial; Série Judiciário; Maço 2395; Ano 1842.
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Em outra correspondência dirigida ao Presidente da Província Paulo José de
Azevedo e Brito o Juiz de direito de Ilhéus Francisco Coutinho de Castro, alarmava as
autoridades provinciais quanto ao comportamento hostil dos Guerens que habitavam as
cercanias do aldeamento São Pedro de Alcântara, afirmando que,
tendo ordenado, em virtude do Officio do Exmº Governo de 11 de agosto [de
1840], a marcha das oito praças [...] em razão da requisição do parocho
Director o Missionário Fr. Ludovico de Liorne, que se temia huma invasão
dos indígenas selvagens, que pelos arredores daquella Aldeia apparecião, e
davão mostras de hostilizarem aos pacíficos e aldeados indígenas792.
Os indígenas habitantes das regiões de aldeamentos resistiam muitas vezes ao
projeto colonial, tanto de expansão dos territórios aproveitáveis e transitáveis quanto de
catequese. Tal postura de resistência era o grande empecilho ao projeto de abertura e
conservação da estrada entre Ilhéus e Conquista, bem como ao trânsito e permanência
de não índios naquela localidade.
Paralelo ao discurso de entrave, por parte das autoridades imperiais, nas
correspondências dos administradores do aldeamento São Pedro de Alcântara está o
discurso de ―demonização‖ dos ―Botocudos‖, corroborando os discursos gestados na
esfera nacional. Segue abaixo, fragmentos de uma dessas correspondências requerendo
por parte do frade capuchinho Ludovico de Livorno, então diretor do aldeamento São
Pedro de Alcântara ao Juiz de Paz da Vila de Ilhéus, reforço policial em virtude de um
crime cometido por supostos Guerens que cercavam o aldeamento.
Dou parte a Vª Sª como no dia primeiro do corrente apparecerão perto desta
povoação da outra banda do Rio bastantes selvagens que julgados serem os
Patachós limítrofes costumados a vir sem fazer mal não causarão susto. No
dia três, visto que faltava hum índio chamado José Antonio e sabendo que no
dia antecedente estava sozinho na sua roça forão homens em procura delle e
acharão no mato, poucos passos distantes da mesma roça o seu corpo morto
[...] Comvem saber que tirarão duas flechas ao fallecido que hua se achou no
corpo, e a outra no chão e pelo feitio dellas se conhece que os bárbaros são
botocudos [...]. He claro que não são Patachós tanto pelo feitio das flechas,
como pela certeza de que em vinte e quatro annos com suas frequentes
chegadas nunca estes fizerão mal [...]793.
O documento segue com uma descrição minuciosa do crime e da forma como foi
encontrado o corpo. O frade faz questão de explicitar que aquele ataque não poderia
partir de indígenas Pataxós. O que nos permite perceber que os indígenas descritos nas
792
APEB; Seção Arquivo Colonial e Provincial; Série Judiciário; Maço 2395; Ano 1840.
793
APEB; Seção Arquivo Colonial e Provincial; Série Judiciário; Maço 2395-1; Ano 1840.
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correspondências como feras e selvagens que inviabilizavam o processo de civilização
da região fossem os Guerens, visto que, a região era intensamente habitada pelos índios
Guerens desde o período colonial, segundo bibliografia especializada nos estudos
coloniais da região.
Parece bem claro o tom de consonância no relato das autoridades locais com os
discursos acerca do caráter de ―fereza‖ sobre os ―Botocudos‖ produzidos ao longo do
século XIX, no âmbito nacional.
Para o bom êxito do projeto governamental de
expansão dos territórios colonizados, era imperioso veicular uma idéia de
―demonização‖ dos indìgenas resistentes ao avanço desse processo de colonização.
Assim, legitimava-se a prática de perseguição aos ―Botocudos‖, que eram afugentados
de seus antigos territórios, já que estes eram resistentes à convivência nos aldeamentos
de catequese.
Para além dos discursos de fereza e insubordinação, presentes nas
correspondências provinciais ao longo do século XIX com relação aos indígenas que
ocupavam as proximidades do aldeamento de Ferradas, as informações trazidas nessas
mesmas correspondências nos revelam as complexidades, as estratégias construídas
pelos próprios indígenas para manterem seus interesses assegurados, cujos interesses
visavam, na maioria das vezes, a garantia de segurança e da sua sobrevivência.
Os Guerens e Pataxós da região em foco, nem sempre se opunham à política
governamental de criação e manutenção de aldeamentos e, muitas vezes, partia deles a
proposta de aldearem-se. ―Cada vez mais, pequenos bandos procuravam contatos
pacíficos, entregando-se ao aldeamento como forma de garantir a sua sobrevivência,
ameaçada pelo choque com os colonizadores‖ 794.
Assim, na fronteira de Cachoeira de Itabuna os indígenas que se aproximavam
dos missionários e se estabeleciam nos aldeamentos, não devem ser caracterizados
simplesmente como ―subjugados e alienados‖ aos propósitos do governo, pelo
contrário, eles se deixavam ―subjugar‖. Pois, se na zona de contato ―os povos
subjugados não podem controlar facilmente aquilo que emana da cultura dominante,
eles efetivamente determinam, em graus variáveis, o que absorvem em sua própria
794
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Op. Cit. p.417.
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cultura e no que o utilizam‖795. Desse modo, podemos inferir que aqueles eram mundos
que se tocavam e que sofriam redefinições e reelaborações, onde os indígenas, muitas
vezes, cediam ao projeto do governo imperial, estabelecendo-se nos aldeamentos, num
processo de negociação de sua própria sobrevivência.
Os índios não foram, portanto, apenas vítimas ingênuas e passivas, no
processo colonizador, nem foram, o tempo todo, obstinados e irredutíveis
opositores do projeto colonial. As resistências podiam estar presentes
também no que se tem denominado de ―acomodação‖, ―colaboração‖,
―negociação‖796 .
Nas fontes (correspondências oficiais) analisadas através do esforço de se fazer
uma leitura atenta e contextualizada das mesmas, é interessante perceber como se dava,
na prática, as relações entre os chamados Botocudos e as autoridades imperiais.
Enquanto em alguns relatos oficiais, os Guerens e, em menor grau, os Pataxós,
figuravam com destaque no quadro dos problemas e dificuldades que emperravam o
avanço do processo colonizador no sul da Bahia, sendo descritos como inalienáveis e
inúteis ao projeto nacional, em outros relatos, os mesmos indígenas são mencionados
como agentes que pareciam conscientemente dominar o jogo, sabendo perfeitamente a
hora de resistir ou de se aproximar e os momentos propícios de fazer alianças e de
negociar.
Duas correspondências à Presidência da Província, ambas de 1843, ilustram bem
a idéia do entrelaçamento dos interesses nas relações estabelecidas entre os indígenas e
as autoridades administrativas imperiais em áreas próximas à Cachoeira de Itabuna.
A primeira correspondência data de 30 de junho de 1843, enviada pelo Juiz
Municipal de Órfãos de Ilhéus Joaquim José Pinheiro de Vasconcellos, e anexada à
correspondência enviada a Presidência da Província em 04 de Fevereiro de 1845. A
segunda, é uma correspondência enviada pelo Juiz Municipal de Órfãos e Delegado de
Polìcia de Ilhéus, Antônio d‘Aguiar Silva, em 23 de março de 1843.
[...] inteirado de se lhe haverem apresentado, por intermédio do Missionário
Fr. Ludovico de Leorne, 16 Botocudos das margens do Rio Pardo, e de, sob a
direção deste mesmo Missionário que a isso se offerece [...], serem eles logo
795
PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturações. Bauru: Edusc, 1999,
p.30-31.
796
ALBUQUERQUE, Manuel Coelho. Seara Indígena Deslocamentos e Dimensões Identitárias.
Dissertação de mestrado. Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2002. p.51
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empregados por Vosmicê sobre a tribu denominada = Noc-Noc= que
continua em suas incursões contra Ferradas797.
A vinte três do corrente veio a ter commigo o muito Reverendo Missionário
Fr. Ludovico de Leorne anunciando-me que lhe tinhão apresentado dezesseis
Botocudos das margens do Rio Pardo acompanhados de Victório da Cunha
Soares, por quem os tinha mandado convidar, e que exigião alguns prezentes,
e desejavão conhecer-me, porque lhes dissera que era necessário entender-se
commigo para satisfaze-los. [...] Havendo a tribu denominada NocNoc=pelos Botocudos continuado suas incursões sobre as Ferradas e
passando desta para baixo ameaçando já os fazendeiros da Caxoeira de
Itabuna, julguei que devia aproveitar os apresentados e seu guia para unidos
com alguns Camacaes [...] entrarem nas mattas a ver se podiam conseguir o
aldeiamento daquella tribu assim nocivo 798.
Os Guerens que se ofereciam para a tarefa de intermediação entre a população
Noc-noc e o missionário, indica a idéia dos indígenas estarem dando as cartas do jogo,
pois, nesta negociação, eles estabeleciam suas exigências. Nessa perspectiva, o
fragmento do documento citado explicita a fala do Juiz de Órfãos de Ilhéus, Antônio
d‘Aguiar Silva, sobre a negociação entre o mesmo (por intermédio de Victório da
Cunha) e os referidos indígenas da população Noc-Noc, evidenciando que os mesmos,
impuseram as suas condições, tais como a aquisição de alguns bens ou utensílios (que
aparecem no documento com o termo – ―presentes‖) e, também, demonstravam o
interesse de conhecer o Juiz Antônio d‘Aguiar. Desse modo, naquela ―zona de contato‖
não era o branco, sozinho, quem estabelecia as regras do jogo, pois isso se dava num
espaço de negociação entre as partes envolvidas naquela situação específica.
Ainda no intuito de promover uma reflexão acerca das relações estabelecidas
entre indígenas e autoridades imperiais, conforme estas são apresentadas nas
correspondências imperiais de meados do século XIX, e perceber como os ―Botocudos‖
atuavam nesse processo, destacaremos, por fim, trechos de outras correspondências
(ofícios e requerimentos) dirigidas às autoridades provinciais, onde constam as
solicitações de indígenas que habitavam aquelas proximidades.
A primeira destas correspondências, datada de 04 de Fevereiro de 1845, enviada
à Presidência da Província por uma autoridade local não identificada, relata as
providências relativas ao envio de outro missionário capuchinho para aquelas paragens,
atendendo às requisições dos indígenas da população Ina para estabelecerem-se em um
797
APEB, Seção Arquivo Colonial e Provincial; Série Judiciário; Maço 2395-I; Ano 1845.
798
APEB; Seção Arquivo Colonial e Provincial; Série Judiciário; Maço 2395; Ano 1843.
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aldeamento. Pelo conteúdo da correspondência, este grupo deve se tratar do mesmo
citado nas correspondências acima explicitadas. Na seguinte correspondência, consta
também a demonstração de satisfação dos índios quando lhes foi apresentado o novo
missionário que eles deviam buscar em data previamente combinada, a saber:
Em virtude da authorização que pelo Excelentíssimo antecessor da Vossa
Excellencia me foi dada em officio de trinta de junho de mil oito centos
quarenta e três pude conseguir por intermédio do Venerável Missionário
Parocho Fr. Ludovico de Leorne a vinda de um outro Religioso de sua ordem
para satisfazer os Selvagens denominados = Inas = vulgarmente = Botocudos,
de que tratei em meu officio numero setenta e cinco, e chamal-os por meio a
civilização, e ao grêmio da Igreja. Enviada que lhes fosse noticia de que aqui
já se achava o desejado padre, mandarão dizer-me que depois da lua cheia
seguinte virião recebelº com effeito apparecerão quarenta, e He inexplicável a
satisfação que mostrarão quando lhes aprezentei o missionário Fr. Francisco
Antônio de Falerna [...]799.
Vale ressaltar que esta referida correspondência, datada de 1845, é
contemporânea à promulgação do Regulamento das Missões de Catequese e, como já
indica o nome, tratava-se grosso modo, da intensificação das ações do governo imperial
no tocante ao estabelecimento de aldeamentos de catequese, com o fim de inserir os
indìgenas no projeto nacional de expansão dos territórios imperiais e ―civilização‖ dos
índios, para torná-los importantes suportes na política imperial do período.
Se por um lado, o governo imperial manifestava interesse no aldeamento dos
indígenas que ocupavam os espaços a serem colonizados, por outro lado, os índios
também, muitas vezes, escolhiam viver a realidade do aldeamento, sobretudo para
subsistir aos ataques que os mesmos sofriam por não índios no processo de ocupação
dos sertões, visto que essa ainda era, em meados do século XIX, como lembra Manuela
Carneiro da Cunha (1992), uma prática comum. Nesta situação, torna-se compreensível
a disponibilidade dos indígenas daquelas proximidades em se aldear, mas não como
vítimas passivas de tal processo. Pelo contrário, as fontes testemunham que eles
estavam no comando das negociações em curso, ou seja: primeiramente, foram eles que
manifestaram desejo de aldear-se; em segundo lugar, determinaram quando iriam buscar
o missionário para o estabelecimento do aldeamento; e, em terceiro, partiu dos próprios
índios o interesse em ter um missionário, por meio de solicitação que fizeram
anteriormente às autoridades, visto que na correspondência consta a expressão
799
APEB; Seção Arquivo Colonial e Provincial; Série Judiciário; Maço 2395-1; Ano 1845.
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―satisfazer os selvagens‖, isto é, o governo imperial estava atendendo a uma demanda
daquela população.
As estratégias na relação entre índio e não índio se entrelaçavam nesse processo.
O aldeamento atendia às necessidades já mencionadas dos indígenas e se configurava,
também, como estratégia imperial para possibilitar a colonização dos espaços ainda não
ocupados por não índios, bem como para possibilitar uma melhor exploração dos
espaços já colonizados, mas que ainda eram marcados por resistências de muitos grupos
indígenas habitantes das suas proximidades.
Na segunda correspondência destacada, também identificamos a solicitação de
grupos ditos Botocudos para aldearem-se. A correspondência datada de 04 de agosto de
1849:
Illm.º e Exm.º Senr. Presidente da Provincia da Bahia. Informo o Senhor por
parte da Thesouraria da Fasenda Palacio do Governo da Bahia 4 de agosto de
1849. Disem os Botocudos moradores nas margens do Rio Pardo, e suas
adjacências que desejando elles supplicantes de se reunirem na sua primitiva
terra situada entre o riacho Catulé, e o de S. Pedro, e alli na beira do mesmo
rio formarem a sua aldêa, a coadjuvarem com sustento, e braços as canoeiras
da importantíssima navegação do Rio Pardo; portanto800.
O fragmento acima explicitado contêm as mesmas características do trecho do
documento anteriormente destacado, evidenciando uma das principais funções dos
aldeamentos, qual seja: o fornecimento de mão de obra indígena. Além disso, os
indígenas que requeriam o estabelecimento do aldeamento pareciam conscientes das
demandas do governo imperial em relação à necessidade de dispor de sua mão de obra
naquela localidade, sobretudo como canoeiros.
Em resposta ao requerimento feito pelos Guerens das proximidades de
Cachoeira de Itabuna acerca do estabelecimento dos mesmos em um aldeamento às
margens do Rio Pardo, em 28 de setembro de 1849, Manoel Inácio de Lima, Diretor
Geral dos Indios da Província da Bahia, se dirige à Presidência da Província
confirmando a seguinte decisão:
Em cumprimento do seu respeitável officio datado de 20 de Setembro do
corrente anno tenho a diser-lhe que os três Botocudos por V. Excelência
conhecidos regressarão reccomendados pelo Excelentíssimo Senhor
800
APEB; Seção Arquivo Colonial e Provincial; Série Judiciário; Maço 2396; Ano 1849.
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presidente ao Senhor Doutor Villaça juiz Municipal de Canavieiras para os
coadjuvarem na abertura do Sítio, ou lugar da dita aldêa [...]801.
Nestas informações trocadas entre as autoridades imperiais da Bahia, é muito
interessante se destacar a clara negociação estabelecida entre indígenas e autoridades
governamentais, com destaque para o fato dos indígenas terem se dirigido ao presidente
da província, como fica-se entendido na leitura do fragmento acima citado.
Demonstrando por conseguinte, que os Guerens frequentemente demonizados nos
discursos oficias, não foram o tempo todo resistentes obstinados das políticas imperiais
naquela parte do sul da Bahia, nem os índios e não índios foram obstinados inimigos.
Na fronteira de Cachoeira de Itabuna, os grupos indígenas souberam resistir, mas
também negociar quando a situação se mostrou conveniente.
Manuel Coelho Albuquerque lembra que ―Halbwachs observou que um grupo
quando deslocado resiste com todas as suas forças [...]. Procura e tenta, em parte,
encontrar seu equilíbrio antigo sobre novas condições‖802. Desse modo, os denominados
Botocudos, habitantes das proximidades de Cachoeira de Itabuna, buscavam estabelecer
seu espaço dentro de uma nova configuração, onde seu território já não era aquele que
lhe pertencia por natureza, mas um novo espaço delimitado e organizado pelo não índio.
No entanto, esse novo espaço era reconfigurado pelos indígenas, à medida que estes
buscavam manter sua alteridade nas negociações estabelecidas, as quais, por sua vez,
encontravam-se permeadas de conflitos gerados pelas distintas partes envolvidas acerca
do objeto de interesse principal em questão, a terra.
801
APEB; Seção Arquivo Colonial e Provincial; Série Agricultura; Maço 4612; Ano 1849.
802
ALBUQUERQUE, Manuel Coelho. Op. Cit. p. 114.
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A INFLUÊNCIA LIBERAL DE BARACK OBAMA: A CONSTRUÇÃO DO
DISCURSO “DNC KEYNOTE ADRESS” (2004)
Bárbara Maria de Albuquerque Mitchell803
Resumo:
Este artigo tem como objetivo analisar o discurso ―DNC Keynote Address‖ de Barack
Obama percebendo a proximidade desta fala com o pensamento liberal democrata
americano. O paralelo entre o liberalismo e o atual presidente dos Estados Unidos se
traça a partir da noção de que algumas das principais metas delineadas pelo movimento
liberal se repetem ou se resignificam nos discursos políticos do democrata.
Palavras-chave: Barack Obama, liberalismo, análise de discurso.
Abstract:
The purpose of this article is to analyze the speech ―DNC Keynote Addres‖ of Barack
Obama noticing the proximities between his words and the American liberal-democratic
thought. The parallel amid liberalism and the president of the United States is outlined
with the notion that some of the most important goals of the liberal movement are used
and resignificated in Obama‘s speeches.
Keywords: Barack Obama, liberalism, Speech Analysis
Introdução: considerações gerais sobre o liberalismo americano 804
Este trabalho tem como objetivo a análise do texto ―DNC805 Keynote Address‖ de 2004,
a partir de reflexões que procuram identificar nos discursos de Barack Obama uma
herança da tradição liberal norte-americana, dando ênfase na percepção de proposições
já apresentadas anteriormente e fortalecidas a partir do governo de Franklin Delano
Roosevelt. Neste debate insere-se a perspectiva do liberalismo atrelado ao New Deal ter
servido enquanto base para os anos seguintes da política norte-americana806, mas com
803
[Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de
Janeiro]. Orientador: Fernando Luis Vale Castro. Email: [email protected]
804
Americano será utilizado ao longo deste trabalho como sinônimo de norte-americano e não em
referência ao continente.
805
Democratic National Convention.
806
JEFFRIES, John W. ―The "New" New Deal: FDR and American Liberalism‖, 1937-1945.Political
Science Quarterly, Vol. 105, No. 3 (Autumn, 1990), pp.397-418. p.418. Disponível:
http://www.jstor.org/stable/2150824. Acesso: 07/08/2013.
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suas devidas revisões em decorrência de determinados acontecimentos internos e
externos807.
Percebendo como um aspecto do liberalismo a possibilidade de alteração das
suas características ao longo do tempo histórico, Gary Gerstle, em seu artigo The
Protean Character of American Liberalism, ressalta a permanência de três delas desde
sua origem: emancipação, racionalidade e progresso. Desse modo, a análise do
desenvolvimento do liberalismo passa pela resignificação destes termos à luz de
acontecimentos históricos inesperados e também se reflete na transformação da
composição da comunidade liberal. Nesse sentido, o autor apresenta os diversos grupos
e seus posicionamentos desde antes da Primeira Guerra Mundial. A influência do
pensamento científico no final do século XIX e início do XX aliado a determinação de
alguns liberais com a questão da emancipação social, já que o país se encontrava sobre
dominação dos interesses econômico e social de uma minoria, fez com que estes
solicitassem ao Estado intervenções capazes de reconstruir e educar a sociedade com
objetivo de melhorar as relações individuais e grupais. Este caminho era visto como
progressista e emancipatório808.
John Dewey, filósofo americano, era adepto ao pragmatismo e comprometido
com o alcance da democracia por meio da ação política. Tinha plena convicção no
sucesso da democracia americana e era defensor de que este espírito deveria ser
integrado às comunidades locais e na vida pública de toda nação para ―criar aquilo que
chamava de ‗the great community‘‖.809 O sucesso e maior objetivo da democracia,
defendia Dewey, era a constante participação e diálogo entre os indivíduos. Os trabalhos
deste intelectual serviram enquanto influência para os liberais e especialmente os
progressistas.
Como parte integrante da teoria liberal, o pensamento progressista pretendia
alcançar a construção de uma comunidade moral reformando os seus indivíduos. O
movimento progressista foi fundamental para o fortalecimento de campanhas que
807
GERSTLE, Gary. ―The Protean Character of American Liberalism.American‖ Historical Review.v. 99,
nº4, p. 1043 - 1073. October,1994.p.1045.
808
Idem.pp.1046-7.
809
KLOPPENBERG, James T. The Virtues of Liberalism.Oxford University Press,1998.p.91.
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tratavam de questões de gênero, sexualidade e etnicidade.810 Em 1910 já era possível
perceber o resultado da difusão destas ideias com a fundação da NAACP 811, trazendo à
tona o questionamento da posição que o negro ocupava naquela sociedade. Em
contrapartida, membros da Suprema Corte, a elite corporativa e pequenos empresários
adeptos ao liberalismo até os anos de 1930 renunciaram ao ideal de emancipação
universal e defendiam o capitalismo corporativista, a segregação e o sufrágio
censitário812.
O liberalismo sofreu um período de desestabilização com a ascensão do Partido
Bolchevique ao poder na Rússia. Contrariando o posicionamento da comunidade liberal
de realizar uma revolução libertadora pacífica, o comunismo comprovou a viabilidade
do uso da violência para alcançar a emancipação popular, o que poderia se tornar uma
influência negativa nos Estados Unidos. A Primeira Guerra Mundial e as ondas racista e
nacionalista que a seguiram também foram decisivas para aumentar o questionamento
dos liberais a respeito da viabilidade dos seus planos no país. Como agravante desta
situação, nos anos 20 ocorre o fortalecimento do posicionamento contrário às
interferências governamentais nos Estados Unidos. E é neste contexto de incertezas e de
conflitos mundiais – com a eclosão da Segunda Guerra – que mais uma vez o
liberalismo se readaptou.
O final dos anos de 1920 e os anos de 1930 serviram enquanto um período de
fermentação do pensamento liberal difundido com o governo Roosevelt e o New Deal.
Concentrados em debater questões práticas e que pudessem restaurar a economia
americana, os New Dealers passam a preterir o objetivo progressista de formação de
uma comunidade moral. Segundo Gary Gerstle, a preocupação com a moralidade passa
da reforma dos indivíduos para a da economia, buscando a consolidação de uma
indústria democrática, com oportunidades e segurança econômica para a população.
Mesmo com um plano enfático em solucionar as consequências da crise de 1929 no
país, o governo de Franklin Roosevelt não alijou todas as reivindicações anteriores do
movimento liberal. Em seu livro American Crucible: Race and nation in the twentieth
810
Idem.p.1044.
811
National Association for the Advancement of Colored People.
812
GERSTLE, Gary. Op.cit. October,1994.p1047.
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century o autor afirma: ―During the 1930s and early 1940s, a large state emerged that
would regulate America‘s capitalist system in the interests of general prosperity and of
labor-management harmony; that would provide economic assistance to those deemed
unable to help themselves.‖813. Como antes colocado, uma das principais preocupações
do movimento progressista era a de deter a exploração capitalista demasiada, garantindo
a emancipação da sociedade dos interesses de poucos. O Welfare State814, solidificado
com o programa do New Deal, praticava as intervenções necessárias para assegurar a
fortificação da economia atrelada a reformas que visavam garantir assistência aos que
precisavam de auxílio para se recuperar da crise.
O autor atenta para o 
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