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O
Mestre Cervejeiro Chen Malte do Trovão não conseguia
pensar em nada de que não gostasse. Havia coisas das quais
gostava menos que outras, claro. Por exemplo, a espera para
experimentar a última criação, após a fermentação e a maturação, não
era algo que o deixava especialmente entusiasmado. E não era porque
estava ansioso para saber seu gosto. Isso ele já sabia — estaria fantástico.
O problema era o excesso de tempo livre para pensar em novas cervejas, novos ingredientes — ele queria começar a trabalhar neles o quanto
antes.
Mas a criação de cervejas demandava tempo e cuidados. Com o
equipamento da cervejaria comprometido com o novo lote, esperar era
a única opção. Isso significava que ele teria que encontrar algo para se
distrair, ou a espera, o planejamento e a maturação de novas cervejas na
cabeça o deixariam louco.
Lá fora, em Azeroth, encontrar distração era moleza. Sempre havia
alguém que não gostava de você, ou criaturas famintas, ansiosas por
devorar sua carne — ambas as coisas eram excelentes para ocupar por
um mente ociosa. Havia também lugares que desapareceram, e outros
que estavam surgindo ou se tornando algo que poderia muito bem ser o
que tinha sido outrora. Em suas viagens, ele vira muitos desses, além de
vários outros lugares; até mesmo ajudara a transformar alguns.
Chen suspirou e fitou o centro da sonolenta aldeia de pescadores.
Li Li, sua sobrinha, divertia um grupo de filhotes da Aldeia Binan —
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alguns refugiados, mas a maioria era de habitantes locais. Chen estava
certo de que ela pretendia contar sobre suas viagens em Shen-zin Su, a
Grande Tartaruga, mas abandonara o plano. Ou, talvez, estivesse contando a história, usando os pequenos na encenação. A narrativa obviamente relatava uma briga, aparentemente uma que envolvia o ataque de
um grupo de jovens pandarens.
— Está tudo bem, Li Li?
A garota esguia emergiu de um mar fervilhante de pelos negros e
brancos.
— Perfeitamente bem, tio Chen! — A frustração em seus olhos
desmentia suas palavras. Ela esticou o braço, agarrou um pequenino e
o atirou de lado, para desaparecer em seguida sob uma onda de filhotes
estridentes.
Chen pensou em ajudá-la, mas titubeou. Além de não estar verdadeiramente em perigo, Li Li era uma garota de fibra. Se precisasse de
ajuda, pediria. Interferir antes disso faria com que ela pensasse que ele
duvidava de sua capacidade. Ela ficaria amuada, e ele odiava quando
isso acontecia. Depois, furiosa, ela faria algo para provar que era capaz
de se cuidar, o que poderia acabar em problemas de verdade.
A despeito de sua reflexão, os murmúrios e reprimendas das duas
irmãs Chiang davam-lhe ainda mais razão para se conter. As duas tinham idade suficiente para se lembrar de quando Liu Lang partira de
Pandária — pelo menos era o que se dizia. Mesmo com as pelagens mais
brancas que negras — exceto ao redor dos olhos, onde eram tingidas
— Chen presumiu que não fossem tão velhas. Ambas passaram todas
as suas vidas em Pandária, e apenas uma fração delas na companhia
daqueles que viviam na Ilha Vagante. As irmãs Chiang tinham firmes
opiniões acerca dos que “perseguiam a tartaruga”, e Chen divertia-se
agindo de forma diferente para confundi-las.
Li Li, aos olhos delas, não passava de mais um dos cães selvagens
da tartaruga. Impulsiva e pragmática, ligeira nas ações e com uma leve
tendência para superestimar suas habilidades, Li Li era um excelente
exemplo de pandaren que acolhera a filosofia de Huojin. Eram pessoas
com aquele espírito aventureiro que partiam na tartaruga ou se aventuravam em Terralém. Esse tipo de conduta, nas mentes das irmãs Chiang,
não era algo a ser encorajado ou enaltecido.
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Assim como quem se envolvia em tais atividades.
Se fosse do tipo que desgosta das coisas, Chen certamente desgostaria das irmãs Chiang. Mas, em vez disso, aprendera a gostar delas.
Além de cuidar da Cervejaria Malte do Trovão e criar bebidas fantásticas, ele percorrera toda Pandária para aprender o que pudesse sobre
o lugar que escolhera como lar. Ao ver as irmãs com dificuldades para
ajeitar o jardim, descuidado desde o ataque yaungol, ele oferecera ajuda.
Elas nem sequer responderam, mas Chen intrometeu-se mesmo
assim. Consertou as cercas e capinou o jardim. Deitou pedras novas no
caminho que levava até a porta. Divertiu os bisnetos das irmãs cuspindo
fogo. Varreu, trouxe água e cortou lenha. Tudo sob os olhares de reprovação de ambas. A bem da verdade, ele só o fizera porque vira nos olhos
de ambas a mais absoluta incredulidade diante do que viam.
Depois de muito trabalho sem que as irmãs Chiang nem ao menos
lhe dirigissem a palavra, ele finalmente ouviu suas vozes. Elas não se
dirigiam a ele. Falavam entre si, apesar de a mensagem ser para Chen.
A mais velha disse:
— Hoje é um daqueles dias em que um gourami-tigre cairia bem.
A mais jovem assentiu com a cabeça.
Chen sabia que era uma ordem, e a acolheu. E o fez com todo o
cuidado. Pescou três gouramis no mar. O primeiro, devolveu ao mar; o
último, guardou para as irmãs; o maior foi oferecido a uma refugiada e
seus cinco filhotes, pois o marido era um dos que ainda estavam desaparecidos.
Ele sabia que se desse o primeiro, poderiam considerá-lo precipitado. Ofertar os três faria com que o fizessem dele a imagem de um
pandaren afeito a excessos. Dar o maior, que era mais do que os seis poderiam comer, seria um sinal de falta de comedimento. Do modo como
fizera, contudo, demonstrava razoabilidade, consideração e compaixão.
Chen tinha plena consciência de que o exercício de lidar com as irmãs Chiang provavelmente não lhe granjearia amigos ou qualquer tipo
de apoio. Muitos outros que conhecera em suas viagens teriam simplesmente considerado ambas ingratas e as ignorado. Para Chen, contudo,
elas representavam uma maneira de aprender sobre Pandária e seus novos vizinhos.
Talvez sobre minha família também.
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Se Li Li era um exemplo da filosofia Huojin, as irmãs Chiang representavam com primor os adeptos da filosofia Tushui, muito mais dados à contemplação. Aos seus olhos, os atos deveriam ser pesados em
termos de justiça e moralidade — ainda que em versões parcas, pálidas
e provincianas de ideais muito maiores. Na verdade, grandes ideais de
justiça e moralidade talvez fossem coisas ostentadoras demais para as
irmãs Chiang.
Chen gostava de se ver firmemente plantado no meio. Nele, Huojin e Tushui estavam perfeitamente misturados, pensava consigo mesmo. Para ser realista, ele tendia para a filosofia Huojin quando estava se
aventurando mundo afora. Aqui, em Pandária, com os vales verdejantes
e as montanhas colossais, cercado de gente que preferia uma vida simples, Tushui fazia muito mais sentido.
No fundo, era disso que Chen precisava se distrair. Não dos projetos de novas cervejas, mas da ideia de que cedo ou tarde chegaria o dia
em que teria que escolher entre uma ou outra. Se fizesse de Pandária
seu lar, se encontrasse uma esposa e começasse uma família, os dias de
aventura estariam acabados. Logo ele se tornaria um cervejeiro bonachão, com um avental para proteger a pança e discussões intermináveis
com os fazendeiros, a respeito do preço do grão, e com os clientes, sobre
o preço da caneca.
Não seria uma vida má. Nada má, na verdade. Chen empilhou a
lenha organizadamente para as irmãs. Será que era o bastante?
Uma nova gritaria entre os filhotes chamou sua atenção. Li Li estava no chão e não se mexia. Algo se acendeu dentro dele — o antigo
chamado da batalha. Ele tinha muitas histórias de grandes conflitos, afinal lutara lado a lado com Rexxar, Vol’jin, Thrall. Resgatar sua sobrinha
não seria nada comparado àquelas batalhas, e recontar essas histórias
faria de sua cervejaria um sucesso, mas agir alimentou alguma coisa em
seu íntimo.
Algo que desafiava o Tushui nele.
Chen correu e entrou na pilha de pelos. Os filhotes eram agarrados
um a um pela pele do pescoço e atirados em todas as direções — como
eram feitos praticamente de músculos e pelos, quicavam e rolavam pelo
chão. Alguns se chocavam contra os outros, caindo de ponta-cabeça e
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nas posições mais cômicas. Um segundo depois, desemaranhavam-se e
saltavam prontos para a revanche.
O pandaren urrou, equilibrando um aviso gentil e uma ameaça
real.
Os filhotes congelaram.
Chen endireitou-se e, por instinto, a maioria das crianças também.
— O que está acontecendo aqui?
Keng-na, um dos mais afoitos, apontou na direção de Li Li, que
estava deitada:
— A tia Li Li estava ensinando a gente a lutar.
— O que eu vi não era luta. Era um briga das mais feias! — Chen
sacudiu a cabeça, exagerando na reação. — Isso não serve para nada, especialmente se os yaungóis voltarem. Vocês têm que ter um treinamento
adequado. Agora, sentido! — Ao dar a ordem, o pandaren ficou ereto,
em estado de alerta, e os filhotes o imitaram.
Chen lutou para conter um sorriso enquanto delegava aos pequenos, individualmente ou em grupos, tarefas, como coletar madeira, encher os baldes com água, arranjar areia para a trilha no jardim e vassouras para varrê-lo. Assim que bateu as patas, os filhotes correram para
cumprir suas tarefas como flechas disparadas de um arco. Ele esperou
até que todos desaparecessem e ofereceu uma das patas a Li Li.
Ela o fitou com o nariz franzido de desgosto:
— Eu podia ganhar.
— Claro, mas não faria diferença, faria?
— Não?
— Não, você estava ensinando a eles um senso de irmandade. Agora eles são um pequeno exército. — Chen sorriu. — Como um pouco de
disciplina e o trabalho dividido, eles podem ser úteis.
Sua voz subiu de tom na última frase para que as irmãs, grandes
beneficiárias do trabalho do miniesquadrão, ouvissem.
Li Li examinou a pata, depois se apoiou nela e ficou de pé. Enquanto arrumava as vestes e amarrava a faixa, resmungou:
— São piores que kobolds.
— É claro. Eles são pandarens. — Isso, também, foi dito em voz
alta, para que as irmãs Chiang não perdessem. Ele baixou a voz de novo.
— Admiro sua capacidade de se conter.
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— Pode apostar. — Ela esfregou o antebraço esquerdo. — Um deles estava me mordendo.
— Como você bem sabe, toda briga tem um mordedor.
Li Li pensou por um instante e sorriu:
— É, não tem como fugir. E obrigada.
— Pelo quê?
— Por me desenterrar.
— Ah, eu estava só sendo egoísta. Cansei de arrastar coisas por
hoje. Não tem grômulo nenhum para ajudar, então passei a tarefa para
o seu exercitozinho.
Li Li arqueou uma sobrancelha.
— Você não está me enganando.
Chen ergueu a cabeça e olhou para ela.
— Não consigo imaginar minha própria sobrinha, estudante
avançada de artes marciais, precisando da minha ajuda contra filhotes. Digo, se achasse isso, eu nem teria ajudado. Você nem seria minha
sobrinha.
Li Li ficou franziu a testa e ficou imóvel por um instante. Vendo
seus olhinhos estremecerem, Chen sabia que ela se esforçava para absorver a lógica.
— Tá, tá certo, tio Chen. Obrigada.
Chen gargalhou e enlaçou a sobrinha com o braço:
— É cansativo lidar com filhotes.
— É verdade.
— No meu caso foi fácil. Só tinha uma para eu cuidar, mas ela era
uma espoleta.
Li Li enterrou o cotovelo entre suas costelas:
— Ainda sou.
— E eu não poderia estar mais orgulhoso.
— Acho que poderia sim. — A pandarena se desvencilhou do tio.
— Você ficou decepcionado por eu não ter pedido pra trabalhar na cervejaria?
— O que faz você pensar isso?
Desconfortável, a garota deu de ombros e mudou a direção do
olhar para o Vale dos Quatro Ventos, onde estava a Cervejaria Malte do
Trovão.
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— Quando você está lá, está mesmo feliz. Eu posso ver. Você gosta
tanto.
Chen sorriu astutamente.
— É verdade. E quer saber por que não pedi que parasse de viajar
para se juntar a mim?
A expressão da garota se iluminou:
— Claro que quero.
— A razão, querida sobrinha, é que preciso de uma parceira que
esteja pronta para aventuras. E se eu precisar de musgo durotariano, que
só é encontrado nas cavernas mais profundas? Quem vai buscar para
mim? E por um bom preço? A cervejaria significa responsabilidade.
Não posso mais passar meses ou anos fora. Por isso preciso de alguém
que seja confiável. Alguém que, algum dia, possa voltar e cuidar das
coisas por mim.
— Mas eu não sirvo pra essa coisa de criar cerveja.
Chen refutou a objeção da sobrinha:
— Mestres cervejeiros sedentários eu posso contratar por aqui. Só
um Malte do Trovão pode cuidar da cervejaria. Mas talvez eu contrate
um bonitinho, aí quem sabe você não se casa com ele e…
—… e meus filhos herdariam a cervejaria? — Li Li sacudiu a cabeça. — Você vai ter seu próprio exército de filhotes quando nos encontrarmos de novo, tenho certeza.
— Mas eu sempre ficarei feliz em ver você, Li Li. Sempre.
Chen suspeitava que Li Li o teria abraçado, e ele teria devolvido o
abraço, não fosse por dois detalhes. Primeiro, eles estavam sob a mira
das irmãs Chiang, que ficavam extremamente desconfortáveis com demonstrações de afeto. Segundo, e ainda mais importante, foi a visão de
Keng-na atravessando a horta em disparada, uivando e de olhos esbugalhados.
— Mestre Chen, Mestre Chen, tem um monstro no rio! Um monstro enorme! Ele é azul, tem cabelo vermelho, todo cortado! Ele tá no
banco de areia. E tem garras!
— Li Li, pegue os filhotes. Mantenha todos longe do reservatório.
Não venha atrás de mim.
Ela o fitou:
— Mas e se…?
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— Se precisar de ajuda, eu chamarei. Vá, rápido. — Ele lançou um
olhar para as irmãs. — Talvez venha uma tempestade por aí. Talvez seja
melhor entrarem. E tranquem a porta.
Elas o encararam desafiadoramente por um instante, mas não disseram uma só palavra. Chen circulou o jardim e usou o balde de madeira abandonado de Keng-na para se orientar. Percorrer a trajetória do
menino pela relva pisoteada até o rio não foi difícil; quando chegou à
metade do caminho, lá estava o monstro.
Ele o reconheceu imediatamente. Um troll!
Keng-na estava certo. O troll estava severamente ferido. As roupas
dependuravam-se em farrapos, e a pele abaixo não estava muito melhor.
O troll se arrastara para fora do rio, prendendo-se com as garras e uma
das presas na lama.
Chen caiu de joelhos e virou o troll.
— Vol’jin!
Ao examiná-lo, viu que sua garganta estava destruída. Não fosse o
ar que irrompia do buraco em seu pescoço e o jorro vermelho que saltava dos ferimentos, o pandaren teria achado que o amigo estava morto.
Talvez morresse.
Chen agarrou os braços de Vol’jin e tentou puxar o troll para a terra. Não seria fácil. Um farfalhar veio da mata atrás dele e, um segundo
depois, Li Li segurava o ombro esquerdo de Vol’jin para ajudar o tio.
Seus olhos se encontraram.
— Pensei que você tinha gritado.
— Talvez eu tenha. — Chen ajoelhou-se e ergueu o troll em seus
braços. — Meu amigo Vol’jin está gravemente ferido. Talvez envenenado. Não sei o que ele está fazendo aqui. Não sei se ele vai sobreviver.
— Esse é o Vol’jin, de quem você sempre fala… — Li Li examinou
atenciosamente a figura ensanguentada. — O que você vai fazer?
— Vou fazer o que for possível agora. — Chen levantou a cabeça
em busca do Monastério Shado-pan que encimava o Monte Kun-Lai. —
Depois acho que vou levá-lo até lá. Talvez os monges aceitem mais um
dos meus achados.
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