II Colóquio da Pós-Graduação em Letras UNESP – Campus de Assis ISSN: 2178-3683 www.assis.unesp.br/coloquioletras [email protected] O MAYOMBE DE SEM MEDO: A BUSCA DE UMA IDENTIDADE POR TRÁS DO EXÍLIO Bruno Tomaz Custódio dos REIS (Graduando – UNESP/Assis) RESUMO: O Mayombe diz respeito a um exílio comunitário e, ao mesmo tempo, singular, onde cada um vive o seu e também vive a do outro, tendo uma permuta de experiências moradas e uma aquisição de conduta e caráter para a formação de tais indivíduos. O livro Mayombe, em geral, gira em torno de Sem Medo, o comandante da Guerrilha, e é nele que se foca o real exílio geográfico e principalmente o sentimental. Sendo algo que pode derrubar a vida de uma pessoa, ele, Sem Medo, trabalha para contornar essa dificuldade. PALAVRAS-CHAVE: Literatura africana; Pepetela; Mayombe; guerrilha; exílio. Introdução O romance Mayombe, escrito pelo angolano Pepetela, expõe um momento importante da história política de Angola. A estória narrada é focada no personagem Sem Medo, um líder guerrilheiro que comanda o seu pequeno contingente em meio a dificuldades, como o racismo, o tribalismo, o oportunismo, as ideologias – “Os meus guerrilheiros não são um grupo de homens manejados para destruir o inimigo, mas um conjunto de seres, individuais, cada um com as suas razões subjetivas de lutar e que, aliás, se comportam como tal” (PEPETELA, 2004, p. 232) – que circulam neste meio. Ocorre uma representação da realidade mesclada com o ficcionário, já que movimentos guerrilheiros lutavam pela libertação nacional contra o colonialismo português na década de 60 e estendido até meados da década de 70, sendo conduzida efetivamente a independência em 75. Tudo começou com a partilha da África por interesses Europeus numa conferência de Berlim em 1884-1885. Neste momento, tribos aliadas foram separadas e tribos inimigas unidas. Assim, somente após a Segunda Guerra Mundial as colônias foram conquistando a independência. A arte, e portanto a literatura, é uma transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos. Nela se combinam um elemento de vinculação à realidade natural ou social, e 80 um elemento de manipulação técnica, indispensável à sua configuração, e implicando uma atitude de gratuidade. (CANDIDO, 2002, p. 47). Pepetela faz essa transposição, de algo realmente vivido para o literário, a fim de mostrar aos leitores como foi sua experiência durante a guerra de guerrilha e não para justificar, por meio dos documentos históricos, os acontecimentos. Assim, ele tem uma base fortificada para uma manipulação dos caminhos individuais que compõem a trajetória coletiva dos combatentes, controlando a história para que tenha um impacto desejado. O Mayombe diz respeito a um exílio comunitário e, ao mesmo tempo, singular, onde cada um vive o seu e, também, o outro, tendo uma permuta de experiências moradas e uma aquisição de conduta e caráter para a formação de tais indivíduos. Trataremos sobre o exílio, não especificamente do exílio político, mas sim do exílio como autoflagelação e especialmente do exílio de Sem Medo, mas sem esquecer dos outros personagens que compõem esta grandiosa narrativa. O exílio, pouco discutido pelas frentes teóricas, faz com que este assunto tenha diversas interpretações, mas vemos que o exílio de Sem Medo é uma situação de fuga do passado, algo sentimental deixado para trás. Mas esta fuga não é mais do que uma ilusão criada por ele, pois ele está preso ao exílio, suas memórias estão sempre próximas, prendendo-o a este ciclo rotativo. “Grande parte da vida de um exilado é ocupada em compensar a perda desorientadora, criando um novo mundo para governar” (SAID, 2003, p. 54). Assim, vemos que como comandante, Sem Medo faz do Mayombe de todos, o seu próprio, contudo tendo um toque de desraizamento com este local. Isso mostra que há uma busca incessante por uma identidade, sendo formada por passagens obscuras e objetivas, em que esta busca não terminou antes e nem depois do Mayombe. Teoria sentia que o Comandante também tinha um segredo. Como cada um dos outros. E era esse segredo que cada um que os fazia combater, frequentemente por razões longínquas das afirmadas. Por que Sem Medo abandonara o curso de Economia, em 1964, para entrar na guerrilha? (PEPETELA, 2004, p. 15). Um exílio sentimental mostra ser mais doloroso e mais sombrio para a pessoa que carrega esse fardo; para abstrair essa ideia do passado, ela usa as atividades atuais como algo que possa ocupar sua mente, afastando da sua memória recordações do passado que infrinja o seu presente e, principalmente, seu futuro, um futuro incerto que, dependendo da dor, pode direcionar o caminho a total desgraçada. 81 Contudo, mesmo mostrando essa determinação para distanciar esses sentimentos, vez ou outra eles voltam para mostrar algo. Para o exilado, os hábitos de vida, expressão ou atividade no novo ambiente ocorrem inevitavelmente contra o pano de fundo da memória dessas coisas em outro ambiente. Assim, ambos os ambientes são vívidos, reais, ocorrem juntos como no contraponto. Há um prazer específico nesse tipo de apreensão, em especial se o exilado está consciente de outras justaposições contrapontísticas que reduzem o julgamento ortodoxo e elevam a simpatia compreensiva. Temos também um sentimento particular de realização ao agir como se estivéssemos em casa em qualquer lugar (SAID, 2003, p. 59-60). O prazer em meio ao exílio é algo alcançado para tentar afagar as dores passadas, tirando da cabeça os problemas para se concentrar nas atividades. Para um cargo tão graduado de comandante, Sem Medo não poderia ter em mente tais problemas, desvirtuando-o da liderança da guerrilha naquela região, onde no mínimo seu julgamento sobre tais ações poderia ser frágil e incorreto, e os companheiros, observando esse mau manuseio do poder, poderiam reivindicar esse cargo tão cobiçado. Mas, concentrado no seu dever, ele demonstra boas condutas de liderança, mesmo vista, por alguns, com maus olhos e, assim, ganha a confiança de uma parte do bando. Claro que uma revista dos combatentes transpõe uma visão de atitude ortodoxa, mas Sem Medo também quer consertar o erro e ganhar a simpatia e o apoio do povo. Entretanto, vamos aproveitar para ver este caso dos cem escudos. Isto é grave, pois pode desmentir tudo o que dissemos. Quer dizer, afinal, somos mesmo bandidos, que roubamos o povo. O sacana que ficou com o dinheiro é contra-revolucionário, além de ser um ladrão barato, pois sabotou a boa impressão que podíamos ter causado aos trabalhadores. É melhor que ele diga já onde está o dinheiro... Quanto mais tarde, pior! (PEPETELA, 2004, p. 38) Mesmo visto por maus olhos, Sem Medo quis continuar com a revista para achar uma solução a este problema que poderia contaminar o bando todo. Um roubo pequeno poderia corromper e deflagrar ações que sujariam a imagem da MPLA, perdendo o fraco apoio das pessoas daquela região. Essa iniciativa de justiça não foi criada do nada, foram experiências vistas graças ao exílio, fazendo com que criasse bases amplas para um julgamento unânime. E para criar essa base, Sem Medo – um homem viajado que presenciou algumas “aventuras” no decorrer do seu caminho – soube observar em sua vida, refletir e experimentar. 82 Embora talvez pareça estranho falar dos prazeres do exílio, há certas coisas positivas para se dizer sobre algumas de suas condições. Ver ‘o mundo inteiro como uma terra estrangeira’ possibilita a originalidade da visão. A maioria das pessoas tem consciência de uma cultura, um cenário, um país; os exilados têm consciência de pelo menos dois desses aspectos, e essa pluralidade de visão dá origem a uma consciência de dimensões simultâneas, uma consciência que – para tomar emprestada uma palavra da música – é contrapontística. (SAID, 2003, p. 59) Por esse motivo, percebemos que o exílio é algo que deve ser visto por diferentes perspectivas, pois, ainda que o exílio seja algo penoso e torturante, ele, indiretamente, pode auxiliar na formação do indivíduo. Entretanto, o indivíduo deve estar receptivo ao aprendizado, até mesmo em momentos difíceis e não se torturando mentalmente. Claro que nem todas as pessoas têm a lucidez de saber contornar, da melhor maneira possível, as situações de problema. Essas poucas pessoas, mesmo sofrendo, tentam tirar o melhor proveito, amenizando essa experiência tão difícil. Assim, fazem com que o psicológico não entre em conflito, a ponto de cegá-los dentro desta floresta tenebrosa que chamamos de consciente. Outra tormenta que surge do exílio psicológico é a perda por algo demasiadamente estimado no passado. Com isso duas vertentes surgem: o luto e a melancolia, sendo respectivamente, a dor pela morte de alguém e a seguinte, a convivência com a perda. Esses dois sentimentos são grandes fagulhas para a perda de foco e de boa mentalidade. Assim, o indivíduo mal estabilizado pode cair nesse imaginário poço, possivelmente, infinito: “As realizações do exílio são permanentemente minadas pela perda de algo deixado para trás para sempre” (SAID, 2003, p. 46). Essas realizações que Sem Medo faz principalmente durante a guerrilha é no intuito de esquecer o passado, e ter a atenção no presente para que o rumo do futuro seja bem fortificado: A espera era pior. Depois de o inimigo surgir, acabavam os problemas, os fantasmas ficavam para trás, e só a ação contava. Mas, na espera, as recordações tristes da meninice misturavam-se à saudade dos amigos mortos em combate e mesmo (ou sobretudo) ao rosto de Leli. Sem Medo notou que tinha passado mais de seis meses sem pensar em Leli. Desde o último combate. Ao irem atacar o Posto de Miconje, a imagem de Leli viera confundir-se com a chuva que formava torrentes de lama, resvalando pela costa que subiam para atingirem o inimigo. Tinham progredido na noite, debaixo de aguaceiro constante, para atingirem o ponto de ataque às seis da manhã. A lama e a chuva cegavam-nos, asfixiavam-nos, ofegantes pelo esforço de subirem de rastos uma montanha coberta de mata densa. Fora aí, na cegueira da floresta e da chuva, que Leli viera, se 83 impusera de novo. A angústia perseguiu-o até dar a ordem de fogo. O grito de fogo saíra-lhe como uma libertação, um urro de animal fugindo da armadilha. O grito ferido de Sem Medo afugentara a imagem de Leli (PEPETELA, 2004, p. 49-50). Vemos neste trecho a primeira amostra de algo realmente deixado para trás por Sem Medo no passado, Leli sua amada que morrera. No momento antecedente ao confronto, onde seus pensamentos não estavam completamente engajados na ação que estava preste a acontecer, o fantasma de Leli surge como algo que tem o intuito de desestabilizá-lo em sua ação, do mesmo modo em que ela surgiu metaforicamente em outro combate. Ele tenta demonstrar que sua ferida está totalmente cicatrizada, mas, podemos perceber que se trata de algo superficial, pois o narrador nos conta que ele afugenta o fantasma dela, mas sua imagem, não importe o que ele faça, sempre retorna, independente de haver um grande espaço de tempo entre o presente e suas lembranças. No entanto, observamos que fazia mais de seis meses que as lembranças dela não o rondavam, mas isso não quer dizer que ele desejava esquecêla. Pois se sua presença era indiretamente invocada para tentar tirar o foco, Sem Medo recebia isso como um sinal de que deveria ficar mais cauteloso para não cair em suas próprias ilusões, acarretando uma falha que mutilaria a si próprio e aos seus companheiros. No fim das contas, o exílio não é uma questão de escolha: nascemos nele, ou ele nos acontece. Mas desde que o exilado se recuse a ficar sentado à margem, afagando uma ferida, há coisas a aprender: ele deve cultivar uma subjetividade escrupulosa [...] (SAID, 2003, p. 57). Sem Medo associa inconscientemente que as aparições de Leli são lições para a sua formação, que quando surge um encanto hipnotizante, ele deve ser o mais racional possível para conseguir sair de forma ilesa. Ele fica mais forte e seu raciocínio mais claro, sabendo de uma forma mais efetiva a conclusão das suas tarefas. Entendemos que o exílio é uma bela arma para a construção de uma nova identidade do indivíduo no espaço em que pertence, já que a antiga se mantém em fragmentos como em um segundo plano, ativada, apenas, em momentos chaves. Assim, só depende do indivíduo superar e seguir em rumo à paz interior ou fracassar e viver amargurado. Vemos, então, as diversas vertentes que compõem o exílio em sua face mais obscura, que aqui acorrentado ao Sem Medo, é levada como uma companheira nas aventuras que este ocorrido lhe proporcionou. 84 Referências bibliográficas CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 8 ed. São Paulo: T.A. Queiroz Ed., 2002. INFO ANGOLA: A Biblioteca Virtual de Angola. Desenvolvido pelo Governo da República de Angola. 2008. Disponível em: http://www.info-angola.com. Acesso em: 3 maio 2010. REIS, Eliana Lourenço de L. Pós-colonialismo, identidade e mestiçagem cultural: A literatura de Wole Soyinka. Rio de Janeiro: Relume-Dumará: Salvador, BA: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1999. PEPETELA. Mayombe. Luanda: Edições Maianga, 2004. SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 85