GENOMA HUMANO: O DIREITO À INTIMIDADE E O NOVO CÓDIGO CIVIL Loreci Gottschalk Nolasco1 Resumo Resumo: Neste artigo, pretende-se demonstrar os problemas que o Projeto Genoma Humano acarreta do ponto de vista do direito à intimidade e, principalmente, as luzes que o novo Código Civil oferece para solucioná-los. Para isso, serão necessárias algumas considerações sobre o Projeto Genoma Humano, os limites éticos e jurídicos de pesquisa científica e sobre o atual conceito de intimidade, levando sempre em consideração que a intimidade é um dos núcleos que compõem os direitos de personalidade. Palavras-Chave: Bioética - Direito Civil - Direitos 1. Introdução Um passo significativo e decisivo da ciência foi dado no ano de 1944, quando se identificou o DNA2 como base molecular dos genes, isto é, quando se descobriu que os genes são formados de DNA. A genética, entendida como a ciência que tem por objeto de estudo fragmentos mais ou menos largos de DNA, que podem ser identificados e isolados dentre toda massa molecular do indivíduo, portanto, não é algo recente. No entanto, desde a descoberta do DNA como base molecular dos genes até os nossos dias, em que costumeiramente se fala de genoma humano e de clonagem humana com tanta freqüência, como se comenta qualquer outro aspecto da vida, o processo de evolução do objeto de estudo da genética foi muito rápido, impedindo, sobretudo, que houvesse um acompanhamento legal adequado destes fatos sociais e científicos por parte da ciência jurídica como Mestre em Direito pela Unigran/UnB. Professora na UEMS. DNA - Ácido desoxirribonuclêico – material genético que contém informações determinantes dos caracteres hereditários transmissíveis à descendência. Materiais biológicos suscetíveis à análise do DNA, para fins forenses: sangue, em qualquer quantidade, mesmo que seja um respingo encontrado em madeiras, papéis, vestes, instrumentos pérfuro-cortantes, projéteis, no solo etc; esperma em preservativos usados, encontrados no local do crime, ou em vestes; tecidos moles (músculo, vísceras); pêlos (com a raiz, pois é a região onde se encontram células satisfatórias para análise); restos de peles (podem ser encontradas embaixo das unhas das vítimas e/ou suspeitos); urina, saliva, secreções diversas, observando que é possível encontrar resíduo de saliva em guimbas de cigarro, envelopes, copos, goma de mascar, além de outros substratos mencionados para o sangue. 1 2 5 7 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 57 21/8/2008, 10:21 instrumento de regulação da vida em sociedade. Com efeito, só recentemente o Direito começou a se preocupar com as conseqüências jurídicas da genética e do seu objeto de estudo, já que, somente a partir da década de 1990, quando começaram a ser difundidos os estudos relativos à transgênesis (estudos de plantas e animais transgênicos) e à clonagem (procedimento capaz de reproduzir réplicas de determinado material biológico tanto de animais, quanto de seres humanos) é que tais conseqüências começaram a ter importância do ponto de vista jurídico, principalmente, porque, a partir da clonagem de animais e da possibilidade de clonagem humana, começou-se a falar em violação do princípio da dignidade humana, regulado no art. 1º, III, da Constituição Federal como princípio fundamental, e, por conseguinte, de violação aos direitos fundamentais relacionados com esse princípio: o direito à vida, à intimidade, à liberdade e à igualdade, dos quais falaremos mais adiante. Os avanços científicos cursam geralmente adiante do Direito, que retarda a sua acomodação a conseqüências daqueles. Esse assincronismo entre ciência e Direito origina um “vazio” jurídico que permite ao filósofo, ao médico e ao jurista refletirem e proporem ajustes ao sistema. A chamada engenharia genética possibilitou, por exemplo, a modificação programada do patrimônio genético das células e, com isso, do organismo ao qual a célula pertence. Com promessas para o tratamento e a eliminação de enfermidades por imperfeições genéticas, trouxe consigo também os temidos riscos da construção de novas formas de seres vivos. Maria Celeste Cordeiro dos Santos, citando Ferrando Mantovani informa que as preocupações, nos âmbitos nacional e internacional são “de que as tecnologias genéticas sejam usadas não com e para o homem, mas contra o homem; e com a exigência, cada vez mais acusada, de que surja uma regulamentação jurídica que fixe os limites de sua licitude, assim como seus controles”. A autora afirma ainda que: A moderna tecnologia reprodutiva produz o colapso de princípios e axiomas jurídicos que até agora se tinham por absolutos: a regra mater semper certa est, a presunção de paternidade do marido, a presunção 5 8 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 58 21/8/2008, 10:21 de direito sobre a duração da gravidez (entre 180 e 300 dias), o princípio da inalienabilidade do estado civil, a consangüinidade do parentesco e das ordens genealógicas etc.3 A recente preocupação jurídica não consiste, portanto, em impedir a utilização da genética, mas em criar mecanismos para a tutela dos direitos fundamentais envolvidos em caso de sua violação, bem como de evitar que a utilização maciça das novas descobertas científicas converta a humanidade em cobaia que possa ser utilizada de qualquer maneira e a qualquer custo em nome da ciência. Em outras palavras, o Direito se preocupa com a coisificação do ser humano que pode advir da utilização desmedida das descobertas científicas e da sua comercialização em grande escala, na lição de Flavia de Paiva Medeiros de Oliveira.4 No atual momento, os juristas precisam se perguntar se a regulação jurídica que o novo Código Civil confere aos direitos de personalidade é suficiente e adequada para enfrentar uma realidade social em que a genética se torna cada vez mais presente na vida cotidiana do ser humano. 2. O Projeto Genoma Humano Vivemos em uma época de transição e incerteza. A possibilidade da eugenia, discriminação, clonagem total ou parcial de seres humanos e, por outro lado, a cura de doenças de origem genética, patentes de genes humanos são questionamentos que vieram à baila com a revolução introduzida pelas técnicas de engenharia genética, culminando com o Projeto Genoma Humano. O conjunto de informações contidas nos cromossomos de uma célula denomina-se genoma, e o DNA (ácido desoxirribonucléico) é o portador da mensagem genética, podendo ser imaginado como uma longa fita onde estão escritas, em letras químicas, os caracteres de cada ser humano, sendo, por isso, sua imagem SANTOS, Maria Celeste Cordeiro dos. O Equilíbrio do Pêndulo, a Bioética e a lei: implicações médicolegais. SP: Ícone, 1998, p. 23, 28 e29. 4 OLIVEIRA, Flávia de Paiva Medeiros de. Genoma Humano, Direito à Intimidade e o Novo Código Civil. Revista Prática Jurídica Jurídica. n.15, 30 de junho de 2003, p. 34. 3 5 9 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 59 21/8/2008, 10:21 científica. O Projeto Genoma visa o conhecimento de todo o código genético humano e de suas alterações, que são as causas de quatro mil moléstias hereditárias. Para tanto tem procurado identificar os cem mil genes existentes nos quarenta e seis cromossomos componentes do genoma humano. Para Maria Helena Diniz, o Projeto Genoma Humano constitui um dos mais importantes empreendimentos científicos dos séculos XX e XXI e um dos mais fascinantes estudos que poderia ter sido feito nesta nova era científica. Com isso o genoma humano, que é propriedade inalienável da pessoa e patrimônio comum da humanidade (art. 1º da Declaração Universal sobre o Genoma e Direitos Humanos), passará a ser a base de toda pesquisa genética humana dos próximos anos. Esse projeto, ao descobrir e catalogar o código genético da espécie humana, efetuando um mapeamento completo do genoma humano, possibilitará a cura de graves enfermidades, explorando as diferenças entre uma célula maligna e uma normal para obter diagnósticos de terapias melhores.5 A importância da descoberta do genoma humano reside na possibilidade de se personalizar a medicina, ou seja, realizar tratamentos que se baseiam em conhecimento mais detalhado da fisiologia de cada pessoa, uma vez que o código genético da pessoal determina, em muitos casos, sua reação a um medicamento, inclusive efeitos colaterais. Entretanto, às esperanças de cura acopla-se um biopoder incomensurável, decorrente das possibilidades de métodos tecnológicos sofisticados de cerceamento da liberdade e aumento da opressão racial e étnica, além do biopoder implícito ao saber manipular a vida via transgenicidade, hibridismo e clonagem, segundo Celeste Leite dos Santos Pereira Gomes e Sandra Sordi.6 Para as autoras, o Projeto Genoma Humano visa decodificar as informações contidas nos nossos cromossomos. Ou seja, isso implica a decodificação de três bilhões de elementos que compõem o livro da vida. Mas, segundo elas, uma vez seqüenciado cada gene e identificada a informação que contém, assim como o lugar que ocupa no cromossomo, não parece complexo imaginar o passo seguinte: DINIZ, Maria Helena. O estado atual do Biodireito Biodireito. SP: Saraiva, 2002, p.388/389. GOMES, Celeste Leite dos Santos Pereira & Sordi, Sandra. Aspectos Atuais do Projeto Genoma Humano, in SANTOS, Maria Celeste Cordeiros Leite (Org), Biodireito Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. SP: RT, 2001, p. 169-195. 5 6 6 0 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 60 21/8/2008, 10:21 “tratar de modificar o genoma, extraindo cromossomos supernumerários, agregando genes sãos, eliminado os que apresentem deficiências, ou alterando-os.” 7 O Projeto Genoma fará com que os genes sejam identificados e a informação concentrada neles poderá determinar vidas humanas e destruir iniciativas pessoais. A dignidade e liberdade humanas não podem ficar à mercê da manipulação biocientífica. Poderiam se estabelecer bancos de dados de DNA individual e as agências governamentais, a polícia, os empresários, as companhias de seguros, os empregadores, etc., poderiam fazer mau uso dos mesmos. O potencial do Projeto Genoma é para o bem, mas suas dimensões ultrapassam nossa imaginação e mostram a crescente complexidade desse campo. As questões éticas colocadas no projeto dizem respeito, essencialmente, ao acesso e ao uso das informações e à apropriação econômica e jurídica de seus resultados. Segundo a Declaração de Bilbao, celebrada em Reunião Internacional nos dias 24 a 26 de maio de 1993, na Espanha, as reflexões feitas e conclusões obtidas foram as seguintes: O desenvolvimento total da cartografia do genoma humano abrirá uma nova era na investigação da natureza, estrutura e funções dos genes, o que proporcionará uma visão nova – até agora inimaginável – da fisiologia humana e permitirá conhecer as enfermidades genéticas. De fato já se identificaram as bases moleculares de um grande número deles e, à medida que o projeto avance, são de esperar novos descobrimentos, novas terapias de prevenção e melhora da saúde humana. O projeto contribuirá também para definir a identidade individual com uma exatidão sem precedentes. Há que se reconhecer, sem dúvida, a existência de alguns perigos, uns conhecidos, e outros que se intuem. É a outra face do projeto. Os participantes da Reunião Internacional lembraram alguns lamentáveis exemplos do mau uso da experimentação científica e de práticas eugênicas em décadas anteriores, que servem para alertar a Humanidade, os cientistas e os juristas, sobre certos riscos que podem surgir à medida que o Projeto Genoma Humano avance. Os participantes são conscientes também da possibilidade de utilizar a informação genética para dividir grupos e discriminar pessoas, em definitivo, para vulnerar direitos humanos universalmente admitidos. Por isso, consideraram oportuno estabelecer certos princípios que devem ser respeitados. Todas as sociedades civilizadas 7 Idem, ibidem, p. 171. 6 1 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 61 21/8/2008, 10:21 se organizam legalmente apoiadas no princípio de respeito à dignidade humana e na proteção dos direitos humanos individuais. As variações genéticas, do mesmo modo que a diversidade social, constituem atributos dos seres humanos livres. A idéia de uma ‘perfeição’ genética e da eliminação, por meios genéticos, da preciosa variedade da humanidade é socialmente repulsiva e apresenta um grande risco para a espécie humana, que tem sobrevivido e evoluído, como resultado das inúmeras diferenças genéticas individuais. Por isso a variedade cultural demanda um definido e harmônico marco de leis nacionais e acordos internacionais.8 Para Maria Celeste Cordeiro dos Santos, os temas abordados na Declaração, destacaram a existência de problemas legais a resolver, tais como: 1 – Incidência da genética na liberdade da pessoa, na formação da vontade, na conduta humana e, como conseqüência, em sua responsabilidade ou culpabilidade, o que tem especial repercussão no direito penal; 2 – Respeito aos direitos humanos, segundo estão consagrados nas Constituições dos Estados democráticos e acordos internacionais, como limite na utilização de técnicas genéticas referentes ao ser humano; 3 – Proteção à intimidade pessoal ou confidencialidade na informação genética e determinação dos supostos em que é possível alterá-la ou transformá-la; 4 – Patenteamento dos genes e seqüências humanas fixando limites, direitos de propriedade, benefícios econômicos; 5 – Fixação de limites precisos para certas formas de engenharia genética que afetam a individualidade, identidade e variabilidade do ser humano por grave risco que supõem para a dignidade pessoal e para a evolução natural da herança genética; 6 – Utilização da informação genética no campo de seguros e utilização de provas genéticas no campo trabalhista, quando envolverem discriminações não justificáveis; 7 – Tensão entre a demanda de liberalização total na utilização ou aplicação da investigação e experimentação científica e a proteção de certas liberdades humanas que podem correr riscos pela difusão e utilização não autorizada de informação genética.9 A enumeração da seqüência dos pares de base que formam o DNA traz inúmeros benefícios à espécie humana, ao mesmo tempo que gera inúmeros problemas do ponto de vista jurídico, na lição de Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira. 8 9 SANTOS, Maria Celeste Cordeiro dos. Op. cit. p. 66. Idem, ibidem, p. 66/67. 6 2 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 62 21/8/2008, 10:21 Para a autora, os benefícios podem ser assim resumidos: a) melhora do nível de vida do ser humano, ao permitir conhecer as alterações genéticas que acarretam anomalias moleculares capazes de deteriorar o funcionamento das células; b) permite uma administração individualizada de medicamentos, feita de acordo com a alteração genética e com a anomalia molecular constatada, sendo esta administração de fundamental importância no tratamento de algumas doenças como, por exemplo, o câncer, o mal de Alzheimer e a esquizofrenia. Em contrapartida, os problemas jurídicos suscitados também são inúmeros, tais como os relativos à divulgação dos dados obtidos e que fazem parte da informação genética secundária do ser humano, a proteção da privacidade frente a terceiros nos aspectos concernentes, por exemplo, às relações trabalhistas e às seguradoras, ao dilema sobre revelação de dados genético, ao assessoramento genéticos, ao diagnóstico pré-natal e ao aborto eugênico, entre tantos outros que têm relação com o princípio da dignidade humana. 10 Maria Celeste Cordeiro dos Santos salienta que a chegada da engenharia genética possibilitou a modificação programada do patrimônio genético de uma célula e, portanto, do organismo a que a célula pertence, seja este um organismo monocelular ou pluricelular e, inclusive, até a construção de novas formas de seres vivos. Citando Mantovani afirma que as vantagens potenciais da tecnologia ética residem: “a) sobre o plano industrial e agrícola para produção de alimentos, energias e matérias primas; b) sobre o plano da terapia farmacológica para a produção de proteínas humanas e animais e c) sobre o plano da terapia gênica, cheia de promessas para o tratamento e eliminação de enfermidades devidas a imperfeições genéticas (inclusive o câncer). No entanto ressalta que são grandes os riscos de que “as tecnologias genéticas sejam usadas não com e para o homem, mas contra o homem; e com a exigência cada vez maior, de que surja uma regulamentação jurídica que fixe os limites de sua licitude assim como seus controles.”11 10 11 OLIVEIRA, Flávia de Paiva Medeiros de. Op. cit. p. 36. SANTOS, Maria Celeste Cordeiro dos. Op. cit. p. 161. 6 3 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 63 21/8/2008, 10:21 Com efeito, a autora leciona que: Os instrumentos jurídicos são o meio adequado, ainda que não o único, e muitas vezes tampouco o mais eficaz, para regulamentar essas atividades vinculadas ao patrimônio genético. Eles devem garantir que todos os seres humanos se beneficiem dos progressos derivados das investigações sobre o genoma humano e ao mesmo tempo os proteja de suas aplicações desviadas ou não desejáveis.12 Por fim, urge a tomada de medidas, inclusive legislativas, que orientem os cientistas em seu trabalho na seara da biotecnologia para salvaguardar a sobrevivência da espécie humana e o respeito da dignidade do ser humano, evitando sua coisificação, pois como vimos, a biotecnologia poderá lesar alguém ou alterar sua qualidade de ser único e irrepetível e até mesmo modificar seu patrimônio genético, transformando sua identidade e a das gerações presentes e futuras. Tal é a gravidade do assunto, que a Constituição Federal, no art. 225, § 1º, incumbiu o Poder Público de preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e de fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e à manipulação de material genético. As implicações éticas dos avanços biotecnológicos são conducentes a um paradigma de racionalidade ética contido no art. 1º, III, da Carta Magna, o respeito à dignidade humana, que deve servir de diretriz a todo aplicador do direito, inclusive ao Poder Legislativo. Para Maria Helena Diniz, “O respeito que o ser humano deve a si mesmo é a verdadeira medida da atuação do direito para assegurar a adequação da conduta dos cientistas às pautas axiológicas que realizem e concretizem o fundamento constitucional da dignidade humana, pois, se assim não fosse, transformar-se-ia o homem de sujeito em objeto, de fim em meio, assegurando-se sua destruição e não sua sobrevivência.”13 12 13 Idem, ibidem, p. 74. DINIZ, Maria Helena. Op. cit. p.385/386. 6 4 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 64 21/8/2008, 10:21 3. Limites Éticos e Jurídicos de Investigação em Seres Humanos A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, IX, proclama a liberdade da atividade científica como um dos direitos fundamentais, mas isso não significa que ela seja absoluta e não contenha qualquer limitação, pois há outros valores e bens jurídicos reconhecidos constitucionalmente, como a vida, a integridade física e psíquica, a privacidade, etc. Que poderiam ser gravemente afetados pelo mau uso da liberdade de pesquisa científica. Nesse passo, Maria Helena Diniz ensina que “Nenhuma liberdade de investigação científica poderá ser aceita se colocar em perigo a pessoa humana e sua dignidade. A liberdade científica sofrerá as restrições que foram imprescindíveis para a preservação do ser humano na sua dignidade.”14 Para a autora, os bioeticistas devem ter como paradigma o respeito à dignidade da pessoa humana, que é o fundamento do Estado Democrático de Direito e o cerne de todo o ordenamento jurídico. Assim sendo, “não poderão bioética e biodireito admitir conduta que venha a reduzir a pessoa humana à condição de coisa, retirando dela sua dignidade e o direito a uma vida digna”.15 Mas, qual o significado de dignidade do homem, quando se está diante de uma infinidade de valores em sociedades plurais? Significativamente, por dignidade do homem entende, Maria de Fátima Freire de Sá, ser “‘o maior dos valores’, ou o ‘princípio jurídico supremo’, ou ainda o ‘princípio constitucional supremo’”.16 Foi nesse sentido que a Declaração sobre a Utilização do Progresso Científico e Tecnológico no Interesse da Paz e em Benefício da Humanidade, em seu art. 6º dispõe: “Todos os Estados adotarão medidas tendentes a estender a todos os estratos da população os benefícios da ciência e da tecnologia e a protegê-los, tanto nos aspectos sociais quanto materiais, das possíveis conseqüências negativas do uso indevido do progresso científico e tecnológico, inclusive sua utilização indevida para infringir os direitos do indivíduo Idem, ibidem, p. 7, 8. Idem, ibidem, p. 17. 16 FREIRE DE SÁ, Maria de Fátima. Biodireito Biodireito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 96/97. 14 15 6 5 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 65 21/8/2008, 10:21 ou do grupo, em particular relativamente ao respeito à vida privada e à proteção da pessoa humana e de sua integridade física e intelectual.” No mesmo passo a Convenção sobre Direitos Humanos e Biomedicina, em seu art. 2º prescreve: “os interesses e o bem-estar do ser humano devem prevalecer sobre o interesse isolado da sociedade ou da ciência”. O Projeto Genoma Humano, por sua própria natureza e em razão de ser a herança da humanidade, envolve muitas questões éticojurídicas, como: a) O Direito à vida, fundamento de todos os demais direitos humanos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos. A vida humana é amparada juridicamente desde o momento da fecundação natural ou artificial do óvulo pelo espermatozóide (CC, art. 2º, Lei n. 8.974/95 e CP arts. 124 a 128). O direito à vida integra-se à pessoa até o seu óbito, abrangendo o direito de nascer, o de continuar vivo e o de subsistência, mediante trabalho honesto (CF, art. 7º) ou prestação de alimentos (CF, arts. 5º, LXVII, e 229), pouco importando que seja idosa (CF, art. 230), nascituro, criança, adolescente (CF, art. 227), portadora de anomalias físicas ou psíquicas (CF, art. 203, IV, 227, § 1º, II), que esteja em coma ou que haja manutenção do estado vital por meio de processo mecânico. O direito à vida deverá ser respeitado ante a prescrição constitucional de sua inviolabilidade absoluta, sob pena de se destruir ou suprimir a própria Constituição Federal, acarretando a ruptura do sistema jurídico. Seria inadmissível qualquer pressão no sentido de uma emenda constitucional relativa à vida humana, como, por exemplo, a referente à legalização do aborto, pois o art. 5º é cláusula pétrea. Por isso, entende Maria de Fátima Freire de Sá que: A liberdade e a dignidade são valores intrínsecos à vida, erigidos à categoria de princípios, de modo que não deve a vida ser considerada bem supremo e absoluto, acima dos dois primeiros valores, sob pena de o amor natural pela vida transformar-se em idolatria. E a conseqüência do culto idólatra à vida é a luta, a todo custo, contra a morte.17 17 FREIRE DE SÁ, Maria de Fátima. Op. cit. p. 111. 6 6 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 66 21/8/2008, 10:21 b) O respeito aos direitos e à dignidade humana, pois todos têm direito ao reconhecimento desta, independentemente de seus caracteres genéticos, conforme dispõe a Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos nos arts. 2º e 6º, 10, 11, 15, 21 e 24, prescrevendo especialmente que “nenhuma pesquisa relativa ao genoma humano poderá prevalecer sobre a dignidade humana e o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais, nem mesmo sendo permitidas quaisquer práticas contrárias à dignidade humana, como a clonagem reprodutiva de seres humanos” (arts. 10 e 11). Além disso, a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Gerações Futuras estabelece no art. 3º que é “proibido causar dano, de qualquer maneira que seja, à forma humana de vida, em particular com atos que comprometam de modo irreversível e definitivo a preservação da espécie humana, assim como o genoma e a herança genética da Humanidade, ou tendam a destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. No mesmo sentido a Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e a Dignidade do Ser Humano em face da Biologia e da Medicina, subscrita em 1996 por 21 membros do Conselho da Europa, na cidade de Oviedo, capital das Astúrias na Espanha, determina que “Nada pode atropelar a dignidade humana, valor máximo que é. Os interesses do ser humano só não têm prevalência sobre ameaças à saúde e segurança pública, bem como direitos a liberdade dos cidadãos. Engenharia Genética: só será permitida com fins preventivos para diagnóstico e terapia. Jamais poderá alterar o patrimônio genético da descendência”. c) Direito à intimidade genética (preservação da privacidade da informação genética), amparado pela Declaração Universal sobre o Genoma Humano e Direitos Humanos da Unesco (1997) e pelo Código de Nuremberg (1947). Há de reconhecer-se a existência de um novo âmbito inviolável em cada pessoa, constituído por sua estrutura genética própria dentro da qual resultará ilícita toda a intromissão arbitrária e toda publicidade posterior. O art. 7º da Declaração reza: “se deverá proteger nas condições estipuladas pela lei a confidencialidade dos dados genéticos associados com uma pessoa identificável”. No mesmo sentido o art. 5º esclarece que pesquisas, tratamentos ou diagnósticos que afetem o genoma de uma 6 7 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 67 21/8/2008, 10:21 pessoa só poderão dar-se após uma rigorosa avaliação prévia dos potenciais riscos e benefícios a serem incorridos, depois de consentimento prévio, livre e informado da pessoa envolvida. A Declaração de Bilbao também assinala: “A intimidade pessoal é patrimônio exclusivo de cada pessoa e deve ser imune a qualquer intromissão. O consentimento informado é requisito indispensável para interferir nela”. Além disso, no novo Código Civil brasileiro, o art. 15 traz a seguinte redação: “Ninguém pode ser constrangido a submeterse, com risco de vida, a tratamento médico, ou intervenção cirúrgica”. Para a professora Maria Helena Diniz: O DNA é a imagem da sua pessoa e representa um tipo especial de propriedade por conter informações diferentes de todos os outros tipos de informação pessoal. Suas imagem científica não deve ser invadida, por mera curiosidade, pois exame e rastreamento genéticos apenas podem ser realizados por razões terapêuticas e com o consenso da pessoa ou de seus familiares.18 d) Direito à liberdade. Na análise genético-preventiva o paciente pode inteirar-se de antemão de sua propensão à enfermidades graves, de revés esta informação, se conhecida por terceiros, pode acarretar a estigmatização social. Em caso de terapia genética, a pessoa deve ser informada dos procedimentos, riscos e probabilidade de cura, devendo assim seu consentimento ser prévio, livre e informado. Urge salientar, ainda, “que deve ser respeitado o direito da pessoa de decidir se será ou não informada dos resultados dos seus exames genéticos e das conseqüências resultantes. Cada pessoa tem, portanto, o direito inalienável de conhecer ou não a informação contida em seus genes”, na lição de Maria Helena Diniz.19 e) Direito à igualdade. O desenvolvimento do Projeto Genoma Humano traz consigo a possibilidade de uma nova forma de discriminação de caráter biológico, baseando-se no código genético, o que fere o princípio da igualdade de todos os homens, presente em todas as sociedades democráticas. Nesse passo, a Convenção para 18 19 DINIZ, Maria Helena. Op. cit. p. 394/395. Idem, ibidem, p. 393. 6 8 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 68 21/8/2008, 10:21 a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano, com respeito à aplicação da Biologia e da Medicina, no cap. IV: “genoma humano”, art. 11 expressamente prevê: i) não discriminação, sob pena de ferir o princípio da igualdade constitucional. O desenvolvimento do Projeto Genoma Humano traz consigo a possibilidade de uma nova forma de discriminação de caráter biológico, baseando-se no código genético.20 ii) teste genético indicativo: enquanto sirva para identificar o sujeito como portador de um gene responsável de uma doença ou a descobrir uma predisposição genética a uma doença, podem ser efetuados só com finalidade sanitária, desde que respeite a vida e a integridade e não envolvam riscos, antes tenham em vista a cura, a melhoria das condições de saúde ou a sobrevivência individual. iii) intervenções sobre o genoma humano: aquela capaz de modificar 20 - O Projeto de Lei do Senado Federal 149/97 define crimes resultantes de discriminação genética as seguintes condutas: negar, limitar ou interromper cobertura de plano de saúde com base em informação genética do estipulante ou segurado, assim como estabelecer prêmios diferenciados com base em tal informação; negar, limitar ou interromper cobertura por plano de saúde com base em informação genética do contratante ou beneficiário, assim como estabelecer mensalidades diferenciadas com base em tal informação; recusar, negar ou impedir matrícula, ingresso e permanência de alunos em estabelecimentos de ensino público ou privado; impedir inscrição em concurso público ou qualquer outra forma de recrutamento e seleção pessoal com base em informação genética do postulante; impedir casamento ou convivência familiar e social de pessoas, com base em informação genética das mesmas; divulgar informação genética de uma pessoa, a menos que haja prévia autorização por escrito. - A título de exemplificação, citamos as seguintes situações de discriminação: Na Alemanha foi elaborado “um arquivo de dados” de DNA de todas as pessoas condenadas por homicídio, estupro, agressão sexual, abuso e corrupção de menores. A Inglaterra recentemente anunciou a criação de um banco de dados de DNA para os meramente suspeitos de práticas de crimes. Trata-se de uma forma de controle social, política de exclusão, de discriminação genética, em muitos contextos da vida de relação. Nos Estados Unidos, Terri deveria ser uma história de sucesso científico. Uma falha genética torna-a suscetível a paradas respiratórias. A descoberta pode salvar sua vida, mas fez com que perdesse o emprego. Foi demitida o ano passado porque foi considerada “um risco”. Foi o primeiro caso de discriminação genética dos EUA (Folha de SP, 20.09.2000, p. A-11). Centenas de americanos estão perdendo o emprego ou seguro-saúde por causa dos avanços genéticos. Só em Massachusetts foram relatados 582 casos de pessoas discriminadas por “falhas” em seus genes. Mas o lobby de empresas e seguradoras está impedindo o Congresso de aprovar legislação para impedir o acesso a informações genéticas e o seu uso como critério para contratar e demitir. - Outro fator importante a ser analisado dentro da não-discriminação é a chamada eugenia – ciência que estuda as condições mais propícias à reprodução e melhoramento da raça humana. Especialistas afirmam, que em anos próximos, marcadores genéticos para características humanas como altura, peso ou mesmo coordenação motora, tendência musical e habilidade intelectual, poderão estar disponíveis no mercado. Na Índia, por exemplo, milhares de abortos já são realizados somente com base no sexo do feto. Nos Estados Unidos, um alarmante estudo revelou que 10% das mulheres entrevistadas não hesitariam em abortar uma criança propensa à obesidade. No próximo século, as informações reveladas pelo Projeto Genoma permitirão aos médicos selecionar os fetos, produzindo em laboratório um extraordinário número de características físicas e comportamentais. Pela primeira vez na história, os pais decidirão que tipo de criança nascerá. Em outros termos, a eugenia é a manipulação genética que de per se implicaria a possibilidade de os pais escolherem o sexo de seus bebês, troca de genes supostamente defeituosos por outros “sadios”, escolhas de ordem estética, racial que comportaria uma forma de seleção artificial da espécie. 6 9 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 69 21/8/2008, 10:21 o genoma humano pode ser realizada somente com finalidade preventiva, diagnóstica ou terapêutica, e só se o seu objetivo não for aquele de introduzir qualquer modificação no genoma de qualquer descendente; é o caso, por exemplo, da terapia genética, em que a pessoa deve ser informada dos procedimentos, riscos e probabilidade de cura, devendo assim seu consentimento ser prévio, livre e informado, o que vem de acordo com o art. 7º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 16/12/1966, que traz como fundamento da ética biomédica o princípio do livre consentimento de uma pessoa submetida a um experimento científico ou médico. iv) proibida a criação de embriões humanos com a finalidade de pesquisa: atualmente a França, através da Lei n. 94.653 de julho de 1994, castiga com pena de 20 anos de reclusão, a prática de eugenia dirigida a organização e seleção de pessoas, e com pena de 7 anos de prisão e 700 mil francos de multa, a concepção in vitro de embriões com fins industriais ou comerciais. 4. O atual conceito de intimidade e sua regulação no novo Código Civil. Tradicionalmente, o direito à intimidade foi concebido como o direito do ser humano a manter intacta, desconhecida, incontaminada e inviolada sua zona íntima e familiar. Noutros termos, consiste na faculdade atribuída ao ser humano de manter um âmbito próprio e reservado frente à ação e conhecimento dos demais, considerandose como um direito necessário para desfrutar de uma mínima qualidade de vida. No entanto, em conseqüência das novas tecnologias informáticas e biológicas, impõe-se conceituar a intimidade como sendo a garantia conferida ao ser humano de que ele não será vítima de intromissões ou investigações indesejadas sobre sua vida privada e que tais intromissões não podem ser divulgadas, assim como a garantia de que os dados pessoais do ser humano que se tornem conhecidos por qualquer meio, sejam eles biológicos ou informáticos, não serão propagados indiscretamente. 7 0 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 70 21/8/2008, 10:21 Portanto, formam parte do conteúdo do direito à intimidade um aspecto corporal e outro não corporal, que se refere às recordações, à imagem, à identidade, aos dados armazenados em registros e computadores, à vida familiar, à vida conjugal e amorosa, às afeições, às comunicações pessoais e ao domicílio. A genética, por sua vez, faz com que seja necessário falar em intimidade genética, que consiste na garantia conferida ao ser humano de determinar as condições de acesso à informação genética. Tal intimidade compreende dois elementos. O primeiro consiste no elemento objetivo, integrado pelo próprio genoma ou por qualquer tecido ou parte do corpo humano em que seja possível encontrar a informação genética, assim como pelo direito de ter acesso às informações contidas no genoma. O segundo elemento, denominado de subjetivo, consiste na autodeterminação informativa, ou seja, na garantia conferida à pessoa investigada de determinar quem e em que condições é possível ceder as informações sobre o genoma. O problema do ponto de vista do direito à intimidade, pode ser resumido nas seguintes perguntas: quem e como informar os dados genéticos obtidos através da técnica de seqüência do genoma humano? Quais os requisitos que devem ser observados na obtenção e transmissão dos dados obtidos? O novo Código Civil tutela a intimidade no capítulo relativo aos direitos de personalidade, protegendo os aspectos não corporais da intimidade nos arts. 16, 17, 18, 19 (que tratam do direito ao nome) e no art. 20 (que trata do direito à imagem), enquanto o aspecto corporal da intimidade se encontra tutelado no art. 21, que faz referência à vida privada como direito inviolável do ser humano, cabendo ao juiz, a requerimento do interessado, adotar as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a este direito. A regulação dispensada pelo novo Código Civil à intimidade é muito escassa e, além dos aspectos clássicos relativos ao nome e à imagem, não enfrenta os problemas suscitados com a clonagem humana, nem tampouco com a repercussão jurídica causada pela determinação das seqüências de bases do DNA. Com efeito, com base na Declaração Universal sobre o Genoma Humano e Direitos Humanos de 1997 e pela Declaração Ibero-latinoamericana sobre ética genética, revisada em Buenos Aires em 1998, 7 1 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 71 21/8/2008, 10:21 o novo Código Civil poderia ao menos ter lançado as bases gerais para enfrentar o problema relativo às conseqüências jurídicas do Projeto Genoma Humano sobre o direito à intimidade e demais direitos de personalidade.21 Segundo Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira, essas bases legais atinentes à intimidade, que posteriormente poderiam servir para a elaboração de lei que tratasse especificamente da matéria e de outros aspectos relativos à genética, como é o caso da clonagem, podem ser assim resumidas: I) quanto aos princípios gerais, devem ser observados os seguintes: - consentimento prévio livre e informado da pessoa interessada que deve ser considerado em três momentos: a) autorização da pesquisa ou tratamento terapêutico; b) divulgação dos dados obtidos; c) armazenamento desses dados; - privacidade da informação genética e exigência de consentimento expresso para sua revelação a terceiros; - não-utilização de informações genéticas com efeitos discriminatórios. II) quanto aos direitos da pessoa submetida à análise científica ou terapêutica, sobressaem: - o direito à privacidade de cada pessoa com relação à manipulação, ao armazenamento e à difusão da informação genética individual, garantindo-se o não-uso dessas informações para fins diversos dos que motivaram sua coleta; - o direito a ser informado, ou não, dos resultados de teste genético e de suas conseqüências, vez que esse direito é um dos pressupostos necessários ao respeito da vida privada; - o direito à indenização em caso de violação da privacidade e da intimidade, na hipótese de inobservância do dever de confidencialidade e de utilização das informações genéticas com intuito discriminatório. III) quanto aos deveres do profissional envolvido na pesquisa genética: - dever de guardar confidencialidade sobre a informação genética obtida; A Lei n. 8.974/95 (Lei de Biossegurança) estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização no uso das técnicas de Engenharia Genética na construção, cultivo, manipulação, transporte, comercialização, consumo, liberação e descarte de organismo geneticamente modificado (OGM), visando a proteger a vida e a saúde do homem, dos animais e das plantas, bem como o meio ambiente, em seu art. 8º, incisos II, III e IV, veda, constituindo crime com pena de detenção ou reclusão variável de acordo com a gravidade do resultado: II – a manipulação genética de células germinais humanas; III – a intervenção em material genético humano “in vivo”, exceto para o tratamento de defeitos genéticos, respeitando-se princípios éticos, tais como o princípio de autonomia e o princípio de beneficência; IV – a produção, armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servir como material biológico disponível. 21 7 2 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 72 21/8/2008, 10:21 - dever de evitar a propagação indiscreta das informações genéticas, velando sempre para que a apresentação e utilização dos resultados científicos obtidos sejam feitos respeitando a intimidade, a privacidade e o anonimato das pessoas que tiveram seu genoma investigado.22 Quanto à proteção aos princípios da autodeterminação e da intimidade da pessoa examinada, vimos ao estudarmos o direito à intimidade genética que o art. 5º da Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos protege a vida privada da pessoa envolvida em pesquisas, tratamentos ou diagnósticos que afetem o genoma humano. Ou seja, refere-se à autonomia privada do paciente, que no momento em que emitir sua decisão, deve estar esclarecido do diagnóstico, do tratamento mais adequado a se implementar e de seus efeitos, positivos e negativos. A decisão deve ser revestida do maior número possível de informações, que devem ser passadas de forma clara e abrangente, avaliando as opções de tratamento, riscos e benefícios. Nos dizeres de Francisco Amaral, autonomia privada é “o princípio pelo qual o agente tem a possibilidade de praticar um ato jurídico, determinando-lhe o conteúdo, a forma e os efeitos”.23 Quanto ao direito à indenização nos casos acima mencionados, refere-se à justiça no uso da informação genética para garantir e proteger os direitos de todos, inclusive de populações vulneráveis, como crianças, deficientes físicos e mentais, índios etc. Todo indivíduo tem direito, segundo a lei internacional e nacional, à justa reparação por danos morais e patrimoniais sofridos em razão de intervenção que tenha afetado seu genoma (art. 8º da Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos). Quanto à segurança e a eficácia da medicina genética, Maria Helena Diniz assegura que o projeto de um mapa genético somente poderá ser efetivado por um médico, sendo vedadas a transmissão, a recopilação, o armazenamento e a valoração dos dados genéticos por parte de organismos estatais ou privados. Assim sendo, afirma, “as responsabilidades inerentes às atividades dos pesquisadores, incluindo o cuidado, a cautela, a honestidade intelectual e a integridade na realização de suas pesquisas e ainda na apresentação e utilização de suas descobertas, deverão ser objeto de atenção 22 23 OLIVEIRA, Flávia de Paiva Medeiros de. Op. cit. p. 38. AMARAL, Francisco. Direito Civil Civil: Introdução. RJ:Renovar, 2000, p. 337/338. 7 3 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 73 21/8/2008, 10:21 especial no quadro das pesquisas com o genoma humano, devido a suas implicações ético-sociais.” 24 Considerações finais Esqueceu o redator do novo Código Civil que a genética é um aspecto real e atual da vida humana e um fenômeno em constante e contínua evolução, razão pela qual se faz necessário estabelecer princípios que permitam a evolução desse fenômeno científico sem que haja agressão ao ser humano em seu bem mais fundamental que é a dignidade, não servindo como justificativa para uma nãoregulação legal de tais princípios a alegação de que ainda é cedo para tentar plasmar critérios definitivos sobre o tema. Deveria, especialmente, ter o legislador atentado para o fato de que o genoma humano é a base fundamental do indivíduo, assim como não se deu conta de que se trata do fundamento para o reconhecimento da dignidade e diversidade intrínseca do ser humano. O que significa que qualquer manipulação indevida do genoma implica uma violação da dignidade do ser humano. Estamos em um momento chave para a humanidade. No futuro conheceremos as origens de nossa espécie, sua maravilhosa variedade, suas relações com todas as criaturas, seu lugar no meio ambiente e sua visão de futuro. É essencial que os cientistas, filósofos, médicos e juristas de hoje sejam capazes de responder às indagações desta nova era com um sentido de justiça global. Ao se defrontar com novos horizontes, o homem deve realizar uma reflexão ética sobre os objetivos a alcançar e as possíveis conseqüências, e nenhum objetivo, por mais benéfico que seja, pode ser obtido através de ofensa ou degradação ao ser humano. Em outras palavras, a intervenção do Direito visa a esclarecer práticas que permaneceram muito tempo alijadas do processo jurídico e que precisam, mais do que nunca, do reconhecimento da ordem jurídica, não só pela garantia que este reconhecimento gera, mas e sobretudo porque legitimadas pelo Direito refletem valores dominantes da sociedade; porque o homem precisa de limites para administrar sua própria liberdade. 24 DINIZ, Maria Helena. Op. cit. p. 395. 7 4 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 74 21/8/2008, 10:21 A lei se revela um instrumento suficientemente maleável para regular as questões relativas à bioética. Ela deve interferir rapidamente, se ajustar às novas conquistas tecnológicas e, sendo objeto de largo debate parlamentar, vem imantada da legitimidade capaz de garantir a validade de sua inserção no meio social concretizando o escopo último de qualquer empreendimento do sujeito de Direito: o resgate da dignidade humana. 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