Tema do concurso: Lusofonia
“Com a chave da voz abri a vida”
Nove horas da noite. No salão “Primavera”, estão todos a dançar: os convidados, os
empregados, os donos e, até, os mais idosos, que libertam a sua energia e recordam os velhos
tempos em que rompiam a noite com danças quentes e suaves. Anukis e Gustavo assistiam ao
espetáculo animado que se construía defronte dos seus olhos. Como não tinham vontade de dançar,
os dois amigos foram até lá fora admirar o céu e as lindas paisagens terráqueas de África.
- Cada vez gosto mais deste sítio. Aqui, em África, tudo é mais calmo, mais simples, mas, ao
mesmo tempo, tudo cresce como em Portugal… - refletiu Gustavo.
- Sim, é verdade. Angola está cada vez melhor e há cada vez menos gente pobre – respondeu
Anukis.
- Sabes uma coisa? Quando estás ao pé de mim, nada mais interessa. Nem os conflitos dos
nossos pais nem os problemas do mundo. Quero apreciar este momento contigo, como se o amanhã
fosse apenas mais um dia seguinte, que sucede a tantos outros. A noite adquire outra beleza quando
estás ao pé de mim. Sinto que as estrelas são palavras soltas no céu, que descem velozmente à Terra
e que invadem a minha boca. Deves achar-me estúpido quando digo que a minha boca se enche de
estrelas, de tantas palavras que te quero dizer, mas é verdade.
- Oh, Gustavo, acho que bebeste um bocadinho de vinho a mais! – disse Anukis, a rir.
- Duvido. Olha que os teus pais estiveram sempre atentos a nós e, se chegasse a casa bêbado,
os meus pais nunca mais me deixariam ver-te. E isso seria o pior de tudo.
- Pois, mas isso não vai acontecer. Prometo. Os nossos pais têm de perceber que as nossas
vidas se cruzaram para sempre, independentemente das nossas origens. Além disso, somos ambos
portugueses. Somos apenas como baunilha e chocolate: um branco e outro negro que, quando se
juntam, nunca mais se separam.
Anukis e Gustavo continuaram a andar, muito encostados um ao outro, como se quisessem
juntar as mãos e fundir os seus corpos, mas houvesse algo a impedi-los. Quando já estavam
cansados, sentaram-se num banco de um jardim e olharam fixamente para o céu.
- Anukis, tu és da cor da noite e não há mais cor bela do que essa. Entre ti e o céu, escolhia- te a ti, porque trazes a magia do luar dentro de ti e o brilho das estrelas nos teus olhos.
Enquanto Gustavo dizia isso, a jovem aproximava-se e, quando ele terminou, beijaram-se
ternamente. Esse beijo fora tão intenso e tão sincero que parecera ter durado anos e anos. E, na
verdade, durou.
Passou-se uma década e, hoje, Anukis e Gustavo têm 26 anos. Atravessaram o tempo com o
poder da voz e das palavras que a noite nos traz. Conseguiram mudar as opiniões dos seus pais e
casaram-se.
Foi árduo o seu percurso até aqui. Foram muitos os obstáculos que o mundo colocou no seu
caminho, mas que não foram suficientes para deixar morrer a voz do amor. “Estrelas Lusitanas” é o
nome da Associação que criaram. É um organismo que pretende juntar todas as pessoas no mundo
que falam português, nas suas diversas variantes, e torná-los estrelas unidas pela voz, como aquelas
estrelas falantes que, nas noites de festas africanas, se intrometiam entre Anukis e Gustavo e se
precipitavam nas suas bocas.
A partir dessa altura, todas as pessoas se começaram a olhar de outra forma: descobriram
que diziam palavras parecidas, que podiam gostar das mesmas coisas e que, mais do que tudo,
falavam a mesma Língua, não só a Língua Portuguesa, mas também a língua da união e do respeito.
Passado algum tempo em território português, Anukis e Gustavo resolveram voltar para
África, onde o futuro realmente começara a construir-se, debaixo das estrelas bruxuleantes daquele
céu, diferente de todos os outros, mas com a mesma voz a soar nos corações de quem a deixa entrar
e de quem a consegue ouvir.
Há quem os tenha intitulado de “Adão e Eva do Futuro Lusitano”, há quem tenha escrito
artigos em jornais a homenagear a sua atitude humanitária e a sua coragem, mas, no fundo, eles
foram apenas os mensageiros dos homens antigos, que lutaram pela causa Lusitana e que ficaram
presos no passado.
Anukis e Gustavo serão, no futuro, dois velhinhos simpáticos, que deslumbrarão os seus
netinhos com as melhores histórias de aventura que alguém, alguma vez, criou. Descobrirão novos
lugares, novas pessoas, novos cantos escondidos pelo mundo, recordando, sempre, a sua luta pelo
amor, que lhes foi oferecido pelas estrelas falantes e pela voz eternamente sentida dos lusitanos. E,
quando chegar a hora de ficaram presos no seu presente, irão olhar para trás com um sorriso e dirão:
“Amem a Língua e venerem-na, porque foi ela que nos levou ao horizonte e nos trouxe as mais
belas estrelas que a noite nos pode oferecer.”
Juno
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