Os assuntos reunidos nesta obra têm um eixo temático
comum. Embora com diversos enfoques, todos eles giram em torno
de uma problemática instigante, avaliando múltiplos aspectos
da (in)eficácia dos direitos humanos e fundamentais no Brasil,
sob a ótica do novo constitucionalismo e das teorias do direito.
Na obra que o leitor tem sob os olhos, constam artigos que
abordam temas de extrema atualidade e relevância no debate
constitucional contemporâneo, tais como: a justiça e legitimidade
do Direito, o pós-positivismo, o neoconstitucionalismo e os direitos
fundamentais, as penas alternativas e a dignidade da pessoa
humana, direitos fundamentais do preso no sistema carcerário, direito
fundamental à defesa na execução de fazer e de entrega de coisa
baseada em título judicial, hierarquia dos tratados internacionais
de direitos humanos, colisão de direitos fundamentais, normas
constitucionais e processo administrativo-disciplinar, direito
social à segurança pública, prisão preventiva, evolução histórica
dos direitos fundamentais e Estado Democrático de Direito.
A EFICÁCIA DOS
DIREITOS HUMANOS E
FUNDAMENTAIS NO BRASIL
A EFICÁCIA DOS DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS NO BRASIL
e da Academia Cearense de Língua
Portuguesa, da qual foi Presidente.
Foi Conselheiro da OAB-CE
e integrou, inclusive como 1º
Secretário, as comissões organizadoras
dos Congressos Nacionais de Direito
realizados em Fortaleza nos anos
de 1991 e 1992, tendo também
participado da criação da Revista da
Ordem dos Advogados do Brasil, seção
do Ceará, da qual elaborou o regimento.
Publicou várias obras, entre as quais
destacam-se: Teoria Pura do Direito:
repasse crítico de seus principais
fundamentos, Temas de Epistemologia
Jurídica, vol. II, Temas de Epistemologia
Jurídica, vol. I, Temas de Epistemologia
Jurídica, vol. III, Teoria da Norma
Jurídica, Direito, Humanismo e
Democracia, Direito e Força: uma
visão pluridimensional da coação
jurídica. É ainda autor de inúmeros
artigos publicados e vários verbetes
na Enciclopédia Saraiva do Direito.
Professor aposentado da Universidade
Federal do Ceará (UFC), onde
lecionou por mais de três décadas
várias disciplinas na graduação e na
pós-graduação, exerceu a função
de Coordenador do Curso de
Graduação em Direito. Durante
todo este período, editou a Revista da
Faculdade de Direito da UFC, enviada
aos principais centros de pesquisa e
universidades do Brasil e do exterior,
periódico hoje lamentavelmente
desativado. Dirigiu e coordenou as
reuniões e os seminários de férias do
Instituto Clóvis Beviláqua, do qual
saíram para pontificar no magistério,
nas profissões jurídicas e na ciência
do direito expressivos nomes da
docência e da pesquisa em Direito.
Estudos em homenagem ao Prof. Dr. Arnaldo Vasconcelos
Flávio José Moreira Gonçalves (Coordenador)
Ana Cristina Barbosa Soares Magalhães,
Carla Aguiar Magalhães Araújo e
Israel Grangeiro Landim
(Organizadores)
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O HOMENAGEADO:
UMA BREVE BIOGRAFIA
ACADÊMICA
Prof. Dr. Arnaldo Vasconcelos
possui graduação e licenciatura em
Filosofia pela Faculdade Católica
de Filosofia de Fortaleza (1966),
graduação em Ciências Jurídicas e
Sociais pela Universidade Federal do
Ceará (1965), mestrado em Direito
Público pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (1977) e doutorado
em Direito pela Universidade
Federal de Pernambuco (2002).
Foi professor de Teoria Geral do
Direito nos cursos de Bacharelado
e Mestrado, lecionando também
Lógica Jurídica e Epistemologia
no Curso de Especialização em
Direito Processual da Faculdade de
Direito da Universidade Federal
do Ceará. Atualmente, é professor
titular da Universidade de Fortaleza
(UNIFOR), atuando principalmente
nos seguintes temas: Filosofia e
Teoria do Direito, Epistemologia
Jurídica e Teoria Política Grega.
É sócio do Instituto dos Advogados
do Ceará, do Instituto Clóvis
Beviláqua, do Instituto dos Advogados
Brasileiros, do Instituto Brasileiro
de Filosofia, seção do Ceará, do
Instituto de Direito Comparado LusoBrasileiro, do Instituto Brasileiro de
Direito Constitucional, da Association
Internationale
de
Méthodologie
Juridique e da Associação Cearense de
Imprensa. Participou da fundação
da Escola Superior de Advocacia do
Ceará, da Fundação Paulo Bonavides
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A EFICÁCIA DOS
DIREITOS HUMANOS E
FUNDAMENTAIS NO BRASIL
Estudos em homenagem ao Prof. Dr. Arnaldo Vasconcelos
Flávio José Moreira Gonçalves (Coordenador)
Ana Cristina Barbosa Soares Magalhães,
Carla Aguiar Magalhães Araújo e
Israel Grangeiro Landim
(Organizadores)
Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC)
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Copyright © 2012 ESMEC
Capa:
Francisco José
Imagem da Capa:
reprodução da Obra “Os Retirantes”, de Cândido Portinari
Projeto gráfico:
Larri Pereira
Editoração:
Narcélio Lopes
Revisão Gramatical e Metodológica:
Conceição de Maria Vasconcelos Lima
Impressão e CTP:
Expressão Gráfica e Editora
O conteúdo dos artigos constantes desta obra é de
exclusiva responsabilidade de seus respectivos autores
GONÇALVES, Flávio (Coord.). A Eficácia dos Direitos Humanos
e Fundamentais no Brasil: estudos em homenagem ao Prof. Dr. Arnaldo Vasconcelos. Fortaleza, 2012
364 p.
ISBN 978-85-7563-992-4
1 Doutrina 2 Direito Constitucional
3 Direitos Humanos e Fundamentais
I. Titulo
CDU: 340
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A EFICÁCIA DOS DIREITOS HUMANOS E
FUNDAMENTAIS NO BRASIL
estudos em homenagem ao Prof. Dr. Arnaldo Vasconcelos
Flávio José Moreira Gonçalves (Coordenador)
Ana Cristina Barbosa Soares Magalhães,
Carla Aguiar Magalhães Araújo e
Israel Grangeiro Landim
(Organizadores)
Ana Cristina Barbosa Soares Magalhães
Ana Karla Rola Maia
André Luís Tabosa de Oliveira
Antonio Abelardo de Sousa
Carla Aguiar Magalhães Araújo
Cezário Correa Filho
Flávio José Moreira Gonçalves
Iolanda Basílio Feijó Medeiros
Israel Grangeiro Landim
José Carlos Pinheiro Filho
Lara Forte Mota
Luciana Furtado Costa
Maria José de Oliveira Fernandes
Mariana Lima Ferreira Gomes
Matheus Albuquerque de Carvalho Marques
Rafael Bezerra Cardoso
Coletânea de artigos conclusivos do Curso de Especialização em Direito Constitucional da
Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC)
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“Felizes os que têm fome e sede de justiça: eles serão saciados”
(Mateus 5:6)
“Infelizes, vós que estais saciados agora: tereis fome”
(Lucas 6: 25)
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DADOS DOS AUTORES
FLÁVIO JOSÉ MOREIRA GONÇALVES (COORDENADOR)
Professor universitário (UFC, UNIFOR, ESMEC) e pesquisador, bacharel em Direito, mestre em Direito e Filosofia,
doutorando em Educação e assessor pedagógico da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC).
Fundador e coordenador docente do Grupo Transdisciplinar de Estudos Interinstitucionais (G-TEIA) e do Núcleo
Interdisciplinar em Direito e Dramaturgia (NIDIDRA). Associado ao Instituto Brasileiro de Direitos Humanos
(IBDH). Coordenador Acadêmico do Curso de Especialização em Direito Constitucional da ESMEC (Turmas I a
VI). E-mail: [email protected]
ANA CRISTINA BARBOSA SOARES MAGALHÃES
Graduada em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Graduada em Ciências Contábeis pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Pós-graduanda em Direito Constitucional pela Escola Superior da Magistratura do
Estado do Ceará (ESMEC). Técnico Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. E-mail: [email protected].
CARLA AGUIAR MAGALHÃES ARAÚJO
Graduada em Direito e em Fisioterapia pela Universidade de Fortaleza (Unifor). Técnica Judiciária do Tribunal de
Justiça do Estado do Ceará. Pós-graduanda em Direito Constitucional pela Escola Superior da Magistratura do
Estado do Ceará (ESMEC). E-mail: [email protected].
ISRAEL GRANGEIRO LANDIM
Advogado pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Pós-Graduando em Direito Constitucional pela Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC). E-mail: [email protected].
ANA KARLA ROLA MAIA
Graduada em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Pós-graduanda em Direito Constitucional pela
Escola Superior de Magistratura (ESMEC). Advogada. E-mail: [email protected].
ANDRÉ LUÍS TABOSA DE OLIVEIRA
Promotor de Justiça, Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor da Escola Superior de
Magistratura (ESMEC). [email protected]
ANTONIO ABELARDO DE SOUSA
Graduado em Licenciatura plena em Pedagogia pela Universidade do Vale do Acaraú - Ceará, Especialista em Educação em Saúde pela Escola de Saúde Pública do Ceará, Bacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza e especialista em Direito Constitucional pela Escola de Magistratura do Ceará e Advogado atuante. E-mail: sousaabelardo@
gmail.com
CEZÁRIO CORREA FILHO
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Professor universitário. Servidor público federal ocupante
do cargo efetivo de Advogado da União na Procuradoria da União no Ceará. E-mail: [email protected].
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IOLANDA BASÍLIO FEIJÓ MEDEIROS
Advogada licenciada inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil, seção Ceará (OAB/CE). Pós-graduanda em Direito Constitucional pela Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC). E-mail: iolandabasilio@
ibest.com.br.
JOSÉ CARLOS PINHEIRO FILHO
Bacharel em Direito e em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Ceará. Servidor público estadual ocupante do cargo efetivo de Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Pós-graduando em Direito
Constitucional pela Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC) Atualmente, exerce o cargo em
comissão de Assessor de Desembargador. E-mail: [email protected].
LARA FORTE MOTA
Estudante de Direito, Atualmente cursando o 7º semestre na Universidade Federal do Ceará. Estagiária do Tribunal de
Contas dos Municipios (TCM). Coordenadora discente do Núcleo Interdisciplinar em Direito e Literatura (NIDIL),
já participou também do Núcleo Interdisciplinar Direito e Sétima Arte (NIDESA). E-mail: [email protected]
LUCIANA FURTADO COSTA
Bacharela em Direito pela Universidade de Fortaleza. Advogada. Pós-graduanda em Direito Constitucional pela
Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC). E-mail: [email protected].
MARIA JOSÉ DE OLIVEIRA FERNANDES
Especialista em Administração Financeira pela Universidade Vale do Acaraú (UVA). Graduada em Ciências Contábeis e Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Aluna do curso de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC). E-mail: [email protected].
MARIANA LIMA FERREIRA GOMES
Graduada em Direito e Aluna do curso de pós-graduação em Direito Constitucional da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC). [email protected]
MATHEUS ALBUQUERQUE DE CARVALHO MARQUES
Técnico Ministerial do Ministério Público do Estado do Ceará (MPE/CE). Advogado licenciado inscrito na Ordem
dos Advogados do Brasil, seção Ceará (OAB/CE). Aluno do curso de Pós-Graduação em Direito Constitucional da
Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC). E-mail: [email protected].
RAFAEL BEZERRA CARDOSO
Delegado de Polícia Civil do Estado do Ceará, Orientador da Célula de Processo Administrativo-Disciplinar Civil
da Controladoria-Geral de Disciplina dos Órgãos da Segurança Pública e Sistema Penitenciário do Estado do Ceará,
Especialista em Direito Público – UFC, Especialista em Direito Processo Penal – UNIFOR, Especialista em Direito
Penal e Direito Processo Penal – ESMP/UECE, Pós-Graduando em Direito Constitucional – ESMEC, Mestrando
em Planejamento e Políticas Públicas – UECE. E-mail: [email protected]
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Sumário
APRESENTAÇÃO ......................................................................................................11
Os Mosqueteiros ..........................................................................................................15
Uma concepção do direito em contraste com o princípio de não-contradição:
análise do prefácio O Ordenamento Jurídico sob o Prisma do Humanismo
e da Democracia presente no livro Fundamentos do Direito* ..........................................21
Uma Teoria do Direito de Vocação Democrática e Humanista,
Corajosamente Apresentada e Defendida em Contexto Político-Social Adverso ............35
Pós-Positivismo, Neoconstitucionalismo e Direitos Fundamentais ................................49
O Problema da Hierarquia dos Tratados Internacionais de
Direitos Humanos na Ordem Jurídica Constitucional Brasileira ..................................67
Eficácia Prospectiva das Decisões de Inconstitucionalidade ...........................................91
Normas Constitucionais Como Influxo da Interpretação e da
Aplicação das Normas do Processo Administrativo-Disciplinar ...................................109
O Controle Social da Gestão Pública da Saúde ...........................................................133
Ineficácia Social dos Direitos Fundamentais do Preso no Sistema Carcerário Brasileiro...153
Essencialidade da Adequação dos Estabelecimentos Prisionais à Demanda
Carcerária no Brasil como Imperativo das Normas que Preceituam os Direitos
Fundamentais do Preso e o Direito Social à Segurança Pública ...................................187
A Prisão Preventiva Frente aos Princípios do Estado Democrático de Direito. ............221
Penas Alternativas como Meio Ressocializador e Garantidor do
Princípio da Dignidade da Pessoa Humana ................................................................249
A Aparente Colisão entre os Direitos à Propriedade e ao
Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado: Um Estudo de Caso
no Município de Fortaleza – Arie Dunas do Cocó .......................................................275
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Colisão entre o Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa
Humana Inerente ao Estado de Filiação e Origem Genética do
Investigante e o Princípio da Inviolabilidade da Vida Privada e
Intimidade do Investigado nas Ações de Investigação de
Paternidade e sua Melhor Adequação .........................................................................301
O Direito Fundamental à Defesa na Execução de Fazer e de Entrega
de Coisa Baseada em Título Executivo Judicial ..........................................................335
Evolução Histórica dos Direitos Humanos e sua Contextualização
no Ordenamento Brasileiro .......................................................................................345
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APRESENTAÇÃO
“Há também princípios fundamentais de direito que são mais fortes do
que qualquer preceito jurídico positivo, de tal modo que toda a lei que
os contrarie não poderá deixar de ser privada de validade. Há quem lhes
chame direito natural e quem lhes chame direito racional. Sem dúvida,
tais princípios acham-se, no seu pormenor, envoltos em grandes dúvidas. Contudo, o esforço de séculos conseguiu extrair deles um núcleo
seguro e fixo, que reuniu nas chamadas declarações dos direitos do homem
e do cidadão, e fê-lo com um consentimento de tal modo universal que,
com relação a muitos deles, só um sistemático cepticismo poderá ainda
levantar quaisquer dúvidas.“ (RADBRUCH, Gustav in Cinco Minutos
de Filosofia do Direito)
Fruto das reflexões encetadas pelos alunos da Turma VI, do Curso de
Especialização em Direito Constitucional, ofertado pela Escola Superior da
Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC), esta obra-coletânea reúne capítulos escritos por alguns dos seus estudantes e professores em torno de uma
temática comum e instigante, avaliando múltiplos aspectos da (in)eficácia dos
direitos humanos e fundamentais no Brasil, sob a ótica do novo constitucionalismo e das teorias do Direito.
Todos os que colaboraram nesta empreitada, seja elaborando artigos,
orientando os trabalhos conclusivos de cursos ou ministrando aulas no curso
de pós-graduação lato sensu em Direito Constitucional da ESMEC contribuíram para a qualidade e conteúdo da obra, o qual refletem o nível de excelência
acadêmica de um curso de especialização que já está na sétima turma em andamento e, mesmo assim, há quase uma década da primeira turma ofertada,
permanece com expressiva procura, tanto pelo alto nível de seu corpo docente
e discente, quanto pela infraestrutura de que dispõe bem como pela ideoneidade da instituição que o abriga.
A Especialização em Direito Constitucional da ESMEC é vista por muitos como uma forma privilegiada de preparação para estudos mais elevados
e também como plataforma de transição entre a graduação e a pós-graduação stricto sensu (Mestrado e Doutorado). A existência de dois programas de
pós-graduação stricto sensu na área em nosso Estado, ofertados pela UFC e
UNIFOR, ambos muito bem qualificados pela CAPES e com induvidoso nível de excelência acadêmica, tem impulsionado a procura pela especialização
ofertada na ESMEC, a qual tem servido de uma espécie de rito de passagem
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obrigatório, importante instrumento para o alcance da maturidade intelectual, seja pela partilha de experiência com profissionais que já estão atuando
nas mais diversas profissões jurídicas (juízes, promotores, advogados etc), seja
pela atualização e formação continuada dos profissionais do Direito que a ela
acorrem, preparando-os para estudos de alto nível.
Quando uma obra vem a lume, seja qual for a natureza dos assuntos dos
quais venha a tratar, lança um farol iluminando a escuridão da ignorância,
planta uma semente de inquietação e impulsiona a humanidade a avançar na
sua trajetória de busca incessante do conhecimento.
Os temas reunidos nesta obra têm um eixo temático comum e os artigos
procuraram seguir, rigorosamente, as regras metodológicas vigentes da ABNT
(Associação Brasileira de Normas Técnicas), submetidos à rigorosa revisão gramatical e metodológica por profissional com expertise neste setor.
Na obra que o leitor tem sob os olhos, constam artigos que abordam
temas de extrema atualidade e relevância no debate constitucional contemporâneo, tais como: a justiça e legitimidade do Direito, o pós-positivismo,
o neoconstitucionalismo e os direitos fundamentais, as penas alternativas e a
dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais do preso e sistema carcerário, direito fundamental à defesa na execução de fazer e de entrega de coisa
baseada em título judicial, hierarquia dos tratados internacionais de direitos
humanos, colisão de direitos fundamentais, normas constitucionais e processo
administrativo-disciplinar, direito social à segurança pública, prisão preventiva e Estado Democrático de Direito, direito à memória e justiça de transição.
Os autores da obra, seu coordenador e os organizadores também aproveitam a ocasião para reconhecer os méritos científicos de um dos maiores
lentes do Direito em terras alencarinas e, assim, render justa homenagem ao
Prof. Dr. Arnaldo Vasconcelos, mestre que pontificou por mais de três décadas como docente na Universidade Federal do Ceará (UFC), instituição da
qual aposentou-se depois de magnífica contribuição e laboriosa dedicação ao
magistério e à pesquisa jurídica, tanto à frente do Instituto Clóvis Beviláqua
quanto da edição da Revista da Faculdade de Direito, cujo último número foi
editado ainda sob os seus cuidados, antes de sua aposentadoria.
Certos de que as homenagens e reconhecimentos de qualquer natureza
devem ser feitos em vida e que serão tanto mais verdadeiros e éticos quanto
menos se constituam em mero preito visando a vantagens ou beneplácito do
homenageado, esta obra apresenta-se como justo reconhecimento ao vivo magistério de direito, humanismo e democracia aurido das imorredouras lições
do Prof. Dr. Arnaldo Vasconcelos.
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Que os leitores possam encontrar na obra algum caminho para atender
às exigências de um tridimensionalismo axiológico do qual o Direito cada vez
mais necessita para legitimar-se como saber e como prática, tridimensionalismo este defendido nas obras de nosso laureado mestre.
Prof. Flávio José Moreira Gonçalves
Coordenador Acadêmico do Curso de Especialização
em Direito Constitucional da ESMEC
Mestre em Direito (UFC) e Mestre em Filosofia (UECE)
Doutorando em Educação (UFC)
Professor da UFC e UNIFOR
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Os Mosqueteiros
1
Lara Forte Mota.2
Era uma vez, nas distantes terras do cientificismo, um pequeno reino,
chamado Reino Ontológico. Ele era governado por uma rainha, a Teoria Pura
do Direito, uma senhora muito severa e respeitável. O Positivismo, O Realismo
e o Empirismo eram os mosqueteiros reais, responsáveis pela defesa do reino.
Rainha: Aos meus bravos mosqueteiros devo a honra de meu reino, por outro
lado eles me devem respeito e obediência.
O maior tesouro do reino era o Direito. Todos sabiam da existência dele,
mas ele nunca foi visto por ninguém, dentro ou fora do castelo real. O Direito
jamais deixava os cofres e, para que não fosse maculado, era mantido longe do
povo e dos fatos que ocorriam no Reino.
Rainha: O direito está acima de todas as coisas. Não deve ser misturado com
valores menores. Eu me mantive pura por todos esses anos, por isso somente eu posso
tocá-lo e possuí-lo. Quanto a mim, posso falar ao mundo através de meus bravos
mosqueteiros.
As normas eram as jóias usadas pela rainha, todas elas eram retiradas do
cofre onde era guardado o Direito.
Rainha: As normas só podem vir de outras normas, se viesse de qualquer
outra coisa, seriam apenas mundanas e não mais as minhas preciosidades. Normas
que emanam do povo não são dignas de ornar meu pescoço real, não passam de
falsificações!
O ourives da cidade, de nome Legislador, estava sempre a serviço da rainha, pois havia muitas normas a serem produzidas a partir das normas reais,
vindas do castelo.
Por algum tempo não houve qualquer mudança no Reino Ontológico
e a Rainha Teoria Pura permaneceu soberana. Entretanto a calma de nosso
plácido reino estava ameaçada. Os Jusnaturalistas, notórios conquistadores,
estavam tomando para si as terras Cientificistas. Quando chegaram ao Reino
Ontológico, perceberam que a única forma de tomar para si o Direito, tesou1
2
Esquete teatral encenada pela autora e seus colegas de equipe, durante uma das aulas da disciplina
Teoria do Direito, atividade cultural elaborada sob inspiração da leitura da obra Teoria Pura do
Direito: repasse crítico de seus principais fundamentos, de autoria do homenageado (Prof. Dr.
Arnaldo Vasconcelos)
Lara Forte Mota é estudante de Direito, atualmente cursando o 6º semestre na Universidade Federal do Ceará (UFC) e estagiária do Tribunal de Contas dos Municípios (TCM). Coordenadora
Discente do Núcleo Interdisciplinar em Direito e Literatura (NIDIL), já participou também do
Núcleo Interdisciplinar Direito e Sétima Arte (NIDESA)/ E-mail: [email protected]
15
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ro real, era derrotando ou convertendo os mosqueteiros da rainha.
O primeiro alvo foi o Positivismo. A família Positivista era conhecida
por sua constância e tradição, sempre dedicados aos fatos da realidade. Era
respeitada e tinha membros espalhados por todo o Cientificismo.
Jusnaturalista: Perdão, nobre senhor, mas sou apenas um viajante e gostaria
de ver a Rainha, observar o esplendor de sua sabedoria.
Positivismo: Sinto informar que a Rainha não pode ser vista. Ela se mantém reclusa para a preservação de sua pureza.
Jusnaturalista: Mas de que forma o povo é governado, se nada pode aproximar-se da Rainha?
Positivismo: Através de seus bravos mosqueteiros. Se tem algo a dizer-lhe,
diga-o a mim, o Positivismo, mais fiel mosqueteiro de Sua Alteza.
Jusnaturalista: Então sois vós um nobre Positivista? Conheci outros de vossa
família enquanto atravessava essas paragens. Também sois um estudioso dos fatos?
Positivismo: Os fatos são indignos e a missão dos mosqueteiros é manter a
pureza da rainha e de seus tesouros. Preocupo-me apenas com as essências, pois
somente elas podem penetrar no castelo.
Jusnaturalista: Logo vejo que és diferente. Aprecias as tradições? Podes ensinar-me algumas?
Positivismo: As tradições são apenas repetições de fatos passados, nesse reino
não nos ocupamos delas. Não importa de forma alguma o que acontece aqui,
apenas o que deve acontecer. Se for do seu agrado, posso lhe falar sobre várias maravilhas que deveriam estar aqui nessa praça, ou sobre a educação que o nosso povo
deveria ter e das músicas lindas que deveríamos tocar.
Jusnaturalismo: Mas o senhor não pode ser um Positivista autêntico! Tudo
o que me disse é contra os preceitos de tua família!
Positivismo: Apenas sirvo aos agrados de minha rainha. Com sua licença,
pois sei que o que disse não tem importância, já que o que deveria dizer é apenas
“até logo e obrigado pelas informações”.
Dessa forma os inimigos do Reino descobriram que um dos pilares do
governo não era tão forte quanto pensavam. Incomodado pelas palavras do
estrangeiro, o Positivismo procurou a Rainha.
Positivismo: Ó amada Rainha, venho perguntar-te algo sobre minha própria essência.
Rainha: Pergunte-me e responderei, pois sou completa em minha sabedoria.
Positivismo: Eu poderei um dia honrar a ti sem desonrar o nome de minha
família?
Rainha: Jamais deves desonrar a mim. Quanto à tua família, não te pre16
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ocupas, a partir de hoje tu serás Positivismo Relativista, com teu próprio nome,
prosperarás o dobro do que teu pai prosperou.
Com essa atitude, o coração nobre de Positivista foi acalmado. Entretanto o Reino sofreu sérias conseqüências, afinal uma família recém fundada não
gozava dos mesmos privilégios que uma família tradicional, principalmente
porque o Positivismo Relativista não conseguiu superar seu pai, o Positivismo,
frustrando a profecia real.
No acampamento jusnaturalista, ficaram muito satisfeitos com a notícia
sobre o Positivismo Relativista e perceberam que seria mais fácil de tomar o
reino se o mesmo acontecesse com os outros mosqueteiros.
O próximo contato foi com o mosqueteiro Realista, de família igualmente respeitada nas terras cientificistas. A característica dos Realistas era sempre
apoiar-se no que é real, afastando o que deve-ser.
Jusnaturalista: Bom dia. És tu o nobre mosqueteiro Realista?
Realista: Sim sou eu, que deseja estrangeiro?
Jusnaturalista: Percebeste que não sou daqui, mas não me surpreende, pois
conheço outros de vossa família e sei que nada do que é real lhes escapa e que jamais são enganados ou levados por suposições.
Realista: Pois muito se engana, já que no Reino da Grandiosa Teoria Pura
do Direito nada é real. Tudo o que lhe rodeia são somente as idéias de nossa rainha. Como ela nunca o idealizou, logo sei que o senhor não vive aqui.
Jusnaturalista: Mas se nada é real, como pode um Realista legitimo morar
neste reino, ainda mais a serviço de tal rainha?
Realismo: Vim pra cá com meus companheiros, o Positivismo e o Empirismo, na verdade foi o Positivismo que nos trouxe. Quando chegamos aqui e juramos fidelidade à Rainha, tivemos de nos adaptar ao seu método.
Jusnaturalismo: Interessante. Quer dizer então que o Sr é membro da família Realista, mas não mais se importa com a realidade?
Realismo: Na verdade muito me importa a realidade. Por isso sirvo à Rainha desde o princípio, pois ela me garantiu que ao seu lado posso dedicar-me
apenas ao que é real e possível, libertando-me de qualquer valoração ou justiça.
Jusnaturalismo: Tens, portanto, pensamento semelhante ao teu amigo, o
Positivismo?
Realismo: Na verdade pensamos exatamente da mesma forma. Mesmo agora que ele se tornou Relativista.
Jusnaturalista: Mas se nada daqui é real, onde tu procuras a realidade?
Realismo: Nada do que te cerca é real, mas as normas são reais.
Jusnaturalista: Mas se, como me contou certa vez o Positivismo, tudo aqui
deve-ser, mas nada é, como poderiam essas normas serem reais?
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Realismo: Elas são reais, pois derivam de outras normas que também são
reais.
Jusnaturalista: Somente o que pude perceber, desde que aqui cheguei, foram
contradições. Não entendo como membros de famílias tão tradicionais vieram
parar aqui, defendendo tais absurdos.
Realismo: Não ofenda nosso reino e muito menos a minha honra!
Jusnaturalista: Mas isso foi apenas o que fiz, não o que deveria fazer. Digo
que o senhor está completamente equivocado e que todo esse reino irá cair, mas
na verdade eu deveria dizer que seu reino é bonito e deveria desejar vida longa à
rainha. Então o senhor irá me prender ou deveria me prender?
Enquanto o Realismo pensava sobre o assunto, o esperto Jusnaturalista
voltou ao seu acampamento escondido.
Realismo: Vou prendê-lo, mesmo que somente devesse fazê-lo! Mas pra onde
esse patife foi?!
Apesar de ter vencido a disputa retórica, o Jusnaturalista voltou ao seu
acampamento decepcionado. Acabara por descobrir que as tão famosas normas
da soberba Rainha Teoria Pura do Direito eram completamente vazias de valor!
Enquanto isso, o Realismo tinha uma audiência com a Rainha:
Realismo: Amabilíssima alteza, em vosso infinito conhecimento, me responda: de onde vem a realidade das normas?
Rainha: Já lhe disse, mas repito. Ela vem da realidade das normas que a
antecederam.
Realismo: E essas normas, de onde emana sua realidade?
Rainha: Igualmente, de normas antecessoras a elas.
Realismo: Onde posso encontrar a primeira norma? Onde ela está guardada? De onde surge sua realidade?
Rainha: A primeira norma não pode ser vista nem mesmo pelos meus olhos.
No começo, logo depois da criação da segunda norma, ela foi levada pelos Deuses e
nunca mais voltou ao nosso plano. Todas as normas que possuo sobrevieram dessa
segunda norma.
Realismo: E como sabes que a primeira norma era real?
Rainha: Ora, obviamente pela realidade da segunda, já que ela somente
poderia existir de acordo com a realidade da primeira. Agora traga-me o chá, pois
já estou cansada dessa conversa.
Ainda que insatisfeito com as respostas obtidas, o Realismo retirou-se
do castelo. Porém era de sua natureza buscar respostas concretas, portanto
enviou suas dúvidas aos seus primos, de reinos vizinhos tornando pública sua
insatisfação e enfraquecendo ainda mais o governo da Rainha.
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Os Jusnaturalistas deram continuidade ao seu plano, afinal só precisavam
abordar o Empirismo e logo o Reinado cairia facilmente.
Jusnaturalista: Muito bom dia, nobre senhor.
Empirismo: Bom dia, senhor, deves ser o forasteiro que andou tramando
contra nossa Rainha.
Jusnaturalista: Apenas os mostrei o que era óbvio. Se és o nobre Empirismo,
muito me admira que não tenhas percebido antes as deficiências de teu reino.
Empirismo: Esse é o meu nome, mas não entendi vossa admiração e só me
convenço se me mostrares provas.
Jusnaturalista: Minha admiração se deve aos tão famosos mosqueteiros, que
precisaram de um reles andarilho para lhes mostrar o que estava diante de seus bravos narizes. Não percebes que aqui não podes permanecer no oficio de tua família?
Empirismo: Apenas explique-me de que modo desonro minha família, pois
sempre permaneci fiel a ela, mesmo depois de me estabelecer nesse reino.
Jusnaturalista: Os outros da família Empirismo que conheci, eram sempre
dedicados às experiências, em nada acreditavam sem que antes o comprovassem
concretamente. Tu, por outro lado, não pode exercer este oficio, pois não existe
qualquer experiência em um reino onde não existe realidade.
Empirismo: Mas eu posso me debruçar sobre as normas! Creio que o Realismo já lhe falou que elas são a nossa realidade. Meus estudos estão concentrados em
descrever as normas, que são o sentido de todos os outros fatos.
Jusnaturalista: Se não há confronto, não há experiência. Precisaria estudar
também os fatos e colocá-los junto às normas, para que possamos saber o valor
exato de cada uma.
Empirismo: Os fatos apenas maculariam a norma, sem acrescentar-lhe nenhum valor.
Jusnaturalista: A verdade é que as Normas reais já estão destituídas de
valor, desde a sua criação. Entristece-me saber que tais talentos estão sendo desperdiçados para defender algo que vai contra vossas famílias. Os túmulos de até
três gerações de antepassados se revolvem a cada vez que tu e teus companheiros
levantam a voz para defender tão falsa Rainha.
Perturbado pelas palavras do homem, o Empirismo retorna ao castelo.
Empirismo: Excelentíssima Rainha, responda-me: Como posso provar a realidade de nossas normas sem manchá-las com os fatos? Como poderei eu, evidenciar a Norma Fundamental, ainda que, nos nossos dias, ela seja apenas hipotética.
Rainha: Por ser ela uma norma hipotética, não poderia ser comprovada.
Entretanto, depois de falar com vossos companheiros e refletir muito sobre nosso
Reino, creio que na verdade tal norma não existe. Creio que a norma deve ser
correspondente a uma vontade, no caso de nosso reino à minha vontade, pois todas
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pertencem a mim.
Empirismo: Mas se tal coisa for verdade, todos os anos de serviço a ti foram
em vão, ludibriados por falsas afirmações!
Rainha: Não esqueça que me deve respeito, pois sois meu servo e...
Empirismo: Não mais, cara senhora, deixo hoje de prestar-lhe meus serviços
e creio que meus companheiros também o farão. Não podemos permanecer diante
de tais acontecimentos, vejo agora que servindo a ti, apenas lançamos à lama o
nome e o respeito de nossas famílias.
Desse modo os três mosqueteiros reais deixaram o castelo, rumo aos reinos vizinhos, onde reencontrariam suas famílias e tentariam se restabelecer,
apagando de suas vidas o Reino Ontológico.
Os jusnaturalistas, logo que souberam da saída dos mosqueteiros, organizaram a invasão. Rapidamente o castelo foi tomado, a rainha deposta e o
Direito retirado do cofre. Ao contemplá-lo, os jusnaturalistas perceberam o
quão precioso e magnífico era o Direito e como a Rainha equivocara-se ao
mantê-lo cativo.
O Direito foi posto em praça pública, onde poderia ser tocado e apreciado por todos os cidadãos do Reino, tornando-se ainda mais rico e fornecendo
normas mais complexas. Ficou provado o erro da Rainha, pois todas as normas nasciam do direito e esse resplandecia ao ser tocado pelos fatos sociais,
fornecendo-lhes ainda mais normas que poderiam ser apreciadas e usadas por
todo o povo.
Fim.
20
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Uma concepção do direito em contraste com o princípio
de não-contradição: análise do prefácio O Ordenamento
Jurídico sob o Prisma do Humanismo e da Democracia
presente no livro Fundamentos do Direito *
1
Cezário Corrêa Filho2
RESUMO: No presente trabalho, a partir da relação entre essência e existência, justiça e
injustiça, liberdade e autoritarismo, analisa-se a definição do Direito como compartição de
liberdade e a concepção do ordenamento jurídico sob o prisma do humanismo e da democracia, apresentados por Arnaldo Vasconcelos no prefácio (O ordenamento jurídico sob o
prisma do humanismo e da democracia) do livro Fundamentos do Direito, de Hugo de Brito
Machado Segundo. Objetiva-se verificar a possibilidade, ou não, da observância do princípio
de não-contradição, para avaliar quais tipos de regulação da conduta podem ser considerados expressões do Direito. A metodologia utilizada consistiu em estudo descritivo-analítico,
desenvolvido por meio de pesquisa qualitativa, do tipo bibliográfica. Os resultados revelaram
que, admitindo-se como tal, a definição em pauta não se coaduna com as diversas formas
de regulação de condutas também admitidas pelo autor como sendo Direito, o que leva a
concluir que existe erro lógico e que isto interfere ideologicamente na efetivação do Direito
historicamente concebido.
PALAVRAS-CHAVE: Metafísica; Direito; Liberdade; Não-Contradição.
ABSTRACT: In this work, from the relationship between essence and existence, justice and
injustice, freedom and authoritarianism, we analyze the definition of law as share of freedom
and the conception of the legal system from the perspective of humanism and democracy,
presented by Arnaldo Vasconcelos in the preface (O ordenamento jurídico sob o prisma do humanismo e da democracia) of the book Fundamentos do Direito, de Hugo de Brito Machado
Segundo. The objective is to verify the possibility, or not, of the principle of non-contradiction, to judge if another forms of regulation of conduct can be considered expressions of
the law. The methodology consisted of descriptive and analytical study, developed through
qualitative bibliographical research. The results showed that, assuming as such, the definition
in question is inconsistent with the various forms of regulation of conduct also admitted by
the author as being law, which leads to the conclusion that there is logic error and that it
interferes ideologically in the realization of the law historically considered
KEYWORDS: Metaphysic; Law; Freedom; Non-Contradiction.
1
2
Trabalho inicialmente apresentado para fins avaliação na disciplina Teoria Geral do Direito, ministrada pelo Prof. Dr. Hugo de Brito Machado Segundo, no Programa de Mestrado e Doutorado em
Direito da Faculdade de Direito da UFC, no ano de 2011.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Professor universitário. Servidor público
federal ocupante do cargo efetivo de Advogado da União na Procuradoria da União no Ceará. E-mail: <[email protected]>.
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Introdução
O presente trabalho, intitulado Uma concepção do Direito em contraste
com o princípio da não-contradição: crítica ao prefácio O ordenamento jurídico
sob o prisma do humanismo e da democracia presente no livro Fundamentos do
Direito, foi apresentado para fins de avaliação por ocasião da conclusão da
disciplina Teoria Geral do Direito ministrada no Programa de Mestrado e
Doutorado da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará.
Em face dos diversos temas discutidos no correr da disciplina, deparou-se
com o prefácio produzido por Arnaldo Vasconcelos3 para livro Fundamentos
do Direito, de Hugo de Brito Machado Segundo. Nesse prefácio, Arnaldo
Vasconcelos analisa o Ordenamento jurídico sob o prisma do humanismo e da
democracia e faz a defesa da metafísica (filosofia) em conciliação com a física (ciência). No desenvolvimento da ideia, como se verá na continuidade, o
prefaciador apresenta considerações, de essência, sobre algumas condições do
Direito que se consideram acidentais. E o que se percebe no texto é certa confusão entre acidente e ente ou, o que é mais radical, percebe-se, na ideia, uma
entificação do acidente, permitindo uma transfiguração do ente, o Direito,
conforme o acidente que o qualifique. Assim, apesar de Arnaldo Vasconcelos
definir o Direito como compartição de liberdade, ele admite que o Direito injusto e ilegítimo é tão Direito quanto o Direito justo e legítimo.
Esse entendimento, que se considera um erro lógico, provocou inquietação e suscitou o desenvolvimento dessas breves ponderações, porque se entende que a concepção de Direito presente no referido prefácio viola o princípio de não-contradição, muito caro ao desenvolvimento da razão filosófica
e, também, científica.
A metodologia utilizada consistiu em estudo descritivo-analítico, desenvolvido por meio de pesquisa qualitativa, do tipo bibliográfica, com referência
principal no livro onde figura o prefácio. E o trabalho está composto por três
seções, sendo a primeira uma breve resenha do prefácio analisado, a segunda,
um exercício de crítica e uma tentativa de preservar a logicidade das relações
conceituais e, a terceira, a conclusão, seguida pelas referências.
Observa-se ao leitor que, aqui, cuida-se de uma ressonância à leitura do
prefácio. Reconhece-se e respeita-se a larga investigação do tema feita por
Arnaldo Vasconcelos e se aceita que, eventualmente, considere-se um tanto
presunçoso apresentar uma crítica tão incipiente e limitada a uma única ex3
VASCONCELOS, Arnaldo. O ordenamento jurídico sob o prisma do humanismo e da democracia. In: MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Fundamentos do Direito. São Paulo: Atlas,
2010. p. xv-xxiii.
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pressão do pensamento do autor comentado, mas, vale-se da ideia de que a
ciência, inclusive a do Direito, só progride e mantém-se atuante na história se
for submetida a constantes testes ou, no dizer de Popper4, a percucientes refutações. Estas breves linhas esboçam uma tentativa de teste da coerência lógica
do pensamento abordado. Por isso, também essa ressonância está sujeita às
refutações de sua consistência.
1 Breve resenha do prefácio analisado
Prefaciando o livro Fundamentos do Direito, de Hugo de Brito Machado Segundo, Arnaldo Vasconcelos faz a defesa da metafísica, para ele equipolente à filosofia, tanto que anota os termos da seguinte forma –“metafísica
(filosofia)”. No ensejo, Arnaldo Vasconcelos também diverge da ideia de que
os filósofos Hume e Kant tenham “matado” a metafísica. Para o autor, a acusação é indevida.
No desenvolvimento, Arnaldo Vasconcelos apresenta a correlação entre
a ciência (física), que se pode, de logo, especificar como sendo a ciência do
Direito, e a filosofia (metafísica), aborda concepções do jusnaturalismo em
confronto com o juspositivismo e rejeita a pretensa superação dialética dessas
duas concepções que teria sido operada pelo chamado pós-positivismo. Para
o prefaciador, jusnaturalismo e juspositivismo são duas espécies implicadas e
complementares do mesmo gênero Direito.
Num tópico adiante, define o Direito como compartição de liberdade e,
ao final, apresenta oito pontos que devem ser avaliados, sob o prisma ideológico, para se saber se, com isso, o Direito guarda compatibilidade com
o ordenamento jurídico projetado – um ordenamento jurídico humanista e
democrático.
Aqui, convém ressaltar, de logo, que a definição de um ente se extrai do âmbito da essência desse ente. Veja-se o ponto em que o prefaciador pretende que o
elemento essencial se manifeste, também, como elemento existencial do Direito:
Com vistas a que, não só na esfera das essências seja o Direito compartição de
liberdade, mas efetivamente exista, no plano fático da vida social, como instância
de legitimidade e de justiça, tornou-se necessário que se requalificasse segundo os
valores pertinentes à dignidade humana e à democracia pluralista: Direito justo e
legítimo.5 (Destacou-se).
4
5
POPPER, Karl Raimund. Conjecturas e refutações. Tradução Sérgio Bath. 5ª ed. Brasília, DF:
UnB, 2008. p.
VASCONCELOS, Arnaldo. O ordenamento jurídico sob o prisma do humanismo e da democracia. In: MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Fundamentos do Direito. São Paulo: Atlas,
2010. p. xviii-xx.
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Com intenção mais ampla, no contexto em que coteja os planos da essência e da existência, Arnaldo Vasconcelos diz do reducionismo do positivismo e
propõe o paralelismo entre essência e existência, e justiça e legitimidade, a partir do que considera uma antropologia jurídica. Neste ponto, fosse antecipar
a constatação, ter-se-ia de fixar que o elemento essencial do Direito, portanto
metafísico, deveria ser o substrato para a manifestação existencial, determinando que esta existência se expressasse de modo justo e legítimo. Veja-se o ponto:
Consoante parece ter ficado devidamente esclarecido, é de ver-se que as teorias da
positividade, sem a complementação da metafísica, por melhores que possam ser,
têm-se apresentado como de todo incompatíveis com os princípios fundamentais
de uma antropologia jurídica de inspiração democrática. Com vistas a que, não
só na esfera das essências seja o Direito compartição de liberdade, mas efetivamente exista, no plano fático da vida social, como instância de legitimidade e de
justiça, tornou-se necessário que se requalificasse segundo os valores pertinentes à
dignidade humana e à democracia pluralista: Direito justo e legítimo. Ter-se-ia
um novo tridimensionalismo jurídico, resultado não de uma apreensão simplesmente descritiva do Direito, mas de uma visão prospectiva daquilo que deve ser
o Direito: jurídico, legítimo e justo.6 (Grifou-se).
Mas, logo no parágrafo seguinte, reconhecendo que o poder “tem um
caráter intrinsecamente corruptor”7, e que isto é uma das “fortes razões da
vulnerabilidade da democracia”8, Arnaldo Vasconcelos sublinha o “fato de que
o Direito, ele próprio, é fenômeno político”9, o que significa que o Direito é
“fenômeno de poder. E, portanto, também, matéria de alto risco”10. Daí, o
autor afirma que se forma um círculo vicioso na relação entre poder e Direito,
visto que o poder cria o Direito e o Direito controla o poder.
Entretanto, para que tudo fique literalmente apresentado e não se duvide de que se examinou um texto apenas filtrado por interpretação própria,
optou-se por transcrever integralmente os oito pontos esboçados por Arnaldo
Vasconcelos. Segundo o autor, estes pontos devem servir de bases para o teste
de compatibilidade do Direito com o ordenamento jurídico projetado, um
ordenamento jurídico humanista e democrático:
1. uma teoria crítica do Direito, de índole humanista e democrática, não pode
romper a necessária conexão entre justiça e Direito, nem confundir uma coisa
com a outra. Há de estabelecer, claramente, que a prioridade induvidosa, entre
esses conceitos, pertence à justiça como sentimento anterior e finalidade última
do Direito;
6
7
8
9
10
Ibid., p. xviii-xx.
Ibid., p. xviii-xx.
Ibid., p. xviii-xx.
Ibid., p. xviii-xx.
Ibid., p. xviii-xx.
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2. incidem, igualmente, em equívoco, aqueles para os quais só é Direito o Direito
justo. Constitui, esse, o erro mais grave da ortodoxia jusnaturalista. O erro da
ortodoxia positivista, semelhante, mas em sentido oposto, é afirmar que só é Direito o Direito positivo. Direito natural e Direito positivo são espécies diversas, a
formarem um único gênero, o Direito. Aproxima-os, inevitavelmente, a lógica
dialética da complementaridade;
3. o Direito possui, além das instâncias de validade, que integram o conceito multidimensional de Direito positivo, instâncias de valor, as quais têm por função
indispensável requalificar axiologicamente, portanto ao nível da metafísica, o
próprio Direito positivo. São elas justiça e legitimidade;
4. o Direito injusto é igualmente Direito. As coisas, sabe-se desde Aristóteles, existem de dois modos: de acordo com sua natureza ou como deturpação desta. O
Direito injusto é uma deturpação, e, como tal, existe ao lado do Direito justo.
A prova prática disso, iniludível, é a existência de um órgão do Estado, o Poder
Judiciário, criado para cuidar especialmente de suas muitas e variadas manifestações;
5. direito é também o Direito ilegítimo. Seu ambiente próprio é o regime político
autoritário, em quaisquer de suas variadas formas, nas quais viceja com plena
desenvoltura. Aí, a legitimidade é exceção raramente verificável, porque seu advento porá em risco a permanência do governo autoritário. Nas democracias,
ao contrário, a ilegitimidade é que é passageira. Segue idênticos princípios a
ilegitimidade jurídica;
6. não se pode, em qualquer hipótese, tomar a parte pelo todo. Na esfera jurídica,
por exemplo, aludir à lei como se estivesse se referindo a todo o Direito. Esse
constitui um grave erro de redução, cuja consequência imediata é o desfiguramento do objeto visualizado, consoante ocorreu com o positivismo exegético.
Nem por isso se deve deixar de reconhecer que a lei constitui a fonte principal e
prioritária do Direito, porque é a partir dela que se definem, além da ordem de
hierarquia das demais fontes, os campos da juridicidade, a saber, a legalidade, a
licitude e a ilicitude;
7. errôneo é pretender deferir ao Direito positivo o poder de operar juridicização
de normas ou princípios. E isto, simplesmente porque o jurídico é antecedente
lógico da positividade. Positivo é uma qualidade ou determinação que se acrescenta ao que, por natureza e com prioridade, já é Direito. A sequência é esta:
jurídico, positivo, justo e legítimo. Com tal fundamento, predica-se, por absolutamente necessária, a plenitude lógica do ordenamento jurídico. Em sentido
oposto: o jurídico ilegal ou ilícito, aquele que constitui o Direito comum das
associações de malfeitores, como tal reconhecido por autores de todas as épocas
e escolas, ostenta essa qualificação sem que se precise de constituição ou de lei
que o requalifique. Só o que o desqualifica definitivamente, perante o Direito, é
a ausência de legitimidade;
8. nem pensar em Direito e liberdade como coisas opostas e incompatíveis, tanto
que o Direito resulta antes, e precisamente, da compartição de liberdades. Entretanto, assim agem aqueles positivistas que definem o Direito como sistema de
normas legais sobre o uso da força, ou que o fazem em termos de normas imperativas de subordinação. Essas expressões, por natureza incompatíveis com valores
constitutivos da dignidade humana, não podem ser pronunciadas em vão por
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juristas democratas e humanistas. É preciso que sejam advertidos de que não é
por esse meio que conseguirão resolver o problema multissecular da eficácia da
obrigatoriedade jurídica. Será que esses juristas esquecem que, como pertencentes à espécie humana, sobre eles recai igualmente a maldição de que só pela
subordinação, pelo medo ou pela força conseguirão, eles também, cumprir suas
obrigações jurídicas? (Grifos do original.)
Apresentados os pontos que Arnaldo Vasconcelos toma como base de
aferição da compatibilidade do Direito com o ordenamento jurídico que deve
ser humanista e democrático, passa-se, então, ao teste da coerência e consistência do pensamento do autor.
2
Um exercício de crítica e uma tentativa de preservar a logicidade
das relações conceituais
Se tudo for bem examinado, considerando-se os pontos a, b, c, d e e
propostos por Arnaldo Vasconcelos, ver-se-á que “uma vaca é uma vaca, mas,
também pode ser um cavalo” e, assim, o Direito é compartição de liberdade,
o que, no campo de sentido, remete à justiça e à legitimidade, mas, por deturpação, também pode ser injusto ou ilegítimo, embora, para Arnaldo Vasconcelos, continue a ser Direito. Noutros termos, segundo o autor, o Direito,
por natureza, é Direito (compartição de liberdade, justo e legítimo), mas, por
deturpação (ou corrupção), pode continuar sendo Direito (opressivo, injusto
e ilegítimo)... E segue a vaca comendo capim e relinchando, porque ela, por
natureza, é uma vaca, mas, por deturpação, também pode ser um cavalo.
Uma observação necessária: não se comunga com a ideia de que o Direito seja “compartição de liberdade”. A crítica ora formulada é apenas e exatamente para ressaltar e, assim, possibilitar a revisão de aspectos que se tem por
contraditórios na ideia transmitida no aludido prefácio.
Antecipa-se... Ao definir o Direito como “compartição de liberdade”, ou
se trata, para o prefaciador, de uma definição meramente acidental, que, por
acidental, guarda coerência com a ideia desenvolvida no prefácio em questão,
onde o Direito injusto também é Direito, onde o Direito ilegítimo também é
Direito, ou se trata de uma definição com pretensão metafísica (filosófica),
isso é, que considera o ser do Direito enquanto tal, o que, então, é uma definição com pretensão de apresentar ou aproximar-se da essência do Direito.
Visto que Arnaldo Vasconcelos faz um ligeiro ensaio em defesa da metafísica11, equivalendo-a, inclusive, à filosofia e apresentando-a como necessária
11 Nas últimas palavras já transcritas acima, quando ele aborda a relação da metafísica (filosofia) com a
ciência no enlace da disputa entre o juspositivismo e o jusnaturalismo, tem-se o seguinte: Consoante
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à ciência, só se pode concluir que, quando define o Direito como “compartição de liberdade”, ele tem a pretensão de alcançar-lhe a essência ou, ao menos,
aproximar-se dela. Mas, ele termina por não se dar conta das contradições em
que incorre. Essa conclusão parece admissível no sentido extraível do ponto
em que ele assevera que:
Com vistas a que, não só na esfera das essências seja o Direito compartição de
liberdade, mas efetivamente exista, no plano fático da vida social, como instância
de legitimidade e de justiça, tornou-se necessário que se requalificasse segundo os
valores pertinentes à dignidade humana e à democracia pluralista: Direito justo e
legítimo.12 (Grifou-se).
Posto que vá, e porque vai, além da análise da esfera das essências, e este
é o ponto de tensão, se bem observado o princípio de não-contradição e a
logicidade da relação entre essência e existência, Arnaldo Vasconcelos finda
por admitir que é a existência que determina a essência: na essência, o Direito
é compartição de liberdade, porém, na existência, o Direito opressivo também
é Direito.
Se o faz conscientemente, sem cogitar de erro lógico, então, não será apenas por considerar aspectos relacionais entre essência e existência que Arnaldo
Vasconcelos estará apresentando uma defesa da metafísica. Ao contrário!... Se
se concordar com a tese da acusação contra Hume e Kant quanto ao “assassínio” da metafísica, bem examinado o prefácio em questão, ter-se-á de admitir
que Arnaldo Vasconcelos convida os leitores à missa póstuma da metafísica.
O pensamento de Arnaldo Vasconcelos, que admite a possibilidade de,
na essência, o Direito ser e, ao mesmo tempo, na existência, não-ser, ou é
inútil e inócuo ou reforça a por ele criticada concepção positivista que embasa
a sentença de Kelsen de que “todo e qualquer conteúdo pode ser Direito” 13,
parece ter ficado devidamente esclarecido, é de ver-se que as teorias da positividade, sem a complementação da metafísica, por melhores que possam ser, têm-se apresentado como de todo incompatíveis com os
princípios fundamentais de uma antropologia jurídica de inspiração democrática. Com vista a que, não
só na esfera das essências seja o Direito compartição de liberdades, mas efetivamente exista, no plano
fático da vida social, como instância de legitimidade e de justiça, tornou-se necessário que se requalificasse
segundo os valores pertinentes à dignidade humana e à democracia pluralista: Direito justo e legítimo.
(VASCONCELOS, Arnaldo. O ordenamento jurídico sob o prisma do humanismo e da democracia. In: MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Fundamentos do Direito. São Paulo: Atlas,
2010. p. xviii-xix) (item 11). (Grifos nossos).
12 VASCONCELOS, Arnaldo. O ordenamento jurídico sob o prisma do humanismo e da democracia. In: MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Fundamentos do Direito. São Paulo: Atlas,
2010. p. xviii-xx.
13 KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Trad. de João Batista Machado; preparação do original
Márcio Della Rosa. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994. <Ensino Superior>. <Título original:
Reine Rechtslehre>. p. 221.
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já que se cuida do plano da existência e descura do plano da essência. Com
isso, a aceitação do distanciamento da essência desprestigia qualquer ação que
pretenda aproximar o Direito existente do Direito essente.
Portanto, se é para a defesa da metafísica, o prefácio de que se cuida apresenta manifesta contradição e não guarda o rigor da análise e nem da crítica que
o mesmo Kant, por ele citado, recomenda na Crítica da Razão Pura (CRP).14
Logo no prefácio da segunda edição da CRP, Kant diz qual é a pretensão da
crítica, qual problema pretende resolver ou deixar clara sua insolubilidade, e
assevera que o caminho seguro das ciências segue pela determinação legítima
dos princípios, [pela] clara definição dos conceitos, pelo rigor exigido nas demonstrações e a prevenção de saltos temerários no estabelecimento das consequências.15
Então, reveja-se que, numa definição, no plano da essência, para Arnaldo Vasconcelos, o “Direito é compartição de liberdade”; noutra, no plano da
existência, pode ser injusto, assim, autoritário ou ilegítimo, pois o “Direito
injusto também é Direito”, o “Direito ilegítimo também é Direito”.
Para o confronto dessas possibilidades fenomênicas, se o fundamento da
análise é a filosofia primeira, a metafísica, relembre-se que, no Livro Décimo (I)
da Metafísica16, Aristóteles distingue as coisas corruptíveis das incorruptíveis:
Dado que os contrários são diferentes pela espécie e dado que o corruptível e
o incorruptível são contrários (de fato, a privação é determinada impotência),
o corruptível e o incorruptível são necessariamente diferentes pelo gênero.17
(Grifou-se).
Então, visto que, primeiramente, para quem defende uma metafísica
qualquer, se se considerar com o mínimo rigor a definição metafísica do Direito (compartição de liberdades), ter-se-á que a essência deve estar presente na
existência e que, embora esta não efetive integralmente aquela, dela não pode
distanciar-se a ponto de ser uma existência corrompida, porque o corruptível
e o incorruptível são necessariamente diferentes pelo gênero. Pode haver, no nível
vulgar, algum vício de linguagem, mas o rigor com que dizem se apresentar
14 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 5. ed. Tradução Manuela Pinto dos Santos e Alexandre
Fradique Morujão. Lisboa-PT: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. <título original Kritik der
Reinen Vernunft>.
15 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 5. ed. Tradução Manuela Pinto dos Santos e Alexandre
Fradique Morujão. Lisboa-PT: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. <título original Kritik der
Reinen Vernunft>. p. 31.
16 ARISTÓTELES. Metafísica – ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário de
Giovanni Reale. 2. ed. Tradução Marcelo Perine. São Paulo: Edições Loyola, 2002. Volume II.
<título original Aristotele Metafisica – Saggio inntrodutivo, testo Greco con traduzione a fronte e
commentario a cura di Giovanni Reale>.
17 Metafísica, X, 10, 1058b26-29.
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a filosofia e a ciência não admite esse vício para confundir o Direito que é
(compartição de liberdade) com o Direito que, autoritário ou ilegítimo, não-é
(compartição de liberdade), e defender que os dois são a mesma coisa ao mesmo tempo, visto que são Direito.
Observe-se que a carga semântica do termo liberdade (Direito é compartição de liberdade) é incompatível com a carga semântica dos termos injusto,
autoritário e ilegítimo (o Direito injusto e o Direito ilegítimo também são
Direito, segundo Arnaldo Vasconcelos) porque onde há injustiça e/ou ilegitimidade, não existe liberdade.
O senão que atinge a abordagem feita por Arnaldo Vasconcelos é a desnaturação da metafísica, com a violação do princípio de não-contradição, visto que, no plano da existência, considerando aqueles oito pontos, ele admite
qualquer Direito, justo ou injusto, embora opte, discursivamente, pelo Direito justo e legítimo. Cuida-se, então, de admitir que a existência determina
a essência e, diante desse fato, fazer uma escolha.
Declarando-se humanista e democrata, Arnaldo Vasconcelos escolhe e
defende o Direito que, no plano da existência, apresente-se humanista e democrático. No entanto, como se trata de escolha, outro sujeito pode escolher
o Direito que, também no plano da existência, apresente-se ilegítimo e/ou
injusto. As duas escolhas se confrontam sem que possam passar seguras no
teste da racionalidade ou logicidade dos argumentos.
E é interessante retomar o ponto em que Arnaldo Vasconcelos defende
a permanência da metafísica, como filosofia, ao lado da ciência, como física.
Ora, se o Direito é compartição de liberdade, ele não deve ser legítimo e justo. Enquanto comparte liberdades, o Direito já o é legítimo e justo, porque
as cargas semânticas dos termos liberdade, legitimidade e justiça implicam-se
mutuamente, embora sejam entes diferentes. Tudo isso será mero exercício
acadêmico, se se admitir que o Direito, no plano da existência, afaste-se do
Direito definido no plano da essência, e aquele ainda continue a ser Direito.
Isto será a admissão de que a essência nada vale diante da existência.
E em que a metafísica é desnaturada? Exatamente na sua definição como
parte da filosofia (ou da ciência filosófica) que se ocupa do ser enquanto tal,
o que a faz investigar a essência do ser. Aristóteles, citado por Arnaldo Vasconcelos, teria dito que as coisas “existem de dois modos: de acordo com sua
natureza ou como deturpação desta”.18 Ora, o mesmo Aristóteles, na Metafísi18 VASCONCELOS, Arnaldo. O ordenamento jurídico sob o prisma do humanismo e da democracia. In: MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Fundamentos do Direito. São Paulo: Atlas,
2010. p. xvii (ponto d).
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ca, livro quinto, apresenta os significados do ser. E O ser se diz (1) em sentido
acidental e (2) por si.19
O ser, em sentido acidental, não é uma deturpação do ser. Ele é o ser,
enquanto tal, qualificado por um predicado, a exemplo de o homem é músico.
O predicado músico, embora acidental, não deturpa o homem essencialmente
definido. O ser por si também não é uma deturpação do ser, mas o ser definido por meio das categorias, como, por exemplo, a de substância. Na compreensão das considerações aristotélicas não se admite que um ser, afirmado por
um predicado e negado por outro, continue sendo o mesmo ser ao mesmo
tempo se tais predicados estão implicados com cargas semânticas contraditórias - liberdade e autoritarismo, justiça e injustiça. Admitindo-se, ao mesmo
tempo, por definição, que o Direito seja compartição de liberdade, a expressão
Direito injusto se torna uma contradição nos termos (contradictio in adjecto).
Convém ressaltar que, ao considerar contraditória a expressão Direito injusto quando parametrizada pela definição admitida como ponto de partida,
não se está apenas fazendo uma escolha. Trata-se de uma percepção sistemática do pensamento criticado. Como sistema, esse pensamento parte do plano
da essência, em que é apresentada a definição do Direito, e vai aos efeitos ou
consequências no plano da existência, no qual é apresentada a correlação entre
o que Arnaldo Vasconcelos entende serem manifestações do Direito.
No que tange à contradição nos termos, encontra-se uma definição desse
erro lógico na Enciclopédia de termos lógico-filosóficos:20
[...] (lat., contradição nos termos) A designação é usada para referir aquelas expressões – p. ex., os predicados complexos “quadrado circular”, “república monárquica” e “mesa inteiramente verde e inteiramente vermelha (em cada ocasião)” – que
são compostas por termos mutuamente inconsistentes, termos que não podem,
em virtude de razões puramente lógicas ou semânticas, ser conjuntamente
verdadeiros do que quer que seja; uma contradictio in adjecto é assim aproximadamente o mesmo que AUTO-CONTRADIÇÃO. Nem sempre é claro quando
uma expressão dada é uma contradictio in adjecto; por ex., alguns filósofos pensam
que a expressão “linguagem privada” é uma contradictio in adjecto, mas a pretensão
não é indisputável. JB (Grifou-se).
Retornando ao curso da exposição, destaca-se que aquela abordagem
aristotélica será, bem depois, retomada por Kant, com a distinção entre juízo
sintético e juízo analítico.21 No juízo sintético, sujeito e predicado estão relacio19 Metafísica, IV, 7, 1017a6.
20 CONTRADICTIO IN ADJECTO. In: Enciclopédia de termos lógico-filosóficos. Edição de
João Branquinho, Desidério Murcho e Nelson Gonçalves Gomes. São Paulo: Martins Fontes,
2006. p. 211.
21 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 5. ed. Tradução Manuela Pinto dos Santos e Alexandre
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nados por extensão do predicado ao sujeito, de modo que o predicado acresce
ao sujeito um atributo que nele não estava pensado, vg. o homem é músico; no
juízo analítico, sujeito e predicado se relacionam por explicação deste àquele,
de forma que o predicado apresenta um atributo que já estava pensado (ou
era pensável) no sujeito, vg. o homem é mortal.
Resta, então, saber qual dos juízos opera na definição do Direito como
compartição de liberdade. Se essa compartição de liberdade advém da (trágica) ideia de que o homem está condenado a ser livre, considera-se que o juízo
operante na definição é o juízo analítico – sujeito (Direito) e predicado (compartição de liberdade) se relacionam por explicação deste àquele, sendo que
o predicado já era pensado, ou pensável, no sujeito. E é isso que se considera
mais admissível no prefácio em análise. Reveja-se o último ponto (letra h)
apresentado por Arnaldo Vasconcelos como critério de teste de compatibilidade do Direito com o ordenamento jurídico projetado, no qual se assevera que:
[...] nem pensar em Direito e liberdade como coisas opostas e incompatíveis,
tanto que o Direito resulta antes, e precisamente, da compartição de liberdades. Entretanto, assim agem aqueles positivistas que definem o Direito como
sistema de normas legais sobre o uso da força, ou que o fazem em termos de normas
imperativas de subordinação. Essas expressões, por natureza incompatíveis com valores constitutivos da dignidade humana, não podem ser pronunciadas em vão por
juristas democratas e humanistas. É preciso que sejam advertidos de que não é por
esse meio que conseguirão resolver o problema multissecular da eficácia da obrigatoriedade jurídica. Será que esses juristas esquecem que, como pertencentes à
espécie humana, sobre eles recai igualmente a maldição de que só pela subordinação, pelo medo ou pela força conseguirão, eles também, cumprir suas obrigações
jurídicas?22 (Destacou-se).
Portanto, se feita a análise com a observação kantiana de que o caminho
seguro das ciências segue pela determinação legítima dos princípios, [pela] clara
definição dos conceitos, pelo rigor exigido nas demonstrações e a prevenção de saltos
temerários no estabelecimento das conseqüências23 , não se pode deixar de anotar
a violação do princípio de não-contradição. Para as escolhas e fins a que o
prefaciador se propõe, se se obedecer a esse princípio, não se poderá defender
que uma coisa que é, na esfera da essência, pode deixar de ser, na esfera da
existência, e continuar sendo a mesma coisa. Mas, ainda há outro senão no
pensamento criticado: a desconsideração das cargas semânticas implicadas nos
Fradique Morujão. Lisboa-PT: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p. 42 e ss.
22 VASCONCELOS, Arnaldo. O ordenamento jurídico sob o prisma do humanismo e da democracia. In: MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Fundamentos do Direito. São Paulo: Atlas,
2010. p. xvii-xxiii.
23 Ibid., p. 31.
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termos que foram correlacionados a partir da definição. Se se observar os respectivos sentidos, não se pode admitir que, onde figura a liberdade como predicado de um ser, possa-se aceitar que figure o autoritarismo como acidente
desse mesmo ser. Por consequência, o Direito que, na essência, é compartição
de liberdade não pode ser, na existência, injusto e/ou ilegítimo.
Se se seguir a escolha de Arnaldo Vasconcelos pelo humanismo e pela
democracia, a compreensão do que acima se diz é que possibilitará separar
o que é o Direito enquanto tal daquilo que, historicamente, tem sido um
instrumento de dominação e controle. Do ponto de vista pragmático, toda
proposição implica uma tomada de posição no mundo. A sentença que veicula a proposição de que o Direito ilegítimo é também Direito assim como a que
veicula a proposição de que o Direito injusto é também Direito, consideradas
em si, longe de implicarem um agir que encaminhe para a liberdade e para a
democracia, reforçam um agir contraditório e de manutenção da relação de
dominação instrumentalizada pelo Direito, porque Arnaldo Vasconcelos também reconhece que o poder “tem um caráter intrinsecamente corruptor”24,
uma das “fortes razões da vulnerabilidade da democracia”25, pelo “fato de que
o Direito, ele próprio, é fenômeno político”26 . Para haver coerência no sistema, a partir da definição proposta, tem-se que rejeitar reconhecer, como
Direito, aquilo que seja injusto, ilegítimo e/ou autoritário.
Conclusão
A investigação que ora se conclui demonstra que essência e existência se
implicam mutuamente e que a definição de um ente se extrai do âmbito da
essência desse ente. Constata que, embora, Arnaldo Vasconcelos relacione as
esferas da essência e da existência, como resultado dos saltos que dá, ele termina por estabelecer que a existência determina a essência.
A pesquisa também constata o erro lógico e a violação do princípio de
não-contradição, quando se define, na esfera da essência, o Direito como
compartição de liberdade, e admite, na esfera da existência ou do acidente,
“expressões” do Direito com predicados contraditórios àquele presente na definição.
Comprova que, embora o ensaio de conciliação pareça proveitoso, Arnal24 VASCONCELOS, Arnaldo. O ordenamento jurídico sob o prisma do humanismo e da democracia. In: MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Fundamentos do Direito. São Paulo: Atlas,
2010. p.
25 Ibid., p. xviii-xx.
26 Ibid., p. xviii-xx.
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do Vasconcelos incorre em saltos temerários no estabelecimento das relações e
consequências entre o juspositivismo e o jusnaturalismo.
A pesquisa demonstra que, no prefácio examinado, não se faz a devida
consideração das implicações semânticas entre os termos liberdade, justiça e
legitimidade, de um lado, e autoritarismo, injustiça e ilegitimidade, de outro,
e que, com base na distinção kantiana entre juízo sintético e juízo analítico, a
definição apresentada por Arnaldo Vasconcelos opera sob o âmbito do juízo
analítico e isto reforça a contradição nos termos das sentenças Direito injusto
é Direito e Direito ilegítimo é Direito.
Com relação às questões que nortearam o presente trabalho, conclui-se,
que, do ponto de vista pragmático, toda proposição implica uma tomada de
posição no mundo, e a sentença que veicula a proposição de que o Direito
ilegítimo é também Direito tal qual a que veicula a proposição de que o Direito injusto é também Direito, consideradas em si, longe de implicarem um
agir que encaminhe para a liberdade e para a democracia, reforçam um agir
contraditório e de manutenção da relação de dominação instrumentalizada
pelo Direito. Assim, para haver coerência no sistema analisado, o que se tem
de fazer é rejeitar qualquer tentativa de reconhecer, como Direito, aquilo que
seja injusto, ilegítimo e/ou autoritário.
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Referências
ARISTÓTELES. Metafísica – ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário de Giovanni Reale. 2. ed. Tradução Marcelo Perine. São Paulo: Edições Loyola, 2002. Volume II. <título
original Aristotele Metafisica – Saggio inntrodutivo, testo Greco con traduzione a fronte e commentario
a cura di Giovanni Reale>.
CONTRADICTIO IN ADJECTO. In: Enciclopédia de termos lógico-filosóficos. Edição de João
Branquinho, Desidério Murcho e Nelson Gonçalves Gomes. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 5. ed. Tradução Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa-PT: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. <título original Kritik der Reinen
Vernunft>.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. de João Batista Machado; preparação do original Márcio Della Rosa. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994. <Ensino Superior>. <Título original: Reine
Rechtslehre>.
POPPER, Karl Raimund. Conjecturas e refutações. Tradução Sérgio Bath. 5. ed. Brasília, DF: UnB,
2008. <título original Conjectures and Refutations>.
VASCONCELOS, Arnaldo. O ordenamento jurídico sob o prisma do humanismo e da democracia.
In: MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Fundamentos do direito. São Paulo: Atlas, 2010. p.
xv-xxiii.
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UMA TEORIA DO DIREITO DE VOCAÇÃO
DEMOCRÁTICA E HUMANISTA, CORAJOSAMENTE
APRESENTADA E DEFENDIDA EM CONTEXTO
POLÍTICO-SOCIAL ADVERSO
Flávio José Moreira Gonçalves1
RESUMO: Análise e discussão da obra Teoria da Norma Jurídica, de Arnaldo Vasconcelos,
defendida pelo autor em plena Ditadura Militar, no ano de 1977. Explicitação das possíveis
razões pelas quais o autor sustenta a existência de direito injusto e concebe a legitimidade
como única instância de valor que o direito das associações de malfeitores (societas sceleris) não
consegue contemplar, tendo destacado a vontade geral com um dos possíveis fundamentos da
norma jurídica. As afirmações corajosas do autor, à época objeto de crítica feita por Machado
Paupério, um dos examinadores da dissertação e explicitada no Prefácio à 1ª edição da obra
comentada, prefácio este suprimido pelo autor em edições subsequentes, não foi adequadamente compreendida. A tese da existência de direito injusto e ilegítimo, embora possa parecer
contraditória numa teoria do Direito que leva em conta as instâncias de valor da norma, ao
lado daquela que admitia a vontade geral como fundamento possível da norma jurídica, ajudava a colocar em discussão a própria legitimidade jurídico-política do regime militar, cuja
ilegitimidade era manifesta, sem falar nas inúmeras violações dos direitos humanos, os quais
somente agora poderão vir à tona, como resultado do trabalho da recém-criada Comissão da
Verdade, objeto da Lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011. A ironia, contida na obra e
não percebida pelo examinador, comprova o inequívoco compromisso das ideias nela sustentadas com a democracia e o humanismo, bem como a crítica indireta ao regime autoritário,
sob a égide do qual o Brasil teve de viver por mais de duas décadas, de 1964 a 1985, crítica
esta reforçada corajosamente pelo combate ao imperativismo e à teoria coativista do Direito,
desenvolvida em todas as obras posteriores do mesmo autor, nas quais defende uma espécie
de tridimensionalismo axiológico.
PALAVRAS-CHAVE: Teoria. Norma Jurídica. Direito Injusto. Imperativismo. Teoria Coativista. Legitimidade.
1
Professor universitário (UFC, UNIFOR, ESMEC) e pesquisador, bacharel em Direito, mestre em
Direito e Filosofia, doutorando em Educação e assessor pedagógico da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC). Fundador e coordenador docente do Grupo Transdisciplinar
de Estudos Interinstitucionais (G-TEIA) e do Núcleo Interdisciplinar em Direito e Dramaturgia
(NIDIDRA). Associado ao Instituto Brasileiro de Direitos Humanos (IBDH). Coordenador Acadêmico do Curso de Especialização em Direito Constitucional da ESMEC (Turmas I a VI). E-mail:
[email protected]
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1 Considerações Preliminares
Resultado das pesquisas de Mestrado em Direito de seu autor, no programa de pós-graduação da antiga Faculdade Nacional de Direito, hoje Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a obra
Teoria da Norma Jurídica, de autoria do Prof. Dr. Arnaldo Vasconcelos, é
objeto de discussão e análise neste artigo.
Esta teoria, embora tenha sido defendida pelo seu autor e aprovada pela
banca examinadora em pleno período de exceção, apresenta feição e vocação
nitidamente democráticas. Tão ousada, para a época, era a teoria apresentada,
que mesmo o Prof. Machado Paupério não chegou a poupar-lhe críticas, ao
prefaciar a 1ª edição da obra, julgando equívoco de seu autor considerar a
vontade geral como fundamento insubstituível da lei.
Para o prefaciador da 1ª edição da obra,
Tanto a lei científica como a sociológica e a jurídica procedem da razão. Já houve
quem tivesse imaginado provir a lei jurídica da vontade, ao invés da razão. Para
Jean-Jacques Rousseau, a lei é a expressão da vontade geral. Filosoficamente, porém, é tal afirmação um erro e desse erro procede todo o voluntarismo moderno
no Direito, que faz apoiar a lei na vontade e não na razão. Mas a lei não pode ter
origem na vontade de ninguém. Se a lei for expressão da vontade e não da razão,
estaremos com o caminho aberto para todos os totalitarismos (…) Para nós, a
única norma absoluta e suprema é a lei natural (…) A vontade deve estar, assim,
condicionada pelo princípio racional do bem coletivo 2
Além disso, Machado Paupério entendia haver um outro reparo a ser
feito na obra, que, ao seu modo de ver, poderia dar a entender, erroneamente,
que o seu autor concordava com Kelsen, ao considerar o Estado Nazista um
Estado de Direito. São palavras suas:
Um outro reparo fazemos ao comentário sobre a doutrina de Kelsen, feito pelo
Autor: “Do Direito, que não se perfaz pelas instâncias valorativas, tudo se pode
dizer é que lhe faltam méritos, e nunca, que não é Direito” (p. 269). Sem restrições, mais adiante, conclui-se que “nenhuma censura cabe a Kelsen por haver distinguido o gênero lógico do Direito de seu caráter valorativo” (p. 270). Isso pode
dar, sem dúvida, a impressão de que o Autor considera, como Kelsen, o Estado
nazista como um Estado de Direito. Para nós, o Direito tem dois fundamentos:
um material, outro formal, não parecendo que somente o segundo elemento seja
suficiente para caracterizá-lo3.
2
3
PAUPÉRIO, Machado. Prefácio in VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica. Rio de
Janeiro: Forense, 1978, p. X
PAUPÉRIO, Machado. Prefácio in VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica. Rio de
Janeiro: Forense, 1978, p. XI
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Apresentar os contornos democráticos desta Teoria do Direito, proposta
por Arnaldo Vasconcelos em sua obra, é o propósito deste artigo, ensaiando
uma resenha crítica ao trabalho do jusfilósofo brasileiro, defensor de uma espécie de tridimensionalismo axiológico, sustentado numa espécie de jusnaturalismo antropológico, moldado a partir das categorias centrais da metafísica
e da filosofia grega.
A preocupação com o Estado Democrático de Direito e com o ideal
de justiça, que o fizeram conceber a vontade geral como um dos possíveis
fundamentos para o Direito, explicita-se desde as primeiras páginas da obra.
Numa linguagem concisa e sem maiores rodeios retóricos, prática incomum
entre nós, juristas, Arnaldo Vasconcelos procura demonstrar na obra, entre
outros aspectos, que aqui serão comentados: a insuficiência do imperativismo
e do coativismo jurídicos e sua incompatibilidade com os regimes políticos
democráticos, as pseudocaracterísticas da norma jurídica e suas reais características, a legitimidade como única instância de valor da norma que, para além
das instâncias de validade, é capaz de diferenciar o direito do Estado daquele
gestado pelas organizações de malfeitores.
Contextualizando a obra em análise, não há como ignorar as circunstâncias em que foi gestada, em pleno período militar ditatorial, data da aprovação
da dissertação (1977) e da publicação de sua primeira edição (1978). Exigia-se
mais do que simplesmente coragem (até mesmo um pouco de temeridade) para,
nos tempos sombrios daquele regime de exceção, cuja abertura apenas se iniciava, sustentar uma teoria cujas feições democráticas desde logo se anunciavam.
Numa época em que as normas jurídicas eram apresentadas como ordens, emanadas dos ditadores de plantão e dirigidas aos súditos-cidadãos,
acostumados a obedecer sem questionar os atos institucionais e a Lei de Segurança Nacional, Arnaldo Vasconcelos ousou apresentar uma teoria que exigia
legitimidade para as normas jurídicas estatais e parecia anunciar, como profecia, o advento do constitucionalismo democrático, cujo alvorecer dar-se-ia
somente anos depois, com a conclusão da abertura política e a promulgação
da Constituição de 1988.
Até mesmo em nossos dias, como ressalta Rocha,
os juristas tradicionais, ou dogmáticos, não discutem criticamente os valores jurídicos, assim como a ciência do Direito. Para eles, que infelizmente são a grande
maioria, esta é uma problemática da qual tudo já foi dito e não há nada mais a
dizer. Desta maneira, não é difícil perceber a importância do questionamento da
dogmática jurídica no contexto político de nossas sociedades4
4
ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e democracia. 2ª edição. São Leopoldo: Ed.
UNISINOS, 2003, p. 53
37
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Em nossos dias, como ainda insistem em aparecer teorias que se apresentam como assépticas, que procuram reduzir o direito a linguagem ou à sua
expressão normativa, teorias que se apegam à forma dos textos normativos e
procuram ignorar seus conteúdos axiológicos e ideológicos, é sempre muito
conveniente relembrar o compromisso democrático do Direito, sua vinculação ao ideal de Justiça.
2 O que torna democrática uma Teoria Jurídica
Não há como negar a filiação ideológica das teorias. Filhas do seu tempo,
as teorias muitas vezes refletem as percepções, preconceitos, contradições e
marcas da época na qual são produzidas.
Assim, torna-se impossível negar a presença forte de concepções imperativistas do Direito, defendidas durante regimes autoritários que, dada a sua
manifesta ilegitimidade política, procuraram sustentar-se e justificar-se recorrendo à ideia de norma como ordem e/ou simplesmente pondo o acento na
coação ou coatividade como nota caracterizadora do jurídico.
As teorias democráticas do Direito, ao contrário, costumam reconhecer
valores pré-normativos ou supralegais, quando não defendem uma legitimação do direito pelo consenso racionalmente fundado no debate democrático,
debate no qual todos se reconheçam como livres e iguais, dotados da mesma
capacidade de ouvir e ser ouvidos. Em tais concepções, o homem não costuma ser tomado como meio para alcançar qualquer finalidade, por mais elevada que esta possa parecer. Numa palavra, podemos dizer que uma teoria do
direito democrática reconhece em todos a mesma dignidade, o mesmo poder
de participação na tomada de decisões.
No liberalismo democrático de Rousseau (1712-1778), por exemplo, é
possível observar que a transição do estado de natureza para a vida em sociedade e sob a égide do Estado não significará a supressão da liberdade como
direito, antes servirá para reafirmá-la. Para o filósofo de Genebra, o desafio
é encontrar um modo de vida político pelo qual o homem, unindo-se aos
demais, renuncia aos direitos pessoais em favor da comunidade. Ao fazê-lo,
assume como norma a lei e não o instinto, tornando-se cidadão, mas permanecendo tão livre quanto antes de fazê-lo, a ponto de não obedecer a outros,
senão a si mesmo.
Ademais, é oportuno lembrar que, em Rousseau, a categoria da vontade
geral é construída de modo a não identificá-la nem com a simples vontade da
maioria e, muito, menos a suposta vontade de todos, estas últimas capazes de
conduzir ao totalitarismo e à tirania das multidões.
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A vontade geral, para o filósofo de Genebra, sempre inclina-se ao bem
comum e respeita o direito das minorias, sendo portanto apta a fundamentar
as normas jurídicas em um Estado Democrático de Direito.
Como ressalta Pereira,
O advento do constitucionalismo moderno foi, sem dúvida, a resposta original e
ainda coerente com a amplitude de tal dilema, um grandioso esforço intelectual e
revolucionário que pretendeu, e ainda pretende, estabelecer a disciplina do poder
e da autoridade em bases radicalmente distintas, assentadas sobre a primazia do
indivíduo, e vista como garantia racional da possibilidade do projeto concreto da
liberdade humana. Projeto esse compreendido, obviamente, de maneiras historicamente diferentes, mas que, em última instância, figura sempre como modo de
realização de determinada concepção de direitos fundamentais5
Portanto, apesar da indevida crítica formulada por Paupério no prefácio
à obra sob análise, é possível perceber que referida crítica ou desconhece o
conteúdo do pensamento filosófico de Rousseau em profundidade ou, o que
nos custa crer, revelava, naquele momento, certo receio de Paupério em reafirmar a necessidade de democracia num contexto de ditadura militar.
As teorias autoritárias do Direito, ao contrário das democráticas, amesquinham a condição humana, quando partem do pressuposto de que o outro
é o inimigo a ser combatido e contido, aquele que sempre está pensando em
violar as normas, em manipular consciências e comportamentos, em praticar
o mal. Assim, por exemplo, são as teorias hobbesianas acerca do homem (mau
por natureza), do Direito (expresso como ordem, mandado) e do Estado (cuja
razão de existência é vigiar e controlar o ser humano). Elas partem exatamente daquilo que o professor Arnaldo Vasconcelos denomina “antropologia da
maldade”, em outra de suas obras6 .
Se contextualizarmos também a teoria de Hobbes (1588-1679), poderemos compreender que estava a serviço das monarquias absolutas, muito
comuns em sua época, mas felizmente substituídas depois pelas monarquias
constitucionais ou pelos governos republicanos. Em sua teoria, não há qualquer dever do soberano em relação aos súditos, já que estes renunciaram em
caráter definitivo à sua liberdade natural, a fim de gozarem dos benefícios da
vida em sociedade e sob a proteção de um Estado, passando do estado de natureza para o estado político-social.
5
6
PEREIRA, Rodolfo Viana. Hermenêutica Filosófica e Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey,
2001, p. 2
Cf. VASCONCELOS, Arnaldo. Direito e Força: uma visão pluridimensional da coação jurídica.
São Paulo: Dialética, 2001
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Por sua vez, o pacto social imaginado por Hobbes e do qual teriam se
originado a sociedade e o Estado assemelhar-se-ia a um contrato de adesão,
não-paritário, pelo qual os mais fracos aceitam ser dominados e comandados
pelo mais forte e renunciam à sua liberdade natural com o objetivo de obter
proteção e segurança.
Na juventude, quando traduziu e publicou, em 1629, a Guerra do Peloponeso, de Tucídides, Hobbes já manifestava no Prefácio daquela obra por
ele traduzida, sua vocação e inclinação antidemocráticas, pois como ressalta
Monteiro: “desde essa época já manifestava sua aversão à democracia e por isso
recomendava a leitura de Tucídides: ‘um rei é mais capaz que uma república’”7
Em nossos dias, vemos ressurgir com uma força aterradora a visão hobbesiana, cuja expressão pode ser encontrada, por exemplo, no chamado Direito
Penal do Inimigo, recentemente patrocinado pelos EUA, durante os governos
Bush, em nome do combate ao terrorismo, ao tráfico de drogas ou à produção
de armas de destruição em massa e apresentado, da forma mais contraditória e
paradoxal possível, como defesa dos direitos humanos, a justificar as restrições
impostas aos direitos individuais, entre os quais ao direito de liberdade.
Do mesmo modo, na época da Ditadura Militar brasileira, eram também comuns as “prisões para averiguação”, as quais acabavam por resultar em
tortura e morte daqueles que eram considerados “subversivos”, “inimigos do
Estado” e, de algum modo, enquadráveis na Lei de Segurança Nacional ou em
outros instrumentos normativos de pouca ou nenhuma legitimidade.
Ambas as teorias, tanto a de Hobbes quanto aquela sustentada por Rousseau encontram antecedentes no debate ocorrido na Grécia antiga, entre Sócrates e seus discípulos, de um lado e alguns dos Sofistas e seus seguidores,
de outro. Em Sócrates e Platão, a defesa e até justificação conservadora da
daquela ordem excludente, a sociedade xenofóbica, machista e escravocrata
dos gregos. Em Protágoras (490- 421 a.C), Hípias, Antífon e outros sofistas, a
presença de uma espécie de proto-contratualismo democrático e as revolucionárias ideias de igualdade natural.
No diálogo Protágoras, escrito por Platão, o sofista que dá nome à obra
afirma categoricamente:
Conseqüentemente, Sócrates, ocorre que as pessoas nos Estados, e particularmente em Atenas, julgam que cabe a uns poucos aconselharem relativamente à excelência na marcenaria ou naquela relativa a qualquer outro ofício profissional, de
7
MONTEIRO, João Paulo Monteiro in HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de
um estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 2ª edição.
São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. VI.
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maneira que, se qualquer um que não esteja entre esses poucos se pronunciar a
respeito da matéria em pauta, não o admitem, como dizes, e não sem razão, segundo penso. Mas quando o debate envolve a solicitação de um aconselhamento
que diz respeito à virtude cívica, esfera em que podem ser inteiramente norteadas
pelas justiça e o bom senso, as pessoas admitem naturalmente o aconselhamento
de quem quer que seja, na medida em que se pensa que todos são aquinhoados
com essa virtude, pois caso contrário os Estados não existiriam8
Enquanto isto, encontramos Sócrates (469-399 a.C.) e Platão (427-347
a.C) combatendo a democracia e fazendo apologia da Teoria do Rei-Filósofo,
sob o pálido argumento de que o cidadão deve (como a um pai) obediência
incondicional às leis do Estado, ainda que estas sejam injustas ou sustentando
o argumento autoritário de que o mais sábio deve governar. Este último argumento foi posto em xeque pelas próprias tentativas frustadas de Platão em
implantar esta teoria na Sicília, sob os reinados de Dionísio e de seu sucessor.
Portanto, sempre houve na história das ideias os defensores de concepções jurídico-politicas democráticas e aqueles que sustentaram concepções
opostas, autoritárias. Até mesmo entre os sofistas, cujo pensamento avançado
para a época já é possível delinear, há Trasímaco e Cálicles de um lado, defendendo a desigualdade natural e o direito natural do mais forte , reforçando a
ordem social desigual que existia entre os gregos e, de outro lado, Protágoras,
Hípias e Antífon, apresentando as bases do contratualismo democrático e do
jusnaturalismo revolucionário, fundados na tese da igualdade de todos os homens, fossem estes gregos ou bárbaros, senhores ou escravos. Desta igualdade
por natureza, decorreriam os iguais direitos de participação política.
3 Por que é Democrática a Teoria da Norma Jurídica, de Arnaldo
Vasconcelos?
A Teoria da Norma Jurídica escrita por Arnaldo Vasconcelos, a despeito
de suas vinculações à metafísica grega, pode ser afirmada como uma autêntica
teoria democrática do direito.
Hoje, tornou-se quase lugar comum a defesa de concepções antimetafísicas. A metafísica clássica, combatida pelos positivistas de várias correntes, em
especial pelo positivismo analítico, herdeiro da tradição intelectual imperativista (Hobbes e Austin) é combatida por alguns sob o argumento central de
que do ser não seria possível deduzir um dever, sob pena de incorrermos na
falácia naturalista.
8
PLATÃO. Diálogos I: Teeteto (ou do conhecimento), Sofista (ou do ser), Protágoras (ou sofistas).
Trad. Edson Bini. Bauru, SP: EDIPRO, 2007, p. 268-9
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Ora, exatamente nos momentos de crise de legitimidade e eticidade do
Direito Positivo, que costumam surgir teorias metafísicas como estas, a defender uma igualdade natural entre governantes e governados, além de apresentar a relação jurídica como relação de coordenação, entre sujeitos iguais em
dignidade e em direitos. Sua importância e seu alcance somente podem ser
sentidos ou percebidos quando as normas positivadas tornam-se instrumentos
de opressão e de supressão de direitos, como o vivido na Alemanha nazista e
que gerou a conversão de Radbruch, antes positivista convicto, às teses do
jusnaturalismo que, antes, julgava superado.
Por sua vez, o imperativismo, tão proclamado nas teorias do Direito herdeiras do positivismo analítico, cuja raiz mais profunda remonta ao pensamento hobbesiano e à sofística de segunda e terceira gerações, em especial nas
figuras de Trasímaco e Cálicles, é severamente combatido, não somente na
obra objeto deste artigo, mas em sua tese de livre-docência, intitulada Direito,
Humanismo e Democracia.
Arnaldo Vasconcelos recusa-se a amesquinhar a condição humana e, assim, não comunga com aqueles que pretendem ver na norma jurídica um ato
de força (coação) ou mesmo a possibilidade dela (coatividade), recusando-se a
apresentá-las como suas notas essenciais.
Bebendo na inesgotável fonte da metafísica platônica, entende que a norma jurídica pode até existir, distorcidamente, como ato de força (nos regimes
de exceção, por exemplo), mas isto não tornaria a coação uma característica
da norma jurídica em si, um dado de sua essência.
Assim, também ocorreria o mesmo com relação à imperatividade. Embora haja cartas constitucionais, com emitente e destinatários certos, sendo
aqueles, os governantes e estes, os governados, nas constituições democráticas,
o poder emana do próprio povo e o problema do destinatário desaparece do
horizonte teórico, como um pseudoproblema, urdido no âmbito das teorias
imperativistas do Direito, para dar uma resposta à pergunta: a quem se destina
o Direito elaborado pelos poderosos de plantão? Ao que respondiam com atos
de arbítrio: ao povo, ao baixo-povo, do qual não se sentiam participantes.
Para coroar o caráter democrático da teoria exposta e comentada neste
artigo, Vasconcelos ressalta que o direito das Associação de Malfeitores e, por
conseguinte, o Direito dos estados autoritários nos quais os governos suprimem direitos naturais dos cidadãos, pode até ser jurídico, positivo, vigente,
eficaz e, sob certo aspecto, até mesmo justo, mas jamais terá a legitimidade
como instância de valor, por faltar-lhe a unção popular que emana da vontade
soberana dos próprios cidadãos.
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Nos estados verdadeiramente democráticos, todos estão sujeitos às mesmas leis, governantes e governados e o povo participa, direta e indiretamente, da elaboração destas leis. Ademais, em tais estados, as minorias têm os
seus direitos preservados e respeitados e não há vontade de maioria que possa
suprimi-los.
4 Por que é Humanista a Teoria da Norma Jurídica, de Arnaldo
Vasconcelos?
Além de democrática e antipositivista, a teoria aqui comentada é humanista, pois defende a dignidade humana como valor fundante do Direito, sem
o qual este não se justificaria como liberdade coexistencial, compartilhada
entre seres iguais.
Numa época como a nossa, de tecnicização da vida e na qual já se fala da
emergência do pós-humano, como fruto do avanço da ciência e das tecnologias sobre o domínio da vida, embora possa partir de premissas questionáveis
do ponto de vista da filosofia contemporânea pós-reviravolta linguística, uma
teoria do direito como a defendida pelo Prof. Arnaldo Vasconcelos revela-se extremamente salutar para levantar as questões de fundo, quase sempre
deixadas ao largo pelo debate positivista, mais apegado à dimensão formal do
direito como linguagem normativa, mormente em sua dimensão semântico-pragmática.
A instrumentalização da vida e a consequente sujeição do homem à técnica, tornam cada vez mais necessárias teorias que se apresentem como contraponto a esta tendência do mundo chamado “pós-moderno”, anunciado e
combatido por filósofos como Nietzsche e Heidegger e já identificado por
Habermas, para quem “o ato técnico tem a forma de intervenção, não da
construção”9.
Portanto, a análise da norma jurídica exclusivamente em seus aspectos
técnico-formais, isto é, em suas instâncias de validade, permitiriam o absurdo
de considerar inquestionável o direito da Alemanha nazista e as cruéis leis sanitárias de Nuremberg e até poderia afirmar ali a existência de um Estado de
Direito, pelo menos no aspecto formal, justificando as experiências científicas
que tornavam o ser humano meio para realização dos fins do Terceiro Reich.
9
HABERMAS, Jürgen apud HECK, José N. O Princípio Responsabilidade e a Teleologia Objetiva
dos Valores in SANTOS, Robinson dos; OLIVEIRA, Jelson e ZANCANARO, Lourenço. Ética para a
civilização tecnológica: em diálogo com Hans Jonas. São Paulo: Centro Universitário São Camilo,
2011, p. 64.
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Não sem razão, as constituições do Segundo Pós-Guerra revelaram a
tendência comum, consistente em qualificar este direito como democrático,
surgindo nelas a fórmula política do Estado Democrático de Direito, haja
vista serem necessárias, mas insuficientes as instâncias de validade técnico-formal. Vistas de forma exclusiva, estas instâncias são capazes de justificar
até as mais terríveis atrocidades contra o ser humano, desde que respaldadas
em técnicas jurídicas de interpretação e aplicação cegas das normas. Eis que,
após o Julgamento de Nuremberg e mesmo durante o processo, vários juristas
defensores do juspositivismo simplesmente converteram-se à posição oposta
ou pelo menos puseram em xeque as suas próprias convicções legalistas, como
foi o caso de Radbruch, o que se torna evidente já no primeiro minuto de seu
célebre opúsculo:
Ordens são ordens, é a lei do soldado. A lei é a lei, diz o jurista. No entanto, ao
passo que para o soldado a obrigação e o dever de obediência cessam quando ele
souber que a ordem recebida visa a prática de um crime, o jurista(...) não conhece
exceções deste gênero à validade das leis nem ao preceito de obediência que os
cidadãos lhes devem. A lei vale por ser lei, e é lei sempre que, na generalidade dos
casos, tiver do seu lado a força para se impor. Esta concepção da lei e sua validade, a que chamamos Positivismo, foi a que deixou sem defesa o povo e os juristas
contra as leis mais arbitrárias, mais cruéis e mais criminosas. Torna equivalentes,
em última análise, o direito e a força, levando a crer que só onde estiver a segunda
estará também o primeiro10.
Portanto, uma teoria humanista do Direito é aquela que permita, não
importa sob que argumento lógico-formal ou lógico-dialético, denunciar a
ilegitimidade e a arbitrariedade de leis que contrariem a dignidade humana,
proclamar a continuação da exigência de Justiça, mesmo em face da violação
do direito, às vezes pelo próprio Direito Positivo Estatal ou seus agentes. Tal
direito, que o é apenas no modo de ser, mas descaracterizado em sua essência, pode apresentar-se como instrumento de perseguição aos divergentes ou
opositores. Tais agentes podem agir como uma verdadeira falange, praticando
todo tipo de violação à dignidade humana, justificando suas ações pelas normas de um direito ilegítimo. Portanto, ao mesmo tempo em que se admite tal
possibilidade, pela certeza histórica de que tais fatos já ocorreram, postula-se a
necessidade de um direito ético, justo e legítimo, por mais adversas que sejam
as condições sócio-políticas.
Como ressalta e reconhece o próprio Habermas,
10 RADBRUCH, Gustav. Fünf Minuten Rechtsphilosophie. Disponível em Faculdade de Direito
de Coimbra: <https://woc.uc.pt/fduc/class/getmaterial.do?idclass=171&idyear=4 > Acesso em
14/05/2012 às 13h20min
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Obviamente, nossas sociedades estão marcadas por uma violência manifesta e estrutural. Elas estão impregnadas com o micropoder de repressões silenciosas e
são deturpadas pela opressão despótica, pela privação dos direitos políticos, pela
destituição dos poderes sociais e pela exploração econômica11
Uma tal teoria, que permita regulação e crítica ao Direito Positivo, torna-se cada vez mais necessária em nossa sociedade, tornando-se necessário existir
parâmetro, para além da legislação positiva, que nos permita questionar o
conteúdo de justiça, de eticidade e de legitimidade das normas.
5 Considerações Finais
Para além das exigências de coerência lógica, uma teoria do Direito consciente de sua responsabilidade perante os desafios de seu tempo, precisa conhecer e denunciar as consequências de uma completa desvinculação entre
justiça, validade e eficácia, proposta pelas concepções normativistas.
A completa separação entre direito e legitimidade, direito e justiça, direito e
exigências de eticidade, produziu consequências históricas as quais não é dado a
nenhum jurista contemporâneo ou profissional do Direito ignorar impunemente.
A teoria do Direito apresentada por Arnaldo Vasconcelos em plena Ditadura Militar, objeto da sua dissertação de mestrado (Teoria da Norma Jurídica)
e desenvolvida posteriormente, em ambiente sócio-político de liberdade democrática, em obras subsequentes, caracteriza-se como uma teoria do Direito
democrática e humanista, seja pela sua exigência de conteúdo de legitimidade
para o Direito Positivo Estatal, sem o qual não haveria como diferenciá-lo do
direito produzido pelas societas sceleris, seja pela crítica ao imperativismo e
coativismo ou pela intransigente defesa da dignidade humana.
Embora as teorias jusnaturalistas fundadas na metafísica clássica sejam
hoje severamente combatidas, sob os tolos argumentos de que a metafísica
clássica não teria mais sentido depois de Kant e de que não podemos ignorar
a transformação da filosofia operada após a reviravolta linguístico-pragmática,
tais teorias ainda hoje encontram defensores e suas ideias revelam-se
extremamente revolucionárias e fecundas, em especial nos momentos de crise
do Direito Positivo, como aconteceu durante o Julgamento de Nuremberg ou
nos casos de justiça de transição, até como parâmetro para examinar o conteúdo de justiça e legitimidade do Direito oriundo de regimes autoritários e
suas instituições, sob a égide dos quais foram praticadas graves violações aos
direitos humanos.
11 HABERMAS, Jürgen. O Futuro da Natureza Humana: a caminho de uma eugenia liberal? Trad.
Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes], 2004, p. 88
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Neste sentido, ainda que não se afirme ou postule um retorno à ingenuidade dos metafísicos clássicos, que aderiam à concepção de verdade como
correspondência, desconsiderando os jogos de linguagem e as armadilhas reveladas pela dimensão pragmática da linguagem, não se pode ignorar a subsistência de concepções jusnaturalistas defendidas em nossos dias por respeitáveis teóricos do direito ou a admissão de metafísicas contemporâneas, as quais
incorporam e não apenas ignoram as transformações ocorridas na filosofia do
século XX.
Exemplo de concepção jusnaturalista contemporânea de largo alcance,
encontramos na obra de John Finnis, da New School of Natural Law. Para
Finnis,
existem bens humanos que somente podem ser obtidos através das instituições
da lei humana e exigências de razoabilidade prática que apenas essas instituições
podem satisfazer. O fim desse livro é identificar esses bens e essas exigências de
razoabilidade prática, e assim mostrar como e sob que condições tais instituições
se justificam e as formas em que elas podem ser (e muitas vezes são) defeituosas12
Portanto, algum parâmetro parece ser necessário, para além da razoabilidade prática, a fim de fornecer critério para avaliar e valorar bens e instituições humanos e, mesmo que as leis positivas venham a ignorá-lo em algum
momento, o julgamento da história tratará de dar a este parâmetro algum
lugar na ordem das discussões acerca do Direito, hoje cercado por exigências
inafastáveis de eticidade, justiça e legitimidade.
12 FINNIS, John. Natural Law and Natural Rights. Trad. Critóbal Orrego Sánchez, Ley Natural y
derechos naturales. Buenos Aires: Abeledo-Perrit, 2000, p. 7
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Referências
FINNIS, John. Natural Law and Natural Rights. Trad. Critóbal Orrego Sánchez, Ley Natural y derechos naturales. Buenos Aires: Abeledo-Perrit, 2000
HABERMAS, Jürgen. O Futuro da Natureza Humana: a caminho de uma eugenia liberal? Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes], 2004
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. João
Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 2ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1979
PLATÃO. Diálogos I: Teeteto (ou do conhecimento), Sofista (ou do ser), Protágoras (ou sofistas). Trad.
Edson Bini. Bauru, SP: EDIPRO, 2007
RADBRUCH, Gustav. Fünf Minuten Rechtsphilosophie. Disponível em Faculdade de Direito de
Coimbra: <https://woc.uc.pt/fduc/class/getmaterial.do?idclass=171&idyear=4>
ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e democracia. 2ª edição. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 2003
SANTOS, Robinson dos; OLIVEIRA, Jelson e ZANCANARO, Lourenço. Ética para a civilização
tecnológica: em diálogo com Hans Jonas. São Paulo: Centro Universitário São Camilo, 2011
VASCONCELOS, Arnaldo. Direito e Força: uma visão pluridimensional da coação jurídica. São
Paulo: Dialética, 2001
VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica. Rio de Janeiro: Forense, 1978
VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica. 2ª edição, revista. Rio de Janeiro: Forense,
1986
VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica. 5ª edição, 2ª tiragem. São Paulo: Malheiros
Editores, 2002
VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria Pura do Direito: repasse crítico de seus fundamentos. Rio de
Janeiro: Forense, 2003
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PÓS-POSITIVISMO, NEOCONSTITUCIONALISMO
E DIREITOS FUNDAMENTAIS
1
Israel Grangeiro Landim 2
RESUMO: Este estudo propôs-se a analisar a forma como as grandes mudanças ocorridas no
mundo após a Segunda Guerra Mundial fizeram com que o Positivismo Jurídico tradicional
se mostrasse cada vez mais insuficiente para atender às novas demandas de uma sociedade
global e complexa. Mais especificamente, como as teorias contemporâneas tentam estabelecer
uma nova forma de olhar a sociedade, conferindo, para tanto, importância aos problemas da
indeterminação do Direito e às relações entre o Direito, a Moral e a Política, sendo chamadas
de pós-positivistas. A discussão atual gira em torno de se saber se essa conexão entre Direito
e Moral é apenas contingente, como querem os adeptos do Positivismo, ou, ao contrário,
necessária, implicando uma nova maneira de se ver o Direito. Essas questões se refletem
especialmente na seara do Direito Constitucional, base de todo o ordenamento jurídico, espaço que passa a ser ocupado por uma Constituição englobante, que impregna e condiciona
a legislação, a jurisprudência, os operadores do Direito em geral e também os mais diversos
atores políticos. O Constitucionalismo contemporâneo passa a transformar os valores e opções políticas fundamentais em normas jurídicas, num grau de hierarquia ou centralidade
diferenciado em relação às demais normas do sistema e que, portanto, as condiciona. As
Constituições, rematerializadas, a partir do momento em que os valores são constitucionalizados, não possuem mais apenas o objetivo de repartir os poderes do Estado e distribuir
a competência própria de seus órgãos, mas de estabelecer direitos fundamentais, e, por seu
intermédio, uma ordem de valores e de justiça que exigirá postura ativa dos órgãos estatais e
de toda a sociedade no sentido da sua realização, especialmente quando se tratarem de direitos
prestacionais de cunho social.
PALAVRAS-CHAVE: Constitucionalismo contemporâneo; positivismo jurídico tradicional;
direitos fundamentais.
ABSTRACT: This study aims to examine how the major changes in the world after the
Second World War made the traditional legal Positivism proved increasingly insufficient to
treat the new demands of a global and complex society. More specifically, how contemporary
theories that try to establish this new look and to do so, attach importance to the problems
1
2
Trabalho desenvolvido sob a orientação do Prof. Flávio José Moreira Gonçalves, Mestre em Direito
pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do
Ceará (UECE), apresentado à Coordenação do Curso de Especialização em Direito Constitucional
(VI) da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC) no ano de 2012 como
requisito parcial para obtenção do título de especialista em Direito Constitucional.
Advogado graduado pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Pós-Graduando em Direito Constitucional pela Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC). E-mail: <[email protected]>.
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of indeterminacy of law and the relationship between Law, Morality and Politics are called
post-positivist. The current discussion revolves around whether this connection between Law
and Morality is only contingent, as wants the Positivism fans, or, on the contrary, necessary,
implying a new way of seeing the law. These issues are reflected especially in the harvest of
Constitutional Law, basis of all legislation, space that is occupied by a comprehensive Constitution, which impregnates and affect legislation, the case law, operators of the law in general
and also the most diverse political actors. The contemporary Constitutionalism is transforming the values and fundamental policy choices in legal norms, in a level of hierarchy or
centrality differentiated in relation to other rules of the system and that, therefore, conditions
them. The Constitutions, rematerialized, from the moment in which the values are constitutionalized, are no longer having just the goal of spreading the powers of the State bodies
and distribute their own competence, but of establishing fundamental rights, and, through
them, an order of values and justice that will require active posture of State bodies and of the
whole society towards its realization, especially when dealing with social prestationary rights.
KEYWORDS: Contemporary constitutionalism; traditional legal positivism; fundamental
rights.
Introdução
A reconstitucionalização da Europa, imediatamente após a Segunda
Grande Guerra e ao longo da metade restante do século XX, redefiniu o lugar
da Constituição e a influência do Direito Constitucional sobre as instituições
contemporâneas. A perplexidade causada pelos horrores cometidos durante a
guerra e a constatação de que a legalidade estrita poderia ser utilizada para justificar regimes autoritários e legitimar atrocidades como as ocorridas durante
o nazismo, conduziram ao desenvolvimento de uma nova dogmática na qual a
dignidade da pessoa humana desponta como núcleo central do constituciona3
lismo, dos direitos fundamentais e do Estado Constitucional Democrático.
Diante dessa realidade, percebe-se o fato de que a aproximação das ideias
de constitucionalismo e de democracia produziu uma nova forma de organização política, que atende por nomes diversos: Estado Democrático de Direito, Estado Constitucional de Direito, Estado Constitucional Democrático.
Devido às grandes transformações, o Positivismo Jurídico tradicional se mostrou insuficiente para atender às novas demandas de uma sociedade global e
complexa.
O Jusnaturalismo moderno, desenvolvido a partir do século XVI, aproximou a lei da razão e transformou-se na filosofia natural do Direito. Fundado
na crença em princípios de justiça universalmente válidos, foi o combustível
das revoluções liberais e chegou ao apogeu com as Constituições escritas e
as codificações. Considerado metafísico e anticientífico, o direito natural foi
3
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 5. ed. São Paulo: Método, 2011. p. 59-60.
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empurrado para a margem da história pela ascensão do Positivismo Jurídico,
no final do século XIX. Em busca de objetividade científica, o Positivismo
equiparou o Direito à lei, afastou-o da filosofia e de discussões como legitimidade e justiça e dominou o pensamento jurídico da primeira metade do século
XX. Sua decadência é emblematicamente associada à derrota do fascismo na
Itália e do nazismo na Alemanha, regimes que promoveram a barbárie sob a
proteção da legalidade. Ao fim da Segunda Guerra, constata-se que a ética e
os valores começam a retornar ao Direito.
Na sociedade atual, complexa e contraditória, as multiplicações de demandas, a convivência paradoxal entre produtividade do capital e aumento
do desemprego, a interação social e proliferação de códigos e multiplicidades
culturais, a sofisticação tecnocultural e o aumento da miséria e da exclusão,
para citar apenas alguns entrecruzamentos trazidos, entre outros motivos, pela
aceleração histórica produzida pela globalização, mostram que já não se pode
olhar o novo com as mesmas lentes de outrora.
Verifica-se, nesse sentido, que o tema abordado, requer seja encetada
uma análise criteriosa da evolução do estudo do Direito Constitucional, no
tocante às teorias contemporâneas que tentam estabelecer um novo olhar sobre a Constituição e que, para tanto, dão importância aos problemas da indeterminação do Direito e às relações entre o Direito, a Moral e a Política,
chamadas de pós-positivistas.
O intitulado Pós-Positivismo contrasta com o Positivismo “tradicional”,
entre outros aspectos, principalmente porque entende haver uma relação intrínseca entre Direito e Moral. As constituições contemporâneas, ao incorporarem princípios abstratos como normas jurídico-constitucionais operam essa
fusão necessária.
Com baliza nessas considerações introdutórias, emergem alguns questionamentos que se entende pertinentes: o que fez o positivismo jurídico ser
repensado? Como o pós-positivismo se mostrou como uma solução para as
necessidades da sociedade pós-guerra? Qual a relação entre o neoconstitucionalismo e os direitos fundamentais?
Essas questões se refletem especialmente na seara do Direito Constitucional. É consenso afirmar-se que, desde o fim da Segunda Grande Guerra
Mundial, o Direito Constitucional já havia iniciado uma redefinição de seus
traços característicos no sentido de se identificar com uma constelação de valores considerados fundamentais, entre eles, o respeito e realização da pessoa
humana na sua especial dignidade de ser e amar. O chamado Neoconstitucionalismo pretende se caracterizar, entre outros pontos, essencialmente por
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incorporar valores e orientações políticas, especialmente no que toca à promoção da dignidade humana e dos direitos fundamentais. As constituições
da Itália (1947), Alemanha (1949), Portugal (1976), Espanha (1978) e Brasil
(1988) são exemplos dessa mudança que tem demarcado o espaço do Constitucionalismo contemporâneo, com a abertura das Constituições aos valores por meio dos princípios constitucionais,4 e, por conseguinte, a necessária
abertura de todo o sistema jurídico. A introdução desses elementos ocorre,
como se sabe, num contexto de reação aos regimes políticos marcados pela
opressão, pelo autoritarismo e pela barbárie e marcados, singularmente, pelo
não reconhecimento do outro, da alteridade, e pela ausência da solidariedade.
Desse modo, a título de ilustração, a atual Constituição brasileira, pela
“moldura axiológica” em que se encontra estampada (de índole eminentemente intervencionista e social), admite a ampla vinculação dos particulares aos
direitos fundamentais nela regidos, de modo que não só o Estado como toda
5
a sociedade podem ser sujeitos passivos desses direitos. O Constitucionalismo
contemporâneo passa a transformar os valores e opções políticas fundamentais
em normas jurídicas, num grau de hierarquia ou centralidade diferenciado em
relação às demais normas do sistema e que, portanto, as condiciona.
Seriam sete as condições que o ordenamento jurídico deveria satisfazer
para ser considerado impregnado pelas normas constitucionais: a primeira
condição de constitucionalização é a existência, no ordenamento jurídico, de
uma constituição escrita e rígida, que incorpora os direitos fundamentais e os
protege, em virtude da diferença hierárquica entre leis constitucionais e infraconstitucionais. A segunda é a garantia jurisdicional da Constituição ou o
controle da constitucionalidade das leis em relação à Constituição no asseguramento da Supremacia Constitucional e, consequentemente, da supremacia
dos direitos fundamentais. A terceira é a força vinculante da Constituição,
que expressa e reforça a normatividade dos dispositivos constitucionais. Toda
e qualquer norma constitucional é uma norma genuína, vinculante e suscetível de produzir efeitos jurídicos, é a onipresença nas Constituições de princípios e regras jurídicas. A Constituição deixa, assim, de ser vista como um
manifesto político repleto de meras recomendações aos operadores do Estado
e do Direito. A quarta condição diz respeito à necessidade da Constituição de
ser interpretada extensivamente, de tal maneira que dela possam ser extraídas
4
5
Encerra a ideia de base, fundamento da estrutura do Estado Democrático de Direito.
SARMENTO, Daniel. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais no direito comparado e no Brasil. In: Leituras complementares de processo civil. 7. ed. Salvador: Jus Podvm, 2009.
p. 193-194.
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também normas implícitas e idôneas para regular qualquer aspecto da vida social e política, fechando-se, assim, espaço para a discricionariedade legislativa.
A quinta condição respeita a aplicação direta das normas constitucionais e a
consequente produção de seus efeitos, mesmo que programáticas as normas
e ainda que nas relações entre particulares. A sexta remete à interpretação das
leis conforme a Constituição no sentido de que a interpretação que se faz delas
deve adequá-las aos dispositivos constitucionais. A sétima e última condição de
constitucionalização é a influência da Constituição sobre as relações políticas.
Ao mesmo tempo, a referida pesquisa elenca como objetivos específicos
apresentar características do Positivismo Jurídico e as razões de sua rejeição
no 2º pós-guerra; demonstrar como surgiu o Pós-Positivismo Jurídico; e referenciar a ligação entre o Neoconstitucionalismo e os Direitos Fundamentais.
O Constitucionalismo tradicional caracterizou-se por ser eminentemente normativo. O Constitucionalismo contemporâneo estabelece a recepção,
no ordenamento jurídico, da Moral, especialmente sob a forma de direitos
fundamentais. O Neoconstitucionalismo quer promover o reencontro do Direito com os valores, rematerializando-o. A técnica subsuntiva, própria do Positivismo tradicional, que separa hermeticamente o Direito da Moral, torna-se, cada vez mais, insuficiente para dar solução à gama complexa de questões
que surgem no horizonte. A colisão entre princípios, especialmente na seara
dos direitos fundamentais, exige uma nova técnica de solução, a ponderação
de valores, o juízo argumentativo dessa ponderação.
As constituições da segunda metade do século XX incorporam conteúdos
materiais que possuem a forma de direitos, princípios, valores e diretrizes. O
novo paradigma do Constitucionalismo merece investigação que possa apontar a extensão do fenômeno e a profundidade das alterações que efetivamente
venham a ser geradas na maneira de se compreender o Direito e de se conceber o próprio fenômeno jurídico. Para tanto, este trabalho procurará mostrar
as diferenças mais marcantes entre a visão do Positivismo em contraste com o
chamado Constitucionalismo Contemporâneo.
Para a concretização dos objetivos propostos, adota-se como metodologia
mais adequada a realização de um estudo exploratório, voltado para o aprimoramento das ideias por meio da obtenção de informações acerca da temática
em discussão, descritivo-analítico, posto que buscará descrever, explicar, classificar, esclarecer e interpretar o fenômeno observado, desenvolvido por meio
de uma pesquisa qualitativa, à medida que se aprofunda na compreensão da
relação entre o Direito e a Moral, o Direito e a Ética, cujo fim reside na ampliação dos conhecimentos, do tipo bibliográfico, em livros, revistas e artigos.
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A apresentação dos resultados obedece ao formato de itens, em número
de dois. O primeiro item debruça-se sobre o surgimento do Pós-Positivismo,
visto desde as características do que levaram a queda do Positivismo, até os
marcos históricos e evolutivos do Neoconstitucionalismo. O segundo item,
que encerra esta construção investigativa, aborda o estudo sobre os Direitos
Fundamentais sob a perspectiva neoconstitucionalista, ocasião após a qual
seguem, à guisa de conclusão, as considerações finais.
1
Pós-positivismo
Os horrores da Segunda Grande Guerra, as experiências autoritárias de
alguns países europeus e os regimes ditatoriais de diversos países latino-americanos levaram à constatação de que a legalidade estritamente formal, decorrente de uma norma do direito, poderia legitimar atrocidades, suscitando
uma série de críticas e questionamentos ao Positivismo Jurídico dominante
durante a primeira metade do século XX.
A preocupação com o conteúdo justo das normas jurídicas e, notadamente, com os direitos humanos, fez com que a ciência do Direito fosse repensada após o fim da Segunda Guerra Mundial, dando início ao desenvolvimento de uma nova dogmática com o objetivo de promover o retorno dos
valores ao Direito, favorecer uma reaproximação entre o Direito e a Moral e o
reconhecimento do caráter normativo dos princípios consagrados nos textos
6
constitucionais: o Pós-Positivismo .
1.1 Kelsen e a Teoria Pura do Direito
A teoria kelseniana do Direito, a partir dos próprios termos que compõem seu enunciado – Teoria Pura do Direito – torna evidente sua pretensão
de alcançar a pureza como tarefa prioritária. Essa atitude, assinala Kelsen,
estaria a distinguir sua teoria, de modo indelével, daquelas outras elaboradas
por juristas dos séculos XIX e XX, conferindo a sua obra superioridade em
face da ciência jurídica tradicional7.
A teoria do ordenamento jurídico foi muito importante para a caracterização do Positivismo Jurídico, tanto que, segundo Norberto Bobbio, é por
seu intermédio que se chega ao coração dessa corrente jurídica. Antes do seu
desenvolvimento faltava, no pensamento jurídico, o estudo do Direito consi6
7
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 5. ed. São Paulo: Método, 2011. p. 60-61.
VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria pura do direito: repasse crítico de seus principais fundamentos. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 105.
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derado não como norma singular ou como um acervo de normas singulares,
mas como entidade unitária constituída pelo conjunto sistemático de todas
as normas. Segundo a orientação filosófica de Hans Kelsen, só é racional e
compreensível tudo aquilo que possa verificar-se racionalmente, assim, considerações valorativas sobre o conteúdo de normas se ausentam de sentido, nessa perspectiva. A Teoria Pura do Direito, elaborada por Kelsen, é a expressão
mais fundamental do Positivismo Lógico-Normativo. A ciência do Direito
nada tem a ver com fatos, mas sim com normas, com o dever-ser.
A relação entre direito e ciência na Teoria Pura do Direito de Kelsen
começa pela definição do objeto da ciência do direito, que para ele é constituído em primeiro lugar pelas normas jurídicas e mediatamente pelo conteúdo
dessas normas, ou seja, pela conduta humana regulada por estas. Assim, enquanto se estudam as normas reguladoras da conduta8.
Nesse sentido, a ciência do Direito é o conhecimento de um sistema de normas jurídicas que se constitui excluindo tudo que é estranho ao próprio Direito.
Uma ciência do Direito necessita de que seu objeto seja fixado sem qualquer
interferência estranha ao Direito Positivo. O Direito é um sistema de normas
coercitivas, suprainfraordenado, válido em um Estado concreto e determinado.
Como se viu supra, o neopositivismo de Kelsen pressupõe um Direito
puro, livre de interferências morais e éticas efetivamente estranhas aos conteúdos metajurídicos. A diferenciação entre os campos da moralidade e da juridicidade, para Kelsen, simbolizam a tão visada autonomia da Ciência jurídica.
Sendo o Direito positivo, pode este ser moral ou imoral, independentemente
do que se considere mais justo ou socialmente adequado9.
Kelsen quer proteger a ciência jurídica da possibilidade de ser utilizada
como propaganda de valores absolutos ou de ideologias políticas em uma sociedade complexa e multifacetada, não obstante a teoria pura do direito venha
a ser, com o transcorrer do tempo, aproveitada também com essa intenção.
10
Afirma Kelsen :
O Estado cria o direito. O direito é norma (que deriva da lei), e a norma pensa a
conduta dos indivíduos da sociedade. Porém, a interpretação do direito deve estar
divorciada da apreciação valorativa dessa sociedade. O próprio Direito já positi8
NOLETO, Mauro Almeida. Direito e Ciência na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen. Jus
Navigandi, Teresina, ano 7, n. 54, 1 fev. 2002. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/2644>. Acesso em: 20 set. 2011.
9 ALVES, Fabrício da Mota. A Ciência do Direito e o neopositivismo kelseano. Jus Navigandi,
Teresina, ano 7, n. 57, 1 jul. 2002. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/2984>. Acesso
em: 20 set. 2011
10 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 164.
55
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varia os valores entendidos como relevantes, estabelecendo a moral coerente para
ele. Ao intérprete caberia unicamente aplicar a lei, que, seria a representação da
vontade geral, num raciocínio silogístico (premissa maior, premissa menor, logo,
conclusão), afastando-se do questionamento quanto aos valores.
O dever-ser jurídico puro não possui nenhuma classe de conteúdo e, por
isso, pode suportar qualquer conteúdo. O dever-ser como categoria jurídica
possui um caráter puramente formal, sendo apenas uma estrutura lógica. Para
Kelsen, a norma jurídica não deriva da realidade social, política ou filosófica.
O fundamento de validade das normas não está na realidade social do Estado,
mas sim, na relação de hierarquia existente entre elas. Uma norma inferior
tem fundamento na norma superior, que tem fundamento na Constituição
positiva. Esta, por sua vez, se apoia na norma fundamental hipotética, que
não é uma norma positiva, mas uma norma pressuposta.
Em sua obra “Teoria Pura do Direito”, Kelsen trata das relações entre
Direito e Natureza, Direito e Moral, Direito e Ciência, das normas chamadas
12
estáticas11, das normas chamadas dinâmicas , das relações entre Direito e Estado, do Direito Internacional e do problema da interpretação do Direito.13
14
Para Kelsen, nas palavras de Godoy :
Um dos pontos mais importantes da teoria pura dá-nos conta de que é irrelevante
como se tomou o poder político, por revolução, por golpe de Estado ou por voto
popular. Qualquer norma resultante do titular do poder é válida e apta para produzir efeitos. Trata-se do princípio da legitimidade, segundo o qual, toda norma
seria válida até que oficialmente declarada inválida. Subsume-se do princípio da
legitimidade o princípio da efetividade, isto é, por exemplo, se uma revolução não
obteve suficiente sucesso para produzir um novo ordenamento, uma nova constituição, vale então a constituição pretérita, e o movimento revolucionário passa a
ser tido como de alta traição.
Portanto, todo sistema normativo deteria validade. Não se poderia negar
a validade de um sistema por conta do conteúdo de suas normas. O pressuposto geral encontrar-se-ia na presunção de aceitação da validade de uma norma básica. Assim sendo, a função da norma básica não seria ética ou política;
a função da norma básica seria epistemológica, evitando-se falar em inconstitucionalidade de uma determinada norma jurídica.
11 Estática jurídica: conceitos e normas jurídicas, seu significado específico, análise de institutos e estrutura das normas, conceitos como direito, dever, pessoa física, pessoa jurídica, obrigação, permissão.
12 Dinâmica jurídica: relações hierárquicas entre as normas (pirâmide de Kelsen ou normativa),
criação de novas normas, compatíveis com as precedentes; as formas de transformação de uma
ordem jurídica.
13 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009. P. 169.
14 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. O positivismo jurídico. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n.
1452, 23 jun. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/10060>. Acesso em: 19 set. 2011.
56
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Quando se fala em Positivismo Jurídico é preciso esclarecer de qual Positivismo se está falando, visto que são muitas as suas vertentes. Assim sendo,
o próximo tópico explorará algumas das possíveis abordagens ao Positivismo
Jurídico, procurando destacar as premissas básicas que o qualificam.
1.2 Abordagens possíveis ao Positivismo: a divisão e a critica ao
positivismo de Norberto Bobbio
Para uma melhor compreensão do Positivismo, Norberto Bobbio propõe
o seguinte esquema: Positivismo Jurídico como método, como teoria e como
ideologia. Segundo Bobbio, essas compreensões são independentes entre si.
Adotar-se o método positivista não implica necessariamente adotar-se a teoria
positivista ou a ideologia positivista e assim por diante, observando-se, no entanto, que a adoção de uma ideologia positivista pressupõe a adoção de uma
teoria juspositivista e, necessariamente, de um método juspositivista.
A adoção do Positivismo Jurídico como método para o estudo do Direito implica considerar-se o Direito como ciência. O método científico para o
conhecimento do seu objeto implica a escolha do meio mais adequado à descrição da realidade do mesmo. O modo de abordar o Direito como um fato, e
não como um valor, é o pressuposto do método juspositivista. A neutralidade
valorativa é necessária quando se aborda a ciência do Direito. Nesse campo,
os juízos de validade se sobrepõem aos juízos de valor assim como descrito
no item anterior. Assim, o que define e conceitua o Direito não é o conteúdo
daquilo que ele manda, proíbe ou permite, mas a forma de fazê-lo. O Direito
é obra de decisões ou convenções observáveis empiricamente e que não estão
na dependência de satisfação a algum juízo moral. Trata-se, efetivamente, da
tese da separação entre o Direito e a Moral. A consequência desse aspecto
conceitual do Direito resulta basicamente em que se pode concluir que um
sistema, para ser considerado jurídico, não precisa necessariamente guardar
vínculos com padrões de moral ou justiça, ainda que isto, eventualmente,
possa vir a ocorrer.
A Teoria do Ordenamento Jurídico de Norberto Bobbio traz, em síntese,
15
conforme Gasperin :
1) uma abordagem científica do direito, o que implica – para o positivismo – uma
abordagem avalorativa, na qual prioriza-se o aspecto formal e não o material do
fenômeno jurídico, sendo este o único caminho para a construção de uma genuína
15 GASPERIN, Antonio Augusto Tams. Síntese comentada à teoria do ordenamento jurídico de
Norberto Bobbio. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 737, 12 jul. 2005. Disponível em: <http://
jus.com.br/revista/ texto/6953>. Acesso em: 19 set. 2011.
57
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ciência do direito; 2) uma definição do direito centrada no seu aspecto coativo,
como meio de fundamentar o conhecimento jurídico numa base empírica; 3) a
preponderância da legislação sobre as demais fontes do direito (característica do
Estado Liberal); 4) a norma jurídica como imperativo;
O caráter original do pensamento de Norberto Bobbio está na sua compreensão do Direito não mais centrado na norma – conforme defende o normativismo, – mas centrado no ordenamento, entendido como o sistema, o
conjunto das normas de uma determinada ordem jurídica.
16
Já o Positivismo Jurídico como ideologia, afirma Bobbio , não é apenas
uma maneira de se entender o Direito, mas também de querer o Direito;
assim sendo, na realidade, o Positivismo não é apenas uma teoria neutra do
Direito, mas também uma ideologia, uma forma de querê-lo. Aduz o pensador italiano a importância desse tipo de diferenciação:
Esta distinção entre teoria e ideologia do juspositivismo é importante porque ajuda a compreender o significado da polêmica anti-positivista. Os críticos do positivismo jurídico vêm de duas ‘praias’ diferentes e se dirigem a dois aspectos diversos:
de um lado a corrente do realismo jurídico (ou jurisprudência sociológica) critica
os seus aspectos teóricos afirmando que não representam adequadamente a realidade efetiva do direito; de outro lado, a renascida (ou, melhor dizendo, revigorada) corrente do jusnaturalismo critica os aspectos ideológicos do juspositivismo,
destacando as consequências práticas funestas que deles derivam.
Nesse aspecto, Bobbio diferencia o Positivismo Ético Extremista (versão
forte) do Positivismo Ético Moderado (versão fraca). O primeiro se caracterizaria pela ideia do dever absoluto e incondicionado de obediência à lei.
Não se está aqui diante de uma teoria, mas de uma doutrina ética do Direito,
uma forma de querer o Direito, uma ideologia. Essa maneira de compreensão
encontra sua origem no nascimento do Estado Moderno e no fato de que o
ordenamento estatal se tornou o único ordenamento realmente normativo.
Assim, obedecer à lei não é apenas uma obrigação jurídica, mas também uma
obrigação moral.
O último, por sua vez, trabalha com a hipótese da relação estreita entre
ordem e sistema normativo. O Direito estabelece uma ordem de convivência
garantindo valores como segurança, certeza, previsibilidade das condutas por
ele regradas. Assim, o Direito, e mais especificamente a Lei (genérica, abstrata) que o realiza, são os meios mais aptos para a realização da ordem e a
garantia da paz social. O Direito, por conseguinte, não consiste em um bem
em si, mas em um meio, um instrumento para a realização de outro bem, a
ordem da sociedade.
16 BOBBIO, Noberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 234.
58
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1.3 Positivismo Inclusivo ou Brando e Neoconstitucionalismo
Para Herbert Hart17, o Direito se constitui em uma união que envolve
regras primárias e secundárias, possuindo, assim, uma textura aberta. Em outras palavras, as regras primárias ou de obrigação dizem respeito àquilo que
os indivíduos devem ou não fazer, enquanto as regras secundárias respeitam
necessariamente as primeiras. As regras secundárias, consequentemente, são
responsáveis por especificar como são criadas, alteradas, eliminadas ou válidas
as regras primárias. Assim, um sistema jurídico possui regras secundárias de
reconhecimento, alteração e julgamento.
18
O Positivismo Inclusivo, segundo Rossi :
Resulta de uma tentativa de solucionar a Crítica de Dworkin à teoria Hartiana. O
assim chamado soft positivism, ou positivismo brando, entende que a moral pode
desempenhar um papel importante no reconhecimento e validade das normas
jurídicas. O Positivismo inclusivo pretende defender e esclarecer que a regra de
reconhecimento da teoria hartiana pode, mas não necessariamente deve, possuir
conteúdo moral. Com isto, a tese da separação entre direito e moral, própria do
positivismo, continuaria intacta.
Com baliza nessas considerações, tem-se que o “Positivismo Jurídico Inclusivo” ou “brando” é o que mais se aproxima da noção de relações, ainda
que contingentes e não necessárias, entre o Direito e a Moral, o que leva a se
continuar falando em Positivismo, visto que a tese da separabilidade entre
o Direito e a Moral não se encontra superada, ainda que se admita a possibilidade de suas relações esporádicas. Hart admite, então, que as normas
de reconhecimento em um sistema jurídico possam - e não necessariamente
devam -, possuir conteúdo ligado a valores morais. A validade de uma norma
no sistema jurídico não se faria apenas por intermédio da estrutura formal de
adequação, mas também por meio do conteúdo ou valores.
1.4 Pós-Positivismo, Constitucionalismo
Neoconstitucionalismo
Contemporâneo
ou
Ao contrário das teorias positivistas, as quais pretendem abordar todos
os sistemas jurídicos, o Neoconstitucionalismo não tem a pretensão de ser
uma proposta eterna e universal aplicável, em qualquer época, a todos os ti17 HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,1961. p.104-105.
18 ROSSI, Amélia Sampaio. Neoconstitucionalismo e direitos fundamentais. 2008. Disponível em:
<http:// www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/amelia_do_carmo_sampaio_rossi.
pdf>. Acesso em: 19 set. 2011.
59
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pos de Constituição. Trata-se de um modelo particular que se presta apenas
para sistemas constitucionais avançados, isto é, dotados de uma Constituição
19
democrática voltada a assegurar os direitos fundamentais e sua efetividade .
Sob o ponto de vista filosófico, o Neoconstitucionalismo é uma expressão do Pós-Positivismo Jurídico. Essa escola da Filosofia do Direito buscou
encontrar uma posição intermediária entre duas correntes que a precederam:
20
o jusnaturalismo e o positivismo jurídico .
21
Segundo Flávio José Moreira Gonçalves:
Por isso, há de ressaltar-se o duplo aspecto (cognitivo e volitivo) da atividade
interpretativa das normas, enfocando o papel do pensamento filosófico no auxílio à compreensão dos sentidos possíveis que poderiam ser obtidos como o(s)
resultado(s) do processo hermenêutico, uma vez que a escolha do sentido de uma
norma far-se-á, sempre, com base em critérios axiológicos e/ou políticos, ainda
que se ignore ou negue completamente este fato, como tentou fazer a Teoria Pura
do Direito, de Hans Kelsen.
A partir do início do século XXI, a doutrina passa a desenvolver uma
nova perspectiva em relação ao Constitucionalismo, denominada Neoconstitucionalismo, ou Pós-Positivismo. Nessa nova realidade, busca-se não mais
atrelar o Constitucionalismo à ideia de limitação do poder político, mas buscar a eficácia da Constituição, deixando o texto de ter um caráter meramente
retórico e passando a ser mais efetivo, especialmente diante da expectativa de
concretização dos direitos fundamentais.
O Neoconstitucionalismo é, em suma, exatamente o momento atual de
toda essa revolução que vive o Direito Constitucional contemporâneo. Nesse
22
diapasão, Agra afirma que:
O neoconstitucionalismo tem como uma das marcas a concretização das prestações materiais prometidas pela sociedade, servindo como ferramenta para a implantação de um Estado Democrático Social de Direito. Ele pode ser considerado
como um movimento caudatário do pós-modernismo. Dentre suas principais
características podem ser mencionados: a) positivação e concretização de um ca19 MOREIRA, Eduardo Ribeiro. Neoconstitucionalismo: a invasão da Constituição. São Paulo: Método, 2008. p. 29-30.
20 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: o triunfo
tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 851, 1 nov. 2005.
Disponível em: <http:// jus.com.br/revista/texto/7547>. Acesso em: 21 set. 2011.
21 GONÇALVES, Flávio José Moreira. As concepções de Ciência do Direito e sua repercussão na
formação de bacharéis em Direito e Magistrados. Revista Eletrônica Dike, Fortaleza, ano 1, n. 1,
jan/jul. 2011. Disponível em: < http://www2.tjce.jus.br:8080/dike/wp-content/uploads/2010/11/
Artigo-Flavio.pdf >. Acesso em: 19 mar.
22 AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro:
Forense, 2008. p. 31.
60
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tálogo de direitos fundamentais; b) onipresença dos princípios e das regras; c)
inovações hermenêuticas; d) densificação da força normativa do Estado; e) desenvolvimento da justiça distributiva.
No Constitucionalismo contemporâneo, portanto, há uma reaproximação
entre o Direito e a Ética, o Direito e a Moral, o Direito e a Justiça e demais valores substantivos a revelar a importância do homem e a sua ascendência a filtro
axiológico de todo o sistema político e jurídico, com a consequente proteção dos
23
direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana. De acordo com Rossi :
Como resultado da consagração dos direitos fundamentais da pessoa humana na
norma básica dos ordenamentos jurídicos ocidentais, alguns, segundo Glauco Barreira, têm sugerido que o Direito Natural foi positivado de modo que não se precise mais colocá-lo como medida de modelação do Direito Positivo. Essa teoria, chamada de pós-positivista, alega ser possível a formulação de argumentos para a humanização do Direito baseados inteiramente na ordem normativa constitucional
mediante uma nova metodologia hermenêutica, comprometida com as variações
sociológicas e com técnicas retóricas de aplicação dos princípios constitucionais.
Segundo Arnaldo Vasconcelos24:
A norma define, dentre as múltiplas possibilidades de se oferecerem ao homem,
os tipos de condutas desejáveis, ao considerar sua relevância para a manutenção
e progresso da vida social. Apresenta-se, deste modo, como regra de fim e instrumento de julgamento. (...) Pertence a norma jurídica, igualmente ao Direito que
por seu intermédio se manifesta e se traduz, ao mundo da Ética, que é a “ciência
normativa primordial” (Wilhelm Wundt). Constitui, com a Moral, espécie de
gênero norma ética. (...) O problema das relações entre norma jurídica e norma
pética, que artificialmente se quer introduzir no centro das discussões sobre a
natureza do Direito, não encontra substratos material ou doutrinário que possam,
sequer, mantê-lo como tal. Simplesmente, inexiste a questão. Improcede, pois,
toda formulação que pretenda dar medida à composição ética do Direito, tanto
aquela que vê nele apenas um mínimo ético (Georg Jellinek), como a que, exagerando, nele divisa um máximo ético (Gustav Schmoller).
O Constitucionalismo contemporâneo caracteriza-se, principalmente,
por se apresentar como uma noção superadora do Estado de Direito Legislativo, que estruturou o desenvolvimento do modelo liberal de Estado de Direito,
caracterizado, especialmente, por uma Constituição que confere limites ao
poder, estabelecendo a sua organização essencial. Ao estabelecer a rematerialização dos documentos constitucionais por meio da introdução, nestes, dos
princípios, faz da Constituição uma unidade material, uma ordem de valores
23 ROSSI, Amélia Sampaio. Neoconstitucionalismo e direitos fundamentais. 2008. Disponível em:
<http://www. conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/amelia_do_carmo_sampaio_rossi.
pdf>. Acesso em: 19 set. 2011.
24 VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 20-21.
61
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protegida e estendida na sua realização por um procedimento efetivo de controle da constitucionalidade das leis.
A novidade desse constitucionalismo renovado se encontra nos aspectos
teóricos que respeitam as fontes do Direito e o problema da sua interpretação
e aplicação. A partir do momento em que os valores são constitucionalizados,
o grande desafio do Neoconstitucionalismo passa a ser encontrar mecanismos
para a sua efetiva concretização.
25
Nesse sentido afirma Gonçalves que:
Os cientistas do Direito devem ser capazes de construir também novos paradigmas, mais compatíveis com os desafios ensejados pela sociedade hodierna, engendrando novos problemas teóricos e soluções mais ousadas e menos apegadas à
ciência normal, para usar a expressão de Thomas Kuhn.
As Constituições, rematerializadas, não possuem mais apenas o objetivo
de repartir os poderes do Estado e distribuir a competência própria de seus
órgãos, mas, principalmente, de estabelecer direitos fundamentais, e, por seu
intermédio, uma ordem de valores e de justiça que exigirá postura ativa dos
órgãos estatais e de toda a sociedade no sentido da sua realização, especialmente quando se tratarem de direitos prestacionais de cunho social.
2 Direitos fundamentais sob a perspectiva neoconstitucionalista
Os direitos fundamentais são aqueles relacionados aos direitos de liberdade e igualdade consagrados com o objetivo de proteger e promover a dignidade
da pessoa humana. Esses direitos fundamentais, segundo Robert Alexy, classificam-se em dois grandes grupos: direitos fundamentais na qualidade de direitos
26
de defesa e direitos fundamentais na qualidade de direitos a prestações .
Os direitos fundamentais de defesa objetivam impor a limitação do poder do Estado, garantindo a liberdade pessoal e a propriedade dos indivíduos
contra a ingerência indevida do Estado, assim como as liberdades fundamentais, a isonomia formal, os direitos políticos e as garantias fundamentais.
Já os direitos fundamentais na qualidade de direitos prestacionais objetivam não apenas a realização da liberdade de autonomia, mas também da
liberdade por intermédio do Estado, o que implica uma postura ativa do Es25 GONÇALVES, Flávio José Moreira. As concepções de Ciência do Direito e sua repercussão na
formação de bacharéis em Direito e Magistrados. Revista Eletrônica Dike, Fortaleza, ano 1, n. 1,
jan/jul. 2011. Disponível em: < http://www2.tjce.jus.br:8080/dike/wp-content/uploads/2010/11/
Artigo-Flavio.pdf >. Acesso em: 19 mar. 2012.
26 ALEXY, Robert apud LIMA, Isan Almeida. Neoconstitucionalismo e a nova hermenêutica dos
princípios e direitos fundamentais. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2503, 9 maio 2010. Disponível em: <http://jus.com.br/ revista/texto/14737>. Acesso em: 20 set. 2011.
62
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tado na obrigação de colocar aos indivíduos o acesso às prestações, tanto de
natureza jurídica quanto material devidas. São os mais variados direitos sociais
de natureza prestacional.
A doutrina tradicional firmou posição no reconhecimento de que apenas
os direitos fundamentais de defesa, por terem aplicação direta e imediata,
consistem em verdadeiros direitos subjetivos capazes de colocar o indivíduo
na posição de reivindicar, do Poder Judiciário, a reparação de sua eventual violação. No caso dos direitos sociais prestacionais, a doutrina tradicional
insiste em afirmar a ausência da sua eficácia quanto a uma aplicação direta e
imediata, fazendo com que deles não resulte possibilidade de reconhecimento
de verdadeiro direito subjetivo capaz de levar o seu sujeito a bater às portas do
Judiciário exigindo o cumprimento da contraprestação faltante por parte do
Poder Público.
O Neoconstitucionalismo entende que não há mais que se falar na categoria de normas meramente programáticas em relação aos direitos prestacionais. Ao contrário, estes, também instituídos por meio de norma-princípio,
exigem um desenvolvimento e atuação do legislador e do administrador – trata-se do modelo prescritivo de Constituição. Todo e qualquer direito fundamental estabelece uma posição jurídica fundamental, se constituindo, ao mesmo tempo, de dimensões positivas e de defesa. A tradicional argumentação de
que a concreção dos direitos fundamentais sociais requer a alocação de recursos estaria sempre na dependência de uma análise da conjuntura econômico-financeira do Estado para ser afirmada ou refutada, consequentemente, não
haveria legitimidade do Judiciário no sentido de determinar a sua execução
27
compulsória pelos Poderes Públicos. Na lição de Rossi:
Este tipo de argumentação levou a doutrina tradicional a elaborar o conceito da
“reserva do possível” em termos de possibilidade de efetivação de muitos daqueles
direitos, portanto, os engessando. Hoje já se compreende que todo e qualquer
direito fundamental implica em [sic] um “custo” (neste sentido a própria liberdade
de Locomoção), e a nova visão dos direitos fundamentais na perspectiva neoconstitucionalista faz aparecer o conceito de “mínimo vital”. Em outras palavras,
existirão determinados direitos fundamentais prestacionais ligados diretamente à
ideia de mínimo existencial, que por sua vez está vinculada à noção de dignidade
da pessoa humana. Quando aquela contraprestação for essencial para a realização
da existência digna, não há que se falar em custo, o Estado tem a obrigação de
arcar com a contraprestação e o Judiciário tem papel relevante ao intermediar tal
concreção.
27 ROSSI, Amélia Sampaio. Neoconstitucionalismo e direitos fundamentais. 2008. Disponível em:
<http://www. conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/amelia_do_carmo_sampaio_rossi.
pdf>. Acesso em: 19 set. 2011.
63
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A perspectiva neoconstitucionalista faz com que se chegue à compreensão
de que a centralidade assumida pelos direitos fundamentais na Constituição
exige uma interpretação diferenciada dos mesmos. Assim, noções como a de
eficácia privada ou horizontal desses direitos,da proibição do retrocesso social,
da maximização ou efetividade, da restringibilidade excepcional, e da projeção
positiva, são características que devem ser tomadas em conta na compreensão,
interpretação e aplicação daqueles direitos.
Considerações finais
A investigação que ora se encerra comprovou que a concepção de Direito
estabelecida pelo Positivismo tradicional não se encontra mais apta a dar resposta ao grande número de infinitas e complexas questões da realidade contemporânea. A superação do modelo no qual a Constituição era vista como
um documento essencialmente político, decorrente do reconhecimento definitivo de sua força normativa, foi decisiva para as transformações ocorridas na
teoria constitucional. Ocorreu uma rematerialização constitucional, advinda
da incorporação explícita de valores, opções políticas e diretrizes aos poderes
públicos, bem como da consagração de um extenso rol de direitos fundamentais, ampliado com o surgimento de novas dimensões de direitos.
Restou demonstrado, ao mesmo tempo, que a perspectiva neoconstitucionalista exige uma releitura das balizas desde sempre confirmadas pelo
Positivismo Jurídico. Essa doutrina, durante um longo tempo, foi utilizada
para dar resposta e guarida aos interesses dominantes em uma sociedade, que
nem sempre estavam voltados para encontrar respostas mais direcionadas ao
alcance maior dos valores de igualdade e justiça.
Evidenciou-se, também, que as alterações introduzidas pelo Constitucionalismo contemporâneo têm provocado uma mudança paradigmática na
teoria do Direito. A importância e a centralidade que os direitos fundamentais
assumem no bojo dos textos constitucionais nos últimos anos é fundamental
para a compreensão da impossibilidade de se continuar a abordar o fenômeno jurídico de modo alheio às considerações morais e políticas. É notável o
caráter de historicidade dos direitos fundamentais, uma vez que os mesmos
surgiram em épocas diferentes e estão em constante mudança com o passar
do tempo.
Por fim, constatou-se que o Direito há de ter uma finalidade a cumprir
na sociedade e esta não pode ser apenas a da ordem, segurança jurídica ou paz
social. É preciso que o Direito seja também um instrumento a ser utilizado
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para a emancipação do homem, da pessoa humana. O fenômeno jurídico não
pode se postar apenas a garantir e resguardar as posições dominantes de poder, antes deve servir para transformar a realidade, atuando como ferramenta
eficaz para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
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O PROBLEMA DA HIERARQUIA DOS TRATADOS
INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS
NA ORDEM JURÍDICA CONSTITUCIONAL
BRASILEIRA
1
Matheus Albuquerque de Carvalho Marques2
RESUMO: Este artigo propôs-se a refletir sobre a questão da hierarquia dos tratados de Direitos Humanos na pirâmide normativo-constitucional brasileira. Inicialmente, ante as perspectivas dogmáticas e sistêmicas, buscou enfatizar os aspectos relevantes e as peculiaridades
do instituto Direitos Humanos, discorrendo sobre aqueles que se relacionam aos tratados
tidos como objeto do presente estudo, sobretudo os já estabelecidos no ordenamento jurídico
constitucional pátrio. Na sequência, destacou entendimentos doutrinários e/ou jurisprudenciais consolidados, mormente pelo Supremo Tribunal Federal, mas também mencionando e/
ou investigando os demais institutos correlatos. Para tanto, levou em conta o aspecto temporal, sem prejuízo dos demais, e ainda alguns dados e elementos pertinentes e/ou fundamentais
úteis à elucidação, cientificamente, do questionamento ora posto. Quanto a isso, pretendeu
encaixá-los de acordo com sua essência e previsão constitucional, porquanto, juridicamente,
carecem de um tratamento adequado e uniforme por parte da doutrina, pelos operadores de
direito e pela corte suprema nacional, que, para uma parcela deles, dispensou tratamento diferenciado a partir da EC n.º 45/04. A metodologia utilizada para a viabilização dos objetivos
propostos consistiu em um estudo exploratório descritivo-analítico, desenvolvido por meio
de uma pesquisa pura, de natureza qualitativa, com prevalência do tipo bibliográfico. Os resultados revelaram que a problemática ainda persiste, sobretudo pelo enquadramento de tais
tratados no patamar de normas supralegais, em vez de constitucionais, pelo Supremo, quando anteriores àquela emenda constitucional. Em que pese essa realidade, tendo em vista as
premissas mais firmemente aceitas em relação à questão enfocada, conclui-se que os Tratados
Internacionais de Direitos Humanos, sem distinção, deveriam estar encaixados no patamar
de normas constitucionais, especialmente à luz da Emenda Constitucional nº 45.
PALAVRAS-CHAVE: Tratados; direitos humanos; hierarquia; emenda constitucional nº 45.
1
2
Trabalho desenvolvido sob a orientação do Prof. Flávio José Moreira Gonçalves, Mestre em Direito
pela Universidade Federal do Ceará (UFC), apresentado à Coordenação do Curso de Especialização
em Direito Constitucional (V) da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC)
no ano de 2012 como requisito parcial para obtenção do título de especialista em Direito Constitucional.
Técnico Ministerial do Ministério Público do Estado do Ceará (MPE/CE). Advogado licenciado
inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, seção Ceará (OAB/CE). Aluno do curso de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará
(ESMEC). E-mail: <[email protected]>.
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ABSTRACT: This article has been proposed to reflect on the question of the hierarchy of
Human Rights treaties in the normative-constitutional Brazilian pyramid. Initially, in front
of dogmatic and systemic prospects, sought to emphasize the relevant aspects and the peculiarities of the Human Rights Institute, talking about those that relate to treaties regarded as object of this study, particularly those already established in the constitutional juridical Brazilian
law. Continuing, it highlighted doctrinal understandings and/or consolidated jurisprudence,
particularly by the Federal Supreme Court, but also mentioning and/or investigating other
related institutes. But that required to take in account the temporal aspect, without prejudice
to the other, and even some data and relevant elements and/or useful for elucidation, scientifically critical, of the questioning in evidence. On this, it wished to fit them in accordance
with its essence and constitutional prediction, because legally, lack of adequate and uniform
treatment by the doctrine, by operators of law and by the national Supreme Court, which,
for a portion of them, gave differential treatment from the EC nº 45/04. The methodology
used for the feasibility of the proposed objectives consisted in an analytical-descriptive exploratory study, developed through a pure research, in a qualitative nature, with prevalence
of bibliographic type. The results revealed that the problem still persists, especially by the
framework of such treaties into the porch of supralegal standards, rather than constitutional
by the Supreme, when previous to that constitutional amendment. Despite this reality, in
view of the assumptions more firmly accepted in relation to the issue in focus, it is concluded that the International Treaties on Human Rights, without distinction, should be slotted
into the porch of constitutional requirements, especially in the light of the Constitutional
Amendment nº 45.
KEYWORDS: Treaties; human rights; hierarchy; constitutional amendment nº 45.
Introdução
Diariamente, debate-se acerca do desrespeito aos direitos humanos, associado à transgressão da norma jurídica, quando levada a efeito tanto pelas
autoridades públicas quanto pelos Estados nacionais, mormente aqueles circunscritos aos regimes impostos pela tirania dos seus respectivos chefes, ou
mesmo, no caso dos mimeticamente democráticos.
Por outro lado, no Brasil, na condição de país em desenvolvimento, busca-se a todo instante a construção e/ou sedimentação de um aparato estatal
mínimo, a fim de que este Estado possa fornecer os serviços mais básicos e necessários aos administrados, corroborando a efetividade dos direitos humanos
previstos no seu ordenamento, e que atenda aos ditames prescritos em âmbito
internacional.
Todavia, antes que se concretizem os objetivos previstos na CF/88, a sociedade não pode padecer, inclusive juridicamente, daquilo que lhe foi outorgado pelo constituinte, tendo em vista a consagração dos mesmos no nível de
cláusula pétrea e o fato de que as normas constitucionais não são meramente
programáticas, quando possível. Por isso, é forçoso exprimir que se deva dis68
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pensar aos direitos humanos, bem como aos seus instrumentos e dispositivos
correlatos de alcance transnacional, dentre os quais os tratados internacionais
de direitos humanos ratificados ou em vias de sê-los, o singular tratamento.
Nesse sentido, justifica-se o clamor para que os tratados internacionais
de direitos humanos, sem diferenças entre uns e outros, com mais ênfase,
em termos hierárquicos, sejam recepcionados pelo ordenamento pátrio no
patamar de normas constitucionais, ao invés de supralegais. Assim, caberia
ao Supremo Tribunal Federal declarar a inconstitucionalidade de uma norma
que, por exemplo, restringisse os direitos e garantias fundamentais.
Diante dessa realidade, percebe-se o quão necessário aos destinatários da
norma jurídica, ou aos seus operadores, torna-se a coerência no que diz respeito ao seu enquadramento de acordo com a essência do instituto e sua previsão
constitucional, sobretudo pelo fato de a matéria vir suscitando grande discussão doutrinária, levando-se em conta o interesse que provoca na sociedade de
um modo geral.
Com base nas notas introdutórias ora declinadas, afloram questões que
se entende pertinentes: como exigir um quórum qualificado para aprovação
dos Tratados de Direitos Humanos, se já estavam previstos entre os direitos
e garantias fundamentais, daí cláusula pétrea, e tal quórum não foi exigido
antes? Como fica a questão da imutabilidade ou intangibilidade das cláusulas
pétreas, se elas não podem ser restringidas ou afrontadas? A norma posterior,
a qual ingressou no ordenamento por intermédio da EC nº 45/88, não seria
inconstitucional? E o STF, como corte suprema e guardião da Constituição, o
que fez em relação a essa problemática?
O estudo em voga nasceu da oportunidade que se evidenciou, a partir desses questionamentos, de se tecer algumas considerações em relação ao
aspecto da hierarquia dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos na
órbita da ordem jurídica constitucional, posto que, devido ao posicionamento
do Supremo, tornou-se patente, hierarquicamente, o posicionamento inadequado e não satisfatório daqueles ratificados e introduzidos no ordenamento
pátrio anteriormente à EC nº 45/04.
Diante dessa realidade, senão ambígua, obscura, de acordo com a essência e previsão constitucional dos direitos humanos e respectivos tratados,
os entendimentos doutrinários e/ou jurisprudenciais demonstrados acerca do
tema e, mormente, sob o prisma temporal, quando das ponderações conclusivas, pretende-se apresentar o entalhamento de modo escorreito dos tratados
de direitos humanos na pirâmide do ordenamento jurídico constitucional
brasileiro.
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Ao mesmo tempo, a referida pesquisa elenca como objetivos específicos os seguintes: explicitar breves considerações sobre a temática; abordar
a história e evolução dos direitos humanos; explanar sobre o constitucionalismo e apresentar o conceito de direitos humanos, com lastro dos aspectos
relevantes e peculiares do instituto Direitos Humanos e sua derivação específica normativa em trato; e refletir sobre os Tratados Internacionais de
Direitos Humanos no âmbito da EC nº 45, pretendendo posicioná-los de
modo adequado e satisfatório, com base nas premissas mais firmemente aceitas, especialmente a partir do ingresso da Emenda Constitucional nº 45 no
ordenamento jurídico brasileiro.
Para tanto, como pressupostos que se pretende sejam validados ao final
desta investigação, tem-se que já havia previsão constitucional dos Tratados
de Direitos Humanos entre os direitos e garantias fundamentais, ocasião na
qual se prescindiu do quórum qualificado ora exigido, a partir da EC nº 45.
Daí, em vez de aclarar, o Supremo, em duas oportunidades, as quais serão
oportunamente aduzidas, desencadeou um maior acirramento do embate, dificultando mais ainda a resolução do imbróglio.
A dicotomia em questão deu origem a quatro correntes de pensamento:
a que defende serem os tratados de direitos humanos equiparados às normas legais; a que congrega os que entendem serem supralegais; a que polariza
no sentido de terem paridade com as normas constitucionais; e a que reúne
aqueles que se posicionam favoráveis ao entendimento de que são normas
supraconstitucionais.
A expressiva maioria dos argumentos contrários ao reconhecimento de
os tratados de direitos humanos terem paridade com as normas constitucionais prende-se ao fato de que aqueles ratificados anteriormente à EC nº 45
não foram aprovados pelo quórum qualificado exigido pelo art. 5º, § 3º, da
CF/88, cujo parágrafo foi acrescentado pela emenda retroaduzida, em que
pese a previsão expressa desses tratados no § 2º do mesmo artigo, ou melhor,
entre os direitos e garantias fundamentais.
Por outro lado, a Constituição prescreve que as cláusulas pétreas são intangíveis e imutáveis, daí não restringíveis. No caso, houve a estipulação de
um processo, ou quórum qualificado, mais gravoso que o anterior para que os
tratados internacionais de direitos humanos possam ser aprovados e, com isso,
ingressem no ordenamento jurídico pátrio no patamar de norma constitucional. Daí, acerca disso, intentar-se-á refletir para que, ao final, seja apresentado
o posicionamento adequado e satisfatório destes e dos demais tratados na
pirâmide normativa constitucional.
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Com esse objetivo em mente, optou-se pelo emprego de uma metodologia que toma por base as perspectivas dogmática (cujo manuseio, em tese,
poderia ensejar a renúncia ao postulado da pesquisa independente, caso olvidadas as devidas cautelas, daí não se constituindo em óbice à plena visualização do fenômeno jurídico em trato) e sistêmica (que tem como pressuposto
e substrato metodológico o enfoque analítico). Essa metodologia se expressa
na realização de um estudo exploratório, voltado para o aprimoramento das
ideias por meio da obtenção de informações acerca da temática em discussão, descritivo-analítico, posto que, como explicitado antes, intentará refletir, explicar, descrever e, quiçá, posicionar os tratados de direitos humanos
no ordenamento pátrio, desenvolvido por meio de uma pesquisa de natureza
qualitativa, (à medida que se aprofunda na compreensão dos direitos humanos e seus respectivos tratados, e em relação ao tratamento diferenciado ora
dispensado àqueles aprovados pelo quórum qualificado de 3/5), pura, cujo
único fim reside na ampliação dos conhecimentos, e com prevalência do tipo
bibliográfico, em livros, revistas, publicações especializadas, artigos e dados
oficiais publicados na Internet.
A apresentação dos resultados obedece ao formato de item, em número
de quatro.
O primeiro, tece breves considerações a respeito do tema ora proposto.
O segundo, desce a detalhes quanto ao aspecto histórico-evolutivo dos
direitos humanos.
O terceiro, trata do constitucionalismo e, com base nisso, apresenta um
conceito de direitos humanos.
O quarto, contextualiza todo o conteúdo até então esmiuçado com a EC
nº 45, pretendendo solucionar ou, ao menos, aclarar, a problemática relacionada à hierarquia dos tratados de direitos humanos na órbita constitucional
brasileira, ocasião na qual são entabuladas, conclusivamente, as considerações
finais.
1 Breves considerações iniciais
Na antiguidade, fosse no Estado Hebreu, fosse, posteriormente, na Grécia ou em Roma, tentava-se defender alguns direitos cujos traços essenciais
os evidenciavam como inerentes ao bem maior dos indivíduos: a vida. Esses
direitos, posteriormente, iriam, ao consagrar-se, ser afirmados como direitos
humanos e até, como se verá adiante, tornar-se um prolongamento deles.
Para que se alcançasse esse nível de evolução, a humanidade, no entanto,
teve que enfrentar e experimentar incontáveis e inimagináveis horrores. Fo71
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ram muitas as atrocidades perpetradas contra os indivíduos, e até hoje continuam a se perpetuar, mesmo na era contemporânea, levantando dúvidas sobre
a sua capacidade de recomposição absoluta, tomando-se como referência tudo
que se sucedeu, desde os danos suportáveis aos absolutamente condenáveis.
A título de exemplificação, na Bósnia, no apagar das luzes do século XX,
era possível que a alguém fosse permitido aplicar o castigo de arrancar o pênis
de outrem a dentadas simplesmente por considerá-lo de uma “raça” ou etnia
impura em relação à sua. Com efeito, como bem se sabe, atos de crueldade
igual ou superior já vinham se repetindo nos regimes totalitários.
Apesar de tais acontecimentos incontestes, lamentavelmente ainda bastante atuais, é possível sustentar que a ratificação dos direitos humanos constitui-se em marca inquebrantável do avanço da civilização, passível de ser visualizada a partir dos direitos previstos, legal e constitucionalmente, em qualquer
parte do mundo, e mais, garantidos e reconhecidos, ao menos formalmente,
aos indivíduos.
2
Abordagem histórico-evolutiva dos direitos humanos
Em épocas remotas, pensadores já se dedicavam a refletir a respeito dos
direitos inerentes ao homem. O próprio Jesus Cristo fora crucificado em defesa da humanidade. Mais tarde, os jusnaturalistas, por exemplo, já defendiam
que os direitos humanos eram uma espécie de direitos naturais e que se prolongavam com os direitos fundamentais, assim evoluindo e se especificando.
Deveras, a pretensão destes, num dado momento histórico, foi mesmo
de demonstrar a existência de um liame entre o jusnaturalismo tradicional e
os direitos humanos, e mais, que estes se equivaleriam aos direitos naturais.
Ora, se a teoria e aqueles direitos requerem bases sólidas e específicas suficientes para justificar a sua existência e, por outro lado, há coincidência de
objetos entre ambos, fundamentando-os até, e, do mesmo modo, por estarem
intimamente adstritos aos direitos naturais, a tese pode, sim, ser aceita, ao
menos parcialmente.
Ademais, por ter dado outro significado ao direito, transcendendo o entendimento até então em vigor limitado ao seu aspecto objetivo, o jusnaturalismo racionalista introduziu também uma concepção divergente, a subjetiva,
fundamental à concretização da teoria dos direitos humanos, segundo a qual
esses direitos decorrem dos direitos naturais. Esses dois aspectos foram importantíssimos para a especificidade destes direitos, redundantes naqueles.
Enfim, se não se dispensou tratamento exclusivo à matéria, tendo em vis72
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ta o desenvolvimento da teoria sobre os direitos do homem, ao menos, indiretamente, valiosíssimas contribuições greco-romanas e escolásticas foram-lhe
oferecidas, porquanto os direitos humanos constituem as bases do jusnaturalismo racionalista em que, a priori, singelamente aduziu-se o conceito de direitos do homem, definindo-os como direitos naturais, direitos integralmente
pertencentes aos homens, independentes e prévios a qualquer organização
sócio-política.
Historicamente, a primeira aparição de um esboço dos Direitos Humanos como são conhecidos na atualidade adveio com a Magna Carta. O rei inglês João, cedendo às pressões da nobreza e do clero, dentre outras classes que
praticamente obrigaram-no a isso, emendou-a, estipulando que a liberdade
de determinadas classes seria preservada, o que redundou, de qualquer modo,
numa conquista, apesar de ter sido restringida a poucos, como bem ressalta
Konder Comparato em sua clássica obra:
No embrião dos direitos humanos, portanto, despontou antes de tudo o valor da
liberdade. Não, porém, a liberdade geral em benefício de todos, sem distinções de
condição social, o que só viria a ser declarado ao final do século XVIII, mas sim
liberdades específicas, em favor, principalmente, dos estamentos superiores da sociedade – o clero e a nobreza -, com algumas concessões em benefício do “terceiro
estamento”, o povo.3
Logicamente, é facilmente perceptível que os direitos naturais não necessitam da interferência estatal para que sejam tidos como inerentes a todos
os seres humanos, mesmo que desprovidos de qualquer normatização. E isso
deveria ocorrer apenas com o intuito de que pudessem se estabelecer de modo
suficientemente regramental, desprovidos de qualquer força. De toda sorte,
somente previsão legal e/ou constitucional os torna Direitos Humanos, não
sendo necessário que o Poder Legislativo os crie, mas apenas os declare, conforme se verá adiante.
Com a modernidade, eclodiram movimentos, a exemplo do Renascimento e das reformas Protestante e Católica (Contra-Reforma), que davam
um sabor todo especial ao ambiente que fervilhava, propiciando a construção
de uma nova era consagradora do sentido da valorização do homem, este tido
agora como “medida de todas as coisas”, e o surgimento dos Direitos Humanos, pelo menos no rótulo de direitos naturais, o que restou.
Seguindo sua evolução, em 1689, na sua exordial aparição normativa,
3
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva,
1999. p. 34.
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proclamou-se a Bill of Rights, denominação que recebeu a declaração dos direitos inglesa, inaugurando a formalização constitucional dos direitos humanos,
deveras, sob a denominação de direitos naturais. Daí em diante, limitando os
abusos do trono, não mais subsistiu o direito divino dos reis. Teoricamente,
caso não houvesse o crivo do parlamento, impedia-se que o rei suspendesse ou
executasse as leis para que, caso o ato de suspender ou executar viesse a ocorrer, não se tornasse ilegal, o que se aduz como fundamental a que, no futuro,
os direitos humanos galgassem status transnacionais.
A partir da Revolução Francesa, em 1789, instaura-se a grande e essencialmente definitiva mudança de enfoque que recai sobre os direitos humanos.
De modo ainda mais audaz que o parlamento inglês, a Assembleia Nacional
francesa deliberou e aprovou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, após o que os direitos humanos se cristalinizaram. E aí, previu-se que
nenhum direito poderia ser invocado apenas em função de sua positivação na
ordem jurídica nacional. Ademais, houve a declaração solene de que os direitos naturais eram inalienáveis e sagrados do ser humano.
A esse respeito, é interessante e bastante emblemática a observação patenteada por Ferraz Jr. em sua obra, ao asseverar que:
Até o advento da Revolução Francesa, era nitidamente possível perceber que os
indivíduos se distribuíam socialmente conforme categorias estamentais do tipo
nobre/burguês, cristão/pagão, varão/mulher etc., o que marcava sua inclusão (poder negociar, poder casar, poder apropriar) ou sua exclusão social (estrangeiro,
absolutamente incapaz, mulher casada etc.).4
Nas Américas, os norte-americanos da Virgínia, ávidos por mudanças,
tomaram a dianteira. Naquela ocasião histórica, declararam a si mesmos e a
todos os homens dignos da peculiar condição de seres vocacionados ao aperfeiçoamento constante, dando azo também a que, duas semanas após, a Declaração de Independência dos Estados Unidos ocorresse com o lema “a busca
da felicidade” como fundamento da razão universal.
Deveras, a Declaração de Direitos de Virgínia5 (art. 2º) foi além ao epigrafar, solenemente, no corpo de seu texto, por exemplo, que o poder emana
do povo, dele derivando. Embora de forma extemporânea, em 1787 surge a
primeira das constituições escritas, a dos Estados Unidos da América, a qual
originou formalmente o constitucionalismo, consoante o magistério de Pedro
4
5
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Direito Constitucional: liberdade de fumar, privacidade,
Estado, Direitos Humanos e outros temas. Barueri, SP: Manole, 2007. p. 538.
Todo poder pertence ao povo e, por conseguinte, dele deriva. Os magistrados (isto é, os governantes) são seus fiduciários e servidores, responsáveis a todo tempo perante ele.
74
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Lenza.6 Daí, em termos comparativos, a primeira Constituição promulgada
do Estado brasileiro somente viria na década de 80 do século XIX.
O próximo passo, como não poderia deixar de ser, foi dado pela Constituição francesa, em 1791, que, por ter sido emendada, determinou claramente os campos de extensão da liberdade dos cidadãos no seu todo, limitando o
Estado em sua atuação. A esse respeito alinha-se a lição de Ferraz Jr., in verbis:
[...] a sociedade, pouco a pouco, deixa de oferecer status, que era o que definia,
para cada indivíduo, por sua origem e qualidade, o que ele era (e daí o inclui ou
exclui) e passa a oferecer funções, que tornam, em princípio, todos capazes de participar. Assim, se alguém não participa, desta ou daquela função, isso é visto como
uma questão individual e não social. Contudo, até a Primeira Guerra Mundial
(1914-1918), o esquema inclusão/exclusão social é, de certa forma, escamoteado:
na sociedade funcional/liberal, não há propriamente excluídos.7
A partir desse momento consolidou-se efetivamente a premissa de que
o poder estatal não está sobreposto aos direitos humanos, que, por sua vez, se
posicionam antes e acima do poder existente, estando em plena vigência direitos que não podem ser negados e limitados sob pena de esse mesmo Estado,
caso os viole, vir a sofrer sanções internacionais de uma jurisdição supranacional, hoje transnacional.
Ao final da década de 20 do século próximo passado instaura-se a grande
crise mundial das bolsas. Seguidamente, eclode a Segunda Guerra Mundial,
fato responsável por uma mudança na compreensão dos Direitos Humanos.
Até aí se dava continuidade à fase inicial de internacionalização dos direitos
humanos, em curso desde a segunda metade do séc. XIX e cuja manifestação
abrigava, essencialmente, três momentos distintos: o do direito humanitário,
o da luta contra a escravidão e o da regulação dos direitos do trabalhador assalariado, em que muitos direitos trabalhistas e sociais já haviam sido previstos
e garantidos em vários países.
Depois de tantos massacres e atrocidades de toda sorte proporcionados
pelo totalitarismo estatal, pelas guerras mundiais, dentre outros eventos, conferia-se à dignidade humana, especialmente, o caráter de valor supremo. E
com esses desdobramentos, tendo em vista as diferenças sociais, dá-se um salto gigantesco e qualitativo rumo à universalização da proteção desses direitos,
acompanhada da sua especificação, conforme magistério de Mendes, Coelho
e Branco, verbis:
6
7
LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 10. ed. São Paulo: Método, 2006.
FERRAZ, JUNIOR, Tércio Sampaio. Direito Constitucional: liberdade de fumar, privacidade,
Estado, Direitos Humanos e outros temas. Barueri, SP: Monole, 2007. p538
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Os direitos fundamentais que, antes, buscavam proteger reivindicações comuns a
todos os homens, passaram a, igualmente, proteger seres humanos que se singularizam pela influência de certas situações específicas em que apanhados. Alguns
indivíduos, por conta de certas peculiaridades, tornam-se merecedores de atenção
especial, exigida pelo princípio do respeito à dignidade humana.8
Iniciada a sua segunda fase internacional com o advento da Declaração
Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU),
em 1948, amplia-se o conceito de Direitos Humanos, que também se formalizou, embora a contragosto de muitos. Do mesmo modo, a estipulação
de princípios gerais entre os diplomas jurídicos tornou-se inevitável. E, nesse
sentido, ao investigar com maior acuidade a aludida Declaração Universal, em
sua obra, Vicente Ráo elencou aqueles com maior proeminência, e que devem
nortear a organização de qualquer Estado de Direito, ou que se autointitule
Estado democrático, tais quais:
1º) Origem popular do poder e do direito;
2º) Temporariedade das funções políticas legislativas e executivas;
3º) Divisão (independência e harmonia) dos poderes políticos;
4º) Garantia e disciplina jurídica dos direitos civis, políticos e econômicos, inerentes à personalidade humana;
5º) Participação do Estado, assim organizado, na comunidade internacional, baseada no reconhecimento dos princípios fundamentais da organização democrática.9
E, acerca do tema, não demorou muito para que os primeiros embates aflorassem em todos os campos da ciência e da sociedade. Se, por um
lado, tinha-se o apoio determinante de políticos que, já naquela época, assim
como ainda hoje, tornaram-se fortes defensores de tais direitos, apesar de não
se comprometerem com os direitos econômicos e sociais garantidos naquele
mesmo Diploma, por outro existiam muitos oponentes, o que tornou inevitável o surgimento de fortes divergências.
Ora, não se pode olvidar que os opositores, a exemplo de filósofos, cientistas políticos e empresários, os viam como algo indefensável, estes se mostrando até céticos ou hostis, fosse por sua simples aparição, para eles considerada prejudicial, fosse por entenderem que essa aparição poderia ser prenúncio de uma contestação ao histórico direito à empresa privada e à liberdade
de mercado.
8
9
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet.
Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 244.
RÁO, Vicente apud FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Direito Constitucional: liberdade de
fumar, privacidade, Estado, Direitos Humanos e outros temas. Barueri, SP: Manole, 2007. p. 527.
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Daí a dedução de que houve contradição entre a ideologia defendida
pelos que se mostravam contrários ao exercício dos direitos em estudo e sua
atuação na prática, tendo em vista que, ao terem tentado vislumbrar as novas
perspectivas, acomodaram-se, ao invés, às necessidades prementes de indivíduos ou grupos determinados, ou que emergem de cada classe para a consecução de seus fins, sem contrapô-las e, logicamente, levar em conta aquilo que
é da essência desses direitos.
No Brasil, sob a perspectiva doutrinária, em meados da década de 90,
autores como José Filomeno de Morais Filho10 reconhecem a grande contribuição dada à matéria por parte de alguns brasileiros, tal qual Antônio Augusto Cançado Trindade11, juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Tal contribuição ampliou-se com a publicação de seu livro “A Incorporação
das Normas Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos no Direito
Brasileiro”.
Essa obra teria se constituído até então em um dos mais amplos estudos
sobre a situação dos direitos humanos, pois, além de contar com o patrocínio
de organizações internacionais de reconhecido destaque, a exemplo do Instituto Interamericano de Direitos Humanos e do Comitê Internacional da
Cruz Vermelha, trata do tema enfocando múltiplas facetas, dentre as quais a
filosófica, a política, a sociológica, a cultural e a jurídica.
Além disso, nela foram reunidos temas variadamente complexos que vão
desde a operação dos mecanismos internacionais de proteção dos direitos,
passando pelo controle da violência, até se chegar à questão do agravamento
da pobreza e do papel dos meios de comunicação na sociedade contemporânea, razão pela qual se tornou uma importante ferramenta de consolidação
dos Direitos Humanos, mormente em termos pátrios, como assevera o autor.
Na seara política, para muitos, o devido respeito à questão só passou a
existir a partir da instituição do Programa Nacional de Direitos Humanos
(PNDH) no início da década de 90 do século passado, à época lançado pelo
então Presidente da República, mas que, para se viabilizar, necessitava da realização de um conjunto de modificações no ordenamento jurídico do País,
ainda tendo que se sobrepor aos óbices apresentados pela realidade brasileira
no que tange à transformação de vigências jurídicas em eficácias sociológicas.
10 MORAIS FILHO, José Filomeno de. A constituição democrática. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará - UFC/Casa de José de Alencar/Programa editorial, 1998.
11 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A incorporação das normas internacionais de proteção dos Direitos Humanos no direito brasileiro. San José da Costa Rica/Brasília: IIDH/CICV/
ACNUR/Comissão da União Européia, 1996.
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Ademais, como o PNDH não dispunha de uma metodologia racional de
aplicação própria, jungindo-se a sua timidez e a sedenta ressonância desses direitos na sociedade criou-se um ambiente de opinião desfavorável aos Direitos
Humanos. Equivocadamente, estes acabaram sendo compreendidos pelo senso
comum como meros meios de proteção à delinquência, embora, ao se discuti-los seriamente, a tendência era a de que, ao menos, contribuíssem à formação
e consolidação da cidadania, porquanto se soubesse que sua resolução definitiva somente dar-se-ia com a sua respectiva efetividade no cotidiano social.
Filomeno de Morais segue citando Marshall12, um grande sociólogo inglês,
o qual vislumbrava, na órbita dos direitos humanos, aspectos sucessivos, tais
quais: os aspectos civis, relacionados à liberdade individual; os aspectos políticos, que dizem respeito aos personagens da seara eleitoral; e, por fim, os aspectos
sociais, inerentes ao bem-estar econômico e à participação de cada indivíduo
na herança social, mas distribuídos em períodos diferentes, que serviriam de
mecanismo natural para a consolidação dos direitos constitutivos do cidadão.
Entretanto, segundo o ponto de vista de Filomeno de Morais, houve uma
mudança de entendimento nos últimos anos quanto ao modo de efetivação
dos direitos humanos na sua integralidade. Aquilo que Marshall preceituou
parece não mais subsistir, pois se compreendeu não ser mais concebível que
tais direitos estabeleçam-se dessa maneira sem que, concomitantemente, os direitos econômicos, sociais e culturais estejam presentes a cada etapa transposta.
Desse modo, para aquele mesmo autor, a fórmula extraída do Consenso
de Washington, por exemplo, está deveras combalida, haja vista se basear, especificamente, na estabilização ortodoxa, na liberalização seletiva, ou seja, sem
ameaças aos oligopólios e benesses do grande capital privado, e na privatização
desprovida de critérios e com políticas sociais simplesmente compensatórias.
Juridicamente, em âmbito nacional, antes mesmo da promulgação da
Constituição Federal de 1988 o ordenamento brasileiro já havia recepcionado
uma série de atos internacionais, desde declarações até convenções e protocolos
entre os quais a já mencionada Declaração Universal dos Direitos do Homem. O
ordenamento guarda, ainda, compatibilidade com o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, cuja regência é da alçada desse mesmo Tribunal, todos
de âmbito internacional e devidamente validados por Decreto Presidencial.
Ocorre que o marco, em termos de normatização interna dos Direitos
Humanos, foi mesmo a Constituição de 198813, que, no art. 5º, ampliou o
12 MORAIS FILHO, José Filomeno de. A constituição democrática. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará - UFC/Casa de José de Alencar/Programa editorial, 1998.
13 BRASIL. Constituição Federal de 1988. In: VADE MECUM. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 7 e ss.
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leque de direitos fundamentais, com a previsão de setenta e oito incisos, e, por
cujo intermédio, em termos axiológicos e regramentais, segundo a nova divisão normativa vigente, além de uma leva de tantos outros direitos relacionados aos homens, previu-se aquele que, jungindo-se a todas as demais normas,
tornou-se símbolo da conquista desses direitos pela humanidade. Trata-se do
postulado da dignidade da pessoa humana, objeto precípuo e finalístico do
Direito e de seus destinatários, os cidadãos, tidos apenas como seres humanos
sob o prisma do novo enfoque constitucional.
Finalmente, merecidamente, porquanto posicionado entre os direitos e
garantias fundamentais, o aludido preceito tornou-se uma espécie de núcleo
axiológico fundante do constitucionalismo nacional pós-redemocratização e,
logicamente, por gozar dessa prerrogativa, torna-se passível apenas de relativização quando se mostre necessário mediante ponderação de princípios fundamentais que estejam em aparente colisão, ou ainda, caso haja contradição
entre os mesmos, redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual.
3
Constitucionalismo e conceito de direitos humanos
Superada a fase em que os direitos humanos eram considerados meras
teorias filosóficas, ou tidos como simples aspirações programáticas de cunho
político e ético, inaugura-se um novo momento em que os legisladores passaram a positivá-los, embora com amplitude apenas em âmbito estatal, de
modo que, conforme ensinam Mendes, Coelho e Branco, “[...] ganharam em
concretude, ao se enriquecerem com a prerrogativa da exigibilidade jurídica,
mas perderem em abrangência”.14
Desde então, os direitos humanos e tantos outros passaram a ser “[...]
protegidos pela ordem jurídica, mas somente dentro do Estado que os proclama.15” Essa nova fase, a do positivismo jurídico, inicia-se no fim do séc. XVIII
e se estende até o termo da Segunda Guerra Mundial. Surgem as primeiras
constituições e a ideia de rigidez constitucional, ou seja, de supremacia, assim
como de garantia jurisdicional e de poderes constituintes e constituídos nos
Estados Unidos, alargando bastante aquele mesmo conceito. Na Alemanha,
o Estado de Direito sedimenta-se, cristalizando-se em Estado Constitucional,
denominado também Verfassungsstaat.
Na França, o Constitucionalismo recebe a contribuição das ideias da garantia de direitos e da separação de poderes, o que está previsto no art. 16 da
14 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet.
Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 243-244.
15 Ibid., p. 244.
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Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão. A Constituição
francesa propiciou o surgimento da experiência do État Légal, significando
o estabelecimento de normas por legisladores eleitos democraticamente, por
meio da interpretação literal da lei, evoluindo para o État du Droit16. Porém, em
razão da neutralidade, o Poder Judiciário é quem vai proteger a Constituição.
Assim sendo, cria-se o Estado de Direito, tido pelos ingleses ainda na Idade Média como Rule of Law17 ou Estado Liberal em contraposição ao Estado de
Polícia (Absolutista), e até, substituindo-o. Entre as suas características básicas
estão as de que, no fundo, os Direitos Fundamentais correspondiam aos direitos da burguesia, tais quais os da liberdade e propriedade, e que, ao lado deles,
estaria a ideia de intervenção apenas legal e da limitação do poder do Estado.
Inaugura-se o chamado Estado mínimo, baseado no princípio da legalidade da administração, limitando-se à defesa da ordem e segurança públicas.
Na Prússia, o Estado de Direito, denominado Rechtsstaat, tem seu início no
séc. XVIII, difundindo as ideias de impessoalidade do poder, não importando
quem fizesse o direito, diferentemente do que se previa na França.
No campo econômico, estipulou-se que o Estado teria três deveres: 1.
Resguardar a sociedade dos malefícios e da invasão estrangeira; 2. Implementar uma regular administração judiciária; e 3. Eleger e tutelar obras e instituições não afetas ao interesse particular. Tudo isso serviria, fundamentalmente,
para se entender, no futuro, o que seria Direitos Humanos.
A partir daí, os Direitos Humanos começam a tomar os contornos iniciais
daqueles vigentes nos dias de hoje, propriamente, Direitos Humanos. Ou seja,
todas as concepções e teorias formuladas serviriam de esteio, senão em termos
axiológicos, ao menos para a construção do seu significado e alcance, assim
como de fundamento para as inúmeras previsões nos textos das Constituições
e, de modo geral, naquilo que permearia os ordenamentos pelo mundo afora.
Todavia, como já declinado anteriormente, os direitos humanos só tiveram seu conceito formulado e ampliado, formalmente, em níveis mundiais,
em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Isso porque,
diante do antecipado em rápidas pinceladas, repita-se, até que se chegasse a
esse ponto, muito se teve que percorrer, perfazendo-se uma trajetória de percalços árdua e, muitas vezes, cruenta.
Com o advento do Estado moderno ou social, do fim da Primeira ao da
Segunda Guerra Mundial muito se evoluiu. Como houve o esgotamento fáti16 Estado constitucional.
17 Também denominado governo das leis.
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co do Constitucionalismo liberal, incapaz de atender à demanda por direitos
sociais em sentido amplo - sociais, econômicos e culturais, basicamente coletivos -, surge uma nova dimensão de direitos, a segunda, ligada à igualdade,
que agora também se tornou material, concreta, haja vista que a formal, a qual
havia sido declarada quando da Revolução Francesa, já existia na primeira
dimensão, abarcando direitos com aquele correlatos.
Nessa nova fase, busca-se superar o paradoxo entre igualdade política e
desigualdade social, apesar de se manter a adesão ao capitalismo, diferentemente do que prega o socialista, intervindo-se definitivamente nos domínios
social, econômico e laboral, bem como assumindo papel decisivo na produção e distribuição de bens, redundando no denominado Estado do bem-estar
social. Deu-se origem ao pacto keynesiano. Elementos de interpretação são
mais desenvolvidos, tais como o literal, histórico, lógico e sistemático. Nesse
contexto, o teleológico não seria autônomo, pois estaria presente em todos os
outros juntos.
Surge o pós-positivismo, ou Neoconstitucionalismo, e um novo Estado,
o Contemporâneo. Tenta-se superar a dicotomia jusnaturalismo/juspositivismo. Nesse sentido, o elemento que vai estar presente em toda definição de
direito é a correção substancial. Só então os princípios são tidos como norma,
tornando-se ainda uma espécie desta. Normas constituem o gênero, no qual
estarão incluídos os princípios e as regras.
Por outro lado, inevitavelmente, a influência nefasta do Neoliberalismo
e do capitalismo sobreviria. Na economia, um novo fenômeno apresenta-se,
interferindo frontalmente no campo de atuação do Estado: a “globalização”.
A partir de então, ainda que o processo de redução estatal tenha sido, de certo
modo, avassalador, logicamente o pensamento de muitos, de que o Estado
naquele molde seria extirpado, não se concretizou.
Certamente, trazendo-se à baila os ensinamentos de Ferraz Jr., quer complementando ou solidificando essa análise, tem-se que:
[...] o Estado não desaparece como instituição: em seu lugar surge um Estado
regulador. Ou seja, nem o Estado mínimo, protetor das liberdades (Estado de
Direito liberal), nem o Estado promotor de benefícios sociais (Estado Social), nem
o Estado que empresaria o desenvolvimento econômico (Estado interventor), mas
o Estado regulador, que, com base no extraordinário progresso tecnológico, ganha
enorme eficiência regulamentadora de todas as atividades humanas, alterando,
significativamente, a relação entre os âmbitos do público e do privado.18
18 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Direito Constitucional: liberdade de fumar, privacidade,
Estado, Direitos Humanos e outros temas. Barueri, SP: Manole, 2007. p. 542.
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Inúmeros outros direitos, tais quais o da fraternidade e solidariedade
inauguram a terceira dimensão dos direitos fundamentais. Com isso, os direitos ao meio-ambiente, à autodeterminação dos povos, ao progresso ou desenvolvimento, e de comunicação eclodem, e, seguidamente, os de quarta
dimensão, relativos ao valor pluralidade, englobando a democracia, a informação e o pluralismo, e os de quinta, relacionados à paz. Desde então, além
de ser suprema, a Constituição seria também onipresente, abarcando fatores
inerentes à eficácia horizontal, filtragem constitucional e sua própria rematerialização, com a ampliação e revisão do seu conteúdo, assim como a consagração de novos Direitos Fundamentais.
Agora, ao invés do legislador, o protagonista é o Juiz. Confere-se uma
maior abertura à interpretação Constitucional. Os princípios são ponderados
quando colidentes. No Brasil, além desses incrementos, a partir da Constituição de 1988 tem-se o fortalecimento do Poder Judiciário, fazendo surgir o
Estado Democrático de Direito e fundamentado no princípio da Soberania
Popular. Deflagram-se adesões a tratados, convenções e/ou protocolos internacionais. Nesse instante, há uma maior preocupação com a efetividade e
dimensão material daqueles direitos.
Como se nota, aos poucos, imiscuindo-se no Direito Constitucional em
tudo que permeie, racionalmente, o imaginário, os direitos humanos foram
tomando corpo até que a sua evolução atingisse um grau tal que se reconhece
hoje, de modo inconteste, o quanto representam para a humanidade, contribuindo absolutamente para a construção de uma sociedade mais justa, solidária e fraterna, ou seja, convicta plenamente de sua condição.
Por isso, a luta e tantas conquistas não foram em vão. Mais ainda, traduzem-se no princípio da dignidade da pessoa humana, do qual se pode dizer
que, em si mesmo, realça os direitos e princípios mais sensíveis do ordenamento pátrio, estando previsto em inúmeros textos constitucionais espalhados pelo mundo, inclusive no art. 1º, III, da Constituição pátria, e, com mais
ênfase, entre os fundamentos da República Federativa do Brasil.
Tal princípio, apenas pela substancialidade já demonstra sua legitimidade, ainda que, formalmente, não se lhe outorgasse validade e eficácia. Como
um Direito Fundamental positivado, via de consequência foi alçado ao patamar de cláusula pétrea, nos termos do art. 60, parágrafo 4º, IV, disso independendo, em essência, para se consagrar e, material ou juridicamente, atuar.
Daí os Direitos Humanos redundarem em valores e preceitos fundamentais não só em sentido estrito, representando, simplesmente, a conquista de
mais e mais gerações de cidadãos e pessoas que deram suas vidas em defesa
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da causa nobre da preservação da espécie humana em seu mais sublime valor,
o bem da vida, ou mesmo de tantos outros direitos também consagrados,
previstos e garantidos nos diplomas jurídicos, hoje, sobretudo constitucionalmente, na maior parte dos ordenamentos.
Como o tema é bastante complexo, mas extremamente chamativo e salutar, a explanação sobre o Constitucionalismo tornou-se imprescindível para
que se pudesse esboçar um conceito de direitos humanos.
4
Os reflexos da EC nº 45 nos tratados internacionais de direitos
humanos
Nas seções anteriores, patenteou-se que os direitos humanos, paralela e
fundamentalmente, corroborando a aplicação de leis, e até se entrelaçando às
normas previstas em inúmeros diplomas jurídicos, à medida que os ordenamentos jurídicos em todo o mundo iam se condensando, foram evoluindo e
contribuindo para a disseminação das espécies normativas, inclusive as normas constitucionais e as que versam sobre aqueles direitos. Tais normas estipularam direitos de toda monta, fazendo surgir, para muitos estudiosos, uma
distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais.
De certo modo essa dicotomia justifica-se. Os derradeiros consistiriam
em direitos reconhecidos e positivados numa determinada Constituição enquanto aqueles envolvem os previstos em documentos internacionais, reconhecidos simplesmente pela sua essência, sendo válidos universalmente, em
todos os tempos e com inequívoco caráter supranacional, independentemente
de vinculação à determinada ordem constitucional, todos criando o chamado
Direito Constitucional Internacional.
A despeito de todos os avanços na consagração e defesa dos Direitos Humanos, sua concretização esbarra numa questão que tem sido problemática na
maioria das nações do planeta: a complexidade da sociedade contemporânea
tem produzido demandas em profusão que os ordenamentos jurídicos não
têm conseguido atender, principalmente o brasileiro.
A concretização das normas é de grande importância para a realização da
justiça, pois, além da efetividade, cria um ambiente mais favorável para que
haja, pelos Estados nacionais, a ratificação de tratados, convenções e/ou protocolos, a exemplo do Estatuto de Roma, criado há muitos anos, do qual o Brasil
é signatário, e que prevê o estabelecimento do Tribunal Penal Internacional.
Em que pese essa realidade, apenas de alguns anos para cá o Estado brasileiro
tem se submetido à sua jurisdição, bem como à regência da Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de São José da Costa Rica (1969).
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Além desses Estatutos Jurídicos há tantos outros, por exemplo, o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos, bem como o dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos com vigência desde 1966, os quais complementam as legislações internacionais, penalizando aqueles que cometerem
crimes contra os direitos humanos no caso de não terem sido anteriormente
punidos em seus países.
Tentando acompanhar essa evolução, o ordenamento jurídico brasileiro,
como um todo, vem sofrendo profundas transformações em seu cerne, mormente a partir da Constituição de 1988, sendo visíveis os melhoramentos, até tidos
como indispensáveis, promovidos nos mecanismos de sustentação à atuação do
Poder Judiciário brasileiro. Todavia, há ainda um enorme fosso entre aquilo que
ele produz ou, ao menos, tenta produzir, os efeitos práticos dessa mesma atuação
e o que vem sendo pretendido concretamente. Em outros termos, é preciso que
se dê uma maior e mais rápida efetividade às normas jurídicas.
No que tange aos Direitos Humanos, e sendo, desde a sua regência,
signatária de vários dos seus instrumentos e do Direito Internacional, mais
recentemente a Constituição brasileira foi emendada de maneira drástica e
substancial pela Emenda nº 45/2004, que imprimiu importantes e consagradoras mudanças no ordenamento jurídico brasileiro, não só constitucional.
Em relação aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos na seara
constitucional, especialmente a partir da referida publicação, tendo em vista a
sua previsão expressa no § 3º do art. 5º da CF, passaram a ser compreendidos
com o status de emenda desde que tenham obedecido formalmente à tramitação prevista no seu texto, embora tal dispositivo seja bastante discutível e,
talvez, até inconstitucional, em face da perspectiva de retrocesso.
Assim, caso o legislador ou constituinte, quando do manuseio de lei ou
emenda constitucional, venha a afetar, abolir ou suprimir a essência de proteção,
por exemplo, dos direitos sociais, ramificação dos direitos do homem e, portanto, um dos Direitos Humanos, como o é o princípio da Dignidade da Pessoa
Humana, incorrerá num erro crasso e intolerável, o de fazer com que aqueles
instrumentos normativos padeçam da eiva irremissível da inconstitucionalidade.
Por outro lado, traduz-se a aplicação imediata de uma norma-princípio
de direito e garantia fundamental quando de sua declaração de inconstitucionalidade, por juízes ou tribunais a quem incumbe o controle e a guarda bem
sucedida da Carta Política, tanto de modo eficaz quanto efetivo, o que ensina
o mestre Paulo Bonavides19, um dos maiores expoentes e estudiosos do assunto.
19 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1999.
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Como bem se sabe, não é preciso que, explicitamente, haja a previsão
pela Constituição deste ou daquele princípio ou de determinados valores para
que sejam observados. No entanto, é necessário que haja a aplicação, por
juízes e operadores do direito, de métodos interpretativos adequados, validados pela hermenêutica, a fim de que tanto as normas quanto aqueles valores
sejam alcançados pelas essências valorativas insculpidas no intangível núcleo
constitucional.
Cada vez mais alargado, aliando-se inarredavelmente ao fenômeno da
especificação, esse sólido e compacto bloco de constitucionalidade, também
denominado núcleo essencial dos direitos humanos, conforme destaca Comparato, ou ainda qualificado como o conjunto de princípios constitucionais
especiais, fenômeno intitulado por Canotilho20 de “densificação”, torna-os, no
mínimo, normas supralegais.
É nesse sentido que, consequentemente, os Direitos Humanos, de modo
absoluto, consagrar-se-iam também materialmente, como preveem os §§ 1º
e 2º do art. 5º da CF/88, servindo até de alternativa à resolução, no futuro,
daquilo que redundaria na chamada problemática da introdução da Emenda
nº 45 no ordenamento brasileiro, objeto do presente estudo.
Corroborando tal entendimento, Flavia Piovesan sustenta que, in verbis:
Após a Emenda Constitucional nº 45 haveria então: 1- tratados de direitos humanos materialmente constitucionais; 2- tratados de direitos humanos material e
formalmente constitucionais (por força da EC nº 45); 3- tratados que não versem
sobre direitos e garantias individuais. Os dois primeiros se encontram hierarquicamente no patamar constitucional, enquanto o terceiro grupo se encontra no
patamar de lei ordinária.21
Ademais, exsurge do dispositivo retroaduzido que os Tratados Internacionais de Direitos Humanos, dos quais a República Federativa do Brasil,
tomando parte, seja signatária, assim como os direitos e garantias decorrentes
de regimes e dos princípios previstos pela Constituição não se excluem quando nela não expressos, tendo sido elevados ao nível de direitos fundamentais.
Desde então, proporcionando um interminável debate acerca da hierarquia
desses tratados ou de tais direitos e garantias ou princípios, doutrinadores,
operadores do direito, juízes monocráticos e cortes têm tentado uniformizar
os entendimentos diversos, mas, de quantas, em vão.
20 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional. 5. ed. Coimbra: Almedina, 1992.
21 PIOVESAN, Flavia apud GÓIS, Jean-Claude Bertrand de. A hierarquia normativa dos Tratados e
a Emenda Constitucional nº 45. Revista da Esmese, n. 9, p. 175-185, 2006. p. 181.
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O próprio Supremo Tribunal Federal (STF), apesar de, inicialmente, ter
concebido, em diversos julgados, a primazia dos tratados internacionais sobre
o direito interno ordinário, voltou atrás ao julgar, entre outros, o emblemático
Recurso Extraordinário n. 80.004, entendendo que sejam paritários à legislação comum. Isso é, ao invés de aclarar, o STF ocasionou uma discussão ainda
mais acalorada acerca da questão. Analiticamente, uma simples lei ordinária
poderia revogar qualquer norma prevista num tratado internacional do qual
o Brasil fosse parte sem maiores empecilhos, pois este ingressaria no ordenamento como norma infraconstitucional ou legal. Daí se poderia deduzir que
qualquer conflito entre elas resolver-se-ia pelo critério cronológico ou pelo
princípio da especialidade.
Baseando-se em tais julgados, percebe-se que, à época, o STF, majoritariamente, entendia que os Tratados Internacionais seriam normas equivalentes à lei ordinária. Esse entendimento é o mesmo defendido por Manoel
Gonçalves Ferreira Filho22 . Segundo o autor, a Constituição não pretende ser
exaustiva ao enumerar os direitos fundamentais, todavia, a norma proveniente
de tais tratados é, hierarquicamente, lei ordinária, e não regra constitucional.
Assim sendo, nesse caso, olvidar-se-ia o princípio da primazia da pessoa humana e sua regra de direito mais favorável a essa pessoa.
De outra sorte, José Afonso da Silva23 levanta questões outras que estão relacionadas às consequências da incorporação dos tratados em apreço,
a exemplo do alargamento do campo constitucional, da concepção monista
e do desrespeito a uma norma de direito humano. Ante tais fatores, o autor
conclui que haveria uma violação de Direito Constitucional, e que, dessa maneira, qualquer dispositivo transgressor dos preceitos contidos em tais tratados tornar-se-ia objeto direto de controle judicial. Celso Ribeiro Bastos e Ives
Gandra Martins24, na mesma linha, sustentam a tese dualista de que obrigam
aos Estados diretamente, mas não geram, aos particulares, direitos, e que não
é necessário mais que se recorra ao legislativo para que sejam invocados.
Com a promulgação da Emenda nº 45, muita coisa mudou. Inicialmente, houve variadas críticas, inclusive pregando que se tratava de um revés e até
que a norma do art. 5º, § 3º, que fora acrescentada, seria inconstitucional, o
que se explica. É que, para alguns autores, anteriormente à emenda, a Carta
22 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 32. ed. São Paulo:
Saraiva, 2006.
23 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
24 BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. São
Paulo: Saraiva, 2004. v. 2.
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Política de 1988, no seu art. 5º, § 2º, já havia previsto os tratados de direitos humanos entre os direitos e garantias fundamentais, daí cláusula pétrea,
consolidando-se até mesmo formalmente com patamar constitucional.
Evidentemente, como esse tipo de norma é intangível, inderrogável, de
aplicação imediata e, especificamente, à época, para seu ingresso, não se exigiu
quórum qualificado, ou seja, no bojo do dispositivo constitucional retroepigrafado não se previu tamanha exigência para a sua inserção, daí não ser passível de agravamento por outro, seja de mesmo valor hierárquico ou não, jamais
se poderia exigir um processo mais dificultoso que o anterior em se tratando
de tratados internacionais que versem sobre direitos humanos.
Não há dúvida de que o entendimento é plausível, pois, realmente,
caso se esteja diante de uma cláusula pétrea, não poderia haver supressão por
emenda constitucional de determinada norma, neste caso, por mutação. Noutra perspectiva, grosso modo, os tratados submetidos ao quórum privilegiado
teriam paridade com as emendas constitucionais, enquanto os que tivessem
sido aprovadas por maioria simples estariam no nível de lei ordinária e os deliberados anteriormente, também teriam paridade com a lei comum.
Acontece que, como o art. 5º, § 2º, fora inserto pelo constituinte originário, ao menos materialmente ter-se-ia uma norma constitucional, o que dá azo
ao alargamento do bloco de constitucionalidade. Por outro lado, a do mesmo
artigo, § 3º, incorporada pelo constituinte derivado, seria tanto material quanto formalmente constitucional, tendo em vista a necessidade de processo solene
e especial com exigência de quórum qualificado (3/5 dos parlamentares) para
a sua aprovação, como preceitua Marcelo Novelino25. Quanto aos tratados de
direitos humanos anteriores àquela emenda seriam supralegais, mas não teriam
paridade com as emendas constitucionais. Há ainda os que se posicionam favoravelmente a que tais normas gozem do caráter de supraconstitucionalidade.
É interessante que, no Supremo, recentemente, ao arrepio da corrente
até então prevalente, decidiu-se favoravelmente a que, embora infraconstitucionais, os tratados anteriores à emenda em alusão, ao menos, são normas supralegais26 e não simplesmente legais, relegando-se até mesmo a materialidade
25 NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 3. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense;
São Paulo: Método, 2009.
26 Cf. “Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos (art.11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa
Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o carater especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar
específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação
interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais dos direitos humanos subscri87
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da norma fundamental constitucional em prol do seu aspecto formal, o que
demonstra que o assunto ainda está longe de se pacificar.
De qualquer modo, como foram elevados ao status de normas de Direitos
Fundamentais, devendo-se interpretar a Constituição à luz de seus princípios
e valores supremos, tal qual a dignidade da pessoa humana, estão, hierarquicamente, acima das normas legais, mas abaixo das constitucionais. Quanto ao
dispositivo incorporado pela Emenda nº 45, realmente tem, incontestavelmente, com o aval do STF, o status de emenda constitucional.
Conclusão
É de se concluir, no que tange aos Direitos Humanos, que depois de
inúmeras e tamanhas barbáries praticadas contra os indivíduos em todos os
recantos e continentes deste mundo, realmente, houve uma evolução bastante
significativa, apesar de lenta, quanto à previsão legal e Constitucional desses
direitos.
Ficou patente que, aos poucos, o conceito de direitos humanos foi sendo
construído, ampliado, consubstanciado e, mais além, reformulado, intocável
no que é essencial para tais direitos, e que tal caminhada foi se realizando
gradativamente, paralelamente ao avanço do constitucionalismo, nele se imiscuindo até que se consolidasse o instituto dos Direitos Fundamentais, apenas
uma espécie dos Direitos Humanos.
Verifica-se, pois, que como o leque de Direitos Humanos é muito amplo
e extenso e os Direitos Fundamentais seriam tão somente aqueles reconhecidos e positivados, caso se rotulasse e igualasse aqueles direitos a estes, por
exemplo, poder-se-ia deixar criminosos que violassem normas legais ou constitucionais de direitos humanos sem qualquer punição, o que configuraria um
retrocesso desnecessário e não permitido pelo ordenamento constitucional.27
Com relação às questões problematizadoras que nortearam a elaboração do presente artigo, em que pese não ser possível, ainda nesse momento,
tos pelo Brasil, dessa forma, torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante,
seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão. Assim ocorreu com o art. 1.287 do CC de 1916 e
com DL 911/ 1969, assim como em relação ao art. 652 do Novo CC (Lei 10.406/2002).” (RE
466.343, Rel. Min. Cezar Peluso, voto do Min. Gilmar Mendes, julgamento em 3-12-2008, Plenário, DJE de 5-6-2009, com repercusão geral). No mesmo sentido; RE 349.703, Rel. p/ o ac. Min.
Gilmar Mendes, julgamento em 3-12-2008, Plenário, DJE de 5-6-2009. Vide: AI 601.832-AgR,
Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 17-3-2009, Segunda Turma, DJE de 3-4-2009; HC
91.361, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 23-9-2008, Segunda Turma, DJE, de 6-2-2009.
27 Veja-se, por exemplo, os casos julgados pelo Tribunal de Nuremberg em que se poderia deixar criminosos em impunes pelo cometimento de crimes de genocídio em face da ausência de previsão de
tais crimes pelo ordenamento jurídico alemão.
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circunscrever uma resposta absolutamente adequada e satisfatória de modo a
acalmar e equilibrar os vários interesses ou posicionamentos antagônicos que
se reúnem em torno da temática, considera-se que a corte suprema e guardiã
da Constituição Brasileira tem plenas condições de se pronunciar a respeito
da hierarquia dos tratados direitos humanos, no sentido de que dispense tratamento igualitário a todos eles, independentemente de quórum qualificado,
e, consequentemente, uniformize, ao máximo, os entendimentos.
Por fim, resta validado parcialmente o pressuposto estabelecido como
verdade no início deste estudo, de que, no texto constitucional pátrio, a partir
da Emenda nº 45, aos tratados internacionais de direitos humanos outorgou-se expressamente um novo patamar, daí elevados ao status de emenda constitucional, embora, de certo modo, com prevalência do quesito formal sobre
o material. Porém, a contrario sensu, e porquanto suscita um aparente conflito
de inconstitucionalidade, em tese, não se dispensa o mesmo tratamento aos
anteriores àquela emenda.
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EFICÁCIA PROSPECTIVA DAS DECISÕES DE
INCONSTITUCIONALIDADE
1
Iolanda Basílio Feijó Medeiros2
RESUMO: Este estudo tem por finalidade refletir sobre a inovação do STF quando fixa
marco temporal de eficácia às suas decisões de inconstitucionalidade com efeito ex nunc, em
razão da importância que assume e da grande preocupação existente em torno do emprego
da modulação temporal dos efeitos das decisões para a restrição de direitos individuais. Tem
como objetivos instigar o debate sobre as decisões e sua modulação, apontando o parâmetro
a ser adotado em cada caso concreto; identificar os principais aspectos dos casos, revelando
os pontos em comum e divergentes; e, ainda, analisar os aspectos que levaram o Tribunal a
concluir pela modulação de efeitos em controle difuso. A metodologia utilizada para a concretização da proposta consistiu na pesquisa bibliográfica em livros, doutrinas, revistas científicas, jurisprudência e internet. Como resultado esperado, buscou-se a melhor compreensão
sobre o assunto em tela.
PALAVRAS-CHAVE: Controle de constitucionalidade; modulação das decisões; segurança
jurídica; excepcional interesse social.
ABSTRACT: This study aims to reflect on the STF innovation when it fixes effectiveness
timeframe to their decisions of unconstitutionality with effect ex nunc, because of the importance that takes and of existing concern around the use of temporal modulation of the
decisions effects for the restriction of individual rights. Aims to instigate a debate on decisions
and its modulation, pointing the parameter to be adopted in each case; identify key aspects
of cases, revealing the points in common and divergent; and also analyze the aspects that led
the Court to conclude by modulation effects in fuzzy control. The methodology used for
the completion of the proposed consisted in the bibliographic search in books, doctrines,
scientific journals, case law and in the internet. As a result expected, it was sought a better
understanding about the subject on the screen.
KEYWORDS: Control of constitutionality; modulation of decisions; legal certainty; exceptional social interest.
1
Trabalho desenvolvido sob a orientação do Prof. Flávio José Moreira Gonçalves, Mestre em Direito
pela Universidade Federal do Ceará (UFC), apresentado à Coordenação do Curso de Especialização
em Direito Constitucional (VI) da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC)
no ano de 2012 como requisito parcial para obtenção do título de especialista em Direito Constitucional.
2
Advogada licenciados inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil, seção Ceará (OAB/CE).
Aluna do curso de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Escola Superior da
Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC). E-mail: <[email protected]>.
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Introdução
Ao Supremo Tribunal Federal compete orientar e interpretar de forma
definitiva a ordem jurídica conforme os preceitos constitucionais, cabendo
apenas a esse órgão o controle concentrado ou abstrato de constitucionalidade
no Brasil, decorrente de ação ou omissão inconstitucional. O exercício desse
controle requer a utilização de determinadas ações, a exemplo da Ação Direta
de Inconstitucionalidade (ADI), por ação ou omissão; da Ação Declaratória
de Constitucionalidade (ADC); da Ação de Representação Interventiva e da
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF).
A Constituição Federal prevê a possibilidade de qualquer juiz ou órgão
judicial julgar determinados casos concretos quanto à constitucionalidade ou
não de seu objeto, conferindo, ainda, à Suprema Corte o poder de decidir, em
última instância, por meio de Recurso Extraordinário, acerca da constitucionalidade de determinado ato ou norma. Tais situações se referem ao controle
difuso, concreto ou incidental, feito por via de exceção.
No que concerne aos dois sistemas de controle (difuso e concentrado),
há grande diferença no tocante à eficácia de suas decisões. No controle difuso,
a declaração de inconstitucionalidade tem eficácia ex tunc e efeitos inter partes, embora haja a possibilidade excepcional de que lhe seja aplicado efeito ex
nunc, decorrente de uma tendência à relativização da norma inconstitucional.
Já no controle concentrado, tem-se a eficácia erga omnes e o efeito vinculante.
No Brasil, tradicionalmente, a decisão que declara a inconstitucionalidade da lei tem efeitos retroativos (ex tunc). Por sua origem histórica, “o nulo”,
em princípio, não geraria efeitos jurídicos. Carlos Wagner Dias Ferreira3 afirma, na obra “Modulação dos Efeitos da Declaração de Inconstitucionalidade”, citando Ruy Barbosa, que:
Arrematava Ruy Barbosa, como lição praticamente inabalável e indiscutível, que
‘Toda medida legislativa, ou executiva, que desrespeitar preceitos constitucionais,
é, de sua essência, nula. Atos nulos da legislatura não podem conferir poderes
válidos ao executivo’ (Actos Inconstitucionais do Congresso e do Executivo. Rio de
Janeiro: Companhia Impressora, 1893, pág. 47).
As leis nº 9.868/99 e 9.882/99 mantiveram essa orientação. No entanto,
apesar de adotar o efeito retroativo como regra, a Lei nº 9.868/99, em seu art.
27, assim dispõe, de forma expressa, sobre a possibilidade de modulação dos
efeitos temporais da decisão:
3
FERREIRA, Carlos Wagner Dias. Modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade
no controle difuso. Revista Esmafe: Escola de Magistratura Federal da 5ª Região, Recife, n. 12,
p. 05, mar. 2007. Disponível em: < http://bdjur.stj.jus.br/xmlui/bitstream/handle/2011/27784/
modulacao_efeitos_declaracao_inconstitucionalidade..pdf?sequence=3>. Acesso em: 22 fev. 2011.
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Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo
em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o
Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir
os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu
trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
O referido artigo da Lei nº 9.868/99 inovou no que concerne aos efeitos temporais da decisão de inconstitucionalidade, ao fixar a prerrogativa do
Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços e em vista de razões
de segurança jurídica ou excepcional interesse social, para restringi-los ou
determinar que declarações de inconstitucionalidade proferidas em abstrato
produzam efeitos a partir da publicação da decisão (ex nunc) ou de outro momento que ache por bem fixar (pro futuro).
Assim, criou-se um regime em que a retroatividade dos efeitos é uma regra a que foram atribuídas exceções, afastando-se, dessa forma, o legislador de
um modelo rígido e absoluto que obrigava a definição por uma ou por outra
natureza jurídica a ser atribuída à inconstitucionalidade. Isso porque, quanto
aos efeitos da decisão, o dispositivo permite que o ato declarado inconstitucional seja disciplinado ora como ato nulo, ora como anulável, bem como, em
outros momentos, como se fosse válido.
Desse modo, por razões de segurança jurídica ou excepcional interesse
social, o STF poderá adotar um efeito ex nunc ou pro futuro.
Entretanto, o STF vem usando a “Teoria da Transcendência dos Motivos
Determinantes da Sentença no Controle Difuso”, defendida pelos Ministros
Gilmar Mendes e Eros Grau e, também, pelo jurista Fredie Didier Jr. A respeito dessa matéria, afirma Marcus Vinícius Lopes Montez que4:
A abstrativização do controle difuso prega a aproximação dos efeitos da decisão
que aprecia a inconstitucionalidade tanto no controle difuso, quanto no abstrato.
Isto porque se o Supremo, apreciando, como exemplo, um recurso extraordinário,
afetar a matéria ao plenário da casa, este último irá emitir decisão sobre lei ou
ato normativo em tese, desvinculado do próprio caso concreto, tal como faz nas
hipóteses de controle abstrato (Adin, ADC, ...). Diante disso, argumentam os
defensores da abstrativização, que não há razões para não se atribuir efeitos erga
omnes e vinculantes as decisões emitidas pelo plenário. Seria mesmo contraproducente, reduzindo o plenário do Supremo e mais uma instância recursal, quando
sua função primeira é a guarda da Constituição. Contudo, tal raciocínio encontra
óbice, ao menos por uma interpretação literal, no art. 52, inciso X, da Constituição, que exige a participação política do Senado Federal, na medida em que lhe
atribui a função de suspender a execução da lei ora declarada inconstitucional pelo
4
MONTEZ, Marcus Vinícius Lopes. A abstrativização do controle difuso de constitucionalidade. 2007. Disponível em: < http://www.jurisite.com.br/doutrinas/Constitucional/doutconst49.
html >. Acesso em: 23 fev. 2011.
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Supremo Tribunal Federal em sede de controle difuso. Pleiteiam os defensores da
aproximação entre as duas espécies de controle de constitucionalidade, abstrato e
difuso, que seja reinterpretado o art. 52, inciso X, da Constituição. Isto porque,
frente a adoção de um controle eclético no direito brasileiro, teria perdido sentido
continuar atribuindo tal função ao Senado Federal no controle difuso, quando
existe o controle abstrato. Propõem, então, uma mutação constitucional no art.
52, inciso X, da Constituição, fazendo com que o Senado Federal passa a ter
função de dar publicidade às decisões do Supremo, que já teriam eficácia contra
todos e vinculante.
Já ocorreram vários casos de modulação dos efeitos das decisões no controle difuso com base na Teoria da Transcendência dos Motivos Determinantes,
destacando-se alguns julgamentos históricos na Suprema Corte, tais como o
julgamento do RE nº 197.917-8, pelo qual se reduziu o número de vereadores
do Município de Mira Estrela de 11 para nove e ainda se determinou que aludida decisão só atingisse a legislatura seguinte. Logo após, em semelhante caso,
o Ministro Gilmar Mendes adotou o mesmo entendimento fixado no caso de
Mira Estrela ao julgar a Ação Cautelar nº 189, quando determinou que:
[...] a declaração da inconstitucionalidade da lei não afeta a composição da atual legislatura da Câmara Municipal, cabendo ao legislativo municipal estabelecer
nova disciplina sobre a matéria, em tempo hábil para que se regule o próximo
pleito eleitoral (declaração de inconstitucionalidade pro futuro).
O Ministro Gilmar Mendes, na decisão acima transcrita, ressaltou, ainda, que o sistema difuso ou incidental de controle de constitucionalidade
admite a mitigação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade e, em
casos determinados, acolhe até mesmo a pura declaração de inconstitucionalidade com efeito exclusivamente pro futuro.
No mencionado caso, observa-se que eventual declaração de inconstitucionalidade com efeito ex tunc (retroativo) ocasionaria repercussões em todo o
sistema atual, atingindo decisões tomadas em momento anterior à eleição que
resultou na atual composição da Câmara Municipal de Mira Estrela, determinando, assim, a fixação do número de vereadores e de candidatos, definindo
o quociente eleitoral. O Ministro ressaltou que a doutrina e a jurisprudência
entendem que a margem de escolha conferida ao Tribunal para a fixação dos
efeitos da decisão de inconstitucionalidade não legitima a adoção de decisões
arbitrárias, estando condicionada ao princípio da proporcionalidade.
Porém, existe grande discussão em torno da possibilidade de a limitação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, com base na teoria da
anulabilidade, ser admitida também no controle difuso ou incidental sem que
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haja lei que a preveja, discutindo-se, ainda, se o juiz monocrático ou o tribunal ordinário desfrutaria de poderes para estipular a eficácia prospectiva da
decretação da incompatibilidade com a Constituição, abandonando a teoria
da nulidade, que prevê a retrospectividade dos efeitos decorrentes da invalidade desde o nascimento da lei ou do ato normativo.
Este trabalho tem grande relevância jurídica e seus objetivos são instigar o debate sobre as decisões e sua modulação e analisar o parâmetro a ser
adotado em cada caso concreto, bem como os principais aspectos dos casos
em destaque para identificar pontos em comum e de divergência entre eles
e verificar a forma como o Tribunal concluiu pela modulação de efeitos em
controle difuso.
O estudo tem por base apresentar noções elementares das decisões do
STF e seus efeitos, visando, assim, aprofundar os conhecimentos acerca do
tema, a fim de formar uma visão própria sobre o assunto, apesar de que há
muitos pontos que carecem de maior discussão.
1
Modulação dos efeitos das decisões
Para uma melhor compreensão sobre a modulação dos efeitos das decisões, impõe-se uma prévia abordagem do seu processo histórico. Afirma Alexandre de Moraes em sua obra “Direito Constitucional Administrativo” que:5
A declaração de inconstitucionalidade tem o condão de desfazer, desde sua origem, o ato declarado inconstitucional, juntamente com todas as conseqüências
dele derivadas, uma vez que os atos inconstitucionais são nulos e, portanto, destituídos de qualquer carga de eficácia jurídica, alcançando a declaração de inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo, inclusive, os atos pretéritos com base
nela praticados (efeitos ex tunc). [...] Assim, a declaração de inconstitucionalidade,
conforme entendimento de nossa Corte Suprema, “decreta a total nulidade dos
atos emanados do poder público, desampara as situações constituídas sob sua égide e inibe - ante a sua inaptidão para produção de efeitos jurídicos válidos - a
possibilidade de invocação de qualquer direito”. Na Alemanha, em relação aos
efeitos retroativos - ex tunc -, observe-se que a conseqüência lógica da declaração
de inconstitucionalidade seria a eliminação do ordenamento jurídico de todos os
atos praticados com fundamento nela.
O autor resgata, ainda, em sua obra, Konrad Hesse, para quem a decisão
de inconstitucionalidade:6
5
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo. 3. ed. São Paulo:
Atlas, 2006. p. 57.
6 Ibid., p. 58.
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[...] atua fundamentalmente ex tunc e tem, por conseguinte, como conseqüência,
que todas as sentenças judiciais, regulamentos jurídicos e atos administrativos que
foram promulgados com base nas normas nulas, mas também eleições, que se
realizaram segundo uma lei posteriormente declarada nula, carecem doravante da
base jurídica. Os múltiplos problemas que resultam disto, a Lei sobre o Tribunal
Constitucional Federal, no § 79º, resolveram só em uma parte e só em início.
A lei do Tribunal Constitucional Federal Alemão, no seu §79º, prevê
exceções à automática aplicação dessa regra. Assim sendo, existirá cabimento
no tocante à revisão criminal mesmo contra condenação já transitada em julgado, devendo, no entanto, ser alicerçada em lei inconstitucional.
Outras posições revelam os conflitos de entendimentos existentes sobre o
tema, como preleciona, ainda, Alexandre de Moraes, tomando como exemplo
o sistema austríaco:7
Diferentemente, porém, a doutrina austríaca e a jurisprudência do Tribunal Constitucional austríaco entendem que a lei ou ato normativo declarado inconstitucional são anuláveis, com efeitos não retroativos. Assim, a declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Tribunal Constitucional austríaco retira a lei do
ordenamento jurídico, produzindo efeitos, em regra, a partir de sua publicação.
Sobre o assunto, disserta Hans Kelsen da seguinte forma:8
[...] uma norma jurídica em regra somente é anulada com efeitos para o futuro,
de forma que os efeitos já produzidos que deixar para trás permaneçam intocados.
Mas também pode ser anulada com efeito retroativo, de forma tal que os efeitos
jurídicos que ela deixou para trás de si sejam destruídos, porém a lei foi válida até
a sua anulação.
Allan Brewer-Cariás, citado por Moraes9, caracteriza a situação ora exposta como “[...] uma tendência contemporânea na América Latina de concessão de efeitos ex nunc ao controle concentrado de constitucionalidade, em
face das inúmeras repercussões fáticas decorrentes de uma declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo”.
No Brasil, essa tendência toma caminho diferente, pois, conforme Alexandre de Moraes10, permanece, “[...] em regra, o caráter retroativo da declaração de inconstitucionalidade. Além disso, a declaração de inconstitucionalidade torna aplicável a legislação anterior, que havia sido revogada pela norma
impugnada (efeitos repristinatórios)”.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo. 3. ed. São Paulo:
Atlas, 2006. p. 58.
8 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1985. p. 293.
9 MORAES, Alexandre de. Op cit., p. 59.
10 Ibid., p. 59.
7
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Os efeitos retroativos decorrem da declaração de inconstitucionalidade
proferida pelo STF, de tal forma que, sendo proferida a decisão de inconstitucionalidade da lei, voltarão à vigência, a partir do momento em que surgiram
os efeitos de sua revogação, as disposições legais por ela outrora derrogadas. O
mesmo entendimento ocorre em Portugal, onde a norma declarada nula produz efeitos desde a sua entrada em vigor com consequências ex tunc, determinando-se a repristinação das normas que ela haja revogado. Tal entendimento
é corroborado por Alexandre de Moraes.
2
Casos recentes
Atualmente, existem na Suprema Corte muitos casos de modulação dos
efeitos das decisões de inconstitucionalidade no controle difuso, dentre os
quais destacam-se a proporcionalidade no número de vereadores; a atuação
da defensoria pública em prol dos servidores públicos; a progressão de regime dos crimes hediondos; os limites territoriais dos municípios; a criação de
municípios; o provimento irregular de cargos de Defensor Público; a administração de depósitos judiciais pelo Poder Executivo; a destinação das custas;
o horário do Foro estabelecido por portaria; e a decadência e prescrição das
contribuições sociais, só para mencionar alguns.
3
A decisão
Nas decisões que declaram a inconstitucionalidade com termo inicial
diferido para a produção de efeitos, conhecidas como decisões com efeito pro
futuro, com previsão legal na Lei nº 9.868, existe, segundo afirma Ana Paula
Ávila, em sua obra “A modulação de efeitos Temporais pelo STF no Controle
de Constitucionalidade”,11 “[...] nítida inspiração na Appellentscheidung, (decisão de apelo ao legislador), no direito constitucional alemão”. Ressalta Ávila
que uma parte do pensamento alemão foi aplicada ao Brasil, como se pode
verificar em suas próprias palavras:
Dentre as diferentes espécies de Appellentscheidung, pelo menos duas interessam
a análise de compatibilidade com o sistema de controle de constitucionalidade
brasileiro: 1) o apelo ao legislador em virtude de mudança de relações fáticas ou
jurídicas; e 2) o apelo ao legislador em razão de inadimplemento de dever constitucional de legislar.
11 ÁVILA, Ana Paula. A modulação dos efeitos temporais pelo STF no controle de constitucionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 49-50.
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No primeiro sentido, o Appellentscheidung compõe a modalidade de
decisão mais comum na jurisprudência do Tribunal constitucional alemão.
Como exemplo dessa técnica de atribuição de efeitos Ana Paula Ávila aponta
a decisão do Bundesverfassungsgericht, de 22 de maio de 1963:12
Salientou-se, nesse acórdão, que a divisão dos distritos eleitorais, em razão da mudança considerável na estrutura demográfica das diversas unidades federadas, não
mais amparava os requisitos exigidos pelo principio de igualdade eleitoral (art.
38 da lei fundamental). O tribunal deixou de declarar a inconstitucionalidade,
baseada na justificação de que tal circunstância não era passível de verificação na
data da promulgação da lei, ou seja, em setembro de 1961. É que, se o Bundesverfassungsgericht declarasse a inconstitucionalidade da lei que regulava a divisão dos
distritos eleitorais, a invalidade das últimas eleições parlamentares haveria de ser
reconhecida, assim, na ilegalidade do próprio parlamento e do governo. Caso isso
ocorresse, não haveria órgão legítimo para promulgar uma nova lei estadual, uma
vez que a legislatura precedente já havia encerrado. Assim, por julgar a acefalia
legislativa e governamental uma violação ainda mais grave na lei Fundamental
como um todo, em vez de declarar inconstitucionalidade da referida lei, o Tribunal Constitucional deixou de afirmar a violação ao art.38 da lei Fundamental,
mas conclamou o legislador “a empreender as medidas necessárias à modificação
dos distritos eleitorais, com redução da discrepância existente para patamares toleráveis”. Essa manifestação do Tribunal foi acatada com o advento da lei de 14 de
fevereiro de 1964.
Esse raciocínio foi aplicado em caso semelhante, julgado pelo Supremo
Tribunal Federal, em voto da lavra do Ministro Gilmar Mendes.
No caso em tela, observa-se que eventual declaração de inconstitucionalidade com
efeitos ex tunc ocasionaria repercussões em todo o sistema vigente, atingindo decisões que foram tomadas em momento anterior ao pleito que resultou na atual
composição da Câmara Municipal. Fixação do número de vereadores, fixação do
número de candidatos, definição do quociente eleitoral. Igualmente, as decisões
tomadas posteriormente ao pleito também seriam atingidas, tal como a validade
da deliberação da Câmara Municipal nos diversos projetos e leis aprovadas. [...]
Não há dúvida, portanto, de que no presente caso e diante das considerações antes
esposadas, acompanho o voto do Relator, para conhecer do recurso extraordinário
e lhe dar parcial provimento, no sentido de se declarar a inconstitucionalidade
do parágrafo único do art. 6º da lei orgânica 222, de 31 de março de 1990, do
município de Mira Estrela-SP. Faço-o, todavia, explicitando que a declaração de
inconstitucionalidade da lei não afeta a composição da atual legislatura da Câmara
Municipal, cabendo ao legislativo municipal estabelecer nova disciplina sobre a
matéria, em tempo hábil para que se regule o próximo pleito eleitoral (declaração
de inconstitucionalidade pro futuro).13
12 Ibid., p. 50.
13 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE nº 197.917-8/SP. Relator: Min. Maurício Correia. Voto-vista, do Min. Gilmar Mendes, 06 de junho de 2002. p. 438 e 442. Disponível em: <http://redir.
stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=235847>. Acesso em: 25 fev. 2011.
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No segundo sentido aceito no Brasil, o dever geral de adequação, o qual
obriga o legislador a agir de forma protetora e construtiva na esfera dos direitos fundamentais, está sendo apontado pelo Tribunal como verdadeiro embasamento do dever geral de legislar, como bem defende Ana Paula Ávila:14
[...] o apelo ao legislador caracteriza-se pela constatação do inadimplemento de
dever constitucional de legislar, que decorre de disposição constitucional expressa,
ou resulta do denominado dever de proteção (Schutzpflicht), que impõe ao Estado
a obrigação de defesa e resguardo de determinados valores (vida, integridade física,
honra), especialmente contra ofensas praticadas por terceiros.
Sendo assim, a situação no Brasil é classificada, em linha de princípio,
como omissão de inconstitucionalidade, não sendo respaldada na jurisprudência nacional, que se tem apoiado na tese do legislador negativo.
Afirma, ainda, Ávila que:15
Segundo essa tese, não cabe ao Judiciário inovar na ordem jurídica, determinando
aquilo que o legislador não determinou, mas, tão somente, expurgar do ordenamento jurídico normas jurídicas incompatíveis com os preceitos constitucionais.
Com isso, não se reconhece, salvo em situações excepcionalíssimas, ao Poder Judiciário competência para a integração normativa ou para a determinação, com
cunho mandamental e sujeito à sanção, da obrigação de legislar para o Poder
Legislativo.
Mesmo na ordem constitucional alemã, a utilização do apelo ao legislador
não é vista de forma unânime. Ainda com base na análise de Ávila, tem-se que:16
De um lado, assevera-se que o Tribunal não possui apoio legal para pronunciar esse tipo
de decisão. De outro lado, o apelo ao legislador revela-se como meio de tentar contrabalançar,
através de decisão judicial, o saldo negativo verificado no processo de decisão parlamentar.
Portanto, a Appellentscheidung eximiria o legislador do encargo de consolidar a ordem fundamental. Além disso, argumenta-se que o tribunal constitucional não pode determinar, com
segurança e pontualmente, o momento da mudança de uma situação ainda constitucional
para uma situação de inconstitucionalidade.
Concernente à possibilidade de ausência provável de base legal para a
aplicação da Appellentscheidung, é sabido que não é matéria irrefutável, especialmente se se considerar “esta decisão como peculiar sentença de rejeição da
inconstitucionalidade”.17
14 ÁVILA, Ana Paula. A modulação dos efeitos temporais pelo STF no controle de constitucionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 51.
15 Ibid., p. 52.
16 ÁVILA, Ana Paula. A modulação dos efeitos temporais pelo STF no controle de constitucionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 53.
17 Ibid., p. 53.
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No Brasil, com o voto-vista do Min. Gilmar Mendes, no RE nº 196.9178/SP, observa-se que já foi enfrentada questão dessa ordem:
É inegável que a opção desenvolvida pelo Superior Tribunal Federal inspira-se
diretamente no uso que a Corte Constitucional alemã faz do “apelo ao legislador”,
especialmente nas situações imperfeitas ou no “processo de inconstitucionalidade”. Nessas hipóteses, avalia-se, igualmente que, tendo em vista razões de segurança jurídica, a supressão da norma poderá ser mais danosa para o sistema do que a
sua preservação temporária. Não há negar, ademais, que aceita a idéia da situação
ainda constitucional deverá o Tribunal, se tiver que declarar a inconstitucionalidade da norma, em outro momento, fazê-lo com eficácia restritiva ou limitada.
Em outros termos, o apelo ao legislador e a declaração de inconstitucionalidade
com efeitos limitados ou restritos estão muito próximos do prisma conceitual ou
ontológico. Essas considerações demonstram que razões de segurança jurídica podem revelar-se aptas a justificar a não-aplicação do principio da nulidade da lei
inconstitucional.18
Observa-se que o apelo para que se reforme uma situação ainda constitucional não obriga, juridicamente, o órgão legislativo a pôr em execução qualquer medida para superar as irregularidades. Da mesma forma ocorre quando
o Tribunal Constitucional une o apelo à parte dispositiva da decisão. Nesse
ponto, esclarece o ministro Gilmar Mendes que “a manifestação do processo
de inconstitucionalização há de ser considerada simples obter dictum”.
Percebe-se que o art. 27 da Lei nº 9.868/99 manteve disposição semelhante ao posicionamento preconizado no âmbito do Tribunal Alemão, buscando,
no aspecto temporal, a retroatividade dos efeitos ao momento da origem da
norma controlada, em consonância com a tradicional orientação da jurisprudência. Introduziu, assim, algumas situações excepcionais em que a abrangência temporal dos efeitos pode ser modificada pelo Supremo Tribunal Federal.
Determina o art. 27 que o Tribunal pode restringir os efeitos da decisão
(ex tunc parcial ou relativa), ou seja, estabelecer um termo inicial para a cassação de efeitos que seja posterior à publicação da norma e anterior à decisão
declaratória de inconstitucionalidade. Determina, também, que a norma só
produza efeitos a partir do trânsito em julgado (ex nunc) ou a partir de outro
momento que venha a ser indicado (efeito pro futuro), hipótese que introduz
situação semelhante à Appellentscheidung do direito constitucional alemão:
apesar de reconhecer a incompatibilidade da norma em face da constituição,
estabelece o Tribunal que ela permanecerá ainda vigente e eficaz por certo
período de tempo.
18 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE nº 197.917-8/SP. Relator: Min. Maurício Correia. Voto-vista, do Min. Gilmar Mendes, 06 de junho de 2002. p. 436-7. Disponível em: <http://redir.stf.
jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=235847>. Acesso em: 25 fev. 2011.
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No Brasil, há várias decisões proferidas pelo STF em que houve a modulação dos efeitos das decisões, com grande semelhança ao que acontece no
direito alemão. Afirma Ana Paula Ávila:19
A decisão que declara a inconstitucionalidade com termo inicial diferido para a
produção de efeitos, também chamada de decisão com efeito pro futuro, prevista
na Lei nº 9.868, tem nítida inspiração na Appellentscheidung, (decisão de apelo ao
legislador), no direito constitucional alemão.
Entretanto, não houve clareza o bastante nessas decisões para se identificar o parâmetro adotado pelo STF para a sua adoção. Justificou-se o posicionamento nelas adotado com o princípio da proporcionalidade, defendendo-se
a incidência do princípio constitucional da segurança jurídica, bem como da
supremacia do interesse social e de seus subprincípios em um determinado
caso concreto. Em outras palavras, efetuou-se um juízo de ponderação.
Ressalte-se que, além da ponderação central entre o princípio da nulidade e outro princípio constitucional, com a finalidade de definir a dimensão
básica da limitação, deverá a Corte fazer outras ponderações, tendo em vista a
repercussão da decisão. Pois a questão suscita algumas indagações, a exemplo
de quais seriam os efeitos da decisão ex nunc do STF, proferida em abstrato,
sobre as decisões já proferidas pelas instâncias afirmadoras da inconstitucionalidade com eficácia ex tunc.
A falta de fundamentação e de definição do parâmetro adotado pelo STF
na modulação das decisões é preocupante, pois essa técnica pode ser utilizada
para restringir direitos individuais, como afirma Daniel Marchaionatti Barbosa, em seu artigo “Quando o STF Opta pela Eficácia Prospectiva das Decisões
de Inconstitucionalidade”:
O mais preocupante é a utilização da técnica para restringir direitos individuais.
Os princípios do contraditório, do Juiz natural, e da inafastabilidade da jurisdição
não recomendam a utilização da técnica da modulação temporal de efeitos para
essa finalidade.20
No caso da Progressão de Regime nos crimes hediondos, apresenta-se um
alerta, no tocante à restrição de direitos individuais, pois se reconhecem atos
normativos como inconstitucionais, mas se preservam os efeitos deles, como
indicado no HC 82959/SP, cuja decisão assim dispõe:21
19 ÁVILA, Ana Paula. A modulação dos efeitos temporais pelo STF no controle de constitucionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 49.
20 BARBOSA, Daniel Marchaionatti. Quando o STF opta pela eficácia prospectiva das decisões de inconstitucionalidade. In: Revista CEJ, nº43, Ano XII, p. 4-11., dez. 2008. p. 10.
21 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC nº 82959/SP. Relator: Min. Marco Aurélio. Jul.
23 fev. de 2006. p. 510. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.
jsp?docTP=AC&docID=79206>. Acesso em: 25 fev. 2011.
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Decisão: O Tribunal, por maioria, deferiu o pedido de habeas corpus e declarou
“incidenter tantum”, a inconstitucionalidade do § 1º do artigo 2º da Lei nº 8.072,
de 25 de julho de 1990, nos termos do voto do relator, vencidos os Senhores Ministros Carlos Velloso, Joaquim Barbosa, Ellen Gracie, Celso de Mello e Presidente (Ministro Nelson Jobim). O Tribunal, por votação unânime, explicitou que
a declaração incidental de inconstitucionalidade do preceito legal em questão não gerará conseqüências jurídicas com relação às penas já extintas nesta
data, pois esta decisão plenária envolve, unicamente, o afastamento do óbice
representado pela norma ora declarada inconstitucional, sem prejuízo da apreciação, caso a caso, pelo magistrado competente, dos demais requisitos pertinentes
ao reconhecimento da possibilidade de progressão. Votou o Presidente. Plenário,
23.02.2006. (grifos nossos)
Sobre o tema, vale observar que, no caso de restrição de direitos individuais em modulação de efeitos das decisões no controle de inconstitucionalidade,
o Tribunal decide, abstratamente, sobre direitos individuais lesionados, dando
margem a outras violações, como ao direito fundamental ao acesso à justiça,
tendo em vista que os princípios do contraditório, do juiz natural e da inafastabilidade da jurisdição não recomendam a utilização da técnica da modulação
dos efeitos com essa finalidade. Sobre o assunto, pronunciou-se Daniel Marchionatti, parafraseando Ruy Barbosa e refletindo sobre suas elucubrações:
Ruy Barbosa demonstrou, em 1893, que atos inconstitucionais que violam direitos individuais ensejam reparação do prejuízo e que nem mesmo períodos de crise
da normalidade constitucional, como o estado de sítio, permitem a escusa a tal
responsabilidade. Para o Poder Judiciário, guardião da Constituição e dos direitos
individuais, conhecer dos pedidos e determinar a reparação corresponde não só a
um direito legal, como a um dever inevitável (BARBOSA, 1893, p. 87). Passados
mais de cem anos, a Suprema Corte parece olvidar a antiga lição, ao suprimir a
competência das instâncias ordinárias para conhecer pedidos de reparação.22
Embora o STF descreva o “processo decisório como uma ponderação”,
não foram claramente demonstrados os critérios de avaliação dos princípios
em conflito para se chegar a uma decisão de prevalência da modulação dos
efeitos das decisões. Uma das defensoras da modulação de efeitos temporais,
Ana Paula Ávila, assim descreveu a sua preocupação em relação à descabida
falta de critérios dos intérpretes das normas jurídicas:23
Se a decisão em torno de uma questão jurídica exige que se realize um juízo de
valoração – ou uma ponderação entre distintos valores, interesses ou bens -, é
necessário se examinarem os critérios pelos quais o interprete pode orientar sua
decisão. Do contrário, ele será inevitavelmente inspirado pelo seu sentimento subjetivo ou pela sua opinião. [...]
22 BARBOSA, Daniel Marchaionatti. Op cit. p. 10-11.
23 ÁVILA, Ana Paula. A modulação dos efeitos temporais pelo STF no controle de constitucionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 79.
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Não basta realizar ponderações, faz-se necessário que estas, ao serem realizadas, determinem uma correta valoração e definição constitucional dos
direitos presentes na questão. Como afirma a ilustre professora Ana Paula
Ávila24, “surgem, inclusive, precedentes considerando que a omissão ou mau
uso do procedimento de ponderação implica a própria violação do direito
correspondente”, daí a importância de se identificar, selecionar e valorar cada
tipo de argumento.
O Tribunal jamais mencionou, mas é possível afirmar que os princípios
em ponderação não têm o mesmo peso. Como assevera Daniel Marchionatti
Barbosa,25 “o peso do princípio da nulidade é, abstratamente, maior que o dos
princípios a ele confrontados - segurança jurídica ou outro excepcional interesse social. A percepção dessa diferença de peso abstrato decorre da análise de
elementos internos e externos à ponderação”.
Ao se analisar a própria estrutura de ponderação, o peso abstrato maior
do princípio é a declaração de que a nulidade terá efeitos ex tunc. Com isso, o
ônus argumentativo recai sabre a proposta de modulação de efeitos da decisão.
Para a fixação de nulidades, anulabilidade e regime jurídico, deve ser
observada a sua compatibilidade em face da Constituição. É bastante importante o regime legal das invalidades no que diz respeito à atribuição de
efeitos aos atos inválidos. Importa também perceber que essa possibilidade de
determinação dos efeitos do controle abstrato de constitucionalidade que está
na natureza do dispositivo no art. 27 da Lei nº 9.868/99 estabelece formas de
manutenção dos efeitos na hipótese de reconhecimento de uma invalidade.
Quanto às situações em que é admitida a eficácia prospectiva das decisões
de inconstitucionalidade, afirmou Daniel Marchionatti Barbosa que:
De outra parte, não é qualquer ameaça à segurança jurídica ou a interesse social
que admite a opção pela eficácia prospectiva. De alguma forma, toda declaração
de inconstitucionalidade afronta a segurança jurídica ou outro interesse social, e
apenas excepcionalmente a eficácia ex nunc é observada. Isso permite concluir que
a ameaça à segurança jurídica ou a outro interesse social deve ser “excepcional”, ou
seja, além do comum.26
O maior problema se localiza nesse ponto, uma vez que a referência a conceitos como “segurança jurídica” e “interesse social”, os quais são eminentemente indeterminados, torna indeterminado o próprio alcance da técnica em análi24 Ibid., p. 93.
25 BARBOSA, Daniel Marchaionatti. Quando o STF opta pela eficácia prospectiva das decisões de
inconstitucionalidade. In: Revista CEJ, nº43, Ano XII, p. 4-11., dez. 2008. p. 7.
26 Ibid., p. 7.
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se, permitindo ao STF margem de interpretação elástica demais, referindo-se à
definição do que, no caso concreto, atenda aos referidos conceitos. Teme-se que
o art. 27 venha a permitir abusos, pondo em risco a segurança do indivíduo e
do ordenamento jurídico. Grande parte da doutrina considera a norma inconstitucional por romper com a nulidade da norma inconstitucional.
Sabe-se que postergar o início dos efeitos das decisões que efetivamente
declaram uma norma inconstitucional não é novidade no Direito comparado,
desde que seja feito com limite de tempo, porém, o STF recebeu do legislador
a autorização para modular os efeitos das decisões sem fixação de prazo para
a sua realização.
A própria constitucionalidade do art. 27 da Lei nº 9.868/99 foi questionada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, por meio da
ADI nº 2258-0. A referida ação, ajuizada em 2000, ainda está em trâmite e
pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal. A arguição da OAB
é fundamentada na preservação da supremacia da Constituição, haja vista a
concepção de nulidade da norma inconstitucional.
Tendo em vista a preservação da supremacia constitucional, o STF acaba por instaurar um poder político-jurídico que salta aos olhos em recentes
decisões. Trata-se, segundo Gilmar Ferreira Mendes, da chamada “dimensão
política da jurisdição constitucional”, pairando sobre a reflexão quanto ao
método das decisões proferidas pelo Supremo, ao serem utilizadas reiteradamente prerrogativas essencialmente políticas.
Conclusão
Diante dessas considerações, podem ser inferidas diversas premissas acerca da possibilidade da modulação dos efeitos das decisões que decretam a
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo.
Observou-se que, no Brasil, a regra é que a nulidade não produza efeitos,
ou seja, que a declaração de nulidade tenha efeitos retroativos. Diante disso,
a norma ou o ato declarado inconstitucional, a princípio, não teria o condão
de haver gerado efeitos, uma vez que a inconstitucionalidade teria viciado tal
norma ou ato desde a sua origem.
Entretanto, tem-se observado uma flexibilização dessa situação, haja vista a norma disposta no art. 27 da Lei nº 9.868/99, a qual prevê a possibilidade
da modulação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade emanada do
STF, de modo a possibilitar a adoção de efeitos ex nunc ou até mesmo pro
futuro (eficácia prospectiva).
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Isso, no entanto, só seria possível em casos excepcionais, por razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social. Nesses casos, a retroatividade
da decisão de inconstitucionalidade teria o condão de ocasionar repercussões
mais gravosas que a manutenção da norma ou do ato impugnado.
Essa flexibilização sofre influência do direito externo, como o austríaco e o alemão. A semelhança em relação a este reside, sobretudo, no
“apelo ao legislador” (Appellentscheidung). No Brasil, há diversos casos de
modulação dos efeitos em decisões em controle difuso, como no caso do
município Mira Estrela (RE 197.917-8). Em decisões desse tipo, verificou-se, em alguns casos, a utilização da Teoria da Transcendência dos Motivos
Determinantes.
Quanto aos parâmetros adotados na utilização da modulação dos efeitos,
verificou-se que é efetuado um juízo de ponderação, no qual são sopesados o
princípio da nulidade e a segurança jurídica e o excepcional interesse social,
analisando-se, ainda, as peculiaridades do caso concreto. Aplica-se o princípio
da proporcionalidade, realizando-se um estudo sobre o que seria mais prejudicial: a manutenção, até então ou até momento posterior, dos efeitos da norma
ou ato impugnado; ou a retirada de todos os efeitos gerados desde sua origem,
porquanto nulos.
O problema reside no fato de os conceitos de “segurança jurídica” e “excepcional interesse social” serem indeterminados, o que acaba prejudicando o
aferimento dos critérios utilizados em decisões de inconstitucionalidade para
fundamentar a modulação de seus efeitos. Isso gera certa preocupação, haja
vista que dá larga margem de interpretação ao Tribunal, o que favorece a
ocorrência de arbitrariedades e pode ocasionar sérios prejuízos na hipótese
de restrição de direitos fundamentais, bem como acaba por ir de encontro ao
interesse da sociedade, em vez de defendê-lo. Foi o que ocorreu no caso dos
crimes hediondos, em que se reconheceu a inconstitucionalidade da norma,
porém, com efeito pro futuro, gerando uma sensação de impunidade relativa
aos casos por ela feridos.
A matéria ainda é alvo de muitas discussões. Questiona-se, por exemplo,
a possibilidade de a restrição dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade com base na teoria da anulabilidade ser admitida também no controle difuso ou incidental, sem que haja lei que a preveja. A construção jurisprudencial ainda está sendo realizada, ressaltando-se que a matéria envolve conteúdo
principiológico de suma relevância.
Dessa forma, a relativização da tradicional doutrina da nulidade da norma inconstitucional, adotada no Brasil por influência do sistema judicial nor105
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te-americano, estaria trazendo certa instabilidade e insegurança em relação a
situações nulas de pleno direito. Tornar anulável o ato nulo, em alguns casos,
faz com que a insegurança se instaure no ordenamento brasileiro, levando-se
ainda em consideração quando o STF faz essa modulação no controle difuso,
que, de modo ainda mais grave, pode ferir direitos individuais sem que se
possa ir ao Judiciário para fins de reparação daquele direito violado.
Com base nisso, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
impetrou a ADI nº 2258-0, que questiona a constitucionalidade do art. 27 da
Lei nº 9.868/99. A argumentação se foca na supremacia da Constituição, tendo em vista a concepção de nulidade da norma. Assim, conforme o defendido
na referida ação, se uma norma é inconstitucional, é nula, razão pela qual não
gera efeitos. Essa ADI, no entanto, ainda se encontra em trâmite, pendente
de julgamento. Até sua resolução, a norma impugnada é considerada válida e
em vigor.
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Referências
ÁVILA, Ana Paula. A modulação dos efeitos temporais pelo STF no controle de constitucionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
BARBOSA, Daniel Marchaionatti. Quando o STF opta pela eficácia prospectiva das decisões de inconstitucionalidade. In: Revista CEJ, nº43, Ano XII, p. 4-11, dez. 2008.
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Cautelar nº 189 de São Paulo, Relator Min.Gilmar Mendes, julgado em 06/04/2004, publicado em DJ 15/04/2004, PP-00014. Disponível em: <http://www.
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______. Supremo Tribunal Federal. RE nº 197.917-8/SP. Relator: Min. Maurício Correia. Voto-vista,
do Min. Gilmar Mendes, 06 de junho de 2002. p. 436-7. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=235847>. Acesso em: 25 fev. 2011.
______. Supremo Tribunal Federal. HC nº 82959/SP. Relator: Min. Marco Aurélio. Jul.
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FERREIRA, Carlos Wagner Dias. Modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade no
controle difuso. Revista Esmafe: Escola de Magistratura Federal da 5ª Região, Recife, n. 12, p. 155178, mar. 2007. Disponível em: <http://bdjur.stj.jus.br/ dspace/handle/2011/27784>. Acesso em: 22
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KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1985.
MONTEZ, Marcus Vinícius Lopes. A abstrativização do controle difuso de constitucionalidade.
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MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2006.
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NORMAS CONSTITUCIONAIS COMO INFLUXO DA
INTERPRETAÇÃO E DA APLICAÇÃO DAS NORMAS
DO PROCESSO ADMINISTRATIVO-DISCIPLINAR1
Rafael Bezerra Cardoso2*
RESUMO: O presente estudo teve como fato gerador a perplexidade inicial causada pela
constatação de que não existe uma legislação uniforme a tratar do processo administrativo-disciplinar no Brasil. Entretanto, o espanto inicial vai sendo superado a partir da constatação
da existência de um núcleo comum das normas reguladoras do fenômeno processo, fato
verificado em razão da unidade do Direito. Essa construção teórica possibilita um estudo
sistemático da normatização do processo administrativo-disciplinar, regido, principalmente,
pelos princípios da disciplina reguladora difusa e do informalismo, situação a ensejar a necessidade de uma interpretação e aplicação da referida legislação em harmonia com os princípios
constitucionais, em especial das normas corolárias da dignidade da pessoa humana e da cláusula do devido processo legal. Assim, é possível afirmar a existência de uma Teoria Geral do
Processo, cujo núcleo comum das normas disciplinadoras desse fenômeno jurídico possibilita
a utilização de atos prescritos em um determinado diploma legal, desde que compatíveis, em
outro ramo do direito processual, onde não há previsão formal para a materialização jurídica
do referido ato.
Palavras-chave: Hermenêutica. Processo Administrativo-Disciplinar. Dignidade da Pessoa
Humana. Devido Processo Legal.
Introdução
O Direito Administrativo não tem suas normas unificadas em uma única lei, como se observa, por exemplo, no Direito Penal e no Civil, cujos
códigos são leis nacionais, aplicáveis à União, Estados e Distrito Federal e
Municípios. As normas administrativas encontram-se em legislação esparsa
das referidas pessoas federativas, situação que dificulta o estudo sistematizado
1
2
Trabalho desenvolvido sob a orientação da prof.
. titulação, apresentado à coord. do
Curso de ESPE em Direito Const. da ESMEC como reuisito parcial para a obtenção de especialista
em Dir. Const.
Delegado de Polícia Civil do Estado do Ceará, Orientador da Célula de Processo Administrativo-Disciplinar Civil da Controladoria-Geral de Disciplina dos Órgãos da Segurança Pública e Sistema
Penitenciário do Estado do Ceará, Especialista em Direito Público – UFC, Especialista em Direito Processo Penal – UNIFOR, Especialista em Direito Penal e Direito Processo Penal – ESMP/
UECE, Pós-Graduando em Direito Constitucional – ESMEC, Mestrando em Planejamento e Políticas Públicas – UECE. E-mail:
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da disciplina, em razão de várias leis federais, estaduais e municipais tratarem
do mesmo tema.
O processo administrativo-disciplinar, a exemplo do Direito Administrativo, ramo do Direito com o que possui íntimo contato, em razão de seu caráter instrumental em relação àquele, também é regido por uma legislação esparsa, onde cada ente da federação tem uma lei disciplinando determinado tema.
Isso decorre da autonomia político-administrativa da União, dos Estados e Distrito Federal e dos Municípios, em poderem legislar sobre a formação de suas organizações administrativas, conforme autoriza o art. 18 da
Constituição Federal, nada qual se incluem os regimes jurídicos dos servidores
públicos. Além do mais, existe a possibilidade das referidas pessoas jurídicas
legislarem concorrentemente sobre procedimentos em matéria processual, de
acordo com o art. 24, XI, da Constituição Federal.
Não há dúvida que essa autonomia dificulta o conhecimento sistemático
do processo administrativo-disciplinar, em razão da grande produção legislativa. Mesmo nos entes federativos é comum a não-unificação das normas
regentes do processo administrativo-disciplinar em um só diploma legal, pois
não é difícil encontrar diversos estatutos de órgãos da administração direta
contendo normas que tratam de procedimentos cuja finalidade é apurar cometimento de possível transgressão disciplinar.
A partir dessa evidência, desenvolveu-se o presente artigo, que objetiva
analisar as normas constitucionais aplicáveis a todos os ramos do processo,
como o fim de investigar a possibilidade, em razão da existência de um núcleo
comum de normas disciplinadoras do fenômeno processo, de se preencher
possíveis lacunas da legislação que regem o processo administrativo-disciplinar, com auxílio, por exemplo, das normas processuais penais, através de uma
hermenêutica totalizante, no sentido de compatibilizar e harmonizar os subsistemas processuais (penal e administrativo, por exemplo), com um sistema
maior ao qual estão inseridos, qual seja, o ordenamento jurídico.
Este trabalho terá o método de estudo descritivo, no que diz respeito
à observação, descrição, explicação e identificação dos fatores determinantes
ou indutores do fenômeno da interpretação e aplicação do processo administrativo-disciplinar, em face dos princípios que regem o processo em geral,
oriundos da Constituição Federal de 1988.
O método de pesquisa utilizado será o indutivo, uma vez que parte do
fenômeno particular identificado empiricamente como o princípio da disciplina reguladora difusa das normas que regem o processo administrativo-disciplinar. Este fato dificulta a interpretação e aplicação dessa legislação,
objetivando chegar a uma conclusão, no sentido de identificar os princípios
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constitucionais que regem o processo em geral, cuja incidência dos seus ditames no processo administrativo-disciplinar é capaz de induzir a uniformização da interpretação e aplicação das normas desse ramo do Direito.
1
Breves considerações em torno do constitucionalismo brasileiro
de 1988
O Estado de Direito “[...] é o Estado racional que, após evolução, surgiu superando as quatro espécies anteriores: Estado patriarcal, patrimonial,
teocrático e despótico”3. Os direitos de liberdade, frutos da doutrina liberal
clássica, são a pedra de toque do Estado de Direito nascente. São os denominados direitos fundamentais de primeira dimensão, pela qual é valorizado,
em primeiro lugar, “o homem-singular, o homem das liberdades abstratas, o
homem da sociedade mecanicista que compõe a chamada sociedade civil”, define Bonavides4. Esse modelo representou um enorme avanço para a história
da humanidade, pois transformou súditos em cidadãos, onde o poder não se
concentrava mais em pessoas, mas na lei, fazendo, assim, “o direito da força
ceder à força do Direito”, observa Bonavides5.
O Estado de Direito poderá ser caracterizado, em sua essência, “como
aquele Estado submetido ao direito, aquele Estado cujo poder e atividade
estão regulados e controlados pela lei, entendendo-se direito e lei, nesse contexto, como expressão da vontade geral”6 .
No entanto, os ditames do Estado de Direito Liberal são insuficientes
para atender às demandas contemporâneas, pois, como bem observa Bonavides7, “o Direito Constitucional clássico, tão valioso durante o século passado por cimentar o valor político da liberdade, seria hoje em sua dimensão
exclusivamente e unilateral uma espécie de artefato pré-histórico, inútil, sem
préstimos para os combates sociais da atualidade”.
A multiplicação dos direitos após a Segunda Guerra Mundial acelerou
o processo de desgaste do modelo de Estado de Direito Liberal, onde a mera
igualdade formal não é mais suficiente para atender à demanda crescente da
universalização dos direitos sociais, pois, como ressalta Bobbio8,
3
4
5
6
7
8
VERDÚ, Pablo Lucas. A luta pelo estado de direito. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 22.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 40.
BONAVIDES, Paulo. Teoria do estado. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 40.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet.
Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 198.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 372.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 9. ed. Rio Janeiro: Elsevier, 2004. p. 65.
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[...] essa universalidade (ou indistinção, ou não-discriminação) na atribuição e
no eventual gozo dos direitos de liberdade não vale para os direitos sociais, e nem
mesmo para os direitos políticos, diante dos quais os indivíduos são iguais só genericamente, mas não especificamente”.
O modelo de Estado Constitucional sofreu modificações ao longo dos
tempos, ostentando três modalidades distintas, onde, segundo Bonavides9, “a
primeira é o Estado constitucional da separação dos poderes (Estado Liberal),
a segunda, o Estado constitucional dos direitos fundamentais (Estado Social),
a terceira, o Estado constitucional da Democracia participativa (Estado Democrático-Participativo)”. Na realidade, cada um desses modelos representa
uma conquista, pois, segundo Verdú,
[...] cada uma dessas espécies foi estabelecida ou foi objeto contra estruturas de
poder contrárias: o Estado Liberal de Direito em relação ao Antigo Regime; o
Estado Social de Direito contra o individualismo e absenteísmo do Estado Liberal; o Estado de Direito, que forceja com as estruturas sociopolíticas do modelo
anterior: resquícios individualistas, neocapitalista opressor, sistema estabelecido
privilegiado.10
Mendes, Coelho e Branco fazem a seguinte consideração, ao elencar as
exigências fundamentais inerentes ao Estado de Direito contemporâneo:
Por isso, quando hoje em dia se fala em Estado de direito, o que se está a indicar,
com essa expressão, não é qualquer Estado ou qualquer ordem jurídica, mas apenas
aquele Estado ou aquela ordem jurídica em que se vive sob o primado do Direito,
entendido este como um sistema de normas democraticamente estabelecidas e que
atendam, pelos menos, as seguintes exigências fundamentais: a) império da lei,
lei como expressão da vontade geral; b) divisão dos poderes: legislativo, executivo
e judicial; c) legalidade da administração: atuação segundo a lei, com suficiente
controle judicial; e d) direitos e liberdades fundamentais: garantia jurídico-formal
e efetiva realização material (grifo do autor). 11
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, editada pela Organização das Nações Unidas em 1948, é, sem sombra de dúvida, um marco fundamental para caracterizar o atual modelo de Estado de Direito, onde uma nova
fórmula política é adotada, denominada de Estado Democrático de Direito.
Dalari12, ao discorrer a respeito do significado do constitucionalismo no século XXI, assevera que:
9 BONAVIDES, Paulo. Teoria do estado. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 41.
10 VERDÚ, Pablo Lucas. A luta pelo estado de direito. Rio de Janeiro: 2007. p. 137.
11 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet.
Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 199.
12 DALLARI, Dalmo de Abreu. A constituição na vida dos povos: da idade média ao século XXI.
São Paulo: Saraiva, 2010. p. 284.
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Um dado de fundamental importância para a compreensão do significado do
constitucionalismo no século XXI é a relação estreita entre a Constituição e as Declarações de Direitos, ambas fazendo a ligação política com o Direito e sendo reciprocamente complementares. Com efeito, as Declarações de Direitos apontam os
rumos fundamentais da Constituição, e esta é extraordinária importância para dar
eficácia jurídica ao conteúdo das Declarações, tornando justificável tal conteúdo.
O Brasil adota a fórmula política de Estado Democrático de Direito apenas em 1988, após mais de vinte anos de ditadura militar. Sua estrutura difere
das anteriores, por adotar a concepção de Estado de Direito, embasada no
princípio da constitucionalidade, onde o respeito aos direitos fundamentais é
o centro de gravidade da ordem jurídica.
A concepção de Estado de Direito liberal centrado na lei, na legalidade,
da ordem jurídica anterior, é substituída pelo Estado de Direito Constitucional. O novo ordenamento jurídico, inaugurado com a promulgação da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, impõe ao ente estatal, como limite
de sua atuação, não só o princípio da legalidade, mas, sobretudo, o respeito à
dignidade da pessoa humana. Magalhães Filho ressalta que “as bases do Estado Democrático de Direito são a soberania do povo, expressa na manifestação
da vontade popular, e a dignidade humana, consagrada na enunciação dos
direitos fundamentais.”13
Percebe-se que o positivismo, que tem como características básicas, segundo Barroso14, a aproximação plena entre Direito e norma, na afirmação de
que o Direito emana do ente estatal, a completude do ordenamento jurídico
e no formalismo legal, é insuficiente para atender às necessidades contemporâneas da humanidade que emergiram após a Segunda Guerra Mundial.
Sua decadência, “[...] é emblematicamente associada à derrota do fascismo
na Itália e do nazismo na Alemanha. Esses movimentos políticos e militares
ascenderam ao poder dentro do quadro de legalidade vigente e promoveram
a barbárie em nome da lei”15.
De fato, os horrores praticados pelos mencionados regimes totalitários
causaram indignação e uma perplexidade profunda na humanidade, especialmente a descoberta, no final da Segunda Grande Guerra, dos campos de concentração, onde cerca de seis milhões de seres humanos foram exterminados,
13 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição.
3. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004. p. 104.
14 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma
dogmática constitucional transformadora. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 323.
15 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma
dogmática constitucional transformadora. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 325.
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sob o argumento de pertencerem, segundo a ótica nazista, a “raças inferiores”,
a exemplo dos judeus e dos ciganos, tendo como fundamentação legal, para o
cometimento de tais atrocidades, os ditames do ordenamento jurídico alemão,
formatado nos parâmetros do positivismo clássico, cujo conteúdo ideológico
reproduzia os ideais do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães,
popularmente conhecido como Partido Nazista, capitaneado por Adolf Hitler.
Esse novo constitucionalismo é denominado de neoconstitucionalismo,
apresentando características metodológico-formais e materiais peculiares, que
assim são delimitadas por Barcelos:
O constitucionalismo atual opera sobre três premissas metodológico-formais fundamentais (a normatividade, a superioridade e a centralidade da Constituição) e
pretende concretizá-las elaborando técnicas jurídicas que possam se utilizadas no
dia-a-dia da aplicação do Direito. Quanto às características materiais, ao menos
dois elementos merecem nota: (i) a incorporação explicita de valores e opção política nos textos constitucionais relacionados com a dignidade da pessoa humana e
os direitos fundamentais; e (ii) a expansão de conflitos entre opções normativas e
filosóficas existentes dentro do próprio sistema constitucional16.
Com o neoconstitucionalismo, surge o neopositivismo ou pós-positivismo, como um desdobramento filosófico daquele, caracterizado pela superação
do jusnaturalismo e positivismo. De acordo com Barroso, “o pós-positivismo
é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem
a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada
nova hermenêutica e a teoria dos direitos fundamentais17” (grifo do autor).
No neopositivismo, ou contrário do positivismo centrado no legalismo,
há o reconhecimento da normatividade dos princípios, cujos conteúdos são
os valores fundamentais do sistema normativo, responsáveis por sua unidade
formal e material. Nele as normas jurídicas são o gênero do quais são espécies
as regras e os princípios, conforme explica Alexy18, pois, segundo sua construção teórica:
Tanto regra quanto princípios são normas, porque ambos dizem o que se deve ser.
Ambos podem ser formulados por meio das expressões diatônicas básicas do deve
ser, da permissão e da proibição. Princípios são, tanto quanto as regras, razões para
juízos concretos de deve ser, ainda que de espécies muito diferente. A distinção
entre regra e princípios é, portanto, uma distinção entre duas espécies normativas.
16 BARCELOS apud CAMARGO, Marcelo Novelino (Org.). Leituras complementares de direito constitucional: direitos fundamentais. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2007. p. 65.
17 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 325.
18 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 87
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As regras suscitam o problema da validade, ao passo que os princípios,
além da validade, o da questão da importância ou valor. Aquelas devem ser
aplicadas na exata medida de sua prescrição. Na apreciação do caso concreto,
havendo conflito entre regras, uma será, necessariamente, excluída ou abandonada. Dessa forma, “todo conflito entre duas regras cujas conseqüências
jurídicas, para o mesmo ato ou fato, sejam incompatíveis, deve ser resolvido
no plano da validade. Sempre que há conflito entre regras, há alguma forma
de declaração de invalidade”, explica Silva19.
No que se refere à aplicação dos princípios, há uma substancial diferença,
em razão de terem como conteúdo valores, devendo ser empregados com a
devida graduação, quando utilizados para regular determinado caso concreto.
Os princípios, na realidade, são mandamentos de otimização, isto é, normas
que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das
alternativas jurídicas e reais existentes.
Na realidade, “o que ocorre é que um dos princípios tem precedência
em face do outro sob determinada condição. Sob outras condições a questão
da precedência pode ser resolvida de forma oposta”. Observa-se, assim, que, a
distinção entre as duas espécies normativas é qualitativa e não de grau20.
A normatização dos princípios é incorporada pelo ordenamento jurídico brasileiro, instituído a partir da promulgação da Constituição Federal de
1988. Adota-se o princípio da constitucionalidade, onde o centro de gravidade da nova ordem jurídica é o respeito à dignidade da pessoa humana, que é
conceituada por Sarlet, como sendo:
[...] a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz
merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais
que assegura a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e
desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para a
vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa eco-responsável
nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres
que integram a rede de vida21.
Fazendo uma comparação com as Constituições anteriores, percebe-se a
nítida intenção do legislador constituinte, ao elaborar a atual, na preocupação
com o ser humano, pois, ao contrário das antecessoras, aquela, logo no Título
19 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. Ed.
São Paulo: Malheiros, 2010. p. 49.
20 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 93 e 91.
21 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Adovogado, 2011. p. 73
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II, trata dos Direitos e Garantias Fundamentais, “dimensões da dignidade
da pessoa humana, a qual é, por isso mesmo, o suporte de todos eles”22, ao
contrário, por exemplo, da Constituição Federal de 1967, que disciplinava a
matéria no seu art. 150.
Essa imposição distingue o atual Estado brasileiro do anterior, por cultuar a Constituição, enfatizando o princípio da constitucionalidade e o pleno
reconhecimento da normatividade dos princípios consagradores dos direitos
fundamentais, tendo, inclusive, as normas definidoras destes, aplicação imediata, conforme assevera o art. 5º, § 1º, da Constituição Federal de 1988. O
respeito à dignidade da pessoa humana é o ponto de partida para a criação,
interpretação e aplicação do Direito. Essa constatação decorre do fato de a
República Federativa do Brasil, constituída em um Estado Democrático de
Direito, tê-la como um de seus fundamentos, como reza o seu artigo 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988.
Nesse contexto, surge, como desdobramento natural do neoconstitucionalismo, o neoprocessualismo, tendo como objetivo resguardar o direito fundamental à ordem jurídica justa, o direito fundamental ao processo justo e a
visão publicista do processo. O processo não é mais instrumento meramente
formal, tendo a importante função de dar efetividade aos direitos fundamentais. Assim, o acesso à justiça, segundo Cambi,
[...] não se limita apenas à mera admissão ao processo ou à possibilidade de ingresso
em juízo, mas, ao contrário, essa expressão deve ser interpretada extensivamente,
compreendendo a noção ampla do acesso à ordem jurídica justa, que abrange: i) o
ingresso em juízo; ii) a observância das garantias compreendidas na cláusula do devido processo legal; iii) a participação dialética na formação do convencimento do
juiz, que irá julgar a causa (efetividade do contraditório); iv) a adequada e tempestiva análise, pelo juiz, natural e imparcial, das questões discutidas no processo (decisão justa e motivada); v) a construção de técnicas processuais adequadas à tutela
dos direitos materiais (instrumentalidade do processo, efetividade dos direitos)23.
A cláusula do devido processo legal é pedra de toque do neoprocessualimo, cuja função é resguardar a dignidade da pessoa humana dos litigantes
em processo judicial ou administrativo. Sua origem remonta à Magna Carta
Inglesa de 1215, onde era inicialmente denominada de “Lei da Terra”, consagrando-se o termo pelo qual hoje é conhecido somente em 1354, através
22 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição.
3. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004. p. 208.
23 Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia: Homenagem ao Professor Luiz de Pinho Pedreira. Salvador – Bahia: Universidade Federal da Bahia, n. 17,
2008. p. 133.
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de uma lei britânica instituída no reinado de Eduardo III, de acordo com
Nery Junior24.
Referido princípio possui um sentido genérico, material e processual,
na lição de Nery Junior25. O primeiro é caracterizado pelo trinômio vida-liberdade-propriedade, onde sua função é resguardar os bens da vida em seu
sentido mais amplo e genérico. O segundo é identificado como garantia ao
direito material, cuja função é projetá-lo por intermédio do processo judicial e administrativo. Por fim, o terceiro tem incidência no conteúdo estritamente processual, incumbido de amparar os litigantes em processo em geral.
A cláusula do devido processo legal é a fonte da qual emanam os demais
princípios do processo em geral, a exemplo do contraditório, da ampla defesa
e da presunção de inocência, razão pela qual Nery Junior26, ao discorrer a
respeito do devido processo legal em sentido processual, afirma que:
Bastaria a Constituição Federal de 1988 ter enunciado o princípio do devido processo legal, e o caput e os incisos do art. 5º, em sua grande maioria, seriam absolutamente despiciendos. De todo modo, a explicitação das garantias fundamentais
derivadas do devido processo legal, como preceitos desdobrados nos incisos da CF
5.º, é uma forma de enfatizar a importância dessas garantias, norteando a administração pública, o legislativo e o judiciário para que possam aplicar a cláusula
sem maiores indagações.
No mesmo sentido, posiciona-se Machado, ao afirmar ser o devido processo legal fundante, após comentar sobre o fato de os princípios do contraditório, da ampla defesa, da presunção de inocência do processo acusatório, da
fundamentação, do juiz natural e da justa causa decorrerem todos da cláusula
histórica do devido processo legal, insculpida no art. 5º, LIV, da Constituição
Federal de 1988 (“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o
devido processo legal”), quando assim se manifesta:
Esses são, por assim dizer, os princípios que integram o devido processo legal, com
caráter fundante, e cuja observância é condição sine qua non para a instauração
e o desenvolvimento do processo válido. O desrespeito a eles significa processo
nulo ou mesmo inexistência de processo. Daí o caráter absoluto desses princípios,
verdadeiras garantias fundamentais, daquelas que não podem ser afastadas e nem
comportam qualquer espécie de exceção, sob pena de ser provocar o desmoronamento do sistema processual27.
A respeito dos aspectos substantivos e processuais do devido processo pe24 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal. 10. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2010, p. 80.
25 Ibidem, p. 81, 83 e 86.
26 Ibidem, p. 87.
27 MACHADO, Antônio Alberto. Teoria Geral do Processo Penal. São Paulo: Atlas, 1992, p. 159.
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nal, assim se manifestou o Min. Carlos Velloso, quando foi o relator da ADI
511 – MC, julgamento em 16-10-1996, Plenário, DJ de 6-6-2003:
Abrindo o debate, deixo expresso que a Constituição de 1988 consagra o devido
processo legal nos seus dois aspectos, substantivo e processual, nos incisos LIV e
LV do art. 5º, respectivamente. (...) Due process of law, com conteúdo substantivo
– substantive due process – constitui limite ao Legislativo, no sentido de que as leis
devem ser elaboradas com justiça, devem ser dotadas de razoabilidade (reasonableness) e de racionalidade (rationality), devem guardar, segundo W. Holmes, um real
e substancial nexo com o objetivo que se quer atingir. Paralelamente, due process
of law, com caráter processual – procedural due process – garante às pessoas um
procedimento judicial justo, com direito de defesa.
Assim, o processo passa ser eminentemente público, distanciando-se de
sua conotação privatista, em decorrência do fenômeno da descodificação,
onde, antes da constitucionalização dos direitos e garantias processuais, os
códigos de processo eram o centro do sistema processual.
2
Normatização do processo administrativo-disciplinar
ordenamento jurídico de 1988
no
O Direito Administrativo não tem suas normas unificadas em uma única
lei, como se observa, por exemplo, nos Direitos Penal e Civil, cujos códigos
são leis nacionais, aplicáveis à União, Estados e Distrito Federal e Municípios.
Aquelas, por sua vez, encontram-se em legislação esparsa das referidas pessoas
federativas, situação a dificultar o estudo sistematizado da disciplina, em razão
de várias leis federais, estaduais e municipais tratarem do mesmo tema.
Para os defensores da unificação, através de uma lei nacional materializada em um Código de Direito Administrativo, o obstáculo do estudo sistemático seria facilmente transposto. Meirelles, defensor da codificação do Direito
Administrativo, sob o argumento de garantir maior segurança à Administração Pública tanto quanto aos administrados, situação decorrente da fácil
observância e aplicação das normas regentes da matéria, faz o seguinte comentário a respeito da não codificação do Direito Administrativo brasileiro:
As leis esparsas tornam-se de difícil conhecimento e obtenção pelos interessados,
sobre não permitirem uma visão panorâmica do Direito a que pertencem. Só o
Código remove esses inconvenientes da legislação fragmentária, pela aproximação
e coordenação dos textos que se interligam para formação do sistema jurídico
adotado28.
28 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 37.
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Talvez a dificuldade em se codificar o Direito Administrativo provenha
do fato de se tratar de um ramo relativamente novo da ciência jurídica, além
de mutável e em formação. A respeito dessas três características principais, é
interessante a manifestação de Carvalho Filho, ao tratar do tema ora em debate: “1ª) constitui um direito novo, já que se trata de disciplina recente com
sistematização científica; 2ª) espelha um direito mutável, porque ainda se encontra em contínua transformação; é um direito em formação, não se tendo,
até o momento, concluído todo o seu ciclo de abrangência29”. Tal conjuntura
é capaz de gerar ponderação quanto à pertinência e à eficiência da unificação
da disciplina em um só estatuto legal.
O processo administrativo-disciplinar, a exemplo do Direito Administrativo, ramo do Direito ao qual possui íntimo contato, em razão de seu caráter instrumental em relação àquele, também é regido por uma legislação esparsa, onde
cada ente da federação tem uma lei disciplinando o tema. Isso decorre da autonomia político-administrativa da União, dos Estados e Distrito Federal e dos
Municípios em poderem legislar sobre a formação de suas organizações administrativas, conforme autoriza o art. 18 da Constituição Federal, na qual se incluem
os regimes jurídicos dos servidores públicos. Além do mais, há a possibilidade
das referidas pessoas jurídicas legislarem concorrentemente sobre procedimentos
em matéria processual, de acordo com o art. 24, XI, da Constituição Federal.
Não há dúvida de que essa autonomia dificulta o conhecimento sistemático do processo administrativo-disciplinar, em razão da grande produção
legislativa. Carvalho Filho, ao discorrer sobre as normas esparsas do ramo do
Direito ora em debate, afirma que são regidas pelo princípio da disciplina
reguladora difusa, ocasião em que diferencia aquelas das normas reguladoras
dos processos judiciais, dizendo que:
O processo disciplinar se regula por bases normativas diversas. Incide para esse
tipo de processo o princípio da disciplina reguladora difusa, e isso porque suas
regras, a tramitação, a competência, os prazos e as sanções se encontram nos estatutos funcionais das diversas pessoas federativas. Contrariamente sucede nos
processos judiciais, sujeito à disciplina reguladora concentrada, porque todo o
sistema básico se situa num só diploma legal e apenas os ritos especiais se alojam
em leis especiais (grifo do autor30).
Mesmo nos entes federativos é comum a não unificação das normas regentes do processo administrativo-disciplinar em um só diploma legal, pois
29 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 19. ed. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 7.
30 Ibidem, p. 876.
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não é difícil encontrar diversos estatutos de órgãos da administração direta,
por exemplo, contendo normas tratando de procedimentos, cuja finalidade é
apurar o cometimento de possível transgressão disciplinar.
No Estado do Ceará, por exemplo, há um regulamento que trata do
processo administrativo disciplinar dos servidores públicos em geral (Lei nº
9.826, de 14 de maio de 1974), e outro específico para o quadro funcional da
Polícia Civil de Carreira (Lei nº 12.124, de 6 de julho de 1993). Na realidade,
conforme observa Carvalho Filho, ao tratar da legislação que rege o processo
administrativo disciplinar em nosso País:
No Direito brasileiro, não há sistematização uniforme para o processo administrativo, como existe para o processo judicial. Algumas regras sobre aspectos do
processo administrativo, como competência, prazos, requisitos etc., se espalham
em diversos diplomas legais e até por atos administrativos normativos ou de organização como decretos, regulamentos, regimentos e outros31.
O princípio da disciplina reguladora difusa reinante na base normativa
que rege o processo administrativo-disciplinar Pátrio repercute na sistematização científica da disciplina, em razão da legislação produzida por cada pessoa
jurídica intrigante da Federação possuir especificidades singulares. Discorrendo a respeito da dificuldade de conceituar o processo administrativo, Cretella
Junior justifica o referido, quando assim se expressa:
[...] conceituar o processo administrativo de tal maneira que o resultado sirva para
circunscrever, numa proposição única, a atividade processual da administração, é
tarefa quase impossível porque, na realidade, cada aparelho administrativo imprime características específicas, típicas, inconfundíveis ao instituto, condicionando-o ao direito positivo vigente local, o que constitui óbice quase irremovível para se
consiga atingir a defesa de âmbito universal32.
Além do princípio da disciplina reguladora difusa, é importante lembrar,
também, a incidência no processo administrativo do princípio do informalismo. Este, na definição de Carvalho Filho, significa:
[...] que, no silêncio da lei ou de atos regulamentares, não há para o administrador
a obrigação de adotar excessivo rigor na tramitação dos processos administrativos,
tal como ocorre, por exemplo, nos processos judiciais. Ao administrador caberá
seguir um procedimento que seja adequado ao objeto especifico a que se destinar
o processo33.
31 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 19. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2008. p. 863.
32 CRETELLA JÚNIOR, José. Prática do processo administrativo. 7. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2009. p. 33.
33 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 19. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2008. p. 863.
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Tal situação decorre do fato de, em algumas situações, não haver uma
forma prescrita em lei indicando como deve ser praticado certo ato, componente de um determinado procedimento administrativo. Pode-se citar, como
exemplo de ato, geralmente não especificado em lei, a portaria, cuja finalidade
é deflagrar a instauração de sindicância disciplinar, onde, por exemplo, não
está descrita nem normatizada na citada Lei nº 12.124, de 6 de julho de 1993.
A mesma situação ocorre com a Lei Federal nº 8.122, de 11 de dezembro
de 1990, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da
União, das autarquias e das fundações públicas federais.
No entanto, é oportuno advertir que, quando há forma prescrita em
lei, especificando como deve ser confeccionado determinado ato, afasta-se, de
plano, a incidência do princípio do informalismo no processo administrativo
disciplinar. Pertinente é a advertência de Hely Lopes, após discorrer a respeito
do referido princípio ora em discussão, quando assim se posiciona:
Realmente, o processo administrativo deve ser simples, despido de exigências formais excessivas, tanto mais que a defesa pode ficar a cargo do próprio administrado,
nem sempre familiarizado com os meandros processuais. Todavia, quando a lei impõe uma forma ou uma formalidade, esta deverá ser atendida, sob pena de nulidade
do procedimento, mormente se da inobservância resultar prejuízo para as partes34.
Nesse sentido, reza a Lei Federal nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999,
que disciplina o processo administrativo no âmbito da União, no seu art. 2º,
parágrafo único, VIII e IX:
Art. 2º [...]
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os
critérios de:
VIII – observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados;
IX - adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados;
Di Pietro35, ao comentar a respeito da incidência do principio do informalismo no processo administrativo, faz importante observação quando diz
que “informalismo não significa, nesse caso, ausência de forma; o processo
administrativo é formal no sentido de que deve ser reduzido a escrito e conter documentado tudo o que ocorre no seu desenvolvimento; é informal no
sentido de que não está sujeito a formas rígidas.” Referida lei federal, no seu
art. 22, assim dispõe a respeito do informalismo processual na seara administrativa da União:
34 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 589.
35 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 512.
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Art. 22. Os atos do processo administrativo não dependem de forma determinada
senão quando a lei expressamente a exigir.
§ 1º Os atos do processo devem ser produzidos por escrito, em vernáculo, com a
data e o local de sua realização e a assinatura da autoridade responsável.
§ 2º Salvo imposição legal, o reconhecimento de firma somente será exigido quando houver dúvida de autenticidade.
§ 3º A autenticação de documentos exigidos em cópia poderá ser feita pelo órgão
administrativo.
§ 4º O processo deverá ter suas páginas numeradas seqüencialmente e rubricadas.
O Superior Tribunal de Justiça, no Recurso em Mandado de Segurança
nº 2.501, tendo como relator o Ministro Vicente Cernicchiaro, assim manifestou-se sobre o informalismo no processo administrativo:
EMENTA: MS. Administrativo. Processo. Contraditório. O processo administrativo está sujeito ao contraditório (Const., art. 5º, LV). Impõe-se, por isso, perfeita
identificação de fato imputado. Desnecessário, porém, ser exibida no corpo da
portaria. O Direito não deve aprisionar-se em dados meramente formais. Urge
sentir a finalidade da norma. No caso, chegar ao conhecimento do funcionário
(Processo n.º 1993/00.01600-8 – DF, 28/03/94).
A dificuldade na interpretação e aplicação das normas regentes do processo administrativo-disciplinar, em razão do que foi anteriormente exposto,
é mitigada pelo fato de existirem princípios constitucionais comuns a todos
os ramos do direito processual, situação a possibilitar a incidência de uma hermenêutica capaz de sistematizar o estudo dessa disciplina, como se vê a seguir.
3
Interpretação e aplicação das normas do processo administrativodisciplinar em face do neoprocessualismo
Sob o prisma eminentemente normativo formal, Kelsen afirma que o
Direito é “uma ordem da conduta humana. Uma ‘ordem’ é um sistema de
regras. O Direito não é, como às vezes se diz, uma regra. É um conjunto de
regras que possui o tipo de unidade que entendemos por sistema36”. Este por
sua vez, é denominado de ordenamento jurídico, que na concepção teórica
de Bobbio, é “um conjunto coordenado de normas, sendo evidente que uma
norma jurídica não se encontra jamais só, mas está ligada a outras normas
com as quais forma um sistema normativo37”.
36 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 3. ed. São Paulo: Martins Flores, 1992. p. 11.
37 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 4. ed. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 1994. p. 21.
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Percebe-se que, em razão do Direito, manifesta-se formalmente através de
normas jurídicas, o ordenamento jurídico passa a ser o principal objeto de estudo da ciência do Direito. Ao comentar sobre a noção de objeto, Falcão explica que “sempre que se tem um ato de conhecimento, é inafastável a presença de
três elementos necessários: o eu que conhece, a atividade que o eu cognoscente
desenvolve e objeto a que se dirige a atividade desenvolvida pelo eu38”.
Mais adiante, o referido jurista cearense faz a seguinte definição de objeto: “Tudo aquilo que pode ser termo de atividade consciente do eu que
conhece, isto é, do sujeito cognoscente, é objeto. Dessa forma, é objeto todo
ser a respeito do qual se possa tecer ou elaborar um juízo lógico39”.
Assim, podemos concluir que “constitui o direito uma unidade conceitual no plano filosófico, uma unidade orgânica no plano científico, uma unidade
teleológica no plano social”, conforme leciona Pereira40. Tal característica, no
entanto, não impede de ser o ordenamento jurídico estudado didaticamente
a partir de partes que o compõem, ou seja, tendo como objeto um conjunto
sistêmico de normas que regulamentam determinadas condutas, conforme
leciona Rocha:
Enquanto norma, o direito constitui fundamentalmente uma unidade, já que o
conceito genérico de norma é comum a qualquer de seus ramos. No entanto, o
ser humano, quando se dispõe a conhecer uma realidade, costuma despedaçá-la
intelectualmente para facilitar sua análise. E um dos instrumentos usados para
despedaçar a realidade é a classificação, procedimento científico consistente em
tomar os elementos componentes de uma realidade e, com, eles, formar classes de
objetos organizados em função de diferentes critérios41.
Dessa forma, as normas referentes a uma determinada disciplina jurídica, a exemplo do direito processual, poderão ser estudadas como objeto de
conhecimento. Contudo, é importante lembrar que a autonomia dos vários
ramos do Direito é bastante relativa. Há de existir o devido cuidado por parte
do eu que conhece, ao desenvolver a atividade cognoscível de um agrupamento de normas, em razão da estreita relação das várias disciplinas jurídicas entre
si, “daí o grave risco da especialização com a sua tendência ao isolamento,
acarretando a perda da visão do todo”, alerta Rocha42 .
38 FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 13.
39 FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 14.
40 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993, v. I. p. 11.
41 ROCHA, José de Albuquerque. Teoria geral do processo. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 23.
42 Ibidem, p. 23.
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A partir do referencial teórico a respeito da unidade do Direito e da
possibilidade de separar o ordenamento jurídico em normas, com o fim de
estudar metodicamente um determinado ramo daquela área do conhecimento
humano, podemos concluir, a respeito da existência um conjunto de normas
jurídicas comuns a reger o fenômeno processo, em razão das características intrínsecas a todos os ramos do direito processual em geral. Assim se manifesta
Rocha, ao tratar do tema em debate:
Ora, se o direito processual é um conjunto de normas que disciplina essa série
coordenada de atos necessários à criação de novas situações jurídicas e, por outro
lado, se o fenômeno não é exclusivo do Judiciário, mas comum ao Legislativo, à
Administração e até aos particulares, então temos um direito jurisdicional, legislativo, administrativo e até um direito processual negocial. E como todos esses
ramos do direito processual apresentam um núcleo comum, que é o fato de todos
eles constituírem a disciplina normativa dessa seqüência ordenada de atos de vontade que se faz necessário à produção de um efeito jurídico final, e que chamamos processo, então, podemos falar de um direito processual geral, definido como
sendo o conjunto de normas que disciplinam essa seqüência ordenada de atos
voltados à produção de um efeito final, ou mais resumidamente, como conjunto
de normas disciplinadoras do fenômeno processo43.
Na realidade, percebe-se que a divisão do direito processual, em diferentes disciplinas, “só existe no plano do conhecimento, tendo em vista facilitar
sua compreensão. Por isso, essas disciplinas não devem ser entendidas como
ciências independentes, senão como parte de um todo científico único, que é
a ciência do direito sem adjetivações”, conforme enfatiza Rocha44.
Di Pietro, ao comentar a respeito dos processos estatais (Judicial, Legislativo e Executivo), chama a atenção para a existência de princípios comuns
a todos os referidos processos, fato a indicar a existência de uma Teoria Geral
do Processo, quando diz:
Cada um dos processos estatais está sujeito a determinados princípios, específicos, adequados para a função que lhe incumbe. Não pode ser igual o processo
legislativo o processo judicial, e um e outro não podem ser iguais ao processo
administrativo45.
Porém todos eles obedecem, pelos menos, aos princípios da competência, da formalidade, da predominância do interesse público sobre o particular,
o que permite falar na existência de uma teoria geral do processo.
Portanto, em razão da unidade do Direito, podemos nos valer de normas
43 Ibidem, p. 20.
44 ROCHA, José de Albuquerque. Teoria geral do processo. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 23.
45 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 504.
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jurídicas postas para reger uma determinada seqüência ordenada de atos voltados à produção de um efeito final, de um determinado ramo do direito processual, a exemplo do direito processual penal, e aplicá-las a atos de outra disciplina, por exemplo, do direito processual administrativo-disciplinar, em razão da
similitude do conjunto de normas disciplinadoras do fenômeno processo. Estas
fazem parte de um sistema normativo, onde a criação de uma norma, dentro
desse sistema, é determinada segundo os ditames de outra, pois, segundo a
construção teórica de Kelsen, é o Direito que regula o seu próprio nascimento,
[...] na medida em que uma norma jurídica determina o modo em que outra
norma é criada e também, até certo ponto, o conteúdo dessa norma. Como uma
norma jurídica é válida por ser criada de um modo determinado por outra norma
jurídica, esta é o fundamento de validade daquela46.
Nesse sistema de normas, elas não se encontram em um mesmo plano,
estando dispostas em um escalonamento hierárquico, cuja validade de uma é
sempre outra norma. A que determina princípios e regras para a criação das
demais é a superior, e a criada, segundo esses mandamentos, é a inferior. Assim, a ordem jurídica, segundo leciona Kelsen,
[...] não é um sistema de normas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao
lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis
de normas jurídicas. A sua unidade é produto da relação que resulta do fato de a
validade de uma norma que foi produzida de acordo com outra, se apoiar sobre
essa outra norma cuja produção, por sua vez, é determinada por outra; e assim
por diante, até chegar finalmente na norma fundamental – pressuposta. A norma
fundamental – hipotética, nestes termos – é, portanto, o fundamento de validade
último que constitui a unidade desta inter-relação criadora47.
No ápice desse sistema de normas reside a Constituição, por instituir os
valores, os princípios e as regras mais caros para a compreensão do fenômeno
jurídico. Por esse motivo, a interpretação e a aplicação das demais normas do
ordenamento jurídico terão que observar os seus ditames, situação a incluir,
por óbvio, as normas processuais, uma vez que os direitos e garantias processuais fundamentais são por ela descritos. Assim, em razão da incidência do
princípio da supremacia da Constituição, conforme leciona Barroso ,
Toda interpretação constitucional se assenta no pressuposto da superioridade jurídica da Constituição sobre os demais atos normativos no âmbito do Estado. Por força da supremacia constitucional, nenhum ato jurídico, nenhuma manifestação de
vontade pode subsistir validamente se for incompatível com a Lei Fundamental48.
46 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 129.
47 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p. 240.
48 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma
dogmática constitucional transformadora. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 161.
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Não é difícil concluir da importância dos princípios constitucionais na
interpretação e aplicação das normas do sistema jurídico, pois, com o neopositivismo, passaram a ter plena normatividade, afastando, assim, a sua natureza de normas meramente programáticas, como ocorria no positivismo, antes
do surgimento do neoconstitucionalismo. Barroso é enfático ao ressaltar o
prestígio dos princípios constitucionais, quando diz que:
O ponto de partida do intérprete há de ser sempre os princípios constitucionais,
que são o conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus
postulados básicos e seus fins. Dito de forma sumária, os princípios constitucionais são as normas eleitas pelo constituinte como fundamentos ou qualificações
essenciais da ordem jurídica que institui. A atividade de interpretação da Constituição deve começar pela identificação do princípio maior que rege o tema a ser
apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação
da regra concreta que vai reger a espécie49.
A Constituição Federal, ao tratar da administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, em especial do servidor público estável, impõe, no seu art. 41, §
1º, II, que este só perderá o cargo “mediante processo administrativo em que
lhe seja assegurada ampla defesa”.
O processo administrativo-disciplinar “[...] é o instrumento formal através do qual a administração apura a existência de infrações praticadas por
seus servidores e, se for o caso, aplica as sanções adequadas”50. Essa é uma das
espécies do gênero processo administrativo51. Cretella Júnior52, por sua vez,
o define como:
[...] um conjunto de iniciativas da Administração, que envolvem o servidor público, possibilitando-lhe, porém, a mais ampla defesa, antes da edição do ato final
da autoridade maior, decisão que o absolve ou o condena, depois de analisar-lhe
a conduta que teria configurado, por ação ou omissão, ilícito administrativo, funcional, disciplinar ou penal.
Essa regra constitucional, decorrente do princípio do devido processo
legal, é de observância obrigatória. Caso não venha contemplada em norma
infraconstitucional instituidora de processo administrativo-disciplinar, apesar
da omissão, a imposição constitucional terá que ser rigorosamente respeitada,
sob pena de se invalidar o processo que a desrespeitar.
49 Ibidem, p. 151.
50 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 19. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2008. p. 876.
51 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 587.
52 CRETELLA JÚNIOR, José. Prática do processo administrativo. 7. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2009. p.45.
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Essa constatação reforça a existência de um conjunto de normas disciplinadoras do fenômeno processo, fato que reforça a visão de uma Teoria Geral
do Processo, cuja incidência deverá ser o norte na hermenêutica do processo
administrativo-disciplinar, situação a demonstrar a intersecção entre os vários
ramos do processo, a exemplo do Penal e do Administrativo. Carvalho Filho,
ao tecer considerações a respeito da relação do Direito Administrativo com
outros ramos do Direito, faz a seguinte constatação:
Com o Direito Processual o Direito Administrativo se relaciona pela circunstância
de haver em ambos os ramos a figura do processo: embora incidam alguns princípios próprios em cada disciplina, existem invitáveis pontos de ligação entre os
processos administrativos e judiciais. Como exemplo, lembre-se que o direito ao
contraditório e à ampla defesa incide tanto numa com noutra categoria (art. 5°,
LV, CF). Por outro lado, nos processos administrativos de natureza acusatória são
aplicáveis alguns postulados e normas do processo penal53.
No mesmo sentido, Cretella Junior54, quando comenta sobre o tema ora
em debate, afirma que:
O processo administrativo, nesse particular, aproxima-se do processo penal, no
qual o Estado está “contra” ou “adverso ao cidadão e num dos extremos da relação
radica todo o aparelhamento estatal dirigido ao acusado. No processo penal e no
processo administrativo, a relação não ocorre entre dois particulares, mas entre o
Estado, praticamente o autor, versus o administrado, particular ou funcionário
público, acusado ou indiciado.
O estudo sistemático do processo administrativo-disciplinar deverá levar
em conta a ponderação de Falcão, quando afirma que “a interpretação não
pode ser feita a contento se não levar em conta o todo55”. O ordenamento
jurídico é um sistema, e, como tal, uma unidade, onde cada elemento que
a compõe tem que contribuir para o funcionamento do todo. É um sistema
completo em si mesmo, cuja completude está na “propriedade pela qual um
ordenamento jurídico tem uma norma para regular qualquer caso”56 .
Uma determinada espécie normativa, quando interpretada, deve ser cotejada em harmonia com o ordenamento jurídico em que está inserida. Por
exemplo, na edição de um decreto, em primeiro lugar, deve-se observar sua
compatibilidade com a lei com relação ao assunto que pretende regular. Em
53 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 19. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2008. p. 8.
54 CRETELLA JÚNIOR, José. Prática do processo administrativo. 7. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2009. p. 46.
55 FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 187.
56 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 4. ed. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 1994. p. 115.
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seguida, verifica-se a compatibilidade da referida lei com a Constituição Estadual. Por fim, analisa-se se esta respeitou os ditames da Constituição Federal.
Falcão, ao afirmar da impossibilidade de se afastar o todo no momento em
que se vai interpretar um elemento deste, assevera que:
Dessa forma, o todo faz a parte, que só é nele, e exercendo a função que nele tem.
Em conseqüência, não se pode querer entender o elemento sem atentar para o
sistema. Por isso que a interpretação não tem como fugir a essa regra de ferro,
típica dos sistemas, já que o ordenamento jurídico é um sistema. É esta consideração intrínseca ao todo. Consideração do todo, que se faz dele e por causa de seu
funcionamento interno mesmo. Isso é mandamento inafastável de toda interpretação, sobretudo da interpretação jurídica, seja no tocante ao ordenamento jurídico - sistema -, seja no que se refere particularmente aos inúmeros diplomas legais
ou outros diplomas normativos – subsistemas -, os quais terão uma captação de
sentido apenas parcial e insuficiente se não forem submetidos a uma visualização
plena e atentamente sistêmica. A consideração do todo é, pois, intrinsecamente
inafastável da interpretação57.
Os subsistemas de normas processuais penais e os de normas processuais
administrativo-disciplinares fazem parte um sistema de normas mais amplo.
Diante dessa constatação, não é difícil notar a interdisciplinaridade entre os
dois ramos processuais do Direito, havendo, assim, regras e institutos assemelhados, a exemplo dos procedimentos utilizados na fase pré-processual, cuja
função é a colheita de indícios de autoria e materialidade de cometimento
de crime, no processo penal, ou de prática de desvio de conduta do servidor
público, no processo administrativo-disciplinar. No primeiro, é denominado
de inquérito policial. No segundo, chamado de sindicância investigativa ou
investigação preliminar.
Apesar da incidência dos princípios da disciplina reguladora difusa e do
informalismo regerem o processo administrativo-disciplinar, tal situação não
impede, ao se interpretar e aplicar as normas regentes da referida disciplina,
que sejam utilizados institutos e formas prescritas na lei processual penal, por
exemplo, desde que compatíveis nos procedimentos administrativos.
Não há regramento, por exemplo, de como deve ser desenvolvido o interrogatório e a acareação no processo administrativo-disciplinar, regido pela
Lei Federal nº 8.122, de 11 de dezembro de 1990. Tal normatização está prevista no Código de Processo Penal, que poderá ser aplicado subsidiariamente.
A Lei nº 13.441, de 29 de janeiro de 2004, que dispõe sobre o processo administrativo-disciplinar aplicável para os policiais civis de carreira do
Estado do Ceará, por exemplo, em seu art. 13, assevera que “aplicam-se ao
57 FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 188.
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processo administrativo-disciplinar, subsidiariamente, pela ordem, as regras
da legislação processual penal comum, as regras gerais do procedimento administrativo comum e da legislação processual civil”.
Há, no entanto, certos requisitos obrigatórios a serem rigorosamente observados no processo penal, que não são essenciais para o regular desenvolvimento do processo administrativo-disciplinar, a exemplo da defesa técnica do
indiciado por advogado, fato que, neste ramo processual, não fere o princípio
do devido processo legal, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal, materializado na súmula vinculante nº 5 (“A falta de defesa técnica por
advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”),
apesar de posicionamentos doutrinários em contrário, a exemplo da doutrina
de Nery Junior58.
Conclusão
A interpretação e aplicação das normas do processo administrativo-disciplinar tem de ter os princípios constitucionais como paramento hermenêutico, sistema de normas que representam a ideologia da Lei Fundamental, seus
postulados básicos e seus fins, para que haja compatibilidade da legislação
infraconstitucional com a Constituição, não se podendo entender o processo,
sem, antes, buscar seus fundamentos de validade formal e material nela.
As normas referentes a uma determinada disciplina jurídica, a exemplo
do direito processual, poderão ser estudadas como objeto de conhecimento,
pois existe um conjunto de normas jurídicas comuns a regerem o fenômeno
processo, em razão das características intrínsecas a todos os ramos do Direito Processual em geral. Na realidade, a divisão do direito processual, em
diferentes disciplinas, só existe no plano do conhecimento, para facilitar sua
compreensão.
O processo administrativo-disciplinar é regido pelo princípio da disciplina reguladora difusa, donde suas regras, a tramitação, a competência, os
prazos e as sanções se encontram nos estatutos funcionais dos diversos entes
federativos. Tal fato decorre do modelo de federalismo estabelecido pela Constituição Federal de 1988, onde é conferida a prerrogativa de auto-organização
e independência de atuação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, possuindo estes competências legislativas para dispor sobre as
suas próprias normas de processo administrativo-disciplinar.
A cláusula do devido processo legal é a pedra de toque do processo, cuja
58 NERY Júnior, Nelson. Op. cit. pa. 256.
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função é resguardar a dignidade da pessoa humana dos litigantes em processo judicial ou administrativo. Dessa forma, a interpretação e a aplicação das
normas que regem o processo administrativo-disciplinar deverão tê-los como
princípios basilares na criação da regra a solucionar o caso concreto, em respeito ao Estado Democrático de Direito instituído pela Constituição Federal
1988.
Assim, a observância dos postulados que emanam desses dois princípios
possibilitam sistematizar e uniformizar a interpretação e a aplicação do processo administrativo-disciplinar, fato a afastar a perplexidade inicial causada
pela legislação esparsa que rege a matéria no Brasil.
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O CONTROLE SOCIAL DA GESTÃO PÚBLICA DA SAÚDE1
Antonio Abelardo de Sousa2
RESUMO: O artigo contribui para uma reflexão a respeito da implantação, execução, gestão
e fiscalização por meio do controle social das políticas públicas dos direitos fundamentais,
em especial o direito a saúde, com ênfase na participação popular como instrumento promocional da cidadania. Objetiva-se possibilitar a mudança de paradigma do controle social
do cidadão pelo Estado (fiscalização) para a lógica reflexiva do papel do Estado e do cidadão
(o empoderamento) nas questões sociais, especificamente na saúde publica. A metodologia
empregada é teórica, bibliográfica, descritiva, analítica, exploratória e dialética, resultante de
pesquisa bibliográfica, principalmente a consulta à legislação pertinente. Conclui-se que os
doutrinadores têm defendido a participação popular como forma de minimizar as frequentes
crises nos regimes democráticos, assim como importante ferramenta na conquista do direito
a saúde pública.
Palavras-chave: Democracia, Participação popular, Controle Social.
Abstrat
It contributes to a discussion about the deployment, implementation,
management and supervision of social control through public policy of fundamental rights, in particular the right to health, with emphasis on popular
participation as a promotional tool of citizenship. The objective is to enable
the paradigm shift from the social control of the citizen by the state (inspection) to the logic of the reflexive role of the state and citizens (empowerment)
on social issues, specifically on public health. The methodology is theoretical
literature, descriptive, analytical, exploratory and dialectical, the result of literature, especially the consultation with the relevant legislation. We conclude
that scholars have advocated popular participation as a way to minimize the
frequent crises in democratic regimes, as well as an important tool in winning
the right to public health.
Keywords: democracy, popular participation, social control.
1
2
Trabalho (...) Orientadora: German
O autor é graduado em Licenciatura plena em Pedagogia pela Universidade do Vale do Acaraú Ceará, Especialista em Educação em Saúde pela Escola de Saúde Pública do Ceará, Bacharel em
Direito pela Universidade de Fortaleza e especialista em Direito Constitucional pela Escola de
Magistratura do Ceará e Advogado atuante.
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Introdução
O regime de governo que mais tem chamado a atenção dos estudiosos é
a Democracia. O tema em discussão é diuturnamente enfocado nas publicações jurídicas, especificamente em razão da sua etimologia designar o “poder
do povo”.
Ao considerar a Constituição como estatuto que disciplina a organização fundamental do Estado e distribui o exercício do poder, é natural que
ela preveja, nos seus termos, meios de participação popular, como, aliás, é o
caso da Constituição Federal brasileira de 1988, que ao constituir um Estado
Democrático de Direito, prevê na parte final do parágrafo único do art. 1º,
a participação popular como fonte originária do poder. Destaca-se, entre as
previsões constitucionais o art. 196, que trata da obrigação estatal de recuperação e promoção a Saúde.
Ao verificar a historicidade pela regulamentação do texto constitucional
dos direitos sociais e em especial os vetos proferidos a Lei Orgânica da Saúde
– nº 8.080/90 – observa-se que, para a efetividade do artigo 198, inciso III, a
participação popular como diretriz de sustentação do Sistema Único de Saúde
– SUS – é fundamental.
Neste contexto, percebe-se que a participação dos indivíduos nas comunidades para tratar das questões sociais, inclusive as de saúde, sobre estimulá-los
à práxis da cidadania como cerne para a formação de um novo paradigma de
controle social, onde estes são convidados a serem agentes promotores de sua
própria saúde e, consequentemente, da saúde da comunidade que integram.
Espera-se que o controle social até então entendido como o poder – fiscalizador do Estado sobre a sociedade e os indivíduos, por meio de uma reflexão indutiva e dedutiva passe a conceituar-se como o poder da sociedade e dos
indivíduos de fiscalizarem as ações de políticas públicas da saúde pelo Estado,
contribuindo para o exercício da cidadania e o fortalecimento do SUS.
Acredita-se que, desta forma, possibilita-se o surgimento do fenômeno
do empoderamento do indivíduo com uma visão voltada para os problemas
sociais, estimulando a participação do cidadão no planejamento das ações de
políticas públicas e de gestão do setor saúde e, consequentemente, do empoderamento coletivo.
No entanto, encontram-se dificuldades para atingir metas que possibilitem aos indivíduos empoderar-se, principalmente no que diz respeito à prática no campo experimental de estímulo da participação destes, na gestão das
políticas públicas de saúde das comunidades que integram.
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Observa-se que a não participação dos indivíduos nestas questões tem
estimulado o fenômeno da Judicialização da Saúde, como forma de garantia
de acesso aos tratamentos não referenciados pelo SUS.
Evidenciam-se a necessidade de uma maior participação individual e coletiva dos usuários, profissionais, prestadores de serviço e gestores do setor
saúde na gestão da saúde pública no Brasil.
1
Democracia e participação popular
Ao analisar o termo Democracia do grego demo+kratos, verifica-se ser
um governo do povo, para o povo e pelo povo. Entende-se como um regime
de governo em que o poder de tomar importantes decisões políticas está com
os cidadãos – o povo – direta ou indiretamente, por meio de representantes
eleitos, estes nos regimes democraticos representativos.
Conforme contribuição de Bobbio3, tem-se:
O pensamento politico grego nos transmite uma célebre tipologia das formas de
governo das quais uma é a democracia, definida como governo de muitos, dos
mais, da maioria, ou dos pobres (mas onde os pobres tomam a dianteira é sinal de
que o poder pertence ao plétheos, a massa), em suma, seguindo a própria composição da palavra como governo do povo, em contraposição ao governo de poucos.
Ao analisar axiológica e teleologicamente a democracia, percebe-se que o
conceito de governo não mudou muito, desde a Grécia antiga, muito embora
se tenha as concepções de democracia antiga, moderna e contemporânea, todas fortemente atreladas à participação da massa para sua caracterização.
Observa-se que o governo democrático por meio de alguns princípios e
práticas distingue-se de outras formas de governo, uma vez que na Democracia tem-se o governo no qual, o poder e a responsabilidade cívica são exercidos
por todos os cidadãos, diretamente ou através dos seus representantes.
Ao deter-se sobre as diversas teorias políticas, pode-se perceber que nos
Estados onde se adota a Democracia, a participação direta e indireta de seus
cidadãos nas decisões políticas é fundamental para a legitimidade de suas
Constituições.
Segundo Paulo Bonavides4, verifica-se que a legitimidade se relaciona
com a necessidade e a finalidade mesma do poder político que se exerce na
sociedade por meio principalmente de uma obediência consentida e espontânea, decorrente da soberania popular.
3
4
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira, 3 ed.
Brasiliense. São Paulo. 1990. P 31.
BONAVIDES, Paulo. A Crise Política Brasileira. Forense. Rio de Janeiro, 1969 p. 82.
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Analisa-se que a participação popular direta e indireta materializa a legitimidade do exercício do poder, na medida em que contribui para submeter
o Estado às reais necessidades e aos interesses do povo e se apresenta como
alternativa ao mero exercício formal da democracia.
Bonavides ressalta:
A legalidade de um regime democrático, por exemplo, é seu enquadramento nos
moldes de uma Constituição observada e praticada; sua legalidade será sempre
o poder contido naquela Constituição, exercendo-se de conformidade com as
crenças, os valores e os princípios da ideologia dominante, no caso, a ideologia
democrática5.
Assim, verifica-se que a legalidade democrática constitui-se por meio de
expressão da representação popular legitimada pelo sufrágio universal e pelo
voto direto e secreto, com igual valor para todos.
Neste sentido, percebe-se que, por meio do processo de despersonalização do poder, característico do Estado Moderno, o poder de uma pessoa,
imposto pela força, passou ao poder de uma instituição legitimada pelo poder
de cada cidadão e fundado na aprovação do grupo.
Muito embora os estudiosos da democracia ressaltem a importância da
participação da educação cívica do cidadão nas questões sociais, os mesmos
advertem que a democracia contemporânea vem perdendo legitimidade e eficácia exatamente porque não consegue mais reproduzir seus ideais democráticos para as novas gerações.
Observa-se que o sistema democrático representativo é caracterizado,
basicamente, pela liberdade de expressão e de escolha periódica de seus representantes, sendo o voto o meio legítimo de participação popular no processo
de construção de normas que irão reger a sociedade.
Conforme contribuição de Bobbio verifica-se que:
[...] A melhor forma de governo é a democracia representativa, por constituir,
ao menos nos paises com certo grau de civilização, o prosseguimento natural de
um Estado desejosos de assegurar aos seus cidadãos o máximo de liberdade. ‘A
participação de todos nos beneficios da liberdade é o conceito ideal perfeito do
governo livre’6.
Acredita-se que como bem relembra o doutrinador Paulo Bonavides, para
Kelsen a Democracia é, sobretudo, caminho da progressão para a liberdade.
Nos regimes democráticos as escolhas de seus representantes devem ser
livres e justas, abertas a todos os cidadãos. As eleições não podem ser processos
5
6
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2006.p. 121.
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira, 3 ed.
Brasiliense. São Paulo. 1990. P. 68.
136
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de fachadas atrás dos quais se escondem ditadores ou um partido único, mas
verdadeiras competições pelo apoio do povo.
Bobbio enfatiza:
[...] indicador de desenvolvimento democrático não pode ser mais o número de
pessoas que têm o direito de votar, mas o número de locais, diferentes dos locais
políticos, nos quais se exerce o direito de voto, “não mais o número de ‘quem’ vota,
mas o do ‘onde’ vota7”.
De modo que os cidadãos em regimes de governos democráticos não têm
apenas direitos, têm o dever de participar do sistema político e fornecer sua
contribuição para a construção e o desenvolvimento da democracia, garantindo, assim, a proteção dos seus direitos e as suas liberdades.
Percebe-se que a democracia depende da participação popular como instrumento para alcançar seus objetivos, considerando as mais variadas tensões
existentes entre a realidade social e as normas jurídicas de uma constituição.
Neste sentido Hesse relata:
[...], transforma-se em força ativa se existir a disposição de orientar a própria conduta segunda a ordem nela estabelecida se fizerem presentes, na consciência geral
– particularmente na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional8.
Verifica-se uma busca eterna, haja vista que o pensamento político democrático tem que questionar seus pressupostos, visando à incolumidade dos
direitos e garantias fundamentais do cidadão, onde cada qual, à sua maneira,
proponha a melhor forma de organização da sociedade a fim de alcançar a
justiça social.
Goyard-Fabre9 neste sentido leciona:
Por causa da diversidade das individualidades que, ao se exprimirem, tentaram
e continuam tentando dar uma unidade à vontade geral do povo. A democracia
secretou ilusões de que hoje, se tem consciência e pelas quais ela é severamente
censurada. [...] é por isso que, no mundo contemporâneo que vive globalmente
na era democrática, denuncia-se a crise que mina esse sistema pelo qual tantas
gerações lutaram dando o melhor de si.
Diante do exposto, analisa-se que a democracia tem como principal base
de sustentação a participação popular, esta como instrumento de controle social que indica a soberania popular em ação, representando o efetivo exercício
do poder político pelo seu verdadeiro titular de direito.
7
8
9
BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. 8 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2002, p 68.
HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição: Tradução de Gilmar Mendes. Porto Alegre
- RS: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. P. 8.
GOYARD-FABRE, Simone. O que é Democracia? São Paulo: Martins Fontes, 2003.p 342.
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O principio democrático encontra-se consagrado no Ordenamento Jurídico Brasileiro no parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal de
198810, ao dispor que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos, nos termos desta Constituição”.
Necessita-se para que o Estado brasileiro não se desvirtue de sua finalidade precípua, qual seja, atender da melhor maneira possível às necessidades
sociais, cada vez mais o povo reserve para si, individual ou coletivamente,
meios de exercício direto do poder do qual é o titular originário.
2
Considerações do direito à saúde
Esta expresso, na Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas – ONU, de 10 de dezembro de 1948, no artigo
28, que “todo cidadão tem direito a saúde” e “todo indivíduo tem direito a
qualidade de vida capaz de assegurar a sua saúde e o bem estar a si mesmo e
a sua família”.
Verifica-se no preâmbulo da Constituição da Organização Mundial da
Saúde (OMS, 1996) que o mais alto padrão de saúde a ser alcançado é um
direito fundamental. Para tanto, no artigo primeiro, encontra-se que “o objetivo da organização será a consecução por parte de todos os povos do mais
elevado nível de saúde”.
Neste contexto, analisa-se que o Estado deve tomar medidas apropriadas
não só para a recuperação como também para a promoção da saúde e o bem
estar social, considerando ser as políticas de saúde tema de interesse nacional
e internacional.
Percebe-se que a saúde é um direito fundamental de segunda geração
albergado pelo direito social, é prestacional e inalienável de todo e qualquer
cidadão, a serem garantidos mediante políticas públicas que contribuam para
a melhoria da qualidade de vida dos indivíduos e dos grupos.
2.1 Saúde no Brasil
Seguindo o entendimento da OMS, nas questões relacionadas ao direito
a saúde no Brasil, destaca-se um cunho universalista, igualitário e solidário de
acordo com o Titulo III – Da Ordem Social, Capitulo I – Disposição Geral,
Seção II – Da saúde, compreendido desde o artigo 196 ao 200 da Constituição Federal de 1988.
10 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília, DF,
Senado, 1988.
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Neste sentido Sarlet11 ressalta:
Na contextualização constitucional empreendida o direito à saúde foi caracterizado como direito fundamental social, inserido em uma ordem social constitucional
que tem por finalidade direta a promoção do bem estar e da justiça social como
preceitua o art. 193 da Constituição.
Analisa-se que em uma república comprometida em construir uma sociedade Justa, livre e solidaria como preconiza o inciso I do artigo 3º da Constituição Federal do Brasil, os direitos fundamentais não podem ser reduzidos
a pretensões egoístas e necessariamente devem ser integradas ou pelo menos
discutidas com os cidadãos.
Verifica-se assim que com a promulgação da Carta Magna, consagra-se o
direito a saúde a totalidade dos cidadãos brasileiros, sendo obrigação do Estado a sua efetivação, conforme preconiza o artigo 196, abaixo:
Artigo 196: - Saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação. (grifo nosso)
Evidencia-se o direito de todos e o dever do Estado brasileiro não só
quanto a recuperação a saúde, mas a obrigação deste na promoção e proteção
da saúde por meio de políticas públicas que viabilizem este desiderato, portanto, saúde é entendida como direito fundamental.
No entendimento do sanitarista Carvalho12 estes se referem às maiores
conquistas de cidadania que um povo conseguiu incluir em sua carta maior,
entretanto, muitas críticas surgiram acusando os legisladores constituintes de
terem recepcionado muitos direitos sem, contudo, pensar como garantí-los de
modo concreto, na prática.
Carvalho, afirma:
A Saúde é um direito essencial que, na Constituição, está colocado como dever
do Estado, mas que só acontecerá se todos nós cumprimos com nossos maiores
e menores deveres cotidianos, o que nos fará cidadãos plenos. Na lei orgânica da
saúde está bem explícito: só conseguiremos ter saúde na medida em que tivermos
a contribuição das pessoas, das famílias, das empresas e da sociedade13.
Muito embora ao artigo 196 da CF/88, afirmar ser a saúde “um direito
de todos e dever do Estado”, entende-se, todavia que para tais direitos foram
estabelecidos deveres que devem ser observados e cumpridos por todos.
11 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Livraria do Advogado. Porto
Alegre, 1998.p. 247.
12 CARVALHO, G. C. M. Participação da Comunidade na Saúde. Passo Fundo. IFIBE. 2007.p. 31.
13 Idem, p. 31.
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Neste sentido, Carvalho aborda o assunto da seguinte forma:
O direito à saúde exige que cada uma de nós cumpra com seus deveres. Entre
omitir-nos e compactuar existe uma terceira via: a participação e luta de cada um
de nós para que sejamos todos cidadãos plenos, iguais em direitos e deveres. Ou
seja, assumir o direito à saúde como parte da transformação de nosso país14.
Observa-se ser fundamental a participação de todos na elaboração, planejamento e fiscalização da execução das ações que levam efetivamente ao
referido direito.
Verifica-se que, no Brasil, adotanos a democracia representativa pela instituição do princípio da participação consagrado na Carta Magna, especificamente no § único do art. 1°, que destaca: “Todo poder emana do povo, que
o exerce diretamente, ou por meio de representantes eleitos, nos termos desta
Constituição”.
Idêntico princípio encontra-se evidenciado no inciso III, do artigo 198,
ao tratar da gestão de políticas públicas da saúde, como se segue abaixo:
Artigo 198 – As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com
as seguintes diretrizes:
I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas sem prejuízo dos serviços assistenciais;
III – Participação da comunidade (Grifo nosso )
Verifica-se que esta diretriz é de primordial importância por estar diretamente relacionada com a cidadania, considerando tratar-se da capacidade do
homem compreender e estar informado dos problemas quer políticos, sociais,
econômicos, ambientais e culturais, não só da sua comunidade, como também da sociedade.
A Saúde brasileira toma urgente a participação da comunidade na implantação, execução e fiscalização das ações, serviços e políticas públicas do
Sistema Único de Saúde – SUS.
2.2 Sus – Sistema Único de Saúde
Ao analisar o Sistema Único de Saúde do Brasil – SUS, verifica-se tratar
de um conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e
indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público.
14 Ibidem, p 31
140
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Melo e et al, enfatizam:
Como síntese das discussões sobre políticas de saúde e direito a saúde, o SUS
procura unificar todas as instituições e serviços de saúde num único sistema – um
comando único do governo federal (Ministério da Saúde), um comando único
do Estado (Secretaria Estadual de Saúde), e um comando único dos municípios
(Secretarias Municipais de Saúde)15.
Observa-se que o SUS é resultado do movimento da chamada Reforma
Sanitária brasileira. Trata-se do processo político que mobilizou a sociedade brasileira para propor novas políticas e modelos de organização de sistema, serviços
e práticas de saúde. Percebe-se, neste movimento, o exercício da cidadania por
meio da participação popular na construção de um sistema nacional de saúde.
Para atender aos pressupostos constitucionais do artigo 196, elaborou-se
a Lei nº 8.080/1990 que instituiu o Sistema Único de Saúde – SUS, onde
se percebe sua organização, baseada na descentralização das ações e políticas
de saúde pública, objetivando tratar das condições para promoção, proteção,
recuperação e buscando proporcionar o atendimento integral à população.
Verifica-se o princípio da participação da comunidade nas questões de saúde, instituído no inciso III do artigo 198, CF/88. Em razão dos vetos proferidos
pelo governo federal em relação à participação da comunidade tem-se a Lei nº
8.142/1990, criando os conselhos e as conferências de saúde nos três níveis.
Observa-se que os princípios ético-doutrinários do SUS, como a integralidade ao desenvolver prioritariamente às atividades de promoção e prevenção
a saúde, sem prejuízo dos serviços especializados, a equidade que almeja tratar
de forma diferenciada os desiguais, oferecendo mais a quem precisa mais,
procurando reduzir as desigualdades nos atendimentos e a universalidade, que
favorece a igualdade de acesso a todos os brasileiros ao sistema de saúde, sem
importar onde sejam atendidos, são mecanismos que visam possibilitar que as
determinações da Carta Magna sejam respeitadas.
Percebe-se a preocupação quanto à diretriz constitucional que traduz o
anseio dos atores sociais brasileiros por uma democracia participativa em que
os cidadãos influenciam de maneira decisiva a definição e a execução das políticas de saúde locais.
Nesta perspectiva observa-se o surgimento, na década de 1990, das normas operacionais básicas do SUS – NOB –. Tratam-se de ferramentas importantes, uma vez que possibilitaram democratizar a organização dos serviços de
saúde pública no nosso país.
15 MELO, Enirtes Caetano Prates de; CUNHA, Fátima Terezinha Scaparo;TONINI Tereza. Políticas
públicas In Ensinando a cuidar em Saúde Pública org. Nébia Maria Almeida Figueiredo. São
Caetano do Sul - SP. Yendis editora 2005.p. 62.
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Ao verificar a NOB – 91, percebe-se a transformação dos Estados e Municípios em prestadores de serviço, definindo-se assim uma prestação de serviço mais próxima da população.
Ao analisar a NOB – 92, pode-se averiguar que mesmo sem alterações importantes, provoca-se o inicio do movimento municipalista precursor do documento que promoveu a discussão da ousadia de cumprir e fazer cumprir a lei.
Quanto a NOB – 93, observam-se as definições dos tipos de gestões, a
criação dos Fundos Municipais de Saúde e a criação das Comissões Intergestores Tripartite e Bipartite.
Entende-se que as Comissões Intergestores Bipartites têm como função
principal adaptar as normas operacionais básicas do SUS às condições específicas de cada Estado, fiscalizar a movimentação de recursos repassados para os
Fundos municipais de saúde, elaborar o plano de Saúde e o relatório de gestão
dos Estados, definir os orçamentos municipais para área de Saúde.
Portanto, para que os recursos do governo federal sejam transferidos para
o fundo municipal de saúde deve-se observar o número de habitantes, a existência do Plano Municipal de Saúde, o número de doentes graves e de óbitos
do município, bem como a existência do conselho municipal de saúde, órgão colegiado formado paritariamente por gestores, prestadores de serviços, e
usuários, que tem como função planejar e fiscalizar a atuação dos gestores na
aplicação dos recursos na área de saúde.
Verifica-se que a criação dos Conselhos de Saúde e realização das Conferencias de Saúde são fundamentais para o controle social.
2.2 O Controle social
Observa-se que a participação das entidades e movimentos representativos da sociedade na definição das políticas de Saúde, na gestão e controle de
sua execução, contribui para garantir o cumprimento da lei do SUS, tornando-o democrático e representativo
Busca-se atender os preceitos da Lei Orgânica de Saúde por meio de dois
mecanismos de Controle Social, as Conferências de Saúde e os Conselhos
de Saúde, órgãos colegiados com base nas três esferas de Governo – no nível
Nacional, Estadual e Municipal.
Percebe-se que os conselhos de saúde e as conferencias de Saúde se tornaram um mecanismo estratégico para garantia da democratização do poder
decisório no Sistema Único de Saúde – SUS. Esses espaços devem exercer
importante papel para a efetiva participação da sociedade civil na tomada de
decisão em saúde.
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Verifica-se que, muito embora na legislação brasileira conste diretriz
constitucional da participação popular, através das conferências e dos conselhos de saúde, estes acabam sendo manipulados politicamente na sua composição e funcionamento, comprometendo a representatividade da população e
dificultando o controle social para a efetivação das políticas públicas de saúde.
Afirma-se que a manipulação destas instâncias pelo Poder Executivo contribui para a existência de um vácuo enorme da participação popular nas políticas públicas de ação e gestão da saúde pelos seus usuários, impedindo desta
forma que estes espaços públicos sejam utilizados como meio necessário para
o exercício da cidadania.
Vasconcelos; Pasche declaram:
A mobilização social e a qualificação da participação social, no contexto do pacto
em defesa do SUS, se constituem em requisito indispensável para fortalecer as
outras dimensões do pacto pela saúde, pois sem o acompanhamento e a cobrança
de responsabilidade junto aos gestores do SUS, corre-se o rico de se postergar
indefinidamente a efetivação dos compromissos acordados16.
Neste contexto, é essencial uma reflexão profunda sobre o funcionamento destes órgãos colegiados, necessita-se qualificar a participação social, promover uma reflexão no conceito de controle social como o controle exercido
pelo Estado, por meio da atividade fiscalizadora e disciplinar sobre a sociedade
e os indivíduos. Além de promover o empoderamento individual e coletivo
dos indivíduos.
2.3 O Empoderamento
Observa-se que na sociedade contemporânea o conceito de empoderamento surge a partir dos movimentos de direitos civis nos Estados Unidos
nos anos setenta, através da bandeira do poder negro, como uma forma de
autovaloração da raça e conquista de uma cidadania plena.
Embora originalmente encontremos na língua inglesa o termo empowerment no sentido de “dar poder, autorizar ou permitir a alguém para realizar
uma tarefa sem precisar da permissão de outras pessoas”, percebe-se que se
trata de uma simples doação ou transferência por benevolência que transforma o sujeito em objeto passivo, ou ainda, na construção de habilidades e
competências para um determinado objetivo.
16 VASCONCELOS, Cipriano Maia; PASCHE, Dário Frederico. O Sistema Único de Saúde. In Tratado de Saúde Coletiva. Ed. HUCITEC, Ed, FIOCRUZ. São Paulo e Rio de Janeiro, 2007. p. 557.
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Analisa-se, de acordo com a contribuição de Freire, que na língua portuguesa a interpretação aplicada à palavra empoderamento vem no sentido de
“conquista, avanço e superação por parte daquele que se empodera17”, tornando o sujeito ativo do processo ao qual está envolvido.
Entende-se que o educador brasileiro criou um significado especial para
o empoderamento no contexto da filosofia e da educação. Deixa, portanto
de ser compreendido como um processo que ocorre de fora para dentro do
individuo, percebido no empowerment inglês, passando a processar-se internamente pela conquista, compreendido como um fenômeno de empoderamento.
Na área da saúde, empoderar significa capacitar às pessoas ou comunidades a partir de processos educativos, em qualquer espaço individual ou coletivo, com a intenção de programar estratégias que visem à tomada de decisão,
com fim de garantir fortalecimento das ações positivas para a saúde.
Verifica-se na literatura da Educação em Saúde, bem como na Promoção da Saúde, a importância dos valores do auto - desenvolvimento ou auto
- realização, pela relevância que dão à aquisição das habilidades pessoais para
cuidar de si e ser responsável pela própria saúde.
Martins Junior18 destaca:
[...] Trata-se de um processo de reconhecimento do poder existente, ainda não
exercido, mas disseminado na estrutura social que não escapa a nada e a ninguém.
Se o poder é um elemento da sociedade, apoderamento, ‘ad-poremanto’ significa ‘
trazer o poder mais próximo de si’ [...].
Verifica-se, que ao trazer o poder para mais próximo de si, o indivíduo
ganha a capacidade de melhor interpretar os direitos e interesses das comunidades a que esteja prestando um serviço cidadão, contrapondo-se aos poderes
de quem ordena, decreta, pune, dá prêmios, faz chantagem e manipula.
Percebe-se que o empoderamento trata-se da habilidade de pessoas conseguirem um entendimento e um controle sobre suas forças pessoais, sociais, econômicas e políticas, para poderem agir de modo a melhorar sua situação de vida.
O termo empoderamento empregado neste trabalho deverá ser analisado
na óptica freireana de conquista da liberdade pelas pessoas que tem estado
subordinadas a uma posição de dependência econômica, física ou de qualquer
outra natureza.
17 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de
Janeiro-RJ: Paz e Terra, 1992.
18 MARTINS JUNIOR, Tomaz. Apoderamento. In Sanare – Revista Sobralense de Políticas Públicas. Ano IV, n.1, Jan./Fev./Mar. 2003.p. 56.
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Necessita-se que a participação seja interpretada numa visão ampla que vai
além do compartilhar informações e da oferta de contribuições, pois envolve além
da co-responsabilidade na elaboração conjunta de planos e propostas de ação, a
criação de relacionamentos de confiança mútua e cumplicidade, bem como o
comprometimento e o reconhecimento de interdependência na sociedade.
Tem-se que, com a participação efetiva da comunidade na organização e
execução das políticas públicas de saúde, estimula-se o empoderamento coletivo.
Reconhece-se que o empoderamento, é um processo que ajuda as pessoas
a firmar seu controle sobre os fatores que afetam a sua saúde. Utiliza-se como
sinônimo para habilidades de enfrentamento, suporte mútuo, organização comunitária, sistema de suporte, participação da vizinhança, eficiência pessoal,
competência, auto-estima e auto-suficiência.
Necessita-se de uma mudança de paradigma no conceito de controle
social como um instrumento de controle do Estado sobre o individuo e a
sociedade, passando a ser este, auxiliado pelo processo empoderativo, um instrumento conquistado para propor e fiscalizar a execução das ações de políticas públicas na saúde a serem implementadas nas comunidades.
Freitag ressalta:
Para que as sociedades modernas alcancem esse objetivo supremo da democracia,
precisam educar os seus membros nas regras do jogo, valores e normas democráticos, a partir das bases e desde inicio da vida do indivíduo na sociedade. A educação
assume aqui claramente uma conotação política. A educação vem a ser o processo
de socialização dos indivíduos para uma sociedade racional, harmoniosa, democrática, por sua vez controlada, planejada, mantida e reestruturada pelos próprios
indivíduos que a compõem19.
Verifica-se que, a mudança de paradigma depende de uma educação cívica dos cidadãos, levando-os a participar das discussões políticas na área da
saúde, despertando-os para o exercício da cidadania e demais formas de participação popular que o regime democrático necessita.
Vale ressaltar que o fenômeno do empoderamento coletivo não poderá
ser ensinado de maneira convencional, por se tratar de um processo gradativo
e subjetivo, pois depende do envolvimento individual no processo de crescimento e amadurecimento pessoal através da participação popular no planejamento, execução e fiscalização das ações e políticas de saúde locais.
As pessoas somente se tornam capazes de articularem-se e de agir sob
determinadas formas de organização se, para isso, superarem as confrontações
entre as suas necessidades e seus deveres, sem esquecer que a democracia é
formada pela associação de ideias e de cidadãos.
19
FREITAG, Barbara. Escola, Estado e Sociedade São Paulo: Moraes, 1980.p. 18.
145
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Urge, por intermédio do empoderamento coletivo, a realização de um
controle social para formar uma base social estável, com pressupostos institucionais firmes e uma cultura política bastante desenvolvida.
Acredita-se que com o empoderamento coletivo dos indivíduos nas questões ligadas a saúde pública é possível diminuir a necessidade de intervenção
do Poder Judiciário nas soluções das demandas de direito a saúde, por meio
de liminares que, muitas das vezes, chegam tarde demais.
3
Judicialização
Verifica-se que, nas democracias contemporâneas, o Poder Judiciário tem
sido chamado a tomar decisões com alto teor político, com o intuito de garantir direitos fundamentais.
Acredita-se que este chamamento ocorre em razão do aumento desordenado da legislação, fenômeno conhecido como “inflação legislativa” e pela inércia
do legislador, levando, portanto, o Judiciário a agir, uma vez que este não pode
eximir-se da sua função típica de julgador e guardião da Constituição.
Neste sentido, o fenômeno da Judicialização nas questões políticas é fruto do vazio deixado pelos os poderes Legislativo e Executivo.
Entende-se por Judicialização a expansão do direito e o fortalecimento
das instituições de Justiça, e a inserção dos agentes jurídicos na esfera política
e no mundo real, positivamente ou negativamente, de acordo com a perspectiva do intérprete.
3.1 Judicialização da saúde
Verifica-se que para concretização do direito à saúde conferido pelas
Constituição, vivencia-se um processo sem fim, que passa pelo comprometimento de inúmeras instâncias de poder, dentre as quais, a esfera judicial.
Entretanto, o melhor seria que os Poderes Públicos instituídos levassem
a sério a concretização dos direitos fundamentais e, conseguissem oferecer
um serviço de saúde de qualidade a toda a população, independentemente de
qualquer manifestação do Poder Judiciário.
Averigua-se que o fenômeno crescente da Judicialização política e social,
que emergiu com a crise de representação do Legislativo e o recuo do Executivo no campo dos direitos sociais, vêm (re) configurando o perfil dos operadores do direito, ampliando de modo significativo as suas ações em defesa da
cidadania e dos direitos humanos.
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3.2 Judicialização da saúde no Brasil
No Brasil, as demandas relacionadas às questões de saúde também fazem
parte do elevado número estatístico de processos conflituosos entre o Estado e
os indivíduos, razão pela qual o Poder Judiciário tem sido chamado a sanar as
querelas por meio de sentenças jurídicas com o intuito de garantir e efetivação
dos direitos fundamentais.
Acompanhando a mídia nacional, percebemos que constantemente o Poder Judiciário tem sido acionado para garantir o direito fundamental à vida de
algumas pessoas que necessitam de tratamento e medicamento que não estão
elencados na relação disponibilizada pelo SUS, através da Agencia Nacional
de Vigilância Sanitária - ANVISA, emitindo mandados para cumprimento
pelo Executivo dando ensejo ao fortalecimento do fenômeno da judicialização
do direito à saúde.
Neste sentido, Barroso enfatiza:
Uma das instigantes novidades do Brasil dos últimos anos foi à virtuosa ascensão institucional do Poder Judiciário. Recuperadas as liberdades democráticas e,
garantias de magistratura, juízes e tribunais deixaram de ser um departamento
técnico especializado e passaram a desempenhar o papel político dividindo espaço
com o Legislativo e o Executivo20.
Percebe-se, que esta nova realidade passou a cobrar uma modificação
substantiva na relação da sociedade com as instituições judiciais, impondo
reformas estruturais e suscitando questões complexas acerca da extensão de
seus poderes.
Diante do exposto verifica-se que o constitucionalismo brasileiro encontra-se em um momento importante quanto às práticas jurisprudenciais, com
a mudança de paradigma em razão do compromisso com a efetividade de
suas normas e elaboração cientifica no desenvolvimento de uma dogmática de
interpretação constitucional.
Percebe-se em conformidade com contribuições de Sarlet21, que o constitucionalismo brasileiro deu um enorme passo rumo à afirmação dos direitos
fundamentais sociais, em especial o direito a saúde, ao reconhecer por meio
da hermenêutica dos direitos fundamentais o seu caráter normativo e sua aplicabilidade imediata.
20
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito – O triunfo
do direito constitucional no Brasil. Revista de direito administrativo, n.240. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
21 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Livraria do Advogado. Porto
Alegre, 1998.p. 215.
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Observe-se a ementa do Ag. Reg. na suspensão de tutela antecipada 175
do Ceará pelo pleno do STF em 17/03/2010:
EMENTA: Suspensão de segurança. Agravo Regimental. Saúde Publica. Direitos
Fundamentais sociais. Art. 196 da Constituição. Audiência Pública. Sistema Único de Saúde – SUS. Políticas públicas. Judicialização do direito à saúde. Separação
de poderes. Parâmetros para solução judicial dos casos concretos que envolvem
direito à saúde. Responsabilidade solidária dos entes da Federação em matéria de
saúde. Fornecimento de medicamento: Zavesca (miglustat). Fármaco registrado
na ANVISA. Não comprovação de grave ameaça lesão à ordem, à economia, à
saúde e à segurança públicas. Possibilidade de ocorrência de dano inverso. Agravo
regimental a que se nega provimento.
Percebe-se que a atuação do Poder Judiciário tem sido fundamental
para o exercício da cidadania, haja vista que suas decisões levam à garantia de
prestações dos direitos sociais, muita das vezes contrastando com as políticas
estabelecidas pelos governos para a área de saúde e além das possibilidades
orçamentárias.
Ao verificar os argumentos dos poderes públicos brasileiros para não efetivarem as políticas publicas de saúde encontram-se a explicação no fato de
que o direito a saúde foi positivado como norma de eficácia limitada, além
de não disporem de recursos suficientes e, finalmente, não ser competência
do Poder Judiciário decidir sobre alocação e destinação dos recursos públicos.
Sarlet leciona:
O questionamento é relevante, especialmente em razão das reiteradas decisões judiciais que, baseadas em entendimento do Direito à saúde como poder individual a
ser exercido a margem da coletividade, obriga os entes públicos a financiar, das mais
variadas formas, ações e serviços sem qualquer viabilidade da universalização 22.
Entretanto, entende-se que este entendimento não deve prevalecer, considerando se tratar do direito a preservação da vida.
Neste sentido Sarlet aduz que:
Não esqueçamos de que a mesma constituição que a consagrou o direito a saúde, estabeleceu – evidenciando, assim o lugar de destaque outorgado ao direito à
vida – uma vedação praticamente absoluta (salvo em caso de guerra regularmente
declarada) no sentido da aplicação da pena de morte (art. 5º, inciso XLVII “a”23).
Ao analisar o entendimento da jurisprudência nacional, verifica-se está
embasado no sentido de confirmar a importância teórica e prática do tema em
razão do envolvimento não apenas dos operadores do direito, mas também dos
gestores públicos, profissionais de saúde e da sociedade civil como um todo.
22 Idem, p. 237.
23 Ibidem, p. 298.
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Percebe-se a intervenção constante do Poder Judiciário nas esferas executivas e legislativas nos momentos de omissão quanto à aplicação dos recursos
na área da saúde como única ferramenta de acesso do usuário ao Sistema
único de Saúde por faltas de políticas públicas que não têm a organização,
planejamento, gestão e fiscalização por parte dos órgãos colegiados criados
para este fim.
Entende-se que estas intervenções não são salutares ao processo democrático de direito, uma vez que deixam fora das discussões os maiores interessados na saúde pública do Brasil, os usuários.
Conclusão
Observa-se que a democracia, enquanto regime de governo, tem ocupado lugar de destaque nos estudos das teorias políticas contemporâneas e, apesar de sua hegemonia, trata-se de conceito o mais descrito e controverso entre
as correntes e os pensamentos políticos da atualidade, tornando-se vítima de
seu próprio sucesso, considerando-se suas variadas características.
Ao instituir a saúde como direito de todos e dever do Estado, o Brasil
conclama o exercício da cidadania por meio da participação da sociedade na
área da saúde, tanto na gestão de sistemas de saúde, quanto na gestão clínica
esta ainda muito incipiente, em razão da não capacitação cívica do usuário do
sistema de saúde.
Compreende-se que, para alcançar o direito à saúde no SUS como foi
pensado pelo constituinte de 1988, somente será possível quando as pessoas
e nvolvidas nas ações e serviços de saúde da comunidade local conseguirem
se apoderar da filosofia e da práxis do sistema de saúde pública por meio da
efetiva participação individual e coletiva, promovendo o empoderamento e
fortalecendo o controle social.
Observa-se que a grande dificuldade para, objetivamente, alcançar o empoderamento coletivo está em produzir metodologias (meios palpáveis) para
estimular os cidadãos a participarem do processo de planejamento e gestão
das ações de saúde nas comunidades.
Assim, necessita-se avaliar os desafios encontrados e as possibilidades
apresentadas para uma real participação social no país, ressalta-se a necessidade de presença ativa dos sujeitos na construção do processo democrático no
SUS e abrir a discussão sobre a necessidade de empoderamento/libertação da
população usuária do sistema.
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Portanto, devem-se promover ações que visem à promoção de políticas
publicas social e de saúde nas comunidades, tais como sensibilização dos gestores, servidores e prestadores de serviço das unidades de saúde, além de favorecer a educação continuada nas capacitações dos conselheiros para exercerem
suas funções de promotores da saúde, dos agentes sociais e lideres comunitários, para que estes estimulem as discussões nas comunidades com os usuários
do sistema de saúde.
Como a justiça política está intimamente ligada às possibilidades do debate democrático, entendemos que a criação de espaços públicos que possibilitem a participação nas decisões acerca do setor saúde a serem desenvolvidas
pelos cidadãos é uma maneira de fortalecer o exercício da cidadania e a educação cívica.
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Referências
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GOYARD-FABRE, Simone. O que é Democracia? São Paulo: Martins Fontes, 2003.
HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição: Tradução de Gilmar Mendes. Porto Alegre RS: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.
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Ano IV, n.1, Jan./Fev./Mar. 2003.
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Livraria do Advogado. Porto Alegre,
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VASCONCELOS, Cipriano Maia; PASCHE, Dário Frederico. O Sistema Único de Saúde. In Tratado
de Saúde Coletiva. Ed. HUCITEC, Ed, FIOCRUZ. São Paulo e Rio de Janeiro, 2007.
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INEFICÁCIA SOCIAL DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS DO PRESO NO SISTEMA
CARCERÁRIO BRASILEIRO
1
Carla Aguiar Magalhães Araújo2
Resumo: Este trabalho objetivou realizar uma breve reflexão sobre a problemática das normas
que tratam do sistema carcerário brasileiro, com foco na análise da eficácia dos direitos fundamentais do preso diante do sistema. Dissertou-se, inicialmente, sobre Jusnaturalismo, Positivismo Jurídico e Pós–Positivismo, diferenciando-se regras e princípios (normas). Na sequência, discorreu-se sobre conceito, características, funções e eficácia dos direitos fundamentais,
detendo-se brevemente sobre o princípio da dignidade da pessoa humana. Posteriormente,
descreveram-se alguns direitos fundamentais do preso, elencados na Constituição Federal,
além de outros regulamentados na Lei nº 7.210/84, culminando no sistema carcerário brasileiro. A metodologia utilizada para a concretização do objetivo proposto consistiu em um
estudo exploratório-descritivo, de natureza qualitativa, mediado pela pesquisa bibliográfica.
Palavras-chave: dignidade da pessoa humana; direitos fundamentais; sistema carcerário.
Abstract
this work aimed to make a brief reflection on the problem of standards
which deal with the Brazilian prison system, focusing on the analysis of the
arrested fundamental rights effectiveness before the system. Spoke initially on
Legal Positivism, Natural Law and Post Positivism, making differences between rules and principles (norms). As a result, spoke out about the concept,
characteristics, functions and effectiveness of fundamental rights, detaining
briefly about the human dignity principle. Later, described some arrested fundamental rights, listed in the Federal Constitution, as well as other regulated
by law nº 7.210/84, culminating in the Brazilian prison system. The methodology used in carrying out the proposed goal consisted in an exploratory-descriptive study of a qualitative nature, mediated by the bibliographic search.
1
Trabalho desenvolvido sob a orientação do Prof. André Luiz Tabosa de Oliveira, Mestre em Direito
pela Universidade Federal do Ceará (UFC), apresentado à Coordenação do Curso de Especialização
em Direito Constitucional (VI) da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC)
no ano de 2012 como requisito parcial para obtenção do título de especialista em Direito Constitucional.
2
Graduada em Direito e em Fisioterapia pela Universidade de Fortaleza (Unifor). Técnica
Judiciária do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. E-mail: <[email protected]>.
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Keywords: the dignity of the human person; fundamental rights;
prison system.
Introdução
Em pleno século XXI, numa época em que se evidenciam grandes aprimoramentos nas mais diversas áreas do conhecimento científico, convive-se
com alguns noticiários que revelam as péssimas condições em que vive o ser
humano que habita os cárceres deste País. As notícias veiculadas pela mídia
brasileira têm mostrado pessoas amontoadas umas sobre as outras, sem dispor
de condições de alimentação, repouso, higiene, saúde ou quaisquer outras que
lhes possibilitem a permanência em todos os níveis do sistema prisional.
Essa é apenas uma das muitas facetas da realidade em que convivem no
mesmo espaço avanços (teóricos) e retrocessos (em sua implementação), provocando reações as mais diversas de inúmeros segmentos da sociedade.
A partir deste século, a doutrina começa a desenvolver uma nova perspectiva em relação ao constitucionalismo, denominada Neoconstitucionalismo ou Pós-Positivismo, abandonando a visão meramente retórica da Constituição e buscando conferir efetividade às normas constitucionais. Hoje, não
basta uma norma estar simplesmente prevista na Constituição, é necessário
que ela produza efeitos concretizando direitos. Os princípios surgem, aqui,
com força de normas jurídicas vinculantes: deixam de possuir apenas a função
integratória do Direito, diferentemente do que ocorria na época positivista,
quando tinham função meramente subsidiária, ou seja, só eram utilizados
para suprir vácuos normativos que as leis não conseguiam perfazer.
Nesse cenário pós–positivista, a Constituição Federal de 1988, em seu
art. 1º, inciso III, erigiu a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental, com função ordenadora, bem assim ação imediata, a exemplo dos
demais princípios fundamentais, como ensina Miranda3. Desse modo, enquanto diretamente aplicável ou diretamente capaz de conformar as relações
político-constitucionais, sua ação imediata consiste, em primeiro lugar, em
funcionar como critério de interpretação e integração, imprimindo coerência
ao sistema.
Daí perceber-se a importância que foi conferida a esse princípio pelo
legislador constituinte da nova ordem jurídica brasileira, tornando-o, dessa
feita, norteador de toda atividade estatal.
3
MIRANDA apud SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 27.
ed. atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2006. p. 95.
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Vislumbrando-se a existência de condições subumanas de encarceramento neste País, as quais ferem os direitos fundamentais mais comezinhos do ser
humano, surgiu o interesse pelo estudo do tema a partir do questionamento
sobre o respeito aos direitos fundamentais desses indivíduos que ingressam no
sistema carcerário.
Nesse contexto, buscou-se analisar a questão, realizando-se, para tanto, um
estudo exploratório-descritivo, de natureza qualitativa, mediado pela pesquisa
bibliográfica na legislação, doutrina e jurisprudência pertinentes à matéria.
Os resultados obtidos distribuem-se em nove seções, iniciando-se com a
conceituação de Jusnaturalismo, Positivismo Jurídico e Pós–Positivismo, passando pela diferenciação entre regras e princípios (normas), pela apresentação do conceito, características, funções e eficácia dos direitos fundamentais e
por uma abordagem breve sobre o princípio da dignidade da pessoa humana.
Posteriormente, discorre-se acerca de alguns direitos fundamentais do preso,
elencados na Constituição Federal, além de outros regulamentados na Lei nº
7.210/84, culminando na reflexão sobre o respeito aos direitos fundamentais
do preso no sistema carcerário brasileiro, escopo do estudo.
1 O Jusnaturalismo, o juspositivismo e o pós-positivismo
O Positivismo Jurídico, segundo Bobbio4, nasceu da necessidade de se
transformar o Direito em uma ciência, a exemplo das físico-matemáticas, naturais e sociais, portanto, moldado com a mesma característica fundamental
de uma ciência que é a sua avaloratividade. Nesse sentido, o positivista jurídico assume uma atitude científica frente ao Direito, estudando-o tal como é
e não como deveria ser, excluindo toda qualificação fundada em valor e que
comporte distinção entre direito bom e mau. No estudo em tela, baseando-se
no entendimento juspositivista segundo o qual o Direito é aquele que efetivamente se manifesta na realidade histórico-social, optou-se por tomá-lo como
fato e não como valor.
Sobre a passagem do Jusnaturalismo para o Juspositivismo, Soares5 informa que ocorre com a formação do Estado moderno, advindo da queda
da sociedade medieval. A partir desse momento histórico, somente o Estado
poderia prescrever o Direito. O juiz seria órgão do Estado, titular de um dos
poderes estatais, o Judiciário, subordinado ao Legislativo.
Os estudiosos do Direito, no Juspositivismo, estudavam o direito “real”
4
5
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. São Paulo: Ícone, 1995. p.134.
SOARES, Ricardo Maurício Freire. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 43.
155
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sem se perguntar se além dele existiria um direito ideal. Sem examinar se
aquele corresponderia a este. E, sobretudo, sem fazer depender a validade do
direito real da sua correspondência ao direito ideal. Para eles, a escravidão seria
considerada um instituto jurídico como qualquer outro, independentemente
de sua valoração negativa. Então, dizer-se que uma norma jurídica seria válida
significava dizer-se que ela pertenceria a um ordenamento jurídico. Acreditavam somente num Direito posto. Era a época das codificações.
Havia ainda alguns juspositivistas que chegavam ao extremo de entender
uma norma como “justa” simplesmente por estar positivada, isto é, contida em
um ordenamento jurídico, reduzindo o conceito de valor ao de validade (uma
norma jurídica é justa pelo fato de ser válida, assim entendida por provir de uma
autoridade legitimada pelo ordenamento jurídico para estabelecer normas).
Falando sobre Juspositivismo, Bobbio6 assim ensina:
O Positivismo Jurídico, definindo o direito como um conjunto de comandos emanados pelo soberano, introduz na definição o elemento único de validade, considerando portanto normas jurídicas todas as normas emanadas num determinado
modo estabelecido pelo próprio ordenamento jurídico, prescindindo do fato de
estas normas serem ou não aplicadas na sociedade: na definição do direito não se
introduz assim o requisito da eficácia. (Grifo do autor).
Os jusnaturalistas entendiam diversamente dos juspositivistas. Para eles,
uma norma seria válida se fosse valorosa (justa), assim, nem todo direito existente é direito válido, porque nem todo ele é justo. Identificavam validade
com valor. Soares7 afirma que, numa das teses defendidas pelos jusnaturalistas, entendia-se a superioridade do direito natural sobre o direito positivo,
pois o primeiro representaria a exigência eterna e imutável de um direito justo.
Então, direito natural seria um referencial valorativo para o direito positivo.
De acordo com Maranhão8, a ascensão do Jusnaturalismo está ligada
à necessidade de ruptura com o absolutismo, enquanto sua decadência relaciona-se ao movimento de codificação do Direito, ocorrido no século XVIII.
O fortalecimento do Juspositivismo está ligado à crença exagerada no
poder do conhecimento científico (frio e calculista). Nesse contexto surge
Hans Kelsen, seu principal expositor, com a Teoria Pura do Direito, cujas
ideias ajudaram na evolução dessa doutrina.
6
7
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. São Paulo: Ícone, 1995. p. 142.
SOARES, Ricardo Maurício Freire. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 27.
8
MARANHÃO, Ney Stany Morais. O fenômeno pós-positivista: considerações gerais. Revista Eletrônica Jus Vigilantibus, 25 out. 2009. Disponível em:<http;//jusvi.com/artigos/42392>. Acesso
em: 11 set. 2011.
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Kelsen9, em sua teoria, afirma que o Direito seria constituído por um
sistema escalonado de normas, em forma piramidal, no qual a norma inferior
encontraria seu fundamento de validade na norma que lhe é imediatamente superior, e esta, em outra norma que lhe é superior, sucessivamente, até
alcançar-se o ápice da pirâmide, ocupado pela norma hipotética fundamental,
cuja validade independeria de conteúdo valorativo, limitando-se a conferir
a uma autoridade o poder de estabelecer preceitos. Para ele, quanto mais se
aproximasse do topo da pirâmide mais a norma seria genérica e abstrata, e, ao
contrário, quanto mais próxima da base, mais específica e concreta se tornaria.
A Norma Hipotética Fundamental seria, então, essa norma a mais abstrata e
genérica possível, portanto, sem conteúdo, pressuposta, fornecendo o fundamento de validade ao ordenamento jurídico, constituindo a unidade na
pluralidade de normas. Assim, ela estabeleceria o fundamento de validade da
Constituição e esta, a validade das normas infraconstitucionais, formando,
então, um ordenamento jurídico válido.
Pode-se inferir, desse modo, que o Juspositivismo fundamentava-se na
regulamentação jurídica, determinando o Direito como um fato. Baseava-se
na superioridade da Lei sobre as demais fontes do Direito, as quais correspondem à validade da norma. A maioria de seus defensores sustentava que não
existe obrigatoriamente uma relação necessária entre o Direito, a Moral e a
Justiça, visto que as noções de justiça e moral são relativas, mutáveis no tempo
e no espaço e sem força política para se impor contra a vontade de quem cria
as normas jurídicas. Tal concepção de Direito Positivo levou nações como a
Alemanha a sustentar o Nazismo, e a Itália, o Fascismo.
Barroso10 ensina que o Positivismo Jurídico equiparou o Direito à Lei,
afastou-o da filosofia e de discussões sobre temas como legitimidade e justiça
e dominou o pensamento da primeira metade do século XX. Sua decadência
está associada ao colapso do nazi-fascismo, que promoveu a barbárie sob a
proteção da legalidade. Com o fim da Segunda Guerra (1945), a ética e os
valores começam a retornar ao Direito.
É nesse cenário que surge o Pós-Positivismo, que busca ir além da legalidade estrita, mas também não despreza o direito posto. Aparece na confluência entre o direito positivo e o direito natural. Barroso11 comenta esse
fenômeno:
9 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 186.
10 BARROSO apud MARANHÃO, Ney Stany Morais. O fenômeno pós-positivista:
considerações gerais. Revista Eletrônica Jus Vigilantibus, 25 out. 2009. Disponível
em:<http;//jusvi.com/artigos/ 42392>. Acesso em: 11 set. 2011.
11 Ibid.
157
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O pós-positivismo [...] procura empreender uma leitura moral do Direito, mas
sem recorrer a categorias metafísicas. A interpretação e aplicação do ordenamento
jurídico hão de ser inspiradas por uma teoria de justiça, mas não podem comportar voluntarismos ou personalismos, sobretudo os judiciais. No conjunto de
idéias ricas e heterogêneas que procuram abrigo neste paradigma em construção
incluem-se a atribuição de normatividade aos princípios e a definição de suas relações com valores e regras; a reabilitação da razão prática e da argumentação
jurídica; a formação de uma nova hermenêutica constitucional; e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre o fundamento
da dignidade humana. Nesse ambiente, promove-se uma reaproximação entre o
Direito e a filosofia.
Para o autor12, o direito positivista está em grave crise existencial, pois
não consegue entregar com eficiência os dois produtos que fizeram sua reputação, haja vista que a injustiça passeia pelas ruas com passos firmes e a
insegurança é característica dos tempos atuais.
Nesse contexto, o Pós-Positivismo surge com o ideário difuso, no âmbito do qual se incluem tanto a definição das relações existentes entre valores,
princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica, quanto a teoria
dos direitos fundamentais.
Essa doutrina, afirma Soares13, valoriza o pensamento problemático, baseado na ideia de realização da justiça à luz da singularidade do caso concreto.
Reside nesse ponto a tópica de Theodor Viehweg, que consiste na técnica do
pensamento que se orienta para o problema, assim considerado toda questão
que aparentemente permite mais de uma resposta e pressupõe a ocorrência de
um entendimento preliminar, que deve ser levado a sério, buscando-se uma
resposta como solução.
Maranhão14 ensina que, a partir do Pós-Positivismo, os princípios que
antes tinham apenas juridicidade, posto estarem inseridos no ordenamento
jurídico, ainda que de forma secundária, utilizados basicamente quando a lei
se tornava insuficiente para solucionar o caso concreto, atualmente gozam
também de normatividade (capacidade de vincular, de conformar condutas).
Além disso, os princípios alcançaram posição privilegiada no ordenamento
jurídico, sendo inseridos na Constituição, alcançando, então, supremacia no
reino jurídico.
12 BARROSO apud MARANHÃO, Ney Stany Morais. O fenômeno pós-positivista:
considerações gerais. Revista Eletrônica Jus Vigilantibus, 25 out. 2009. Disponível
em:<http;//jusvi.com/artigos/ 42392>. Acesso em: 11 set. 2011.
13 SOARES, Ricardo Maurício Freire. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2010. p.102.
14 MARANHÃO, Ney Stany Morais. Op. cit.
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Com o Pós-Positivismo surge a expressão Neoconstitucionalismo, que,
segundo Soares15, significa justamente a normativização da Constituição (as
normas constitucionais têm status de normas jurídicas e passam a ter eficácia
direta e imediata, independentemente de atividade do legislador e do administrador). Ocorre, ainda, a frequente utilização desses princípios jurídicos no embasamento de processos hermenêuticos e decisórios, que, sendo espécies normativas, permitem conciliar ideais de justiça (legitimidade – típica do Jusnaturalismo) com exigências de segurança (legalidade - típica do Juspositivismo).
Luís Roberto Barroso assim o descreve:
[...] o neoconstitucionalismo ou novo direito constitucional, na acepção aqui desenvolvida, identifica um conjunto amplo de transformações ocorridas no Estado
e no direito constitucional, em meio às quais podem ser assinalados, (i) como
marco histórico, a formação do Estado constitucional de direito, cuja consolidação
se deu ao longo das décadas finais do século XX; (ii) como marco filosófico, o pós-positivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e ética; e (iii) como marco teórico, o conjunto de mudanças que incluem
a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o
desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional. Desse
conjunto de fenômenos resultou um processo extenso e profundo de constitucionalização do Direito. (Grifos do autor)16.
Com isso, os princípios libertam-se daquela ideia de terem apenas valia
ética e passam a ter plena vinculatividade jurídica, tornando-se importantes
para o atual Direito. Na visão pós-positivista, a materialização de um direito
justo passaria pelo uso adequado dos princípios jurídicos. Daí hoje a necessidade premente de diferenciá-los das regras.
2
Diferenças entre regras e princípios (normas)
A proposta que se pretende levar a termo nesta seção toma por base os
ensinamentos de J. J. Canotilho17, que, buscando efetuar uma diferenciação
entre o que sejam regras e princípios, estabelece como critérios o grau de
abstração, o grau de determinabilidade, o caráter de fundamentalidade no
sistema das fontes de direito, da proximidade da ideia de direito e, por fim, a
natureza normogenética de cada um.
15
16
SOARES, Ricardo Maurício Freire. Op. cit., p.125.
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. (O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil). Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado
(RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 9, mar/abr/maio, 2007. Disponível
em: <http//www.direitodoestado.com.br/ rere.asp>. Acesso em: 21 ago. 2011.
17 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993. p. 166.
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Canotilho18 leciona que princípio exprime a noção de mandamento nuclear de um sistema. Trata-se de normas com alto grau de abstração, que, por
sua indeterminação, precisam de mediação na aplicação ao caso concreto não têm aplicação direta. Princípios têm natureza ou papel fundamental no
ordenamento jurídico tendo em vista sua posição hierárquica no sistema das
fontes ou sua importância estruturante no sistema jurídico. Estão vinculados
às exigências do valor justiça. Pela sua natureza normogenética, os princípios
são normas que dão origem às regras.
Regras, por sua vez, possuem abstração relativamente reduzida, são suscetíveis de aplicação direta e originam-se de princípios.
Referido autor ensina que os princípios são multifuncionais, pois tanto
podem desempenhar uma função argumentativa, por exemplo, denotando
a ratio legis de uma disposição, quanto revelar normas que não são expressas
por qualquer enunciado legislativo, possibilitando aos juristas, sobretudo aos
juízes, o desenvolvimento, integração e complementação do Direito.
Pode-se, então, compreender que princípios são bases sobre as quais se
estabelecem as regras. Possuindo conteúdo aberto, possibilitam a realização de
operações por intermédio das quais se descortina, para o intérprete (magistrado), a possibilidade de escolher, no caso concreto, sua melhor aplicação, o que
o autor chama otimização.
Alexy, utilizando-se da expressão mandamentos de otimização, diferencia regras de princípios:
O ponto decisivo na diferenciação entre princípios e regras é que princípios são
normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das
possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Assim, princípios são mandamentos
de otimização, ou seja, podem ser satisfeitos em graus variados e ainda pelo fato
de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades
fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes. Já as regras são normas
que são sempre satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então deve se fazer
exatamente o que ela exige; nem mais nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. Isto significa
que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa e não uma
distinção de grau. Toda norma é ou uma regra ou princípio19.
Para o autor, regras ensejam questões de conflito e princípios, questões
de colisão. Ambos têm em comum o fato de que duas normas, caso isoladamente aplicadas, levariam a resultados inconciliáveis, distinguindo-se, nesse
caso, uma da outra pela forma de solução.
18 Ibid., p.166.
19 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São
Paulo: Malheiros Editores, 2008. p. 90.
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Entretanto, quando um conflito envolve regras a decisão a ser tomada é
uma decisão sobre validade - uma das regras terá de ser considerada inválida.
Quando envolve colisão de princípios, a decisão remete a uma questão de
precedência (de peso) - um dos princípios terá que ceder lugar ao outro, mas
nem um nem outro será declarado inválido, apenas um será afastado em razão
de que, numa dada situação concreta, terá menos peso do que o outro (sopesamento/ponderação). Assim, diante de uma situação concreta, um princípio
com peso relativamente maior se sobreporá ao outro, sem que este outro perca
sua validade.
Resolvem-se problemas quanto às regras antinômicas por intermédio dos
bastante conhecidos critérios da hierarquia, especialidade e cronologia. Já os
princípios colidentes resolvem-se mediante sopesamento.
Para Dworkin20, regras, se válidas, devem ser aplicadas na base do tudo
ou nada (são definitivas), enquanto princípios apenas contêm razões que
apontam uma direção (razões prima facie), não apresentando como consequência necessária uma determinada decisão.
Pode-se afirmar categoricamente a importância dos princípios como fonte integradora do Direito.
Nesse ponto, sabendo-se que o cerne deste trabalho diz respeito a direitos fundamentais, e que estes são orientados pelo princípio da dignidade da
pessoa humana, cumpre aqui falar um pouco desse princípio, que no processo neoconstitucionalista adquiriu status constitucional, tendo em vista que
a razão essencial de um direito justo não é outra senão o homem, com sua
dignidade substancial de pessoa.
Assim, esse valor foi inserido em profusão nas constituições dos Estados
e nos documentos da ordem internacional após a Segunda Guerra, tendo em
vista os horrores praticados naquela ocasião, com o objetivo de impedir qualquer forma de degradação, aviltamento ou coisificação da condição humana.
3 Princípio da dignidade da pessoa humana
A dignidade da pessoa humana já pode ser evidenciada desde os remotos tempos da antiguidade, ensina Soares21, por intermédio de jusfilósofos,
para quem se relacionava com a posição social do indivíduo e o seu grau de
reconhecimento pelos demais integrantes da sociedade. Na idade medieval,
DWORKIN apud ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio
Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. p.104.
21 SOARES, Ricardo Maurício Freire. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 131.
20
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segundo a religião cristã, o homem é associado à imagem de Deus, daí seu
valor intrínseco.
No século XX, frente às barbáries e atrocidades cometidas contra o ser
humano na Segunda Guerra Mundial, robusteceu-se a luta por sua afirmação.
A partir de então passou a ser fortalecida como fonte dos direitos fundamentais
e inserida nos grandes textos internacionais (como a Declaração Universal dos
Direitos do Homem) e nacionais (como as constituições dos diversos países).
Sarlet, citado por Bernard, conceitua dignidade da pessoa humana como:
A qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do
mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando,
neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a
pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como
venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável,
além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos
da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos22.
Na visão de Moraes:
A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que
traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se
um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que,
somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos
fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem
todas as pessoas enquanto seres humanos23.
O princípio da dignidade da pessoa humana, segundo Moraes24, funda-se em quatro corolários: igualdade, liberdade, integridade psicofísica e solidariedade.
Igualdade, não aquela formal, mas a material ou substancial, segundo a
qual se trata igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, buscando, assim, suprir os desníveis econômicos, sociais e intelectuais entre os indivíduos
e possibilitar igualdade de oportunidades para todos, no que se pode entender
como o reconhecimento do direito fundamental à diferença, evitando, dessa
forma, o domínio do mais forte sobre o mais fraco.
22
SARLET apud BERNARD, Wesley de Oliveira Louzada. O princípio da dignidade da pessoa
humana e o novo direito civil: breves reflexões. Revista da Faculdade de Direito de Campos, ano
7, n. 8, jun. 2006. Disponível em: <http://www.fdc.br/Arquivos/Mestrado/Revistas/Revista08/
Artigos/Wesley>. Acesso em: 14 set. 2011.
23 MORAES. Alexandre de. Direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2000. p.48.
24 MORAES apud BERNARD, Wesley de Oliveira Louzada. O princípio da dignidade da pessoa
humana e o novo direito civil: breves reflexões. Revista da Faculdade de Direito de Campos, ano
7, n. 8, jun. 2006. Disponível em: <http://www.fdc.br/Arquivos/Mestrado/Revistas/Revista08/
Artigos/Wesley>. Acesso em: 14 set. 2011.
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Liberdade, cujo exercício estará limitado pelos direitos, liberdades e garantias alheias e ainda pela solidariedade. Nesse sentido, sempre que o exercício da liberdade conflitar com a solidariedade social, há que se operar uma
ponderação entre os valores em conflito para, no caso concreto, sem negar-se
vigência a qualquer deles, identificar-se e aplicar-se aquele que implicar maior
proximidade da promoção da dignidade da pessoa humana.
Integridade psicofísica, entendendo-se como tal o direito dos indivíduos
de não sofrer violações em seu corpo ou em aspectos de sua personalidade,
incluídos aí temas como a bioética e o biodireito, e de exigir uma ação positiva
por parte do Estado no sentido de lhes garantir o direito à saúde e à moradia,
sem os quais não há que se falar em dignidade da pessoa humana.
Solidariedade, compreendida como o reconhecimento do homem no
outro, seu semelhante, e no sentido de que o Estado desenvolva ações visando
assegurar condições materiais mínimas de subsistência, como os direitos à
alimentação, à educação de qualidade, à habitação e à saúde, dentre outros.
De acordo com o conceito, vê-se que o princípio da dignidade humana
cobra dos poderes instituídos (Executivo, Legislativo, Judiciário) ações ativas
(prestacionais materiais ou jurídicas), no sentido de implementarem direitos
fundamentais dos indivíduos, e passivas, manifestas em inações do Estado
tendentes a coibi-lo de usurpar-lhes tantas outras liberdades.
Sabendo-se, como já dantes dito, que em uma Constituição existem
princípios de diferentes graus de concretização, ensina J. J. Canotilho25 que
os existentes em primeira linha são os chamados princípios estruturantes fundamentais, aqueles constitutivos e indicativos de ideias diretivas básicas de
toda a ordem constitucional. Neste país, foi com esse status que o legislador
constituinte inseriu o princípio da dignidade da pessoa humana no Texto
Constitucional, que, em seu art. 1º, inciso III, reconhece a dignidade como
elemento fundamental legitimador do Sistema Jurídico Nacional, in verbis:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
Direito e tem como fundamentos: [...] III - a Dignidade da Pessoa Humana; [...]
Sendo princípio estruturante do ordenamento jurídico brasileiro ele assume grande importância, orientando todos os direitos fundamentais, impondo
ao Estado o dever de abstenção e de assunção de condutas positivas tendentes
a efetivar e proteger a pessoa humana, buscando oferecer-lhe, assim, uma vida
digna. E, bem assim, deve servir como norte para o legislador em sua função
legiferante e ao intérprete, na aplicação do ordenamento ao caso concreto.
25 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993. p. 180.
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No ápice do ordenamento pátrio encontra-se a Constituição Federal,
sobre cujas normas, por pertinência com a matéria em discussão, discorre-se
na sequência.
4
Constituição
As constituições rígidas (aquelas em que as alterações das demais normas
jurídicas da ordenação estatal ensejam maiores dificuldades), como é o caso
da brasileira, estão postas no ordenamento jurídico como seu elemento mais
importante, em seu topo. A fim de entendê-las melhor, busca-se conceituá-las, demonstrando seu objeto e conteúdo, além de discorrer-se acerca da classificação, eficácia e aplicabilidade de suas normas nos tópicos que seguem.
4.1 Conceito
Para Canotilho:
Constituição é uma ordenação sistemática e racional da comunidade política,
plasmada num documento escrito, mediante o qual se garantem os direitos fundamentais e se organiza, de acordo com o princípio da divisão de poderes, o poder
político26.
Silva27 busca formular uma concepção estrutural de constituição. Assim,
para ele, constituição seria a lei fundamental de um Estado, a organização de
seus elementos essenciais, um sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regulam a forma de Estado, a forma de governo, o modo de
aquisição e de exercício de poder, o estabelecimento de seus órgãos, os limites
de sua ação, os direitos fundamentais do homem e as respectivas garantias.
Tem forma, conteúdo, fim e causa. Como forma, um complexo de normas
escritas ou costumeiras; como conteúdo, a conduta humana motivada pelas
relações sociais (políticas, econômicas, religiosas etc.); como fim, a realização
dos valores que apontam para o existir da comunidade; e como causa de sua
criação e recriação, o poder que emana do povo.
4.2 Classificações das normas constitucionais
Diversas são as classificações que visam agrupar as normas constitucionais. Aqui, reporta-se à elaborada por Mendes, Coelho e Branco28. Para eles, as
26 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993. p. 12
27 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 27. ed. atual. São Paulo: Malheiros
Editores, 2006. p. 39.
28 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet.
Curso de direito constitucional. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 46.
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normas constitucionais podem ser classificadas, com relação à matéria própria
de toda norma constitucional, em materiais e formais; com relação à sua executoriedade, em normas operativas e programáticas; igualmente, levando-se
em conta a eficácia e aplicabilidade das normas, em normas autoexecutáveis
e não autoexecutáveis; e, por fim, quanto à matéria que disciplinam, em normas de organização e normas definidoras de direitos.
Quanto à classificação em constitucionais materiais e formais, as materiais são aquelas normas que dizem respeito aos limites e atribuições dos
poderes políticos e aos direitos políticos e individuais dos cidadãos, enquanto
as formais contemplam todas as normas que estão na Constituição independentemente do seu conteúdo.
No tocante às normas operativas e programáticas, tem-se que as últimas
são aquelas que definem objetivos cuja concretização depende de providências
situadas fora ou além do texto constitucional, ao passo que as primeiras são
aquelas dotadas de eficácia imediata ou aquelas cuja eficácia não depende de
condições institucionais ou de fato.
Em relação às normas constitucionais autoexecutáveis e não autoexecutáveis, autoexecutáveis são aquelas disposições que estabelecem os meios pelos quais se possa exercer ou proteger o direito que conferem, ou cumprir o
dever ou desempenhar o encargo que impõem. Não autoexecutáveis, por sua
vez, consistem naquelas normas incompletas ou insuficientes, que precisam
da mediação do legislador para que editem as normas infraconstitucionais
regulamentadoras.
Por último, quanto às normas de organização e normas definidoras de
direitos, aquelas são as que dispõem sobre a organização dos poderes do Estado, sua estrutura, competência, articulação recíproca e o estatuto de seus
titulares, enquanto estas são as que definem os direitos fundamentais dos
jurisdicionados (grifos nossos).
4.3 Eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais
Há que se entender que todas as normas constitucionais são dotadas de
alguma eficácia. Umas apresentam eficácia jurídica e social, enquanto outras,
apenas eficácia jurídica.
A eficácia social se verifica quando uma norma vigente, ou seja, com
potencialidade para regular certas relações, é efetivamente aplicada aos casos
concretos. A eficácia jurídica decorre da simples vigência da norma, pois no
momento de sua edição ocorre a revogação de todas as normas anteriores que
com ela conflitem.
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José Afonso da Silva29 classificou as normas constitucionais quanto à sua
aplicabilidade e eficácia da seguinte maneira:
Normas de eficácia plena – são as normas que, no momento em que entram em vigor, estão aptas a produzir todos os seus efeitos, independentemente da edição de uma norma infraconstitucional. Essas normas não precisam de
nenhuma complementação posterior para sua aplicação. Portanto, sua aplicabilidade é imediata, a exemplo do que se verifica no art. 5º, III, da CF/88,
que estabelece que “[...] ninguém será submetido à tortura nem a tratamento
desumano ou degradante; [...]”.
Normas de eficácia contida – são as normas constitucionais que já nascem com as condições necessárias para produzir todos os seus efeitos, no entanto, norma infraconstitucional que vier a ser publicada poderá provocar a
restrição de sua abrangência.
É o que ocorre no caso do inciso XIII do art. 5º da CF/88, que dispõe
sobre a liberdade de exercício “[...] de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer; [...]”. Assim,
enquanto não for editada a lei que estabelece as condições para o exercício
de determinada profissão, poder-se-á exercê-la com plenitude. Portanto, sua
aplicabilidade é imediata.
Normas de eficácia limitada – são as que, no momento da promulgação da Constituição, não apresentam a capacidade de produzir todos os seus
efeitos, necessitando, portanto, de uma lei infraconstitucional para que possam ser aplicadas. Nesse caso, sua aplicabilidade é mediata. Exemplificando,
podem-se citar as normas programáticas, veiculadoras de programas a serem
implementados pelo Estado (art. 7º, XX, CF/88, que dispõe sobre a proteção
do mercado de trabalho da mulher).
Cumpre ressaltar, aqui, que a vigente Constituição brasileira, em seu art.
5º, § 1º, estabelece que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Mendes, Coelho e Branco explicitam que
as normas que definem direitos fundamentais “são normas de caráter perceptivo, e não meramente programático30”, querendo com isso dizer que os
dispositivos que regem os direitos fundamentais não são meramente normas
matrizes de outras normas, mas, sobretudo, diretamente reguladoras das relações jurídicas. Afirmam que os juízes devem aplicar diretamente as normas
29 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 27. ed. rev. e atual. São Paulo:
Malheiros Editores, 2006. p. 180.
30 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 287.
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constitucionais para resolver os casos submetidos à sua apreciação. Para os autores, não é necessário que o legislador venha, antes, a repetir ou esclarecer os
termos da norma constitucional; chamam a atenção, nesse ponto, para o fato
de que a eficácia das normas constitucionais está atrelada à sua apresentação
dos elementos mínimos indispensáveis que lhes assegurem a aplicabilidade.
Aqui, faz-se uma parada na discussão em tela para somente se retornar ao
assunto após a tessitura de algumas considerações pertinentes sobre direitos
fundamentais.
5
Direitos fundamentais
Depois de se apresentar as classificações e se discorrer sobre a eficácia e
a aplicabilidade das normas constitucionais aporta-se nos direitos fundamentais, cujo interesse é primordial para o estudo que ora se constrói, tendo em
vista que se propõe a mostrar quais os direitos fundamentais do preso elencados na vigente Constituição brasileira, cuja conceituação, evolução, características e funções foram objeto de discussão na seção anterior.
Assim, inicialmente, conceitua-se direito fundamental diferenciando-o
de diversos outros termos.
De acordo com José Afonso da Silva31, direitos fundamentais do homem
referem-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a
ideologia política de cada ordenamento jurídico. Designam, no nível do Direito Positivo, prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de
uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas.
O qualitativo fundamentais indica que se trata de situações jurídicas sem
as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo
sobrevive; fundamentais do homem porquanto todos, por igual, devem ser
não só formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados.
Do homem, no sentido de pessoa humana.
A expressão significa, portanto, direitos fundamentais da pessoa humana
ou direitos fundamentais.
Não se confundem com Direitos naturais, já que são conceituados como
direitos positivos, cujo fundamento e conteúdo residem nas relações sociais
materiais em dado momento histórico.
Quanto a Direitos humanos informa o autor ser hoje expressão contestada, vez que diziam, tempos atrás, que não haveria direitos que não fossem hu31 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 27. ed. rev. e atual. São Paulo:
Malheiros Editores, 2006. p. 177.
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manos, que só o homem poderia ser titular de direitos humanos. No entanto,
modernamente, surge uma corrente que defende a existência de um direito de
proteção aos animais.
Aqui, em reforço ao que leciona José Afonso da Silva, citam-se Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins32 que, buscando diferenciar direitos humanos de direitos fundamentais, ensinam que os primeiros são os direitos fundamentais em
nível internacional, indicando o conjunto de direitos e faculdades garantidor
da dignidade da pessoa humana e beneficiário das garantias institucionalizadas.
José Afonso da Silva33 fala em direitos individuais, que são aqueles direitos do indivíduo isolado. Ou grupo de direitos fundamentais correspondente
ao que se tem denominado de direitos civis ou liberdades civis, como os direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
Direitos públicos subjetivos exprimem a situação jurídica subjetiva do
indivíduo em relação ao Estado visando colocar os direitos fundamentais no
campo do Direito Positivo.
Liberdades fundamentais ou liberdades públicas são termos insuficientes
para denominar os direitos fundamentais, tendo em vista que o primeiro termo refere-se apenas a algumas liberdades e o segundo é utilizado pela doutrina
francesa com o intuito de dar significação mais ampla aos direitos fundamentais, tratando-os como direitos individuais clássicos ou como gozo livre de
direitos políticos.
Vieira de Andrade34 afirma que o ponto característico para se definir o
que seria um direito fundamental reside na intenção de explicitar o princípio
da dignidade da pessoa humana. Nesse princípio reside a fundamentalidade
dos direitos humanos, proposição criticada tendo em vista que a Constituição
brasileira confere direitos fundamentais a pessoas coletivas, não sendo, então,
a dignidade da pessoa humana sempre vetor suficiente para afirmar-se a fundamentalidade de um direito.
Apesar de sua insuficiência, é esse princípio que inspira os típicos direitos fundamentais atendendo às exigências de direito à vida, à liberdade,
à integridade física e íntima de cada ser humano, ao postulado da igualdade
em dignidade de todos os homens e à segurança. Assim, continuam Mendes,
32 DIMITRI, Dimoulis; MARTINS, Leonardo apud SILVA, José Afonso da. Id., p. 133.
33 Ibid.
34 ANDRADE, Vieira de apud MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva,
2009. p. 270.
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Coelho e Branco35, é o princípio da dignidade humana que demanda fórmulas
de limitação de poder, prevenindo o arbítrio e a injustiça. E é também com
base nesse princípio estruturante que se podem extrair outros direitos fundamentais que estejam implícitos no ordenamento jurídico nacional.
5.1 Gerações de direitos fundamentais
A inserção desses direitos fundamentais em cada ordenamento jurídico
está intimamente ligada à evolução da sociedade. Assim, Mendes, Coelho e
Branco 36 ensinam que os direitos fundamentais de primeira geração dizem
respeito aos direitos referidos nas Revoluções francesa e americana. Foram os
primeiros a ser positivados, por isso o termo primeira geração. Buscam estabelecer uma esfera de autonomia pessoal na qual o Estado não pode se imiscuir
(Estado absenteísta). Referem-se às liberdades individuais (de consciência, de
culto, de inviolabilidade do domicílio e de reunião). São os direitos civis e
políticos. O titular é o homem individualmente considerado. Aqui não há a
preocupação com as desigualdades sociais. Advêm do Estado Liberal.
Os direitos fundamentais de segunda geração surgiram em razão da industrialização crescente que provocou a proliferação de problemas sociais que,
por sua vez, geraram reivindicações, impondo ao Estado um papel ativo na
realização da justiça social (Estado Social). Buscam estabelecer uma liberdade real e igual para todos. Referem-se à ação corretiva dos Poderes Públicos
(assistência social, saúde, educação, trabalho, lazer). São os direitos sociais,
culturais e econômicos. O foco de preocupação agora são as liberdades sociais.
Os direitos fundamentais de terceira geração buscam proteger o homem
vivendo em coletividades ou grupos (direitos difusos). São os direitos à paz,
ao desenvolvimento, à qualidade do meio ambiente, à conservação do patrimônio histórico e cultural. Denominam-se direitos de solidariedade ou de
fraternidade.
Alguns autores elencam ainda uma quarta geração de direitos. Bonavi37
des entende como tais aqueles direitos que surgem em meio a uma sociedade que caminha para a globalização econômica neoliberal. São os direitos à
democracia, à informação e ao pluralismo. Segundo o autor, desses direitos
depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em uma dimensão de
máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de
35 Ibid., p. 271.
36 Ibid., p. 267.
37 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 26. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros,
2011. p. 571.
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todas as relações de convivência. Em seu entendimento há que se falar, ainda,
nos direitos de quinta geração, transpondo-se o direito à paz da terceira para
uma quinta geração de direitos, em razão de que a dignidade jurídica da paz
deriva do reconhecimento universal que se lhe deve enquanto pressuposto
qualitativo da convivência humana, elemento de conservação da espécie, reino de segurança dos direitos. Essa dignidade só se logra, em termos constitucionais, diz Bonavides, mediante a elevação autônoma e paradigmática da paz
a direito da quinta geração, verbis:
“Assim, o novo Estado de Direito das cinco gerações de direitos fundamentais
vem coroar, por conseguinte, aquele espírito de humanismo que, no perímetro
da juridicidade, habita as regiões sociais e perpassa o Direito em todas as suas
dimensões38”.
Cumpre, aqui, chamar atenção para a palavra “gerações” de direitos, a
qual recebe críticas de alguns autores, dentre eles Bonavides39, por entender
ser mais apropriada a expressão dimensões de direitos. Sua justificativa reside
no entendimento de que a ideia de geração faz subentender que uma nova
geração exclui a geração que lhe é anterior, o que não é caso no âmbito dos
direitos fundamentais, pois não se excluem, ao contrário, vão se acumulando
à medida que evoluem. Assim, os direitos da primeira, da segunda e da terceira geração, respectivamente os direitos individuais; os direitos sociais; e os
direitos ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à paz e à fraternidade, permanecem eficazes e, sendo ainda infraestruturais, formam a base da pirâmide,
cujo ápice é o direito à democracia.
5.2 Caracterização dos direitos fundamentais
São características dos direitos fundamentais a historicidade, porquanto
nascem, modificam-se e desaparecem. Só fazem sentido num determinado
contexto histórico; a inalienabilidade – são intransferíveis e inegociáveis, pois
não têm conteúdo econômico patrimonial. É a ordem constitucional que os
confere a todos, portanto, são indisponíveis - não se pode comprá-los, vendê-los, doá-los. O direito à integridade física é inalienável: o indivíduo não pode
vender partes de seu corpo, muito menos, mutilar-se; a imprescritibilidade – a
prescrição atinge a exigibilidade de direitos patrimoniais, não a exigibilidade
de direitos personalíssimos, como é o caso; e a irrenunciabilidade – não se renuncia a direitos fundamentais. Podem não se rexercidos, mas não se admite
que a eles se renuncie.
38 Ibid., p. 571.
39 Ibid., p. 572.
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À classificação de José Afonso da Silva40, Mendes, Coelho e Branco41
acrescentam as seguintes características: são direitos universais e absolutos
compreendidos nos seguintes termos: todas as pessoas são titulares de direitos
fundamentais e a qualidade de ser humano é suficiente para sua titularidade.
Na lista da Constituição Federal brasileira há direitos que são de todos os homens, por exemplo, o direito à vida; há, também, posições que não interessam
a todos os homens, referindo-se apenas aos direitos de alguns dentre eles na
sua específica posição social – a exemplo dos trabalhadores. A fundamentalização desses direitos implica reconhecer que determinados objetivos vitais
de algumas pessoas têm tanta importância quanto os objetivos básicos do
conjunto dos indivíduos.
Quanto a serem absolutos, surge, no Direito pátrio, uma corrente que
admite serem objeto de limitações quando enfrentam outros valores de ordem
constitucional, inclusive outros direitos fundamentais. Pietro Sanchis noticia
que a afirmação de que “não existem direitos ilimitados se converteu quase
em cláusula de estilo na jurisprudência de todos os tribunais competentes em
matéria de direitos humanos42”. Na Constituição pode-se vislumbrar, como
exemplo dessa assertiva, a limitação sofrida pelo direito à vida, explícita no
inciso XLVII, “a”, que contempla a pena de morte em caso de guerra formalmente declarada. Assim, no ordenamento brasileiro não há direitos absolutos,
pois tanto outros direitos fundamentais, quanto outros valores com sede constitucional podem limitá-los.
Constitucionalização – os direitos fundamentais estão consagrados em
preceitos da ordem jurídica.
Vinculação aos Poderes Públicos – os atos dos poderes constituídos devem conformidade aos direitos fundamentais e se expõem à invalidade se forem desprezados.
Vinculação ao Poder Legislativo - a atividade legiferante deve guardar
coerência com o sistema de direitos fundamentais. E essa vinculação pode
assumir conteúdo positivo, tornando imperiosa a edição de normas que regulamentem direitos fundamentais dependentes de concretização normativa.
Ocorre, ademais, nos casos nos quais a Constituição atribui ao legislador a
tarefa de restringir certos direitos (a exemplo do livre exercício da profissão),
40 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 27. ed. rev. e atual. São Paulo:
Malheiros Editores, 2006. p. 181.
41 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 273.
42 SANCHIS, Pietro apud MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO,
Paulo Gustavo Gonet. Id., p. 274.
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quando cabe respeito ao núcleo essencial do direito, de forma que o legislador
não poderá criar situações que tornem impraticável o exercício do direito previsto pelo constituinte.
Quanto ao poder de reforma da Constituição, o Legislativo deve obedecer à questão das cláusulas pétreas. O art. 60, § 4º, veda a edição de emendas
tendentes a abolir direitos e garantias individuais.
Vinculação ao Poder Executivo – a administração também se vincula aos
direitos fundamentais ao tratar com o particular, o que torna nulos os atos
praticados com ofensa a esses direitos. Deve ainda a Administração interpretar e aplicar as leis segundo os direitos fundamentais. Questiona-se, então, se
pode a Administração Pública, utilizando-se de juízo de inconstitucionalidade, negar-se a aplicar a lei. O Supremo Tribunal Federal (STF) afirma que
os empossados em cargos máximos do Executivo assumem o compromisso
de cumprir e defender a Constituição Federal e que a recusa em cumprir ato
contrário a ela não deixa de ser uma forma de defendê-la.
Vinculação ao Poder Judiciário – A defesa dos direitos fundamentais é da
essência desse poder. O Judiciário deve conferir máxima eficácia possível aos
direitos fundamentais. Tem o poder-dever de recusar a aplicação a preceitos
que não respeitem direitos fundamentais.
Aplicabilidade imediata - não dependem da atuação do legislador, a fim
de evitar o esvaziamento de seu conteúdo pela sua atuação ou inação.
Assim, a vigente Constituição brasileira, em seu art. 5º, § 1º, estabelece
que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Utilizando-se novamente o exemplo do art. 5º, XIII, norma
que se refere ao livre exercício de qualquer trabalho ou profissão, atendidas
as qualificações profissionais que a lei estabelecer, sua aplicabilidade imediata
requer que não seja entendida como se somente após a regulação de uma atividade ou de uma profissão possa vir a ser exercida, como esclarecem Mendes,
Coelho e Branco43. Antes, é necessário que se veja na expressão normas de
eficácia contida da classificação, já descrita em outra oportunidade, feita por
José Afonso da Silva44. Para esses autores, direitos como esses, por já terem
sido suficientemente regulados os interesses relativos à determinada matéria
pelo legislador constituinte, não precisam, para serem diretamente fruídos, da
interposição do legislador, que, nesses casos, atuará somente para restringi-los.
43 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 287.
44 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 27. ed. rev. e atual. São Paulo:
Malheiros Editores, 2006. p. 180.
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Ressalta, entretanto, que não significa que a partir dessa característica
indicada pela própria Constituição os direitos fundamentais originem, sempre, de forma automática, direitos subjetivos, concretos e definitivos. Assim,
para se evitar que as posições adotadas como essenciais da pessoa quedem
como letra morta nos sistemas jurídicos democráticos ou só ganhem eficácia com a atuação do legislador, necessária se torna a aplicação do princípio
da aplicabilidade imediata e da vinculação dos Poderes Públicos aos direitos
fundamentais, independentemente de tradução jurídica do legislador. A eficácia dos direitos fundamentais requer, no entanto, que a norma de direito
fundamental contenha elementos mínimos indispensáveis que lhes assegurem
a aplicabilidade, para que, buscando aplicar o direito, o juiz não infrinja a
competência do legislador. E quando a Constituição expressamente remeta
a concretização do direito ao legislador, estabelecendo o exercício do direito
apenas na forma da lei, o princípio do art. 5º, § 1º, deverá ceder. Nesses casos
de baixa densidade normativa, a maior eficácia da norma ficará na dependência da ação do legislador infraconstitucional, cuja inércia pode ser combatida
pela via de ação de inconstitucionalidade por omissão.
Pertine falar-se em dimensão subjetiva e objetiva de direitos fundamen45
tais . A primeira refere-se à característica de esses direitos, em maior ou menor escala, ensejarem uma pretensão a que se adote um dado comportamento
ou se expressa no poder da vontade de produzir efeitos sobre certas relações
jurídicas. Desse modo, correspondem à exigência de uma ação negativa de
respeito ao espaço de liberdade do indivíduo (no direito de liberdade de expressão o Estado não pode aplicar censura), ou de uma ação positiva de outrem, e, ainda, correspondem a competências – em que não se cogita de exigir
comportamento ativo ou omissivo de outrem, mas poder de modificar-lhes as
posições jurídicas.
A dimensão objetiva resulta da significação dos direitos fundamentais
como princípios básicos da ordem constitucional, participantes da essência
do Estado de Direito democrático, operando como limite do poder e como
diretriz para sua ação.
Uma consequência dessa dimensão, afirma Sarlet46, consiste em ensejar
um dever de proteção, pelo Estado, dos direitos fundamentais contra agressões
dos próprios Poderes Públicos, provindas de particulares ou de outros Estados.
45 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet.
Op. cit., p. 300.
46 SARLET, Ingo apud MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo
Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 301.
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Entende-se que no âmbito dessa dimensão encontra-se o dever de se
proteger direitos fundamentais como a vida, a integridade física (incluindo a
saúde) e a liberdade. O Estado deve adotar medidas protetoras desses direitos. Continuam os autores suas explanações, afirmando que cabe aos órgãos
políticos e não ao Judiciário indicar a medida adotada à proteção dos bens
jurídicos abrigados pelas normas definidoras dos direitos fundamentais.
Os autores citam novamente Sarlet47, que alude à necessidade de o Estado agir em defesa dos direitos fundamentais com um mínimo de eficácia, não
lhe sendo, porém, exigível, uma “exclusão absoluta da ameaça que se objetiva
prevenir”. Verificado um dever de agir do Estado, não é apropriado impor-lhe
como agir - uma pretensão individual só pode ser acolhida nas hipóteses em
que a discricionariedade do Poder Público estiver reduzida a zero.
Ainda discorrendo-se sobre essa dimensão objetiva, diz-se que comunica
aos direitos fundamentais uma eficácia irradiante, imputando-lhes o papel
de serem diretrizes para a interpretação e aplicação das normas dos demais
ramos do Direito. Sobre o assunto, José Roberto Freire Pimenta e Juliana
Augusta Medeiros de Barros48 afirmam que falar-se em eficácia irradiante dos
direitos fundamentais é dizer-se que essas normas afirmam valores que incidem sobre a totalidade do ordenamento jurídico, tendo como consequência
direcionarem-se ao Legislativo, que, ao fazer as leis, tem de preservar direitos
fundamentais; ao Executivo, porquanto tem de prestigiar os direitos fundamentais ao governar; e ao Judiciário, que, ao julgar os casos concretos, terá de
proteger os direitos fundamentais.
5.3 Funções dos direitos fundamentais
Os Direitos Fundamentais desempenham funções na sociedade e na ordem jurídica, e a compreensão de sua eficácia torna-se facilitada com a apresentação da teoria dos quatro status, proposta por Jellinek, no século XIX,
mostrando as quatro posições em que o indivíduo pode encontrar-se em face
do Estado.49
Status passivo - o indivíduo em posição de subordinação ao Estado, detentor de deveres para com o Estado, que pode vinculá-lo por meio de mandamentos e proibições.
47 Ibid., p. 301.
48 PIMENTA, José Roberto Freire; BARROS, Juliana Augusta Medeiros. A eficácia imediata dos
direitos fundamentais individuais nas relações privadas e a ponderação de interesses. CONPEDI.
ORG. BR., [2007]. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/josero
bertofreire_pimenta.pdf>. Acesso em: 14 set. 2011.
49 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 289.
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Status negativo - o indivíduo, por ter personalidade, exige desfrutar de
um espaço de liberdade com relação a ingerências dos Poderes Públicos. Nesse
status ficam os direitos individuais que reclamam uma abstenção do Estado.
Status positivo – o indivíduo com direito de exigir do Estado atuação
positiva, ou seja, o Estado deve realizar uma prestação em favor do indivíduo.
Bonavides50 afirma que esse status é o reino das exigências das postulações e
das pretensões mediante o qual o indivíduo, dirigindo-se ao Poder Público,
deste recebe as prestações por intermédio das quais o Estado constrói socialmente as condições da liberdade concreta e efetiva.
Status ativo - o indivíduo desfruta de competência para influir sobre a
formação da vontade do Estado. Direito de voto. Indivíduo exerce direitos
políticos. Nesse status, diz Bonavides51, aloja-se o princípio participativo da cidadania na vontade do governo. Assim, o Estado é submetido paulatinamente
à jurisdição, domínio e controle do cidadão sufragante.
Dessa teoria retiram-se as espécies de direitos fundamentais mais frequentemente assinaladas, quais sejam: direitos de defesa, direitos de prestação
e de participação.
Os direitos de defesa são aqueles caracterizados por impor ao Estado um
dever de abstenção, de não intromissão no espaço de autodeterminação do
indivíduo. São direitos que protegem o indivíduo contra a ação do Estado. Ele
não pode imiscuir-se sobre bens protegidos. São os que asseguram as liberdades. São seus exemplos: liberdade de culto, liberdade de expressão, proteção
contra tortura ou tratamento desumano ou degradante, liberdade de manifestação do pensamento, dentre outros. Também se manifestam no sentido
de que o Estado não possa derrogar determinadas normas (cláusulas pétreas).
Os direitos de prestação, por sua vez, são aqueles que exigem que o Estado aja para atenuar desigualdades. Que tenha uma ação ativa no sentido de
libertar os indivíduos de suas necessidades, buscando fornecer-lhes as condições materiais para que possam desfrutar de suas liberdades. Exigem uma
prestação positiva do Estado, que pode ser material ou jurídica. Como prestação jurídica pode-se citar a edição de normas, por exemplo, que busquem proteger o mercado de trabalho da mulher. Como prestação material, apontam-se
os direitos à previdência social, à saúde, à educação.
Os direitos de participação são aqueles voltados a garantir a participação
do indivíduo nos destinos do Estado. Como seus exemplos, vale mencionar o
direito ao voto, e a apresentar projetos de Lei.
50 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 26. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros,
2011. p. 661.
51 Ibid., p. 661.
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5.4 Natureza das normas de direitos fundamentais
Ao entrarem no ordenamento jurídico os direitos fundamentais assumiram caráter concreto de normas positivas constitucionais, passando, então, a
ter natureza constitucional.
Passa-se, na sequência, a elencar alguns direitos fundamentais do preso
inscritos na atual Constituição, após o que se discorre acerca do Sistema Carcerário, amplamente regulamentado pela Lei de Execuções Penais.
6
Alguns direitos fundamentais do preso previstos na Constituição
Federal de 1988
Recapitulando, no Direito brasileiro os direitos fundamentais se definem
como direitos constitucionais. E na vigente Constituição brasileira estão contidos principalmente, mas não somente, no art. 5º. É que o § 2º desse mesmo
artigo estabelece que os direitos e garantias expressos na Carta Magna brasileira
não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados,
ou dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Importante lembrar
também o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, III,
inserido na atual Constituição como um de seus fundamentos. Nesse princípio reside o conteúdo material dos direitos fundamentais, pois, de acordo com
o entendimento de Mendes, Coelho e Branco52, é ele que inspira os típicos
direitos fundamentais, atendendo às exigências do respeito à vida, à liberdade,
à integridade física e íntima de cada ser humano, ao postulado de igualdade
em dignidade de todos os homens e à segurança. E por estarem constitucionalizadas, as normas de direitos fundamentais, como afirmam os autores53, impõem-se a todos os poderes constituídos, até ao de reforma da Constituição.
Continuam os autores ressaltando que, em alguns julgados, o STF é sensível
à identificação de normas de direito fundamental fora do catálogo específico,
quando há um especial vínculo do bem jurídico protegido com alguns dos
valores essenciais ao resguardo da dignidade humana enumerados no caput do
art. 5º (vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade).
Então, no art. 5º podem-se vislumbrar inúmeros direitos que se referem
à totalidade dos brasileiros, aqui incluídos, logicamente, os presos, titulares
de alguns deles, vez que a condição de encarcerado só lhes retira o direito à
liberdade e aqueles incompatíveis com essa condição.
52 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 271.
53 Ibid., p. 279.
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Assim, os presos do país terão, como qualquer outro brasileiro, garantida
a inviolabilidade de seu direito à vida, à honra, à imagem, à intimidade. E,
ainda, outros relativos à sua condição de encarcerado, a exemplo do direito à
individualização de sua pena; de não sofrer pena de morte, de caráter perpétuo, de banimento, ou cruéis; de cumprir pena em estabelecimentos distintos,
de acordo com a natureza do delito, idade e sexo do apenado; de ver respeitada sua integridade física; no caso das presidiárias, de amamentarem seus
filhos; direito à saúde; à educação; direitos processuais, dentre outros.
Não bastassem a sua existência, anteriormente à publicação da Constituição Federal vigente os encarcerados brasileiros já gozavam de amplos direitos regulamentados pela Lei nº 7.210/84 (Lei de Execução Penal), sem falar
no Código Penal, que estabelece outras tantas disposições sobre a questão
referente a cumprimento de penas e regimes prisionais.
Além dos já citados direitos fundamentais constitucionais do preso faz-se alguma remissão à Lei de Execução Penal apenas para demonstrar que a
legislação infraconstitucional referiu-se a diversos desses direitos já antes da
promulgação do Texto Constitucional. Não obstante essa realidade, mesmo
depois de decorridos 23 anos de sua promulgação, muitos desses direitos do
preso não foram implementados até os dias de hoje, assim se pode verificar a
partir das falas de alguns autores estudados na continuidade.
7
O Sistema carcerário brasileiro
De acordo com a Lei nº 7.210/84 (LEP), a concretização da pretensão
punitiva do Estado é levada a efeito mediante a Execução Penal, exercida por
meio da ação conjunta entre o Poder Executivo, que fornece os meios materiais, e o Poder Judiciário, cujos órgãos jurisdicionais determinam os comandos pertinentes à execução da pena.
A Lei de Execução Penal estabelece, dentre outras coisas, que a execução
penal tem por objetivo efetivar as disposições da sentença ou da decisão judicial e proporcionar condições para a harmônica integração do condenado e do
internado. Dispõe sobre a assistência material, à saúde, jurídica, educacional,
social e religiosa do preso e a assistência ao egresso; o trabalho interno e externo do preso; direitos e deveres e disciplina dos presos; órgãos da execução
penal; estabelecimentos penais; execução das penas privativas de liberdade e
execução das medidas de segurança; e sobre os incidentes da execução.
Assim, referida lei estabelece, em seus arts. 40 e ss., os direitos dos presos,
dentre os quais o de respeito à integridade física e moral dos condenados e
dos presos provisórios; de alimentação suficiente e vestuário; de atribuição de
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trabalho (para o preso provisório não é obrigatório e só pode ser executado
dentro do estabelecimento) e remuneração; de previdência social; de exercício
de atividades profissionais, artísticas e desportivas, desde que compatíveis com
a execução da pena; de assistência material, à saúde, jurídica, educacional,
social e religiosa; de visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos
em dias determinados.
Esse estatuto estabelece, ainda, nos arts. 61 e ss., os órgãos da execução
penal: Conselho Nacional de Política Criminal, a quem cabe, dentre outras
funções, propor as diretrizes da política criminal quanto à prevenção do
delito, administração da justiça criminal e execução das penas e medidas
de segurança; Juízo da Execução, que competirá ao juiz indicado na lei de
organização judiciária e, na sua ausência, ao juiz da sentença; Ministério
Público, fiscal da execução da pena e da medida de segurança; Conselho
Penitenciário, a quem compete, dentre outras funções, emitir parecer sobre
indulto e comutação das penas, exceto no caso de indulto com base no estado de saúde do preso, inspecionar os estabelecimentos e serviços penais, supervisionar patronatos, bem como a assistência aos egressos; Departamento
Penitenciário Nacional, subordinado ao Ministério da Justiça, órgão executivo da Política Penitenciária Nacional e de apoio administrativo e financeiro
do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária; Departamentos
Penitenciários locais, que têm por finalidade supervisionar e coordenar os estabelecimentos penais da unidade da federação a que pertencer; Patronato, o
qual se destina, entre outras atribuições, a prestar assistência aos albergados e
aos egressos; e, por fim, Conselho da Comunidade a quem, em cada comarca, compete a incumbência, dentre outras obrigações, de visitar, no mínimo
mensalmente, seus estabelecimentos penais, entrevistar presos e diligenciar
na obtenção de recursos materiais e humanos para melhor assistência ao
preso e ao condenado.
Dispõe ainda, nos arts 82 e ss., sobre os diferentes tipos de estabelecimentos penais para cumprimento de pena, que se classificam conforme a
situação de cada preso, a saber: penitenciária, para os condenados em regime
fechado; colônia agrícola ou industrial, para os condenados em regime semiaberto; casa de albergado, para os condenados em regime aberto; cadeia
pública, para custódia do preso provisório; hospital de custódia e tratamento
psiquiátrico, para os inimputáveis e semi-inimputáveis.
Verifica-se que o ordenamento jurídico nacional, já em 1984, possuía
uma legislação bastante pormenorizada no que diz respeito ao Sistema Carcerário. E com a entrada em vigor da Carta Federal de 1988, muitos desses
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direitos foram elevados à condição de direitos fundamentais ao constarem em
seu Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais.
Ocorre que, ainda hoje, muitos desses direitos não foram implementados, levando-se a inferir que as normas do texto constitucional e referida lei
não passem de dispositivos formais.
Assim, discorrendo sobre a situação concreta do sistema prisional,
Thompson54 explica que a população carcerária é dividida em duas classes,
contemplando os presos condenados, ou seja, aqueles com sentença definitiva, e os presos processados, os que aguardam a apuração e decisão sobre os
delitos de que são acusados.
O sistema deveria, segundo o autor, ser dotado de quatro tipos de estabelecimentos penitenciários: prisão comum, destinada a receber os indivíduos
recém-capturados, que não precisaria ter requisitos especiais quanto às acomodações ou regime de funcionamento tendo em vista a exiguidade do tempo
em que lá deveriam ficar os presos a ela conduzidos (cadeias públicas, cadeias
de comarca, cadeias locais etc.); presídios, para abrigar os presos provisórios,
que gozam da presunção de inocência, que deveriam oferecer acomodações
confortáveis e um regime liberal de funcionamento; prisão especial, ou seção
especial em prisão comum, para receber os culpados por prática de contravenção, sem rigor penitenciário, dispensada de oferecer celas individuais e
trabalho aos internos. Sua função seria apenas intimidativa, isenta de propósitos reeducacionais, tendo em vista a exiguidade do tempo de internação; e
penitenciária para condenados por crimes à pena de detenção ou reclusão, este
último tipo de estabelecimento prisional tem função retributiva, preventiva
e ressocializadora, a lei exige que propicie aos presos, isolamento durante o
repouso noturno e trabalho remunerado.
Esclarece Thompson que a entrada do indivíduo no sistema se dá pela
prisão comum, de onde deverá transitar para o presídio ou a penitenciária.
O problema se inicia exatamente nesses locais, cujas acomodações são desprovidas de requisitos especiais em razão de, por essência, constituírem-se
em locais de trânsito. Ocorre que, na prática, essas prisões são obrigadas
a receber (e manter) uma quantidade de presos muito superior à sua capacidade de lotação, a qual não consegue diminuir, tendo em vista que
os outros dois tipos de estabelecimento também já se encontram com sua
capacidade esgotada.
Continuando sua exposição, Thompson conclui dizendo que as cadeias
54 THOMPSON, Augusto. A questão penitenciária. 5. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense,
2002. p. 97.
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comuns, pelas deficiências materiais, agravadas pelo número excessivo de
detentos, não dispõem de condições satisfatórias de segurança, razão pela
qual não conseguem evitar fugas ou desordens. Diante disso, seus responsáveis optam por aproveitar as poucas vagas que eventualmente surgem nas
penitenciárias para transferir-lhes os presos mais difíceis, ao mesmo tempo
em que retêm os mais dóceis nessas cadeias (mesmo já condenados). Dessas
manobras decorrentes da escassez de vagas resultarão que serão encontrados,
frequentemente, processados (presos de características mais difíceis) em penitenciárias (que têm melhores condições de acomodação e trabalho) e condenados (presos de características mais dóceis) em prisões comuns (que não
possuem acomodações compatíveis para o cumprimento da pena tendo em
vista a finalidade de sua criação, a de abrigar presos por brevíssimo tempo).
Daí decorre o fato de que criminosos mais endurecidos acabam gozando de
preferência para ocupar estabelecimentos melhores, enquanto os presos mais
fáceis de se lidar, às vezes já condenados, acabarão ficando amontoados nas
cadeias públicas.
Chagas55, discorrendo sobre o crescimento da violência, considera-o intimamente relacionado à exclusão social e à falta de investimentos adequados, por muitos anos, em educação, saúde, trabalho, dentre outras razões,
concluindo pela premência de uma atuação estatal envolvendo a adoção de
medidas urgentes na área de segurança pública, sistema penitenciário, administração da justiça e legislação vigente.
Sobre a carência de estabelecimentos prisionais Dotti56 afirma que, embora a Lei nº 7.210/84 (LEP), buscando vencer a desobediência do administrador público em matéria de provisão de estabelecimentos e serviços penitenciários tenha estabelecido que no prazo de seis meses após sua publicação
deveriam as unidades federativas, em convênio com o Ministério da Justiça,
projetar, construir e equipar estabelecimentos e serviços penais e, no mesmo
prazo, providenciar a aquisição ou desapropriação de prédios para instalação
de casas de albergado (art. 203, §§ 1º e 2º, LEP), passados quase 15 anos as
determinações não tinham sido cumpridas. Note-se que nesse novo momento já se vivia sob a égide da Constituição Federal vigente e essas normas não
tinham ainda sido cumpridas.
55
CHAGAS, Cláudia Maria de Freitas. Uma política penitenciária para o Brasil. In: LEAL, César
Barros (Org.). Prevenção criminal, segurança pública e administração da justiça: uma visão do
presente e do futuro à luz dos direitos humanos. Fortaleza: C.B. Leal, 2006. p. 135.
56 DOTTI, René Ariel. A crise no sistema penitenciário. In: LEAL, César Barros (Org.). Prevenção
criminal, segurança pública e administração da justiça: uma visão do presente e do futuro à luz
dos direitos humanos. Fortaleza: C.B. Leal, 2006. p. 360.
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O autor, Membro de Comissões de Reforma do Sistema Criminal Brasileiro, disserta sobre as causas das rebeliões carcerárias, as quais atribui à carência de estruturas humanas e materiais. Chama a atenção para o fato de que
essas estruturas deficientes têm criado um novo tipo de vitimidade de massa,
dessa feita, o presidiário, que, para o professor é, na maioria das vezes, oriundo
dos descaminhos da vida pregressa e um usuário da massa falida do Sistema.
Cita o médico Varella57, cuja narrativa sobre o massacre de Carandiru
revela um raio-x da situação extremamente grave dos campos minados dos
presídios, apontando os dramas e tragédias produzidos pela violência institucionalizada (pelo Estado e pelos internos) intitulando os cárceres, independentemente de sua classificação, de sucursais do inferno.
Dotti58 alerta que a Lei de Execução Penal (diploma abrangente e específico para regular os problemas da execução penal) e a Constituição brasileira
vigente, como já mencionado, dedicaram várias disposições à proteção da pessoa presa. No entanto, afirma que existe uma resistência branca de entes e órgãos públicos que são indiferentes, quando não hostis, à causa dessas pessoas.
Em junho do ano passado, em Seminário promovido pela Escola Superior da Magistratura (ESMEC), cujo tema foi “Reinserção Social: a outra face
da execução penal”, assistiram-se a inúmeros vídeos retratando situações de
degradação carcerária em países da América Latina como México, Venezuela,
Argentina e, principalmente, Brasil; ao mesmo tempo, ressaltaram-se questões
como as do tratamento indigno aos presos, que vivem amontoados, alguns
até em estabelecimentos onde dormem e comem misturados aos porcos, sem
dispor das mínimas condições de higiene, alimentação e acomodação; do predomínio de gangues; da comercialização de drogas; e dos homicídios dentro
dos presídios.
No mesmo evento, obteve-se acesso a estatísticas que mostram a existência de uma demanda crescente de presos e a mistura de presos provisórios
com condenados e de presos que podem ser absolvidos com outros de alta
periculosidade, com destaque para a alta taxa de reincidência (em torno de
80%) desses presos. Verificou-se que o Brasil possui uma população de 227
presos/100 mil habitantes e o Ceará apresenta um dos menores índices do
Brasil, com 168 presos/100 mil habitantes.
Somem-se ainda a essas informações as do Conselho Nacional de Justiça
57 VARELLA apud DOTTI, René Ariel. A crise no sistema penitenciário. In: LEAL, César Barros
(Org.). Prevenção criminal, segurança pública e administração da justiça: uma visão do presente e do futuro à luz dos direitos humanos. Fortaleza: C.B. Leal, 2006. p. 362.
58 DOTTI, René Ariel. Id., p. 363.
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que, buscando verificar a dimensão do problema carcerário, pôs em execução, a partir de agosto de 2008, o Programa dos Mutirões Carcerários, que,
segundo o Ministro Gilmar Mendes59, presidente dessa instituição à época,
constatou as mais diversas deficiências, desde a tão conhecida superpopulação
carcerária, até problemas de pessoas indevidamente encarceradas, passando
pela ausência de higiene nos cárceres, cumulada com a falta de técnicos e de
estrutura mínima de funcionamento em algumas varas de execuções penais, e
ainda, de defensores. Alertou para os dados contidos em recente tese de doutorado defendida na Universidade Estadual do Rio de Janeiro a qual revelou
que, em 2008, a média de presos sem trabalho girava em torno de 76% e apenas 17,3% estudavam. E que entre os detidos que trabalham, a probabilidade
de reincidência cai a 48% e, para os que estudam, reduz-se a 39%.
Referido mutirão constatou um déficit de mais de 167 mil vagas no sistema prisional - que hoje mantém mais de 473 mil pessoas e cresce, em média,
7,11% ao ano. O ministro informou que esse número é ainda mais expressivo
quando se consideram os milhares de mandados de prisão ainda não cumpridos, e que o total gasto pela União no ano passado para construção de
presídios é insuficiente e não atinge sequer 3% dos recursos essenciais para a
criação dessas vagas.
Segundo dados obtidos pelo CNJ, a população carcerária é de aproximadamente 473 mil presos, somando-se os condenados dos regimes fechado,
semiaberto e aberto, e os presos provisórios aguardando decisão definitiva. Do
total da população carcerária, 265 mil são presos condenados e 208 mil presos
provisórios, o que gera uma taxa de encarceramento de 247 presos para cada
grupo de 100 mil habitantes, com déficit de 170 mil vagas, sendo necessários
340 estabelecimentos penais, com capacidade para 500 presos cada um, para
acomodar todos os presos do sistema. Ainda foram verificados problemas de
toda ordem, que contabilizam mais de 250 casos de penas vencidas (de até
quatro anos) e centenas de benefícios, de livramento condicional e progressão
de regime, concedidos já com excesso de prazo significativo. Com relação
ao preso provisório, o mutirão identificou processos de um até 14 anos sem
julgamento em primeiro grau de jurisdição, e de até três anos sem denúncia
do Ministério Público. Quanto à qualidade do encarceramento, os relatórios
relatam péssimas condições de saúde, superlotação, casos de tortura de presos,
dentre outras ilegalidades.
59 MENDES, Gilmar Ferreira. Iniciativas bastam para melhorar o sistema carcerário. Disponível em:
http://www.conjur.com.br/2010-abr-16/melhora-sistema-carcerario-depende-apenas-corresponsabilidade. Acesso em: 18. mar. 2012.
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Conclusão
Conquanto se possa vislumbrar uma extensa gama de direitos fundamentais assegurados ao preso provisório e ao condenado na Constituição Federal,
muitos dos quais já regulados na Lei de Execução Penal, a realidade revela
um imenso abismo entre o que está assegurado no ordenamento jurídico e o
que efetivamente se realiza, caracterizando a ineficácia social desses direitos
fundamentais.
É público e notório que nos estabelecimentos penais misturam-se presos
provisórios com condenados; inexistem estabelecimentos para o cumprimento dos diversos regimes prisionais; deterioram-se as unidades prisionais; prolifera a ociosidade; convive-se com superpopulação carcerária; falta assistência
médica (a AIDS se alastra) e assistência jurídica; sobra violência física e sexual;
dentre outras mazelas.
Do exposto, evidenciou-se que, embora a Constituição Federal, que tem
como um de seus fundamentos o princípio da dignidade humana, assegure
aos presos diversos direitos fundamentais, na prática, esses direitos não têm
alcançado a eficácia social necessária. O Poder Público não tem se ocupado
em realizar a função prestacional inerente a esses direitos, deixando de implementar políticas públicas que lhes assegurem os direitos mais básicos, como
integridade física, saúde, higiene, educação e trabalho, até omitindo-se quanto ao seu direito à vida, tão banalizado nos episódios de rebeliões, tornando
extremamente precário o aprisionamento provisório ou o cumprimento de
pena dessas pessoas.
Assim, considerando que uma das características dos Direitos Fundamentais consiste em vincular os Poderes Públicos, os quais, no sistema penitenciário,
consistem, principalmente, nos Poderes Executivo e Judiciário, e com base na
teoria dos quatro status de Jellinek, que aborda a função prestacional dos direitos fundamentais, forçoso é concluir que o Estado Brasileiro tem-se furtado
a efetivar os direitos mais básicos do preso, não exercendo uma ação positiva
visando suprir as necessidades intelectuais dos encarcerados, quando não lhes
proporciona condições para que possam frequentar o ensino regular ou profissionalizante; não lhes assegurando sua integridade psicofísica, quando os expõe
à violência física, psicológica e sexual que grassa dentro dos presídios; quando
se omite em assegurar-lhes condições materiais mínimas subsistência (alimentação, higiene, acomodações) dentro dos cárceres. E, ainda, quando não lhes
assegura o exercício da liberdade que sobra, não aquela de ir e vir pelo espaço
social, mas a de poder determinar-se, enquanto seres humanos que são, dentro
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das possibilidades que lhes restam dentro dos cárceres, pois não se pode esquecer
que o ser humano, chamado de “presidiário”, não perde todos os seus direitos,
mas apenas aqueles que não são compatíveis com a vida dentro dos cárceres.
Assim, com base na teoria dos efeitos irradiantes, consequência da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, que afirma valores que incidem
sobre a totalidade do ordenamento jurídico e devem direcionar os Poderes Públicos em suas ações, no que diz respeito aos direitos fundamentais do preso,
resta concluir que esses Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), muitas
vezes, têm sido omissos na aplicação desses direitos fundamentais às questões
problemáticas do sistema carcerário. Por essa razão, diversos direitos fundamentais dos presos, previstos na Constituição, são relegados ao esquecimento,
fazendo com que as normas de direitos fundamentais tenham eficácia meramente jurídica e pouca ou nenhuma eficácia social, o que vem, dentre outros
fatores, contribuindo para o aumento da violência na sociedade brasileira.
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ESSENCIALIDADE DA ADEQUAÇÃO DOS
ESTABELECIMENTOS PRISIONAIS À DEMANDA
CARCERÁRIA NO BRASIL COMO IMPERATIVO
DAS NORMAS QUE PRECEITUAM OS DIREITOS
FUNDAMENTAIS DO PRESO E O DIREITO SOCIAL
À SEGURANÇA PÚBLICA
1
José Carlos Pinheiro Filho2
A superlotação das penitenciárias e cadeias públicas ocasiona profundo desrespeito aos direitos e garantias individuais assegurados aos presos
no art. 5º da Constituição da República, gerando condições desumanas para
o cumprimento de suas penas e tornando, na prática, impossível o alcance da
finalidade de ressocialização. As normas que dispõem sobre a execução penal
são, desse modo, tornadas ineficazes. A evolução das teorias constitucionalistas
situou a norma constitucional como parâmetro de validade e vetor interpretativo de todas as normas do sistema jurídico. Conferiu-se maior juridicidade ao
conteúdo e eficácia das disposições constitucionais que contemplam direitos
fundamentais, passando estas a ocupar posição de superioridade e centralidade na ordem jurídica. Sua aplicação exige certas ponderações, no entanto,
a interpretação levada a efeito não pode conduzir a resultados incompatíveis
com seus preceitos. Os Poderes Públicos devem adotar, tanto quanto lhes sejam possíveis, as ações necessárias à satisfação prática dos direitos fundamentais. Cabe ao Estado enfrentar com firmeza e objetividade os enormes desafios
para aproximar os fatos do direito posto, sem tergiversar por meio de ações
que pouco ou nada contribuem para a melhoria do sistema penitenciário no
Brasil. O objetivo geral deste estudo consiste, pois, em examinar a essenciali-
RESUMO:
1
2
Trabalho desenvolvido sob a orientação do Prof. André Luiz Tabosa de Oliveira, Mestre em Direito
pela Universidade Federal do Ceará (UFC), apresentado à Coordenação do Curso de Especialização
em Direito Constitucional (VI) da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC)
no ano de 2012 como requisito parcial para obtenção do título de especialista em Direito Constitucional.
Bacharel em Direito e em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Ceará. Servidor público
estadual ocupante do cargo efetivo de Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Atualmente, exerce o cargo em comissão de Assessor de Desembargador. E-mail: <jcfortaleza@
yahoo.com.br>.
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dade de o sistema carcerário ser estruturado de modo a existirem, pelo menos,
vagas suficientes para presos provisórios e definitivos, empregando-se, nesse
escopo, a pesquisa bibliográfica, com tipologia de pesquisa pura e exploratória de abordagem qualitativa. Conclui-se que, não obstante os dispendiosos
recursos públicos requeridos para o equacionamento dessa problemática, e
sem prejuízo de que sejam promovidas concomitantemente outras medidas
visando à atenuação desse panorama, as normas constitucionais incidentes
assinalam ser absolutamente indispensável, para respeito de seus ditames, que,
no mínimo, sejam as unidades prisionais providas de vagas bastantes para
atender à crescente demanda carcerária neste País, medida cuja essencialidade
decorre da juridicidade e da manifesta imperatividade das normas que outorgam os direitos fundamentais dos presos e, bem assim, daquelas que conferem
aos indivíduos coletivamente o direito social à segurança pública, haja vista
que esta se relaciona intimamente com o sistema penitenciário enquanto instrumento de defesa social.
PALAVRAS-CHAVE: Direitos fundamentais; preso; penitenciárias; vagas; essencialidade.
Abstract: The overcrowding of penitentiaries and public jails causes profound disrespect to
chains and individual guarantees provided to prisoners in art. 5 of the Constitution of the
Republic, resulting in inhumane conditions for the fulfillment of their feathers and making
impossible, in practice, the resocialization purpose scope. The rules that come with the criminal execution are thereby rendered ineffective. The evolution of constitutionalists theories
situated the constitutional norm as validity parameter and interpretative vector of all norms
of the legal system. It was conferred greater legalizes to the content and effectiveness of constitutional provisions that cover fundamental rights, passing these to occupy position of superiority and centrality in the legal order. Its implementation requires certain weights, however,
the interpretation carried out cannot lead to results incompatible with its precepts. Public
authorities must adopt, as far as possible to them, the actions necessary to satisfy fundamental rights practice. It is incumbent upon the State face firmly and objectivity the formidable
challenges to bring together the facts and the right post, without quibble through actions
that contribute little or nothing to the improvement of the penitentiary system in Brazil. The
general objective of this study is, therefore, to examine the essentiality of the carceral system
be structured so there are at least sufficient vacancies for provisional and definitive prisoners,
employing inmates, in this scope, the bibliographic research, with pure and exploratory research typology of qualitative approach. It is concluded that, despite costly public resources
required for settling this issue, and without prejudice to other measures being promoted at the
same time aiming to ease this panorama, the constitutional incidents standards point out to be
absolutely indispensable, in respect of his dictates, that, at least, be the prison units with vague
enough to meet growing prison demand in this country, measure which essentiality stems
from the legalizes and express imperativeness of standards that admit the fundamental rights
of prisoners as well as those which confer on individuals collectively the social public security
law, because this one relates closely with the prison system as a instrument of social protection.
KEYWORDS: Fundamental rights; arrested; prisons; vacancies; essentiality.
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Introdução
A falta de vagas nos estabelecimentos prisionais, seja para detentos provisórios, seja para condenados por sentença condenatória irrecorrível, tem ocasionado diversas e danosas consequências tanto para os enclausurados quanto
para o conjunto da sociedade.
A superlotação das penitenciárias e cadeias públicas provoca, sobretudo,
o profundo desrespeito aos direitos e garantias individuais assegurados aos
presos no art. 5º da Constituição da República, gerando condições desumanas
para o cumprimento de suas penas e tornando impossível a concretização de
sua finalidade de ressocialização. As normas que dispõem sobre a execução
penal são, assim, tornadas ineficazes.
Essa realidade, além de fomentar a criminalidade por meio da manutenção do contato direto entre presos de diferentes periculosidades – condenados
ou apenas acusados da prática de crimes de gravidades distintas –, produz
limitações de ordem prática à própria atividade policial de prevenção e repressão à criminalidade, uma vez que impõe a retirada de policiais das ruas para
colocá-los de sentinela nos distritos policiais e cadeias públicas. Ocorre, também, de condenados a penas mais graves as cumprirem em estabelecimentos
incompatíveis com seus regimes de execução, em face da inexistência de estruturas físicas para possibilitar o atendimento aos requisitos previstos em lei.
O déficit prisional é apenas um aspecto do precaríssimo sistema carcerário brasileiro, cuja falência já foi diagnosticada há muito, porém, se trata de
um ponto central e basilar sobre o qual se desenvolvem suas demais mazelas.
Apesar de o tema ser recorrente nas discussões jurídicas e políticas acerca
de segurança pública, a proposta de construção de mais estabelecimentos para
a custódia de presos provisórios e definitivos não atrai, na seara técnica, o mesmo número de defensores se comparada a outras proposições, muitas delas,
inclusive, buscando aliviar o número de reclusos nos presídios, tais como a
progressão de regime para os crimes hediondos, a adoção das penas alternativas e a mudança mesma no paradigma da justiça criminal, como se dá com a
justiça restaurativa.
Nada obstante, ainda que o assunto não se mostre simpático para alguns,
entende-se que não deva gerar maiores constrangimentos, uma vez que, em
sua defesa, não se rechaçam quaisquer prerrogativas inerentes ao ser humano,
antes, se as propugna como decorrência do princípio da dignidade da pessoa
humana, cuja aplicação aos jurisdicionados se mostra indeclinável, na medida
em que foram positivadas na ordem constitucional como direitos fundamentais. Porém, as dificuldades e os desafios para alcançar a compatibilidade entre
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a quantidade de estabelecimentos prisionais e de encarcerados não devem ser
vistos como obstáculos intransponíveis ou insuperáveis, de maneira a conduzir
a medidas desarrazoadas por parte dos Poderes Públicos, as quais, quiçá, poderiam produzir consequências do mesmo jaez daquelas que se pretende evitar.
Diante desse panorama, indaga-se: é possível assegurar os direitos fundamentais dos presos ou o direito social à segurança pública sem que existam
carceragens em número suficiente e em condições adequadas para corresponder ao aumento da criminalidade e à consequente demanda por tais espaços?
Até que ponto o implemento das normas que outorgam os direitos fundamentais dos presos sofrem as conformações próprias dos direitos a prestação e
as limitações concernentes à reserva do possível?
A crescente prática de ilícitos penais no Brasil enseja, sem dúvida, que
todos os esforços sejam envidados para a reversão desse quadro, sem exclusão de iniciativas legislativas e doutrinárias que sirvam a esse fim. Todavia, a
inoperância das medidas até então encetadas e as vicissitudes dessa realidade
motivaram a elaboração desse ensaio, a fim de que, a partir dos questionamentos referenciados, e com enfoque especialmente pragmático, houvesse a
análise dos aparentes dilemas que se apresentam no enfrentamento dessa problemática, contribuindo-se, quando menos, para o fortalecimento da ideia de
que, além de o tema ser premente, a busca de sua solução não comporta mais
tergiversações de qualquer ordem.
Nesse sentido, tenciona o vertente artigo, sem nenhuma pretensão de
esgotar os significados que emanam dos direitos fundamentais contemplados
nas normas constitucionais e infraconstitucionais que versam especialmente
sobre os direitos e garantias dos presos, inclusive quanto à sua eficácia e aplicabilidade, investigar se o conteúdo e a força impositiva de tais preceptivos
qualificam a existência de vagas nos estabelecimentos prisionais em número
correspondente à demanda prisional no Brasil como requisito inescusável para
o respeito a seus ditames, até mesmo para que possam ser atingidos os fins
colimados na legislação pertinente.
Utilizar-se-á, para tanto, a pesquisa bibliográfica, com tipologia de pesquisa pura e exploratória de abordagem qualitativa.
O estudo está dividido em cinco seções.
Na primeira seção, tecem-se breves considerações sobre os fatores que
diferenciam as normas constitucionais das demais normas jurídicas, oriundos
de sua evolução histórica, em que foram incorporados no texto constitucional
certos valores e conceitos que lhe conferiram a centralidade no ordenamento
jurídico e a necessidade de obediência às suas prescrições.
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A segunda seção traz diversas teorizações e classificações doutrinárias sobre os direitos fundamentais, apresentando sua relação com o princípio da dignidade da pessoa humana e suas principais características, de modo a distinguir
o conteúdo das normas que os preveem, em função dos relevantes bens jurídicos que tutelam, inclusive vinculando seu respeito pelos Poderes Públicos.
A terceira seção expõe a lição do professor José Afonso da Silva acerca
da eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais, segundo a densidade
normativa que seus dispositivos materializam e a consequente possibilidade
de que produzam todos os efeitos neles previstos.
Na quarta seção, ilustram-se, exemplificativamente, as normas constitucionais e infraconstitucionais que preconizam direitos fundamentais dos presos, revelando o abismo entre as previsões abstratas e o atual panorama do
sistema penitenciário no Brasil, despontando clara a negligência com que o
Estado, há muito, tratou da matéria, contribuindo decisivamente para a cultura de indiferença que se disseminou na sociedade em geral ao longo dos anos.
A quinta seção dedica-se a uma abordagem mais direta sobre o tema
proposto, sendo subdividido em dois tópicos nos quais se discute a natureza cogente das normas que instituem os direitos fundamentais dos presos e,
bem assim, das normas que estabelecem o direito social à segurança pública.
Pretende-se identificar o mínimo existencial referente aos direitos dos presos,
enquanto condição indispensável para que possam ser respeitados seus direitos fundamentais. Divisa-se, ainda, o enfoque multidisciplinar que o assunto
reclama para a melhor eficiência das ações intentadas em prol de seu equacionamento. Por fim, debate-se a respeito do dever do Estado de promover políticas públicas de segurança e proteção dos indivíduos com a eficácia necessária
para a consecução desses fins.
Após tais reflexões, propõe-se a conclusão levando-se em conta todas as
perquirições entabuladas.
1
Considerações sobre as normas constitucionais
Após a Segunda Grande Guerra, as constituições, seguindo o modelo
americano de constitucionalismo, passaram a apresentar disposições normativas com expressa e direta alusão a diversos valores, os quais eram voltados,
principalmente, à dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais,
além de outras opções políticas de caráter social e prestacional do Estado. Essa
tendência se disseminou em contraposição às experiências de regimes políticos totalitários e ditatoriais vivenciadas na primeira metade do século XX,
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cujo ápice se deu por meio do nazismo, como forma de, ao se conferir status
constitucional às normas jurídicas que contemplem tais preceitos, fossem eles
mantidos a salvo de eventuais ingerências da legislação ordinária, além de
vincularem seu respeito pelos Poderes Públicos constituídos.
Esse novo tipo de constitucionalismo, denominado pela doutrina
como “Neoconstitucionalismo”, a despeito de ser um fenômeno atual de
características singulares, foi construído mediante transformações históricas
ocorridas nas teorias constitucionalistas, as quais delinearam suas premissas
fundamentais: a normatividade da Constituição, que reside no fato de que
seus dispositivos consubstanciam normas jurídicas dotadas de imperatividade; a superioridade da Constituição em face do restante da ordem jurídica
(Constituição rígida); e a centralidade da Constituição no sistema jurídico,
devendo os demais ramos do Direito ser compreendidos e interpretados a
partir de suas disposições. Caracterizam ainda o “Neoconstitucionalismo”,
sob o ponto de vista material, a incorporação explícita de valores e opções
políticas nos textos constitucionais; e a expansão de conflitos específicos e
gerais entre as opções normativas e filosóficas existentes dentro do próprio
sistema constitucional.3
As normas constitucionais diferenciam-se das demais normas jurídicas
em vista de alguns fatores: a) sua posição no sistema; b) a natureza da linguagem que utilizam; c) seu conteúdo específico; e d) sua dimensão política.4
O primeiro deles alude à supremacia constitucional, postulado que dá
esteio a todo o constitucionalismo contemporâneo e segundo o qual nenhum
ato jurídico pode subsistir validamente se for incompatível com a Constituição. A norma constitucional é, pois, o parâmetro de validade e o vetor interpretativo de todas as normas do sistema jurídico.
O segundo elemento refere-se à abertura que caracteriza o texto constitucional, composto de prescrições por meio das quais se transfere ao intérprete parte do papel de criação do Direito, sob o ponto de vista da questão a
ser resolvida, valorando situações específicas e concretizando conceitos indeterminados. Tal caráter possibilita a atualização do sentido da Constituição,
incorporando-se-lhe novos valores em face de novas circunstâncias.
Quanto ao conteúdo, as normas constitucionais podem se estruturar
3
4
BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. [2005]. Disponível em: <www.mundojuridico.adv.br/cgi-bin/upload/texto853.
pdf>. Acesso em: Set. 2011. p. 2-4.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 198.
192
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sob a forma de normas de organização ou normas de conduta, estas últimas
ora definindo direitos fundamentais de diferentes graus, para cuja aplicação
se exigem certas ponderações, ora se apresentando sob a forma de disposições programáticas, que contêm particularidades variadas na elucidação de
seu sentido.5
A dimensão política das normas constitucionais não contradiz sua juridicidade, mas revela que a Constituição faz a interface entre o fato político e
a ordem jurídica, interligando universos distintos, porém intercomunicantes.
Feito esse introito, impende esclarecer algumas noções sobre o sentido da
locução direitos fundamentais.
2 Direitos fundamentais
Na busca para se encontrar um fundamento absoluto justificante para
os direitos fundamentais, foram construídas diversas concepções filosóficas.
Gilmar Mendes, citando Jorge Miranda, expõe as seguintes: para os jusnaturalistas, os direitos do homem são imperativos do direito natural, anteriores à
vontade do Estado; para os positivistas, trata-se de faculdades outorgadas pela
lei e por ela reguladas; para os idealistas, são princípios abstratos que a realidade vai acolhendo ao longo do tempo; e, para os realistas, seria o resultado
direto de lutas sociais e políticas.6
Não obstante a variedade de teorias, seus conceitos mostraram-se insuficientes e mesmo contraditórios, sendo mais importante procurar em cada
caso concreto os vários fundamentos possíveis para a consagração de um direito como fundamental, atentando-se para as condições, meios e situações nas
quais este ou aquele direito haverá de atuar.
O conceito de direitos fundamentais é matéria polêmica pela dificuldade
de se definir suas características básicas, não se mostrando coincidente em
todos os casos a própria estrutura das normas que os preconizam.
De uma forma geral, os direitos fundamentais “podem ser considerados
concretizações das exigências do princípio da dignidade da pessoa humana”.7
Vale dizer, são pretensões que, segundo o contexto histórico experimentado,
descobrem-se a partir do valor da dignidade humana.
Essa concepção indica que normas de direito fundamental podem ser
5
6
7
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 199.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet.
Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000. p. 113.
SARLET, Ingo Wolfgang, 1998 apud Ibid., p. 116.
193
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encontradas mesmo fora do rol dos dispositivos constitucionais, desde que
haja um especial vínculo do bem jurídico protegido com alguns dos valores
essenciais ao resguardo da dignidade humana.
Sobre o tema, José Afonso da Silva apresenta a seguinte conceituação:
Direitos fundamentais do homem constitui a expressão mais adequada a este estudo, porque, além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo
e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para
designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele
concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações
jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem
mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual,
devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente
efetivados.8
Mendes, Coelho e Branco associam como características mais frequentes
dos direitos fundamentais o serem universais e absolutos; históricos; inalienáveis/indisponíveis; constitucionais; vinculativos dos Poderes Públicos; e de
aplicabilidade imediata.9
A universalidade indica que a mera qualidade de ser humano configura
condição suficiente para a sua titularidade, apesar de existirem direitos fundamentais específicos que se referem a apenas alguns indivíduos.
O caráter que abstratamente se atribui aos direitos fundamentais no sentido de serem absolutos não corresponde, na verdade, à sua efetivação prática,
sob pena de, se assim o fosse, nenhum outro objetivo estatal ou social poder
prevalecer sobre eles. Desse modo, mesmo o direito à vida é passível de sofrer
restrições, como se dá, por exemplo, no Brasil, no caso de guerra declarada
(art. 5º, inciso XLVII, “a”, CF/88).
A historicidade remete à noção de que os direitos fundamentais estão
compreendidos em um contexto histórico, não possuindo seu conteúdo valia
unívoca em todo tempo e lugar. Denota, também, sua índole evolutiva em
vista das lutas em defesa de novas liberdades, conforme as características assumidas pelo poder.
A inalienabilidade relaciona-se com a potencialidade do homem de se
autodeterminar e de ser livre, fundando-se no valor da dignidade humana. No
entanto, admite-se, em certos casos, a relativização dessa característica, a fim
8
9
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 2005. p. 178. (Grifos do autor).
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet.
Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000. p. 119-137.
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de se prestigiar a autonomia contratual, desde que respeitados certos limites e
dependendo da finalidade que se tem em vista com a renúncia.
A constitucionalização diz respeito ao fato de os direitos fundamentais
estarem consagrados em preceitos da ordem jurídica. Esse traço demarca a diferença entre eles e os direitos humanos, porquanto estes têm bases jusnaturalistas, universais e supranacionais, enquanto aqueles estão positivados em uma
ordem jurídica em particular, sendo, porque assegurados pelos Estados que
os aclamam, garantidos e limitados no espaço e no tempo. Tal característica
assinala, ainda, que as normas que abrigam direitos fundamentais impõem-se
a todos os poderes constituídos.
Os atos dos poderes constituídos devem, assim, conformidade aos direitos fundamentais e podem ser invalidados se os contrariarem, uma vez que
estes se qualificam como obrigações indeclináveis do Estado.
Essa vinculação dos Poderes Públicos obriga o legislador tanto a editar
normas que regulamentem os direitos fundamentais que dependem de concretização normativa quanto a, ao realizar a tarefa que lhe é delegada pela
Constituição de restringir o direito previsto pelo constituinte, respeitar seu
núcleo essencial, evitando limitações desarrazoadas.
A Administração Pública também se vincula aos direitos fundamentais,
na medida em que deve interpretar e aplicar as leis cingindo-se aos limites por
eles indicados, sobretudo no que concerne às cláusulas gerais e aos conceitos
jurídicos indeterminados.
Já ao Judiciário, ao controlar os atos dos demais poderes, cabe conferir
aos direitos fundamentais a máxima efetividade possível, recusando aplicação
a preceitos que não os respeitem.
Finalmente, a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, prevista
expressamente no § 1º do art. 5º do texto constitucional, revela que o caráter
das normas que os contemplam é preceptivo, e não meramente programático.
Entretanto, isso não significa que tais dispositivos serão sempre aplicados de
forma automática, tendo em vista suas variadas densidades normativas, sobrevindo, naquelas cujo teor seja baixo, sem elementos suficientes para gerar seus
efeitos principais, a necessidade de atuação do legislador infraconstitucional
para que haja sua concretização. Sua inércia enseja a ação direta de inconstitucionalidade por omissão ou o mandado de injunção.
Foram elaboradas diversas classificações referentes aos direitos fundamentais visando à melhor compreensão do conteúdo e eficácia de suas várias espécies, destacando-se entre elas a teoria dos quatro status de Jellinek.
Segundo sua doutrina, há quatro situações em que o indivíduo pode se
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encontrar em relação ao Estado: status passivo – pelo qual se sujeita aos
mandamentos e imposições estatais; status ativo – que traduz o princípio
participativo da cidadania na vontade do governo, concernente, assim, aos
direitos políticos; status negativo – caracterizando os direitos individuais que
reclamam um âmbito de atuação livre de ingerências dos Poderes Públicos;
e status positivo – quando é possível se exigir uma prestação positiva do Estado em favor do indivíduo, no escopo de se construírem as condições da
liberdade concreta e efetiva.10
Dessa teoria derivaram outras, encontrando-se entre as mais utilizadas
atualmente aquela que divide os direitos fundamentais em: direitos de defesa
ou direitos de liberdade; direitos a prestações ou direitos cívicos; e direitos de
participação.11
Os direitos de defesa dirigem-se a evitar que o Estado exerça uma ingerência indevida sobre os bens por eles protegidos e dão lastro à pretensão de
reparo no caso de sua violação. Exemplificam essa modalidade as seguintes
prescrições constantes do art. 5º da Constituição Federal: não ser obrigado a
agir ou deixar de agir senão em virtude de lei (inciso II), não ser submetido à
tortura, nem a tratamento desumano ou degradante (inciso III), a liberdade
de manifestação de pensamento (inciso IV), a liberdade de crença e de exercício de culto (inciso VI), a liberdade de expressão artística, científica e intelectual (inciso IX), a inviolabilidade da vida privada e da intimidade (inciso X),
o sigilo das comunicações (inciso XII), a liberdade de exercício de trabalho,
ofício ou profissão (inciso XIII), a liberdade de locomoção (inciso XV), a liberdade de associação para fins lícitos (inciso XVII), a proibição de penas de
caráter perpétuo (inciso XLVII, b), dentre outras.
Vedam, pois, interferências estatais no âmbito da liberdade dos indivíduos, além de protegerem bens jurídicos contra ações do Estado que os afetem.
Sua afronta propicia a utilização de remédio jurídico no intuito de compelir o
Estado a se abster de praticar o ato incompatível com os direitos fundamentais
ou a anular o que já praticou.
Os direitos a prestação são direitos de promoção, apontam para uma
postura ativa do Estado para atenuar as desigualdades, buscando favorecer o
implemento das condições materiais indispensáveis ao desfrute das liberdades
asseguradas pelos direitos de defesa. Conforme o tipo de imposição dirigida
ao ente estatal, subdividem-se em direitos a prestação jurídica ou a prestação
10 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet.
Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000. p. 139-140.
11 Ibid., p. 140.
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material.
No primeiro caso, basta ao Estado normatizar o bem jurídico amparado
como direito fundamental, estabelecendo normas jurídicas penais ou de organização e procedimento. Situam-se nessa hipótese os direitos fundamentais
que dependem essencialmente de normas infraconstitucionais para obterem
sentido. O direito à organização e ao procedimento demanda não apenas a
edição de normas que concretizem direitos fundamentais, mas que estas sejam
interpretadas nos moldes dos direitos fundamentais que as subjazem.
Os direitos a prestações materiais ou direitos a prestação em sentido estrito consubstanciam os direitos sociais e dirigem-se à atenuação das desigualdades de fato na sociedade. Exemplificam-nos os direitos sociais elencados no
art. 6º da Constituição da República: direito à educação, à saúde, ao trabalho,
ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade, à infância
e os direitos dos desamparados à assistência.
Há os chamados direitos originários a prestação, que se encontram previstos em dispositivos com densidade normativa suficiente para que produzam seus principais efeitos, independentemente da participação do legislador
ordinário. Entretanto, a maior parte dos direitos a prestação reclama a intervenção deste para que derivem seus efeitos plenos.
Tais direitos são associados à existência de condições econômicas que
viabilizem sua efetivação, submetendo-se à reserva do possível, ou seja, a que
estejam presentes disponibilidades materiais do Estado bastantes para o seu
implemento. Essa dimensão econômica dos direitos a prestação material remete à ponderação pelo legislador ordinário acerca da conformação da possibilidade de sua realização em cada momento histórico.
Vieira de Andrade, referido por Mendes, Coelho e Branco, a respeito
dessa característica dos direitos à prestação material assinala:
Para que se determinem como direitos, é necessária uma atuação legislativa, que
defina o seu conteúdo concreto, fazendo uma opção num quadro de prioridades a
que obrigam a escassez dos recursos, o caráter limitado da intervenção do Estado
na vida social e, em geral, o próprio princípio democrático. Os preceitos constitucionais respectivos não são, por isso, nesse sentido, aplicáveis imediatamente,
muito menos constituem preceitos exequíveis por si mesmos.12
Malgrado esse aspecto, formulou-se a teoria do grau ínfimo de efetividade
dos direitos a prestação material como meio de restringir a liberdade de con12 ANDRADE, José Carlos Vieira de, 1987 apud MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio
Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000. p. 148.
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formação do legislador e assegurar uma garantia a um mínimo social. Um
exemplo prático dessa teoria na Constituição Federal brasileira encontra-se
em seu art. 201, § 5º.
Após a concretização do direito a prestação material pelo legislador, surge o direito derivado a prestação, o qual também se submeteria à reserva do
possível, podendo o Estado restringir a concessão das prestações ao limite dos
recursos existentes, assegurando, contudo, o tratamento isonômico para seus
destinatários.
Finalizando a classificação apresentada, há os direitos fundamentais de
participação, que consistiriam nos direitos voltados a garantir a participação
dos cidadãos na formação da vontade política do País, ou seja, os direitos
políticos. Essa modalidade de direitos apresenta características mistas, ora de
direitos de defesa, ora de direitos a prestação, razão por que parte da doutrina
os enquadra ou dentro do primeiro grupo ou fazendo parte do segundo.
Ao lado desses aspectos até então mencionados a respeito dos direitos
fundamentais, que preenchem sua dimensão subjetiva, existe ainda a dimensão objetiva, a qual, transcendendo o âmbito da garantia de posições individuais, indica sua influência e irradiação sobre todo o direito positivado no País,
como princípios basilares da ordem constitucional.
Entre as consequências dessa dimensão objetiva dos direitos fundamentais se situa a própria limitação de certos direitos subjetivos individuais em
prol da supremacia dos valores constitucionais por eles contemplados.
Outra decorrência são os deveres de proteção dos referidos valores pelo
Estado em face de lesões advindas de qualquer origem, inclusive dos próprios
Poderes Públicos. Essa cobrança de providências, no entanto, também se submeteria à liberdade de conformação dos direitos fundamentais pelos órgãos
políticos e à reserva do possível.
3 Eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais
A noção de eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais ora apresentada baseia-se nos ensinamentos do professor José Afonso da Silva, cuja
classificação das normas constitucionais relativamente a tais parâmetros, apesar das críticas que lhe dirige parte da doutrina, permanece como aquela de
maior aceitação no meio jurídico.
Segundo o aludido jurista, a diferenciação entre eficácia e aplicabilidade
ocorre nos seguintes termos:
Aplicabilidade significa qualidade do que é aplicável. No sentido jurídico, diz-se
da norma que tem possibilidade de ser aplicada, isto é, da norma que tem capa198
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cidade de produzir efeitos jurídicos. Não se cogita de saber se ela produz efetivamente esses efeitos. Isso já seria uma perspectiva sociológica, e diz respeito à sua
eficácia social, enquanto nosso tema se situa no campo da ciência jurídica, não da
sociologia jurídica.13
E continua:
Uma norma só é aplicável na medida em que é eficaz. Por conseguinte, eficácia e
aplicabilidade das normas constitucionais constituem fenômenos conexos, aspectos talvez do mesmo fenômeno, encarados por prismas diferentes: aquela como
potencialidade; esta como realizabilidade, praticidade.14
A eficácia do direito se dividiria em duas vertentes: eficácia social e eficácia jurídica. A primeira traduz uma efetiva conduta nos moldes da previsão
normativa, o fato real de ela ser aplicada e observada, de uma conduta humana
se verificar na conformidade de seu conteúdo.15 É a efetividade da norma com
o alcance de seus objetivos. A segunda consubstancia a capacidade para serem
atingidos tais objetivos, referindo-se, assim, à aplicabilidade, exigibilidade ou
executoriedade da norma, como possibilidade de sua aplicação jurídica.
Partindo da premissa de que não há normas constitucionais destituídas
de eficácia, uma vez que “todas elas irradiam efeitos jurídicos, importando
sempre numa inovação da ordem jurídica preexistente à entrada em vigor
da Constituição a que aderem e a ordenação instaurada”,16 classifica o citado
autor as seguintes espécies de normas constitucionais: de eficácia plena, de
eficácia contida, e de eficácia limitada.
Incluem-se na primeira modalidade aquelas normas em que, desde a vigência da Constituição, são produzidos, ou é possível que se produzam, todos
os seus efeitos essenciais, em face da densa normatividade de que se revestem,
estando presentes todos os requisitos para a sua incidência direta e imediata.
Os interesses por elas regulados são dispostos de maneira peremptória por
intermédio de comandos certos e definidos. Trata-se predominantemente de
regras de organização e limitação dos poderes estatais. Exemplificam-nas os
seguintes dispositivos da Constituição Federal da República: art. 1º, art. 15,
art. 17, § 4º, art. 28, art. 44 e seu parágrafo único, art. 45, art. 46, § 1º, art.
60, § 3º, art. 76, art. 145, § 2º, art. 226, § 1º.
Na segunda categoria, também estão inseridas normas com requisitos
13 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. In: MARTINS, Ivens Gandra
da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira; NASCIMENTO; Carlos Valder do (Coords.). Tratado de
direito constitucional. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 141.
14 Ibid., p. 142.
15 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 220.
16 SILVA, José Afonso da. Ob. cit., p. 140.
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bastantes para sua aplicação direta e imediata, com a produção de todos os
efeitos nelas previstos, mas se preconizam em seu texto meios de limitar sua
eficácia, conforme determinadas circunstâncias, impedindo a extensão de seus
comandos jurídicos. Enquanto não sobrevier a normação restritiva, porém,
seus efeitos serão plenos. Consagram, normalmente, direitos de indivíduos
ou de entidades públicas ou privadas. Servem como exemplo de tais espécies
normativas, dentre outros, os seguintes dispositivos da Constituição Federal
brasileira: art. 5º, VIII, XXIV, XXV, e art. 37, I.
As normas constitucionais de eficácia limitada são aquelas que, num primeiro momento, não produzem todos os seus efeitos essenciais, em virtude
de não se revestirem de normatividade suficiente, necessitando, para tanto, da
atuação do legislador ordinário ou de outro órgão estatal. São de aplicabilidade
indireta, mediata e reduzida, uma vez que os interesses que preveem somente
serão integralmente tutelados após uma normatividade ulterior. Alguns exemplos dessa espécie normativa são os seguintes dispositivos constitucionais: art.
33, art. 88, art. 90, § 2 º, art. 91, § 2º, art. 170, art. 196, e art. 217.
Em vista de diferenças intrínsecas às normas de eficácia limitada quanto
aos objetivos sociais e aos meios de sua atuação prática, foram elas divididas
em dois grupos: normas definidoras de princípio institutivo ou organizativo,
que se inserem na parte organizativa da Constituição, traçando esquemas gerais de estruturação e atribuição de órgãos, entidades ou institutos, remetendo
ao legislador ordinário sua estruturação definitiva; e normas definidoras de
princípio programático, que preveem os princípios para serem cumpridos pelos órgãos públicos como programas, no desiderato de que sejam atingidos os
fins sociais do Estado.
4 As normas constitucionais e infraconstitucionais que preconizam
direitos fundamentais do preso e o panorama do sistema penitenciário no Brasil
Logo em seu art. 1º, a Constituição Federal enumera os fundamentos
sobre os quais se baseia a República Federativa do Brasil¸ constando em seu
inciso III a dignidade da pessoa humana como princípio norteador de toda
a ordem jurídica nacional, submetendo-se ao precípuo e supremo valor que
consubstancia todos os programas políticos e todas as ações intentadas pelos
Poderes Públicos constituídos.
Entre os direitos e garantias fundamentais assegurados a todos no art.
5º da Carta Magna, e, mais precisamente, entre aqueles dirigidos aos presos
provisórios ou definitivos com repercussão direta junto ao sistema prisional
brasileiro, destacam-se principalmente os seguintes dispositivos: inciso III
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(ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante); inciso XLI (a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais); inciso XLV (nenhuma pena passará da pessoa
do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do
perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra
eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido); inciso XLVII
(não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos
do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis); inciso XLVIII (a pena será cumprida em estabelecimentos
distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado);
inciso XLIX (é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral);
inciso L (às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação); inciso LXV (a
prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária); inciso
LXXV (o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o
que ficar preso além do tempo fixado na sentença).
Por seu turno, a Lei de Execução Penal – Lei nº. 7.210/84 -, a despeito
de tratar-se de legislação infraconstitucional, também prevê direitos fundamentais dos presos e dos submetidos à internação, não somente porque suas
prescrições encontram lastro no princípio da dignidade da pessoa humana,
mas também porque regulamentam os preceitos que albergam direitos e garantias estatuídos no citado art. 5º da Constituição.
A execução penal visa a efetivar as disposições da sentença ou decisão
criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado (art. 1º, Lei nº. 7.210/84). Entre os dispositivos que
elencam direitos dos segregados provisória ou definitivamente que, mais claramente, relacionam-se com a proposição do presente ensaio, distinguem-se:
Art. 3º Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei.
Art. 5º Os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade, para orientar a individualização da execução penal.
Art. 10. A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade.
Art. 12. A assistência material ao preso e ao internado consistirá no fornecimento
de alimentação, vestuário e instalações higiênicas.
Art. 28. O trabalho do condenado, como dever social e condição de dignidade
humana, terá finalidade educativa e produtiva.
Art. 40 - Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos
condenados e dos presos provisórios.
Art. 82. Os estabelecimentos penais destinam-se ao condenado, ao submetido à
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medida de segurança, ao preso provisório e ao egresso.
§ 1° A mulher e o maior de sessenta anos, separadamente, serão recolhidos a estabelecimento próprio e adequado à sua condição pessoal.
§ 2º - O mesmo conjunto arquitetônico poderá abrigar estabelecimentos de destinação diversa desde que devidamente isolados.
Art. 83. O estabelecimento penal, conforme a sua natureza, deverá contar em suas
dependências com áreas e serviços destinados a dar assistência, educação, trabalho,
recreação e prática esportiva.
§ 1º Haverá instalação destinada a estágio de estudantes universitários.
§ 2º Os estabelecimentos penais destinados a mulheres serão dotados de berçário,
onde as condenadas possam cuidar de seus filhos, inclusive amamentá-los, no mínimo, até 6 (seis) meses de idade.
§ 3º Os estabelecimentos de que trata o § 2o deste artigo deverão possuir, exclusivamente, agentes do sexo feminino na segurança de suas dependências internas.
§ 4º Serão instaladas salas de aulas destinadas a cursos do ensino básico e profissionalizante.
§ 5º Haverá instalação destinada à Defensoria Pública.
Art. 84. O preso provisório ficará separado do condenado por sentença transitada
em julgado.
§ 1° O preso primário cumprirá pena em seção distinta daquela reservada para os
reincidentes.
§ 2° O preso que, ao tempo do fato, era funcionário da Administração da Justiça
Criminal ficará em dependência separada.
Art. 85. O estabelecimento penal deverá ter lotação compatível com a sua estrutura e finalidade.
Parágrafo único. O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária determinará o limite máximo de capacidade do estabelecimento, atendendo a sua
natureza e peculiaridades.
Art. 88. O condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório,
aparelho sanitário e lavatório.
Parágrafo único. São requisitos básicos da unidade celular:
a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e
condicionamento térmico adequado à existência humana;
b) área mínima de 6,00m2 (seis metros quadrados).
Art. 89. Além dos requisitos referidos no art. 88, a penitenciária de mulheres
será dotada de seção para gestante e parturiente e de creche para abrigar crianças
maiores de 6 (seis) meses e menores de 7 (sete) anos, com a finalidade de assistir a
criança desamparada cuja responsável estiver presa.
Parágrafo único. São requisitos básicos da seção e da creche referidas neste artigo:
I – atendimento por pessoal qualificado, de acordo com as diretrizes adotadas pela
legislação educacional e em unidades autônomas; e
II – horário de funcionamento que garanta a melhor assistência à criança e à sua
responsável.
Art. 90. A penitenciária de homens será construída, em local afastado do centro
urbano, à distância que não restrinja a visitação.
Art. 91. A Colônia Agrícola, Industrial ou Similar destina-se ao cumprimento da
pena em regime semi-aberto.
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Art. 92. O condenado poderá ser alojado em compartimento coletivo, observados
os requisitos da letra a, do parágrafo único, do artigo 88, desta Lei.
Parágrafo único. São também requisitos básicos das dependências coletivas:
a) a seleção adequada dos presos;
b) o limite de capacidade máxima que atenda os objetivos de individualização da
pena.
Art. 95. Em cada região haverá, pelo menos, uma Casa do Albergado, a qual
deverá conter, além dos aposentos para acomodar os presos, local adequado para
cursos e palestras.
Parágrafo único. O estabelecimento terá instalações para os serviços de fiscalização
e orientação dos condenados.
Art. 99. O Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico destina-se aos inimputáveis e semi-imputáveis referidos no artigo 26 e seu parágrafo único do Código
Penal.
Parágrafo único. Aplica-se ao hospital, no que couber, o disposto no parágrafo
único, do artigo 88, desta Lei.
Art. 102. A cadeia pública destina-se ao recolhimento de presos provisórios.
Art. 103. Cada comarca terá, pelo menos 1 (uma) cadeia pública a fim de resguardar o interesse da Administração da Justiça Criminal e a permanência do preso em
local próximo ao seu meio social e familiar.
Art. 104. O estabelecimento de que trata este Capítulo será instalado próximo de
centro urbano, observando-se na construção as exigências mínimas referidas no
artigo 88 e seu parágrafo único desta Lei.
Art. 203. No prazo de 6 (seis) meses, a contar da publicação desta Lei, serão
editadas as normas complementares ou regulamentares, necessárias à eficácia dos
dispositivos não auto-aplicáveis.
§ 1º Dentro do mesmo prazo deverão as Unidades Federativas, em convênio com
o Ministério da Justiça, projetar a adaptação, construção e equipamento de estabelecimentos e serviços penais previstos nesta Lei.
§ 2º Também, no mesmo prazo, deverá ser providenciada a aquisição ou desapropriação de prédios para instalação de casas de albergados.
§ 3º O prazo a que se refere o caput deste artigo poderá ser ampliado, por ato
do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, mediante justificada
solicitação, instruída com os projetos de reforma ou de construção de estabelecimentos.
§ 4º O descumprimento injustificado dos deveres estabelecidos para as Unidades
Federativas implicará na suspensão de qualquer ajuda financeira a elas destinada
pela União, para atender às despesas de execução das penas e medidas de segurança.
A simples leitura dos dispositivos legais suprarreferidos e o mínimo conhecimento que se angarie sobre a realidade carcerária no Brasil revelam o
profundo desrespeito pelo Estado quanto ao cumprimento das mencionadas
normas ordinárias e constitucionais, não obstante trate-se, inclusive, de preceitos cuja aplicabilidade deve ser direta e imediata, nos termos elucidados em
tópico anterior, seguindo a lição de José Afonso da Silva.
Observando com especial atenção o disposto no art. 85 da Lei de Exe203
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cução Penal, verifica-se a obrigação expressa de que o estabelecimento prisional tenha lotação consonante sua estrutura e finalidade, remetendo-se ao
Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária a definição de sua
capacidade máxima.
Cumprindo ao mencionado órgão da execução penal, ainda, várias outras
ações relacionadas ao sistema criminal, criminológico e penitenciário, entre as
quais instituir regras sobre a arquitetura e construção de estabelecimentos penais, foi editada a Resolução nº. 14/94/CNPCP, que assenta regras mínimas
para o tratamento do preso no Brasil e prevê capítulo especial dispondo sobre
os locais destinados aos detentos. Ressaltam-se, a título exemplificativo, os
seguintes dispositivos:
Art. 8° Salvo razões especiais, os presos deverão ser alojados individualmente.
§ 1° Quando da utilização de dormitórios coletivos, estes deverão ser ocupados
por presos cuidadosamente selecionados e reconhecidos como aptos a serem alojados nessas condições.
§ 2° O preso disporá de cama individual provida de roupas mantidas e mudadas
correta e regularmente, a fim de assegurar condições básicas de limpeza e conforto.
Art. 9° Os locais destinados aos presos deverão satisfazer as exigências de higiene,
de acordo com o clima, particularmente no que se refere à superfície mínima,
volume de ar, calefação e ventilação.
Art. 10º O local onde os presos desenvolvam suas atividades deverá apresentar:
I - janelas amplas, dispostas de maneira a possibilitar circulação de ar fresco, haja
ou não ventilação artificial, para que o preso possa ler e trabalhar com luz natural;
II - quando necessário, luz artificial suficiente, para que o preso possa ler e trabalhar sem prejuízo da sua visão;
III - instalações sanitárias adequadas, para que o preso possa satisfazer suas necessidades naturais de forma higiênica e decente, preservada a sua privacidade;
IV - instalações condizentes, para que o preso possa tomar banho à temperatura
adequada ao clima e com a freqüência que exigem os princípios básicos de higiene.
Releva destacar, outrossim, a Resolução nº. 03/2005/CNPCP, que normatiza as diretrizes básicas para a construção, ampliação e reforma de estabelecimentos penais, determinando sua capacidade geral e as dimensões mínimas para as respectivas celas, quais sejam:
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Quadro 1 – Capacidade geral dos estabelecimentos penais.
CAPACIDADE GERAL DOS ESTABELECIMENTOS PENAIS
Capacidade Máxima
Capacidade Mínima
Estabelecimento Penal
de presos
de presos
Penitenciária de Segurança Máxima Especial
300
60
Penitenciária de Segurança Média ou Máxima
800
300
Colônia Agrícola, Industrial ou Similar
1.000
60
Casa do Albergado ou similar
120
20
Centro de Observação Criminológica
300
60
Cadeia Pública
800
30
Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico
120
20
17
Fonte: BRASIL, 2005.
Quadro 2 – Dimensões mínimas para celas.
Capacidade (vaga)
01
Dimensões mínimas para Celas
Área Mínima Diâmetro Mínimo Cubagem Mínima
Tipo
(m²)
(m)
(m³)
Cela Individual
6,00
2,00
15,00
02
7,00
2,10
17,50
03
7,50
2,20
18,75
8,00
2,30
20,00
9,00
2,40
22,50
10,00
2,50
25,00
04
05
06
Cela Coletiva
18
Fonte: BRASIL, 2005.
Recentemente, a Resolução nº. 09/2011/CNPCP, de 18 de novembro
de 2011, que revisou as disposições da Resolução nº. 03/2005/CNPCP, tencionando, entre outros propósitos, diminuir o déficit carcerário no Brasil, revogou o aludido diploma normativo, aumentando de seis para oito o número
máximo de presos por cela coletiva nos estabelecimentos penais, passando a
tabela retro a apresentar os seguintes números:
17 BRASIL. Ministério da Justiça. Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Resolução
nº. 03, de 23 de setembro de 2005. 2005. Disponível em: <http://www.conselhopenitenciario.
al.gov.br/resolucoes-e-portarias/resolucoes-do-conselho-nacional-de-politica-criminal-e-penitenciaria/Resolucao%20No%2003%2C%2 0DE%2023%20de%20setembro%20de%202005.pdf>.
Acesso em: Nov. 2011.
18 BRASIL. Ministério da Justiça. Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Resolução
nº. 03, de 23 de setembro de 2005. 2005. Disponível em: <http://www.conselhopenitenciario.
al.gov.br/resolucoes-e-portarias/resolucoes-do-conselho-nacional-de-politica-criminal-e-penitenciaria/Resolucao%20No%2003%2C%2 0DE%2023%20de%20setembro%20de%202005.pdf>.
Acesso em: Nov. 2011.
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Quadro 3 – Dimensões mínimas para celas.
Capacidade (vaga)
01
Dimensões mínimas para Celas
Área Mínima Diâmetro Mínimo Cubagem Mínima
Tipo
(m²)
(m)
(m³)
Cela Individual
6,00
2,00
15,00
02
7,00
2,00
15,00
03
7,70
2,60
19,25
04
8,40
2,60
21,00
12,75
2,60
31,88
06
13,85
2,85
34,60
07
13,85
2,85
34,60
08
13,85
2,85
34,60
05
Cela Coletiva
Fonte: BRASIL, 2011.19
Registra-se, ainda, que a Resolução nº. 502/2006, do Conselho da Justiça Federal, ao regulamentar os procedimentos de inclusão e de transferência
de presos para as unidades do sistema penitenciário federal, prescreve, em
seu art. 6º, que, no estabelecimento penal federal, a lotação máxima nunca
poderá ser ultrapassada, devendo o número de presos, inclusive, sempre que
possível, ser mantido aquém do limite indicado, vedação essa que repercutirá
no julgamento dos conflitos que versarem sobre a matéria, conforme preceitua o parágrafo único do citado artigo.
Ao analisar as diferenças entre o arcabouço normativo que trata dos direitos dos presos e a realidade penitenciária no Brasil, César Barros Leal comenta:
É enganador, no entanto, admitir aplicação imediata de normas outras, como a
do art. 5º, inciso XLVIII, da CF, onde se lê que a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do
apenado. Isto porque raras são as prisões onde há separação entre primários e
reincidentes, entre assaltantes, homicidas, estupradores, adictos e traficantes, entre
os condenados a cumprirem pena em regime fechado, semi-aberto ou aberto. Por
outra parte, a norma constitucional, reproduzida pela Lei de Execução Penal, em
seu art. 40, que preceitua o respeito à integridade física e moral do preso, dilui-se
perante um sistema que a nega por completo e que levou Sobral Pinto, em defesa
de um cliente preso, a requerer a aplicação da lei de proteção aos animais. De fato,
como falar em respeito à integridade física e moral em prisões onde convivem
pessoas sadias e doentes; onde o lixo e os dejetos humanos se acumulam a olhos
vistos e as fossas abertas, nas ruas e galerias, exalam um odor insuportável; onde as
celas individuais são desprovidas por vezes de instalações sanitárias; onde os alojamentos coletivos chegam a abrigar 30 ou 40 homens; onde permanecem sendo
19 BRASIL. Ministério da Justiça. Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Resolução nº. 09, de 18 de novembro de 2011. 2011. Disponível em: < http://portal.mj.gov.br/main.
asp?View={28D9C630-49B2-406B-9160-0C04F4BDD88E}>. Acesso em: Dez. 2011.
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utilizadas, ao arrepio da proibição expressa da Lei n. 7.210/84, as celas escuras, as
de segurança, em que os presos são recolhidos por longos períodos, sem banho de
sol, sem direito a visita; onde a alimentação e o tratamento médico e odontológico
são harto precários e a violência sexual atinge níveis desassossegantes? Como falar,
insistimos, em integridade física e moral em prisões onde a oferta de trabalho
inexiste ou é absolutamente insuficiente; onde presos são obrigados a assumirem
a paternidade de crimes que não cometeram, por imposição dos mais fortes; onde
um condenado cumpre a pena de outrem, por troca de prontuários; onde os diretores determinam o recolhimento na mesma cela de desafetos, sob o falso pretexto
de oferecer-lhes uma chance de tornarem-se amigos, numa atitude assumida de
público, flagrantemente irresponsável e criminosa? 20
E, mais adiante, arremata:
Em síntese, a presente Constituição Federal deu forte contribuição para a garantia
dos direitos dos presos tanto provisórios quanto condenados, embora nos pareça
óbvio que, sob certos aspectos, em face da realidade, dita proclamação resulta
quase sempre retórica, maiormente quando se propõe ter aplicação imediata.21
Sobre a crise do sistema penitenciário, René Ariel Dotti identifica alguns
fatores que contribuem para esse quadro, registrando, entre outros:
Como estruturas de apoio do sistema penal e penitenciário compreendem-se os recursos e serviços para administrar os problemas relativos ao delito, ao delinqüente
e às reações penais. A improbidade administrativa, a insensibilidade gerencial, a
indiferença humana e a hostilidade burocrática são as coordenadas do abandono a
que foram reduzidas as estruturas das Delegacias de Polícia, dos Juízos e Tribunais
criminais, dos estabelecimentos e das instituições penais. E a responsabilidade por
tais vícios é exclusivamente do poder político que domina a Administração Pública, diuturnamente omissa quanto à gravidade e a proliferação dos problemas e
incapaz de estimular o espírito missionário de uma grande legião de operadores
do Direito e da Justiça, obstinados em cumprir os seus deveres com dedicação e
honestidade.22
E, ainda:
Procurando vencer a desobediência secular do administrador público em matéria de provisão de estabelecimentos e serviços penitenciários, a Lei n. 7.210, de
11.7.1984, estabeleceu que, no prazo de 6 (seis) meses após a sua publicação,
deveriam as unidades federativas, em convênio com o Ministério da Justiça, “projetar a adaptação, construção e equipamento de estabelecimentos e serviços penais previstos nesta lei” (art. 203, § 1º). Também, no mesmo prazo, deveria “ser
providenciada a aquisição ou desapropriação de prédios para a instalação da casa
20 LEAL, César Barros. Prisão: crepúsculo de uma era. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey,
2001. p. 89.
21 Ibid., p. 91.
22 DOTTI, René Ariel. A crise no sistema penitenciário. In: LEAL, César Barros (Org.). Prevenção
criminal, segurança pública e administração da Justiça: uma visão do presente e do futuro à luz
dos direitos humanos. Fortaleza: C. B. Leal, 2006. p. 359.
207
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de albergados” (art. 203, § 2º). Escoaram-se os seis meses, passaram-se quase 15
(quinze) anos e aquelas determinações não foram atendidas. Não há notícia de
que qualquer unidade federativa tenha, diante do injustificado descumprimento,
sofrido a pena administrativa de “suspensão de qualquer ajuda financeira a elas
destinadas pela União, para atender as despesas de execução das penas e das medidas de segurança” (LEP, art. 203, § 4º).23
Ambos os autores retratam com fidedignidade o panorama carcerário no
Brasil, revelando o distanciamento abismal entre o direito posto e a realidade
dos fatos, cujas causas remontam aos tempos do Império, com a recalcitrante
desobediência das autoridades públicas no cumprimento das prescrições legais que estabelecem direitos aos reclusos.
Contudo, esse desprezo aos direitos e garantias direcionados aos presos
assume hodiernamente proporções de muito maior gravidade, na medida em
que integram o próprio texto constitucional na qualidade de cláusulas pétreas
(art. 60, § 4º, IV, CF/88), cuja aplicabilidade é imediata (art. 5º, § 1º, CF/88).
Alguns desses direitos qualificam-se como direitos de defesa, estando
protegidos, portanto, da malsinada violação pelo Estado, gerando a pretensão
de seu reparo, além de compelirem os Poderes Públicos a se absterem de praticar os atos incompatíveis com os direitos fundamentais. Outros configuram
direitos a prestação, os quais, entretanto, já receberam a necessária conformação pelo legislador ordinário, no caso, a Lei de Execução Penal, que, apesar
de anterior à Constituição Federal de 1988, apresenta corpo normativo em
perfeita consonância com os ditames constitucionais. Portanto, tais direitos
não prescindem de nenhum requisito jurídico para que sejam efetivamente
assegurados aos seus destinatários.
O descaso em se conferir a necessária atenção àqueles que se submetem
ao sistema penitenciário nacional não se justifica por nenhuma razão, sendo
fruto da negligência secular do Poder Público nesse tocante e do preconceito
intrínseco às questões envolvendo os presos, cujas consequências, todavia, retornam multiplicadas para o conjunto da sociedade, uma vez que os segregados, após cumprirem sua pena, regressarão ao convívio social.
5 A Essencialidade da existência de vagas nos estabelecimentos
prisionais em número compatível com a demanda carcerária
A imprescindibilidade de que o número de vagas no sistema carcerário
brasileiro corresponda à sua efetiva procura, atual e futura, justifica-se como
exigência de dois imperativos fundamentais: os direitos fundamentais do preso e o direito social à segurança pública.
23 Ibid., p. 360.
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5.1 Uma exigência dos direitos fundamentais do preso
Os direitos fundamentais estruturam um “consenso mínimo oponível a
qualquer grupo político, seja porque constituem elementos valorativos essenciais, seja porque descrevem exigências indispensáveis para o funcionamento
adequado de um procedimento de deliberação democrática”.24
Nesse sentido, a Constituição Federal conferiu-lhes proteção inamovível
ao qualificar os direitos e garantias individuais como cláusulas pétreas, conforme disposto no art. 60, § 4º, inciso IV, do texto constitucional.
Referente à especificidade do tema discutido, reiteram-se os seguintes
direitos fundamentais expressos no art. 5º da Carta da República, cujas disposições traduzem, com especial clareza e sem margem a interpretações que
lhes mitiguem o significado, aquilo que o Estado deve minimamente assegurar aos presos, a saber: inciso III (ninguém será submetido a tortura nem a
tratamento desumano ou degradante); inciso XLVIII (a pena será cumprida
em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e
o sexo do apenado); inciso XLIX (é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral).
Por sua vez, consoante a teoria mista adotada no Código Penal brasileiro,
a cominação e aplicação da pena têm finalidades retributiva e preventiva: a
primeira significando a reprovação da conduta ilícita na medida da gravidade
do delito praticado, e a segunda ao infundir na consciência geral a necessidade de respeito a determinados valores albergados pelo ordenamento jurídico,
além da “neutralização” temporária das ações ilícitas do infrator. A prevenção
se revela igualmente no caráter ressocializador da pena, levando o agente a
sopesar as consequências do crime, inibindo-o de cometer outros.25
O sistema penitenciário nacional deve, em tese, efetivar-se sob essas balizas
constitucionais e legais, tendo a Lei de Execução Penal regulamentado e minudenciado as respectivas disposições normativas com claro direcionamento à consecução desses fins, mediante o respeito aos direitos fundamentais dos presos.
Tais objetivos, contudo, sem embargo do posicionamento dos partidários da Criminologia Crítica, que apregoam que a pena privativa de liberdade
não ressocializa, ao contrário, impede a reincorporação do recluso ao meio
social26, somente poderão ser minimamente colimados em uma perspectiva
BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das
políticas públicas. [2005]. Disponível em: <www.mundojuridico.adv.br/cgi-bin/upload/texto853.
pdf>. Acesso em: Set. 2011. p. 9.
25 GRECO, Rogério. Código penal comentado. 5. ed. Niterói: Impetus, 2011. p. 101.
26 MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução penal: comentários à Lei nº 7.210, de 11-7-1984. 9. ed.
São Paulo: Atlas, 2000. p. 24.
24
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real se houver, em número correspondente à demanda verificada, os locais
reservados especialmente para a sua implementação.
Deveras, grande parte dos estudos desenvolvidos a respeito do sistema
carcerário no Brasil, ainda que enfocados sob diferentes prismas e que o aspecto em alusão não venha expresso na exposição textual, tem como ponto
comum as inúmeras e gravíssimas irregularidades observadas, a insuficiência
de vagas nos estabelecimentos prisionais frente às exigências da realidade experimentada.
Como é possível, por exemplo, proporcionar os direitos fundamentais
preconizados nos três incisos do art. 5º da Constituição destacados acima
sem que haja a estrutura física necessária para receber os criminosos? Como
imaginar o alcance das finalidades da pena, notadamente a ressocialização do
aprisionado, quando sequer lhe é oferecido o espaço físico mínimo que propicia a reflexão sobre a conduta que o levou ao cárcere?
Não se olvidam dos préstimos de determinadas teorias criminais, algumas das quais convertidas em lei e produzindo resultados satisfatórios, mirando incutir no condenado os fatores internos que o levam a repensar seu comportamento ilegal e a retornar ao convívio social mais adaptado, porém, tais
teorias normalmente se ajustam apenas aos delitos de menor gravidade, não
se mostrando aplicáveis à profusão de crimes gravíssimos que, diuturnamente,
solapam as bases da sociedade para uma convivência harmônica.
Não se discutem, também, aqui, as numerosas razões que fomentaram
(e continuam a fazê-lo) o atual cenário em que se multiplicam quantitativa e
qualitativamente os crimes perpetrados, cujos requintes de execução e demais
circunstâncias em que são praticados devem obrigatoriamente lançar efeitos
sobre as teorizações que se formulam acerca das condições de retorno dos referidos infratores ao convívio social.
Por fim, não se omite que muitas outras providências devem ser intentadas pelo Estado e por toda a sociedade no escopo de prevenir a criminalidade e
melhorar as condições para a coexistência pacífica de seus membros. São ações
de naturezas diversas que vão desde melhorar os custos de vida dos cidadãos
até oferecer ensino de efetiva qualidade a partir dos primórdios da fase escolar.
É fato, porém, que, num futuro próximo, não seria possível expectar
o resultado dessas medidas, ainda que elas fossem imediatamente efetuadas,
sendo, pois, extremamente necessário ter uma visão realista do problema, em
face da urgência de uma intervenção positiva dos poderes constituídos.
O que se argumenta muito claramente neste ensaio é que a compatibilidade entre o número de vagas nos estabelecimentos prisionais e a demanda
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por tais espaços situa-se dentro do mínimo existencial concernente aos direitos dos presos, sendo condição sine qua non para que possam ser minimamente respeitados seus direitos fundamentais. Tal assertiva configura uma verdade
que, diante dos muitos aspectos da realidade posta hodiernamente no Brasil,
não pode ser elidida por nenhuma elaboração teórica ou medida emergencial
para o desafogamento do sistema penitenciário, a exemplo dos necessários
mutirões carcerários.
Sobre a implementação de medidas visando à reforma do sistema penitenciário, Augusto Thompson manifesta posição em consonância com a ilação ora sustentada, sentenciando nos seguintes termos:
Pelo que se viu, o ponto básico de uma reforma do sistema penitenciário seria o
de provê-lo de capacidade para absorver a clientela de sua atribuição. Primeiro,
porque, de outro modo, a reforma seria de fachada e não de substância: dotar
alguns estabelecimentos de sofisticado aparato técnico-terapêutico-pedagógico,
com sacrifício de elevadas verbas, para cuidar de uma parcela mínima dos condenados, deixando a maioria atirada às condições degradantes, promíscuas e miseráveis dos depósitos de presos, seria puro tartufismo e nunca obra de quem
está disposto a solucionar o problema. Infelizmente, é preciso reconhecê-lo, uma
ação dessa natureza mostra um préstimo bastante atraente: o de servir de material
para promoções publicitárias, pois as inovações são sempre mais excitantes que os
progressos. Segundo, porque, não permitindo vazão livre às prisões de entrada, estaria obrigando o futuro inteiro da penitenciária a estagiar nas primeiras por mais
tempo do que o legalmente previsto – horas ou poucos dias. Com isso, frustraria,
por antecipação, a possibilidade teórica da recuperação intramuros: a promiscuidade, a ociosidade, a perversão, tratamento desumano, a total desassistência, o
contato direto com o vício, com os delinqüentes empedernidos, a sujeição a uma
disciplina policialesca teriam já corrompido o paciente em tal grau que a penitenciária, mesmo dispondo de ótimos recursos, só muito dificilmente, lograria
resultados positivos com tais internos. Terceiro, porque se afigura iníquo e ilógico
inverter grandes somas no sentido de prover de tratamento humano, de confortáveis acomodações, de requintes terapêuticos, exatamente os criminosos piores,
uma vez que, só podendo a cadeia comum transferir parte da carga, irá escolhê-la,
inexoravelmente, de acordo com os critérios antes assinalados. O que implicaria
numa justiça às avessas: para os piores, o melhor, para os melhores, o pior. E, mais
grave ainda: excluiria do tratamento penitenciário os infratores menos perigosos,
tidos como mais recuperáveis, permitindo que se perdessem, definitivamente, no
meio deletério das enxovias policiais, restrito que ficaria seu emprego aos criminosos endurecidos, cuja regeneração, mesmo na opinião dos otimistas, defensores
da terapia prisional, oferece poucas possibilidades de sucesso. Parece irrecusável,
pois, assentar que o primeiro passo para uma reforma penitenciária consistiria em
dar condições ao sistema de absorver toda a clientela, sem o que quaisquer outras
medidas mostrar-se-iam anódinas.27
27 THOMPSON, Augusto. A questão penitenciária: de acordo com a Constituição de
1988. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 105-106.
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A questão do acomodamento apropriado de indivíduos, com os propósitos de mantê-los sob controle e evitar as consequências negativas de seu
amontoamento, é ponto relevante da célebre obra de Michel Foucault “Vigiar
e Punir”, que apresenta o Panóptico de Bentham, estrutura física de arquitetura peculiar idealizada por Jeremy Bentham. Essa construção, em formato de
anel, dispondo as celas individuais no perímetro externo e uma torre de vigilância no centro, induz no detento um estado consciente e permanente de sua
visibilidade por parte de quem exerce a vigilância, facilitando sobremaneira a
tarefa de contenção de pessoas.
Comentando sobre o dispositivo, assevera o mencionado autor:
O Panóptico é uma máquina maravilhosa que, a partir dos desejos mais diversos,
fabrica efeitos homogêneos de poder. Uma sujeição real nasce mecanicamente de
uma relação fictícia. De modo que não é necessário recorrer à força para obrigar
o condenado ao bom comportamento, o louco à calma, o operário ao trabalho,
o escolar à aplicação, o doente à observância das receitas. Bentham se maravilha
de que as instituições panópticas pudessem ser tão leves: fim das grades, fim das
correntes, fim das fechaduras pesadas: basta que as separações sejam nítidas e as
aberturas bem distribuídas. O peso das velhas “casas de segurança”, com sua arquitetura de fortaleza, é substituído pela geometria simples e econômica de uma
“casa de certeza”. A eficácia do poder, sua força limitadora, passaram, de algum
modo, para o outro lado — para o lado de sua superfície de aplicação. Quem está
submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso, retoma por sua conta as limitações do poder; fá-las funcionar espontaneamente sobre si mesmo; inscreve em si
a relação de poder na qual ele desempenha simultaneamente os dois papéis; torna-se o princípio de sua própria sujeição. Em conseqüência disso mesmo, o poder
externo, por seu lado, pode-se aliviar de seus fardos físicos; tende ao incorpóreo; e
quanto mais se aproxima desse limite, mais esses efeitos são constantes, profundos,
adquiridos em caráter definitivo e continuamente recomeçados: vitória perpétua
que evita qualquer defrontamento físico e está sempre decidida por antecipação.28
Como se observa, há muito ressoa clara a necessidade de se devotar a
devida atenção aos espaços físicos destinados ao recolhimento de presos, ajustando suas conformações no intuito de tornar viável a obtenção dos fins a que
se propõem.
Não obstante a premência do tema, e, bem assim, ainda que várias unidades federadas tenham encetado já há alguns anos a construção de estabelecimentos com essa finalidade, os recursos financeiros destinados para tanto não
conseguem acompanhar a crescente demanda por tais espaços, e, desse modo,
as metas projetadas deixam de ser alcançadas.
Segundo o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária
(CNPCP), houve um grande investimento no Brasil nos últimos vinte anos
28 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 20.
ed. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 225.
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para a criação de vagas no sistema prisional, mas, contraditoriamente, a população carcerária quadruplicou nesse período, havendo quase 500 mil pessoas
cumprindo pena nos presídios nacionais.29
Atribui-se o incremento a falhas na política do sistema carcerário, em razão de, na utilização dos recursos do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen),
priorizar-se o efeito da criminalidade (necessidade de geração de vagas) e não
a causa, criando-se, por exemplo, estruturas que permitam a reinserção do detento na sociedade, investindo-se em sua educação e em sua capacitação profissional. Considera-se, também, como responsável pela taxa de crescimento
da população prisional, o aumento do número de crimes previstos em lei, que
passaram de 800, em 1990, para 1,7 mil em 2010.
Percebe-se, assim, que as medidas contrapostas à problemática do sistema prisional no Brasil reclamam um enfoque multidisciplinar sobre suas
várias nuanças, visando à sua integração e à eficiência de seus resultados.
No tocante à reincidência dos presos que são soltos no Brasil, dados
também do CNPCP apontam para índices que variam entre 70% e 85%,
enquanto na França não passam de 20%. Argui-se que o modelo das prisões
brasileiras deveria ser o de uma comunidade e que as penas alternativas, apesar
de não retirarem da prisão, deveriam ser mais aplicadas, pois evitam que as
pessoas sejam encaminhadas para a cadeia, no caso de crimes cuja pena cominada é de até quatro anos.30
O caráter econômico imanente ao sistema prisional (o custo mensal de
um preso, por exemplo, varia entre R$ 800,00 e R$ 1,6 mil por mês; e a criação de uma vaga, com a construção de presídios, varia entre R$ 25 mil e R$
35 mil, sendo que, no sistema federal, esse valor sobe para R$ 120 mil),31 tem
obstaculizado o enfrentamento a contento de seus desafios pelos setores competentes do Estado, originando, em contrapartida, ideias e medidas por parte
dos Poderes Públicos que, de forma inexorável e previsível, não têm produzido
os resultados almejados por seus teóricos, sem reduzir, outrossim, de maneira
sensível, o comezinho vilipêndio dos direitos e garantias individuais dos presos.
POPULAÇÃO carcerária do Brasil quadruplicou em 20 anos. Terra, 13 dez. 2010. Disponível
em: <http:// noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI4775323-EI5030,00-Populacao+carceraria
+do+Brasil+quadruplicou+ em+anos.html>. Acesso em: Nov. 2011.
30 BRASIL é campeão mundial em criação de vagas no sistema penitenciário, com aumento de 396%
em 20 anos. Globo.com, 8 jul. 2011. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/ politica/brasil-campeao-mundial-em-criacao-de-vagas-no-sistema-penitenciario-com-aumento-de-396-em-20-anos-2718626>. Acesso em: Nov. 2011.
31 POPULAÇÃO carcerária do Brasil quadruplicou em 20 anos. Terra, 13 dez. 2010. Disponível
em: <http:// noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI4775323-EI5030,00-Populacao+carceraria
+do+Brasil+quadruplicou+ em+anos.html>. Acesso em: Nov. 2011.
29
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Ocorre que, malgrado sejam limitados os recursos públicos e, portanto,
necessário que se façam escolhas para a sua aplicação, as políticas públicas que
poderiam destinar numerário para a construção das referidas unidades prisionais, e sua estruturação operacional nos moldes previstos na legislação aplicável,
sofrem a influência inafastável do texto constitucional, porquanto suas normas
jurídicas são dotadas de superioridade hierárquica e centralidade no sistema jurídico, traduzindo seus fins essenciais de promoção dos direitos fundamentais.32
Destarte, apesar da incipiente dogmática relativa ao controle das políticas públicas, as vicissitudes provocadas pelo confronto da realidade com as
novas interpretações acerca da eficácia e conteúdo dos direitos fundamentais
indicam a necessidade de se aprofundar essa temática. Ana Paula de Barcellos
desenvolveu argumentação nesse sentido, propondo determinadas variáveis
por meio das quais seria possível vislumbrar a necessidade de ajustes nas escolhas inicialmente definidas para as políticas públicas, quais sejam: identificação dos parâmetros de controle; garantia de acesso à informação; e elaboração
de instrumentos de controle.33
Em que pese não ser o escopo deste estudo aprofundar nos meandros
da proposição suprarreferida, ressalta-se que o conteúdo desta harmoniza-se
com a inferência ora sufragada no sentido de que as normas constitucionais
que contemplam direitos fundamentais dos presos impõem a efetivação das
medidas concretas indispensáveis à satisfação da demanda por vagas no sistema penitenciário, sem as quais, além disso, restam esvaziadas as expectativas
quanto ao alcance das finalidades da pena privativa de liberdade no Brasil.
5.2 Uma exigência do direito social à segurança pública
Os direitos sociais encontram-se inicialmente discriminados na Constituição Federal em seu Título II, Capítulo II, art. 6º, que assim dispõe: “São
direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o
lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância,
a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
Como se denota, diversas espécies de direitos são enquadradas na definição dos direitos sociais, interessando ao presente trabalho, ao tempo em que se
BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das
políticas públicas. [2005]. Disponível em: <www.mundojuridico.adv.br/cgi-bin/upload/texto853.
pdf>. Acesso em: Set. 2011. p. 11.
33 BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das
políticas públicas. [2005]. Disponível em: <www.mundojuridico.adv.br/cgi-bin/upload/texto853.
pdf>. Acesso em: Set. 2011. p. 29.
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reconhece que suas garantias também estão dirigidas à comunidade carcerária
enquanto parcela da sociedade que, apesar de despojada temporariamente de
sua plena liberdade de ir e vir, faz jus a recebê-las naquilo que lhe forem aplicáveis, adentrar na acepção do vocábulo segurança no que concerne à segurança pública, ou seja, à manutenção da ordem pública interna.34
Antes, porém, de internar-se na análise das imposições que a locução
segurança pública dirige ao ente estatal visando ao cumprimento de determinadas medidas, impende apresentar algumas noções que esclarecem o alcance
dos direitos sociais na Constituição da República.
Buscando conceituar os direitos sociais, Walber de Moura Agra assinala:
Direitos sociais são a espécie de direitos humanos que apresenta, como requisito
para sua concretização, a exigência da intermediação dos entes estatais, quer na
realização de uma prestação fática quer na realização de uma prestação jurídica.
Os direitos de liberdade são forcejados no individualismo, posteriormente sendo reestruturados para o consumidor. Já os direitos sociais consideram o homem
além de sua condição individualista, abrangendo-o como cidadão que necessita de
prestações estatais para garantir condições mínimas de subsistência. A titularidade
dos direitos fundamentais sociais é deslocada da esfera exclusiva do indivíduo para
incidir na relação cidadão-sociedade.35
O mesmo autor, discorrendo acerca da eficácia dos direitos sociais, afirma que:
As obrigações decorrentes da cominação dos direitos sociais são exigíveis e não dependem da discricionariedade da administração ou do legislador. Elas têm como
fato gerador a mesma gênese das outras normas constitucionais, o Poder Constituinte, possuem taxionomia jurídica e sua inaplicação acarreta iguais sanções
jurídicas previstas aos demais dispositivos.36
Ainda sobre a eficácia das normas constitucionais relativamente aos direitos sociais, Celso Antônio Bandeira de Mello expõe certas conclusões genéricas a que chegou, fazendo-o nos seguintes termos:
[...] 2. As disposições constitucionais relativas à Justiça Social não são meras exortações ou conselhos, de simples valor moral. Todas elas são – inclusive as programáticas – comandos jurídicos e, por isso, obrigatórias, gerando pra o Estado deveres de fazer ou não-fazer. 3. Há violação das normas constitucionais pertinentes
à Justiça Social – e, portanto, inconstitucionalidade – quer quando o Estado age
em descompasso com tais preceitos, quer quando, devendo agir para cumprir34 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed.. São Paulo: Malheiros
Editores, 2005. p. 777.
35 AGRA, Walber de Moura. Direitos sociais. In: MARTINS, Ivens Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira; NASCIMENTO; Carlos Valder do. (Coords.). Tratado de direito constitucional. v.
1. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 515.
36 Ibid., p. 536.
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-lhes as finalidades, omite-se em fazê-lo. [...] 7. Todas as normas constitucionais
atinentes à Justiça Social – tenham a estrutura tipológica que tiverem – surtem,
de imediato, o efeito de compelir os órgãos estatais, quando da análise de atos ou
relações jurídicas, a interpretá-los na mesma linha e direção estimativa adotadas
pelos preceitos relativos à Justiça Social. Assim, tanto o Executivo, ao aplicar a lei,
quanto o Judiciário, ao decidir situações contenciosas, estão cingidos a proceder
em sintonia com os princípios e normas concernentes à Justiça Social.37
Seguindo essa mesma linha quanto ao significado dos direitos sociais,
Paulo Bonavides, discutindo a nova interpretação que se deve dar aos direitos fundamentais em face da evolução das teorias constitucionalistas, entende
que os direitos sociais, visualizados como direitos fundamentais de segunda
geração, também se encontram na esfera de proteção do § 4º, do art. 60, da
Constituição Federal38, não havendo distinção de grau nem de valor entre
eles e os direitos individuais, porquanto ambos são modalidades de um bem
maior: a dignidade da pessoa humana.39
Compreende o aludido constitucionalista que, para fazer eficazes os direitos sociais, o Estado deve ministrar duas formas de garantias: jurídica, de
natureza formal, e econômica, de natureza material. E, para que as normas
que contemplam direitos sociais não deixem de receber proteção efetiva, sob a
pecha de ostentarem mais programaticidade e menos juridicidade, em face de
alegações de indisponibilidades ou incapacidade do Estado de fornecer prestações de ordem material, torna-se necessário o emprego do princípio da proporcionalidade pelos órgãos do poder estatal, por meio do uso da ponderação de
interesses e do exame de elementos de necessidade e adequação, a fim de que
se encontre uma solução compatível com os ditames da Constituição Federal.40
Feitas essas ligeiras e preambulares elucidações, destaca-se a previsão
constitucional alusiva à segurança pública, estatuída em seu art. 144, a saber:
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas
e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: [...]
37 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Eficácia das normas constitucionais e direitos sociais. São
Paulo: Malheiros Editores, 2011. p. 55-56.
38 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 24. ed. São Paulo: Malheiros Editores,
2009. p. 655.
39 Ibid., p. 658.
40 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 24. ed. São Paulo: Malheiros Editores,
2009. p. 660.
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Segundo José Afonso da Silva, ordem pública é “uma situação de pacífica
convivência social, isenta de ameaça de violência ou de sublevação que tenha
produzido ou que supostamente possa produzir, a curto prazo, a prática de
crimes”. Já segurança pública consiste
[...] numa situação de preservação ou restabelecimento dessa convivência social
que permite que todos gozem de seus direitos e exerçam suas atividades sem perturbação de outrem, salvo nos limites de gozo e reivindicação de seus próprios
direitos e defesa de seus legítimos interesses.41
Os brasileiros são, pois, detentores do direito social concernente à segurança pública, vale dizer, são destinatários das ações dos Poderes Públicos
voltadas para a segurança e defesa da sociedade, visando a manter incólumes
suas integridades física e psicológica. Não se olvida de que, além de direito, é
também responsabilidade de todos trabalhar em prol da paz social e preservação da ordem pública, no entanto, é dever inafastável do Estado promover
políticas públicas de segurança e proteção dos indivíduos com a eficácia necessária para a consecução desses fins.
Nesse sentido, cumpre ao ente estatal identificar e combater os elementos fomentadores da violência no intuito de otimizar a atuação dos agentes
responsáveis diretamente pela manutenção da ordem pública, identificados
nos incisos do precitado art. 144 da Constituição Federal (I - polícia federal;
II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias
civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares).
Evidentemente, a matéria é muito mais complexa e abrangente do que
as questões setoriais ventiladas no presente trabalho, o qual não tem qualquer
pretensão de circunscrever os amplos limites e desdobramentos do tema, existindo inúmeros fatores que concorrem para a formação de conflitos sociais
que resultam em atos de violência entre semelhantes. No entanto, propõe-se
identificar um dos pontos basilares sem o qual a meta colimada de promoção
da segurança pública restará fadada ao insucesso: a existência de estabelecimentos aptos a receber aqueles que transgredirem as normas penais e que, em
vista do preenchimento de determinados requisitos, necessitem permanecer
custodiados por certo tempo.
A proposição que ora se sustenta, conforme se aventou acima, decorre de
imposição dos direitos sociais dos cidadãos em geral, aí inclusos os que têm
seus direitos civis mitigados, não apenas porque qualificados como direitos
fundamentais de segunda geração, mas também porque se imbuem de juri41 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed.. São Paulo: Malheiros
Editores, 2005. p. 777-778.
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dicidade bastante para impelir os detentores dos Poderes Públicos a envidar
os esforços necessários ao alcance das prestações materiais devidas, ainda que
mediante a utilização do princípio da proporcionalidade.
Com efeito, a segurança pública está intimamente ligada ao sistema penitenciário enquanto instrumento de defesa social, não se imaginando atuação eficaz dos órgãos de polícia, cujas ações precipuamente resultam na necessidade de encarceramento provisório de infratores, sem que existam recintos
em número bastante para dar vazão à demanda de seus trabalhos. O mínimo
que se pode oferecer numa perspectiva frutífera das atividades desses agentes
públicos é evitar que seus esforços de enfrentamento da crescente onda de criminalidade sejam em vão, sendo propiciadas, em contrapartida, as instalações
físicas correspondentes ao empenho devotado.
Ao Estado cabe arregimentar e proporcionar as condições materiais suficientes para que as diversas categorias de organismos policiais possam realizar
as finalidades a que se destinam, nos moldes esculpidos na Constituição da
República, para a preservação da ordem pública e incolumidade das pessoas
e do patrimônio. A obtenção desse escopo, todavia, reclama como medida
basilar a ser empreendida a construção de estabelecimentos prisionais em número proporcional ao de criminosos, sendo tal providência não uma mera deliberação política do Poder Público, mas um imperativo das normas jurídicas
constitucionais alusivas aos direitos sociais de promoção da segurança pública.
Conclusão
Atualmente, o significado conferido ao conteúdo e à eficácia das disposições constitucionais que contemplam direitos fundamentais tem espargido
cada vez mais seu alcance, de modo a compelir os Poderes Públicos a adotar,
tanto quanto possível, as medidas necessárias à satisfação prática daqueles direitos.
Considerando a realidade do sistema penitenciário no Brasil, em que
sobejam de toda parte graves exemplos de desrespeito aos direitos fundamentais do preso, cumpre ao ente estatal enfrentar com firmeza e objetividade os
enormes desafios para aproximar os fatos do direito posto, sem tergiversar por
meio de ações com viés substitutivo, que pouco ou nada contribuem para a
modificação daquele quadro.
Um dos pontos basilares dessa problemática, do qual derivam inúmeros e
sérios prejuízos aos encarcerados e à sociedade como um todo, é a falta de espaços nos estabelecimentos prisionais para atender à procura por vagas, aliada
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à insuficiente estruturação operacional desses ambientes para que sejam atingidos os fins a que se destinam, situações que, em vista dos altos investimentos
reclamados para solucioná-las, têm-se prolongado no tempo e levado à adoção
de providências variadas que sequer minoram os profundos gravames aos direitos e garantias assegurados aos presos na Constituição Federal.
A análise dessa questão, em cotejo com os preceitos constitucionais incidentes na espécie, assinala o caráter de essencialidade de que referidas unidades prisionais sejam, no mínimo, providas de vagas bastantes para receber
o número crescente de infratores cujos delitos praticados ensejam a ocupação
de tais espaços, decorrendo tal inferência da juridicidade e da manifesta imperatividade das normas que outorgam os direitos fundamentais dos presos
e, bem assim, daquelas que conferem aos indivíduos em geral o direito social
atinente à segurança pública, também denominado direito fundamental de
segunda geração.
Sem prejuízo de que sejam promovidas, concomitantemente, sob outras
frentes, ações diversas visando à atenuação do hodierno panorama carcerário
no Brasil, e em que pesem os dispendiosos recursos públicos requeridos para
seu equacionamento, não se vislumbra que possa prescindir-se da contínua
(até que a situação assuma patamares mais aceitáveis) construção e adequação
de estabelecimentos voltados ao recebimento de presos provisórios e definitivos.
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A PRISÃO PREVENTIVA FRENTE AOS PRINCÍPIOS
DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO1.
Mariana Lima Ferreira Gomes.2
Resumo: O presente artigo se propõe a expor tópicos acerca da utilização do instituto prisional cautelar preventivo em congruência com os princípios regentes do Estado Democrático
de Direito. Busca-se analisar sua constitucionalidade frente à necessidade de proteção ao meio
social, assim como a sua possível aplicação processual ilegítima. Procura esclarecer que em
sua evolução histórica houve a uma provável utilização indiscriminada desta categoria jurídica que possivelmente a transformou em medida ilegítima de aplicação de pena antecipada
em nosso país, precipuamente quando empregada como uma forma imprópria de defesa
social. Ao fim, ressalta como as recentes modificações legais buscaram aprimorar tal instituto
processual visando sua compatibilização com os modernos Princípios Constitucionais Penais
previstos em nossa Constituição Federal.
Palavras-chaves: Estado Democrático de Direito; Direitos e princípios fundamentais penais;
A prisão cautelar; A prisão preventiva; Sua constitucionalidade e legitimidade; O emprego da
prisão preventiva como instrumento ilegítimo de aplicação antecipada da pena.
Introdução.
O Estado Democrático de Direito consagra dentre seus principais fundamentos a dignidade da pessoa humana, englobando esta dignidade o indubitável direito à liberdade.
Com previsão específica em ordenamento constitucional pátrio, dentre
o rol dos Direitos e Garantias fundamentais, conforme explicitado em artigo
1º, III, da Excelsa Carta de 1988, os fundamentos de dignidade e liberdade
são verdadeiras cláusulas pétreas, valores soberanos a serem estritamente perseguidos, porquanto fazem parte de um núcleo intangível da Constituição
Federal, por serem elementos basilares de um legítimo Estado Democrático
de Direito.
A observância dos ditames postos neste ant. 1º, III deve ser alicerce de
todo o sistema legal, carecendo ser observados na aplicabilidade de quaisquer
medidas jurisdicionais.
1
2
Trabalho (...) sob a orientação do(a) Prof(a) André Luis Tabosa de Oliveira.
Graduada em Direito e Aluna do curso de pós-graduação em Direito Constitucional da Escola
Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC). [email protected]
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Sagra-se também, conforme dispõe o artigo 5º, LVII da Carta Magna,
o princípio de presunção de inocência, ou da não culpabilidade, como outro
importante baluarte, por ser este garantidor da liberdade, da busca pela verdade e justiça e instrumento de específica defesa contra o arbítrio punitivo.
Por ser a liberdade uma regra constitucional, toda forma de privação
desta deve constituir-se, por lógica, em exceção, a ser aplicada tão somente
em casos extremos, em que a prisão seja estrita e indiscutivelmente inevitável.
Destarte, a privação desta deve ser sempre uma exceção, constituindo
sua restrição em medida a ser utilizada tão somente para resguardar interesses
e sentimentos sociais sobremaneira mais essenciais, tais como a manutenção
fundamentada de ordem social.
O encarceramento tem de ser medida que, a priori, em razão do princípio de presunção de inocência, deve ser adotada somente com irrefragável
certeza de responsabilidade penal do imputado.
A legislação processual penal, como regra infraconstitucional, sujeitar-se-á aos ditames da Constituição Federal, em razão da hierarquia que rege
o ordenamento jurídico. Desta forma, sempre que houver divergência entre
ambos, deve ser prestigiado o instrumento legal superior.
No que concerne às ditas prisões acautelatórias, observa-se um crescente
fenômeno na utilização das mesmas em flagrante inversão valorativa, posto
que a observância dos princípios colacionados cada vez mais deixa de ser medida principal, com encarceramentos arbitrários, abusivos e sem qualquer
fundamentação legal.
Hodiernamente, a prisão preventiva tornar-se-ia cada vez mais de medida excepcional em medida automática, ferindo frontalmente, por conseguinte, os princípios constitucionais em discussão.
As recentes alterações inseridas pela Lei 12.403, de 04 de Maio de 2011,
no âmbito das prisões cautelares buscaram acentuar o caráter excepcional das
mesmas, que somente serão determinadas em não havendo outra medida
acautelatória que as substituam (art. 282, § 6º, Código de Processo Penal),
ou em situações tais como em que já se vislumbre condenação anterior, ou
em casos de violência doméstica ou ainda quando pender dúvidas acerca de
identidade do acusado, por exemplo.
Assim sendo, evitar-se-ia a inserção do acusado imediatamente no cárcere, com aplicação de medida cautelar mais adequada e menos gravosa, em
homenagem aos princípios da dignidade da pessoa humana, não culpabilidade e contraditório.
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1) O Estado Democrático de Direito e seus princípios penais regentes.
A evolução por que passaram os sistemas de Estado, culminando com o
estabelecimento do moderno Estado Democrático de Direito, faz com que a
liberdade seja erigida a bem sumamente superior, e onde os ditames principiológicos deixam de ter papel subsidiário e passam a ter a função primordial
de orientação de todo o sistema.
Em se tratando de âmbito específico do direito penal, busca-se uma forma de equilíbrio entre prevenção da deliquência ao mesmo tempo em que a
uma intervenção estatal indiscriminada não colida com os princípios penais
basais de uma democracia.
Destarte, no que tange ao jus puniendi estatal, os princípios são utilizados
especialmente para que não se cometam as arbitrariedades outrora observadas.
Ao Estado pertence o dever de punir os que transgridem a lei posta, mas
a repressão não poderá jamais ser injusta e sua aplicação deve pautar-se nos
ditames principiológicos postos. Portanto, os princípios freiam decisões pautadas no mero arbítrio de agentes estatais.
Conforme anteriormente explicitado, a dignidade da pessoa humana e
um de seus corolários, a liberdade, são vigas mestras do Estado Constitucional. Mas outros princípios são igualmente dotados de extrema importância,
de maneira especial no âmbito do direito penal e processual penal, tais como
a presunção de inocência, a ampla defesa e o contraditório.
Insta citar também os princípios da intervenção mínima, ressaltando o
caráter por vezes subsidiário do direito penal (no sentido de que a aplicação
deste deve ser a última opção, tão somente quando outros meios apaziguadores de caráter social não tenham surtido o efeito desejado) e o da estrita
legalidade.
Desta forma, tais regras e princípios devem andar sempre de mãos dadas,
sem que uns desrespeitem os outros e sem que ambos desrespeitem o indivíduo.
2) Princípios constitucionais e prisão preventiva.
O encarceramento, conforme já citado, deve constituir-se em medida
extraordinária ao indivíduo, posto que, em tributo aos princípios regentes do
Estado Democrático de Direito, a liberdade deve ser sempre o bem mais caro
e soberano.
O direito de liberdade constitucionalmente garantido torna imperioso
que se aguarde o desenrolar normal do processo judicial a fim de que, havendo condenação do acusado, possa ser cerceada sua liberdade por tempo deter223
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minado em sentença irrecorrível. Apenas quando se denota que a imputação
de prisão é indiscutivelmente necessária ao trâmite processual é que se deve
aplicá-la.
Essa observância pauta-se nos motivos que constam no teor do art. 312
do Código de Processo Penal, quais sejam, garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a
aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício
suficiente de autoria.
Aferidos tais requisitos, de forma indispensável ao regular andamento
processual e não sendo cabível qualquer outra medida acautelatória legalmente posta - por inadequadas ou insuficientes, segundo art. 310, II, do Código
de Processo Penal - o juiz poderá decretar a prisão preventiva, para que não
sejam reputados como antecipação de punição delitiva ou condenação prematura.
A prisão preventiva, por conseguinte, deverá seguir estritamente o apregoado pelos princípios constitucionais, para que atinja seus fins sem ferir os
direitos e garantias do indivíduo.
Com o advento da Lei nº 12.403/2011 acentua-se ainda mais o caráter
de excepcionalidade da medida prisional. Frente aos novos procedimentos
cautelares instituídos, em caráter geral, o cárcere somente é justificável em se
verificando a falibilidade ou inaplicabilidade de todos os demais institutos.
A inovação legal exposta busca coadunar em maior amplitude com os
princípios constitucionais balizadores da dignidade da pessoa humana, porquanto reafirma ser a prisão sempre a derradeira medida acautelatória constritiva.
Tanto que, também dentre as modificações inseridas, temos a necessidade de fundamentação, plenamente justificada pelo juiz, para converter a
prisão em flagrante em prisão preventiva. Anteriormente, tal postura era desnecessária e o magistrado apenas declinava as razões para existência de pressupostos ensejadores da prisão no ato de análise.
Esta inclusive é a opinião de muitos estudiosos, entre eles, Paulo Sérgio
Markowicz de Lima3 que em artigo recente ressaltou que somente se deveria
decretar a prisão preventiva em caráter autônomo: “a) diante da presença de
seus pressupostos e requisitos; b) se o autor do fato não o praticou sob a égide de
uma excludente da ilicitude; c) acaso as medidas cautelares, mesmo aplicadas
3
LIMA, Paulo Sérgio Markowicz. Disponível em <http:∕∕pt.scribd.com∕doc∕60498829∕Lei-12.403
-Processo-Penal-e-Nova-Lei-de-Medidas-Cautelares-Procurador-do-Paraná-Paulo-Sergio-Markowicz-de-Lima>. Acesso 21.dez.2011
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cumulativamente, revelarem-se ineficazes ou inadequadas”.
As novas regras privilegiam a aplicação de medidas cautelares diversas do
encarceramento cautelar, em especial a imputação de fiança, cujas hipóteses
de cabimento foram extensamente ampliadas.
Por conseguinte, de logo, em homenagem ao princípio da proporcionalidade, o
legislador decretou, também, somente ser passível desta modalidade prisional os
delitos dolosos cuja pena ultrapasse abstratamente 4 (quatro) anos, permitindo a
substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direito nos casos em
que não se transponham tal patamar. Para estes casos, utilizar-se-á quaisquer das
medidas cautelares trazidas no bojo da nova lei.
Não obstante, muito se questiona se os princípios de liberdade e presunção de inocência, diante de imperiosa onda de criminalidade nos dias atuais,
não seriam também utilizados de forma discrepante, para conceder direito de
permanecer em liberdade aqueles que, por atos causados, sejam uma ameaça
à sociedade como um todo.
Há os que defendam ferrenhamente ser a prisão a única forma de obtenção de controle diante da violência hodierna. Imprescindível salientar, entretanto, a necessidade de se conciliar a defesa da ordem social não apenas com os
princípios que regem o Estado brasileiro, através da Constituição Federal, mas
com todos aqueles que dizem respeito aos direitos universais do ser humano.
Assim, mesmo em uma breve síntese histórica sobre o referido princípio
denota-se sua estreita vinculação com a detenção cautelar do imputado no
transcurso do processo penal.
Seja naquela fase mais remota do império romano onde se chegou a proibir por completo a prisão preventiva até meados da escura idade média, robustecida por seu visível traço inquisitorial, quando se revestiu de um caráter
de pressuposto ordinário de instrução, até ser de novo adotada de forma mais
branda nos primeiros brilhos do período iluminista, com o reconhecimento
do princípio nulla poena, nulla culpa sine judicio.
Para a maioria dos pensadores modernos sua consagração efetiva dar-se-ia somente na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1791 e
sua repercussão universal adviria com a Declaração dos Direitos Humanos da
Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948.
Em que pese o Brasil ter sido signatário na Assembléia Geral de 1948,
que deu origem a Declaração de Direito antes mencionada, tal princípio somente veio a ser positivado em nosso ordenamento jurídico, após um hiato de
40 anos, com o advento da Constituição Federal de 1988.
Por conseguinte este princípio constitucional hoje é entendido, conforme
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Florian, mencionado em citação de Mirabete4, seguindo a concepção de que:
Existe apenas uma tendência à presunção de inocência, ou mais precisamente,
um estado de inocência, um estado jurídico em que o acusado é inocente até
que seja declarado culpado por uma sentença transitada em julgado. Por isso
a nossa Constituição Federal não ‘presume’ a inocência, mas declara que ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal
condenatória’ (art.5º, LVII), ou seja, que o acusado é inocente durante o desenvolvimento do processo e seu estado só se modifica por uma sentença final que
o declare culpado.
Em geral, existem inúmeras teorias que preconizam como as normas incriminadoras atuam na sociedade de modo a prevenir, evitar, repelir ou controlar condutas pautadas como penalmente ilegais e se baseiam como preconiza Cristina Zackseski5 na “promessa da função instrumental da defesa social e
do controle efetivo da criminalidade”.
De acordo com a primeira delas, dita teoria da prevenção geral negativa,
originária da chamada escola clássica, amparava seus primeiros passos no pensamento iluminista e que teve entre seus próceres, Cesare Beccaria, Francesco
Carrara e Jeremy Bentham, onde os indivíduos considerados criminosos em
potencial seriam intimidados pela possibilidade de serem punidos.
Assim, as penas em abstrato serviriam como um freio à criminalidade
inibindo a prática dos delitos. É o substrato do pensamento liberal clássico.
Em contrapartida, já na teoria da prevenção especial positiva defende-se
a idéia de ressocialização daqueles indivíduos que já cometeram ilícitos penais,
considerando o crime como algo natural e social, mas que é praticado por certos indivíduos já detentores de uma personalidade perigosa, os estigmatizados
sociais. Tais premissas eram defendidas pela Escola Positiva Italiana de Cesare
Lombroso, Enrico Ferri e Rafaelle Garofalo.
Outra teoria, dita de prevenção especial negativa que também teve sua
origem na supracitada escola positiva defendia a neutralização ou mesmo
eliminação dos indivíduos considerados delinquentes, em visível afronta aos
primados mais fundamentais dos preceitos que versam sobre a dignidade humana, e que por tal postura quedou-se no esquecimento.
Por fim, a teoria da prevenção geral positiva, inicialmente defendida pelo
sociólogo francês Èmile Durkheim, que configurava o crime como um fenômeno natural que faz parte do andamento comum da sociedade e somente os
excessos podem ser considerados como formas patológicas (os estados anômi4
5
MIRABETE, Julio Fabrini. Processo Penal. 2. ed. São Paulo: Atlas,1991, p.252.
ZACKSESKI, Cristina. Da prevenção penal à nova prevenção. Revista Brasileira de Ciências Criminais nº 29. São Paulo, SP: Jan.- Mar. 2000, p.41.
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cos), merecendo, portanto, intervenção estatal.
Correlatamente, os mesmos pensamentos se davam em relação à previsão
de prisão ou custódia preventiva. No entanto, os seus principais críticos foram
os precursores das idéias penais da fase iluminista, que não escondiam seu
repúdio ao decreto preventivo e sua ofensa ao referido princípio da inocência:
Beccaria e em especial, Carrara, que a denomina de tortura mascarada dirigida exclusivamente a obtenção da confissão.
Desse modo, a maioria destes pensadores consideram-na uma atrocidade, uma injustiça, a barbárie ou mesmo uma forma de imoralidade. Nenhum
deles, porém, chegou a exigir efetivamente a supressão do execrado instituto
processual, tido também por todos como um mal necessário ou mesmo uma
injustiça necessária.
Por tais entendimentos discordantes, em seus escaninhos e por sua tibieza, já se depreende do que segundo entende Luigi Ferrajoli, que tais posições
arraigaram-se de forma definitiva em todos os ordenamentos jurídicos europeus, estando inclusive presentes em seus principais diplomas legais, em suas
cartas constitucionais e seus códigos e estenderam-se até nossos dias em todo
mundo ocidental.
Entende aquele pensador peninsular em sua percuciente análise histórica
deste instituto jurídico, que já naquela época começaria a se esboçar uma espécie de legitimação ao decreto preventivo, sendo que a perversão mais grave
do instituto foi fundamentada pelo próprio Carrara, pois ainda que em nome
de necessidades diversas, por vezes invocadas cada qual como exclusiva – somente o perigo de fuga, só o risco de deterioração de provas, ambos esses perigos juntos, ou simplesmente a gravidade do delito em questão e a necessidade
de prevenção ou ainda conjuntamente os perigos de natureza processual e os
de natureza penal – a prisão preventiva acabou sendo justificada por todo o
pensamento liberal clássico.
Como bem ressalta, transformou-se de instrumento exclusivamente processual destinando à estrita necessidade instrutória para meio de prevenção
e de defesa social, motivada pelas necessidades de impedir que o imputado
cometa outros crimes.
Em seu raciocínio, ele argumenta que se fez pesar, desde então, sobre o
imputado, uma presunção de periculosidade baseada unicamente na suspeita
da conduta delitiva, equivalendo de fato a uma presunção de culpabilidade,
que, a par disso, passou atribuir à prisão preventiva as mesmas finalidades
e o mesmo conteúdo aflitivo da pena, servindo para privá-la daquele único
argumento representado pelo sofisma segundo o qual ela seria uma medida
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processual cautelar ou até mesmo não penal, ao invés de uma ilegítima pena
sem efetivo juízo de culpabilidade.
Mas sua mais nefasta forma viria com o advento do fascismo mussolinista em que a presunção de inocência entrou em franco declínio, não mais
havendo controle ao seu abuso e sua aberta legitimação como medida de segurança processual, necessária para a defesa social e indispensável sempre que
o delito tenha desencadeado o temeroso e discutível clamor público.
Por conseguinte, em firme contraposição, dentre renomados doutrinadores penais, em especial destacou-se o citado professor italiano Luigi Ferrajoli, rechaçando qualquer forma de prisão preventiva, por apregoar que esta fere
frontalmente as garantias do cidadão, chegando mesmo a sugerir a abolição da
prisão processual, em sendo o decreto de prisão antes do trânsito em julgado,
ilegítimo e inadmissível.
Portanto, para que se tenha um escorreito processo, com justa punição
posterior, a prisão preventiva, dotada de excepcionalidade, seria um freio fundamental. Contudo, insuspeitadamente, tal instituto processual assumiu a
fisionomia de uma verdadeira medida de prevenção contra os membros perigosos e suspeitos ou pior, de uma execução provisória ou antecipada da pena,
terminando por alterar a ordem completa do procedimento processual e, mais
em geral, de todo sistema penal.
Houve deste modo, a transformação da custódia preventiva de medida
processual em medida de polícia. Ficara tão patente tal entendimento que em
outro trecho de sua obra, Ferrajoli 6, referindo-se a tal fenômeno, ministra da
seguinte forma:
O traço inconfundivelmente policialesco do instituto [...] resta no caráter arbitrário, em todos os casos não cognitivos, mas potestativos, dos seus pressupostos. Pela
sua natureza, de fato, não são passíveis de provas ou desmentidos nem a gravidade
dos indícios de culpabilidade, tampouco as razões opinativas que possam fazer
supor o perigo de fuga, ou de turvação da prova ou de futuros delitos por parte
do imputado. Este último motivo de captura, em particular, é irremediavelmente
policialesco e revela o caráter da medida de prevenção e de defesa social verdadeiramente assumido pela custódia cautelar.
Portanto, em que pese à dura orientação fascista dada à custódia preventiva, esmaecendo o princípio da presunção de inocência além de outras
garantias legais, a reação operada pelo pensamento liberal clássico foi de um
tímido recuo, pois se invocava sempre a dura necessidade de sua presença
lamentando-se tão somente, a dolorosa contradição da existência do instituto
6
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. 6. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002, p. 623
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processual e o pré-falado princípio, temendo-se sua interpretação literal.
Pesou então a dúvida, até hoje persistente: a custódia preventiva é realmente uma injustiça necessária como pensava Carrara, ou apenas o produto
de uma irrefreável concepção inquisitória de processo que deseja ver o acusado
em condição de inferioridade em relação à acusação, imediatamente sujeito à
pena exemplar e, acima de tudo, presumido culpado?
Eis a senha para que Ferrajoli examine as necessidades que devem satisfazer o decreto de prisão provisória. De logo, ele afasta como notoriamente falaciosa ou de manifesta incompatibilidade, a possível adequação entre o
princípio da presunção de inocência e a finalidade de prevenção e defesa social
da prisão preventiva. A presunção de periculosidade é completamente obtusa
para o doutrinador.
Restariam então outras duas finalidades: a do perigo de deterioração das
provas e a do perigo de fuga do acusado, ambas também já referidas por Beccaria e que seriam perante a doutrina e jurisprudência mais avançadas as únicas justificativas plausíveis para tal medida.
Primeiramente, a necessidade de prevenir a deterioração das provas não
deve ser confundida com a de interrogar o acusado e até mesmo de obter-lhe
a confissão no segredo da investigação.
Basta partir da premissa de que tal ato instrutório seria também forma de
defesa e não tão-somente aparato de meio acusatório, tendo sua coercitividade
minada por ser desnecessária caso sua realização fosse somente para arrancar
a confissão do réu – nas palavras citadas de Carrara – que demonstraria resquícios do que ele lembraria ser uma forma de tortura (ao menos psicológica)
disfarçada.
Tanto que neste diapasão, sugere Ferrajoli7, ser mais plausível, em especial quando se tratar de crimes particularmente graves e complexos, em outra
modalidade de procedimento instrutório que impeça que antes do interrogatório o imputado seja colocado em condição de alterar o estado das provas e
de apresentar falsas defesas e que tal exigência possa ser satisfeita, em lugar da
custódia cautelar, através de uma espécie de detenção provisória com os olhos
voltados a uma instrução prévia mais célere e de forma mais simplificada.
Então para ele seria:
A simples condução coercitiva do imputado à presença do juiz e por sua detenção
durante tempo estritamente necessário – por horas ou no máximo dias, mas não
por anos – para interrogá-lo em uma audiência preliminar ou em um incidente
probatório e talvez para realizar as primeiras averiguações sobre suas justificativas.
7
Id. 2002, p. 447
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Ora, em seu entendimento, dado a exigüidade da detenção, haveria menor desrespeito à liberdade individual e diminuiria a repercussão pública dos
efeitos da ação penal, extremamente difamatórios ou infamantes, que representam hoje um dos aspectos (extralegais e extrajudiciais) mais humilhantes e
aflitivos de todo o sistema punitivo.
Teríamos como exemplo em nosso país, a edição da lei que versa sobre a
prisão temporária, embora esta tenha como fim primordial a coleta de provas
pré-processuais durante o inquérito policial.
Contudo, mesmo assim e como já referido antes, o professor italiano volta a ressaltar as notórias funções policialescas advindas da medida preventiva,
tanto de ordem punitiva quanto processual. Aqui este jurista enumera algumas diferenças básicas que tornam a medida preventiva mais pesadamente
punitiva que a própria pena.
Vejamos: a uma, a captura é preventiva em duplo sentido - no sentido de
que tem um papel de prevenção geral não baseado, contudo, como aquele da
pena, na ameaça legal, mas diretamente no caráter exemplar da sua irrogação
judiciária; e também no sentido de que são preventivas as medidas, sendo
cominadas não apenas com base em provas, mas na simples suspeição de culpabilidade, ou, pior, na presunção de periculosidade social do réu.
A duas, realizaria uma regressão à pena dos primórdios da evolução das
idéias penais que eram motivadas principalmente pelo ímpeto da prevenção
geral negativa em seu cunho de intimidação social e que teve um novo recrudescimento na hodierna sociedade de massas, onde de fato tornaram-se
exemplares, espetaculares e estigmatizantes, contando com uma captura teatral e posterior a acusação dramatúrgica que sobre ela se faz, tornando-se um
fenômeno por nós bem conhecido por conta de algumas operações policiais
realizadas para apuração de certos crimes nos últimos anos em nosso país.
Com efeito, depois do interrogatório e da imediata apreciação dos argumentos defensivos, a custódia do imputado não mais seria justificável. Desse
modo, ressalta o penalista italiano8:
Excluída a função de conservação das provas, o prolongamento da detenção não
pode ter outro efeito (para não dizer outro escopo) que o de colocar o imputado
numa condição de submissão, de colocar obstáculos a sua defesa, de induzi-lo
eventualmente à confissão e até mesmo permitir que outros sujeitos – a acusação,
a parte civil ou outros interessados – realmente deteriorem as provas.
Em um segundo momento, discute-se, o outro possível fundamento que
justificaria a prisão preventiva: o perigo de fuga do imputado.
8
Ibid. 2002, p. 447.
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Assevera, de logo, aquele doutrinador que o perigo de fuga, de fato, é
principalmente provocado, mais que pelo medo da pena, pelo medo da própria prisão preventiva.
Mas, ainda que não se levasse em consideração tal argumento, perguntar-se-ia: Por que o perigo de fuga de um imputado já interrogado deveria bastar
para justificar uma violação tão séria e subvertida de todas as garantias penais
e processuais como se fosse uma pena antecipada sem julgamento?
Ora, relembra o estudioso italiano, que tal perigo não é realmente um
grande perigo. Primeiramente é bem difícil, em uma sociedade informatizada
e internacionalmente integrada como a atual, uma fuga definitiva. Em segundo lugar, a opção de fuga pelo imputado, forçando-o à clandestinidade e a um
estado de permanente insegurança, é já por si só, uma pena gravíssima.
Aponta-se, surpreendentemente, outro indiscutível argumento: supondo
que da fuga não restassem rastros do imputado, ela teria alcançado, na maior
parte dos casos, o efeito de neutralizá-lo para a tranqüilidade das finalidades
de prevenção do direito penal. Seria simplesmente irônico, se não tivesse um
efetivo risco ao foragido de ser alcançado novamente pela lei.
Por fim, o perigo de fuga é diretamente proporcional à severidade da
pena. Um ordenamento – por exemplo – que previsse a pena de morte muito
dificilmente poderia renunciar a ter o imputado nas mãos durante muito tempo de forma a entregá-lo depois da condenação ao carrasco. Então, preconiza
o professor peninsular que a mitigação ou abrandamento das penas, reduz
proporcionalmente o perigo de fuga dos imputados.
As posições assumidas por este pensador são de indiscutível validade,
principalmente se levarmos em conta as origens da prisão preventiva e sua forte inclinação policialesca. É impossível, mesmo nos dias de hoje, afastarmos
esse aspecto inquisitorial do instituto.
Ao contrário, a cada dia tornar-se-ia mais comum a captura ordenada e,
sobretudo mantida para constranger o indiciado/acusado a confessar ou colaborar com o aparato de justiça estabelecido.
No entanto, não devemos chegar ao paroxismo de considerar, mesmo
diante das condições do sistema carcerário brasileiro, que o custodiamento
preventivo de certos agentes criminosos não seria justificado por um possível
e polêmico “direito de fuga”. Tal pensamento vem tomando vulto em certos
círculos jurídicos nacionais, alcançando até mesmo as deliberações de alguns
ministros do Supremo Tribunal Federal.
Tal discussão brotou de forma mais patente quando da polêmica decisão
proferida pelo Ministro Marco Aurélio de Mello quando do julgamento do
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caso Salvatore Cacciola. Remontando no tempo, em 14 de julho de 2000, o
ministro Marco Aurélio concedeu liminar no Habeas Corpus n. 80.228/RJ a
tal banqueiro acusado de crimes contra o Sistema Financeiro Nacional.
Dias após, consoante temiam o Ministério Público Federal e alguns
membros de tribunais inferiores, Cacciola fugiu para a Itália, de onde é originário. De lá não pôde ser extraditado, por descompasso de entendimento
em relação à cláusula de reciprocidade existente entre nosso país e a nação
italiana. Em verdade, ele só retornou ao Brasil em 2008, quando foi preso em
Mônaco, que aceitou entregá-lo ao Ministério da Justiça.
O próprio Ministro teria cunhado uma célebre frase: “É direito natural
do homem fugir de um ato que entenda ilegal. É natural, é inato ao homem” e
corroborando com sua posição teria ressaltado que mantêm o seu entendimento a ponto de dizer que concederia novamente tal liminar a Cacciola para
que respondesse o processo em liberdade, mesmo com a “ameaça confirmada
de sua fuga para seu país de origem”, como de fato se dera. Seria, no seu entender, uma verdadeira chancela legal concedida a todo cidadão que se achar
vítima de uma injustiça após cometer um crime tendo o direito de eximir-se
da prisão usando sua prerrogativa de “fuga” ou seu “direito de fugir”!
Em data recente – 17 de janeiro de 2011 – notabilizou-se também a
posição do ministro Cesar Peluso, Presidente do Supremo Tribunal Federal
em outro Habeas Corpus de n. 84.934, também relatado pelo ministro Marco
Aurélio, em que aquele se pronuncia pelo aludido “direito de fuga” ao analisar
o caso que envolveu o advogado Roberley Rocha Finotti, foragido do poder
judiciário com prisão preventiva decretada, ao conceder-lhe o direito de responder em liberdade a processo por extração ilegal de diamantes na reserva
dos índios Cinta-Larga no Estado de Rondônia. Alegou então em seu voto o
ministro presidente que “o direito de fuga, sem violência, por aquele que, de forma procedente ou não, sinta-se alcançado por ato ilícito, à margem, portanto, da
ordem jurídica, surge como inerente ao homem, como um direito natural”, tendo
sido o writ concedido.9
Tal inusitada postura jurídica seria ainda reeditada quando de novo voto
proferido deste vez pelo ministro Dias Toffoli reconhecendo, a seu ver que em
certas situações, o réu tem o “direito de fugir”, no teor da decisão da 1ª Turma
do STF em 17/agosto/2010, por ocasião do julgamento do habeas corpus n.
101.981/SP e onde o ministro Ricardo Lewandowski fora voto vencido.
Neste caso, o réu C.R.S. fora preso em 24/abr/2008. A 5ª Turma do Su9
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 84.934- RO. Relator: Ministro Marco
Aurélio de Melo. Brasília, 17 de Janeiro de 2011.
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perior Tribunal de Justiça manteve a prisão, por considerá-la legítima (HC
136.090/SP, relator Min. Jorge Mussi). Frente ao Supremo Tribunal Federal, a
defesa alegou-se excesso de prazo, o que foi reconhecido pelo colegiado, embora
o réu, com sua fuga, evidentemente tenha atrasado o andamento do processo.
No entanto, o ministro Toffoli foi além como se bem vê na ementa
adiante transcrita10:
HC N. 101.981-SP. RELATOR: MIN. DIAS TOFFOLI. HABEAS CORPUS.
CONSTITUCIONAL. PROCESSO PENAL. Excesso de Prazo. Superveniência
de Sentença de Pronúncia. Prisão mantida por novo fundamento. Novo título
prisional. Habeas corpus prejudicado. Decreto fundado na gravidade abstrata do
delito e na consequente periculosidade presumida do réu. Inadmissibilidade. Fuga
posterior do réu do distrito da culpa. Fato irrelevante. Precedentes. Constrangimento ilegal caracterizado. HC concedido de ofício. 1. A superveniência de
sentença de pronúncia com novo fundamento para a manutenção da prisão cautelar constitui novo título prisional, portanto, diverso da prisão preventiva. Prejuízo
da presente impetração. 2. É ilegal o decreto de prisão preventiva que funda na
gravidade abstrata do delito e na consequente periculosidade presumida do réu.
Ademais, em situações excepcionalíssimas, é legítima a fuga do réu para impedir prisão preventiva que considere ilegal. Habeas Corpus prejudicado. Ordem
concedida de ofício. (Negritos nossos).
Notabiliza-se então, diante deste fenômeno jurídico brasileiro aquilo que
o Procurador da República Vladimir Aras em elucidativo artigo intitulado ironicamente de “O direito de fugir e o mundo da lua” já houvera denominado
de “hipergarantismo” ou “garantismo à brasileira”.
Vejamos os seguintes trechos deste pensamento11:
Com todo o respeito ao STF, isto pode ser chamado de hipergarantismo, ou garantismo à brasileira. Se a fuga é um “direito natural”, qualquer ordem de prisão
é ilegal e qualquer condenação à prisão é ilegítima. A prevalecer esse raciocínio,
todos os presos têm de ser soltos. Cabe ao Estado garantir-lhes o direito de liberdade imediatamente.
Vontade de fugir é uma coisa; direito de fugir é outra! Quem está preso quer
sair. Mas se a lei admite a custódia preventiva quando presente a necessidade de
garantir a aplicação da lei penal (art. 312, CPP), é porque não há direito algum
de evasão.
Embora existam muitas prisões desnecessárias e abusivas e vários estabelecimentos
prisionais “funcionem” em condições terríveis (este é outro assunto), pergunto: qual
réu na face da Terra admitirá que sua prisão foi justamente decretada? E qual não
10 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 101.981- SP. Relator: Ministro José Antônio Dias Toffoli, Brasília, 17 de Agosto de 2011.
11
ARAS, Vladimir. Disponível em < http://www.novacriminologia.com/Artigo/ArtigoLer.
asp?idArtigo>. Acesso 21.dez.2011
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invocaria esse sacrossanto “direito” de fuga. Será que cabe HC para garanti-lo?
Há que se achar um jeito de harmonizar os direitos processuais do réu e os direitos da sociedade à segurança e à integridade de outros tantos direitos inscritos,
para todos, no art. 5º da Constituição. Como está, não há como continuar: é o
Brasil que está atrás das grades, ao passo que criminosos violentos estão soltos e
à espreita de novas vítimas. Enquanto este dia não vem, quem me consegue uma
astronave? Pois quero “dar um rolé nas nuvens” ou exercer o meu direito de fugir
para o mundo da Lua. (Negritos do autor).
A rigor, o cárcere para alguns funcionaria como meio de intimidação e de
pressão, onde órgãos policiais e judiciários atuam por vezes em uníssono com
os olhos voltados à segurança do Estado contra os agentes ‘presumivelmente’
perigosos.
Mas, notabilize-se que o principal sentido da restrição preventiva – a
possibilidade de servir como instrumento da aplicação da lei – evitando-se
o desaparecimento ou a destruição de provas relevantes ao processo, restou
praticamente esquecida nos debates nacionais.
Ao revés, com a constante vulgarização da prisão preventiva, o que denotamos é que se antecipa a pena, solapando-se o processo que se estende por
anos infindáveis, não alcançando este o objetivo de prevenção de futuros delitos, mas funcionando como um permanente mecanismo de controle social
nas mãos do poder constituído.
Assim, para que haja procedimentos rápidos, se já é possível, embora
em absoluta afronta ao princípio da presunção de inocência, é lícito que o
indigitado acusado seja de logo punido exemplarmente para saciar momentaneamente a tranqüilidade do meio social, tirando o indivíduo de circulação,
como dito no jargão policial?
Em nosso país, surgiram tais paradoxos por decorrência de tal patologia jurídica que vem a ser seguidamente aplaudida com a mantença de um
sistema de segurança puramente repressivo de gestão policial e judiciária da
marginalidade que incomoda. Mínguam os debates sobre o tema e confina-se
o discurso a um grau de subjetividade em que se confrontam o puro interesse
da ordem potestativa estatal e a defesa ilusória das garantias constitucionais
de uma sociedade de vítimas.
O encarceramento preventivo transmutar-se-ia cada vez mais de medida
excepcional em medida automática e não mais funcionaria como nas memórias beccarianas que ainda hoje seriam ressaltadas pelos mais progressistas: em
uma medida cautelar rigidamente circunscrita no tempo e voltada à garantia
de justiça a quem é fortemente indiciado nos delitos de particular gravidade.
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Verifica-se, desse modo, que a indispensável processualização do poder
punitivo estatal torna imperiosa a tutela da liberdade do autor da infração
penal, e dentro dessa ótica, será a Constituição Federal o diploma básico a
influenciar de forma decisiva o curso do processo penal, notadamente através
do princípio do estado de inocência.
3) A prisão preventiva como “mal necessário” mesmo em face de seus
possíveis “fins ilegítimos”.
As prisões acautelatórias subsistiriam então em seu fulcro principal,
como medidas restritivas de liberdade que têm por escopo garantir eventual
execução da pena, seja preservando a ordem pública e econômica, seja por
conveniência da instrução criminal.
Em tese, somente poderiam ser decretadas, em respeito ao princípio da
presunção de inocência, quando os indícios de autoria e materialidade fossem
incontestes.
A práxis jurídica, entretanto, demonstra que tais institutos por vezes são
utilizados com base em embasamento insuficiente e em decisões por vezes arbitrárias. A prisão provisória, em especial a preventiva, mesmo com toda crise
que se enfrenta diante do uso abusivo da mesma, permaneceria como um mal
absolutamente necessário.
Por conseguinte, tal medida constritiva seria a principal e mais utilizada
forma de encarceramento acautelatório no ordenamento jurídico pátrio.
Assim é ressaltada, conforme escólios de Mirabete12:
A prisão preventiva, em sentido estrito, é medida cautelar, constituída da privação
de liberdade do acusado e decretada pelo juiz durante o inquérito ou instrução
criminal, diante da existência dos pressupostos legais, para assegurar os interesses
sociais de segurança. É considerada um mal necessário, pois suprime a liberdade
do acusado antes de uma sentença condenatória transitada em julgado, mas tem
por objetivo a garantia da ordem pública, a preservação da instrução criminal e a
fiel execução da pena. Só se justifica em situações específicas, em casos especiais
em que a custódia provisória seja indispensável. Por esse razão, a lei deixou de
prever como obrigatória a prisão em determinadas situações, para ser uma medida
facultativa, devendo ser aplicada apenas quando necessária segundo os requisitos
estabelecidos nas normas processuais. Não é assim ato discricionário do juiz, limitado a certos, precisos e determinados casos. É praticamente pacífico nos tribunais
que não impede a decretação da prisão preventiva o art. 5º, LVII, da CF, que se
refere apenas ao princípio da presunção (ou estado) de inocência.
O comprometimento a uma reflexão mais aprimorada no que concerne
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MIRABETE, Julio Fabrini. Processo Penal. 2. ed. São Paulo: Atlas,1999, p.409.
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aos limites de sua motivação, fundamentos ou mesmo a possível ausência de
pacífica fundamentação, tem como finalidade concorrer para sua perfeita adequação, ressaltando a proporcionalidade harmoniosa que deve existir entre o
direito à liberdade e o poder de punir do Estado, sem afrontar os princípios
dignitários do homem.
O operador do direito, nas situações em que haja dúvidas acerca da aplicação do encarceramento preventivo, deverá cercar-se de todo cuidado, aplicando a norma penal em total congruência com os ensinamentos constitucionais,
posto que a Carta Magna pátria não poderá jamais servir de mera referência.
A par disso, todo e qualquer dispositivo infraconstitucional tem de ser
utilizado à luz da Excelsa Constituição, sob pena de se ficar indiferente ao
Estado Democrático de Direito.
A prisão preventiva, longe de ser, conforme apregoado em antigos tempos, instituto penal do qual jamais se poderá abrir mão, é por vezes útil, devendo firmar seu condão de provisoriedade e excepcionalidade, para que sirva
de instrumento para manter a ordem social no transcorrer do processo, em
equilíbrio com os bens mais caros do direito e da justiça.
Apesar das renomadas críticas direcionadas a tal instituto, a prisão cautelar preventiva serve como anteriormente afirmado, a fins de instrumentalidade processual, e mesmo apesar de seu desvirtuamento, a não incidência em
casos onde realmente se vislumbre necessidade poderá ocasionar graves danos
ao transcurso do processo.
Todavia, de todos os argumentos que arregimentam a imputação do encarceramento preventivo, a manutenção da ordem pública é sempre o mais
utilizado.
Conforme afirma Capez13, temos que:
Garantia da ordem pública: a prisão cautelar é decretada com a finalidade de impedir que o agente, solto, continue a delinqüir, ou de acautelar o meio social,
garantido a credibilidade da justiça, em crimes que provoquem grande clamor
popular. No primeiro caso, há evidente perigo social decorrente da demora em
se aguardar o provimento definitivo, porque até o trânsito em julgado da decisão
condenatória o sujeito já terá cometido inúmeros delitos. Os maus antecedentes
ou a reincidência são circunstâncias que evidenciam a provável prática de novos
delitos, e, portanto, autorizam a decretação da prisão preventiva como nessa hipótese. No segundo caso, a brutalidade do delito provoca comoção no meio social,
gerando sensação de impunidade e descrédito pela demora na prestação jurisdicional, de tal forma que, havendo fumus boni iuris, não convém aguardar-se até o
trânsito em julgado para só então prender o indivíduo.
13 CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 13. ed. rev. e atual.São Paulo: Saraiva, 2006, p. 265.
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No que concerne ao primeiro quesito, ou seja, acautelar o meio social, tal
instituto prisional é totalmente válido, visto que a possibilidade de o suspeito
permaneça a delinqüir, mesmo diante dos indícios, é algo inadmissível, não
apenas para o âmbito processual, mas para a segurança social como um todo.
Quando se tem certeza da periculosidade do réu e mesmo em havendo
reiteração da prática em outros delitos, a melhor doutrina entende ser válida
a prisão, como forma de acautelamento social. Entretanto, quando a prisão
preventiva tem como critério ensejador tão somente o clamor público, existe
um risco muito maior de que haja desvirtuamento de sua finalidade e mesmo
afronta aos princípios regentes do Estado Democrático de Direito.
A simples revolta popular, sem os indícios suficientes e corretos trazidos
pelo Codex processual penal, não poderá servir de única base para decretação
da mesma. Poderá ser mais um motivo para esta, nunca a base única.
O excelso Supremo Tribunal Federal bem como outros tribunais já se
digladiaram frente a tema tão polêmico, como vemos nos arestos adiante,
copilados por Mirabete e já demonstrando com reiteradas manifestações e em
diversas ocasiões, o sentido de rechaçar o clamor público como motivo ensejador de prisão cautelar, posto que nem sempre se vislumbraria o periculum in
mora. Vejamos14:
Clamor público – STF: A repercussão do crime ou o clamor social não são justificativas legais para a prisão preventiva, dentre as estritamente delineadas no art. 312
do CPP, não cabendo, nessa matéria, a aplicação da analogia do que vem disposto
no art. 325, V, da mesma lei processual, que se refere ao clamor público, mas como
proibitivo da concessão de fiança. - RT 598/417 (MIRABETE, 1991, p. 390).
Estardalhaço causado pela imprensa – STJ:
Não se pode confundir ordem pública com estardalhaço causado pela imprensa
pelo inusitado do crime. Como ficar em liberdade é a regra geral, deverá o juiz justificar substancialmente a necessidade de o paciente ficar preventivamente preso.
Não basta invocar, de modo formal, palavras abstratas do art. 312 do CPP. Ordem
concedida - RSTJ 81/361 (Id. p. 390).
Prisão para garantir a ordem pública –
TACRSP: Para garantia da ordem pública, visará o magistrado, ao decretar a prisão preventiva, evitar que o delinqüente volte a cometer delitos, ou porque é acentuadamente propenso às práticas delituosas, ou porque, em liberdade, encontraria
os mesmos estímulos relacionados com a infração cometida - JTACRESP 45/580
(Ib. p. 391).
Como se pode bem ver, em grande parte dos casos trazidos à baila, o en14 Op.cit. p.390 e 391.
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carceramento preventivo não seria decretado em razão de necessidade processual, mas pura e simplesmente em face da gravidade do delito, caracterizando-se afronta ao principio do estado de inocência.
Portanto, na ânsia de demonstrar à população uma certa celeridade na
prestação jurisdicional, toma-se por culpado, mesmo antes de qualquer condenação, aquele a quem se atribui o fato punível motivador da prisão preventiva.
A repercussão do crime ou clamor social, portanto, não podem ser as
únicas justificativas legais para a prisão preventiva, passando esta a ter uma
função sedativa ao alarme social ou à excitação da opinião pública.
Tanto que, contrariamente as demais formas de encarceramento acautelatório então existentes, a prisão preventiva não possui prazo de duração determinado: a regra é que esta perdure enquanto haja sua necessidade durante
a instrução processual, assegurando-lhe o bom andamento e a decisão final.
De logo, deve-se assinalar que os pactos e convenções internacionais,
entre eles a Convenção Americana dos Direitos Humanos e O Pacto de San
José da Costa Rica, vêm assegurando em seus postulados, ao acusado preso, um julgamento o mais célere possível, não admitindo dilações indevidas.
Ademais, também não devemos olvidar que a Constituição Federal de 1988
dispõe no art. 5°, em seu inciso LXXVIII “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que
garantam a celeridade de sua tramitação”.
O próprio Código de Processo Penal Brasileiro já regulou alguns prazos,
que inclusive em se tratando de réu preso são mais exíguos, tais como o artigo
10 para conclusão do inquérito policial (dez dias) ou o art. 46 para oferecimento da denúncia (cinco dias). Assim como, à jusante, estipulou prazos
máximos para cumprimento de determinadas fases processuais, tais como o
artigo 400 que fixou em sessenta dias para a realização da audiência de instrução e julgamento no procedimento comum, bem como o art. 412 que
determina que a primeira fase do procedimento do Tribunal do Júri deverá ser
concluída em noventa dias.
No entanto, em nossos tribunais durante um longo período admitiu-se
o prazo de 81 (oitenta e um) dias como tempo razoável entre a instauração
do inquérito policial e o fim da instrução criminal, vinculando tal período
de tempo como prazo máximo para o encarceramento provisório, embora
somente se vislumbrasse expressamente tal prazo no teor do art. 1° da Lei n.
9.30396. Registre-se, em tempo, que o aludido artigo primeiro da citada lei,
deu nova redação ao artigo 8° da Lei n. 9.03495 – Lei do Crime Organizado,
articulando explicitamente tal prazo.
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Ademais, é bom lembrar que a respeito deste interstício temporal, formaram-se duas vertentes interpretativas em nossos tribunais, para afirmar que,
se injustificadamente excedido, poderia tal prazo transmutar-se em evidente
constrangimento ilegal, motivador do relaxamento da prisão.
A primeira considerava que a verificação do tempo de prisão preventiva,
deveria ser feita ‘isoladamente’ em relação ao inquérito policial e às demais
fases do processo e se verificaria o excesso de forma mais tópica ou parcial.
Já a segunda corrente, preferia uma contagem mais ampla, globalizante,
resultante da ‘soma’ dos prazos previstos para realização de todos atos procedimentais, admitindo que o eventual excesso em relação a uma fase, pudesse ser
superado pela celeridade em relação à outra, mormente quanto ao inquérito
policial, em que sempre houve maior rigor de observância do prazo de sua
conclusão.
A segunda corrente prevaleceu em nossos pretórios, assentando-se aquele
prazo de 81 dias para o tempo de prisão preventiva nos crimes punidos com
reclusão, com algumas ressalvas de praxe: exceto se o acusado em sua defesa
tenha dado causa ao retardamento ou no caso de atos ou procedimentos mais
complexos (perícias, cartas precatórias ou rogatórias etc.).
Daí, que uma nova orientação passou a ser gradualmente considerada: o
prazo seria contado até o encerramento da instrução penal, com a ‘ouvida’ das
testemunhas de acusação e defesa, excluindo-se outros atos posteriores excepcionais. Tanto que foram editadas pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal na
busca de pacificação do tema, duas súmulas adiante citadas15:
Súmula 52 – Encerrada a instrução criminal fica superada a alegação de constrangimento ilegal por excesso de prazo;
Súmula 64 – Não constitui constrangimento ilegal o excesso de prazo na instrução
provocado pela defesa.
Não se queira com isso se entender que houve uma certa parcimônia punitiva por parte do Supremo Tribunal Federal em relação ao prazo discutido.
Ao revés, nunca houve condescendência do pretório excelso com nenhuma
forma de exacerbação dessa medida de constrição individual provisória que
justificasse a mantença do encarcerado por mais tempo do que o necessário
para a dilação probatória.
Tanto que tal excesso de prazo encontrou expresso repúdio com a edição
da Súmula 697, permitindo o relaxamento de prisão mesmo em caso de crime
hediondo, in verbis: “A proibição de liberdade provisória nos processos por crimes
15 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula n° 52 e 64.
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hediondos não veda o relaxamento da prisão processual por excesso de prazo” 16 .
Assim, mesmo diante da abjeção do crime cometido, a custódia prisional ilegal não tem força suficiente para elidir o vício proveniente do excesso de prazo
da prisão cautelar.
Em que pese este entendimento, hodiernamente ainda se vislumbra mesmo frente à Corte Maior, algumas decisões que abalam a fixação de um critério razoável de formação da culpa que vincule um termo proporcional para
mantença da custódia preventiva. Vejamos17:
HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSO PENAL. HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO E FORMAÇÃO DE QUADRILHA.
1. Alegação de excesso de prazo. Matéria que para ser apreciada demandaria dupla
supressão de instâncias. 2. Fundamento da prisão preventiva. Periculosidade evidenciada pelo modus operandi. Fundamento suficiente e idôneo para a prisão do
paciente. 3. Não apreciada pelo Tribunal de Justiça do Espírito Santo a alegação de
excesso de prazo e tendo o Superior Tribunal de Justiça assentado a possibilidade
de examinar esta matéria, sob pena da supressão da instância. 4. Garantia da ordem pública evidenciada pela periculosidade e pelo modus operandi. Fundamento
suficiente e idôneo para manutenção do ora paciente. Precedentes. 5. Habeas corpus conhecido em parte e na parte conhecida, ordem denegada. HC 104.321-ES.
Relatora Min. Carmen Lúcia, Primeira Turma, Julgado em 15.02.2011.
Em outros julgados, por sua vez, o excesso de prazo é amplamente reconhecido, mesmo em circunstâncias indiscutíveis18:
HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. ORDEM CONCEDIDA. O
paciente se encontra preso há mais de quatro anos e ainda não foi julgado pelo
tribunal do júri. Tal fato, não se pode negar, evidencia o excesso de prazo da custódia cautelar. Ordem concedida. HC 98.665-PI, Relator Min. Joaquim Barbosa.
2ª Turma, julgado em 16.11.2010.
EXCESSO DE PRAZO DA PRISÃO. DEMORA DOS JULGAMENTOS INTERPOSTOS PELA DEFESA. PACIENTE PRESO HÁ CINCO ANOS. DEMORA NÃO IMPUTÁVEL AO PACIENTE. AUSÊNCIA DE COMPLEXIDADE DO FEITO. EXCESSO DE PRAZO CONFIGURADO. PRECEDENTES. ORDEM CONCEDIDA. 1. O excesso de prazo da prisão dos julgamentos
dos recursos interpostos pela defesa configura constrangimento ilegal à liberdade
de locomoção. 2. Ordem concedida. STF HC 104.675-PE, Relatora Min. Carmen Lúcia. Primeira Turma. Julgado em 14.12.2010.19
16 Id. Súmula n° 697.
17 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 104.321- ES. Relatora: Ministra Carmem
Lúcia, Brasília, 15 de Fevereiro de 2011.
18 Id. Habeas Corpus n. 98.665-PI. Relator: Ministro Joaquim Barbosa. Brasília, 16 de Novembro de 2010.
19 Id. Habeas Corpus n. 104.675-PE, Relatora Min. Carmen Lúcia. Primeira Turma. Brasília, em 14
de Dezembro de 2010.
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Denota-se, sem sombra de dúvida uma certa lassidão mesmo por parte
de nosso tribunal maior, que se torna mais complacente quando os prazos
são excessivamente extrapolados frente à finalização da instrução criminal.
Assim, não se justifica o reiterado desrespeito ao cumprimento dos prazos
processuais, mesmo em condições excepcionalíssimas, porque a exceção não
pode tornar-se a regra.
Ao cerceado em sua liberdade de nada adianta as vetustas e ultrapassadas
alegativas de excesso de trabalho, acúmulo processual ou complexidade de
seu procedimento, pois morosidade ou desorganização funcional não podem
servir de amparo à justificativa da afronta ao jus libertatis.
Tal raciocínio é de tal forma conclusivo que voltado ao teor da nova lei
que rege em alguns de seus aspectos, as medidas cautelares constritivas da liberdade (Lei nº 12.403/2011), agiu bem o legislador em fixar um parâmetro
processual para sua utilização, como bem se vislumbra no bojo da nova redação
do artigo 313, inciso I do Código de Processo Penal brasileiro, ipsis litteris20:
Art. 313 – Nos termos do Art. 312 deste Código, será admitida a decretação da
prisão preventiva:
I – Nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior
a 04 anos. (...).
Neste entendimento, parece-nos que a exigência descrita neste inciso do
aludido artigo, buscaria atrelar com seus novos limites, uma modalidade imprescindível de prisão preventiva ‘propriamente dita’ ou strictu sensu e procuraria vinculá-la tão somente a algumas infrações penais de maior gravidade,
inviabilizando-a diante de muitas outras que outrora eram também passíveis
desta forma de prisão cautelar.
Seria a comprovada e imperiosa “necessidade” que fundamentaria a existência de um decreto preventivo em casos de ‘maior complexidade e repercussão social’. Ora, o direito constitucional de liberdade, dentro de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, exigiria que se aguardasse o desenrolar
normal do processo a fim de que, havendo condenação do acusado, possa
enfim o mesmo ser cerceado em seu direito de ir e vir.
No entanto, não teria mais cabimento recolher, cautelarmente, o agente
de um delito cuja periculosidade é mínima para a sociedade e cujas sanções
penais também são de menor proporção ofensiva e onde a grande maioria
comportaria a aplicação de penas alternativas à privativa de liberdade. Este
20 BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 07 de Dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848.htm>. Acesso em: 21. dez. 2011.
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seria o sentido maior a ser dado aos novos paradigmas legais: a reconhecida
e objetiva necessidade de custódia preventiva e não somente sua “alegada”
necessidade como antes era previsto (todos os crimes punidos com reclusão!).
Como perguntaria o jurista Arturo J. Zavaleta 21:
Como se explica então que a justiça, por meio da prisão preventiva, aprisione
um inocente antes de declará-lo culpado em uma sentença definitiva? Não parece
ilegítimo semelhante proceder? E se não é, a que título faz?
O próprio Zavaleta22 responde:
É a necessidade, portanto, o que justifica o direito da sociedade de impor prisão
preventiva ao indivíduo a quem se atribui o cometimento de um certo fato delituoso. (Negritos nossos).
Então, em decorrência destes entendimentos, outro princípio de suma
importância deve ser aplicado: o princípio da razoabilidade, seu ditame fundamental, para que não haja nenhuma forma de constrangimento ilegal. A
rigor, a decretação desta prisão cautelar por prazo irrazoável escapa inexoravelmente à prerrogativa de liberdade do indivíduo. O jus puniendi estatal não
pode fugir dos parâmetros principiológicos, proibindo-se qualquer excesso.
Dimana deste fundamento que a Constituição Federal de 1988, ainda
com o objetivo de proteger o indivíduo de prisões compulsórias, que eram
usuais em épocas nefastas de exceção democrática, tais como no nebuloso
período de regime militar que assolou o Brasil, exige que a prisão preventiva
seja sempre fundamentada, sendo exigido que se demonstre a necessidade
concreta de tal medida extrema.
Em vista disso, o cárcere não poderá funcionar como meio de intimidação e de pressão. Deverá, sobretudo, servir de meio para que se proceda a uma
correta instrução penal, a fim de punir exclusivamente aqueles que participaram do delito.
Com efeito, antes mesmo da atual sistemática processual vigente em nosso
país, persistiria a discussão de que a prisão preventiva ainda manteria a natureza
de uma medida de defesa social, incluindo pressupostos de periculosidade do
imputado (em decorrência do crime cometido) ou tão-somente das circunstâncias do fato, subsumindo-se, simplesmente, em um mecanismo de controle
social com o emprego corriqueiro do ainda famigerado clamor público.
Por conseguinte, denotar-se-ia uma redução expressiva no campo processual penal das garantias fundamentais assentes em nossa Constituição, pois
21 ZAVALETA, Arturo. La Prisión Preventiva y La Libertad Provisoria. Editora Arayú, Buenos Aires,
ARG, 1954.
22 Op.cit. p.110.
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no afã do combate ao crime, incentiva-se a prática exacerbada de condutas
incomedidas e mesmo arbitrárias por parte do Estado, onde o juiz tornou-se
um agente de segurança pública e não um garantidor de liberdades.
O jus libertatis tem de ser sempre preservado. Tal prerrogativa, no entanto, não revoga a utilização de prisão preventiva nos casos em que se tenha
certeza de sua necessidade, visto que há previsão constitucional expressa para
o ato gizado no artigo 5º, LXI.
O que não pode ser tolerado, em nenhuma hipótese, é a utilização distorcida do instituto prisional, pois o tal desvio de finalidade da medida prisional
acautelatória em discussão termina por desvirtuá-la ainda mais, colocando em
prova a seriedade de sua aplicação. Em sua afetação constitucional, a prisão
preventiva somente será reputada legítima quando acatar aos princípios fundamentais da vida em sociedade, tais como a preservação física dos indivíduos
e a igualdade, como meio para coibir injustiças e a oportunização de direito
de defesa a todos.
4) As repercussões da nova sistemática legal prevista na lei
12.403/2011.
Como é de sabença geral, a partir do dia 4 de julho de 2011, o regramento sobre as medidas cautelares, e especificamente, sobre a segregação cautelar
durante a investigação ou no curso do processo penal, encontram-se sob a
égide da Lei nº 12.403, de 04 de maio de 2011.
Referida legislação cuidou de disciplinar em um só Título do Código de
Processo Penal (embora seja possível visualizar outras medidas cautelares fora
do Título delimitativo “Título IX”) sobre a prisão, medidas cautelares e sobre
a liberdade provisória.
De logo, ressaltemos que os capítulos e artigos modificados pela citada
legislação visam adequar as normas processuais penais, no que se referem à
prisão, medidas cautelares e liberdade provisória, às normas e princípios previstos na Constituição Federal de 1988.
Em vista disso, e de acordo com a norma constitucional referenda-se que
a liberdade é a regra e, como tal, deve ser tutelada pelos ordenamentos infraconstitucionais consentâneos com seu entendimento.
Ademais, persiste o fundamento de que ninguém poderá ter sua liberdade cerceada senão quando preso em flagrante delito ou por ordem escrita
e devidamente fundamentada por autoridade judicial competente, ou ainda,
antes de sentença penal condenatória transitada em julgado.
Por isso, na nova seara das prisões cautelares, a nova lei sinaliza com um
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primordial respeito aos princípios da tipicidade da prisão cautelar, da duração
razoável desta, da dignidade humana dos presos, da duração razoável do processo e da já citada presunção constitucional de inocência.
Este princípio era profundamente vilipendiado com a ocorrência da prisão cautelar de quem deveria ser considerado inocente frente ao simples arbítrio subjetivo do julgador a respeito da gravidade do fato.
A partir da nova lei todas as restrições de direitos pessoais à liberdade
de locomoção previstas no Código de Processo Penal e que ocorrerem antes
do trânsito em julgado das decisões definitivas, receberão a denominação de
“medidas cautelares”.
Além da necessidade de previsão de pena privativa de liberdade, em certo grau e limite, cumulativa ou isoladamente, não persistiriam mais outras
modalidades de prisões cautelares diversas da prisão preventiva ora em análise
e da prisão temporária (Lei nº 7.960/89) e rendendo ensejo ao fundamento
primordial de que tais medidas cautelares não poderão ser aplicadas pela mera
discricionariedade do juiz, uma vez que o legislador cuidou de estampar no
art. 282 alguns critérios para sua aplicação.
No entanto, ressentem-se de algumas disposições que mitigam tais garantias, como o disposto na nova redação do parágrafo segundo do aludido
artigo, onde se expressa que estas medidas cautelares poderão ser aplicadas independentemente de prévia prisão em flagrante, podendo ser impostas tanto
na fase investigativa quanto no teor do processo.
É dizer: se estamos falando do princípio da presunção de inocência, aplicar uma sanção, embora precária, mas antes do devido processo legal, poderia
ser, da mesma forma, tomada como uma espécie de aplicação antecipada de
pena. O caminho para evitar excessos será a observância do princípio da razoabilidade e outras medidas legais.
Além dos requisitos explícitos na lei, outros são indispensáveis, como
por exemplo, o princípio da homogeneidade e da instrumentalidade das medidas cautelares, os princípios da proporcionalidade e da intervenção mínima, onde se deve mesurar o risco que pode apresentar a liberdade do acusado, em uma relação de custo-benefício com a devida justificação teleológica
da medida.
Impende registrar então que a prisão preventiva tornou-se medida de
extrema ratio, pois ao delimitar-se novos critérios para sua aplicação busca-se adequar tal medida acautelatória ao texto constitucional evitando, consequentemente medidas prisionais desnecessárias e abusivas. Dessa forma, toda
prisão, bem como qualquer outra medida acautelatória da jurisdição penal há
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que partir de ordem judicial escrita e devidamente fundamentada.
Ressalte-se tal desiderato pelo fato de que a prisão antes do trânsito em
julgado somente será permitida quando possível a comprovação de quaisquer
das razões que autorizem a prisão preventiva, independentemente da instância
em que se encontrar o processo.
Nessa perspectiva, as medidas cautelares só poderão ser aplicadas quando estiverem presentes, num primeiro aspecto, dois requisitos relevantes: a
necessidade para a aplicação da lei penal, com fito à investigação ou instrução
criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais, ou como já dito, a adequação da medida à gravidade do delito, às
circunstâncias do fato e às condições pessoais do acusado.
A par disso e frente a uma exegese gramatical e sistemática do novo diploma legal, a decretação da prisão preventiva terá lugar somente quando não
for cabível a sua substituição por nenhuma outra espécie de medida cautelar
em vista inclusive do que dimana da nova redação do art. 310, inciso I do Código de Processo Penal que dispõe sobre a “conversão” da prisão em flagrante
em preventiva e que tal fenômeno somente ocorrerá quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as demais medidas cautelares específicas, o que lhe
confere um caráter nitidamente excepcional.
Seguindo neste diapasão, e ainda pendente maiores considerações doutrinárias e pronunciamentos judiciais sobre o tema, teríamos incipientemente
4 (quatro) modalidades de prisão preventiva: a) a prisão preventiva justificada e fundamentadamente “convertida’ (decorrente da conversão da prisão
em flagrante em preventiva) embasada no art. 310, inciso II do Código de
Processo Penal; b) a prisão preventiva “propriamente dita”, prevista no art.
311 e seguintes do Codex processual penal pátrio; c) a prisão preventiva por
“descumprimento de outra medida cautelar”, imposta na fase investigatória
ou da instrução criminal conforme determinam os arts. 282, parágrafo IV e
art. 312, parágrafo único, ambos da lei de ritos penal e, por fim, d) a prisão
preventiva quando pairar subsistente “dúvida sobre identidade civil de indigitada pessoa” por prática de delito como reza no art. 313, parágrafo único dos
mesmos dispositivos processuais.
A rigor, para aqueles que em um primeiro momento estavam céticos em
relação à nova lei, pois ainda preferiam o encarceramento às medidas restritivas, é bom lembrar que a norma sob a ótica penalista, ofereceu ao Estado
um amplo espectro de constrição de liberdade contida na já citada redação do
parágrafo único do art. 312 do Código de Processo Penal (descumprimento
de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares).
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Ademais, por outro lado, sob um ângulo mais ‘garantista’, o que a nova
norma instrumental processual penal permite agora ao magistrado é a adequação da medida cautelar – necessária, mas não imprescindivelmente restritiva
de liberdade – ao caso concreto. Em verdade, houve ampliação dos poderes de
cautela do juiz mesmo durante o curso da instrução penal, o que outrora era
mais insubsistente.
Reflui irrefutavelmente deste raciocínio que a sociedade em sua ansiosa
busca de segurança viu concretizar-se através de tais medidas, o poder do
Estado de agir justificada e fundamentadamente com mais rigor no caso de
descumprimento de medida restritiva de outra natureza , sem excessos liberalizantes nem retrocessos da norma penal, mas sim em consistentes avanços
legais e constitucionais.
Nesta linha de raciocínio e partindo da premissa presente acima, a existência da nova lei busca precipuamente evitar o encarceramento desnecessário
do indiciado/réu antes do trânsito em julgado, oferecendo ao Estado-Juiz a
possibilidade de efetivamente promover a proteção dos cidadãos. Tal postura
é por nós destacada não só pela interpretação sistêmica da nova norma, mas
por ser esta a mais harmônica com a sua razão de ser, pois claramente dá vazão
aos direitos constitucionais do indiciado/réu como também amplia o poder
geral da cautela do Estado.
Considerações finais.
Em que pesem todas as críticas e dúvidas acerca da aplicabilidade do
instituto prisional cautelar, em especial no que tange à prisão preventiva, os
fundamentos que regem o Estado Democrático de Direito e os ditames constitucionais não afastam a utilização destas para fins ilegítimos. Devem ser respeitados indubitavelmente, os princípios reitores constitucionais penais, em
especial os da liberdade, igualdade e presunção de inocência como parâmetro
para comportamento dos entes jurisdicionais, servindo para que inibam arbitrariedades que porventura possam ser cometidas.
A prisão preventiva, quando decretada em respeito estrito a estes, atrelada aos seus requisitos obrigatórios - cautelariedade e excepcionalidade - é um
instrumento útil aos fins aos quais se propõe. O que não se pode tolerar é a
desvirtuação de tal instituto, especialmente quando se constata que o argumento que mais comumente ampara os defensores da prisão preventiva é o
volúvel e por vezes impressionista ímpeto de saciar o clamor social, exigindo
que o indivíduo ainda não julgado seja punido exemplar e imediatamente
pela sociedade e pela mídia.
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Esta antecipação da pena não pode persistir nem possui justificativas
plausíveis, mesmo diante da violência, pânico, perigos e ameaças que tornam
a vida em sociedade absolutamente incerta diante de seus riscos.
Também temos que vislumbrar que não basta somente uma correta aplicação teórica do conceito de prisão preventiva. Para que ela atinja seus propósitos, especialmente o de acautelamento processual, necessário faz-se uma
completa modificação prática do modelo prisional e a utilização consciente
das demais medidas cautelares apregoadas no bojo da Lei 12.403/2011.
A deficiência do aparelhamento policial, as condições absolutamente
precárias das instituições carcerárias, a insuficiência de meios materiais de
nossa estrutura jurisdicional criminal, resulta no enfraquecimento dos profissionais desta seara, redundando na falta de confiança e cooperação por parte
da sociedade. Assim, acreditar que se conseguirá alguma forma de recuo de
delinqüência somente com a aplicação de tais meios é uma utopia.
Desta feita, a aplicação dos princípios democráticos, coadunados com
a utilização responsável e não arbitrária do instituto em estudo, com o aceleramento das fases processuais e criação de outros meios de cerceamento de
liberdade que assegurem a eficiência judicial, farão com que a falácia em torno
da aplicação da prisão preventiva seja, enfim, extirpada.
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Referências bibliográficas.
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_______. Decreto-Lei n. 2.848, de 07 de Dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: < http://
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_______. Decreto-Lei n. 3.689, de 03 de Outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível
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________. Lei n. 7.960, de 21 de Dezembro de 1989. Dispõe sobre prisão temporária. Disponível em:
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________. Lei n. 12.403, de 04 de Maio de 2011. Altera dispositivos do Decreto-lei n. 3.689, de
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PENAS ALTERNATIVAS COMO MEIO
RESSOCIALIZADOR E GARANTIDOR DO
PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
1
Ana Karla Rola Maia2
RESUMO: A pena de prisão tem acompanhado o homem desde os primórdios
da civilização, apresentando-se sob diferentes aspectos. No século XVI, iniciou-se um movimento em prol da humanização do sistema punitivo, visando
à ressocialização do apenado, temática que permeia inúmeras discussões na
atualidade, principalmente diante da constatação da falência do sistema prisional. No Brasil de hoje, promove-se uma grande revisão das sanções penais
de natureza institucional avaliando-se sua eficácia, com a finalidade de manter
no cárcere somente o criminoso perigoso, que não pode conviver em sociedade. Nesse contexto, ganha espaço a temática das penas alternativas como meio
ressocializador e garantidor do princípio da dignidade da pessoa humana, objeto deste estudo, que se propôs a defender a adoção e a aplicabilidade dessas
penas como garantia dos direitos humanos, analisando o seu alcance ressocializador. A abordagem que se fez sobre o assunto não foi apenas jurídica, mas
também social, tendo como ponto inicial de pesquisa a busca da história da
humanidade referente à apenação. A metodologia utilizada na pesquisa foi do
tipo puro, bibliográfico e documental, de natureza qualitativa. Os resultados
revelaram que adotando as penas alternativas, oferece-se a muitos cidadãos,
que em dado momento de suas vidas agiram de forma criminosa, a oportunidade de pagarem por seus crimes e de serem reintegrados na comunidade.
PALAVRAS-CHAVE: FALÊNCIA DA PENA DE PRISÃO; DIREITOS HUMANOS; PENAS ALTERNATIVAS; RESSOCIALIZAÇÃO.
Abstract: the jail has accompanied man since the dawn of civilization, showing up under different aspects. In the 16th century, a movement for the punitive system humanization began,
1
2
Trabalho desenvolvido sob a orientação do Prof. André Luiz Tabosa de Oliveira, Mestre em Direito
pela Universidade Federal do Ceará (UFC), apresentado à Coordenação do Curso de Especialização
em Direito Constitucional (VI) da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC) no
ano de 2012 como requisito parcial para obtenção do título de especialista em Direito Constitucional.
Graduada em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Pós-graduanda em Direito Constitucional pela Escola Superior de Magistratura (ESMEC). Advogada. E-mail: <anakarlamaia@
hotmail.com>.
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aimed at sentenced resocialization, thematic that permeates many discussions now, especially
in front of the fact of the prison system bankruptcy. In today’s Brazil it is promoting a great
review of criminal sanctions of an institutional nature evaluating their effectiveness, for the
purpose of keeping in prison only the dangerous criminal, who cannot live in society. In this
context, wins space the theme of alternative sentences as a resocializing way and principle
guarantor of human dignity, object of this study, which proposed to defend the adoption and
applicability of these feathers as a guarantee of human rights, analyzing its resocializing scope.
The approach that has been done on the subject was not only legal, but also social, taking
as the starting point of the research the humanity history of punishment. The methodology
used in the study was the pure, bibliographical and documental type, of qualitative nature.
Adopting alternative penalties, offers to many citizens, who acted so criminally at some point
in their lives, the opportunity to pay for their crimes and be reintegrated into the community.
KEYWORDS: BANKRUPTCY OF PRISONMENT PENALTY; HUMAN RIGHTS; ALTERNATIVE SENTENCES; RESOCIALIZING.
Introdução
O presente trabalho tem como finalidade primordial analisar a importância das penas alternativas como garantia dos direitos humanos. Apesar de
se tratar de tema bastante discutido no meio acadêmico, é de fundamental
relevância seu estudo, tendo em vista que, por intermédio da investigação da
sua utilidade e eficácia no combate ao crime, obtém-se a real noção da imensa
contribuição desses substitutivos penais ao Brasil no combate à crise do sistema prisional.
Durante toda a pesquisa observou-se que as penas alternativas, no cenário brasileiro, ainda são um fenômeno recente, que data da segunda metade da
década de 80, portanto, desconhecido para boa parte da sociedade.
O mais curioso acerca desse tipo de pena é o fato de uma pessoa cometer
um determinado delito e ter a oportunidade de cumpri-la fora da prisão. E
essa possibilidade vem demonstrando e reforçando a fragilidade do sistema
carcerário, na medida em que o indivíduo apenado com pena alternativa, que
não ficou recluso, tem obtido melhores avanços no convívio social do que os
sentenciados com regime fechado, que tiveram contato com outros presos.
As prisões, portanto, ao invés de cumprirem seu papel ressocializador,
acabam por corromper a personalidade do indivíduo que nelas ingressam. O
convívio de pessoas que cometeram pequenos delitos, na maioria das vezes indivíduos que não tiveram oportunidade de frequentar uma escola, que foram,
e às vezes ainda são, marginalizados pela sociedade, mas que, apesar de tudo,
não são pessoas de má índole, como aqueles denominados de “profissionais
do crime”, é algo que tem transformado as cadeias em verdadeiras escolas do
crime.
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Nesse contexto, será analisado, durante o decorrer do estudo, a grande
relevância das penas alternativas para a moralização do sistema de execução da
pena para o delinquente e, consequentemente, para a garantia da efetividade
do princípio da dignidade da pessoa humana.
Outro ponto a ser mostrado é o índice de reincidência dos condenados
a penas alternativas quando comparado aos apenados com sanções privativas
de liberdade.
Embora, ainda hoje, uma grande parte da população, entre jornalistas e
vítimas da violência, defenda a tese da criação de penas mais severas, com o
fundamento de que somente assim o problema da violência seria resolvido ou,
pelo menos, amenizado, uma outra corrente, antagônica a essa, vem ganhando espaço e vários adeptos, à medida que vem defendendo penas alternativas
como único meio de afastar os pequenos delinquentes das cadeias, não os
expondo aos males do sistema penitenciário.
Percebe-se um imenso vão entre a realidade dos presídios e os direitos e
garantias fundamentais dos detentos. A realidade mostra que o convívio em
uma cadeia adultera qualquer princípio, marcando, de forma indelével, a vida
daqueles que ali estiveram.
A pesquisa foi basicamente bibliográfica e documental feita em livros, revistas jurídicas, publicações avulsas e imprensa escrita. A metodologia utilizada na
pesquisa foi do tipo puro, de natureza qualitativa, analisando a eficácia das penas
alternativas no processo de reintegração, bem como no combate à violência.
No decorrer deste trabalho de pesquisa serão analisados os aspectos gerais
acerca das cadeias e penitenciárias brasileiras, revelando-se a realidade atual
dos presos para que se possa adentrar no tema principal do estudo, consistindo na real importância das penas alternativas para a garantia do princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana.
1 A Questão carcerária
Nesta seção, discorre-se de modo sucinto acerca do sistema prisional,
resgatando-se suas origens e refazendo-se o trajeto trilhado pelos estabelecimentos que o integram em sua história evolutiva, de modo a facilitar a compreensão das finalidades que assumiu em diversos momentos dessa história.
1.1 Breve relato sobre a prisão e seu desenvolvimento através dos
tempos
Os povos das civilizações antigas acreditavam que a prisão tinha a fina251
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lidade de custodiar os infratores e não de aplicar-lhes penalidades pela infração cometida. Nessa época, os detentos sofriam verdadeiras mutilações, sendo
presos pelos pés, mãos e pescoço, tendo os membros muitas vezes amputados,
acorrentados e presos a grilhões.3
Foi apenas na Idade Média que a prisão começou a ser considerada como
uma pena imputada aos transgressores da lei. Além disso, foi nesse período da
história que a expressão penitenciária começou a ser utilizada pela Igreja, uma
vez que o criminoso suplicava pela penitência de sua culpa. Os religiosos da época acreditavam que a reclusão dos delinquentes os levaria ao arrependimento.
Na Idade Moderna, devido ao desgaste social e econômico advindo das
grandes guerras, a população pobre passou a delinquir em larga escala. Nessa
época, a prisão foi considerada um meio de levar o encarcerado à ressocialização, utilizando-se da disciplina e do trabalho com esse fim. A prisão, portanto,
nessa época, pela primeira vez caminhava para a assunção de uma característica educativa.
No século XVIII, finalmente a prisão tomou forma de sanção definitiva,
ocupando o lugar de outras formas de repressão à conduta delitiva. No entanto, apresentava-se como condição de encarceramento primitiva e desumana,
sem qualquer outra preocupação.
Ainda no mesmo século, várias personalidades lutaram pela definição da
pena como algo útil e necessário, dentre as quais se insere Cesare Beccaria,
autor do livro Dei Delitti e Delle Pene (“Dos Delitos e das Penas”), obra na
qual expressa que o direito de punir deveria ser exercido sem abuso, sem tortura e sem injustiças4. Para o jurista, a pena deveria possuir dois objetivos: a
prevenção geral e a especial, ambos a ser perseguidos pela eficácia na punição,
nunca por meio do terror.
As ideias do jurista Cesare Beccaria deram início ao chamado “Período
Humanitário” das prisões. Combatiam a dureza dos cárceres, a complicação
dos processos investigatórios, o atraso dos aparelhos judiciários e a falta de
idoneidade das prisões como local para cumprir pena ressocializadora.
A pena privativa de liberdade, que atingiu seu apogeu na segunda metade
3
O estudo sobre o desenvolvimento da prisão no tempo e a crise do Sistema Penitenciário Brasileiro
foi realizado a partir dos seguintes artigos: FERREIRA, Fábio Félix. A vitimização do delinqüente
durante a execução da pena privativa de liberdade no Brasil. Dike: revista jurídica do curso de
Direito da EESC. v. x, n. 5, p. ini-fin., 2003; FONTÃO, Helita Barbosa Serejo Lemos; CUNHA,
Edna Regina Batista Nunes da. Penas alternativas: desafio da nova política criminal. Revista jurídica
Uniderp. v.7, n.1, ini-fin., abr. 2004.
4
BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos delitos e das penas. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.16
252
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do século XIX, começou a enfrentar sua decadência antes mesmo que esse
século terminasse. Os maus tratos enfrentados pelos condenados que eram
submetidos à prisão passaram a ser questionados quando iniciou-se ao processo de humanização das penas. Nesse período, ocorreu um movimento que
procurava garantir um direito expresso na Constituição que não estava sendo
respeitado pelo sistema penitenciário: a dignidade da pessoa humana.
Apesar de toda a preocupação em torno do respeito à dignidade da pessoa
humana e da busca de outras alternativas à pena de prisão, tem prevalecido o
endurecimento das penas como única medida eficaz no combate à violência
apresentada no Brasil nos últimos anos.
O crescimento da criminalidade e a sensação de impunidade gerada pela
aplicação das alternativas à prisão fizeram com que fosse implantado, segundo o doutrinador Bitencourt, o que ele denominou de “Movimento de Lei e
Ordem, que se iniciou com a indigitada Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº
8.072/90)”.5
Logo, pode-se observar que nesse momento histórico o Brasil optou por
uma política criminal muito mais severa, deixando de lado toda a evolução
havida no caminho da humanização das penas. A própria sociedade cobra do
Estado a punição dos delinquentes e a grande maioria mostra-se favorável à
aplicação de penas mais severas, haja vista não conseguir viver plenamente a
sua humanidade, sentindo-se, inclusive, prisioneira em sua própria casa.
Bitencourt, sobre essa questão, assim se manifesta:
Essa é a política criminal que se instalou no País, na década de 90, com os denominados crimes hediondos, criminalidade organizada e crimes de especial gravidade,
simbolizando, mais que um Direito Penal funcional, um autêntico Direito Penal
do terror.6
No entanto, a despeito do momento de crise pela qual estava passando
o sistema carcerário brasileiro, para muitos decorrente do abrandamento das
penas, nos dias atuais buscam-se outras alternativas ao enclausuramento. O
recém-criado sistema de monitoramento eletrônico é um exemplo.
Passa-se, na continuidade, a discorrer sobre a punição aos infratores consistente na restrição de sua liberdade e a sua finalidade reintegratória.
1.2 Considerações sobre as penas privativas de liberdade e o seu
objetivo ressocializador
5
6
BITENCOURT, Cezar Roberto. Novas penas alternativas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. XXV
Ibid., p. XXXI
253
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As grandes obras sobre Direito Penal produzidas pelos doutrinadores
brasileiros trazem a afirmação de que a pena deve atuar para ressocializar o
preso, inseri-lo na sociedade. Deve ter, ao mesmo tempo, caráter preventivo e
punitivo. No entanto, a realidade dos presídios brasileiros mostra exatamente
o contrário, revelando que a única finalidade da pena é punir o preso.7
Barros Leal, em sua obra “Prisão: o crepúsculo de uma era”, enumera as
funções da pena privativa de liberdade: retribuição, intimidação, ressocialização e incapacitação, uma vez que a clausura impede o cometimento de novos
delitos.8
É notório que a principal preocupação do sistema penitenciário ao
receber um indivíduo condenado não é com a sua reeducação, mas com
a privação de sua liberdade, pois nenhum tipo de programa educacional e
social é ministrado dentro dos presídios. Esses indivíduos vivem à margem
da sociedade, enclausurados em pequenas celas, em condições subumanas, e a
principal preocupação do Estado não é investir em educação para auxiliar sua
reintegração à sociedade, mas, sim, evitar sua fuga, protegendo as cadeias com
grandes muros e um forte efetivo policial.
Diante dessa conscientização, um grande questionamento em torno da
pena privativa de liberdade foi levantado, haja vista a prisão não estar atingindo suas finalidades, não servindo ao papel a que se propunha. Em vez de
recuperar o delinquente, estimula a reincidência, na medida em que torna
o encarcerado uma pessoa ainda mais agressiva e ofensiva à sociedade. Para
Bitencourt, “o problema da prisão é a própria prisão”.9
O etiquetamento que sofre o delinquente com a sua condenação torna
muito pouco provável a sua reabilitação. A sociedade nutre um forte preconceito por esses indivíduos. É como se fosse levantado um muro que separa a
sociedade dos apenados, que impede a manifestação da solidariedade necessária a sua ressocialização. O sistema penal, portanto, ajuda a marginalizar os
condenados, na medida em que os exclui do meio social.
O melhor parâmetro para saber se o objeto ressocializador está sendo
cumprido é analisar os índices de reincidência criminal. Nas penas privativas de liberdade o que se pode observar é que a reincidência cresce a cada
dia. A maioria dos indivíduos que deixam o cárcere volta a cometer crimes
7
8
9
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Parte especial. 8. ed. São Paulo: Saraiva,
2003. p
LEAL, César Barros. Prisão: o crepúsculo de uma era. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. p. 36
BITENCOURT. Op. cit., p. 3
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muitas vezes piores do que o anterior, como se a prisão o tivesse tornado
ainda mais nocivo ao convívio social. De acordo com pesquisas realizadas
pela Universidade Estadual da Paraíba, estima-se que o percentual de reincidência no caso das penas privativas de liberdade oscila entre 70 (setenta) a
80% (oitenta) por cento.10
Na mesma pesquisa, Lima já mencionava a falência desse tipo de sistema
punitivo e acreditava que outras medidas deveriam ser aplicadas, posto que
a pena de prisão não estava cumprindo o seu papel ressocializador, como se
depreende de seu posicionamento expresso na continuidade:
Propõe-se, assim, aperfeiçoar a pena privativa de liberdade, quando necessária,
e substituí-la, quando possível e recomendável. Todas as reformas de nossos dias
deixam patente o descrédito na grande esperança depositada na pena de prisão,
como forma quase que exclusiva de controle social formalizado. Pouco mais de
dois séculos foi suficiente para se constatar sua absoluta falência em termos de
medidas retributivas e preventivas.
Desse modo, conclui-se que o sistema prisional brasileiro vem fracassando
em seu objetivo ressocializador, não sendo capaz de cumprir o controle social.
1.3 A crise do sistema prisional brasileiro
O sistema carcerário no Brasil entrou em colapso. Não é de hoje que
se toma conhecimento das verdadeiras atrocidades cometidas dentro das cadeias públicas contra a população carcerária. A realidade atual dos presídios
brasileiros revela homens e mulheres sendo tratados como animais selvagens,
jogados dentro de celas sujas e infectadas, em sua grande maioria amontoados
uns sobre os outros em razão da falta de espaço físico. Isso quando não são
trancafiados em celas improvisadas, sem teto, sem banheiro, sem água, expostos ao sol e a chuva todos os dias.
Não há infraestrutura nos estabelecimentos carcerários e os detentos são
condenados, também, a viver em condições humilhantes. Na maioria das celas a quantidade de presos ultrapassa o triplo da capacidade recomendada.
Alie-se a esse fato a sujeira e a precariedade do ambiente e tem-se o quadro do
sistema prisional nacional.11
A reportagem da Rede Globo mostrou, em janeiro de 2011, uma dele10 LIMA, Luatom Bezerra Adelino de. O presídio e a reincidência: uma análise introdutória da vida
carcerária com o determinante da reincidência criminal. Um estudo de caso no Presídio do Serrotão
– PB. Datavenia.com, [2001]. Disponível em: <http://www.datavenia.net/artigos/ direito_penal/
luato.html> Acesso em: 12 abr. 2011
11 RAMOS, Carlos Henrique (Org.). A vida nos porões da Justiça. Revista Época. Globo.com,
13/12/2010. Disponível em: <http://www.revistaepoca.globo.com/>. Acesso em: 25 abr. 2011
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gacia situada no município de Bacabal, interior do Maranhão, que colocava
os seus detentos num “gaiolão”, espaço que deveria ser utilizado para o banho
de sol e os encontros de visitantes, e estava sendo utilizado como depósito
de presos. Estes ficavam ao relento, sob a chuva. Um dos vinte presos que se
encontrava nessas condições, ao ser entrevistado disse que preferia morrer a
permanecer naquele sofrimento.12
Outro escândalo mostrado pela reportagem foi a utilização, por parte
dos funcionários da delegacia, de jiboias para comer os ratos que circulavam
pelas celas.
A Constituição Federal de 1988 procurou preservar a dignidade dos
aprisionados prevendo expressamente no art. 5º, XLIX, “o respeito à integridade física dos presos”. No entanto, esse direito garantido pela Constituição,
que não se reflete apenas dentro dos presídios, mas também fora dele, não está
sendo observado.
Além disso, podem-se enumerar, aqui, vários outros problemas enfrentados pelos presos, quais sejam: ausência de direito à assistência médica de
qualidade; precariedade na assistência jurídica, ocorrendo casos em que os
condenados ficam presos por mais tempo do que deveriam, haja vista o número insuficiente de defensores públicos.
Portanto, o principal motivo das reclamações acerca de não recebimento dos benefícios previstos em lei e a permanência nas penitenciárias após o
cumprimento da pena devem-se à carência do serviço de assistência judiciária
destinado aos presos.
Vale ressaltar que existem estados que não possuem defensores públicos,
o que prejudica sobremaneira o andamento dos processos daqueles presos que
não têm condições financeiras de arcar com o ônus de um advogado, situação
preocupante, já que no Brasil a grande maioria dos presos é composta de pessoas de baixo poder aquisitivo.
A deficiência de assistência jurídica é apenas uma das causas que geram
a superlotação, sem dúvida um dos problemas mais graves enfrentados pelos
estabelecimentos penais, pois contribui para a revolta e tensão entre os presos,
fomentando as rebeliões e as fugas das cadeias públicas.
Atualmente, o problema gerado pela superlotação tem sido deveras preocupante para o Poder Público, influenciando diretamente a grave crise atra12 LIMA, Luatom Bezerra Adelino de. O presídio e a reincidência: uma análise introdutória da vida
carcerária com o determinante da reincidência criminal. Um estudo de caso no Presídio do Serrotão
– PB. Datavenia.com, [2001]. Disponível em: <http://www.datavenia.net/artigos/ direito_penal/
luato.html> Acesso em: 12 abr. 2011.
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vessada pelo sistema penitenciário brasileiro, que alcançou recentemente contornos de ampla notoriedade, em especial pelo fato de terem ocorrido dezenas
de rebeliões coordenadas por comandos e grupos formados de presidiários,
arquitetadas e organizadas dentro mesmo do cárcere. Sem contar as ligações
feitas dentro dos presídios que simulam sequestros, o que tem feito várias
vítimas nos últimos tempos.
Exacerba-se a problemática em razão do somatório dessa superlotação
com a ociosidade decorrente da prisão que não oferece ao condenado o exercício de uma atividade, tampouco assistência educacional, além, é claro, dos
maus tratos recebidos pelos detentos que vivem nas cadeias em condições
subumanas.
A assistência educacional, somada ao exercício de algum ofício, é uma
opção que poderia ajudar a diminuir os problemas carcerários, além de auxiliar na ressocialização do preso. Projetos educacionais que trabalhassem para a
conscientização dos educandos, fazendo-os perceber a realidade e, consequentemente, os problemas gerados por seus atos, seriam de suma importância
para que os detentos pudessem sair das cadeias sem a ideia de serem indignos
do convívio em sociedade, porquanto os estimularia a procurar mudar de
vida. O aprendizado de um ofício dentro dos presídios, por sua vez, seria de
fundamental importância para o processo de sua reintegração à sociedade,
pois além de ocupá-los durante o cumprimento da pena, servir-lhes-ia de
meio de sobrevivência quando deixassem as prisões.
A visão ressocializadora da doutrina e jurisprudência contribuiu para o
reconhecimento do estudo como uma hipótese de remição, o que resultou na
edição da Súmula 341 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), estabelecendo
que “A frequência a curso de ensino formal é causa de remição de parte do
tempo de execução de pena sob regime fechado ou semiaberto”. Portanto,
o preso que tiver 12 horas de frequência escolar divididas em no mínimo
três dias, em atividade de ensino fundamental, médio, profissionalizante ou
superior, terá o abatimento de um dia de pena. Assim, além do ganho com a
aprendizagem, o preso tem o benefício da remição.
Com relação aos abusos praticados por policiais, na maioria das vezes
verificou-se um total despreparo desses agentes penitenciários, que, para garantirem a segurança dos internos, usam a violência no lugar de seguir as
punições contidas na Lei de Execução Penal (LEP).
Na verdade, a vitimização do delinquente produzida pelos aparelhos que
compõem a Justiça Penal inicia-se durante a intervenção policial. Verificou-se
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que, devido ao despreparo de alguns policiais, estes acabam cometendo abusos no momento de abordarem o autor do delito. Em geral usam de violência,
e muitas vezes chegam até mesmo a agredir os suspeitos.
A agressão continua durante o internamento carcerário, envolvendo desde a superlotação das celas e as frequentes torturas cometidas pelos agentes
penitenciários, muitas vezes sob a forma de agressões sexuais, até a negação
dos direitos e garantias constitucionais previstos para a execução da pena.
Dessa forma, pode-se concluir que a crise do sistema carcerário brasileiro
tem feito os detentos e a sociedade vítimas desse modelo punitivo, atualmente considerado falido e incapaz de conseguir a regeneração dos condenados.
Estes, por sua vez, têm-se tornando ainda mais ofensivos à sociedade, vítima
indireta desse sistema que ela mesma produziu.
2 Penas alternativas
Nesta seção, abordam-se todas as noções fundamentais e importantes
sobre as penas alternativas. A análise irá tratar: da criação das penas alternativas; de sua definição e natureza; das suas espécies; dos seus requisitos para a
concessão e, por último das causas de revogação.
2.1 Criação das penas alternativas no Brasil
Desde a vigência do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940
(Código Penal), deu-se prevalência à pena de prisão como resposta as infrações cometidas. Acreditava-se que a prisão seria o meio mais adequado para se
conseguir a reforma do delinquente. A justificativa para essa opção político-criminal do legislador brasileiro reside no fato de que o Código Penal de
1940 inspirou-se no Código Penal Rocco de 1930 (italiano), de caráter nitidamente fascista.13
A humanização do Direito Penal brasileiro iniciou-se com a Lei nº
6.416/77, que produziu modificações na forma de aplicação e execução da pena.
O Brasil começou a trabalhar com penas alternativas a partir da Reforma
Penal de 1984, com o advento da Lei nº 7.209/1984. Nessa época, adotaram-se medidas alternativas para as penas de prisão de curta duração, instituindo-se as penas restritivas de direito e a pena de multa substitutiva nos casos em
13 No que se refere à criação das penas alternativas, fez-se um apanhado de informações contidas nas
seguintes obras: CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal. Parte Geral. 2. ed. São Paulo: Saraiva,
2001; GRECO, Rogério. Curso de direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2003; JESUS,
Damásio E. de. Direito penal. Parte Geral. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
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que a privação de liberdade fosse de até um ano. Todavia, não foi feito um uso
devido do instituto, haja vista o pequeno número de casos em que as mesmas
podiam ser aplicadas, bem como a dificuldade no controle e fiscalização de
sua execução.
Alguns anos mais tarde, o Congresso Nacional decretou o projeto de lei
nº 2.686, de 1996, para alterar o Código Penal, posto que a prisão não atendia
mais ao objetivo essencial da pena, que era ressocializar o condenado para que se
tornasse apto a viver em sociedade e não voltasse mais à vida do crime. Portanto,
era visível a necessidade de reformulação das formas de punição aos infratores.
Esse projeto, com alguns vetos presidenciais, deu origem à Lei nº
9.714/98, de 26 de novembro de 1998, que deu maior amplitude à aplicação
das penas alternativas no ordenamento jurídico, alterando os arts. 43 a 47, 55
e 77 do Código Penal. Popularizada como Lei das Penas Alternativas, acrescentou às normas já existentes a prestação pecuniária, a perda de bens e de
valores, sendo, ainda, admitida a prestação de serviços a entidades públicas,
fornecendo, assim, ao juiz maiores opções de escolha para a realização, quando cabível, da substituição.
O advento da Lei das Penas Alternativas e o estágio em que se encontra o
processo de humanização das penas contribuíram para começar o redesenho
do panorama da justiça criminal brasileira. O modelo penal clássico, baseado
quase que unicamente na pena de prisão, começou a ser revisto e aplicado
apenas em casos de especial gravidade.
Hoje, portanto, ao lado do sistema clássico, que utiliza o encarceramento
como única forma viável de repressão à criminalidade, há um sistema alternativo que se reserva para delitos de menor e médio potencial ofensivo, cuja
finalidade consiste na aplicação de penas e de medidas alternativas ao infrator
da lei penal que não sejam o encarceramento.
2.2 Definição e natureza das penas alternativas
A pena alternativa foi conceituada por Sznick como sendo:
Aquela que, mesmo punindo, não afasta o indivíduo da sociedade, não o exclui do
convívio social e dos seus, não impede os seus afazeres normais. A pena alternativa
é uma medida punitiva e imposta ao autor da infração no lugar da pena privativa
de liberdade.14
Capez, ao analisar em sua obra a Lei nº 9.714/98, definiu, assim, pena
14 SZNICK, Valdir. Penas alternativas. São Paulo: Livraria e Editora Universitária de Direitos, 1999.
p. 12.
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alternativa:
Constituem toda e qualquer opção sancionatória oferecida pela legislação penal
para evitar a imposição da pena privativa de liberdade. Ao contrário das medidas
alternativas, constituem verdadeiras penas, as quais impedem a privação da liberdade. Compreendem a pena de multa e as penas restritivas de direitos.
Trata-se, então, de medida punitiva de caráter educativo criada com a
finalidade precípua de fazer com que o delinquente repare o seu erro perante
a sociedade por meio do cumprimento da pena imposta. No entanto, é dada
ao mesmo a oportunidade de cumprir a pena e continuar no meio social.
Assim, o delinquente que cometeu pequenos e médios delitos seria retirado
do convívio maléfico das grandes cadeias públicas, haja vista terem se tornado
verdadeiras escolas para práticas de crimes.
As penas alternativas são autônomas, logo, não dependem da imposição da
sanção detentiva, podendo ser aplicadas isoladamente. Outra característica marcante desse modelo é que, em regra, elas são substitutivas. O juiz fixa a pena privativa de liberdade para depois substituí-la pela restritiva de direito elencada no art.
43 do Código Penal, já que se trata de um rol taxativo, que não admite a possibilidade de criação de outra pena alternativa por parte do magistrado, não podendo,
também, ser aplicada cumulativamente com as penas privativas de liberdade.
São de execução condicional, ou seja, subordinam-se a seu efetivo cumprimento. Caso sejam descumpridas injustificadamente ocorrerá sua conversão em privativa de liberdade, nos termos dispostos no art. 44, § 4º, do Código Penal.
A Lei das Penas Alternativas surgiu, como o próprio nome esclarece,
como uma alternativa para se enfrentar a crise do sistema prisional brasileiro
que se encontra precário, deficiente e incapaz de reintegrar as pessoas que se
encontram encarceradas.
Por conseguinte, essa lei, além de favorecer a ressocialização do condenado, tem por objetivo atingir outras metas, quais sejam: a) diminuir a superlotação dos presídios e reduzir os custos do sistema penitenciário; b) reduzir
a reincidência, cujo maior índice encontra-se entre os que cumprem pena
privativa de liberdade; c) preservar os interesses da vítima; d) afastar o condenado do convívio com outros delinquentes; e) evitar a segregação e consequente marginalização do condenado, que não precisa deixar sua família ou
comunidade; f ) permitir ao juiz adequar a pena à gravidade objetiva do fato e
às condições pessoais do condenado.
É importante mencionar que, apesar das vantagens expostas, uma parcela
dos doutrinadores, entre os quais figura Damásio de Jesus, acredita que as
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penas alternativas também apresentam desvantagens. Uma delas, inclusive, é
bastante utilizada pelos magistrados para justificar a sua não usual aplicação,
que é a sensação, errônea, de impunidade gerada, posto que não apresentam
conteúdo de intimidação, mas parecem meios de controle pessoal ou medidas
disciplinadoras do condenado.
Outra desvantagem apontada foi que o aumento do rol de penas alternativas nos Códigos Penais tem levado o legislador a criar novas normas
incriminadoras, o que tem elevado o número de pessoas sob o controle penal
e, com isso, ampliado a rede punitiva. No entanto, a despeito dessas desvantagens, têm-se apostado que a substituição das penas privativas é a chave para
qualquer futura reforma penal.
2.3 Espécies de penas alternativas
Com o avanço em direção à reformulação do sistema penal brasileiro,
tendo como suporte a aplicação das penas alternativas em substituição às penas privativas de liberdade, estas tidas, atualmente, como agressoras aos direitos humanos, a Lei 9.714/98, Lei das Penas Alternativas, ampliou o quadro
daquelas medidas substitutivas, totalizando seis tipos de penas alternativas.
Estas serão analisadas a seguir, dando-se destaque às inovações consagradas no
novo texto legal. As espécies de penas alternativas são:
2.3.1 Prestação pecuniária
A prestação pecuniária, segundo disposição no § 1º do art. 45 do Código
Penal, consiste no pagamento em dinheiro à vítima, a seus dependentes ou a
entidade pública ou privada com destinação social, de importância fixada pelo
juiz, não inferior a um salário mínimo nem superior a 360 salários mínimos.
Caberá, também, esse tipo de pena nos casos em que a vítima sofra um dano
moral e não apenas naqueles nos quais houver um dano material.
2.3.2 Perda de bens e valores
A perda de bens e de valores consiste na retirada, do patrimônio do condenado, do montante do prejuízo causado pelo crime à vítima, ou do montante do proveito do autor do crime com a sua prática, o que for de maior valor, a ser depositado em favor do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN),
ressalvado o disposto na legislação especial. A ressalva diz respeito a outras
destinações, indicadas em legislação especial, a exemplo do que ocorre no
caso do art. 34 da Lei de Entorpecentes, que traz previsão do Fundo Nacional
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Antidrogas (FUNAD).
2.3.3 Prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas
Nesse caso, o condenado realiza trabalhos gratuitos, com duração diária
de uma hora, nas instituições carentes, principalmente de mão de obra, a
exemplo de hospitais, escolas, orfanatos. Dessa forma, o apenado cumpre a
pena e ao mesmo tempo contribui, mediante o seu trabalho, para a concretização das atividades desenvolvidas por essas entidades. Esse tipo de pena gera
um bem tanto para o condenado, que não foi retirado do convívio social,
quanto para a sociedade em geral, que só tem a lucrar com o desenvolvimento
das instituições carentes por intermédio do trabalho realizado pelos apenados.
Nesse sentido, Bitencourt afirma que o condenado, ao realizar essa atividade comunitária, sente-se útil ao perceber que está emprestando uma parcela
de contribuição à sociedade e recebendo, muitas vezes, o reconhecimento da
própria comunidade pelo trabalho desenvolvido.
Isso porque a prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas
é uma pena que tem como característica a natureza jurídica ressocializadora
e preventiva, possibilitando ao apenado refletir sobre os benefícios que seu
trabalho pode render à comunidade.
2.3.4 Interdição temporária de direitos
A interdição temporária de direitos é a quinta espécie de pena restritiva
de direito elencada no art. 43 do Código Penal. Essa pena, diferentemente das
outras, somente poderá ser aplicada em certos tipos de crimes. Ela subdivide-se em: a) proibição do exercício de cargo, função ou atividade pública, bem
como de mandato eletivo; b) proibição de exercício de profissão, atividade ou
ofício que dependa de habilitação especial, de autorização ou de licença do
Poder Público; c) suspensão de autorização ou habilitação para dirigir veículo;
e d) proibição de frequentar determinados lugares.
São consideradas penas restritivas específicas, já que em cada caso é exigido o cumprimento de uma condição para que a pena seja substituída. Nos
dois primeiros casos, que o autor do delito esteja no exercício de cargo, função ou ofício, com violação de deveres inerentes à atividade desenvolvida. A
suspensão de autorização ou de habilitação para dirigir veículo será aplicada
exclusivamente nos delitos culposos de trânsito.
A proibição de frequentar determinados lugares foi uma grande novidade trazida pela Lei nº 9.714/98, a única efetivamente restritiva de direito
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dentre as novas espécies de penas alternativas. O juiz, ao condenar o autor do
fato delituoso, deverá especificar qual o local ao qual o condenado não deverá
comparecer. Vale salientar que a proibição não pode abranger lugares indeterminados ou locais aleatoriamente escolhidos.
2.3.5 Limitação de fim de semana
Bitencourt, em sua obra “Novas Penas Alternativas”, conceituou a limitação de fim de semana como medida que:
[...] consiste na obrigação de o condenado permanecer aos sábados e domingos,
por cinco horas diárias, em ‘casa de albergado’ ou em estabelecimento adequado,
de modo a permitir que a sanção penal seja cumprida em dias normalmente dedicados ao descanso, sem prejudicar as atividades laborais do condenado, bem como
a sua relação sociofamiliar.15
Portanto, a referida sanção também se preocupa com a família do condenado, impedindo que os efeitos da condenação recaiam sobre seus membros.
Ao mesmo tempo, manifesta preocupação educativa, evitando a ociosidade
com a oferta de cursos, palestras e atividades educativas.
A execução da limitação de fim de semana faz-se nos termos dos arts. 151
a 153 da Lei de Execuções Penais (LEP).
A aplicação desse tipo de pena aqui no Brasil é impossível, posto que não
existem casas de albergado no território brasileiro, com exceção dos estados de
São Paulo e Porto Alegre. No entanto, as existentes nesses estados são destinadas ao cumprimento de penas privativas de liberdade em regime aberto.16
Desse modo, a Lei nº 9.714/98 trouxe em seu corpo um tipo de pena
que ficou apenas na intenção do legislador, haja vista a falta de interesse do
governo na criação das casas de albergado.
2.3.6 Multa substitutiva
A pena de multa poderá ser utilizada isoladamente, como substitutiva da
pena privativa de liberdade não superior a um ano, ou cumulativamente com
uma pena restritiva de direitos, no caso de pena privativa superior a um ano.
Resta, também, neste último caso, a possibilidade de o magistrado aplicar
duas penas restritivas de direito.
Atualmente esse tipo de pena mostra-se deficiente, haja vista a criação
das outras formas de penas pecuniárias, a prestação pecuniária e a perda de
15 BITENCOURT, Cezar Roberto. Novas penas alternativas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 154.
16 Ibid., p. 156
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bens e valores.
2.4 Requisitos e pressupostos para a concessão das penas alternativas
O art. 44 do Código Penal elenca requisitos objetivos e subjetivos necessários e indispensáveis para que o juiz possa realizar a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos. Esses requisitos condicionantes
à aplicação da pena alternativa devem estar presentes simultaneamente. Em
seguida, analisa-se cada pressuposto isoladamente, iniciando-se pelos objetivos, que serão discriminados a seguir.
O primeiro consiste na quantidade da pena privativa de liberdade aplicada, obtida por meio da análise do tempo de pena do condenado. Assim, o
magistrado só poderá proceder à substituição se a pena privativa de liberdade
aplicada não for superior a quatro anos, nos casos de cometimento de crime
doloso. Em se tratando de condenação por crime culposo, a substituição será
possível independentemente da quantidade de pena imposta.
O segundo leva em conta a natureza do crime cometido. Esse requisito
objetivo foi inserido pela nova lei ao proibir a substituição da pena quando se
tratar de crime praticado com violência ou grave ameaça à pessoa, qualquer
que seja a quantidade da pena privativa imposta. A violência a que se refere a
lei é apenas a dolosa.
Logo, sendo dolosa a infração e a pena aplicada não superior a quatro
anos, há que se verificar outro requisito de suma importância: se o crime foi
cometido com o emprego de violência ou grave ameaça, uma vez que, existindo a violência, mesmo dentro do limite da pena estipulada pela lei, não
poderá o juiz conceder o benefício ao condenado.
São também dois os requisitos subjetivos, dissecados logo na sequência.
O primeiro reclama que o réu não seja reincidente em crime doloso.
Logo, aquele que foi condenado pela prática de um crime doloso e vier a
cometer novo crime doloso ficará impedido de beneficiar-se da substituição.
Na redação original do art. 44, II, do Código Penal falava-se em réu
reincidente, sem nenhuma complementação, logo, não se fazia distinção entre
réu reincidente em crime doloso e reincidente em crime culposo. Exigia-se,
apenas, que o réu não fosse reincidente. Atualmente, com a Lei das Penas Alternativas, o reincidente pode beneficiar-se com a substituição, pois a vedação
ficou apenas para o caso de réu reincidente em crime doloso. Porém, há que
se observar o tempo decorrido entre a extinção do crime doloso anterior e a
prática do novo delito doloso; se tiverem se passado mais de cinco anos, o
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condenado fará jus à substituição, não existindo a vedação, no que se denomina de período depurador.
A substituição também, não será concedida se houver condenação pela
prática do mesmo crime anterior. Considera-se aqui o condenado como reincidente específico (CP, art. 44, § 3º). Portanto, será considerado reincidente
específico e não terá direito à substituição aquele que reincidir em crime da
mesma espécie, pouco importando se na forma simples, privilegiada, qualificada, consumada ou tentada.
Em resumo, os reincidentes dolosos e específicos não poderão ser beneficiados com a aplicação das penas alternativas.
O segundo requisito subjetivo leva em atenção a avaliação da suficiência
da substituição. Aqui são analisados pelo magistrado para a concessão da pena
os seguintes critérios, previstos no art. 44, III, do Código Penal: a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem
como os motivos e circunstâncias do fato indicarem que a substituição seja
suficiente.
Feita a análise dos pressupostos para sua concessão, é importante frisar
que o magistrado tem o poder de escolher qual a pena alternativa mais adequada ao condenado, ou seja, trata-se de dever público do magistrado, não
cabendo ao condenado a escolha da pena que lhe seja mais conveniente entre
as restritivas de direito.
Bitencourt afirma que uma vez preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos é direito público subjetivo do apenado receber o benefício da substituição.17 Isso obriga o Poder Judiciário a concedê-lo, não ficando, portanto,
ao livre arbítrio do magistrado a possibilidade do seu reconhecimento e a sua
real concessão. Dessa forma, a presença dos pressupostos torna a substituição
imperativa. Assim já entendia o doutrinador Damásio de Jesus ao mencionar
que “a substituição é obrigatória, se presentes as condições de admissibilidade.
Não se trata de simples faculdade judicial”.18
2.5 Revogação das penas alternativas
Em determinadas circunstâncias, previstas em lei (art. 44, §§ 4º e 5º, do
CP), as penas restritivas de direito podem ser convertidas em penas privativas
de liberdade. Essa conversão mostrou-se necessária para que as penas alterna17 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Parte especial. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p
18 JESUS, Damásio E. de. Direito penal. Parte Geral. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 532
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tivas ganhassem coercibilidade frente ao sentenciado. Portanto, o condenado,
ao receber o benefício, terá que cumprir a sua pena da forma como ficou
acertada na sentença, caso contrário perderá o benefício e voltará a cumpri-la
na prisão.
Nessa verificação, a finalidade da conversão é garantir o êxito das penas
substitutivas, que se dá de duas formas: primeiro, preventivamente, com a
ameaça da pena privativa de liberdade; segundo, repressivamente, com a efetiva conversão no caso concreto.
Ressalvam-se dessa conversão a prestação pecuniária e a perda de bens e
de valores em razão da sua natureza pecuniária, não podendo, assim, serem
convertidas em pena de prisão quando forem descumpridas.
O texto da Lei nº 9.268/96 apenas consagrava como proibida a conversão da pena de multa, à época, a única pena pecuniária existente. No entanto,
o entendimento majoritário dispõe que, se a prestação pecuniária e a perda de
bens e de valores também são de natureza pecuniária, não há porque proibir
apenas a pena de multa da conversão em pena de prisão.
A Lei nº 9.714, de 1998, elencou as causas gerais de revogação das penas alternativas, em número de três, consistindo a primeira em seu descumprimento injustificado. Nesse caso, quando o condenado deixa de cumprir,
injustificadamente, a pena substitutiva, o juiz fará uma conversão de penas,
ou seja, determinará que o beneficiado cumpra a pena privativa de liberdade.
Havendo justo motivo para o descumprimento, o juiz deverá ouvi-lo, a fim de
que possa decidir sobre a conversão ou não.
A segunda é a condenação por outro crime compatível com a pena substitutiva. Essa circunstância se verifica quando a nova condenação do apenado é
compatível com a pena alternativa anteriormente aplicada. Nesse caso, a conversão será facultativa, hipótese em que o juiz analisará cada caso em concreto.
Por último, tem-se a condenação por outro crime incompatível com a
pena substitutiva. Ocorre na hipótese de a nova condenação ser incompatível
com a pena substitutiva já aplicada. Aqui, a conversão será obrigatória.
Existem, também, causas especiais de conversão das penas alternativas
em privativas de liberdade. No entanto, fica apenas registrada a sua existência,
posto que não será objeto de análise deste estudo.
3 Penas alternativas como meio ressocializador e garantidor do
princípio da dignidade da pessoa humana
Nesta seção, discorre-se sobre a Vara de Execuções de Penas Alternativas
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da comarca de Fortaleza, mostrando como ocorreu a sua criação, seu funcionamento e os programas desenvolvidos para a capacitação dos reeducandos.
3.1 Criação da Vara de Execuções de Penas Alternativas (VEPA)
A Vara de Execução de Penas Alternativas da Comarca de Fortaleza foi
criada por intermédio da Lei Estadual nº 12.862, de 25 de novembro de
1998, e é dotada de uma infraestrutura apta a fiscalizar e controlar o cumprimento das penas restritivas de direitos. Vale ressaltar que a VEPA de Fortaleza
é pioneira no País.19
A Vara mantém convênio com uma ampla rede social de apoio, constituída por 197 instituições recebedoras de prestadores de serviços, tendo como
objetivo primordial proporcionar a efetiva aplicação das penas alternativas,
sobretudo a de prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas,
bem como buscar promover a ressocialização dos apenados por meio de um
tratamento individualizado.
A VEPA conta com Psicólogos, Assistentes Sociais e Defensor Público na
sua Equipe Técnica, realizando avaliação, acompanhamento e apoio psicossocial, além de monitoramento no cumprimento das penas.
A principal vertente de trabalho da Vara é a valorização do indivíduo,
portanto, executa atividades objetivando a reeducação e a reabilitação do sentenciado por meio de programas paralelos como o de qualificação para o trabalho, tratamento de saúde mental e dependência química, além do projeto
de escolarização.
3.2 Funcionamento da VEPA
O apenado, quando é encaminhado à Vara para cumprir pena, é recebido por um técnico em psicologia que fará uma avaliação de sua capacidade
para o cumprimento da pena que lhe foi imposta. Nessa avaliação a equipe
técnica da VEPA traça um perfil dos condenados com base no delito cometido, na idade, na situação familiar, no grau de instrução, na profissão exercida,
na renda familiar e na religião.
Convém lembrar que é nesse momento inicial que será feita uma análise
da necessidade do condenado de frequentar uma instituição de tratamento
mental ou para dependentes.
Feita a avaliação, o sentenciado será direcionado à instituição escolhida
19 Dados obtidos por intermédio de documentos fornecidos pela Vara de Penas Alternativas (VEPA)
em 2010.
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para o cumprimento da pena. Essa instituição deverá apresentar um relatório
mensal das atividades desenvolvidas pelo reeducando, juntamente com a frequência, bem como analisar como está sendo realizado o acompanhamento
dos apenados pela Vara, se de modo satisfatório ou não. Deverá, também, a
instituição informar a VEPA sobre eventuais problemas que possam ocorrer
durante o cumprimento da pena. É de sua responsabilidade a fiscalização da
pontualidade e do desenvolvimento do trabalho.
A fiscalização dos apenados em sua atuação nas instituições cadastradas
é realizada por uma equipe técnica. Esse acompanhamento do cumprimento
da pena ocorre com visitas mensais às instituições conveniadas, nas quais é
observado como está o desenvolvimento das atividades do reeducando, se ele
tem comparecido regularmente, como tem sido o seu relacionamento com os
funcionários da instituição e com o público em geral.
Busca-se que o reeducando compreenda o seu real valor dentro da sociedade e, principalmente, alertá-lo para as consequências de seus atos. Visa-se
que a pena cumprida por eles não seja vista como uma verdadeira pena, mas,
sim, como algo de que possam tirar proveito e aprendizado para a vida.
3.4 Programas desenvolvidos pela VEPA
A preocupação com o desenvolvimento social, psicológico e educacional
do reeducando fez com que vários projetos fossem desenvolvidos pela VEPA.
Assim, surgiram os seguintes programas:
3.4.1 Qualificação para o trabalho
Esse programa tem por objetivo proporcionar educação profissional por
meio de cursos do Plano Estadual de Qualificação (PEQ). É realizado em
duas etapas: a primeira acontece no âmbito de oficinas de orientação profissional, desenvolvimento de competências e empreendedorismo e orientação
vocacional; a segunda contempla a participação em cursos profissionalizantes
específicos.
3.4.2 Tratamento de saúde mental e dependência química
Esse tipo de programa desenvolvido pela VEPA possibilita ao condenado
o cumprimento da pena, bem como a realização de tratamentos que o ajudem
a melhorar a sua saúde mental e a curar sua dependência química.
O encaminhamento a essas instituições ocorre geralmente no momento da
entrevista inicial, quando é realizada uma avaliação psicossocial dos condenados.
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É oportuno frisar que sempre o caráter de adesão voluntária é enfatizado.
Além do que a participação nesse programa de tratamento proporcionará ao
apenado a remição de algumas horas da sua pena.
3.4.3 Projeto de escolarização
A Vara de Execuções de Penas Alternativas tem como principal objetivo
a efetividade da pena de Limitação de Final de Semana, uma vez que o Estado
não possui casa de albergado ou estabelecimento adequado onde os apenados
teriam que cumprir cinco horas diárias, aos sábados e domingos.
Assim, a permanência dos apenados ocorre no Centro de Educação de
Jovens e Adultos (CEJA) Paulo Freire, escola da rede pública estadual.
Os apenados são matriculados nos cursos presenciais e, após avaliação do
nível de escolaridade, são encaminhados para as turmas adequadas. Eles participam, além das aulas regulares de escolarização, de oficinas de artesanato e
teatro, atividades esportivas, palestras sobre autoestima, cidadania, alcoolismo
e uso de drogas psicoativas, doenças sexualmente transmissíveis, dentre outros
assuntos de notada relevância para o processo de reinserção social.
Pode-se, assim, verificar a grande preocupação da instituição com o desenvolvimento social e psicológico do condenado, fator de grande contribuição no momento da reintegração do reeducando à sociedade.
3.5 A ressocialização por meio das penas alternativas
A grande maioria dos delinquentes é composta por indivíduos oriundos das
camadas sociais mais pobres, filhos de famílias desestruturadas, que não tiveram
acesso à educação. Convém lembrar que é na família que o adolescente espelha-se
para obter bons costumes e boa educação para conviver em sociedade. O contato
do jovem com a sua família e com o meio social em que vive é que vai orientar
a construção dos seus princípios morais. É nesse momento que a sua identidade
será formada. O indivíduo inserido num meio social problemático, ou seja, num
ambiente de criminalidade, possivelmente terá valores corrompidos.
Assim, o meio social em que vive o delinquente é um fator de grande
influência na formação da sua personalidade.
Diante disso, surgiu a teoria da co-culpabilidade, assim definida por Zaffaroni e Pierangeli:
Todo sujeito age numa circunstância determinada e com um âmbito de autodeterminação também determinado. Em sua própria personalidade há uma contribuição para esse âmbito de autodeterminação, posto que a sociedade – por melhor
organizada que seja – nunca tem a possibilidade de brindar a todos os homens
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com as mesmas oportunidades. Em consequência, há sujeitos que têm um menor
âmbito de autodeterminação, condicionado desta maneira por causas sociais. Não
será possível atribuir estas causas sociais ao sujeito e sobrecarregá-lo com elas no
momento de reprovação de culpabilidade. Costuma-se dizer que há, aqui, uma
“co-culpabilidade”, com a qual a própria sociedade deve arcar.
Verifica-se com a teoria da coculpabilidade que o Estado também é responsável pela não inserção social do preso. Logo, a reprovabilidade da conduta desse indivíduo será atenuada diante da parcela de culpa do Estado, que deveria ter lhe oferecido condições de desenvolvimento pessoal. Portanto, deve
o Estado suportar o ônus do comportamento destoante das regras normativas
de convivência em sociedade por parte dos agentes sociais.
Dessa forma, a ressocialização é um processo muito mais complicado,
haja vista conter em si a incumbência de realizar uma nova socialização do
condenado, em busca de desmistificar uma realidade que enquadra o delinquente como algo sem solução. Na realidade, o que se pretende com as penas
alternativas é que o condenado entenda o seu papel na sociedade e as consequências de seus atos delitivos.
As penas alternativas demonstram eficácia no trato da punição e da ressocialização na medida em que preservam o pequeno infrator do convívio
com infratores de alta periculosidade, os quais poderiam, a médio e longo
prazo, levar o infrator primário, que provavelmente cometeu o delito por
uma ruptura ocasional de comportamento, a interiorizar os valores negativos
da cadeia, reincidindo progressivamente na aprendizagem e ajustamento ao
mundo marginal.
3.6 Contribuição da pena alternativa para o apenado
O principal beneficio da aplicação das penas alternativas é o não encarceramento do condenado. O afastamento dos delinquentes considerados
pequenos infratores daqueles tidos como de alta periculosidade, que fazem
da penitenciária uma escola para a disseminação do crime, é de fundamental
importância para o sucesso da reintegração. Esse tipo de pena também é relevante, na medida em que não rompe o vínculo familiar.
Portanto, com a pena alternativa o indivíduo infrator não será encarcerado, mas pagará por seu delito por meio da prestação de serviços gratuitos à
comunidade ou cumprindo outra sentença restritiva de direitos, além de ter
seu direito à integridade física resguardado.
A realidade tem revelado que os benefícios decorrentes do cumprimento
da pena ao condenado são inúmeros.
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O primeiro deles é a oportunidade que o reeducando tem de ampliar
o seu círculo de amizades durante o trabalho desenvolvido na instituição.
A grande vantagem é que o apenado tem a oportunidade de reparar o dano
causado à sociedade na própria sociedade, o que facilita o seu retorno à comunidade, haja vista a influência das pessoas que o cercam todos os dias no trabalho. Logo, somos afetados pelas pessoas que diariamente vemos, conversamos,
trabalhamos e elas são afetadas por nós. Assim, o convívio do reeducando com
pessoas de valores morais dignos o influenciará positivamente.
Neste contexto, enquanto repara o dano que causou o infrator beneficiado pela pena alternativa terá a oportunidade de se relacionar com indivíduos
que irão lhe mostrar os valores do respeito, da honestidade, da humildade, da
educação, dentre outros, e fazê-lo refletir e repensar sua conduta danosa à comunidade, sendo influenciado e afetado por esse ambiente no qual será inserido, com a possibilidade de interiorizar valores adequados à vida em sociedade.
O segundo, e de suma importância, é a aprendizagem de novos ofícios,
o que, por sua vez, possibilita ao reeducando, ao terminar o cumprimento da
sua pena, entrar no mercado de trabalho, perspectiva antes impossível por
falta de qualificação técnica em uma atividade.
Conclui-se, então, que a aplicação das penas alternativas promove a ressocialização do beneficiário, resgatando a sua cidadania por intermédio de seu
trabalho e do desenvolvimento de habilidades. Com essa medida ele se mostra
útil à sociedade que anteriormente agrediu. Além disso, permanece no meio
social e familiar, portanto, não fica preso, o que contribui para a redução do
índice populacional nos presídios do Estado.
A sociedade é indiretamente beneficiada por esse sistema, pois tem um
indivíduo reinserido, livre do isolamento que estimula a marginalização, consequentemente, o aumento da violência.
E o Estado conta com a redução dos custos de manutenção do sistema
prisional, podendo redirecionar os recursos para atender cada vez mais infratores.
Conclusão
A superlotação das prisões, a precariedade das celas, a falta de treinamento dos agentes penitenciários, a ociosidade em que vivem os detentos e
a falta de assistência médica e judiciária são alguns dos principais fatores que
contribuem para o fracasso do sistema penitenciário brasileiro no tocante à
recuperação social dos seus internos.
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Em tempos de crise do sistema penitenciário, nada mais necessário do
que a criação de uma nova política criminal. Política esta que traga uma nova
perspectiva tanto para o preso, quanto para a sociedade, cansada da violência.
Porém, o que se vê, na prática, é que os legisladores brasileiros, apesar
de buscarem novas saídas para esse momento de crise, como foi o caso da Lei
das Penas Alternativas (Lei nº 9.714/98), que ampliou o quadro das penas
restritivas de direitos, ainda possuem o pensamento de que penas mais severas
resolveriam melhor a questão da violência.
Na década de 90, uma série de crimes teve a sua pena agravada. Foi nesse
período que surgiram as leis dos crimes hediondos e do crime organizado, que
vieram aumentar o rigor das sanções. No entanto, o único efeito produzido
pelas novas legislações foi o aumento da criminalidade e a criação das facções
criminosas que hoje dominam as penitenciárias, comandando os mais variados tipos de crimes fora das prisões.
Urge, portanto, que o Poder Judiciário tente superar suas próprias e conservadoras resistências, especialmente em relação à aplicação das penas alternativas, haja vista terem se mostrado um meio bastante eficaz no combate à
criminalidade, bem como na redução da reincidência, segundo estudos comparativos realizados com criminosos submetidos a penas alternativas e a penas
de reclusão ou detenção.
O Poder Executivo também deve cumprir o seu papel, implantando políticas públicas que viabilizem o cumprimento das penas alternativas, expressas
na criação de vagas em entidades públicas ou na elaboração de projetos comunitários, de modo a não permitir a instalação da sensação de impunidade
que pode acompanhar a sua declinação pura e simples. Essa pena deve ser ao
mesmo tempo retributiva, pedagógica, repressora e ressocializadora.
A criação da VEPA na comarca de Fortaleza é um bom exemplo do progresso feito no caminho da humanização das penas. Os programas educacionais,
psicossociais e de qualificação desenvolvidos por essa Vara têm mostrado que é
possível, sim, se alcançar o objetivo ressocializador por meio das penas alternativas, bem como se garantir a efetividade do princípio da dignidade da pessoa
humana, melhorando-se a questão da superlotação e, por via indireta, resguardando-se o condenado do convívio em cadeias sujas e em condições desumanas.
Penas alternativas, menores e com uma certeza de eficácia inibirão com
maior eficiência a prática delituosa, evitando que um criminoso com um grau
de periculosidade relativamente pequeno se torne um elemento de alta periculosidade, perdendo-se, assim, a oportunidade de ressocializá-lo de uma forma
humana e eficiente.
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A APARENTE COLISÃO ENTRE OS DIREITOS
À PROPRIEDADE E AO MEIO AMBIENTE
ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO: UM ESTUDO
DE CASO NO MUNICÍPIO DE FORTALEZA – ARIE
DUNAS DO COCÓ1
Luciana Furtado Costa2
RESUMO: O
presente artigo estuda a aparente colisão entre os direitos à propriedade e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Para um melhor
entendimento da temática, imprescindível torna-se a análise da evolução histórica desses direitos fundamentais sob o enfoque da Teoria Geral do Estado,
a partir do Estado Liberal até o Estado Ambiental. O desenvolvimento teórico
do tema é de suma importância para a compreensão da problemática apresentada com o caso ARIE Dunas do Cocó. As Dunas do Cocó compreendem
uma região na cidade de Fortaleza que recebeu, em 2009, uma proteção por
meio da Lei Ordinária nº 9.502/2009, de autoria do Vereador João Alfredo Telles Melo, filiado ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Criou-se,
então, uma Área de Relevante Interesse Ecológico, a ARIE Dunas do Cocó.
Desde então, essa localidade vem sendo objeto de frequentes debates na mídia, no Poder Judiciário e na esfera política. A causa de tanta repercussão se
deve ao fato de essa localidade ser bastante valorizada, por conta do mercado
imobiliário. Este artigo visa explicar os instrumentos hermenêuticos capazes
de solucionar a colisão posta no caso concreto.
PALAVRAS-CHAVE: PROPRIEDADE; MEIO AMBIENTE; COLISÃO DE DIREITOS
FUNDAMENTAIS.
Abstractthis paper studies the apparent collision of property and ecologically
balanced environment. Rights. For better understanding of the thematic, is
essential to analyze the historical evolution of these fundamental rights under the focus of the General Theory of the State, from the Liberal State until
1
2
Trabalho desenvolvido sob a orientação da Profa. Germana Parente Neiva Belchior, Mestra em
Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Bacharela em Direito pela Universidade de Fortaleza. Advogada. Pós-graduada em Direito Constitucional pela Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC). E-mail: <[email protected]>.
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the fictional State of the Environmental. The theoretical development of the
theme is of paramount importance for the understanding of the problems
presented with the case ARIE Dunes of Coco. The Dunes of Coco include an
area in the city of Fortaleza that has received, in 2009, a protection by Ordinary Law n. 9.502/2009, authored by João Alfredo Telles Melo, affiliated to
the Party of Socialism and Liberty (PSOL). An Area of Ecological Interest was
created, the Dunes of Coco ARIE. Since then, this town has been the subject
of frequent debates in the media, the judiciary and the political sphere. The
cause of such effect is due to the fact that this location is much prized on account of the real estate market. This article aims to explain the hermeneutical
tools capable of solving the collision put in this case.
KEYWORDS: PROPERTY; ENVIRONMENT; COLLISION OF FUNDAMENTAL RIGHTS.
Introdução
O presente trabalho aborda a evolução estatal no que tange ao direito de
propriedade versus o direito ao meio ambiente para analisar, claramente, um
caso concreto: as Dunas do Cocó. Só com o esclarecimento das especificidades relativas a essas garantias do direito de propriedade, bem como do meio
ambiente é que se conseguirá entender a problemática apresentada.
O objetivo geral deste artigo consiste em investigar a aparente colisão
entre o direito de propriedade e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado no caso ARIE Dunas do Cocó. Como objetivos específicos,
pretende-se estudar a evolução histórica da propriedade e do meio ambiente a
partir do Estado Liberal até os dias hodiernos, enfocando os aspectos da Teoria do Estado, bem como dos direitos fundamentais. Esclarece-se que direitos
fundamentais são aqueles escolhidos pelo constituinte como os bens mais caros da vida, ou seja, aqueles que demandam maior tutela, imprescindíveis à
dignidade humana.
Intenta-se, por fim, estudar o caso ARIE Dunas do Cocó averiguando-se,
dessa forma, o histórico das Dunas. Quando há uma colisão entre os direitos
fundamentais, não há como antever qual o direito fundamental que sempre
prevalecerá. Deve-se, portanto, fazer uma análise do caso concreto, haja vista
que a Constituição é una e suprema. Não há um princípio melhor do que
o outro, o que existe é a melhor conformidade a ser aplicada na casuística
apresentada. De acordo com cada questionamento, os bens, os valores e os
interesses irão variar e, por isso, os resultados podem ser diferentes.
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1 Teoria dos direitos fundamentais: uma abordagem do Estado
Liberal ao Estado Democrático
Direitos fundamentais são aqueles mais importantes para a vida, essenciais à pessoa humana e básicos para a dignidade humana. Entre uma gama de
direitos, o constituinte elegeu alguns, os considerados mais caros, para elevá-los ao status de direito fundamental. Os direitos fundamentais refletem o
caráter histórico, político, cultural, social e econômico de um povo ao integrar
a Constituição; por isso, entende-se que eles estão relacionados ao Juspositivismo. Caso haja algum prejuízo em prol desses direitos, o sacrifício do bem
e da vida estará caracterizado. Sobre o assunto, leciona Sarlet:
Não há como olvidar, neste contexto, que a opção do Constituinte, ao erigir certa
matéria à categoria de direito fundamental, se baseia na efetiva importância que
aquela possui para a comunidade em determinado momento histórico, circunstância esta indispensável para que determinada posição jurídica possa ser identificada como fundamental.3
Os direitos de primeira geração (civis e políticos) são caracterizados pela
abstenção do Estado, característica do Estado Liberal. O Estado deveria ser
mínimo, limitando-se à manutenção da ordem social e à proteção contra as
ameaças externas. Com essa segurança, o indivíduo estaria protegido.4
O ente estatal não deveria intervir no patrimônio dos indivíduos, por
isso, entendeu-se que são direitos negativos, contra o Estado. Os direitos de
primeira geração possuem eficácia vertical, pois a relação existente é entre Estado e particular, ou seja, é desigual. Há a manifestação do status libertatis ou
status negativus, albergando, assim, o princípio da liberdade.5
Devido ao caráter negativista do Estado, o direito de propriedade foi
entendido como absoluto, divino, natural, inalienável e imprescritível, não
sendo objeto de qualquer encargo. O proprietário era livre para usar, gozar e
dispor da coisa da melhor maneira que lhe aprouvesse.
O pensamento liberal tinha como pressuposto basilar a supremacia do
indivíduo. Para enfrear o poder do soberano, a melhor maneira encontrada foi
a codificação do ordenamento jurídico. A França é o melhor exemplo desse
legalismo, pois esse país estava enfrentando uma revolução em que se eviden3
4
5
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 96.
BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 68.
PUHL, Adilson Puhl. Princípio da proporcionalidade ou razoabilidade: como instrumento assegurador dos direitos e garantias fundamentais de valores no caso concreto. São Paulo: Pilares,
2005. p. 127-130.
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ciava a ruptura da velha ordem, a Revolução Francesa. O Código de Napoleão era centrado no indivíduo, tendo como objetivo proteger sua vontade
particular e livrá-lo de interferências estatais desnecessárias. Salvaguardar o
indivíduo da intervenção do Estado em sua propriedade era um dos seus fins,
pois protegido contra o Poder Público, protegido plenamente ele estaria.6
A Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916 - antigo Código Civil - foi
baseada no Código de Napoleão. A essa época, a propriedade deveria ser entendida como um direito absoluto, consolidando uma posição extremista. O
art. 524 do antigo Código Civil declara que “a lei assegura ao proprietário o
direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem
quer que injustamente os possua”. A seguir, no art. 525, enuncia que “é plena
a propriedade quando todos os seus direitos elementares se acham reunidos
no do proprietário”.
Durante o Estado Liberal, a propriedade e o desenvolvimento caminhavam conjuntamente. A liberdade individual preponderava frente à proteção
ecológica. Assim, o proprietário poderia exercer seu direito de propriedade
contra todos. O meio ambiente era entendido como mais um bem por cujo
intermédio o homem poderia auferir lucros. A busca do desenvolvimento
econômico fez com que a propriedade fosse usada de forma exacerbada, sem
responsabilidade alguma, sem qualquer menção à função social. Nesse momento, não há qualquer preocupação com danos ambientais, muitos menos
com a titularidade difusa e intergeracional do meio ambiente. 7
As críticas quanto ao Estado Liberal são voltadas para o cunho liberalista.
Não houve qualquer comprometimento com a coletividade por prevalecer o
individualismo. Nesse período, a degradação ambiental foi intensa, causando
prejuízo na qualidade de vida, favorecendo a emergência da necessidade de
um Estado interventor para atuar na sociedade e, assim, garantir a igualdade
material entre os indivíduos.
A política absenteísta do Estado e a liberdade individual causaram a
desigualdade social, provocando o surgimento dos movimentos proletários.
O grande desenvolvimento econômico fez aumentar a discrepância entre as
classes sociais, porquanto sua ocorrência se verificou à margem da exploração
de uma parte da população, os oprimidos. Os trabalhadores exerciam suas
atividades laborais em condições indignas para atender à demanda imposta
6
7
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do Direito. Tradução e
notas: Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 2006. p. 64.
BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Hermenêutica Jurídica Ambiental. São Paulo:
Saraiva, 2011. p. 75.
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pelo mercado. Ambiente insalubre de trabalho, poucas horas para descanso
e trabalho infantil são algumas das causas para essa mobilização social. Para
combater essa situação, os proletários reivindicaram seus direitos básicos e clamaram pelo desenvolvimento e implementação de políticas públicas ativistas.8
Nos termos de Bonavides9, “o velho liberalismo, na estreiteza de sua formulação habitual, não pôde resolver o problema essencial de ordem econômica das vastas camadas proletárias da sociedade, e por isso entrou irremediavelmente em crise”.
A liberdade tão propagada pelo liberalismo não foi capaz de garantir a
igualdade entre os membros de uma sociedade – afinal, não há que se falar em
igualdade material se apenas uma parcela da população é privilegiada por tal
liberdade. Tratava-se, na verdade, de uma igualdade simplesmente formal, que
era “da boca para fora”.10
Nesse contexto, é instituído o Estado Social com o fim de se obter igualdade e justiça social com a observância dos direitos fundamentais de segunda
geração: o econômico, o cultural e o social. A Revolução Industrial é o marco da passagem do Estado Liberal para o Social. Segundo os ensinamentos
de Bonavides, passa-se “do governo de uma classe, ao governo de todas as
classes”.11 Esse caráter social, portanto, requer uma ação positiva (status positivus) por parte do Estado para suprir as necessidades sociais.
Nas lições de Soares, “o status civitatis ou positivo (direito a algo) permite aos cidadãos exercer perante o Estado, o equivalente a poder reclamar
comportamento positivo dos poderes públicos para a defesa de seus direitos
civis”.12 O autor, ao lembrar as lições de Jellinek, leciona acerca da linha ascendente entre o indivíduo e a evolução estatal:
[...] primeiro, o indivíduo obrigado à obediência aparece privado de personalidade; depois, obtém uma esfera independente, livre do Estado; a seguir, o próprio
Estado obriga-se a prestações positivas para com o indivíduo; e, por último, a vontade individual é chamada a participar no exercício do poder político, reconhecida
como investida no imperium do Estado.13
BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 6. ed. São Paulo: Malheiros,
1996. p. 188.
9 Ibid., p. 188.
10 MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. 2. ed. São Paulo: Atlas,
2009. p. 46.
11 BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 43.
12 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: novos paradigmas em face da globalização. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 181.
13 JELLINEK, 1954, p. 313 apud ibid., p. 182.
8
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Urge, então, uma intervenção do Estado para proporcionar aos indivíduos da sociedade um mínimo necessário para garantir-lhes uma vida digna.
Essas circunstâncias originam a ideia do mínimo existencial. O Estado deve
proporcionar aos indivíduos as necessidades básicas para que esses possam se
manter com vida. Bonavides leciona que os direitos de segunda geração são
aqueles que se evidenciam por meio do Estado e não contra o Estado.14
A propriedade, que era entendida como absoluta e ilimitada no Estado
Liberal, começa a se voltar ao cumprimento de uma função social no Estado
Social, mesmo que com um viés bem frágil. As normas eram previstas em leis
esparsas e ainda não possuíam um status constitucional. Houve um avanço em
relação ao Código Civil de 1916: a relativização do conceito de propriedade
por haver a necessidade de observância à função social. Reconheceu-se, então,
a preocupação com a coletividade e o interesse público.15 Sobre a função social da propriedade, assim explica Leal:16
A função social da propriedade consiste, pois, no reconhecimento de que o proprietário, como membro de uma comunidade, tem não apenas direitos mas obrigações relativamente aos outros membros, devendo cuidar da coisa para que mantenha a sua produtividade, enfim, para que dê frutos que atendam às suas próprias
necessidades e de, modo indireto ou direto, satisfaçam as necessidades dos outros
membros do organismo social.
Contudo, ainda não foi nesse período que os direitos de segunda geração
foram efetivados, pois o Estado Social foi regido pelo dever ser, não se aplicando ao mundo do ser, dos fatos. As normas programáticas apenas apontavam
a direção das políticas públicas, mas não foram capazes de concretizá-las. As
normas eram vazias de conteúdo e não havia efetividade social.
No decorrer da evolução estatal, foi instaurado o Estado Democrático de
Direito. Por “Democrático” entende-se que os governantes devem se submeter à vontade do povo, enquanto que a expressão “de Direito” diz respeito ao
dever dos governantes de obediência às normas.
O Brasil, ao promulgar a Constituição Federal de 1988, foi mais além do
que simplesmente elaborar uma constituição social, haja vista que, em seu art.
1º, III, albergou o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos
fundamentos desta República, ainda que haja outros direitos que precisam de
efetivação, sem prejuízo daqueles sociais. O princípio da dignidade humana
é o eixo central dos direitos fundamentais, irradiando sua essência para os
14 BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 641.
15 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 45
16 LEAL, César Barros. A função social da propriedade. Fortaleza: Ioce, 1981. p. 27.
280
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demais. 17
O caráter dirigente previsto no Estado Social cede lugar, no Estado Democrático, a uma atuação incisiva com o objetivo de efetivar os direitos fundamentais. Busca-se atingir a igualdade material entre os membros da comunidade e não apenas a meramente formal.
A preocupação com a coletividade e não mais apenas com o indivíduo
em si considerado fez com que surgissem os direitos fundamentais de terceira
geração. Nesse momento, o interesse que deve prevalecer é o coletivo e não
mais o individual. O titular do direito é indeterminado e indefinido, devido
ao caráter difuso que os bens possuem. A fraternidade e a solidariedade entre
as pessoas e os povos imperam.18 Nessa senda, assim esclarece Bonavides:
Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos da terceira
geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se
destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo
ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano
mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta.19
Não há mais como falar de interesses de um indivíduo isolado, pois todos estão
interligados em uma mesma aldeia global, havendo feixes de direitos e obrigações
comuns. Dessa forma, fala-se em tutela dos direitos difusos e coletivos, dentre os
quais o direito ao meio ambiente.
As constituições democráticas são dotadas de conteúdos valorativos em
seu bojo para a concretização dos direitos fundamentais. O meio ambiente
ecologicamente equilibrado é um desses axiomas instaurado com a ordem
democrática, cuja manutenção é essencial para uma boa qualidade de vida.
Sobre o direito ao equilíbrio ecológico, ensina Silva:
Não tem uma dimensão negativa garantística, como os direitos individuais, nem
apenas uma dimensão positiva e prestacional, como os direitos sociais, porque é,
ao mesmo tempo, direito positivo e negativo; porque, de um lado, requer que o
poder público seja um garantidor da incolumidade do bem jurídico, ou seja, a
qualidade do meio ambiente em função da qualidade de vida. Por isso é que, em
tal dimensão, não se trata de um direito contra o Estado, mas de um direito em
face do Estado, na medida em que este assume a função de promotor do direito
mediante ações afirmativas que criem as condições necessárias ao gozo do bem
jurídico chamado qualidade do meio ambiente.20
17 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 86.
18 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 569.
19 Ibid., p. 569.
20 SILVA, José Afonso. Direito ambiental constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 52.
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A norma matriz ecológica está localizada no art. 225 da Carta Magna. Foi
somente com a Carta Política de 1988 que essa matéria alcançou o ápice do ordenamento jurídico. Por mais que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado não esteja expressamente presente no art. 5º da Constituição
Federal, é dominante o entendimento de que tal direito é considerado como
fundamental, pois o rol enunciado como direitos e garantias individuais posto
no art. 5º da CF/1988 não é exaustivo, mas meramente exemplificativo.21
O § 2º do art. 5º da CF/1988 é uma cláusula de abertura que propaga
a inclusão do sistema internacional de proteção aos direitos humanos, bem
como dos princípios adotados constitucionalmente. Por isso, deduz-se que
o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito fundamental, mesmo tendo seu eixo central no art. 225 da CF/88 e não no rol de
garantias e direitos individuais.22
Compatibilizar o meio ambiente sadio com o direito de propriedade talvez seja o maior desafio da contemporaneidade. Na tentativa de harmonizar
esses dois direitos, redimensionou-se o conceito de propriedade para adaptá-la
aos ditames ambientais.
A vigente Constituição diferencia-se das demais por explicitar um contexto sólido referente ao direito de propriedade, bem como a sua função social.
As anteriores, quando se debruçavam sobre a matéria, possuíam uma abordagem bastante frágil. De acordo com o texto constitucional hodierno, a função
social é um elemento da propriedade, pois o proprietário possui o poder-dever
de cumprir sua função social. Sundfeld assim disserta acerca do assunto:
[..] ao acolher o princípio da função social da propriedade, o Constituinte pretendeu imprimir-lhe uma certa significação pública, vale dizer, pretendeu trazer
ao Direito Privado algo até então tido como exclusivo do Direito Público: o condicionamento do poder a uma finalidade. Não se trata de extinguir a propriedade
privada, mas de vinculá-la a interesses outros que não os exclusivos do proprietário. [...] Importa notar que, como conseqüência da submissão da propriedade,
ou do proprietário, a objetivos sociais – evidentemente obrigatórios – criam-se
verdadeiros deveres.23
Nesse momento, um novo paradigma é adotado para o Direito Civil
com a promulgação da Carta de 1988: a constitucionalização do Direito Ci21 BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Hermenêutica Jurídica Ambiental. São Paulo: Saraiva,
2011. p. 103.
22 BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Hermenêutica Jurídica Ambiental. São Paulo: Saraiva,
2011. p. 103.
23 SUNDFELD, 1991, p. 5 apud BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Hermenêutica Jurídica
Ambiental. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 81.
282
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vil. As normas infraconstitucionais não podem mais serem examinadas isoladamente, devendo ter seus valores consubstanciados na Lei Maior.
Antes da Constituição atual, o Código Civil, baseado no Código de Napoleão, era o eixo central das relações patrimoniais. Com a Constituição de
1988, ao proclamar a dignidade da pessoa humana como um dos princípios
fundantes desta República, o constituinte alterou a estrutura do direito civil
clássico, estabelecendo que, a partir de então, os particulares devem obediência à sistemática constitucional em prol de uma solidariedade social e não
mais exclusivamente ao Código Civil, de cunho meramente privado.
A função social da propriedade corresponde à relação entre a proteção da
propriedade individual e à sua utilização conforme as expectativas da sociedade. Não objetiva, portanto, retirar a propriedade do indivíduo. Trata-se de
uma relação bilateral, em que deveres do proprietário e do Estado estão umbilicalmente ligados para, dessa forma, atender ao bem-estar da coletividade.
No azo, cabe fazer um paralelo entre direito de propriedade e direito à
propriedade, ambos encontrados na Constituição. A primeira espécie consiste
no direito subjetivo de o proprietário possuir o seu bem, consistindo em uma
satisfação pessoal. Localiza-se no caput do art. 5º da CF/1988. Os demais
dispositivos se referem à segunda modalidade, entendida como um meio para
o exercício da atividade econômica.24
Hoje, a doutrina majoritária entende que a função social da propriedade
não meramente limita a propriedade. Ela é condição estruturante e integra a
propriedade, assim, aquele que não cumpre a função da propriedade não pode
ser denominado de proprietário, porquanto nem mesmo a possui.
A propriedade, hoje, está intrinsecamente relacionada à sua função social
na Constituição de 1988, conforme os arts. 5º, XXII e XXIII, e art. 170, II
e III. Além dos dispositivos constitucionais, a primeira parte do § 1º do art.
1.228 assevera que “o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais”. Dallari explana que não
houve apenas uma mera mudança de paradigmas no que tange à propriedade;
na prática, a mudança foi muito mais intensa, pois o direito de propriedade
passou a ter características públicas e não apenas privadas, como outrora.25
2 Gerações versus dimensões
24 BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Hermenêutica Jurídica Ambiental. São Paulo: Saraiva,
2011. p. 23.
25 DALLARI, Adilson Abreu. Solo criado: constitucionalismo da outorga onerosa de potencial construtivo. In: DALLARI, Adilson Abreu; DI SARNO, Daniela Campos Libório. (Coords.). Direito
urbanístico e ambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 27.
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Esclarece-se, momentaneamente, a divergência doutrinária entre os termos geração e dimensão. Primeiramente, utilizou-se, para denominar os direitos em estudo, a expressão “teoria das gerações dos direitos”, de autoria do
jurista Karel Vasak. O termo “geração” foi um resgate do lema da Revolução
Francesa: “liberdade, igualdade e fraternidade”.26
Posteriormente, essa nomenclatura recebeu críticas por transparecer a
ideia, inverídica, de que um direito substitui o outro; ao contrário, eles se
complementam. Nos termos de Marmelstein, “na verdade, todo o Estado Democrático de Direito é alicerçado nos direitos de primeira geração, de modo
que seria inconcebível que eles cedessem lugar aos direitos de segunda geração. O processo é de acumulação e não de sucessão”.27
Outra crítica recorrente é no sentido de que a expressão “geração” sugere
que, para se implantar uma nova, há a necessidade de amadurecimento da
anterior, dificultando, assim, o reconhecimento de novos direitos.28 Essa a
razão pela qual alguns autores preferem utilizar a expressão “dimensão” do
que “geração”. Neste trabalho, contudo, não há a adoção ou se demonstra
preferência por qualquer termo.
3 Estado de direito ambiental e função ambiental autônoma
Objetivamente, o Estado de Direito Ambiental caracteriza-se pela forte
conscientização da importância de se contar com um meio ambiente ecologicamente equilibrado, por Estado, empresas e sociedade. Todos os cidadãos
são titulares dos direitos fundamentais de terceira geração, devendo, portanto,
prestar o compromisso de proteger o meio ambiente.
No final do século XX, várias foram as cartas internacionais que proclamaram a necessidade e o interesse de seus países na proteção ambiental. Devido a tal repercussão, muitas constituições abordaram o meio ambiente, na
expectativa de implantar uma cultura ambientalista, bem como de propagar
valores ecológicos. Manter um meio ambiente sadio é necessário para se obter
qualidade de vida.
A qualidade ambiental deve estar inserida dentro dos contornos apresentados pela dignidade da pessoa humana, pois só com um estágio mínimo de
qualidade ambiental é que se alcançará um desenvolvimento humano digno
e, por conseguinte, o bem-estar social. Um novo modelo de Estado deve ser
26 MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. 2. ed. São Paulo: Atlas,
2009. p. 41.
27 Ibid., p. 57.
28 Ibid., p. 56-57.
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pensado, no qual se verifique a convergência de todos os direitos conquistados
até o presente momento somada ao viés ambiental.
A doutrina majoritária já entende o meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito fundamental. Além disso, prega a proteção ambiental como uma das tarefas estatais, no que se denomina o direito-dever ambiental. É objetivo do Estado, assim, defender o seu povo contra as violações aos
direitos fundamentais, inclusive ao meio ambiente sadio. 29
Não incumbe somente ao Poder Público, mas também à coletividade
a função de zelar pelo meio ambiente. Nos termos de Benjamin, “progresso
imensamente maior foi a coletividade conquistar a posição de poder dividir
com o Estado as responsabilidades ambientais. O triunfo do particular foi
trazer a si parcela do exercício da função ambiental”.30
Na mesma senda, assevera Machado que “a presença e a atuação da
sociedade civil na defesa do meio ambiente revela-se como uma das marcas
inconfundíveis do novo Direito Ambiental”.31
A instituição do Estado Ambiental de Direito não marca um rompimento com o Estado Democrático de Direito, antes, o complementa, tentando
suprir suas carências, na medida em que institui uma sadia qualidade de vida.
O Estado Democrático se mostra incapaz de combater a sociedade de risco,
haja vista que já esgotou todas as suas energias.32
O impacto ambiental decorrente das incertezas científicas constitui um
novo paradigma que faz emergir um novo modelo de Estado, visando, assim,
redimensionar a figura do Estado e do Direito para garantir a proteção ambiental e, por conseguinte, a humana.
Em uma sociedade tipicamente capitalista, não é fácil fazer uma abordagem sobre o Estado de Direito Ambiental, pois interesses econômicos entram
em conflito com a proteção ambiental. Os recursos naturais são finitos, enquanto que o desejo pelo lucro é ilimitado. Além desse óbice, o Direito Ambiental possui diversos conceitos vagos e abstratos que impedem a sua efetiva
implantação. Na verdade, não se deve abster desse debate por se entender que
o assunto é romântico e utópico. A reiterada discussão causa maturidade e
pode servir como meta a ser alcançada ou, pelo menos, aproximada.
29 BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Hermenêutica Jurídica Ambiental. São Paulo: Saraiva,
2011. p. 112.
30 BENJAMIN, 1993, p. 51 apud MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 129.
31 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 16. ed. São Paulo: Malheiros,
2008. p. 129.
32 GOLDBLATT, David. Teoria social e ambiente. Trad. Ana Maria André. Lisboa: Piaget, 1998. p. 237.
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Com o debate reiterado sobre a instituição desse novo modelo estatal,
Estado e sociedade são capazes de se conscientizarem das situações de risco
que a natureza enfrenta para, assim, atuarem, prevenindo-as.
O desenvolvimento do Estado de Direito Ambiental vem com a atuação do Estado em conjunto com a da sociedade. O Estado não possui forças
para, sozinho, garantir a preservação do meio ambiente. É preciso, portanto,
a conscientização de todos acerca da gravidade da crise ambiental para a mobilização generalizada: o Estado desenvolvendo políticas públicas ambientais e
os cidadãos exercendo uma responsabilidade solidária e participativa por meio
de uma democracia ambiental.33
A nova dimensão imposta pelo Estado Ambiental atinge a propriedade,
pois ela é relativizada para atender à função social em prol da coletividade.
Fala-se, então, da função ambiental da propriedade como uma função autônoma. A função ambiental da propriedade pode ser definida como o conjunto
de atos praticados pelo proprietário e pelo Poder Público, em benefício da
coletividade, titular absoluta do direito difuso ao meio ambiente. 34
Há um entendimento de que o novo Código Civil aborda a função ambiental da propriedade em seu art. 1.228, §1º, segunda parte, ao elencar a
observância da proteção à flora, à fauna, à preservação das belezas naturais, à
manutenção do equilíbrio ecológico e à preservação do patrimônio histórico
e artístico para o exercício de propriedade.
O princípio da função ambiental da propriedade possui duas dimensões:
a negativa e a positiva. Ao proibir o proprietário de prejudicar terceiros e a
qualidade ambiental, caracteriza-se o aspecto negativo. Já quando a função
social e ambiental garante ao proprietário o seu efetivo exercício em prol da
coletividade e do meio ambiente, consubstancia-se o caráter positivo. 35
A nova concepção abordada pelo Estado de Direito Ambiental prega que
cabe àquele que exerce o direito de propriedade a prática de obrigações positivas para atender à sistemática constitucional.
De acordo com essa nova abordagem no que tange à função socioambiental no direito de propriedade, seguem-se os ensinamentos de Leite e Ayala:
33 CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. pp. 153-154.
34 ROCHA, Leonel Severo. Uma nova forma para a observação do direito globalizado: policontextualidade jurídica e Estado Ambiental. In: CARLIN, Volvei Ivo. (Org.). Grandes Temas de Direito
Administrativo: homenagem ao Professor Paulo Henrique Blasi. Campinas: Millenium, 2009. p. 527.
35 BELCHIOR, Germana Parente Neiva; MATIAS, João Luis Nogueira. Propriedade, meio ambiente e empresa: dos condicionamentos ao exercício da empresa em razão do direito ambiental.
In: WACHOWICZ, Marcos; MATIAS, João Luis Nogueira. Propriedade e meio ambiente: da
inconciliação à convergência. Florianópolis: Fundação Boitex, 2011. p. 11.
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[...] através dessa mudança de perfil, a propriedade passa da esfera individual de
uso absoluto para a função social ambiental, que corresponde ao uso desta de acordo com os interesses da coletividade, incluindo o uso, e não abuso, do bem pelo
proprietário, consubstanciando na proteção dos bens ambientais indispensáveis,
considerando a preservação do bem comum de todos.
Ressalta-se, nesse momento, que o exercício da função autônoma ambiental da propriedade não implica a abstenção de todas as conquistas sociais
alcançadas até o momento. Muito pelo contrário, a função socioambiental
é um complemento da função social, instituída no Estado Democrático de
Direito, na qual se inserem outros valores como a solidariedade e a sustentabilidade até então ausente na função social pura da propriedade. Germana
Belchior esclarece essa questão:36
O Estado Ambiental continua sendo um Estado Democrático de Direito. A única
(e fundamental) diferença são os acréscimos do novo princípio da solidariedade
e do valor-base da sustentabilidade, implicando uma visão holística entre os elementos já existentes. Assim, o princípio da solidariedade atuará de forma conjunta
com o princípio da legitimidade (“Estado Democrático”), em prol do valor justiça, e com o princípio da juridicidade (“Estado de Direito”) ao manifestar o valor
segurança jurídica (BECHIOR; MATIAS, 2009, p. 2290). 37
Entre as diferenças entre função social pura da propriedade e função
socioambiental está a extensão do conceito de propriedade, bem como a imbricação do equilíbrio ambiental ao conceito de propriedade.
O constituinte, ao discorrer sobre a função social, não aborda o meio
ambiente sadio. Ele utiliza a expressão equilíbrio ambiental. Dessa forma, a
função social da propriedade está diretamente relacionada com o equilíbrio
ambiental, sendo um dos elementos da função social da propriedade, haja vista
que a Constituição e as leis infraconstitucionais fazem previsão sobre o tema.
Já a função ambiental está intimamente relacionada ao meio ambiente sadio.
O legislador ultrapassou a vertente social ao impor novas obrigações ao
proprietário de qualquer bem, criando, assim, a função ambiental autônoma.38
Dessa forma, a função ambiental pode ser entendida como um prolongamento da função social pura da propriedade, na medida em que se acrescentam novos feixes de direitos e obrigações impostos pelo Novo Código Civil,
tal como a garantia da flora.
36 LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. Teoria e prática. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 33.
37 BELCHIOR, Germana Parente Neiva; MATIAS, João Luis Nogueira. Op. cit., p. 2.290.
38 BELCHIOR, Germana Parente Neiva; MATIAS, João Luis Nogueira. Fundamentos teóricos do
estado de direito ambiental. Anais do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Direito. São Paulo, 2009. p. 337.
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Instrumentos hermenêuticos para resolver a colisão entre os direitos
de propriedade e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e o direito de
propriedade são dois direitos fundamentais, como visto ao longo deste artigo.
Para solucionar alguma colisão que porventura se evidencie entre eles o intérprete deve se valer de alguns instrumentos hermenêuticos que são os apresentados no caso concreto: sopesamento e ponderação, bem como o princípio da
proporcionalidade, posteriormente.
O sopesamento visa compatibilizar os bens envolvidos. Segundo Alexy,
“o objetivo desse sopesamento é definir qual dos interesses – que abstratamente estão no mesmo nível – tem maior peso no caso concreto”.39
Ao discorrer sobre o assunto, o mesmo autor ensina que “é necessário
decidir qual interesse deve ceder, levando-se em consideração a configuração
típica do caso e suas circunstâncias especiais”.40 A colisão entre os princípios
não implica a exclusão do princípio não aplicado do ordenamento, pois ambos devem coexistir por força do princípio da unidade da constituição, haja
vista a não existência de hierarquia entre os princípios. Dessa forma, por se
tratar de um direito fundamental, deve-se aproveitar o máximo do núcleo
valorativo que circunda essa norma. Nos termos de Alexy, “princípios exigem
que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades
jurídicas e fáticas existentes. Nesse sentido, eles não contêm um mandamento
definitivo, mas apenas prima facie”.41
A ponderação está relacionada com os bens envolvidos na problemática.
Sobre o tema, Alexy esclarece que “a ponderação de bens em jogo é elemento
inevitável para o deslinde da causa, principalmente quando todos são, igualmente, dentro do Estado de Direito, titulares de direitos fundamentais”.42
Ainda sobre o liame existente entre bens e balanceamento, assevera Canotilho:
O balanceamento de bens situa-se jusante da interpretação. A actividade interpretativa começa por uma reconstrução e qualificação dos interesses ou bens conflituantes procurando, em seguida, atribuir um sentido aos textos normativos a aplicar.
Por sua vez, a ponderação visa elaborar critérios de ordenação para, em face dos
39 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São
Paulo: Malheiros, 2008. p. 95.
40 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São
Paulo: Malheiros, 2008. p. 100.
41 Ibid., p. 104.
42 ALEXY, Robert, p. 121,1997, apud PUHL, Adilson Josemar. Princípio da proporcionalidade ou
razoabilidade: como instrumento assegurador dos direitos e garantias fundamentais e o conflito de
valores no caso concreto. São Paulo: Pilares, 2005. p.181.
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dados normativos e factuais, obter a solução justa para o conflito de bens.43
A ponderação recebe críticas, uma vez que pode se caracterizar um subjetivismo por parte do intérprete. De acordo com Puhl, “a ponderação que deve
ser realizada não se perde no campo inconsistente do subjetivismo”.44 Nos
termos de Suzana de Toledo Barros:
A questão da ponderação radica na necessidade de dar a esse procedimento caráter
racional e, portanto, controlável. Quando o intérprete pondera bens em caso de
conflito entre direitos fundamentais, ele estabelece uma precedência de um sobre
o outro, isto é, atribui um peso maior a um deles. Se se pode estabelecer uma fundamentação para esse resultado, elimina-se o irracionalismo subjetivo e passa-se
para o racionalismo objetivo.45
Conforme Puhl, “os direitos fundamentais, expressos em valores, concorrem em cada qual objetivando sua supremacia em relação ao concorrente,
onde o aplicador da norma deve encontrar mediante a ponderação desses,
aquele que, no caso, mais se aproxima da ideia de justiça”.46 Além disso, o
sopesamento não deve ser entendido como subjetivo, haja vista a necessidade
de fundamentação, por parte do intérprete, de cada decisão sua.
A ponderação é realizada antes da aplicação do principio da proporcionalidade, com o fim de valorizar os bens, os valores e os interesses que permeiam a problemática. Somente após o intérprete dar um peso aos interesses
apresentados é que se encerra a fase de balanceamento, prosseguindo-se para
a aplicação do princípio da proporcionalidade com o objetivo de se alcançar o
melhor meio para a solução, conforme a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito que versam sobre o tema.
Dessa forma, somente após a aplicação dos instrumentos interpretativos
(princípios do sopesamento e da ponderação), o aplicador deverá se guiar
pelos ensinamentos de Alexy, no sentido de otimizar os princípios envolvidos,
utilizando-os na maior medida possível, de acordo com as hipóteses fáticas e
jurídicas apresentadas.
43 CANOTILHO, 1999, p. 1110 apud PUHL, Adilson Josemar. Princípio da proporcionalidade
ou razoabilidade: como instrumento assegurador dos direitos e garantias fundamentais e o conflito
de valores no caso concreto. São Paulo: Pilares, 2005. p. 177.
44 PUHL, Adilson Josemar. Princípio da proporcionalidade ou razoabilidade: como instrumento
assegurador dos direitos e garantias fundamentais e o conflito de valores no caso concreto. São
Paulo: Pilares, 2005. p. 178.
45 BARROS, Suzana de Toledo, 2000, p. 171 apud PUHL, Adilson Josemar. Princípio da proporcionalidade ou razoabilidade: como instrumento assegurador dos direitos e garantias fundamentais e o conflito de valores no caso concreto. São Paulo: Pilares, 2005. p. 178.
46 PUHL, Adilson Josemar. Princípio da proporcionalidade ou razoabilidade: como instrumento
assegurador dos direitos e garantias fundamentais e o conflito de valores no caso concreto. São
Paulo: Pilares, 2005. p. 182.
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Esses instrumentos hermenêuticos, sopesamento e proporcionalidade,
não se confundem. Sobre essa discussão, esclarece Belchior:47
O que importa destacar é que não há sopesamento de interesses, de bens e de valores na proporcionalidade. Tudo isso é feito anteriormente, na ocasião da aplicação
do principio da ponderação. O princípio da proporcionalidade é utilizado para
auxiliar o intérprete na escolha de um meio, uma medida proporcional que seja
menos sacrificante para aquele direito que não prevaleceu (respeitando o conteúdo
essencial), e otimizar ao máximo o direito que foi priorizado.
Dessa forma, é tarefa do intérprete utilizar a ponderação para conferir
peso a cada um desses valores e, nesse momento, estabelecer uma hierarquia de
valores. Tal hierarquia, contudo, não significa uma valoração permanente do
princípio em abstrato. A solução da colisão entre os princípios fundamentais
se dará de acordo com as peculiaridades mostradas em cada caso em particular.
Conforme os ensinamentos de Alexy, “duas normas levam, se isoladamente consideradas, a resultados contraditórios entre si. Nenhuma delas é
inválida, nenhuma tem precedência absoluta sobre a outra. O que vale depende da forma como será decidida a precedência entre elas no caso concreto”.48
O princípio da proporcionalidade estabelece o compromisso de enfatizar o núcleo
essencial de um dos princípios em colisão, mas respeitando esse último que não
prevaleceu. Fala-se, então, em uma função negativa, ao limitar a atuação dos órgãos estatais, e uma positiva, de observância do conteúdo da proporcionalidade.
Consiste, pois, em um princípio jurídico-material de justa medida.49
Nos termos de Steinmetz, “o principio da proporcionalidade é um princípio concretizador da ideia de justiça presente no princípio do Estado de Direito,
aplicado diretamente no caso concreto, tendo em vista os bens em conflito”.50
O referido princípio visa ajudar o operador na escolha de um meio que
seja menos oneroso para aquele direito que não prevaleceu, respeitando o seu
conteúdo, bem como otimizar ao máximo o direito que não foi priorizado.
Sobre o princípio da proporcionalidade, afirma Bonavides:51
47 BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Hermenêutica Jurídica Ambiental. São Paulo: Saraiva,
2011. p. 256.
48 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São
Paulo: Malheiros, 2008. p. 101.
49 STUMM, Raquel Denize. O princípio da proporcionalidade do Direito Constitucional Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995. p. 121-122.
50 STEINMETZ, 2001, p. 160 apud PUHL, Adilson Josemar. Princípio da proporcionalidade ou
razoabilidade: como instrumento assegurador dos direitos e garantias fundamentais e o conflito de
valores no caso concreto. São Paulo: Pilares, 2005. p.183
51 BONAVIDES, 2000, p.387 apud PUHL, Adilson Josemar. Princípio da proporcionalidade ou
razoabilidade: como instrumento assegurador dos direitos e garantias fundamentais e o conflito de
valores no caso concreto. São Paulo: Pilares, 2005. p.188.
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O princípio da proporcionalidade é tópico, volve-se para a justiça do
caso concreto ou particular, se aparenta consideravelmente com a equidade e
é um eficaz instrumento de apoio às decisões judiciais que, após submeterem
o caso a reflexões prós e contras (Abwagung), a fim de averiguar se na relação
entre meios e fins não houve excesso, concretizam assim a necessidade do ato
decisório de correção.
Humberto Ávila, por sua vez, entende que a proporcionalidade não é
um princípio, mas uma metanorma ou norma de segundo grau, haja vista seu
caráter metódico dirigido ao intérprete na aplicação de outras normas. Nesse
sentido, explica o autor:52
Os postulados normativos aplicativos são normas imediatamente metódicas que
instituem os critérios de aplicação de outras normas situadas no plano do objeto da
aplicação. Assim, qualificam-se como normas sobre a aplicação de outras normas,
isto é, como metanormas. Daí se dizer que se qualificam como normas de segundo
grau. Nesse sentido, sempre que se está diante de um postulado normativo, há um
diretriz metódica que se dirige ao intérprete relativamente à interpretação de outras
normas. Por trás dos postulados, há sempre outras normas que estão sendo aplicadas.
A doutrina divide o principio da proporcionalidade em três subprincípios: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
De acordo com Alexy, “as máximas da adequação e da necessidade expressam a exigência – contida na definição de princípio – de uma máxima
realização às possibilidades fáticas”.53 Esses dois subprincípios se referem a
uma relação meio-fim.54
Ao dissertar sobre a adequação, Alexy explica que entre uma gama de
opções de instrumentos capazes de alcançar o fim estabelecido pela norma, o
subprincípio da adequação possui um caráter negativo, na medida em que vai
excluir aqueles que não são aptos para se atingir o fim. Compara-se com uma
moldura, haja vista que os fatos nela não enquadrados podem ser excluídos.
Assim, leciona o autor:
O aspecto da otimização presente na máxima da adequação não aponta para um
ponto máximo. Essa máxima tem, na verdade, a natureza de um critério negativo.
Ela elimina meios não adequados. Um tal critério negativo não determina tudo,
mas exclui algumas coisas. Nesse sentido, ele ajusta-se à ideia de uma ordem-moldura. Como elemento de uma ordem como essa, ele exclui algumas coisas – a
saber: aquilo que não é adequado – sem, com isso, determinar tudo.55
52 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8. ed.
São Paulo: Malheiros, 2008. p. 122.
53 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São
Paulo: Malheiros, 2008. p. 588.
54 Ibid., p. 591.
55 Ibid., p. 90.
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Diferencia-se o subprincípio da adequação do da necessidade, haja vista
que esse último não atua no sentido de eliminar os meios. No que tange à necessidade, Alexy explica: “ela exige que, dentre dois meios aproximadamente
adequados, seja escolhido aquele que intervenha de modo menos intenso”.56
Em outros termos, se há dois meios que podem ser usados em determinado
caso, deve-se valer daquele que não ocorra às custas da outra posição. De
acordo com Carvalho Filho, “o meio escolhido é o que causa menor prejuízo
possível para os indivíduos”.57
Pois, nos moldes dos ensinamentos de Alexy, “isso não é nenhuma otimização em direção a algum ponto máximo, mas apenas a vedação de sacrifícios
desnecessários a direitos fundamentais”.58 O princípio da necessidade visa à
menor ingerência possível do direito fundamental que não prevaleceu, sendo,
pois a medida menos gravosa ao direito em questão”.59
Conforme o exposto, segundo Alexy, por serem mandamentos de otimização, “os princípios exigem uma relação mais ampla possível em face não
apenas das possibilidades fáticas, mas também em relação às possibilidades
jurídicas”.60 Essas últimas são representadas pelos princípios colidentes, que
podem ser expressados pelo último subprincípio da proporcionalidade em
sentido restrito, exprimindo, dessa forma, o significado da otimização em relação aos princípios colidentes.
Por fim, conforme Carvalho Filho, o princípio da proporcionalidade em
sentido estrito ocorre quando “as vantagens a serem conquistadas superarem
as desvantagens”.61 Dessa forma, o intérprete, ao seguir o rito dos subprincípios da proporcionalidade, chegará ao meio mais compatível à aplicação no
caso concreto, pois o número de hipóteses no início do processo hermenêutico vai sendo reduzido a cada subprincípio apresentado.
É incontestável o valor do meio ambiente equilibrado, haja vista ser ele
um bem condicionante para a manutenção da vida e, por conseguinte, da
liberdade de iniciativa e da propriedade. O intérprete deve se pautar em uma
56 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São
Paulo: Malheiros, 2008. p. 591.
57 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 38.
58 ALEXY, Robert. Op. cit., p. 591.
59 BELCHIOR, Germana Parente Neiva; KRELL, Andreas Joachim. Os princípios da ponderação e
da proporcionalidade: instrumentos para solucionar conflitos normativos que envolvem o direito
fundamental a um meio ambiente sadio. Anais do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Direito. São Paulo, 2009. p. 2.724.
60 ALEXY, Robert. Op. cit., p. 593.
61 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Op. cit., 2011. p. 38.
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hermenêutica ambiental com os seus conceitos inerentes: responsabilidade
intergeracional, educação ambiental e racionalidade ecológica.
Porém, todas essas características constituem uma pré-compreensão formulada a partir de uma ética antropocêntrica alargada. Não significa, portanto, que sempre haverá a prevalência do bem ambiental. Assim, Belchior
e Krell explicam que o “que se defende é uma primariedade relativa, ou seja,
inicial do meio ambiente, o que deve orientar o intérprete”.62
Não há como definir que sempre um prevalecerá. Na verdade, a moldura deôntica apresentada com a problemática será preenchida pelo intérprete
conforme os interesses sociais, morais, culturais e econômicos de determinada
questão.
5
Arie dunas do cocó: uma abordagem conceitual, histórica e
geográfica
Com o fim de conferir proteção às dunas do bairro do Cocó, o Vereador
João Alfredo Telles Melo iniciou o processo legislativo que resultou na Lei
Ordinária nº 9.502/2009 do Município de Fortaleza. Criou, assim, uma Área
de Relevante Interesse Ecológico |(ARIE) Dunas do Cocó. Nos termos do
art. 16 da Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza
(SNUC), a área de Relevante Interesse Ecológico é definida como:
[...] uma área de pequena extensão, com pouca ou nenhuma ocupação humana,
com características naturais extraordinárias ou que abriga exemplares raros da biota regional, e tem como objetivo manter os ecossistemas naturais de importância
regional ou local e regular o uso admissível dessas áreas, de modo a compatibilizá-lo com os objetivos de conservação da natureza.
Ainda no art. 16 da Lei do SNUC, o legislador municipal estabelece
que a ARIE pode ser constituída em terras públicas ou privadas. Assim, o
proprietário possui o dever de proteger o meio ambiente por causa da função
ambiental que é inerente ao conceito de propriedade. O objetivo da ARIE
é um prolongamento da função social da propriedade, alcançando um viés
ambiental, como já explanado acima.
Conforme notícias divulgadas no jornal Diário do Nordeste, no dia 1º
de abril de 2011, de autoria da jornalista Thays Lavor, a área se localiza nos
limites da Rua Sebastião de Abreu, da Avenida Padre Antônio Tomás, da Ci62 BELCHIOR, Germana Parente Neiva; KRELL, Andreas Joachim. Os princípios da ponderação e
da proporcionalidade: instrumentos para solucionar conflitos normativos que envolvem o direito
fundamental a um meio ambiente sadio. Anais do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Direito. São Paulo, 2009. p. 2.719.
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dade Dois Mil e do Rio Cocó. 63
De acordo com o parecer elaborado pela Professora Vanda de Claudino
Soares em janeiro de 2009, a topografia do terreno é apresentada entre 15
metros e 30 metros, caracterizando, dessa forma, a existência de dunas. 64
As dunas costeiras resultam da ação do vento, pois, com a movimentação
do ar, as areias que estão disponíveis na faixa de praia são deslocadas para o
interior da zona costeira. Assim, areias são acumuladas de formas variadas:
“móveis (com migração contínua das areias), fixas (associadas à presença de
cobertura vegetal litorânea e costeira, que imobiliza os sedimentos) e semi-fixas (com encostas ou dorsos parcialmente móveis, parcialmente fixos)”.65
Segundo esse parecer, as dunas datam de 1,3 a 1,7 mil anos. As dunas
parabólicas jamais vão se desenvolver novamente na cidade de Fortaleza por
causa da limitação do espaço natural, bem como o grau de urbanização em
que a cidade se encontra. Somado a esse fator, as dunas atuais foram formadas
com outras condições climáticas diferente das hodiernas. Além do impedimento de uma futura formação de terreno dunar na zona costeira do Ceará,
existe um risco iminente da destruição dos exemplares atuais. Conclui-se, então, que o terreno de dunas formado no bairro do Cocó constitui um remanescente do campo de dunas milenar, de preciosidade natural e ambiental.66
Por todos os motivos expostos, essa área deve ser preservada para se constituir e garantir um patrimônio ambiental no Município de Fortaleza, harmonizando-se, assim, os interesses da população com os do meio ambiente.
Dessa forma, algumas intervenções antrópicas devem ser vedadas para a preservação das belezas naturais. O que se busca, então, é a ocupação sustentável
dessa área, compatibilizando-se os interesses ecológicos e sociais.67
6
O Embate judicial e o político
A Associação Cearense dos Construtores e Loteadores (ACECOL) ajuizou uma ação direita de inconstitucionalidade, em 7 de outubro de 2009, em
face da Lei Ordinária do Município de Fortaleza nº 9.502, de 7 de junho de
2009, que versa sobre a implantação da Área de Relevante Interesse Ecológico
(ARIE) Dunas do Cocó.
63 LAVOR, Thays. TJ reconhece dunas do Cocó como de interesse ecológico. Disponível em: <
http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=956694>. Acesso em: 11 de jan. 2012
64 SALES, Vanda Claudino. Parecer Técnico Ambiental sobre Terreno de Dunas no Bairro Cocó,
Fortaleza, Ceará. Fortaleza, 2009. p. 17.
65 Ibid., p. 17.
66 Ibid., p. 21.
67 Ibid., p. 30.
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O processo nº 33345-03.2009.8.06.0000/0, cujo relator foi o Desembargador Paulo Camelo Timbó, consistiu na primeira ação de constitucionalidade em matéria ambiental julgada pelo Tribunal de Justiça do Ceará, sendo,
portanto, objeto de suma importância para o presente estudo, pois foi a oportunidade em que o Poder Judiciário cearense se pronunciou, contribuindo
para a solidificação da jurisprudência ambiental do Brasil.
O principal argumento apresentado pela ACECOL consiste na invasão de
matéria reservada à lei complementar, in casu, a Lei Complementar nº 62/2009
(Plano Diretor Participativo do Município de Fortaleza, fls. 2-13). Assim, a
ACECOL fundamentou sua teoria de inconstitucionalidade na tese de que a
Lei nº 9.507 de 2009 violou a hierarquia normativa do sistema jurídico.
Contudo, esse argumento não deve ser aceito. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é uníssona no sentido de não existir hierarquia entre
leis ordinárias e leis complementares. O que as diferencia é a reserva de competência de acordo com a matéria.
No dia 31 de março de 2011, o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará
julgou a ação de controle de constitucionalidade sem a resolução do mérito.
Os desembargadores, por maioria absoluta (28 x 5), decidiram não conhecer a
Ação Direta de Inconstitucionalidade, com a fundamentação de que a Constituição do Estado não é o parâmetro a ser adotado em face de Lei Municipal.
Vencidos no Poder Judiciário, os empreendedores recorreram à via política, apresentando uma proposta de revogação da ARIE Dunas do Cocó, isto
é, uma emenda ao Plano Diretor Participativo de Fortaleza, sob a autoria da
Vereadora Maria Magaly Marques Dantas, integrante do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB).
No dia 23 de novembro de 2011, ocorreu a votação na Câmara Municipal de Fortaleza para averiguar se tais propostas de emenda deveriam prosseguir ou não, ocasião na qual esta pesquisadora esteve presente com o objetivo
de efetuar pesquisa de campo. Verificou-se que a área em tela deve continuar
protegida e, portanto, a emenda não deve prosperar.
Na verdade, toda a problemática versa acerca dos interesses econômicos
que pairam sobre o lugar alvo da proteção ambiental, posto que possui um
alto valor econômico devido a sua localização. Assim, de um lado, encontram-se os empreendedores que desejam construir um empreendimento nesse local. De outro, os ambientalistas, que veem nas Dunas do Cocó o pouco de
natureza que ainda resta na cidade de Fortaleza e, por isso, lutam para mantê-las conservadas.
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Conclusão
Em uma sociedade na qual o empreendedorismo feroz se faz presente,
valendo-se dos conceitos abstratos e indeterminados que circundam o Direito
Ambiental para a obtenção de licenças que habilitam a construção de obras
em áreas protegidas legalmente, não é estranho que surjam colisões entre direitos fundamentais de propriedade e relativos à proteção ambiental.
Qual direito deve ser priorizado: o direito ao meio ambiente equilibrado
ou o direito à propriedade? Importante destacar que a questão não se limita
a dois polos opostos e extremos, em que um está afrontando o outro. Não se
deve entender que um desses bens é o vilão e o outro será o mocinho da história. Nada de posições extremistas, pois não é correto afirmar que o direito de
propriedade será esquecido por causa da questão ambiental. Tal entendimento
não deve ser acolhido, haja vista que os demais direitos que versam sobre a
iniciativa privada são de suma importância para o ordenamento jurídico brasileiro. A ideia de pluralismo e de democracia expressa constitucionalmente
prega a coexistência de valores divergentes em uma mesma nação.
Com o desenvolver deste trabalho, estudou-se que o direito de propriedade não é mais absoluto como outrora, ele é redimensionado para atender à
função socioambiental da propriedade.
O meio ambiente e a propriedade não podem ser vistos como direitos
antagônicos e excludentes. A nova vertente apresentada pela implantação do
Estado de Direito Ambiental prega, justamente, uma convergência entre esses
interesses por meio da função socioambiental da propriedade, da solidariedade, da cooperação, da sustentabilidade, bem como o compromisso intergeracional e o antropocentrismo alargado.
A casuística apresentada neste artigo versa sobre as Dunas do Cocó, uma
área que recebeu uma proteção legal denominada de Área de Relevante Interesse Ecológico (ARIE) em 2009. Desde então, a questão vem sendo debatida,
pois empreendedores desejam tirar o véu dessa proteção para construírem
prédios, pois essa região é bastante valorizada economicamente na cidade.
Os interesses que estão em voga são o desenvolvimento econômico, a iniciativa privada, a liberdade, o pleno emprego, o equilíbrio ambiental, a equidade social, a solidariedade intergeracional e a sadia qualidade de vida. Observa-se, portanto, que todos esses interesses versam no caso das Dunas do Cocó,
mostrando, assim, a colisão entre os direitos individuais e os interesses difusos.
O intérprete deve avaliar se vale mais a pena manter a proteção do bem
ambiental ou urbanizar a região, conferindo emprego àqueles que irão participar das obras, propriedade aos indivíduos que lá irão residir, segurança, pelo
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fato de a área ser localizada em uma zona perigosa. Nesse momento, deverá
haver um sopesamento de quais interesses merecem maior tutela por parte do
Estado, ou seja, há que se estabelecer uma ordem de prioridade dos bens a
serem mais valorizados.
Fortaleza é uma cidade que está em constante crescimento urbano. É notório o aumento da quantidade de prédios, tanto na vertical, quanto na horizontal. A expansão da malha urbana, contudo, não vem acompanhada de um
projeto ambiental. Os empreendedores estão devastando o meio ambiente ao
seu bel prazer para lucrarem cada vez mais. Por isso, o mínimo de patrimônio
ambiental que se possui deve ser preservado.
As imobiliárias devem ser coerentes em suas condutas. Percebe-se, em
Fortaleza, que as empresas estão preferindo usar nomes relacionados com a
natureza para nomear seus prédios como um atrativo para o consumidor que
quer ter uma boa qualidade de vida. Entre esses prédios com nomes ecológicos, citam-se: Botânico, Green life, Jardins e Ilhas do Parque. Deseja-se que os
empreendedores sejam capazes de proteger o meio ambiente, não utilizando a
natureza apenas como um instrumento publicitário e comercial. Dessa forma,
não faz sentido devastar uma área natural que pertence à coletividade para
construir um local artificialmente natural para o privilégio de poucos.
O Parque do Cocó é o pulmão da capital cearense e deve ser resguardado. Se assim não for, o citado parque será, paulatinamente, devastado e
tomado por empresários. Hoje as dunas, amanhã as reservas aquíferas, depois
de amanhã, a trilha ecológica e assim por diante. Por isso, as Dunas do Cocó
devem ser protegidas para se garantir um mínimo existencial ecológico para
os fortalezenses.
Um meio ambiente sadio é pressuposto condicionante para a continuação da vida. Dessa forma, não há que se falar em desenvolvimento e lucro se
não houver a humanidade para auferí-lo. Por isso, o meio ambiente é o interesse maior a ser protegido, o bem que deve ser tutelado neste caso apresentado. Contudo, não há como prever, por exemplo, que em uma controvérsia entre meio ambiente e propriedade, aquele sempre prevalecerá, nem o contrário.
Na controvérsia apresentada entre o direito ao meio ambiente e o direito
de propriedade, é inconteste que um dano causado à natureza tem maiores
proporções se comparado a um dano causado a uma propriedade. Por isso, as
medidas acautelatórias devem ser adotadas como um meio de gestão preventiva do dano ambiental.
Verifica-se, então, que o caso Dunas do Cocó é uma verdadeira tentativa
de se implantar o Estado de Direito Ambiental. Elas foram instituídas como
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um patrimônio ambiental mínimo que deve ser assegurado aos residentes de
Fortaleza e do mundo. É o que roga o princípio da vedação do retrocesso ecológico. Essa reserva recebeu a proteção de área de relevante interesse ecológico
(ARIE), devendo, portanto, ser preservado seu estado.
As futuras leis não devem retroceder a ponto de ferir as garantias já conquistadas. Descaracterizar a proteção ambiental das Dunas do Cocó é rasgar
todos os direitos ambientais alcançados para atender a uma minoria privilegiada. Assim sendo, se algum projeto de lei for aprovado no sentido de
desconstituir a ARIE Dunas do Cocó, o princípio da proibição do retrocesso
ecológico estará violado.
Conclui-se, então, que as Dunas do Cocó pertencem à coletividade, conforme tudo que foi explanado ao longo deste artigo. Urge, dessa forma, a permanência do manto da proteção jurídica e legal para essa área promover uma
melhor qualidade de vida dos fortalezenses, bem como de outras localidades
do globo, por serem, indiretamente, atingidas.
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COLISÃO ENTRE O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL
DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
INERENTE AO ESTADO DE FILIAÇÃO E ORIGEM
GENÉTICA DO INVESTIGANTE E O PRINCÍPIO
DA INVIOLABILIDADE DA VIDA PRIVADA E
INTIMIDADE DO INVESTIGADO NAS AÇÕES DE
INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE E SUA MELHOR
ADEQUAÇÃO1
Ana Cristina Barbosa Soares Magalhães2
A presente digressão teórica tem por finalidade estudar a colisão
existente entre o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana inerente ao estado de filiação e origem genética do investigante e o princípio da
inviolabilidade da vida privada e intimidade do investigado nas ações de investigação de paternidade com exame de DNA, mencionando-se o princípio
da proporcionalidade para a melhor adequação de um desses princípios em
tais ações, analisando-se os direitos inerentes ao investigante e ao investigado, e tecendo-se alguns comentários sobre filiação, direitos da personalidade,
normas, regras e princípios constitucionais para esclarecimento de questões
inerentes à origem genética e à filiação, bem como para uma maior compreensão dos leitores sobre o assunto. A metodologia empregada no estudo do
problema proposto foi bibliográfica, exploratória e qualitativa.
RESUMO:
PALAVRAS-CHAVE: DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA; INVIOLABILIDADE DA
VIDA PRIVADA; COLISÃO DE PRINCÍPIOS; AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE; FILIAÇÃO.
Abstract: this theoretical tour aims to study the collision between the constitutional principle
of human dignity inherent to membership status and genetic origin of investigator and the
1
2
Trabalho desenvolvido sob a orientação do Prof. André Luiz Tabosa de Oliveira, Mestre em Direito
pela Universidade Federal do Ceará (UFC), apresentado à Coordenação do Curso de Especialização
em Direito Constitucional (VI) da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC) no
ano de 2012 como requisito parcial para obtenção do título de especialista em Direito Constitucional.
Graduada em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Graduada em Ciências Contábeis pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Técnico Judiciário do Tribunal de Justiça do
Estado do Ceará. E-mail: <[email protected]>.
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principle of inviolability of privacy and intimacy of the investigated in paternity research
actions with DNA test, mentioning the principle of proportionality for the best fit of one
of these principles in such actions, analyzing the rights attaching to the investigator and
investigated, and weaving some comments about parentage, personality rights, norms, rules
and constitutional principles for clarification of issues inherent to the genetic origin and
membership, just like for greater understanding of the readers about the subject. The methodology employed in the study of the problem proposed was bibliographical, exploratory
and qualitative.
KEYWORDS: THE DIGNITY OF THE HUMAN PERSON; INVIOLABILITY OF
PRIVATE LIFE; COLLISION OF PRINCIPLES; RESEARCH ACTION OF PATERNITY; MEMBERSHIP.
Introdução
A condição de ser filho biológico é não apenas de ter conhecimento do
fato. Conhecer a origem genética é um direito fundamental, porquanto inerente à dignidade da pessoa humana. Saber sua origem é um direito assegurado ao investigante nas ações de investigação de paternidade. A esse direito,
deve se submeter o investigado, no confronto dos direitos do investigante ante
os direitos por ele invocados para obstar sua submissão ao procedimento do
exame de DNA, valendo-se do direito de recusa.
Para o investigado afastar a condução coercitiva na produção do exame
genético em DNA ele destaca a defesa dos direitos fundamentais à liberdade,
à intimidade, à vida privada, à intangibilidade física e a não obrigatoriedade
de produção de provas contra si, garantido nos princípios da legalidade e
da reserva da Constituição Federal. Isso porque qualquer parte do corpo é
indissociável do corpo humano e da pessoa e a produção de exame genético
somente é possível se existente lei prevendo esse procedimento.
Não tendo sido obtido o reconhecimento espontâneo da paternidade,
filhos não submetidos à presunção de paternidade deverão obter o reconhecimento de sua condição forçadamente, por intermédio de ação de investigação
de paternidade dirigida contra o suposto pai ou os herdeiros deste, com o
propósito de obter a regularização do status familiae, bem como os consectários lógicos da perfilhação, como alimentos, nome, qualidade de herdeiro
necessário etc. A investigação de paternidade trata-se de ação de estado, relativa ao estado familiar, destinada a dirimir conflitos de interesses relativos ao
estado de uma pessoa natural, pelo que envolve discussão acerca do direito de
personalidade. Essa ação, além de ter como finalidade atribuir a paternidade
ou maternidade ao genitor biológico, busca conhecer o “estado de filiação”,
que pode ou não decorrer de uma origem genética.
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Nessa tangente, o presente estudo se volta a mostrar a inserção dos princípios constitucionais ligados à matéria, em especial o da dignidade da pessoa
humana inerente ao estado de filiação e origem genética do investigante na condição em que se encontra e o da inviolabilidade da vida privada e intimidade
do investigado quando se investe dessa condição, e a colisão entre eles, ambos
inseridos, respectivamente, nos arts. 1º, III, e 5º, X da Constituição Federal
brasileira, nas ações de investigação de paternidade, a fim de que se vislumbre
a correta aplicação de um dos princípios em tais ações, para uma melhor conscientização da sociedade, propagação do bem-estar e afirmação do ser humano.
Destarte, é importante mencionar as diferenças existentes entre normas,
regras e princípios e conceituar institutos como o da filiação, direitos da personalidade e princípio da proporcionalidade, visto que quando o operador
do direito encontra-se diante de uma colisão entre dois princípios constitucionais, ele opta por um deles, o que melhor se adequa ao caso, sem que o
outro seja rechaçado do sistema ou deixe de ser aplicado a outros casos que
comportem sua aceitação. O princípio da proporcionalidade representa a exata medida em que deve agir o Estado no exercício de suas funções específicas,
estabelecendo as balizas que irão impedir que ele aja com excessos ou de modo
insuficiente na realização de seus objetivos.
1 Personalidade e direitos da personalidade
A personalidade consiste no conjunto de caracteres próprios da pessoa,
não se tratando de um direito, mas de um apoio aos direitos e deveres que dela
irradiam. Por se tratar de parte intrínseca do ser humano é, pois, um bem,
o primeiro pertencente à pessoa, o mais importante, já que somente por seu
intermédio se poderá adquirir e defender os demais. Além do próprio bem da
personalidade identificam-se, ao mesmo tempo, outros inerentes à condição
humana, a exemplo da vida, da privacidade, da imagem, da liberdade, e a
proteção que a eles se efetiva a partir dos direitos da personalidade.
Érika Harumi Fugie considera que os direitos da personalidade são direitos subjetivos que têm, como particularidade inata e original, um objeto
inerente ao titular, que é a sua própria pessoa, considerada nos seus aspectos essenciais e constitutivos, pertinentes à sua integridade física, moral e intelectual.
Sem eles, outros direitos subjetivos perderiam todo o valor para o indivíduo.
Se os direitos da personalidade não existissem, a pessoa não existiria como tal.1
1
FUGIE, Érika Harumi. Articulação entre a colisão de direitos da personalidade e o princípio da
proporcionalidade. Revista de Ciências Jurídicas, Maringá, n.1, 1999. p. 86.
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Desse modo, a personalidade não é um direito, sendo errôneo afirmar
que o homem tem direito à personalidade. Mas dela irradiam direitos, os
direitos da personalidade.
Para a doutrina, os direitos da personalidade podem ser agrupados de
acordo com os aspectos em que cada um concerne, fundamentalmente em
número de três: o físico, o intelectual e o moral. Dessa forma, tem-se o direito
à integridade física, o direito à integridade intelectual e o direito à integridade
moral. A classificação de Adriano de Cupis é uma das mais conhecidas e o seu
posicionamento é que:
A tutela dos direitos da personalidade restringe-se àqueles que são tipificados na
lei. Classificam-se em: direito à vida e à integridade física; direito sobre as partes
deslocadas do corpo e direito sobre o cadáver; direito à liberdade; direito ao resguardo que integra o direito à honra, ao resguardo e ao segredo; direito à identidade pessoal que integra o direito ao nome, ao título, e ao sinal pessoal e direito
moral do autor.2
Paulo Mota Pinto3 é contundente quando afirma que somente a tutela
geral dos direitos de personalidade tem como abarcar a “irredutível complexidade da personalidade humana”. Sustenta o autor que o direito geral de personalidade é um “direito aberto, sincrônico e diacronicamente, permitindo a
tutela de novos bens, face às renovadas ameaças à pessoa humana, respeitando
a personalidade na sua perspectiva estática e dinâmica de realização e desenvolvimento” em cada pessoa e na vida em relação.
O legislador pátrio incluiu os direitos da personalidade no Livro I da
Parte Geral do Código Civil, reservando o Capítulo II - arts. 11 ao 21 - para
disciplinar a matéria. De acordo com a nova ordem substantiva civil, os direitos da personalidade podem ser conceituados como sendo aqueles inerentes à
pessoa e à sua dignidade.
Em que pese a maioria dos preceitos relativos ao direito da personalidade
ser tratada como direitos e garantias fundamentais, existem entre eles distinções, pois os direitos da personalidade exprimem aspectos que não podem
deixar de ser conhecidos sem afetar a própria personalidade humana, enquanto os direitos fundamentais delimitam particularmente a situação do cidadão
perante o Estado, centrados na estruturação constitucional.
Como bem acentua Gomes Canotilho:
As expressões “direitos do homem” e “direitos fundamentais” são freqüentemente
2
3
CUPIS, Adriano de apud CANTALI, Fernanda Borghetti. Direitos da personalidade: disponibilidade relativa, autonomia privada e dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p.77.
PINTO, Paulo Mota apud CANTALI, Fernanda Borghetti. Direitos da personalidade: disponibilidade relativa, autonomia privada e dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2009. p. 81.
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utilizadas como sinônimas. Segundo a sua origem e significado poderíamos distingui-las da seguinte maneira: direitos do homem são direitos válidos para todos os
povos e em todos os tempos (dimensão) jusnaturalista-universalista; direitos fundamentais são direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados
espácio-temporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza
humana e daí o seu caráter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objectivamente vigentes numa ordem jurídica concreta.4
Portanto, as diferenças entre os direitos da personalidade e os direitos
fundamentais são muitas: os primeiros encontram-se demarcados no âmbito
estritamente privado, nas relações entre os particulares, enquanto os segundos
encontram-se no âmbito do Direito Público, na proteção ao cidadão e diante
dos poderes do Estado. Decorre, assim, que o âmbito dos direitos da personalidade é pessoal, enquanto que os direitos fundamentais têm um âmbito
político e socioeconômico.
2 Direitos fundamentais: considerações gerais
Os Direitos Fundamentais, sob uma perspectiva clássica, consistem em
instrumentos de proteção do indivíduo frente à atuação do Estado. Sistematizados na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, há quem os
limite ao elenco de seu art. 5º, no qual estão previstos os direitos e deveres individuais e coletivos. Ali está descrito um vasto rol de Direitos Fundamentais,
mas a ele não se restringem, sequer à Constituição Federal ou à sua contemporaneidade. Uma problemática dos Direitos Fundamentais é a busca de um
fundamento absoluto sobre o qual respaldá-los de modo a garantir o seu correto cumprimento ou até mesmo como meio de coação para sua observância
de maneira universal. Essa busca do fundamento absoluto é questão inerente à
sua defesa: serve como respaldo para garantir a sua efetividade, demonstrando
que esses direitos transformaram-se em uma preocupação filosófica, sociológica e política, e não apenas jurídica.
Dimoulis e Martins5 afirmam que:
A principal finalidade dos direitos fundamentais é conferir aos indivíduos uma
posição jurídica de direito subjetivo, em sua maioria de natureza material, mas às
vezes de natureza processual e, consequentemente, limitar a liberdade de atuação
dos órgãos do Estado. Por esse motivo, cada direito fundamental constitui, na
definição do constitucionalista alemão George Jellinek (1851-1911), um “direito
público subjetivo”, isto é, um direito individual que vincula o Estado.
4
5
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 4. ed.
Coimbra: Almedina, 2000. p. 387.
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 3. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 57.
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Bonavides6 faz severas críticas ao uso “indiferente” das expressões direitos
humanos, direitos do homem e direitos fundamentais. Pelo vocábulo “fundamental”, em seu significado lexical, compreende-se tudo aquilo “que serve de
fundamento; necessário; essencial”.
Assim, como entende Vladimir Filho7, direito fundamental “é o mínimo
necessário para a existência da vida humana”, mínimo esse que deve garantir a
existência de uma vida digna conforme os preceitos do princípio da dignidade
da pessoa humana.
No tocante à expressão “Direitos Humanos” o significado atribuído é o
mesmo, ou seja, consistem em direitos essenciais à manutenção de uma vida
humana sustentada pelo princípio da dignidade a ela inerente. Entretanto,
Vladimir Filho8 faz distinção entre esses termos, “entendendo serem os Direitos Fundamentais aqueles positivados em uma Constituição, enquanto os
Direitos Humanos são os provenientes de normas de caráter internacional”.
Canotilho9 sugere um argumento justificando a distinção mencionada.
Para ele, direitos do homem são aqueles derivados da própria natureza humana, enquanto os Direitos Fundamentais são os vigentes em uma ordem
jurídica concreta.
Afirma Pfaffenseller10 que
o conceito de Direitos Fundamentais, dessa maneira, está intimamente ligado
à evolução da sociedade, o que acarretou uma modificação nas tutelas pretendidas e, consequentemente, abriu espaço para o surgimento constante de novos
Direitos.11
O lema da Revolução Francesa, conforme afirma Bonavides12,
profetizou a sequência histórica da gradativa institucionalização dos Direitos Fundamentais, do que decorre sua divisão em três gerações, sucessivamente: direitos
da liberdade, da igualdade e da fraternidade.
6
BONAVIDES, Paulo apud PFAFFENSELLER, Michelli. Teoria dos direitos fundamentais. Revista Jurídica, Brasília, v. 9, n. 85, 2007.
7 BREGA FILHO, Vladimir. Direitos Fundamentais na Constituição de 1988: conteúdo jurídico
das expressões. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. p. 66.
8 BREGA FILHO, Vladimir apud PFAFFENSELLER, Michelli. Teoria dos direitos fundamentais.
Revista Jurídica, Brasília, v. 9, n. 85, 2007.
9 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998. p. 359.
10 PFAFFENSELLER, Michelli. Teoria dos direitos fundamentais. Revista Jurídica, Brasília, v. 9, n.
85, 2007.
11 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional.26. ed. São Paulo: Malheiros Editores,
2011. p. 562.
12 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26. ed. São Paulo: Malheiros Editores,
2011. p. 563-4.
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Os direitos de primeira geração correspondem aos direitos da liberdade,
os primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional, contemplando os direitos civis e políticos que, em grande parte, correspondem, por
um prisma histórico, àquela fase inaugural do constitucionalismo do Ocidente. Segundo Bonavides13, esses direitos têm por titular o indivíduo, são
oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades e atributos da pessoa e
ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico: são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado. Podem ser citados como
exemplos de Direitos Fundamentais de primeira geração os direitos à vida, à
liberdade e à igualdade, previstos no caput do art. 5º da Constituição Federal
de 1998. Derivados de tais direitos também podem ser destacados como direitos de primeira geração as liberdades de manifestação (art. 5º, IV, da CF),
de associação (art.5º, XVII, da CF) e o direito de voto (art. 14, caput, da CF).
Os direitos de segunda geração são os direitos sociais, culturais e econômicos, assim como os direitos coletivos ou da coletividade, introduzidos no
constitucionalismo das distintas formas de Estado social depois que germinaram por obra da ideologia e da reflexão antiliberal do século XX. Nasceram
abraçados ao princípio da igualdade, do qual não se podem separar, pois fazê-lo equivaleria a desmembrá-los da razão de ser que os ampara e estimula. Na
Constituição brasileira de 1988 estão elencados em capítulo próprio, denominado “dos direitos sociais”, no qual estão descritos diversos direitos fundamentais, dentre os quais os direitos a educação, saúde, trabalho, moradia,
lazer, segurança e previdência social (art. 6º, caput).
Assentados sobre a fraternidade, surgem os Direitos Fundamentais de
terceira geração, os direitos difusos, os quais visam à proteção do ser humano,
e não apenas do indivíduo ou do Estado em nome da coletividade.
Afirma Paulo Bonavides que:
A consciência de um mundo partido em nações desenvolvidas e subdesenvolvidas
ou em fase de precário desenvolvimento deu lugar em seguida a que se buscasse
uma outra dimensão dos direitos fundamentais. Trata-se daquela que se assenta
sobre a fraternidade e provida de uma latitude de sentido que não parece compreender unicamente a proteção específica de direitos individuais e coletivos.14
A princípio, são identificados cinco direitos como sendo de terceira geração: o direito ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente; o direito de
propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e o direito de co13 Ibid., p. 563-564.
14 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 26. ed. São Paulo: Malheiros Editores,
2011. p. 569.
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municação. Podem, entretanto, surgir outros direitos de terceira geração à
medida que o processo universalista for se desenvolvendo. Segundo Sarlet15,
tais direitos ainda não estão completamente positivados nas Constituições,
sendo em sua maior parte encontrados em Tratados e outros documentos
transnacionais.
Alguns autores têm admitido a existência de uma quarta geração de Direitos Fundamentais, a exemplo de Bonavides, para quem:
Em meio a uma sociedade que caminha rumo a uma globalização econômica neoliberal, cuja filosofia de poder é negativa e intenta a dissolução do Estado Nacional
debilitando os laços de soberania, os direitos de quarta geração surgem junto à
globalização política na esfera da normatividade jurídica. São eles os direitos à
democracia, à informação e ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade. Para a qual
parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência.16
Os Direitos Fundamentais, atualmente, são reconhecidos mundialmente
por meio de pactos, tratados, declarações e outros instrumentos de caráter
internacional. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU - 1948)
diz que os direitos são proclamados, ou seja, eles preexistem a todas as instituições políticas e sociais, não podendo ser retirados ou restringidos pelas
instituições governamentais que, por outro lado, devem proteger tais direitos
de qualquer ofensa.
3 Diferenças entre normas, regras e princípios constitucionais
Primeiramente, é importante esclarecer a distinção entre valor e princípio, pois, com efeito, tem-se usado os dois termos indistintamente, como
se tivessem o mesmo conteúdo semântico. Na verdade, enquanto o valor é
sempre um relativo, na medida em que vale, isso é, aponta para uma relação,
o princípio se impõe como um absoluto, como algo que não comporta qualquer espécie de relativização.
Como afirma Rizzato Nunes:
O princípio é, assim um axioma inexorável e que, do ponto de vista do Direito,
faz parte do próprio linguajar desse setor de conhecimento. Não é possível afastá-lo, portanto. O valor sofre a influência de comportamento histórico, geográfico,
pessoal, social, local etc e acaba se impondo mediante um comando de poder
que estabelece regras de interpretação - jurídicas ou não. Os valores variarão na
15 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 51.
16 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros Editores,
2002. p. 525.
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proporção da variação do tempo e do espaço, na relação com a própria história
corriqueira dos indivíduos. O princípio, não. Uma vez constatado, impõe-se sem
alternativa de variação.17
No tocante à norma, colocando-se de maneira mais simples, é uma forma acordada, repetível de se fazer algo. É um documento que contém uma
especificação técnica ou outros critérios precisos desenvolvidos para serem utilizados consistentemente como uma regra, diretriz ou definição.
A norma jurídica, disciplinadora dos modos de conduta como acentua
Arnaldo Vasconcelos18, é a “expressão formal do Direito”, e o conjunto dessas
normas forma o ordenamento jurídico. A norma “enuncia e veicula o Direito”, um sistema de limites, porquanto as normas jurídicas são normas de
delimitação de interesses, fixando o limite entre o direito e o não-direito. A
distinção entre norma jurídica, regras e princípios se revela essencial à adequada compreensão do sistema jurídico, bem assim à hermenêutica jurídica e,
mais especificamente, à interpretação constitucional.
Distinga-se, como fez Canotilho19, a norma do seu enunciado, formulação ou disposição, pois enquanto a norma é sentido ou significado adstrito a
qualquer disposição (ou a um fragmento de disposição, combinação de disposições, combinações de fragmentos de disposições), a disposição é a parte de
um texto ainda a interpretar. Nessa linha de argumentação, tomando o signo
norma em lato sensu, perfeitamente sustentável a classificação, utilizada pelo
autor, de princípios e regras como espécies do gênero norma.
Podem-se considerar as regras jurídicas como um padrão de comportamento, um guia da vida social, que se impõe aos cidadãos e, ao menos em
tese, em benefício deles próprios, pois que viabilizariam a vida em sociedade:
é como tal que se deve aceitá-las.
Segundo a teoria clássica da norma jurídica, somente as regras eram
consideradas normas, sendo os princípios vistos como conselhos ao legislador ou vetores hermenêuticos. Os princípios não passavam de mera fonte (e
fonte secundária) do Direito, porém, após chegarem aos códigos, materializando-se em regras por eles informadas e, em sua essência, constituídas como
positivação daqueles, os princípios deram um verdadeiro salto qualitativo
e acabaram aportando nas Constituições, aumentando, significativamente,
17
NUNES, Rizzato. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: doutrina e
jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 5.
18 CF. VACONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica (...)
19 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 4. ed.
Coimbra: Almedina, 2000. p. 1181.
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sua importância.
Canotilho20diz serem os princípios verdadeiras ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas, ou seja, são “núcleos de condensações
nos quais confluem valores e bens constitucionais”. Assim, os princípios, que
começam por ser a base de normas jurídicas, podem estar positivamente incorporados, transformando-se em normas-princípios e constituindo preceitos
básicos da organização constitucional.
A palavra princípio em sentido amplo significa ponto de partida e fundamento de um processo qualquer. No Direito, afirma Köhn21, especificamente,
há três tipos de princípios, os princípios gerais de Direito, os princípios constitucionais e os infraconstitucionais. Estes últimos são os princípios positivados
ou implícitos na legislação infraconstitucional. Os princípios constitucionais
são normas contidas nas constituições que versam sobre Direitos fundamentais. Podem ser explícitos, ou seja, escritos, ou implícitos, cuja existência deduz-se pelo fato de que a Constituição é a Constituição. Os princípios gerais
do Direito não têm conceito definido. Alguns doutrinadores definem que
esses princípios correspondem a normas de Direito natural, verdades jurídicas
universais e imutáveis. Não apresentam um significado isolado, antes, o adquirem apenas quando considerados em conjunto com o restante do sistema
jurídico: daí a necessidade de se pressupô-lo como uma totalidade.
Alexy22 destaca que entre regras e princípios não há só uma diferença
gradual, senão também uma diferença qualitativa, e afirma existir um critério
que permite distingui-los: o fato de que princípios são “mandamentos de otimização”, que admitem um cumprimento gradual, enquanto regras só admitem um cumprimento pleno. Ou seja, para o autor, princípios prescrevem que
algo deve ser cumprido da melhor forma possível, dentro das possibilidades
práticas e jurídicas, enquanto uma regra deve ser cumprida totalmente.
A Constituição Brasileira, sob a influência das mais atualizadas teorias,
estabelece, no art. 5º, § 1º, que “as normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentais têm aplicação imediata”, ou seja, têm normatividade plena. O
princípio constitucional não deixa de ser norma por lhe faltar sanção, antes,
exigem-se-lhe concretamente sanções pelo fato de ser norma. Essas sanções,
20 CANOTILHO, José Joaquim Gomes apud SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 27. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2006. p. 92.
21 KÖHN, Edgar. Princípios e regras e sua identificação na visão de Robert Alexy. Boletim Jurídico,
Uberaba/MG, a. 4, nº 188, 2011. Disponível em: <http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/
texto. asp?id=1440> Acesso em: 30 ago. 2011.
22 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 1ª reimpressão. São Paulo: Malheiros Editores, 2011. p. 75.
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em último caso, serão estabelecidas pelo juiz no caso concreto, o que não parece tão inovador, em face de que, para a ordem infraconstitucional, já assim
preceituava o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC): “Quando
a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes
e os princípios gerais de direito”.
Segundo Glauco Filho:
Demonstrada fica a existência de dois tipos normativos: a regra e o princípio. A
regra pode ser um dever ser que deve ser (lei) ou um ser que deve ser (costume),
enquanto o princípio, considerado na sua dimensão fenomênica e positivo-jurídica, é um vir a ser – potência a ser atualizada - que deve ser.23
Confirma, ainda, Glauco Filho:
As normas jurídicas podem ter estrutura de regras ou de princípios. Em geral, as
normas infraconstitucionais têm estrutura de regras, e as normas constitucionais
têm estrutura de princípios. Os princípios distinguem-se das regras por terem
maior grau de abstração, um caráter de fundamentalidade no sistema e maior proximidade da ideia de Direito e da exigência de Justiça (Canotilho). Estruturalmente, a regra consiste na previsão de um fato específico, bem como das suas respectivas conseqüências jurídicas, enquanto o princípio enuncia, de forma genérica,
um valor a ser realizado na medida do jurídico e faticamente possível (Alexy).24
Portanto, a regra é normalmente geral quanto às pessoas às quais se dirige
e é definidora de um fato, enquanto o princípio é geral em relação às pessoas
e não define fatos.
4 Conflito entre regras e colisão entre princípios
No que diz respeito à aplicação, havendo conflito entre duas regras, uma
norma é aplicada com a exclusão da outra, caso não seja possível uma interpretação que dê a ambas um sentido compatível. Consiste a aplicação da regra
na submissão do fato concreto à norma que o regula, de modo a se concluir a
existência de uma relação jurídica.
No caso dos princípios, não se pode aplicar um recusando outro, mas,
antes, um princípio restringe e complementa o outro, segundo exigências de
justiça presentes na situação de fato. O sistema de princípios é aberto e caracterizado pela coexistência dos valores por eles enunciados, bem como pela
dependência da realidade concreta e social para o estabelecimento daquela
ponderação axiológica que resultará na solução de um caso concreto, o que
acarreta, ao mesmo tempo, a complexidade e o desenvolvimento do sistema.
23 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. A essência do direito. 2. ed. São Paulo: Rideel, 2006. p. 65.
24 Ibid., p. 71.
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Assim, os princípios são responsáveis pela legitimidade do ordenamento jurídico, tendo em vista o fato de enraizarem o Direito na consciência do indivíduo e na sociedade.
Enquanto duas regras não podem existir juntas quando contraditórias,
dois princípios contraditórios podem coexistir sem se invalidarem. Alexy25 ensina que enquanto o conflito de regras só admite a declaração de invalidez de
uma delas ou a inclusão de uma cláusula de exceção que elimina o conflito, a
colisão de princípios não traz consigo uma invalidação de um dos dois nem a
inclusão de uma cláusula de exceção. Esse conflito se resolve pela ponderação
dos princípios no caso concreto, o que significa que, no caso concreto, será
ponderado a qual princípio deve ser atribuído maior peso. Alexy26 afirma que
um conflito entre regras somente pode ser resolvido se for introduzida uma
cláusula de exceção em uma das regras conflitantes ou se no mínimo uma
delas for declarada inválida. Para ele, o conflito entre regras se resolve no âmbito da validade, já que se uma regra vale e é aplicável ao caso concreto, valem
também suas consequências jurídicas, pois contidas dentro do ordenamento
normativo. Desse modo, se a aplicação de duas regras juridicamente válidas
conduz a juízos concretos de “dever ser” reciprocamente contraditórios, não
restando possível a eliminação do conflito pela introdução de uma cláusula de
exceção, pelo menos uma das regras deverá ser declarada inválida e eliminada
do sistema normativo como meio de preservação do ordenamento. Já os princípios contraditórios podem conviver e serão ponderados no caso concreto,
sem se poder saber de antemão qual princípio prevalecerá. Assim, pode ser
que numa colisão entre dois princípios, num caso prevaleça um princípio e
em outro caso similar, mas um pouco diferente, prevaleça, justamente por
causa dessa diferença, o outro princípio27.
5
Colisão entre regra e princípio
Um princípio constitucional pode colidir com três tipos diferentes de regras: que não se baseia num princípio constitucional, que se baseia num princípio constitucional ou que é, ela mesma, constitucional. Para princípios infraconstitucionais, desde que baseados em princípio constitucional, vale o mesmo.
A solução da colisão entre regras e princípios depende do tipo da regra
25 ALEXY, Robert apud KÖHN, Edgar. Princípios e regras e sua identificação na visão de Robert
Alexy. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, nº 188, 2011. Disponível em: <http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto. asp?id=1440> Acesso em: 30 ago. 2011.
26 Ibid.
27 Ibid.
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com a qual o princípio colide. Não existe, de antemão, uma prevalência do
princípio sobre a regra ou vice-versa. Na colisão de um princípio com uma
regra que não se baseia num princípio constitucional prevalece o princípio, a
regra é considerada inconstitucional.
Com referência a essas regras Streck28 ensina que “a violação de um princípio passa a ser mais grave que a transgressão de uma regra jurídica”, porque as normas constitucionais “são vinculativas e têm eficácia” e, portanto,
o desrespeito a uma norma constitucional significa “uma ruptura da própria
Constituição”. E isso, conforme Canotilho29, vale também para as normas
programáticas, às quais “é reconhecido hoje um valor jurídico constitucionalmente idêntico ao dos restantes preceitos da constituição”.
Assim, Canotilho30 diz que numa colisão entre um princípio constitucional e uma regra, que não tem como objetivo proteger outro princípio constitucional, o princípio prevalece. Se prevalecesse a regra, haveria desrespeito
à Constituição, o que não pode ser admitido, tanto por esta ser hierarquicamente superior, quanto porque a interpretação conforme a Constituição é um
princípio imanente da própria Constituição que deve ser considerado. Dessa
forma, qualquer regra deve ser interpretada conforme a Constituição, portanto, em caso de colisão entre regra e princípio constitucional, prevalece inicialmente essa determinação. Caso não seja possível, deve prevalecer o princípio,
porque, se toda regra deve ser interpretada conforme a Constituição, ela não
pode prevalecer sobre um princípio Constitucional.
No terceiro caso, afirma Köhn31 que a colisão entre regra constitucional e
princípio prevalece a regra constitucional. Assim, por exemplo, pode colidir a
regra que proíbe a tortura com o princípio da supremacia do direito público
num caso em que um suspeito saiba onde está escondida uma bomba. Nesses
casos não se precisa ponderar o caso concreto: prevalece a regra. Não é admissível a tortura, não importa o motivo. Portanto, conclui-se que: 1) na colisão
de um princípio com uma regra constitucional, prevalece a regra; 2) na colisão
de um princípio com uma regra baseada em princípio constitucional deve ser
ponderado, no caso concreto, qual norma prevalece, conforme o método apli28 STRECK apud KÖHN, Edgar. Princípios e regras e sua identificação na visão de Robert Alexy.
Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, nº 188, 2011. Disponível em: <http://www.boletimjuridico.
com.br/doutrina/texto. asp?id=1440> Acesso em: 30 ago. 2011.
29 CANOTILHO apud KÖHN, Edgar. Id.
30 Ibid.
31 KÖHN, Edgar. Princípios e regras e sua identificação na visão de Robert Alexy. Boletim Jurídico,
Uberaba/MG, a. 4, nº 188, 2011. Disponível em: <http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/
texto. asp?id=1440> Acesso em: 30 ago. 2011.
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cado na colisão de princípios; e 3) na colisão de um princípio com uma regra
não baseada em princípio constitucional, prevalece o princípio.
6
Princípios da dignidade da pessoa humana e da inviolabilidade
da vida privada e intimidade
O art. 1º da Declaração de Direitos Humanos estabelece a exigência de
que todos sejam tratados segundo uma regra isonômica decorrente do reconhecimento da igualdade entre homens, naquelas qualidades que lhes constituem a essência ou natureza, ou seja, naquilo que os distingue dos demais
seres, sendo esse elemento individualizador pressuposto da dignidade da pessoa humana.
A Constituição Federal pátria prevê a cláusula geral da tutela da personalidade, que pode ser encontrada no princípio fundamental da dignidade da
pessoa humana (art. 1º, III, da CF).
Seguindo a lição de Silva,
A dignidade da pessoa humana não é uma criação constitucional, pois ela é um
desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência especulativa,
tal como a própria pessoa humana. A Constituição, reconhecendo a sua existência
e a sua eminência, transforma-a num valor supremo de ordem jurídica, quando a
declara como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil constituída
em Estado democrático de direito.(Grifo do autor).32
Trata-se, assim, de princípio que ostenta a condição de um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana.
Dignidade significa tudo aquilo que é inestimável, indisponível, que não
pode ser objeto de troca. Sobre tal princípio diz Alexandre de Moraes:
A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa,
que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da
própria vida que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve
assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações
ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária
estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.33
Não há, portanto, como imaginar, no caso, o contemporâneo Direito de
Família em inobservância a esse princípio. A dignidade humana é facilmente
percebida quando se fala da igualdade entre homens e mulheres, do reconhecimento dos filhos pouco importando sua origem, do reconhecimento das
32 SILVA, José Afonso da apud MARTINS, Antônio Darienso. Investigação de paternidade & antecipação dos efeitos da tutela. Curitiba: Juruá Editora, 2008. p. 67.
33 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 22.
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famílias oriundas da união estável, dentre outras conquistas. Esse princípio
contém valores e traz consigo, além de seu conteúdo normativo, um conteúdo
axiológico. In casu o valor é a dignidade que se dá ao bem, isso é, ao homem.
Como o princípio da dignidade da pessoa está inserido como norma
constitucional na Carta Política, em seu art. 1º, e o princípio da privacidade,
da intimidade, que fundamenta o direito da personalidade, foi esculpido no
art. 5º, X, da CF, incorporam ambos uma ordem de valores no momento em
que entram a figurar como esteios da ordem política e da paz social.
Diz o art. 5º, X, da Constituição Federal que: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à
indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Os conceitos de intimidade e vida privada apresentam grande interligação, podendo,
porém, serem diferenciados por meio da maior amplitude do primeiro, que se
encontra no âmbito da incidência do segundo. Assim, intimidade relaciona-se às relações subjetivas mais íntimas das pessoas (parentesco, amizade), enquanto a definição de vida privada envolve todos os demais relacionamentos
humanos, inclusive os objetivos, tais como relações comerciais, de trabalho,
de estudo, dentre outras.
Há algum tempo, Hannah Arendt34 sustentava que a privacidade tem
como um de seus fundamentos o princípio da exclusividade, o qual enuncia
essencialmente três exigências: a solidão ou o desejo de estar só, o segredo ou
a exigência de sigilo e a autonomia da qual deflui a liberdade de decidir sobre
si mesmo como centro emanador de informações.
Miranda35 também já anunciava que a privacidade, por ele denominada
intimidade, consiste em um exercício da liberdade que se manifesta no fazer e
no não fazer, revelar ou não revelar os assuntos de vida privada. O titular tem
tanto o direito de velar a intimidade quanto o de expô-la ao público.
Antes da Constituição de 1988 não possuía o Brasil, em nível constitucional, dispositivo que amparasse de forma específica o direito à intimidade e à
vida privada, tendo o referido Diploma seguido a tendência jurídico-evolutiva
mundial e abrigado expressamente esse princípio como um direito fundamental no ordenamento nacional. Uma análise da legislação ordinária brasileira
permite inferir (indireta) proteção à intimidade e à vida privada em inúmeros
de seus dispositivos, até mesmo em função do fato de esse direito fundamental
estar diretamente relacionado a muitas das ações do cotidiano do grupo social
34 ARENDT, Hannah apud CANTALI, Fernanda Borghetti. Direitos da personalidade: disponibilidade relativa, autonomia privada e dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p.197.
35 MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de apud CANTALI, Fernanda Borghetti. Id, p.197.
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e da atividade do Estado reguladas pelo direito, como a vida condominial
(relacionamento entre vizinhos), a fiscalização estatal, os negócios bancários,
a produção de prova, inclusive em ações de investigação de paternidade etc.
O que se percebe é que a grande maioria das condutas implica, em maior ou
menor grau, uma afetação dessa extensão do direito à personalidade.
7
Filiação
Quando se fala sobre filiação, lembra-se de perpetuação da espécie humana. Como ensinam Farias e Simões36, trata-se da manutenção da identidade
do ser humano, decorrente de laços biológicos ou civis. É o vínculo jurídico
que une o filho com seus pais, constituindo uma relação de parentesco estabelecida pela lei entre um ascendente e seu imediato descendente, ou seja, seu
descendente em primeiro grau. É a relação que o fato da procriação estabelece
entre duas pessoas, uma das quais nascida de outra; chama-se paternidade, ou
maternidade, quando considerada com respeito ao pai, ou à mãe, e filiação,
quando do filho para com qualquer dos genitores.
Mas, continuam Farias e Simões37, conceituar filiação somente a partir de critérios biológicos é um grande apego à discriminação, violação de
preceitos constitucionais e inobservância aos posicionamentos doutrinários e
jurisprudenciais, diante da multiplicidade de formas de reprodução humana.
Seria, assim, mais interessante conceituar filiação como a posição que alguém
ocupa em um determinado núcleo familiar, não importando o modo como
a tenha alcançado, recebendo, daqueles que exercem a função de pai e mãe,
valores morais, éticos e religiosos para formar seu caráter, desenvolver sua
personalidade e ter respeitados todos os direitos que lhe são garantidos pela
Constituição Federal.
A partir da Carta de 1988, toda e qualquer menção de cunho discriminatório deixou de existir por força do princípio da igualdade na filiação, estando
a velha distinção entre filhos legítimos e ilegítimos superada. O Estatuto da
Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) proporcionou as bases necessárias
para a promoção e aplicação da igualdade na filiação.
No ordenamento civil brasileiro, são tipos de filiação a biológica, a adotiva e a socioafetiva.
Pelo sistema biológico, filho é quem detém os genes do pai ou da mãe;
36 FARIAS, Cristiano Chaves de; SIMÕES, Thiago Felipe Vargas. Reconhecimento de filhos e a
ação de investigação de paternidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 7.
37 Ibdi., p.8-9.
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assim, o reconhecimento da identidade biológica entre pai e filho ou mãe e
filho concede à criança alguns direitos, como o de usar o nome do genitor(a),
a alimentos, à herança.
Com o texto constitucional, conforme explicam Chaves e Simões:38
O critério legal para estabelecimento da filiação (mediante a presunção pater is est
quem nuptiae demonstrant) passou a ser concorrente de novas técnicas científicas
de comprovação dos laços existentes entre pais e filhos. Os novos critérios passaram a propiciar uma verdade quase que absoluta de filiação biológica. Com o
exame de DNA (ácido desoxirribonucleico) fica possibilitado afirmar, com certeza
científica de 99,99% a relação entre pai e filho, deixando a probabilidade de erro
beirando a impossibilidade, propiciando economia financeira e temporal. (Grifo
do autor).
A filiação estabelecida pela adoção firma vínculo idêntico ao existente na
filiação biológica, atribuindo o estado de filho a alguém, inserindo-o em um
núcleo familiar. Para sua plena eficácia, a adoção deverá ser declarada por sentença transitada em julgado. Cria-se um vínculo entre pessoas absolutamente
estranhas, adotante e adotado, atribuindo-se a este condição plena de filho
(art. 227, § 6º, CF), desligando-o de qualquer vínculo com os seus parentes de
sangue, ressalvados os impedimentos à construção de novos relacionamentos.
A partir da Carta Política de 1988, afirmam Chaves e Simões39, a proteção à família e suas formas de constituição e reconhecimento foram ampliadas, deixando-se a antiga concepção de que família legítima era aquela oriunda do casamento para se reconhecer e proteger aquelas compostas por união
estável, relação de monoparentalidade, anaparentalidade, e, ainda, as uniões
homoafetivas. Hoje, não há como negar que nas composições familiares existe uma relação de afetividade, cuja origem se liga diretamente à convivência
entre pessoas e à reciprocidade de sentimentos. Assim, a denominada filiação
socioafetiva caracteriza-se pela relação de parentalidade que prescinde de vínculo biológico, encontrando-se albergada no texto do art. 1.593 do Código
Civil, ao dispor que serão considerados vínculos de parentesco resultantes de
“outra origem”.
Para esclarecimentos, existem diferenças entre estado de filiação e origem
biológica. Assegura Darienso40que, o estado de filiação é gênero do qual são
espécies a filiação biológica e a filiação não-biológica. Ainda que o estado de
filiação derive, na maioria dos casos, de fato biológico, por força da natureza
38 Ibid., p.13.
39 Ibid., p.21.
40 MARTINS, Antônio Darienso. Investigação de paternidade & antecipação dos efeitos da tutela. Curitiba: Juruá, 2008. p.44.
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humana, outros fatos o determinam, como a adoção, a posse do estado de filiação e a inseminação artificial heteróloga. Assim, o estado de filiação tem necessariamente natureza cultural (ou socioafetiva). A origem biológica presume
o estado de filiação ainda não constituído, independentemente de comprovação de convivência familiar. Nesse sentido, a investigação de origem biológica
exerce papel importante para a atribuição da paternidade ou maternidade, e a
fortiori, do estado de filiação, quando ainda não constituído.
A ação de investigação de paternidade deve ser utilizada para assegurar o
estado de filiação quando ainda não constituído. Caso o suposto pai se recuse a submeter-se à perícia médica, não é possível conduzi-lo coercivamente,
apenas resolvendo-se o deslinde no plano instrumental, com a aplicação da
presunção legal no sentido de reputar como verdadeira a alegação do autor e
atribuir a paternidade ao pai, com todos os efeitos decorrentes da ação.
A grande quantidade de filhos sem registro do nome paterno em suas
certidões de nascimento, o descaso de pais que, mesmo sabendo que possuem
filhos, não os reconhecem de forma voluntária, ou a condução coercitiva de
pais à Justiça nas ações de investigação de paternidade para reconhecê-los são
fatos que trazem à tona o estudo da origem genética, que possui natureza de
direito da personalidade e precisa se conciliar com as diretrizes da Constituição Federal e, em especial, com o princípio da dignidade da pessoa humana.
Assim, diante da necessidade de os possíveis filhos saberem sua ascendência, sua origem genética, por ser um direito fundamental indisponível, irrenunciável, inegociável, impenhorável, imprescritível, vitalício e intangível do
ser humano, já que integra sua dignidade como pessoa, o interesse de ordem
biológica diz respeito ao indivíduo, ao grupo familiar e à sociedade, inclusive
com a finalidade, também, de prevenção de doenças, tornando-se matéria de
saúde pública e interesse social.
Na maioria das vezes, a falta de reconhecimento e o desconhecimento
sobre sua origem genética são problemas que os filhos carregam consigo por
toda a vida, sem solução, que os transformam em adultos frustrados, sem
perspectivas sobre o futuro, impulsionando-os até a delinquir em razão das
sequelas emocionais oriundas de omissões dessa natureza. Só o fato de não
portarem o sobrenome paterno pode trazer muito mais transtornos e comprometimento para sua integridade psíquica do que não saberem quem seja
seu pai. Sofre, portanto, o filho que não sabe a sua origem genética, como
também a sociedade, com o abandono dos filhos, entregues, muitas vezes, à
sua própria sorte, tornando-se jovens vulneráveis à delinquência.
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Princípios constitucionais e exame de DNA nas ações de
investigação de paternidade
A Lei Magna do ordenamento jurídico pátrio elenca vários direitos e
adverte para a “absoluta prioridade” de assegurá-los a crianças e adolescentes.
Assim em seu art. 227, estatui:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
O texto constitucional deixa claro que o dever de garantir os direitos da
criança e do adolescente é inicialmente da família, depois, da sociedade, e, por
fim, do Estado. Os pais têm direitos-deveres em relação aos filhos, e o Código
Civil, em seu art. 1.634, esclarece que são decorrentes do Poder Familiar, de
competência dos pais. Sobre a paternidade responsável, a Constituição Federal, em seu art. 226, assim positivou:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
[…]§ 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é de livre decisão do casal, [...]
Está esculpida no art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
uma série de prerrogativas aos menores, especialmente a paternidade responsável e a dignidade humana, que devem ser asseguradas pelo Estado. Lê-se:
Art. 27. O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros,
sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça.
Mas, é preciso muito mais para se educar e formar um ser humano saudável, feliz e integrado em seu meio social. A figura do pai é fundamental na
formação do filho. A presença paterna, física e psicológica, é importante para
o seu desenvolvimento, que só se concretiza na relação pai e filho. E quanto à
criança ou o jovem que nem ao menos sabe quem é seu pai biológico e tem o
desejo íntimo de conhecê-lo para ter a oportunidade de resgatar a sua presença? O desejo do filho de saber sua origem genética deve prevalecer?
Com o exame de DNA (ácido desoxirribonucleico) a determinação da
paternidade passou a atingir níveis de certeza praticamente absolutos. Afirma
Darienso41 que, estastíticas do Registro Civil no Brasil, indicam que aproxima41 MARTINS, Antônio Darienso. Investigação de paternidade & antecipação dos efeitos da
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damente 30% das crianças aqui nascidas não têm o nome do genitor declarado
em sua certidão de nascimento, o que representa um sério problema emocional, econômico e social. O DNA é o material genético que compõe os genes,
armazenando e transmitindo as características hereditárias de pais para filhos.
O exame é empregado para fins de identificação pessoal e determinação de paternidade, podendo ser feito até mesmo antes do nascimento ou após a morte.
A determinação da paternidade pode surgir em casos amigáveis de confirmação de paternidade, em disputas legais para fins de pensão alimentícia
e herança, em casos criminais envolvendo estupro, rapto, troca ou abandono
de crianças, e em casos médicos de diagnóstico pré-natal e aconselhamento
genético.
Importante tema no meio jurídico tem sido a realização desse tipo de
exame nos casos de investigação de paternidade. Maior ênfase se lhe atribui
quando se discute a obrigatoriedade ou não da submissão do investigado ao
exame hematológico para a comprovação da paternidade discutida. A verdade
que tanto as partes quanto o próprio magistrado buscam em juízo deve ser
amplamente perseguida, sem, no entanto, se exceder as barreiras e os limites
do razoável, de modo a não colidir com os direitos inerentes à dignidade humana, fundamentalmente assegurados nos Estados democráticos de direito.
A única forma de evitar a descoberta da paternidade passou a ser a negativa do réu em comparecer ao laboratório para a realização do DNA. Nesse
caso, como se entende o princípio da dignidade da pessoa em relação ao investigante, que deseja saber quem é verdadeiramente seu genitor? Esse princípio obriga ao inafastável compromisso com o absoluto e irrestrito respeito à
identidade e à integridade do ser humano.
Segundo Darienso Martins42, não permitir que o investigante, mesmo
diante dos progressos científicos verificados nos últimos anos, possa descobrir
sua origem paterna é ferir por completo sua dignidade como pessoa humana.
A certeza da paternidade é um dos ingredientes que integram esse princípio.
Ao se impedir a busca ou criar óbices ao acesso de um filho à sua origem
biológica ou à filiação paterna por meio da investigatória, no exercício de
uma série de direitos fundamentais, se estaria violando esse princípio constitucional. Dignidade e liberdade estão atreladas à pessoa humana, e um dos
fins do Estado é propiciar as condições para que as pessoas se tornem dignas,
facilitando-lhes o exercício da liberdade.
42
tutela. Curitiba: Juruá, 2008. p.53.
MARTINS, Antônio Darienso. Investigação de paternidade & antecipação dos efeitos da
tutela. Curitiba: Juruá, 2008. p.67.
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O princípio da dignidade humana deve expressar para a sociedade a segurança e a realização de condições da igualação dos indivíduos em sociedade,
de forma harmônica e sem discriminação de qualquer ordem. Esse princípio
é a base da própria existência do Estado brasileiro e, ao mesmo tempo, fim
permanente de todas as suas atividades.
Assim, o exame de DNA é um direito assegurado ao investigante, a ele
devendo se submeter o investigado, diante das razões expostas, quando houver confronto entre os direitos daquele e os invocados por este para obstar sua
submissão ao procedimento do exame, valendo-se do direito de recusa.
Afirma o professor Antônio Darienso Martins:43
Formaram-se nos últimos tempos, três correntes sobre os efeitos decorrentes da
recusa. A primeira professa a obrigatoriedade na realização do exame do DNA
no investigado, principalmente quando este seria o único elemento de prova e
cuja recusa poderia implicar o crime de desobediência à ordem judicial, aliada à
pena de confissão quanto à matéria de fato. A segunda entende que o réu poderia
recusar-se a submeter-se à realização do exame, entretanto, sua negativa resultaria na presunção da verdade dos fatos independentemente do cotejo com outras
provas. Finalmente, a terceira corrente fundamenta-se na não-obrigatoriedade de
a pessoa se submeter ao exame e também admite que a negativa por parte do réu
não implica presunção da paternidade, mas apenas, um componente que poderá
reverter-se em seu desfavor, caso o contexto probatório restante assim permita.
Como ninguém pode ser obrigado a fornecer sangue ou qualquer parte
de seu corpo para a obtenção de prova judicial, a anuência do investigado é
pressuposto imprescindível para que o exame seja efetivado. Existe, porém, a
possibilidade de se colher prova testemunhal, mas a precisão do resultado não
é a mesma. No entanto, fica evidente que a pessoa que se recusa a fornecer
elementos para a verificação inequívoca da ocorrência de um fato que gere
responsabilidade civil ou penal tem consciência do seu dever de arcar com
assistência material, moral e intelectual44.
Os defensores do direito à inviolabilidade da intimidade e da vida privada
buscam argumento no princípio da “inviolabilidade da vida privada”, contido
no art. 5º, X, da CF, como também no princípio segundo o qual “ninguém
deve ser obrigado a produzir prova contra si mesmo”. Essa corrente busca,
ainda, argumento no princípio da Legalidade, que dispõe que “ninguém será
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.”
Como decorrência da autonomia da vontade e do respeito ao livre-arbítrio,
o direito à privacidade confere ao indivíduo a possibilidade de conduzir sua
43 Ibdi., p.54-55.
44 Ibdi., p. 55.
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própria vida da maneira que julgar mais conveniente, sem intromissão da
curiosidade alheia, desde que não viole a ordem pública, os bons costumes e
o direito de terceiros.
Defensores dessa corrente buscam uma hermenêutica que no passado
tanto se mostrou sem solução pelo autoritarismo das decisões. Tentam aliar
os direitos do filho com os do suposto pai acusado, gerando, ao segundo, a
possibilidade de se defender dos fatos alegados pelo primeiro, provando ser
ou não o pai sem violar qualquer garantia ou direito que lhe é reservado pela
Constituição. Porém, caso o suposto pai se negue a fazer o exame, tem o filho
o direito supremo, resguardado pela Constituição, de busca de sua moral, de
sua dignidade, de saber quem é seu verdadeiro pai. Para tanto, deve-se tomar
por analogia o Código de Processo Civil, presumindo-se real a paternidade,
e sujeitando-se aquele que se furtar do exame a todos os ônus judiciais que
um verdadeiro pai carrega até o momento em que deseje reverter a acusação e
provar, por meio do exame, a acusação até então presumida.
Para afastar a condução coercitiva do investigado na produção do exame de DNA, Welter45 apresenta duas justificativas. Em primeiro, o direito
do investigado relacionado à defesa dos direitos fundamentais à liberdade, à
intimidade, à vida privada, à intangibilidade física e a não-obrigatoriedade
de produção de provas contra si, garantindo os princípios da legalidade e da
reserva da Constituição Federal. Isso porque qualquer parte do corpo - um
dedo, uma unha ou um fio de cabelo - é indissociável do corpo humano e da
pessoa, não podendo ser considerada coisa a parte. Assim, não é possível querer tratar o corpo humano, ou um elemento dele, como uma coisa, um bem
que possa ser disposto pela vontade de terceiro ou do Estado. Em segundo,
alerta que somente seria possível produzir exame genético se existisse lei prevendo esse procedimento, e a condução coercitiva violaria a paz social.
9
Solução para colisão entre princípios e referência ao princípio
da proporcionalidade
Quando o operador do Direito se encontra diante de uma colisão entre
dois princípios constitucionais, ele opta por um deles, sem que o outro seja
rechaçado do sistema ou deixe de ser aplicado a outros casos que comportem
sua aceitação. Diante dessa convivência colidente dos princípios se preconiza
a necessidade da atividade hermenêutica do intérprete no âmbito do caso
45 WELTER, Belmiro Pedro apud MARTINS, Antônio Darienso. Investigação de paternidade &
antecipação dos efeitos da tutela. Curitiba: Juruá, 2008. p. 69-70.
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concreto, o qual deverá, quando da aplicação normativa, ponderar os bens, os
valores e os interesses postos em causa, lançando mão de critérios de solução
de conflitos que basicamente são encontrados nos postulados da proporcionalidade e razoabilidade (bom senso). A partir da ponderação (que significa
pesar os prós e os contras, avaliar, sopesar), guiada pela proporcionalidade e
razoabilidade, privilegia-se um direito fundamental em detrimento do outro
quando evidenciada a colisão, procurando-se desrespeitar o mínimo daquele
que resta sobreposto, já que não se lhe pode faltar, totalmente, com o respeito,
isto é, ferindo-lhe seu núcleo essencial, onde se encontra entronizado o valor
da dignidade humana.
Segundo Fernanda Borghetti Cantali46, o princípio da proporcionalidade é fundamental para a garantia dos direitos fundamentais e do próprio
Estado Democrático de Direito e, portanto, assume status de princípio essencial da Constituição, mas também é método de solução de colisão entre os demais princípios. Nesse sentido, é concebido sob uma dupla perspectiva. Uma,
normativa, eis que é norma constitucional que vincula os poderes públicos,
sobretudo o Poder Judiciário, que, ao fim e ao cabo, concretiza o exame da
proporcionalidade; e outra, metodológica, na medida em que o princípio da
proporcionalidade é um método, uma estrutura racional de argumentação,
um parâmetro técnico por meio do qual se verifica se as restrições levadas a
efeito são adequadas à realização dos direitos colidentes, eis que o fim último
é a garantia aos indivíduos de uma esfera composta por alguns direitos fundamentais que não podem ser menosprezados a qualquer título.
Alexy47 ensina que todos os princípios a priori têm o mesmo valor e peso.
Caso dois ou mais princípios colidam, deve ser ponderado no caso concreto
qual deles deve prevalecer para fazer Justiça. Não se resolve o conflito eliminando um dos princípios do rol dos princípios, também não se estabelece
uma regra geral pela qual um prevalece diante de outro, e tampouco se estabelece uma regra de exceção, pela qual, em tese, um princípio prevalece, podendo, em certos casos, prevalecer o outro. Assim, não existe uma preferência
absoluta de um princípio diante de outro, mas uma preferência condicionada,
como explica Alexy:48
46 CANTALI, Fernanda Borghetti. Direitos da personalidade: disponibilidade relativa, autonomia
privada e dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 247.
47 ALEXY, Robert apud KÖHN, Edgar. Princípios e regras e sua identificação na visão de Robert
Alexy. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, nº 188, 2011. Disponível em: <http://www.boletimjuridico.com.br/ doutrina/texto.asp?id=1440>. Acesso em: 30 ago. 2011.
48 Ibid.
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A solução da colisão consiste, ao contrário, em estabelecer, considerando as circunstâncias do caso, uma relação de preferência condicionada dos princípios. O
estabelecimento da relação de preferência condicionada dos princípios, por sua
vez, consiste em que, em referência ao caso sejam indicadas as condições sob as
quais um dos princípios precede o outro. Em outras condições, a relação de preferência condicionada dos princípios pode ser ao contrário.
A colisão se resolve pela ponderação no caso concreto, mas a lei da colisão, elaborada por Alexy49, explica que se as condições, em dois casos diferentes, são iguais, deve prevalecer em ambos os casos o mesmo princípio; porém,
se as condições concretas são diferentes, pode prevalecer, no conflito entre os
mesmos princípios, o outro princípio. Assim, a solução da colisão entre princípios se dá, no caso concreto, mediante a ponderação. Como os princípios
são “mandados de otimização”, devem ser aplicados, para melhor atender às
necessidades da sociedade. Para se avaliar qual princípio, no caso concreto,
é o mais justo, utiliza-se o princípio da proporcionalidade como critério da
ponderação.
O autor não indica critérios “segundo os quais fosse possível avaliar a
adequação de um enunciado de preferência”. Mas descreve as máximas da
proporcionalidade. Segundo o seu entendimento, a ponderação é feita pelo
princípio da proporcionalidade, que contém três máximas, a serem sempre
observadas: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
Considera-se atendida a máxima da adequação quando as medidas tomadas
são aptas para se atingir o fim desejado; a máxima da necessidade, quando se
verificou que a medida tomada é a menos gravosa para o mesmo propósito; e
a da proporcionalidade em sentido estrito, quando as vantagens superam as
desvantagens.50
Na colisão de princípios se pondera os princípios em colisão. No caso
concreto analisa-se se a aplicação de ambos é adequada e necessária e, se realmente for, passa-se à proporcionalidade em sentido estrito. Alexy51 conclui
que “para princípios, só será decisiva a dimensão do peso, e isso segundo as
respectivas circunstâncias especiais de cada caso”.
No mesmo sentido assim se posiciona Günther:52
49 ALEXY, Robert apud KÖHN, Edgar. Princípios e regras e sua identificação na visão de Robert
Alexy. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, nº 188, 2011. Disponível em: <http://www.boletimjuridico.com.br/ doutrina/texto.asp?id=1440>. Acesso em: 30 ago. 2011.
50 I bid.
51 Ibid.
52 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. São
Paulo: Landy, 2004. p.317.
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[...] Por meio da lei de colisão e da sua ampliação na forma da “lei de ponderação”,
será possível formar enunciados de precedência referentes às circunstâncias especiais do caso, cujos sinais característicos factuais, combinados com uma determinada consequência jurídica, poderão ser transformados em uma regra definitiva.
A adequação de um princípio resultará da determinação da relação frente a todos
os demais princípios aplicáveis na situação, e das condições efetivas, das quais a
concretização do princípio dependerá.
Ou seja, no conflito entre princípios o juiz pondera, em cada caso, conforme as circunstâncias, qual princípio deve prevalecer, porquanto não pode
existir uma precedência absoluta entre os princípios, esta necessariamente depende da ponderação no caso concreto.
Neste sentido conclui Sanchis:53
Que o conflito de princípios se resolve pela ponderação, avaliando as circunstâncias do caso concreto, estabelecendo entre os princípios uma preferência condicionada, porque se fosse estabelecido uma preferência absoluta, estaria se formulando
uma regra, que num princípio é inadmissível, justamente porque, para estabelecer
uma preferência absoluta se deveria poder prever todos os casos possíveis, de colisão de princípios, e aceitar como universalmente aceito em todos eles a preferência
do princípio, a qual foi atribuída a preferência absoluta.
Conforme Alexy54, se há uma única exceção, não pode se falar em preferência absoluta. Como essa previsão é impossível, não pode haver preferência
absoluta de um princípio sobre outro.
Em caso de colisão de princípios deve ser analisado cada caso concreto
para se ponderar qual princípio deve prevalecer. A questão está em como ponderar, em qual princípio deve prevalecer. O princípio da proporcionalidade
naturalmente será aplicado, mas, como o julgador pode decidir o que, no caso
concreto, é proporcionalmente melhor para fazer justiça?
Alexy propõe a lei da ponderação, que prescreve que quanto mais elevado o grau do não cumprimento de um princípio tanto maior tem que ser a
importância de cumprimento do outro. Dito de outro modo, quanto maior
o prejuízo causado pela desconsideração de um princípio, maiores devem ser
as vantagens obtidas pela preferência do outro. Essa lei da ponderação é importante para destacar que o peso de cada princípio deve ser considerado, mas
não consiste em um critério para saber qual princípio tem o maior peso.
Quanto à existência de critérios para avaliar qual dentre os princípios
colidentes é proporcionalmente mais adequado para o caso concreto, Alexy,
53 SANCHIS apud KÖHN, Edgar. Princípios e regras e sua identificação na visão de Robert Alexy.
Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, nº 188, 2011. Disponível em: <http://www.boletimjuridico.
com.br/ doutrina/texto.asp?id=1440>. Acesso em: 30 ago. 2011.
54 ALEXY, Robert apud KÖHN, Edgar. Id.
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buscando avaliar a possibilidade de existirem princípios absolutos, cuja prevalência fosse constante, elegeu como objeto de estudo o princípio da dignidade
da pessoa humana, chegando à seguinte conclusão:55
[...] que nem ele é absoluto. [O autor] Cita como exemplo, que o princípio da
dignidade humana pode sucumbir ao interesse da sociedade, no caso de prisão
perpétua de criminosos perigosos. Além disso este princípio não pode servir de
critério na ponderação porque o conceito é tão aberto, que pode ser facilmente
interpretado pelo lado desejado.
Já Dussel56 formulou o critério material da produção, reprodução e desenvolvimento da vida humana como critério da ética. Embora à primeira
vista esse princípio pareça bom para a ponderação, ele não funciona, porque
o princípio da vida também não é absoluto, haja vista a legislação brasileira
permitir, quando necessário, tirar a vida de alguém em legítima defesa, até da
propriedade. Em não se tratando de um valor absoluto, sua valoração depende de cada caso. Assim, não pode servir como critério para a ponderação.
Na falta de critérios materiais, resta apenas o critério formal apresentado
por Habermas, o Discurso57. O próprio Habermas e Alexy adaptaram a teoria
do Discurso para o Direito. Conforme Alexy, devem ser estabelecidas regras
para o Discurso. Resumindo, essas regras dizem que cada participante pode
falar, e que cada afirmação deve ser fundamentada, quando solicitado. Se for
fundamentado e apresentado um contra-argumento, deve ser respondido. Se
se quiser argumentar contra precedentes, que se aja de modo fundamentado.
Essas regras devem ser respeitadas e fiscalizadas pelo juiz, que, em base dos
argumentos apresentados, toma sua decisão. Para isso é necessário que o juiz
seja imparcial.
Sendo imparcial, o juiz avalia, em base da argumentação apresentada
pelas partes, qual princípio, no caso concreto, atende melhor à justiça, ao bem
comum e à paz social. Para garantir essa justiça e a segurança jurídica é de
importância fundamental que a decisão seja fundamentada. Os argumentos
devem ser avaliados e apreciados de forma imparcial.
Na decisão do juiz existe o campo de descoberta, no âmbito do qual se
forma sua decisão. É parcial, influenciado pela matriz cultural do magistrado,
formada pela educação, religião, formação acadêmica e estudos realizados, daí
ser possível que ele tenha opinião formada a respeito de certos casos. Assim, a
55 Ibid.
56 DUSSEL apud KÖHN, Edgar. Princípios e regras e sua identificação na visão de Robert Alexy.
Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, nº 188, 2011. Disponível em: <http://www.boletimjuridico.
com.br/doutrina/texto .asp?id=1440>. Acesso em: 30 ago. 2011.
57 ALEXY, Robert apud KÖHN, Edgar. Id.
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humanidade o impede de ser neutro, mas o mister exige-lhe que seja imparcial, analise toda a argumentação e fundamente sua decisão58.
Essa fundamentação acontece no campo de justificação e não permite arbitrariedades, porque deve atender a requisitos essenciais. Deve ser coerente e
consistente com o sistema jurídico – isso significa dizer que em circunstâncias
iguais a decisão deve ser a mesma; o juiz não pode tomar uma decisão favorável a alguém em um determinado caso e, em situação semelhante, em que as
partes sejam outras, decidir diferentemente. Porém, se mudam as circunstâncias pode ser mudada a decisão. Além disso, a decisão deve ser adequada - as
consequências positivas devem ser maiores que as negativas. Aplica-se, aqui,
o princípio da proporcionalidade, que consiste nas três máximas: adequação,
necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.59
Como critério para se avaliar qual princípio é mais adequado invoca-se
como primeiro referente a ética. Na necessidade de fundamentação reside a
garantia de que o discurso seja apreciado devidamente.
Alexy60 mostra também a importância da doutrina. Inconformado com
uma norma ou interpretação injusta, por exemplo, o doutrinador escreve um
artigo, que pode ser lido por um juiz e, se bem arrazoado, pode convencê-lo de
que o doutrinador tem razão. Assim, num caso que envolva a matéria ele se lembrará do artigo, que comporá sua matriz cultural, influenciando o julgamento,
podendo servir de base para a fundamentação da sentença. O artigo também
pode ser lido por um advogado, que usa a argumentação apresentada num processo, convencendo o juiz, que julga no sentido pretendido pelo doutrinador.
Embora não se possam estabelecer critérios materiais para a ponderação
da colisão de princípios, podem-se apresentar argumentações em favor ou
contrárias a um princípio em caso de colisão. Assim, pode-se discutir academicamente, por exemplo, sobre qual princípio deve prevalecer no caso de
colisão entre o princípio do direito à informação e o do direito à intimidade,
nos casos de invasão de privacidade praticada pela imprensa. Não se pode definir de antemão que sempre deve prevalecer um princípio, porque pode haver
exceções não previsíveis; pelos previsíveis poder-se-ia formular uma regra de
exceção. Também não há como estabelecer critérios materiais pelos quais se
possa resolver o caso. O que se pode fazer é apresentar argumentações para a
58 ALEXY, Robert apud KÖHN, Edgar. Princípios e regras e sua identificação na visão de Robert
Alexy. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, nº 188, 2011. Disponível em: <http://www.boletimjuridico.com.br/ doutrina/texto.asp?id=1440>. Acesso em: 30 ago. 2011.
59 Ibid.
60 Ibid.
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prevalência de um ou outro princípio nos casos hipotéticos analisados. Isso é
tarefa da doutrina61.
Afirma Darienso62 que, no caso dos direitos fundamentais do filho que
promove a investigação de paternidade e do pai que figura no polo passivo da
relação jurídico-processual na condição de réu investigado não se está apenas diante de um conflito entre duas normas infraconstitucionais; ou entre
uma norma infraconstitucional e outra constitucional; ou entre duas normas
constitucionais; ou entre uma norma constitucional e um princípio constitucional; ou ainda, entre dois princípios constitucionais. Está-se, também,
diante de um conflito entre dois direitos fundamentais abarcados pelo mesmo
princípio constitucional: o da dignidade da pessoa humana.
Diante da incerteza gerada pelo conflito instaurado, questiona-se se para
a garantia da dignidade dos contentores - autor e réu da ação de investigação
de paternidade - esse princípio deveria ou não ser relativizado.
Alguns doutrinadores opõem-se à relativização do princípio da dignidade da pessoa humana, pois nem mesmo o interesse comunitário justificaria
ofensa à dignidade pessoal, haja vista que cada restrição à dignidade importa
em sua violação, vedada, portanto, pelo ordenamento jurídico. Não se pode,
porém, generalizar essa posição prevalente, porque, no caso do filho que investiga o pai, não se está confrontando somente direitos individuais ou comunitários, mas, sim, a motivação de um pai para usurpar a dignidade do filho
expressa em sua recusa à produção do material necessário para a realização do
exame genético em DNA; afinal, foi ele, e não um terceiro ou a sociedade,
quem deu causa à denegação da dignidade a um ser humano63. E nem mesmo
os direitos e princípios constitucionais são absolutos, pois, quando sofrem o
embate de direito da mesma hierarquia e valor, poder-se-ia invocar o princípio
da dignidade humana, elevado à categoria de fundamento da República.
Tendo em vista que ambos os litigantes podem invocar a preservação e
intangibilidade do princípio da dignidade da pessoa humana, conclui Juarez
Freitas64 que:
61 KÖHN, Edgar. Princípios e regras e sua identificação na visão de Robert Alexy. Boletim Jurídico,
Uberaba/MG, a. 4, nº 188, 2011. Disponível em: <http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/
texto .asp?id=1440>. Acesso em: 30 ago. 2011.
62 MARTINS, Antônio Darienso. Investigação de paternidade & antecipação dos efeitos da tutela. Curitiba: Juruá, 2008. p. 72.
63 Ibid., p. 73-74.
64 FREITAS, Juarez apud MARTINS, Antônio Darienso. Investigação de paternidade & antecipação dos efeitos da tutela. Curitiba: Juruá, 2008. p.74.
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Todas as colisões podem somente então ser solucionadas se ou de um lado ou de
ambos, de alguma maneira, limitações são efetuadas ou sacrifícios são feitos, pelo
que os princípios constitucionais jamais devem ser eliminados mutuamente, ainda
quando em colisão, à diferença do que sucede com as normas ou regras.
Vale destacar, também, que o direito ao próprio corpo não é absoluto ou
ilimitado. Por vezes, a incolumidade corporal deve ceder espaço a um interesse preponderante.
Para Sarlet65, a conduta não digna do suposto pai não importa perda,
mas, sim, enfraquece sua dignidade, pois exclui a dignidade do investigante,
legitimando, por isso, a aplicação do princípio da ponderação no princípio
da dignidade da pessoa humana do investigado, conduzindo-o à feitura do
exame genético em DNA.
Nas decisões judiciais têm prevalecido que o estado e a condição de ser
filho, e o direito à sua ancestralidade são direitos fundamentais e fazem parte
dos princípios da cidadania e da dignidade humana, portanto, devem ser bem
ponderados ante o direito do investigado de não violação de sua intimidade e
vida privada, também princípio da intangibilidade do corpo humano, posto
que protege um interesse privado, que deve dar lugar ao direito à identidade,
que salvaguarda, em última análise, um interesse público. As partes devem
se encontrar no mesmo nível processual, em vista do princípio da igualdade
que norteia o Direito Processual Civil, mas o investigante é a parte mais fraca
na relação jurídico-processual, pois se encontra em estado de necessidade in
concreto, direito com caráter de urgência ante a sociedade, e necessário se faz
reconhecer à pessoa humana os direitos fundamentais que lhe são inerentes
para que não lhe seja negada a própria dignidade. Por esta e outras razões
ocorre o chamamento do réu em Juízo para se submeter ao exame de DNA,
sob pena de presunção da paternidade.
10 Considerações do stf e do stj, súmula 301 do stj e lei nº 12.004/09
O Supremo Tribunal Federal (STF) firmou orientação polêmica, tempos atrás, fundada sobretudo no princípio da dignidade da pessoa humana,
garantindo ao réu o direito de recusar-se ao exame de DNA, mas negando ao
investigante o direito de conhecer sua origem genética.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), antes da edição da Súmula 301,
vinha orientando em sentido diverso, decidindo que não se justifica inacolher
a produção de prova genética pelo DNA, que a ciência tem proclamado idônea e eficaz, em casos que envolvam reconhecimento judicial de paternidade.
65 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.
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Segundo Martins66, a divergência jurisprudencial reflete a confusão que
se faz entre direito da personalidade, inerente e inato à pessoa, em seu âmbito
individual e personalíssimo, e reconhecimento ou contestação do estado de
filiação, que pode - ou não - ter origem biológica.
O STF fundamenta sua posição em garantias constitucionais do indivíduo (princípios e direitos da personalidade) para imunizá-lo do exame de
DNA. Porém, seria lesivo à dignidade da pessoa humana e invasivo da intimidade submeter alguém ao exame, extraindo-lhe uma gota de sangue, um fio
de cabelo ou um fragmento de unha?
A orientação do STF, afirma Martins67, é correta quanto ao impedimento
da feitura do exame que provoca a utilização equivocada da origem genética
para negar o estado de filiação já constituído. Todavia, seu amplo alcance
pode comprometer o conhecimento da origem genética com o intuito exclusivo de tutela do direito da personalidade do interessado, fundado no mesmo
princípio da dignidade da pessoa humana, ainda que não produza o efeito de
negar o estado de filiação de origem não-biológica, comprovadamente constituído na convivência familiar duradoura.
O direito à filiação não é somente um direito à verdade. É, também, em
parte, um direito à vida, de interesse da criança, da paz das famílias, das afeições, dos sentimentos morais, da origem estabelecida.
Foi segundo esse raciocínio que o STJ editou a Súmula 301, estabelecendo que, “em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao
exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade”.
Segundo Darienso68, ao limitar a recusa do réu à realização do exame de
DNA a simples indução de presunção de paternidade, a ausência de outras
provas para sua comprovação levaria o autor, fatalmente, a ter sua pretensão
frustrada. O entendimento pacificado na Súmula, em que pese a aparente evolução, não deixa de significar um retrocesso nessa seara, pois, ao estipular o
efeito de presunção da paternidade diante da recusa, além de admitir prova em
contrário, exige, ao mesmo tempo, a presença de outras provas para ensejar um
julgamento de procedência da ação investigatória. A recorrência das ações que
protestam em razão da negativa dos supostos pais em se submeterem ao exame
de DNA resultou na publicação dessa súmula. Em julho de 2009 foi sancionada a Lei nº 12.004, que alterou a norma que regula a investigação de pater66 MARTINS, Antônio Darienso. Investigação de paternidade & antecipação dos efeitos da tutela. Curitiba: Juruá, 2008. p. 56-57.
67 Ibid.
68 Ibid, p.57-58.
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nidade dos filhos havidos fora do casamento, inserindo o disposto na súmula
na legislação. O art. 2º da Lei nº 8.560/92 passou a vigorar acrescido do art.
2º-A, segundo o qual “Na ação de investigação de paternidade, todos os meios
legais, bem como os moralmente legítimos, serão hábeis para provar a verdade
dos fatos”. O parágrafo único do mesmo dispositivo estabelece que “A recusa
do réu em se submeter ao exame de código genético – DNA gerará a presunção
da paternidade, a ser apreciada em conjunto com o contexto probatório.”
E, segundo o julgado:
Diante da impossibilidade de perícia de DNA pela recusa do investigado na ação
de investigação de paternidade, se faz necessário a ponderação dos princípios da
presunção de inocência versus da presunção de veracidade dos fatos alegados. O
Superior Tribunal de Justiça, in casu, assim decidiu: investigado no exame de paternidade que se recusa de forma injustificada a fazer o exame é condenado. (RT
750/336) STJ-Resp 4987-RJ.9. (Grifos do original).
Trata-se de entendimento mais que justificado, pois, em regra, o suposto pai não faz o menor esforço para elucidar a situação. É muito complexo
proferir sentença em ação de investigação de paternidade baseada apenas em
prova testemunhal. Por mais que se prove relacionamento amoroso, sempre
há incerteza, e, afinal, existe o exame de DNA para colocar fim a esse assunto.
Conclusão
Do presente trabalho chega-se à conclusão de que cada vez mais se admite a ideia de a pessoa humana como fonte de todos os valores, crescendo,
assim, a necessidade de fundamentar e completar os direitos da personalidade. A Constituição de 1988 reconhece expressamente a tutela dos direitos da
personalidade, transparecendo, assim, a concepção de dignidade da pessoa
humana com a noção de proteção a esses direitos.
Nas ações de investigação de paternidade, somente com a superação das
limitações quanto à produção de prova consistente no exame de DNA supera-se o conflito instaurado pela invocação da mesma proteção constitucional,
assegurada por intermédio do princípio da dignidade da pessoa humana.
Nessas ações, a recusa do investigado em submeter-se ao exame de DNA
implica a colisão entre direitos de personalidade: o direito à identidade genética do investigante e o direito à intangibilidade física do investigado, bem
como entre os princípios constitucionais assegurados ao investigante e ao investigado. Por esse motivo, não se pode desprezar a produção da prova genética do DNA em busca da verdade real.
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Havendo conflitos entre regras e colisão entre princípios é importante
que o Estado deva guiar-se com a devida prudência, evitando qualquer situação constrangedora para as partes na busca sempre pacífica de uma solução
justa para a lide, sem com isso atingir-lhes os direitos que a Constituição
resguarda.
Conclui-se que deve prevalecer o princípio da dignidade da pessoa humana inserido no direito à identidade genética e à filiação do investigante em
tais ações de paternidade, pois é direito personalíssimo de toda pessoa poder
conhecer sua origem, sua identidade biológica e civil, sua família de sangue,
visto que daí se desfruta de uma série de direitos fundamentais garantidos na
Constituição Federal, não devendo ter preferência o princípio da inviolabilidade da vida privada do investigado. A intimidade do pai não é mais forte que
o direito do filho de ter assegurado, como consequência da atitude paterna
menos digna, o seu direito à cidadania ampla e à dignidade pessoal decorrente
do reconhecimento.
De outro modo, a solução definitiva seria a edição de uma norma que
estabelecesse a presunção absoluta da paternidade pela recusa injustificada do
investigado quanto à realização do exame de DNA.
Por fim, o importante de todos os conceitos abordados deve ser a transposição do ideário de justiça para a vida cotidiana, visando assegurar à imensa
massa de excluídos da sociedade e às minorias discriminadas as suas garantias
constitucionais, pois, muitas vezes, são essas que sofrem pela falta efetiva de
um verdadeiro Estado Democrático de Direito.
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O DIREITO FUNDAMENTAL À DEFESA NA
EXECUÇÃO DE FAZER E DE ENTREGA DE COISA
BASEADA EM TÍTULO EXECUTIVO JUDICIAL
André Luis Tabosa de Oliveira1
RESUMO. O
processo de execução é legítimo se e quando inserido e em compatibilidade formal e material com a ordem constitucional em que se encontra
inserido. O respeito aos direitos fundamentais é a pedra de base de seu reconhecimento perante a comunidade jurídica e operadores do direito. Um dos
princípios de maior relevância para caracterizá-lo é o do contraditório e da
ampla defesa. A presença dos mesmos torna o módulo processual executivo
idôneo para a satisfação adequada do direito material que se lhe encontra subjacente. Através de reformas processuais houve a introdução de um procedimento mais célere para a realização de execuções para o cumprimento de obrigações de fazer e de não fazer, segundo os arts 461 e 461-A CPC. Não se fez
menção a uma etapa de defesa quando da instauração desses procedimentos.
Porém, ainda que haja silêncio da lei, há de ser privilegiada a garantia de ampla
defesa, viabilizando a apresentação de argumentos defensivos em seu curso.
PALAVRAS-CHAVE: Execução. Direitos Fundamentais. Processo de Execução. Obrigação de Fazer. Obrigação de Dar. Contraditório. Ampla Defesa.
Constituição. Direito de Defesa.
Abstractthe implementation process is legitimate if and when inserted and formal and material compatibility with the constitutional order in which it is inserted. Respect for fundamental rights is the stone base of its recognition by the legal community and law enforcement
officers. One of the principles most relevant to characterize it is the contradictory and full
defense. The presence of the same procedural executive makes the module suitable for the
proper fulfillment of substantive law that underlies it. Through procedural reforms was the
introduction of faster procedures for carrying out executions for the fulfillment of obligations
to do and not do, according to articles 461and 461-A CPC. No mention was made at a stage
of defense when the introduction of these procedures. But while there is silence of the law,
must be privileged ensuring ample defense, enabling the production of defensive arguments
in its course.
KEYWORDS: Execution. Fundamental Rights. Execution Process. Obligation to do. Obligation to Give. Contradictory. Wide Defense. Constitution. Right of Defense.
1
Promotor de Justiça, Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor da Escola Superior de Magistratura (ESMEC). [email protected]
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1. Introdução.
O direito de acesso à justiça não é o simples pedido de uma tutela ao órgão jurisdicional competente. Não se esgota no protocolo de um requerimento tendo por conteúdo a exposição de um fato, indicação da norma jurídica
de direito material aplicável e um pedido a ser convertido numa ordem de
cumprimento impositivo por parte do sucumbente na demanda. Chiovenda,
um dos pilares da moderna concepção de jurisdição, traz a ideia que o processo deve ser capaz de trazer ao interessado uma situação de fato que mais se
aproxime do que ele obteria caso a pessoa contra quem se demanda houvesse
adimplido a obrigação de modo espontâneo. Além disso, a situação do exitoso
na demanda não há de ser mais gravosa do que se ele não tivesse proposto a
demanda.
Isso revela uma concepção de jurisdição e processo firmemente ligadas
a uma perspectiva individualista e atomista. O poder judiciário, por meio de
seus diversos órgãos nas esferas de atuação respectiva, serviria para a satisfação do interesse particular dos contendores, com uma atuação marcadamente
sub-rogatória. É dizer: caso uma obrigação não restasse cumprida pelo devedor na forma e circunstâncias pactuadas, incumbia ao magistrado adentrar,
de modo legítimo, no patrimônio do recalcitrante, apreender bens capazes de
saldar o débito, e, através de mecanismos expropriatórios, apurar o montante
suficiente para a satisfação patrimonial do credor.
Assim, uma obrigação seria cumprida pelo devedor se e quando ele assim
o desejasse, sob pena de invasão na esfera de liberdade. Criou-se a expressão
“nemo praecise potest cogi ad factum”, a significar que ninguém pode ser
obrigado à prestação de um fato. Maior preocupação nessa época era debitada
à cautela e escrúpulo com a autonomia da vontade do devedor que à realização efetiva da ordem jurídica e eficácia do direito de ação. Há forte reflexo
dessa tendência ainda no Código Civil de 2002, em especial nos arts. 248,
250 e 399.
Com a evolução do direito processual, e uma maior constitucionalização
nessa atividade, o fazer processual tomou um aspecto de efetividade e realização material do justo, tarefas direcionadas a uma efetivação sob a incumbência do poder judiciário. Assim, esse órgão não mais assistiria as demandas
a si apresentadas numa postura de mero árbitro de conflitos. Seu trabalho
doravante consistira numa múnus de realização efetiva da tutela no âmbito do
processo. Firmou-se no âmbito do processo civil a técnica da tutela específica,
como realização material do direito, apenas se admitindo a conversão em perdas e danos como uma providência excepcional.
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Instituiu-se o art. 461 CPC, por meio da lei 8.952, de 13.12.1994, como
um avanço substancial na realização material do direito de ação. Ocorre que
em sua redação, assim como na do art. 461-A, instituído por meio da lei
10.444, de 07.05.2002, que ampliou as disposições da tutela específica para a
execução da obrigação de entrega de coisa, não há qualquer previsão quanto
ao direito de defesa por parte do executado, o que traz discussões em relação
à constitucionalidade dessas disposições.
Essa a matéria a ser discutida no presente artigo.
2. O direito fundamental à defesa no processo.
Direitos humanos seriam, conforme Luño (2003), o “Conjunto de facultades e instituciones que, en cada momento histórico, concretan las
exigencias de la dignidad, la libertad y la igualdad humanas, las cuales
deben ser reconocidas positivamente por los ordenamientos jurídicos a
nivel nacional e internacional” Já os direitos fundamentais são:
“aquellos derechos humanos garantizados por el ordenamiento jurídico positivo, en la mayor parte de los casos en su normativa constitucional, y que suelen gozar de uma tutela reforzada.” (Antonio Enrique Perez
Luño. Los Derechos Fundamentales)
Não se concebe um processo legítimo sem contraditório. É um correlato
necessário ao direito de ação. A parte que traga a juízo fatos e fundamentos
relevantes gera uma natural expectativa de que aquele contra quem é direcionada a pretensão seja capaz de produzir, numa visão de isonomia processual,
argumentos idôneos a desconstituí-la. Trata-se de um ônus para cada um dos
envolvidos no feito, é dizer, incumbe a cada um deles realizá-los da forma
mais exitosa possível e, dessa forma, aumentar suas chances de produzir um
resultado jurídico adequado a seus interesses.
Calamandrei (2003, p. 227) afirma que o juiz não é dessas máquinas em
que basta colocar a moeda de um lado para que do outro saia um cartão com a
resposta, eis que para a demanda seja acolhida é preciso que ela se vá filtrando
pela mente do juiz, que se consiga entender por ele e persuadi-lo. O êxito depende, ainda segundo o autor, da interferência dessas psicologias individuais
e da força de convencimento com que as razões, expostas pelo demandante,
sejam capazes de suscitar ressonâncias e simpatias na consciência do juiz.
O direito à defesa não é relevante apenas sob a perspectiva subjetiva de
resguardo dos interesses das partes na defesa de seus interesses. Por seu intermédio, o direito à ação há de ser medido, avaliado e inserido no contexto do
sistema de processo. Trazendo ao julgador aspectos até então desconhecidos
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ou dissimulados pela parte autora no escopo de firmar como correta sua pretensão. Sem contraditório não há processo num aspecto material no âmbito
do poder judiciário, segundo Fazzalari, mas simples encadeamento de atos
sem idoneidade suficiente para caracterizar o exercício adequado da jurisdição.
Sob uma visão objetiva, a presença de tais princípios constitucionais
presta-se a legitimar o exercício da atividade jurisdicional, indicando o respeito a um dever de diálogo inaugurado e viabilizado entre as partes no decorrer
do feito judicial. Daí, a sentença não mais é o fruto de atividade solitária do
magistrado, cuja obediência pelas partes e terceiros decorreria de uma pretensa força impositiva do poder jurisdicional do Estado, mas síntese racional e
fundamentada das pretensões materiais e instrumentais discutidas no feito e
oriundas de um discurso ético e legítimo.
Assim, contraditório e ampla defesa doravante assumem a postura de
efetivos direitos fundamentais, capazes de legitimar a atividade de jurisdição
numa perspectiva institucional. Não mais garantidores instrumentais do direito das partes, mas condicionantes do exercício legítimo de um fazer estatal
na esfera de jurisdição.
Isso é característica não apenas do processo dito de conhecimento ou
cognição, mas, de igual sorte, é aplicável no de execução, em suas diversas
modalidades, em atenção à clássica conceituação acolhida, envolvendo execução por quantia certa e também execução de obrigação de fazer ou não fazer
e para a entrega de coisa certa ou incerta. Embora, como é natural, nos feitos
executivos, em especial os inaugurados com base em títulos executivos de natureza judicial, conforme o art. 475-N CPC, o contraditório e ampla defesa
sejam minoradas, eis que na fase anterior de conhecimento eles devam ter sido
adequadamente exercidos pelas partes.
3. O direito de defesa no art. 461 e 461-A CPC
Tais artigos regulamentam a aplicação da tutela específica no âmbito das
execuções para a execução de fazer ou não fazer e entrega de coisa certa e
incerta baseadas em título judicial. O conteúdo de ambos é direcionado a
fornecer ao magistrado poderes para o cumprimento do que se chama de um
dever geral de efetivação, trazendo ao mesmo não um simples direito de realização de tutela, mas uma real missão de materialização da melhor aplicação
do direito ao caso material trazido à sua apreciação.
Sucede que na redação dos mesmos não há previsão de qualquer incidente para o exercício do direito de defesa e contraditório por parte do executado.
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O art. 461 traz ordem expressa de que em se tratando de execução de fazer ou
não fazer o juiz concederá a tutela específica da obrigação e, segundo o parágrafo quinto desse artigo, de modo a efetivá-la, ele pode, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como imposição de multa,
busca e apreensão, remoção de coisas, desfazimento de obras e impedimento
de atividades nocivas, inclusive com o uso de força policial, se necessário. Tais
disposições se aplicam às obrigação de entrega de coisa, por remissão expressa
do art. 461-A, §3º do Código de Processo Civil.
São medidas gravosas, embora absolutamente necessárias, que hão de ser
dosadas com um juízo de proporcionalidade, envolvendo as dimensões de necessidade, como um juízo de idoneidade entre o meio escolhido e o objetivo a
alcançar, adequação, entendida como a forma de menos gravosa de atender o
objetivo colimado, e proporcionalidade em sentido estrito, isto é, uma resultante do balanceamento de interesses no caso sob apreciação. No momento
da execução de tais decisões não há um juízo prévio de defesa do executado.
Fredie Didier Jr. (2011, p. 482) expõe:
“Tal como se disse acima, quando se tratou da defesa do devedor na execução das
decisões que impõem obrigação de fazer ou não fazer, o executado deve ter assegurado o seu direito de defesa, a despeito de inexistir disposição expressa no art.
461-A do CPC.” (Curso de Direito Processual Civil. 3ª ed., Bahia, Jus Podium,
2011, p. 482).
Sobre o direito de defesa na execução por obrigação de fazer o mesmo
autor diz:
“Em respeito aos princípios do contraditório e da ampla defesa, é natural que ao
executado se garanta o exercício de seu direito de defesa também na fase de efetivação do julgado que impõe obrigação de fazer ou não fazer. Em que pese inexistir
dispositivo expresso no regramento traçado pelo art. 461 do CPC, essa é uma
conclusão a que se pode chegar a partir da análise do texto legal à luz da Constituição. Em sua defesa, porém, o réu/executado somente poderá trazer defesas de
mérito quando fundadas em fatos supervenientes ao trânsito em julgado, sob pena
de ofensa à coisa julgada material. A única matéria relativa à fase de conhecimento
que pode ser arguida é a falta ou nulidade de citação, visto que se revela como
vício transrescisório. Além disso, poderá arguir defesas processuais, relacionadas à
fase de efetivação, inclusive aquelas referentes às medidas de apoio adotadas pelo
magistrado. Essas defesas deverão ser trazidas por meio de petição simples a ser
acostada aos próprios autos do processo.” (op. cit., p. 469)
Por seu turno, Scarpinella Bueno (2011, p. 515) diz:
“Assim sendo, por força do “modelo constitucional do processo civil”, é irrecusável
que o executado possa dirigir-se ao magistrado prolator da decisão proferida em
seu desfavor para apresentar a matéria de defesa cabível (...) ocasião em que os arts.
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475-L, 475-m E 745,IV, e §§1º e 2º, devem ser observados como referencial necessário das matérias que podem ser arguidas por ele.” (Cassio Scarpinella Bueno.
Curso Sistematizado de Direito Processual Civil: tutela jurisdicional executiva. V.
3. 4ª ed., São Paulo, Saraiva, 2011, P. 515).”
Araken de Assis (2010, p. 623) dispõe ser admissível a impugnação
por parte do executado, que seguirá as normas do art. 741 ou o art.
475-L, podendo ou não haver a impugnação de efeito suspensivo,
segundo dicção expressa dos arts. 475-M e art. 739-A, §1º CPC.
Daniel Amorim Assumpção Neves (2011, p. 941) indica que a impossibilidade de apresentação de embargos à execução não inviabiliza a manifestação do executado, o que feriria o direito ao contraditório e ampla defesa. Defende o autor ser viável a apresentação de mera
petição incidental nos autos executivos.
Dinamarco (2009, p. 527) analisa o momento de defesa no processo
de execução por obrigação de fazer e não fazer dispondo que a tutela específica, em princípio, não se coaduna com o natural retardo originado pela
propositura do expediente da impugnação ao cumprimento dessas obrigações frente à intenção deliberada de viabilizar um cumprimento expedito
da ordem judicial em tela. Porém, isso não obsta ou torna inadmissível
qualquer oportunidade de defesa para o executado. A resistência aos embargos e impugnação nesses casos está centrada na ausência de tempo hábil a
medear entre a publicação da sentença de mérito e sua efetiva execução para
o reconhecimento de defesas meritórias.
Em casos excepcionais, prossegue o autor, com a apresentação de um fundamento deveras plausível no âmbito de uma impugnação ao cumprimento
de sentença, baseado, por exemplo, em prova cabal de pagamento, prescrição
intercorrente, é viável o recebimento da defesa com o caráter de suspensão da
execução. Fora de tais circunstâncias, a defesa a ser apresentada pelo devedor
estará limitada a simples petição por parte do executado nos autos do feito
executivo. Ainda ressaltar ser viável a indicação de defesas processuais, como
ausência de citação, presença de recurso com efeito suspensivo, dentre outros.
Marinoni (2011, p. 189) segue esse posicionamento afirmado que não
há como se eliminar a possibilidade de o réu apresentar defesa nessas execuções no primeiro grau de jurisdição. Ante a falta de norma específica
para o oferecimento de defesa, devem ser aplicadas, no que for cabível, as
regras sobre a impugnação à execução de sentença que reconhece obrigação
de pagar quantia.
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Guerra (2003, p. 77) afirma não poder ser eliminada do ordenamento
jurídico a possibilidade de devedor levar ao conhecimento do juiz, independentemente da via adequada, de matérias que a lei autoriza seja conhecidas
em embargos contra a execução fundada em sentença, conforme o art. 741 do
Código de Processo Civil ou com elas compatíveis. Mas, as que se relacionem
com o mérito do processo de conhecimento cuja satisfação é almejada por
meio do módulo processual executivo, devem ser ventiladas por meio de ação
própria de conhecimento.
4. Análise da jurisprudência acerca da defesa do executado no âmbito
dos arts. 461 e 461-A CPC
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça há posicionamentos que merecem destaque, o que se constata no Recurso Especial nº 1.079.776/PE (1ª
Turma, Ministro Teori Zavascki, DJE de 01.10.2008) em que se lê:
“2. No atual regime do CPC, em se tratando de obrigações de prestação pessoal
(fazer ou não fazer) ou de entrega de coisa, as sentenças correspondentes são executivas lato sensu, a significar que o seu cumprimento se opera na própria relação
processual original, nos termos dos artigos 461 e 461-A do CPC. Afasta-se, nesses
casos, o cabimento de ação autônoma de execução, bem como, conseqüentemente, de oposição do devedor por ação de embargos.
3. Todavia, isso não significa que o sistema processual esteja negando ao
executado o direito de se defender em face de atos executivos ilegítimos, o
que importaria ofensa ao princípio constitucional da ampla defesa (CF, art.
5º, LV). Ao contrário de negar o direito de defesa, o atual sistema o facilita:
ocorrendo impropriedades ou excessos na prática dos atos executivos previstos
no artigo 461 do CPC, a defesa do devedor se fará por simples petição, no
âmbito da própria relação processual em que for determinada a medida executiva, ou pela via recursal ordinária, se for o caso.
4. Tendo o devedor ajuizado embargos à execução, ao invés de se defender por simples petição, cumpre ao juiz, atendendo aos princípios da economia processual e da instrumentalidade das formas, promover o aproveitamento desse ato, autuando, processando e decidindo o pedido como incidente,
nos próprios autos. Precedente da 1ª Turma: REsp 738424/DF, relator para
acórdão Ministro Teori Albino Zavascki, DJ de 20.02.2006”
No mesmo sentido desse julgamento, pode ser destacados os julgamentos do Recurso Especial 738.424 – DF, Relator Ministro Teori Zavascki, de 20.02.2006, com votos favoráveis dos então Ministros Luiz Fux e
Denise Arruda.
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O entendimento predominante do Superior Tribunal de Justiça é que
a execução baseada no art. 461 e 461-A CPC dispensam a presença de processo autônomo de execução e consequente oferta de defesa através de embargos pelo executado, que se lê, por exemplo, no julgamento do Recurso
Especial 1252021/CE (2ª Turma, Ministro Mauro Campbell Marques, DJ
14.06.2011):
“2. Em segundo lugar, entende o STJ que, no cumprimento de decisão judicial
que impõe obrigação de fazer ou não fazer, em razão de sua imediata executoriedade, conforme os arts. 461 e 644 do CPC, notadamente com a redação que lhes
foi dada pela Lei n. 10.444/2002, não se comportam a instauração de processo
autônomo de execução e, consequentemente, a oposição de embargos à execução.
3. Recurso especial não provido.”
Tal julgamento foi acompanhado pelos Ministros Cesar Asfor Rocha,
Castro Meira, e Humberto Martins e Herman Benjamin.
Tal posicionamento ainda restou presente nos seguintes julgamentos:
Recurso Especial 957.111 – DF, Ministro Luiz Fux, em 16.10.2008; Agravo
Regimental no Recurso Especial nº 742047 – DF, Ministro Castro Meira, em
06.12.2005; Recurso Especial nº 591.044 – BA, Relatora Ministra Denise
Arruda.
Em relação especificamente à obrigação de entrega de coisa, deve ser
destacado o julgamento do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial
nº 595.950, Ministro Fernando Gonçalves, j. 23.11.04, DJU 13.12.2004,
transcrito por Negrão (2011, p. 530):
“Com o advento da Lei 10.444, de 7.5.2002, foi incluído no CPC, o art. 461-A,
trazendo a hipótese de tutela específica para as obrigações de entrega de coisa certa
decorrentes de título judicial, independentemente do ajuizamento de processo
executivo. Recaindo a tutela específica sobre obrigação constante de título judicial,
não há falar em possibilidade de ajuizamento de embargos à execução, mediante
depósito da coisa”
4. Conclusão.
É direito fundamental do executado no âmbito de execução para o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer oferecer sua defesa por meio de
simples petição nos autos do processo de execução, restando inviável a utilização de embargos do executado, com fundamento em entendimento dominante no âmbito do Superior Tribunal de Justiça. Nos casos em que se deseje
discutir o mérito da relação de direito material subjacente urge que se utilize
o processo de cognição, com a ampliação do espaço de cognição.
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EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS
E SUA CONTEXTUALIZAÇÃO NO ORDENAMENTO
BRASILEIRO
1
Maria José de Oliveira Fernandes2
RESUMO: Buscou-se, de forma resumida, tecer a evolução histórica dos Direitos Humanos,
esclarecendo pontos importantes de Declarações e Pactos que trouxeram mecanismos jurídicos às diversas nações, no intuito de conferir-lhes efetividade, bem como abordar aspectos
pertinentes à posição que esses direitos assumiram no Texto Constitucional brasileiro de 1988
e sua evolução no ordenamento pátrio, com destaque para as alterações contextualizadas
na Emenda Constitucional nº 45, evidenciando sua não estagnação. Para isso, pesquisou-se
a evolução histórica desses direitos no âmbito internacional, focando de forma especial o
Brasil, como Estado Democrático de Direito. Considera-se que os Direitos Humanos, consubstanciados num conjunto de direitos protetivos à pessoa, não surgiram repentinamente,
mas resultaram de um longo processo histórico cultural e vêm evoluindo juntamente com o
caminhar da humanidade.
PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos; Constituição Federal; Liberdade;
Dignidade; Igualdade; Justiça de Transição.
Abstract: Sought, in summary form, to weave the historical development of Human Rights,
clarifying important points of Declarations and Covenants that have brought mechanisms
to the diverse nations, to give them effectiveness as well as address issues pertinent to the
position that these duties took on Brazilian Constitutional Text of 1988 and its evolution in
the homeland legal system, contextualized in Constitutional Amendment nº 45, evidencing
its not stagnation. To do this, it was researched the historical evolution of these rights at the
international level, in particular focusing on Brazil, as a Democratic State of law. It is considered that Human Rights, embodied in a set of protective rights for the person, not emerged
suddenly, but resulted from a long process of cultural history and come together with the
walk of evolving humanity.
KEYWORDS: HUMAN RIGHTS; THE FEDERAL CONSTITUTION; FREEDOM;
DIGNITY; EQUALITY; TRANSITIONAL JUSTICE.
1
2
Trabalho desenvolvido sob a orientação do Prof. Judicael Sudário de Pinho, Mestre em Direito
Constitucional pela Universidade Federal do Ceará (UFC), apresentado à Coordenação do Curso
de Especialização em Direito Constitucional (VI) da Escola Superior da Magistratura do Estado do
Ceará (ESMEC) no ano de 2012 como requisito parcial para obtenção do título de especialista em
Direito Constitucional.
Especialista em Administração Financeira pela Universidade Vale do Acaraú (UVA). Graduada
em Ciências Contábeis e Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Aluna do curso de
Pós-Graduação em Direito Constitucional da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará
(ESMEC). E-mail: <[email protected]>.
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Introdução
A relevância que os Direitos Humanos apresentam no ordenamento jurídico, tanto na esfera internacional quanto na esfera nacional, evidencia sua
importância para o Estado e para a humanidade, tendo em vista que compreendem a proteção do Ser Humano, essência das sociedades. A questão
aqui abordada envolve a taxatividade desses direitos que, mesmo positivados,
requerem constante adequação normativa objetivando se conformarem à realidade fática da sociedade hodierna, evitando-se, assim, que deixem de ser
observados. No desenvolvimento deste trabalho, cujo enfoque central consiste na ideia da não estagnação desses direitos, contextualiza-se sua evolução ao
longo da história da humanidade, mostrando-se, inicialmente, o modo como
as instituições jurídicas de proteção ao homem se foram criando e estendendo
progressivamente a todos os povos, bem como sua classificação em dimensões ou gerações, de forma a evidenciar sua progressiva consagração jurídica,
observando-se sua inserção no ordenamento jurídico pátrio até a recente regulamentação do direito à informação.
A história dos direitos humanos remonta à antiguidade, todavia, foi com
sua positivação por meio de declarações, como as da Inglaterra, de Virgínia
e a Francesa, que esses direitos começaram a ganhar dimensão de universalidade. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada no período
que sucedeu a Segunda Grande Guerra, veio consolidar a internacionalização,
tornando-se uma referência indispensável a todo projeto de constitucionalização dos povos. Por fim, trata-se da maneira como o Brasil, em sua Constituição Cidadã de 1988, passou a comungar os consagrados direitos humanos,
incluindo as regras de transição.
O estudo do tema se justifica pela necessidade de se compreender as
buscas constantes do cidadão pelo reconhecimento de seus direitos e de suas
novas necessidades diante da história da sociedade. Dessa forma, ao longo do
trabalho, busca-se demonstrar a evolução desses direitos e a sua consequente
positivação como garantia de sua aplicabilidade.
1 ORIGEM E CLASSIFICAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
O surgimento dos direitos humanos na história da humanidade não se
deu de uma só vez, mas foram sendo reconhecidos e constitucionalizados
gradualmente.
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Sua origem remonta a tempos antigos, período em que cabe salientar a
doutrina do Cristianismo, em especial a pregada por Santo Tomás de Aquino,
que concebia a liberdade como valor inerente à natureza do Homem e como
um direito a ser respeitado por todos.
Nesse contexto histórico, os homens se reúnem em sociedade, buscando
a preservação da própria vida, da liberdade e da propriedade, inclusive frente
ao poder do soberano. O aparecimento do Estado se deu na defesa desses direitos, que, por sua vez, se institucionalizaram e se cristalizaram, iniciando-se,
assim, a positivação dos direitos humanos.
Na Inglaterra, em 1689, foi aprovada pelo Parlamento a Declaração de
Direitos, também conhecida como Bill of Rights, que dispunha sobre direitos
considerados importantes ou essenciais a um grupo de pessoas, como liberdade de expressão, liberdade política e tolerância religiosa.
Outros importantes marcos para se pensar a positivação dos direitos humanos encontram-se na Declaração de Virgínia, de 1776, ao dispor em seu
art.1º que “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”,
e no êxito revolucionário francês de 1789, que resultou na promulgação da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, reforçando a idéia de liberdade e igualdade contemplada na primeira quando, então, esses direitos
começaram a ganhar uma dimensão de universalidade.
A Declaração de Virgínia, de 1776, no dizer de Comparato3, “constitui
o registro de nascimento dos direitos humanos na História”, trazendo em seu
bojo a afirmação de que todos os seres humanos são, pela sua própria natureza, igualmente livres e independentes, e possuem certos direitos inatos, dos
quais não podem, por nenhum tipo de pacto, serem privados ou despojados
na sua posteridade.
Sobre a declaração francesa de 1789, Fábio Konder Comparato4 destaca
que deixou a desejar apenas no tocante ao reconhecimento da Fraternidade,
ou seja, à exigência de uma organização solidária da vida em comum, o que
só veio a ocorrer mais de 150 anos depois, com a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, em 1948.
Com o propósito de evidenciar sua progressiva consagração jurídica, no
tocante à realização da igualdade entre os homens e à busca constante pela
efetivação dos seus direitos como pessoas, divide-se a histórica evolução desses
direitos em três dimensões ou gerações. Inicialmente, a liberdade corresponderia à primeira dimensão e os valores da igualdade e fraternidade, às demais.
3
4
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7. ed. rev. e atual..
São Paulo: Saraiva, 2010. p.62.
Ibid.
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A dimensão da liberdade estabeleceu-se com a Constituição Americana
de 1787 e a Constituição Francesa de 1791. Já a dimensão da igualdade, com
a Constituição Alemã de Weimar, em 1919; e a dimensão da fraternidade,
com as Constituições democráticas posteriores à Segunda Guerra Mundial,
representando os direitos transindividuais.
Embora divisíveis em termos cronológicos, e assim denominadas dimensões, é mister acrescentar que as dimensões de liberdade, igualdade e fraternidade, apesar de ascenderem à consciência ética da humanidade, progressivamente, não se substituem umas às outras, tampouco se confrontam, mas
interagem entre si, expandindo a compreensão dos direitos humanos. No
entendimento de Norberto Bobbio5, esses direitos não representam criação
histórica, mas reconhecimento da igual dignidade que assiste a todos os seres
humanos independentemente da questão temporal, fortalecendo a ideia de
que são direitos históricos, nascidos gradualmente em função das circunstâncias e não todos de uma vez.
Assim, o que muda é o enfoque da busca de direitos que a doutrina costuma classificar em gerações, embora os autores mais contemporâneos manifestem preferência pela expressão “dimensões dos direitos” para representá-los
cronologicamente.
Moraes6, ao discorrer sobre a classificação dos direitos, informa que, na
primeira dimensão, buscou-se a garantia dos direitos individuais e políticos. Na
segunda, que surgiu no início do século, têm-se os direitos sociais, econômicos
e culturais e na terceira, buscou-se a garantia dos direitos de solidariedade ou
fraternidade, englobando meio ambiente, qualidade de vida, progresso e paz.
Hoje, busca-se a consagração dos direitos de quarta e quinta geração, o
que vem reforçar a ideia da não estagnação dos direitos humanos e de que sua
ampliação se dá para atender aos crescentes anseios da sociedade.
Nesse enfoque, Lenza7 entende a classificação dos direitos humanos em
quatro gerações, citando Norberto Bobbio ao discorrer sobre a última delas,
conforme segue:
Direitos humanos de primeira geração: alguns documentos históricos são marcantes para a configuração e emergência do que os autores chamam de direitos
humanos de primeira geração (séculos XVII, XVII e XIX): (1) Magna Carta de
1215, assinada pelo Rei “João Sem Terra”; (2) Paz de Westfália (1648); (3) Habeas
5
6
7
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 1997.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p.50.
BOBBIO, Norberto apud LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14. ed. São
Paulo: Saraiva, 2010. p.740.
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Corpus Act (1679); (4) Bill of Rihgts (1688); (5) Declarações, seja a Americana
(1776), seja a Francesa (1789). Mencionados direitos dizem respeito às liberdades
públicas e aos direitos políticos, ou seja, direitos civis e políticos a traduzirem o
valor de liberdade.
Direitos humanos de segunda geração: o momento histórico que os inspira e impulsiona é a Revolução Industrial européia, a partir do século XIX. Nesse sentido,
em decorrência das péssimas situações e condições de trabalho, eclodem movimentos como o cartista – Inglaterra e a Comuna de Paris (1848), na busca de
reivindicações trabalhistas e normas de assistência social. O início do século XX é
marcado pela Primeira Guerra e pela fixação de direitos sociais. Isso fica evidenciado, dentre outros documentos, pela Constituição de Weimar, de 1919 (Alemanha), e pelo Tratado de Versalhes, 1919 (OIT)). Portanto os direitos humanos
ditos de segunda geração privilegiam os direitos sociais, culturais e econômicos,
correspondendo aos direitos de igualdade.
Direitos humanos de terceira geração: marcados pela alteração da sociedade, por
profundas mudanças na comunidade internacional (sociedade de massa, crescente desenvolvimento tecnológico e científico), as relações econômico-sociais se alteram profundamente. Novos problemas e preocupações mundiais surgem, tais
como a necessária noção de preservacionismo ambiental e as dificuldades para
proteção dos consumidores, só para lembrar dois candentes temas. O ser humano
é inserido em uma coletividade e passa a ter direitos de solidariedade.
Direitos humanos de quarta geração: segundo orientação de Norberto Bobbio,
referida geração de direitos decorreria dos avanços no campo da engenharia genética, ao colocarem em risco a própria existência humana, através da manipulação
do patrimônio genético. Segundo o mestre italiano “... já se apresentam novas
exigências que só poderiam chamar-se de direitos de quarta geração, referentes aos
efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo” (a era dos direitos, p.6).
Solidificando a ideia da não estagnação dos direitos cabe ressaltar o posicionamento do professor Bonavides8 que, marcando uma nova fase na Teoria
dos Direitos Fundamentais, defende-os, classificando-os em cinco dimensões:
Os direitos da primeira geração são os direitos da liberdade, os primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional, a saber, os direitos civis e políticos, que em grande parte correspondem, por um prisma histórico, àquela fase
inaugural do constitucionalismo do ocidente. Os direitos da segunda geração são
os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de
coletividade, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas de Estado
social, depois que germinaram por obra da ideologia e da reflexão antiliberal do
século XX. Nasceram abraçados ao princípio da igualdade, do qual não se podem
separar, pois fazê-lo equivaleria a desmembrá-los da razão de ser que os ampara e
8
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p.571.
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estimula. Os direitos da terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século
XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. [...] Emergiram
eles da reflexão sobre temas referentes ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade. São direitos da quarta
geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo.
Deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de
máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas
as relações de convivência.
Ainda sobre o tema, Paulo Bonavides9 enfatiza que “O novo Estado de
Direito das cinco gerações de direitos fundamentais vem coroar, por conseguinte, aquele espírito de humanismo que, no perímetro da juridicidade,
habita as regiões sociais e perpassa o Direito em todas as suas dimensões”.
E inclui a paz como direito da quinta geração, afirmando ser esta a alforria moral, social e espiritual dos povos:10
Estuário das aspirações coletivas de muitos séculos, a paz é o corolário de todas as
justificações em que a razão humana, sob o pálio da lei e da justiça, fundamenta o
ato de reger a sociedade, de modo a punir o terrorista, julgar os criminosos de guerra, encarcerar o torturador, manter invioláveis as bases do pacto social, estabelecer
e conservar por intangíveis, as regras, princípios e cláusulas da comunhão política.
Analisando-se os diversos posicionamentos doutrinários acerca das gerações dos direitos humanos, verifica-se que a partir dos chamados direitos de
primeira geração houve a ampliação da área de defesa do indivíduo frente à
atuação do Estado, fazendo surgir um controle da autonomia estatal. Verifica-se, ainda, que as demais gerações revelam-se como decorrentes da primeira,
ampliando os direitos ali tratados, bem como representam uma limitação para
a atuação da autoridade estatal, de não violação da esfera individual.
É possível se concluir que a evolução desses direitos segue a história da
humanidade e sua regulamentação, por meio da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, em 1948, que teve como origem a Segunda Guerra Mundial, veio consolidar uma nova etapa na história, enaltecendo e consolidando
o movimento de internacionalização dos Direitos Humanos.
2 UNIVERSALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
Inicialmente, deve-se destacar que a Declaração dos Direitos da Virgínia,
proclamada pela Convenção de 1776, influenciou a elaboração da declaração
de 1789 pela Assembleia Nacional Francesa, intitulada Declaração dos Di9 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p.583
10 Ibid., p.590.
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reitos do Homem e do Cidadão, que trazia em si o espírito de universalismo
militante da Revolução Francesa, cujas ideias foram difundidas em pouco
tempo, não só na Europa, como também em regiões tão distantes quanto a
Índia, a Ásia Menor e a América Latina. Essas declarações representaram a
emancipação histórica do indivíduo perante os grupos sociais a que sempre
se submeteu.
É de se ressaltar que esses primeiros documentos desencadearam o desejo
maior de formalização de uma declaração de direitos humanos de alcance
mundial.
A primeira fase de internacionalização dos direitos humanos manifestou-se basicamente em razão da Convenção de Genebra de 1864, primeiro documento normativo de caráter internacional a partir do qual foi instituída a
Comissão Internacional da Cruz Vermelha, em 1880.
Em outro momento, verifica-se que a luta contra a escravidão resultou na
Conferência de Bruxelas, de 1890, quando foram estabelecidas as primeiras
regras interestatais de repressão ao tráfico de escravos africanos. Tem-se, ainda,
a regulação dos direitos do trabalhador assalariado com a criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que, até o início da Segunda Guerra
Mundial, havia aprovado 67 Convenções Internacionais.
Inobstante os instrumentos citados, não se vislumbra a ocorrência de
grandes mudanças em termos universais nessa seara, posto que, durante a
Segunda Guerra Mundial, evidenciaram-se constantes e drásticas violações
dos poucos direitos existentes, fazendo com que o homem não soubesse o que
era ter direito diante das crueldades sofridas. Nasceu daí a conscientização da
necessidade de se buscar instrumentos universais efetivos de reconhecimento
dos direitos humanos, bem como garantidores de seu exercício.
Com o término da Segunda Guerra, em 1945, os países se uniram, buscando restabelecer a paz mundial. A partir daí, verifica-se uma proliferação de
convenções de caráter universal ou regional, consagrando diversos direitos.
Convém destacar, por ser considerada a mais importante, a Declaração
Universal de Direitos do Homem, que data de 10 de dezembro de 1948,
aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU),
criada quando vários países, conscientes das tragédias da Grande Guerra, assinaram a Carta das Nações Unidas. Ressalte-se que se encontravam dentre os
principais objetivos da ONU, que aprovou também a Convenção Internacional sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, além do restabelecimento da paz, o de desenvolver e estimular o respeito pelos direitos humanos
e de evitar uma nova guerra mundial.
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A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em consonância com os
objetivos das Nações Unidas, dentre os quais se destacam o direito à vida, à
liberdade e à segurança pessoal, sem qualquer distinção ou condição; o direito
ao pensamento, à consciência e à religião; o direito ao trabalho e à educação;
o direito à alimentação e à habitação; e o direito de fazer parte de um governo,
já em seu preâmbulo faz alusão ao princípio da dignidade da pessoa humana, com fundamento na igualdade de direitos, na liberdade, na justiça e na
paz. Coloca, também, sob tutela do Estado a proteção aos direitos humanos
fundamentais como ideal comum a ser atingido por todos os povos e nações,
objetivando promover o respeito aos direitos e liberdades, bem como a adoção
de medidas que assegurem o seu reconhecimento e a sua observância.
Vislumbra-se, na aludida declaração, uma pretensão de universalidade
contida no próprio título e na proclamação geral, de um ideal comum a ser
atingido por todos os povos e todas as nações. Sobre essa perspectiva, o professor Bonavides11 assim se expressa: “Foi tão importante para a nova universalidade
dos direitos fundamentais o ano de 1948 quanto o de 1789 o fora para a velha universalidade
de inspiração liberal.”
Com efeito, após sua aprovação, a tendência de universalização dos Direitos Humanos ganha maior impulso. Dezenas de convenções internacionais
foram celebradas no âmbito da Organização das Nações Unidas e mais de
uma centena o foi na esfera da Organização Internacional do Trabalho, denotando não apenas um processo de reconhecimento, como também a definitiva
internacionalização dos direitos humanos.
No período pós-guerra afirmou-se, ainda, a existência de novas espécies
de direitos humanos: direitos dos povos e direitos da humanidade, tendo-se, hoje, o Sistema Global de Proteção aos Direitos Humanos, encabeçado
pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, sequenciada pelos
Pactos Internacionais de 1966 (Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e
Políticos) e pelas demais Convenções de Direitos Humanos.
Dentre os documentos assinados, destacam-se a Declaração Americana
dos Direitos e Deveres do Homem, a Declaração Universal dos Direitos dos
Povos, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José
da Costa Rica), incluindo-se, também, a Carta dos Direitos Fundamentais da
União Europeia, editada em 2000. Embora essas declarações tenham estreita
relação com a Declaração da ONU, trazem uma ou outra ampliação nos Direitos Humanos.
11 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p.573
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Sublinhe-se que algumas dessas cartas internacionais ou das disposições
nelas constantes são apenas reiterações quanto aos direitos internos. Outras,
contudo, instituem novos direitos, os quais, muitas vezes, passaram a ser previstos nas cartas constitucionais dos Estados. Alguns Estados, como a Áustria
e o Peru, chegaram ao ponto de constitucionalizarem diretamente os textos
internacionais sobre direitos humanos no lugar de seu catálogo de direitos
fundamentais.
Nesse esteio, torna-se cada vez mais frequente os Estados interpretarem
seus direitos à luz das declarações universais, a exemplo do que ocorre no
Canadá, Espanha, Alemanha e Argentina (nesta, a Constituição, em seu art.
75, § 22, considera os principais tratados de Direitos Humanos como norma
constitucional).
No Brasil, tudo está a demonstrar que os direitos humanos, aqui abordados, receberam o adequado tratamento pela Constituição Brasileira de 1988,
conforme se discorre adiante.
3 OS DIREITOS HUMANOS E A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988
A Ordem Constitucional de 1988 se apresenta como o marco jurídico
da transição democrática e da institucionalização dos direitos humanos no
País. Promove uma redefinição do Estado Brasileiro, bem como dos direitos
fundamentais, representando a ruptura com o regime militar autoritário, que
estava no poder há mais de 20 anos.
A Carta de 1988, já em seu preâmbulo, projeta a instituição de um Estado democrático “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade
e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos [...]” e, em seus primeiros artigos, impõe especial relevância ao
tratamento dos Direitos Humanos, sendo possível verificar que a Cidadania
e a Dignidade da Pessoa Humana constituem fundamentos do Estado Brasileiro, que tem como objetivos principais construir uma sociedade livre, justa
e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação.
O texto constitucional promoveu verdadeiro alargamento do conjunto
de direitos e garantias para incluir no rol dos direitos fundamentais do homem tanto direitos civis como direitos políticos e sociais. Além disso, consagrou os denominados direitos e interesses coletivos e difusos.
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Em seu Título II, a Constituição fala em “Direitos e Garantias Fundamentais”, dividindo-os em cinco capítulos. No primeiro, trata “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos” (Art. 5º); no segundo, “Dos Direitos
Sociais“ (Arts. 6º a 11); no terceiro, “Da Nacionalidade“ (Arts. 12 e 13); no
quarto, “Dos Direitos Políticos“ (Arts. 14 a 16); e no quinto, “Dos Partidos
Políticos“ (Art. 17).
Nesse ponto, é importante o entendimento de Celso Mello12 sobre os
direitos e garantias fundamentais:
[...] enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da
liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais)
– que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam
o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais,
consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no
processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos
caracterizados enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma
essencial inexauribilidade.
Percebe-se, portanto, a existência de um rol extenso de direitos fundamentais amparados pelo legislador constituinte. Todavia, não se pode concluir
que essa lista seja exaustiva, posto que o art. 5º, § 2º da Constituição Federal
de 1988 traz a possibilidade de agregar aos direitos e garantias expressos outros decorrentes dos tratados internacionais dos quais o Brasil seja parte.
A Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004, privilegia
os Direitos Humanos ao dispor que os tratados e convenções internacionais
sobre Direitos Humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso
Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais, permitindo, ainda, nas
hipóteses de grave violação desses direitos, o deslocamento da competência
para a Justiça Federal, em qualquer fase do inquérito ou processo, “com a
finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados
internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte”. Dispõe,
também, que o Brasil se submete à jurisdição do Tribunal Penal Internacional
a cuja criação tenha manifestado adesão.
Quanto à equivalência dos tratados e convenções internacionais às emendas constitucionais, percebe-se que se restringe, tão somente, aos que tratam
sobre Direitos Humanos. Isto posto, os tratados internacionais que não con12 MELLO, Celso Antônio Bandeira de apud MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23.
ed. São Paulo: Atlas, 2008. p.31.
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templam Direitos Humanos inserem-se, no Direito pátrio, como norma de
hierarquia infraconstitucional.
Passa-se, na sequência, a analisar os dispositivos da Constituição de 1988
que asseguram aos brasileiros a tutela jurídica dos Direitos Humanos. Como
marco fundamental do processo de institucionalização dos Direitos Humanos no Brasil, a Carta Magna de 1988, logo em seu primeiro artigo, erigiu a
dignidade da pessoa humana a princípio fundamental, instituindo um novo
valor que confere suporte axiológico a todo o sistema jurídico e que deve ser,
sempre, levado em conta, quando se trata de interpretar quaisquer das normas
constantes do ordenamento jurídico nacional.
A Constituição de 1988 optou por não incluir a dignidade da pessoa humana entre os Direitos fundamentais, inseridos no rol do art. 5º, por considerá-la, expressamente, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil,
consignando-a no art. 1º, III do qual se presume que a dignidade do homem
é substrato básico de todo e qualquer direito fundamental.
No título II, a Constituição brasileira enumera os direitos e garantias
fundamentais, antecedendo-os, portanto, à estruturação do Estado, expressando, dessa forma, a primazia que lhes confere diante de todos os demais. E
no texto do § 1º do art. 5º, mais uma vez, dá mostras de ter acolhido o paradigma de proteção aos Direitos Humanos quando estabelece que “as normas
definidoras de direitos ou garantias fundamentais têm aplicação imediata”.
Ademais, por abrir a possibilidade de criação de novos direitos não expressos
em seu texto no § 2º do art. 5º, a Constituição demonstra o reconhecimento
da amplitude e dinamicidade desses direitos, reforçando a ideia de sua não-estagnação.
Ainda na esfera dos direitos humanos, merece atenção especial a proteção
das garantias institucionais prevista no art. 5º, caput, in verbis:
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, [...] (grifo nosso).
O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, no sentido
de que surge como verdadeiro pré-requisito da existência dos demais direitos
consagrados constitucionalmente. O conteúdo do direito à vida assume duas
vertentes: o Direito de permanecer existente e o Direito a um adequado nível
de qualidade de vida.
Assim, inicialmente, cumpre garantir a todos o direito de simplesmente
continuar vivo e, por consequência, assegurar um nível mínimo de qualidade
de vida compatível com a dignidade humana. Isso inclui, dentre outros, o
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direito à alimentação adequada, à moradia, ao vestuário, à saúde, à educação,
à cultura e ao lazer.
No que se refere ao direito à liberdade, pode-se dizer que é amplo, vez
que nele estão contempladas a liberdade de circulação e locomoção, a liberdade de pensamento e de expressão intelectual, a liberdade de informação e
comunicação, a liberdade de associação, a liberdade de reunião, a liberdade
econômica e a liberdade de consciência religiosa.
Já o direito à igualdade compreende os direitos dos cidadãos de receberem tratamento idêntico pela Lei. Para melhor compreensão da igualdade
destaca-se o posicionamento de Moraes13, ressaltando que “o que se veda são
as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois o tratamento
desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência
tradicional do próprio conceito de justiça.” O autor ainda discorre sobre a
igualdade abordando-a em dois planos:
O princípio da igualdade consagrado pela constituição opera em dois planos distintos. De uma parte, frente ao legislador ou ao próprio executivo, na edição,
respectivamente de leis, atos normativos e medidas provisórias, impedindo que
possam criar tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que encontram-se
em situações idênticas. Em outro plano, na obrigatoriedade ao intérprete, basicamente a autoridade pública, de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento de diferenciações em razão de sexo, religião, convicções
filosóficas ou políticas, raça, classe social.
O princípio da igualdade, também entendido como da isonomia, encontra aplicação no seio da própria Constituição em vários artigos, a saber:
art. 5º, I (igualdade entre homens e mulheres); art. 5º, XXXVII (não haverá
juízo ou tribunal de exceção); art. 5º, LIII (ninguém será processado nem sentenciado senão por autoridade competente); art. 7º, XXX e XXXI (proibição
de diferença de salários etc.); art. 7º, XXXVII (proibição de diferença entre
o trabalho manual, técnico e intelectual); art. 7º, XXXIV (igualdade entre o
trabalhador permanente e avulso); e outros.
O direito à segurança tem alcance extremamente amplo, pois abrange a
garantia do direito adquirido, o ato jurídico perfeito, a coisa julgada, a garantia contra restrições legislativas dos direitos fundamentais e, em particular, da
irretroatividade da lei penal, do devido processo legal, do juiz natural, do direito contra a violação de direitos, do direito à proteção e à segurança pessoal,
social e coletiva, dentre outros.
O direito à propriedade compreende, em síntese, o direito subjetivo de
13 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p.36-37
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exploração (usar, gozar e dispor) de um bem. Aqui engloba o direito de sucessão, o direito autoral e o direito de propriedade imaterial, dentre outros.
Todavia, deve-se salientar a sua subordinação à função social, consoante estabelecido no Texto Constitucional - a propriedade atenderá a sua função social.
Observa-se que o Texto Constitucional começa pela enumeração dos
direitos e garantias fundamentais, consagrando a primazia dos direitos humanos, ou seja, reconhecendo que a pessoa tem, primeiro, direitos, e depois,
deveres, perante o Estado, ao passo que este tem, primeiro, deveres, e depois,
direitos, em relação à pessoa. Assim, o Estado tem, não só o dever de respeitar
os direitos humanos, mas o de agir para garantir a sua efetividade, ressaltando-se o entendimento de Tavares14 de que cabe ao Poder Público a responsabilidade de conferir o máximo de eficácia, de forma imediata, a todo e qualquer
preceito definidor de direito e garantia fundamental.
Acerca da atuação estatal, Piovesan assim leciona:15
[...] a Constituição de 1988, no intuito de reforçar a imperatividade das normas
que traduzem direitos e garantias fundamentais, institui o princípio da aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, nos
termos do seu artigo 5º,§ 1º. Inadmissível por conseqüência, torna-se a inércia
do Estado quanto à concretização de direito fundamental, uma vez que a omissão
estatal viola a ordem constitucional, tendo em vista a exigência de ação, o dever
de agir no sentido de garantir o direito fundamental. Implanta-se um constitucionalismo concretizador dos direitos fundamentais.
Desse novo sistema, instaurado sob a égide da Constituição Federal de
1988, extraem-se os delineamentos de um Estado voltado ao bem-estar social,
como observa Bonavides16: “Com o Estado social, o Estado-inimigo cede lugar
ao Estado-amigo, o Estado-medo ao Estado-confiança, o Estado-hostilidade
ao Estado-segurança. As Constituições tendem assim a se transformar num
pacto de garantia social [...]”.
No intuito de corroborar o entendimento recém-explicitado e retomando-se a ideia de que a Ordem Constitucional de 1988 apresentou-se como
marco jurídico da transição democrática, cabe comentar-se acerca da Justiça
de transição no Brasil.
4 JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL
14 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
15 PIOVESAN, Flávia.Temas de direitos humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p.321.
16 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p.380
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A mudança de regime implica a necessidade de implementação de medidas que objetivem garantir a estabilidade do novo regime adotado, sinalizando a divisão entre as duas orientações políticas.
Trata-se de um processo peculiar, no qual cada país, cada sociedade, precisa encontrar seu caminho para lidar com o legado do passado e implementar
mecanismos que garantam, ainda, o direito à memória e à verdade.
No dizer do professor Dimitri Dimoulis17, a justiça de transição foi definida como “processo de julgamentos, depurações e reparações que se realizam
após a mudança de um regime político para outro”, tendo como principais
finalidades a de satisfazer as vítimas da atuação arbitrária e, eventualmente,
violenta do Estado; de pacificar a sociedade, eliminando tensões e animosidades entre os grupos políticos; e de tomar providências políticas para evitar
que se repita a experiência do passado.
Para Inês Prado Soares18 (on line), a justiça de transição é conceituada
como o conjunto de abordagens, mecanismos (judiciais e não judiciais) e estratégias para enfrentar o legado de violência em massa do passado, atribuir
responsabilidades, exigir a efetividade do direito à memória e à verdade, fortalecer as instituições com valores democráticos e garantir a não repetição das
atrocidades. Sua existência não exime o Estado de adotar medidas razoáveis
para prevenir violações de direitos humanos; oferecer mecanismos e instrumentos que permitam a elucidação de situações de violência; dispor de um
aparato legal que possibilite a responsabilização dos agentes que tenham praticado as violações; e de garantir a reparação às vítimas, por meio de ações que
abranjam tanto a material quanto a simbólica.
O modelo de justiça de transição no Brasil tem sido bastante questionado, posto que, por cerca de duas décadas após o fim da ditadura de 1964,
prevaleceu um modelo que se afasta do processo penal e do enfoque punitivo
dos autores das atrocidades, privilegiando “[...] a opção de pacificação, através
do esquecimento (jurídico) dos acontecimentos e da não responsabilização
dos agentes da ditadura”.19
17 DIMOULIS, Dimitri. Justiça de transição e função anistiante no Brasil: hipostasiações indevidas
e caminhos de responsabilização. In: SWENSSON JR., Lauro Joppert et al. Justiça de Transição
no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 92.
18 SOARES, Inês Virginia Prado. Justiça de Transição. Dicionário de Direitos Humanos, S./d.
Disponível em: <http://www.esmpu.gov.br/dicionario/tiki-index.php?page=Justi%C3%A7 a%20
de%20transi%C3%A7%C3%A3o>. Acesso em: 20 nov. 2011.
19 DIMOULIS, Dimitri. Justiça de transição e função anistiante no Brasil: hipostasiações indevidas
e caminhos de responsabilização. In: SWENSSON JR., Lauro Joppert et al. Justiça de Transição
no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 94.
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O modelo mencionado se expressou principalmente na Lei Federal nº
6.683, de 28 de agosto de 1979, que anistiou os crimes de natureza política
cometidos durante o período da ditadura. Ressalte-se que a lei citada foi promulgada pelo presidente Figueiredo ainda durante a ditadura militar. Dimoulis informa que “na prática judicial foi considerado que essa Lei beneficiava
tanto os opositores como os Agentes da ditadura”20.
A partir da década de 1990, o governo federal deu sinais de mudança da
atitude oficial, inclusive com iniciativas políticas destinadas a reabrir esse capítulo do passado com a responsabilização de agentes da ditadura, o pagamento
de indenizações e tentativas de busca da verdade. Dentre as ações realizadas
destacam-se a abertura de vários arquivos do período; a atuação da Comissão
Especial de Mortos Desaparecidos (Lei nº 9.140/95); o trabalho da Comissão
de Anistia, no âmbito do Ministério da Justiça (Lei nº 10.559/02); a publicação do livro Direito à Memória e à Verdade, lançado pela Secretaria Especial de
Direitos Humanos da Presidência da República em 2007; a criação do Centro
de Referência das Lutas Políticas no Brasil, denominado Memórias Reveladas,
institucionalizado pela Casa Civil da Presidência da República e implantado no Arquivo Nacional; a instituição, por Decreto Presidencial (Dec. Nº
7.037/09), do 3º Programa Nacional de Direito Humanos (PNDH).
Em data mais recente, apontam-se a criação da Comissão Nacional da
Verdade no âmbito da Casa Civil da Presidência da República (Lei nº 12.528,
de 18 de novembro de 2011) e a regulamentação da forma de acesso à informação (Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011).
A Comissão Nacional da Verdade, recém-criada, tem sua finalidade e
objetivos definidos na Lei mencionada, conforme segue;
Art. 1º É criada, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, a Comissão
Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações
de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade
histórica e promover a reconciliação nacional
[...]
Art. 3º São objetivos da Comissão Nacional da Verdade:
I - esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de direitos
humanos mencionados no caput do art. 1º;
II - promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos
no exterior;
20 Ibid., p.94.
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III - identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos mencionadas
no caput do art. 1º e suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e
na sociedade;
IV - encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informação obtida
que possa auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos, nos termos do art. 1º da Lei nº 9.140, de 4 de dezembro de 1995;
V - colaborar com todas as instâncias do poder público para apuração de violação
de direitos humanos;
VI - recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação
de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional; e
VII - promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos
casos de graves violações de direitos humanos, bem como colaborar para que seja
prestada assistência às vítimas de tais violações.
A Comissão dispõe do prazo de dois anos para ouvir depoimentos em
todo o País e requisitar e analisar documentos que ajudem a esclarecer as violações de direitos ocorridas no período, podendo aproveitar as informações
produzidas há quase dezesseis anos pela Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos e há dez anos pela Comissão de Anistia.
Desse modo, espera-se que as informações obtidas resultem na resolução
dos crimes praticados contra os direitos humanos no período fixado no art. 8º
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, fortalecendo-se, assim, o
respeito aos direitos aludidos, vez que restará abolida a prática da omissão por
parte do Estado frente a acontecimentos criminosos.
A Lei nº 12.527, de 18 de novembro 2011, regulamenta procedimentos
de acesso às informações públicas com o fim de assegurar o direito fundamental de acesso à informação previsto no inciso XXXIII do art. 5o, no inciso II
do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição Federal.
Com a premissa de que se associam direitos humanos à ideia central
de democracia, o direito à informação vem constituir uma pilastra para o
exercício de uma cidadania de novo tipo, por propiciar ao cidadão participação efetiva nos atos da administração pública por meio do chamado controle
social. Corroborando o disposto Orpheu Santos Sales destaca trecho do pronunciamento feito pelo Ministro Ayres Britto ao receber as homenagens do
Ministério Público Estadual da Bahia: “A vida democrática é de controle, de
participação, de ativação da Cidadania, e o Brasil cresce com isso: nossas de360
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cisões se legitimam ainda mais quando há acompanhamento, até crítico, por
parte da população”.21
Diante de tudo aqui exposto, verifica-se que a Justiça de transição no
Brasil, apesar do período decorrido pós-ditadura, ainda se encontra em fase
de construção. Entretanto, em havendo efetiva aplicação dos normativos já
existentes, vislumbra-se o real fortalecimento da luta pelos direitos humanos
no Brasil.
CONCLUSÃO
Pretendeu-se, neste trabalho, conduzir, de forma sintética, um estudo sistematizado sobre a evolução dos Direitos Humanos no mundo, perpassando
pela ideologia religiosa do cristianismo, pelas diversas Declarações de Direitos, com destaque para aquelas de maior impacto para a valoração do homem
como cidadão do Mundo Global, a exemplo da Declaração Universal de Direitos do Homem, adotada em 1948, pela Assembleia Geral da Organização
das Nações Unidas, cujos objetivos embasaram os pactos sociais de 1966 e
outros pactos e convenções posteriores que buscam encerrar o contexto de
vida marcado por graves e sistemáticas violações de direitos humanos, por
profundas desigualdades sociais, rompendo o legado dos regimes autoritários.
Nessa linha, abordou-se a situação do Brasil pós-ditadura, no que tange
à guarida desses Direitos pela Carta Magna de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, e a dinâmica do modelo de transição que vem sendo adotado
desde a Lei da Anistia até a recente criação da Comissão da Verdade e Reconhecimento do Direito de Acesso a Informações Públicas..
Observou-se que a Constituição da República Federativa do Brasil de
1988 não só acolheu o ideal dos Direitos Humanos, como também, mais do
que isso, concedeu-lhes uma posição de destaque dentro do ordenamento jurídico brasileiro, chegando a ampliar valores trazidos pela própria Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Ressaltou-se, ainda, o advento da Emenda
Constitucional nº 45/2004, que trata do ingresso dos tratados e convenções
internacionais sobre Direitos Humanos no ordenamento pátrio de forma
equivalente às emendas constitucionais, tratamento diferenciado do dispensado aos tratados tradicionais.
Verificou-se que essa forma de recepcionar o ordenamento jurídico internacional e não tratar de forma taxativa o rol dos direitos fundamentais denota
21 SALLES, Orpheu Santos. A majestade do Poder Judiciário. Justiça & Cidadania. Edição 138. Rio
de Janeiro: Editora JC, fevereiro de 2012. p. 6-7.
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o reconhecimento brasileiro de que a evolução dos direitos humanos se dá de
forma dinâmica e deve caminhar de forma paralela à evolução do Homem,
com destaque para o então reconhecimento do Direito à verdade e do Direito
à Informação por meio de recentes instrumentos legais citados ao longo do
texto.
No contexto trabalhado, em síntese, conclui-se que o Sistema Global de
Proteção aos Direitos Humanos, compreendendo as Organizações e Cortes
internacionais, voltadas para a proteção dos direitos humanos, bem como as
Declarações, Pactos, Convenções e outros documentos aprovados, salvou e
continua salvando muitas vidas, bem como contribui para a consolidação do
Estado de direito e das democracias, combatendo a impunidade, levando às
vítimas o direito à esperança de Justiça e garantindo que os direitos humanos
sejam respeitados.
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REFERÊNCIAS
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______. Carta das Nações Unidas. Vade Mecum. 6. ed. São Paulo: Rideel, 2008.
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BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
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______. Casa Civil da Presidência da República. Lei nº 12.527, de 18 de Novembro de 2011. Regula
o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3o do art. 37 e no § 2o
do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei
no 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras
providências. 2011a. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_Ato2011-2014/.../Lei/L12527.
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______. Casa Civil da Presidência da República. Lei nº 12.528, de 18 de Novembro de 2011. Cria
a Comissão Nacional da Verdade no âmbito da Casa Civil da Presidência da República. 2011b. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/.../ Lei/ L12528. htm>. Acesso em: 28
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COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7. ed. rev. e atual..São
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DIMOULIS, Dimitri. Justiça de transição e função anistiante no Brasil: hipostasiações indevidas e
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Brasil. São Paulo: Saraiva, 2010.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
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SALLES, Orpheu Santos. A majestade do Poder Judiciário. Justiça & Cidadania. Edição 138. Rio de
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SOARES, Inês Virginia Prado. Justiça de Transição. Dicionário de Direitos Humanos, S./d. Disponível em: <http://www.esmpu.gov.br/dicionario/tiki-index.php?page=Justi%C3%A7 a%20de%20
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TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
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Os assuntos reunidos nesta obra têm um eixo temático
comum. Embora com diversos enfoques, todos eles giram em torno
de uma problemática instigante, avaliando múltiplos aspectos
da (in)eficácia dos direitos humanos e fundamentais no Brasil,
sob a ótica do novo constitucionalismo e das teorias do direito.
Na obra que o leitor tem sob os olhos, constam artigos que
abordam temas de extrema atualidade e relevância no debate
constitucional contemporâneo, tais como: a justiça e legitimidade
do Direito, o pós-positivismo, o neoconstitucionalismo e os direitos
fundamentais, as penas alternativas e a dignidade da pessoa
humana, direitos fundamentais do preso no sistema carcerário, direito
fundamental à defesa na execução de fazer e de entrega de coisa
baseada em título judicial, hierarquia dos tratados internacionais
de direitos humanos, colisão de direitos fundamentais, normas
constitucionais e processo administrativo-disciplinar, direito
social à segurança pública, prisão preventiva, evolução histórica
dos direitos fundamentais e Estado Democrático de Direito.
A EFICÁCIA DOS
DIREITOS HUMANOS E
FUNDAMENTAIS NO BRASIL
A EFICÁCIA DOS DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS NO BRASIL
e da Academia Cearense de Língua
Portuguesa, da qual foi Presidente.
Foi Conselheiro da OAB-CE
e integrou, inclusive como 1º
Secretário, as comissões organizadoras
dos Congressos Nacionais de Direito
realizados em Fortaleza nos anos
de 1991 e 1992, tendo também
participado da criação da Revista da
Ordem dos Advogados do Brasil, seção
do Ceará, da qual elaborou o regimento.
Publicou várias obras, entre as quais
destacam-se: Teoria Pura do Direito:
repasse crítico de seus principais
fundamentos, Temas de Epistemologia
Jurídica, vol. II, Temas de Epistemologia
Jurídica, vol. I, Temas de Epistemologia
Jurídica, vol. III, Teoria da Norma
Jurídica, Direito, Humanismo e
Democracia, Direito e Força: uma
visão pluridimensional da coação
jurídica. É ainda autor de inúmeros
artigos publicados e vários verbetes
na Enciclopédia Saraiva do Direito.
Professor aposentado da Universidade
Federal do Ceará (UFC), onde
lecionou por mais de três décadas
várias disciplinas na graduação e na
pós-graduação, exerceu a função
de Coordenador do Curso de
Graduação em Direito. Durante
todo este período, editou a Revista da
Faculdade de Direito da UFC, enviada
aos principais centros de pesquisa e
universidades do Brasil e do exterior,
periódico hoje lamentavelmente
desativado. Dirigiu e coordenou as
reuniões e os seminários de férias do
Instituto Clóvis Beviláqua, do qual
saíram para pontificar no magistério,
nas profissões jurídicas e na ciência
do direito expressivos nomes da
docência e da pesquisa em Direito.
Estudos em homenagem ao Prof. Dr. Arnaldo Vasconcelos
Flávio José Moreira Gonçalves (Coordenador)
Ana Cristina Barbosa Soares Magalhães,
Carla Aguiar Magalhães Araújo e
Israel Grangeiro Landim
(Organizadores)
22108_A Eficácia dos Direitos Humanos eCAPA.indd Todas as páginas
O HOMENAGEADO:
UMA BREVE BIOGRAFIA
ACADÊMICA
Prof. Dr. Arnaldo Vasconcelos
possui graduação e licenciatura em
Filosofia pela Faculdade Católica
de Filosofia de Fortaleza (1966),
graduação em Ciências Jurídicas e
Sociais pela Universidade Federal do
Ceará (1965), mestrado em Direito
Público pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (1977) e doutorado
em Direito pela Universidade
Federal de Pernambuco (2002).
Foi professor de Teoria Geral do
Direito nos cursos de Bacharelado
e Mestrado, lecionando também
Lógica Jurídica e Epistemologia
no Curso de Especialização em
Direito Processual da Faculdade de
Direito da Universidade Federal
do Ceará. Atualmente, é professor
titular da Universidade de Fortaleza
(UNIFOR), atuando principalmente
nos seguintes temas: Filosofia e
Teoria do Direito, Epistemologia
Jurídica e Teoria Política Grega.
É sócio do Instituto dos Advogados
do Ceará, do Instituto Clóvis
Beviláqua, do Instituto dos Advogados
Brasileiros, do Instituto Brasileiro
de Filosofia, seção do Ceará, do
Instituto de Direito Comparado LusoBrasileiro, do Instituto Brasileiro de
Direito Constitucional, da Association
Internationale
de
Méthodologie
Juridique e da Associação Cearense de
Imprensa. Participou da fundação
da Escola Superior de Advocacia do
Ceará, da Fundação Paulo Bonavides
04/09/2012 16:27:30
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A Eficácia dos