Fundamentos de fermentação 1. Introdução Pasteur definiu o conceito de fermentação como o fenómeno que descreve a existência de vida na ausência de oxigénio. Assim, e por razões históricas, o termo fermentação define os processos biológicos desenvolvidos por microrganismos, que ocorrem na ausência de luz e não envolvem cadeias respiratórias com o oxigénio ou o nitrato. Todavia alguns destes microrganismos, como por exemplo as enterobactérias, também podem crescer na presença de oxigénio e, por isso, hoje em dia utiliza-se o termo fermentação de um modo mais lato. Os microrganismos mais utilizados na produção industrial de enzimas são os heterótrofos aeróbios. O seu metabolismo, caracteriza-se genericamente pela oxidação de substratos orgânicos e, concomitantemente, redução de oxigénio, convertendo o substrato em material celular, dióxido de carbono e água [111]. Os microrganismos selvagens produzem o(s) bioproduto(s) em quantidades absolutamente necessárias ao seu crescimento, por exemplo enzimas, como resposta de adaptação metabólica ao meio de cultura [114]. Ácidos nucleicos, proteinas, aminoácidos, nucleótidos e outros bioprodutos classificam-se, em geral, como produtos primários produzidos durante a fase exponencial essenciais ao crescimento celular. No caso de enzimas podem distinguir-se as enzimas catabólicas e anabólicas que estão, em geral, sujeitas a regulação metabólica. Por isso, o microrganismo não os sintetiza todos ao mesmo tempo mas apenas, os absolutamente necessários ao seu crescimento, de acordo com as condições fisiológicas do meio de cultura. A nível industrial, o que se procura é condicionar este microrganismo, de modo a aumentar a produtividade de um dado bioproduto, por formulação adequada do meio e condições de fermentação ou manipulação genética da estirpe produtora. Deste modo, ultrapassa-se o controlo metabólico da biossíntese desse bioproduto, por exemplo um dado enzima ou grupo de enzimas. Basicamente pode-se distinguir três tipos de fermentação ou cultura, todos usados na biossíntese de bioprodutos: -Descontínua ("batch") em que os microrganismos são inoculados num vaso "fechado" contendo o meio líquido de cultura previamente esterilizado. As células multiplicam-se, aumentando desse modo a população microbiana, até que se esgote uma ou mais das fontes nutricionais essenciais ao seu crescimento. - Contínua consiste num sistema biológico em que o meio de cultura é constantemente renovado a uma determinada velocidade, mantendo aproximadamente constante o volume e 1 as concentrações de biomassa e dos nutrientes. - Descontínua com alimentação ("fed-batch") é um tipo de cultura intermédia entre as duas anteriores. Numa primeira fase processa-se como a cultura descontínua e em seguida, alimenta-se contínua ou gradualmente o fermentador com nutrientes a uma velocidade adequada, sem retirar meio de cultura, aumentando a partir desse instante o volume total do meio líquido. Esta alimentação é efectuada antes que nutrientes fundamentais se esgotem ou evitando, que um deles atinja uma concentração muito elevada. 1.1. Regulação metabólica na biossíntese de um dado bioproduto O DNA das células microbianas, genótipo, define em detalhe as suas potencialidades de biossíntese de um dado bioproduto. Todavia a sua biossíntese, depende da natureza e composição do meio de cultura, assim como, das próprias condições de crescimento do microrganismo produtor. O meio não modifica o mapa genético da célula, mas afecta apreciavelmente a expressão dos genes, através de mecanismos regulatórios que controlam o metabolismo das células, de modo, a não desperdiçar nutrientes na síntese de metabolitos ou outros bioprodutos, que naquele ambiente, não são essenciais ao seu crescimento [112]. Contudo, convêm lembrar que são as enzimas que levam à transcrição dos genes e à biossíntese de um dado bioproduto e, indirectamente, a sua biossíntese está dependente da actividade enzimática dessas enzimas envolvidas na sua síntese. 1.1.1 Indução Dos milhares de proteinas e enzimas codificados no genótipo de uma célula, só um certo número de enzimas é inicialmente sintetizado pelas células em quantidades significativas, independentemente do meio de crescimento. Estas enzimas, são designadas por constitutivas, diferenciando-se desse modo, das induzidas, que são produzidas quando o indutor (co-factores, moléculas de substrato, de produto ou compostos análogos) está presente no meio de crescimento [112]. O modelo de regulação metabólica por indução, foi proposto e aplicado com bons resultados na síntese da maioria das enzimas catabólicas, distinguindo-se no entanto, dois tipos de mecanismos (figura 3.1.) [113]: - Indução coordenada em que o indutor induz a síntese de todas as enzimas requeridas para a sua degradação (ex. enzimas envolvidos no ciclo metabólico de Entner-Doudoroff e de arabinose). - Indução sequencial em que o indutor promove a síntese da enzima para a degradação de 2 vários substratos (ex. enzimas intervenientes na degradação de compostos aromáticos). Stainer e Ornston, 1973, referidos em [118], verificaram que uma estirpe de Pseudomonas putida sintetiza cerca de 10 enzimas induzidos por um substrato aromático, transformandoo, num intermediário metabólico como o "catechol" que posteriormente é degradado em sucinato e acetil-coA. O modelo regulatório de indução de enzimas, hoje em dia, mais largamente aceite foi proposto por Jacob e Monod, 1961 [119], tendo sido posteriormente confirmado pela interpretação de dados genéticos e fisiológicos. Segundo este modelo (figura 3.2.) existem 4 genes no cromossoma (DNA) que regulam a síntese de uma enzima particular. Figura 3.1. Mecanismos de indução coordenada (a) ou sequencial (b) [118]. Figura 3.2. Modelo de Jacob e Monod, num sistema de controlo negativo de uma enzima induzida [112]. 3 No caso de controlo negativo, o gene regulador R codifica a produção da proteína repressora (repressor), que se liga ao gene operador O e inibe a transcrição do DNA do gene estrutural S que contem, por sua vez, a informação genética da enzima. A RNA polimerase (sintetizada no gene promotor P) ao mover-se ao longo do gene estrutural S, desde que o repressor tenha sido inactivado com o indutor, transcreve para o RNA mensageiro (mRNA) a informação genética, de cuja tradução posterior tem origem a enzima. Outros autores [120] encontraram mais tarde, mecanismos regulatórios com controlo positivo, isto é, o repressor na presença do indutor era convertido num activador de transcrição do gene estrutural S da enzima. Mutantes resultantes da modificação positiva dos genes R ou O interferem respectivamente, com a formação da proteína repressora, ou ao nível da sua ligação com o gene operador, eliminando desse modo, a necessidade do indutor e, por isso, são classificados como estirpes que sofreram mutações constitutivas. 1.1.2 Repressão por produtos finais ("Feedback regulation") Repressão por produtos finais ("feedback regulation"), ocorre por exemplo, quando o meio de crescimento possui determinados monómeros intervenientes na estrutura de macromoléculas. Neste caso, estes monómeros vão reprimir a formação pelos microrganismos, das enzimas anabólicas envolvidas na biossíntese desses constituintes. As bactérias, com vias metabólicas para a síntese de aminoácidos aromáticos (ex. histidina e triptofano), podem dispensar a sua produção, desde que eles existam no meio de crescimento. Neste caso, estes monómeros são co-repressores, que se acumulam na célula e ao combinarem-se com uma proteína repressora apo-repressora, também com origem no gene R, dão origem a um repressor activo, que se liga ao gene operador O e não permite a transcrição do gene estrutural S da enzima (figura 3.3.). 1.1.3. Repressão catabólica A repressão catabólica é normalmente associada ao consumo de glucose e outros hidratos de carbono, presentes no meio de crescimento. Estes substratos são rapidamente metabolizados como fonte de carbono, reprimindo a síntese de certas enzimas do tipo catabólico induzido. Este fenómeno, também foi observado para o ião amónio reprimindo, neste caso concreto, a síntese de enzimas envolvidas na produção de metabolitos secundários [121]. Por outro lado, este fenómeno é, parcial ou totalmente ultrapassado, quando a concentração destes nutrientes (hidratos de carbono ou ião amónio), é muito baixa 4 usando uma estratégia de fermentação em “fed-bacth”, ou quando se adiciona, ao meio de fermentação, o nucleótido cicloadenosina monofosfato (C-AMP). Figura 3.3. Modelo de regulação por produtos finais ("feedback regulation") [112]. Actualmente sabe-se, que o consumo de nutrientes rapidamente metabolizados provoca uma diminuição apreciável na concentração intracelular do C-AMP, que é segundo alguns autores [122], essencial no estímulo da activação dos genes estruturais de um grande número de enzimas, assim como também é necessário na síntese do mRNA, associado a enzimas induzíveis da Escherichia coli [112]. No primeiro caso, o nucleótido liga-se ao gene promotor P por intermédio de uma proteína especial, a proteína de ligação do C-AMP (CRP), aumentando a afinidade do RNA polimerase pelo gene P e, consequentemente, a frequência de transcrição do gene estrutural S da enzima. Estes aspectos da regulação da expressão de genes na célula e sua compreensão são muito importantes pois a biossíntese de um dado bioproduto dependente muito da actividade das enzimas envolvidas na sua síntese, e, por isso, com o intuito de aumentar significativamente os níveis de síntese desse bioproduto, regra geral, só é possível por desregulação metabólica, por mutação aleatória ou desenhada dos genes, das enzimas envolvidas na sua biossíntese. 5 2. Crescimento celular O crescimento celular e a formação de um dado bioproduto são resultantes da actividade fisiológica dos microrganismos e uma resposta às condições ambientais de crescimento. No caso das bactérias, que se dividem por fissão, a célula mãe dá origem a duas células filhas que crescem exactamente como a progenitora. A primeira célula, antes de se dividir, duplica a sua massa e a quantidade de todos os seus constituintes e ainda, sintetiza a membrana celular. A curva de crescimento, em cultura descontínua, é caracterizada genericamente por quatro fases principais distintas (figura 3.4.). Figura 3.4. Cinética de crescimento celular numa cultura descontínua caracterizada por, fase latência, fase exponencial, fase estacionária (a) e fase de declínio ou morte (b) [112]. - A fase de latência (lag), que ocorre após a inoculação do meio, é um período de adaptação do microrganismo, devido à reorganização dos seus constituintes micro- e macromoleculares necessários à sua manutenção e divisão celular. Este período, quando se prolonga durante muito tempo, devido a um pequeno inóculo ou células com baixa viabilidade, é muito desfavorável em termos de produtividade (g biomassa/L.h) do fermentador num processo industrial. Por outro lado, conduz ao dispêndio de nutrientes energéticos, na manutenção das células. - A fase exponencial (log), durante o crescimento do microrganismo, expresso pelo aumento da massa celular (X) ou do número de células (N), é caracterizada por uma velocidade (dX/dt ou dN/dt) exponencial e um tempo de duplicação (td) constante, 6 descritos em termos matemáticos respectivamente por, dX/dt = µ * X ou e dN/dt = µ * N td = ln 2 / µ em que, a constante cinética µ é a taxa específica de crescimento. Se durante este período não ocorrem limitações nutricionais, o crescimento é balanceado, também designado por alguns autores por "estado estacionário", em que a taxa específica de crescimento µ é máxima e constante. - A fase estacionária, acontece quando as células viáveis atingem um equilíbrio com as células que morrem. Neste caso, a taxa de crescimento aparente é nula, isto é, a taxa específica de crescimento é igual à taxa de morte celular. - A fase de declínio ou morte, ocorre quando a massa celular ou o número de células, no meio de cultura, diminuem devido à lise das células. O crescimento celular, numa cultura descontínua, é acompanhado pela variação da concentração de alguns nutrientes no fermentador devido ao seu consumo, para a formação de micro e macromoléculas (ex: DNA, proteína, mRNA, outras) resultantes da actividade metabólica celular. A concentração intracelular, dessas macromoléculas nas células, varia ao longo da fermentação (figura 3.5.). Figura 3.5. Composição macromolecular e crescimento celular durante a fermentação descontínua [112]. 7 2.1. Definição de rendimentos de bioconversão do substrato em biomassa e bioproduto O crescimento celular (X) e a formação do bioproduto (P) são resultantes da bioconversão, pelos microrganismos, dos nutrientes presentes no meio de fermentação em biomassa e bioprodutos. Estas conversões podem ser quantificadas, num dado período de tempo, pelos coeficientes de rendimento em massa celular Yx/s ou produto formado Yp/s por unidade de massa do nutriente limitante consumido (S) e expressos, respectivamente, por: Yx/s = ∆ X / ∆ S e Yp/s = ∆ P / ∆ S 2.2. Taxa específica de crescimento 2.2.1. Efeito da concentração do substrato limitante A quantidade de biomassa resultante do crescimento, em cultura descontínua, está intimamente relacionada com a quantidade inicial de substrato limitante disponível, como se pode ver na figura 3.6. Figura 3.6. Influência da concentração inicial do substrato limitante no crescimento celular [113]. Na zona A-B, a biomassa total (X) é proporcional à concentração inicial de substrato limitante expressa por: X = Yx/s * (So - S) em que So e S, são as concentrações de substrato inicial e final e Yx/s , o coeficiente de 8 rendimento (g células / g substrato). Na zona A-B, no ponto em que pára o crescimento, pode-se considerar que S ~ 0. Na zona B-C e na zona C-D, um aumento da concentração inicial de substrato, não produz um incremento proporcional na quantidade final de biomassa, porque o crescimento está controlado pela produção de uma toxina que afecta a utilização do substrato. Monod, 1949 [123] observou que a variação da taxa específica de crescimento (µ) em função da concentração do substrato limitante no meio de cultura (fonte de carbono ou azoto, sais inorgânicos, nitrato, fosfato, sulfato, aminoácidos, vitaminas, outros) era formalmente semelhante à cinética de Michaelis-Menten, expressa pela actividade de enzimas em relação à concentração de substrato e por isso, aquele autor propôs µ = µmax * S / (Ks + S) Sendo, neste caso, Ks inversamente proporcional à afinidade do microrganismo pelo substrato. Na tabela 2 apresenta-se valores típicos de Ks para diferentes estirpes e substratos. Tabela 2 – Alguns valores da constante de saturação Ks relativamente a diferentes substratos para diferentes estirpes microbianas. Estirpe microbiana Klebsiella Lactobacillus Pseudomonas Escherichia coli Candida Saccharomyces Hansenula Aspergillus Substrato Dióxido de carbono Magnésio Potássio Glucose Metanol Metano Glucose Lactose Manitol Glicerol Triptofano Fosfato Glucose Glicerol Glucose Metanol Arginina Glucose KS (mg L-1) 0,4 0,6 0,4 5 0,4 0,7 2–4 20 2 2 0,001 1,6 25 – 75 4,5 25 120 0,5 5 dados retirados de Pirt (1975), Atkinson e Mavituna (1991), Yeh et al. (1991), Doran (1995). Vários autores, propuseram posteriormente algumas variantes ao modelo de Monod, entre elas, pode-se destacar [124]: - A taxa específica de crescimento, é função de 2 ou mais substratos limitantes (substratos presentes no meio de crescimento a baixas concentrações). 9 µ = µmax * [S1/(Ks1+S1)] * [S2/(Ks2+S2)] - O substrato inibe o crescimento acima de um determinado valor de concentração. µ = µmax * S / [Ks + S + (S/Ki)2] em que, Ki é o coeficiente de inibição do substrato. - A biomassa celular, para valores muito elevados de concentração, pode também inibir a velocidade de crescimento e neste caso, µ diminui com o aumento da concentração da biomassa de acordo com a equação. µ = µmax * S / (Ks*X+ S) 2.2.2. Crescimento em meio complexos O crescimento do microrganismo, em cultura descontínua e na presença de várias fontes de carbono e energia, é caracterizado por uma série de fases de crescimento, cada uma delas, com taxas específicas de crescimento sucessivamente mais pequenas (figura 3.7.). Figura 3.7. Evolução da biomassa e das taxas específicas de crescimento representadas por tangentes à curva de desenvolvimento celular [112]. No caso de um meio complexo, existe uma multiplicidade de fontes de carbono, mas também, uma grande variedade de compostos, tais como: aminoácidos, nucleótidos, vitaminas, outros que só são sintetizados, pelos microrganismos, após o seu esgotamento do meio de cultura. Em face da abundância, de fontes de carbono e de metabolitos presentes neste meio, a célula passa por uma série de fases de transição, durante o crescimento, caracterizadas por diferentes valores da taxa específica de crescimento. 10 2.2.3. Efeito da temperatura A temperatura afecta, a velocidade das reacções químicas e enzimáticas de acordo com a equação empírica de Arrehenius K = A * exp[-E/(R*T)] em que, E é a energia de activação, R a constante dos gases, T a temperatura absoluta e A uma constante característica do sistema. Como o metabolismo celular envolve reacções enzimáticas complexas, é natural, que a taxa específica de crescimento também seja afectada pela temperatura [124], µ = µmax(T) * S / [Ks(T) + S] em que µmax(T) = A * exp[-E1/(R*T)] e Ks(T) = K3 * exp[-E2/(R*T)] 2.2.4. Efeito do pH A variação do pH, durante a fermentação, deve-se essencialmente à natureza dos nutrientes que estão a ser metabolizados pelo microrganismo. Este caso é relevante, pois a assimilação do ião amónio, provoca em geral, diminuição do valor de pH no meio de cultura, enquanto os aminoácidos, quando utilizados, são desaminados aumentando o valor de pH. No caso da metabolização de hidratos de carbono, segundo o ciclo EmbdenMeyerhof, ocorre principalmente com a produção de ácidos orgânicos, como ácido láctico, acético ou pirúvico. A actividade biológica é menos afectada pelo pH, do que pela temperatura, devido as células terem capacidade de regulação interna da concentração de hidrogeniões. Como o pH, afecta a estrutura e a permeabilidade da membrana celular, alguns autores propuseram factores de correcção na taxa específica de crescimento, que corrija esse efeito, através da concentração do hidrogenião H+ no meio de cultura [124]. µmax(pH) = µmax / (1+Kj/H+ + K*H+) 2.2.5. Efeito do oxigénio O crescimento de microrganismos aeróbios em fermentadores, pouco arejados e/ou agitados e com elevada concentração de células, são os casos típicos em que o oxigénio, é o substrato limitante. Por isso, a taxa específica de crescimento é, nestes casos, função da concentração de oxigénio dissolvido O2. µ = µmax * O2 / (Ko + O2) 11 ou rO2/x = µ . X = [µ max O2 / ( Ko + O2)] . X (1.6) em que O2 é a concentração de oxigénio dissolvido no seio da fase líquida e Ko a “constante” de saturação em relação ao oxigénio. Os valores Ko são, em geral, muito pequenos quando comparados com valores de KS (ver Tabelas 2 e 4). Como se pode ver pela comparação dos valores, no caso de células não agregadas, as concentrações diminutas de oxigénio dissolvido, da ordem de 30% de saturação (cerca de 2 mg L-1 a 30°C) são, em geral, suficientes para que o oxigénio não seja o nutriente limitante. Tabela 4 – Alguns valores da constante de saturação relativamente ao oxigénio, Ko para diferentes estirpes microbianas. Espécie Acetobacter suboxydans Azotobacter indicum Bacillus megaterium Escherichia coli Candida utilis Saccharomyces cerevisiae Penicillium chrysogenum Temperatura (°C) 19 20 21 19 19 24 Ko (mg L-1) 0,06 0,1 2,8 0,06 41 - 450 2 7 dados retirados de Pirt (1975), Atkinson e Mavituna (1991). Contudo, em culturas desprovidas de controlo da concentração de oxigénio dissolvido, pode acontecer, num intervalo de tempo da ordem de alguns minutos, passar-se de uma situação em que existia oxigénio em excesso no meio, para outra, cineticamente distinta, em que o oxigénio é fortemente limitante da velocidade reaccional. O mesmo se verifica em reactores de grandes dimensões com um grau de mistura insuficiente quando as células são forçadas a movimentar-se de regiões bem arejadas para regiões onde a mistura e a concentração do oxigénio são reduzidas. 12 3. Cinética de fermentação 3.1. Método de cálculo As cinéticas de fermentação procuram traduzir matematicamente, as velocidades de produção e consumo dos vários bioprodutos e nutrientes presentes no meio de cultura. Num fermentador descontínuo, considera-se então, que as variações de concentrações desses compostos, num dado intervalo de tempo, correspondem em 1ª aproximação, às respectivas velocidades de formação e consumo, admitindo desprezável as variações de volume provocadas pela amostragem, a evaporação de água do meio e correcções do pH. As velocidades (rc) calculam-se, num dado instante, pelas variações das concentrações ∆C, dos diferentes compostos biológicas e químicos, num intervalo de tempo ∆t rc = ∆C / ∆ t ou num intervalo de tempo infinitesimal ∆ t > 0 . rc = dC/dt O método mais rigoroso do cálculo, dessas velocidades é aplicar um ajuste ("fitting") a três ou quatro pontos experimentais, em redor do instante considerado, sendo a velocidade igual ao respectivo declive. No caso de um procedimento de modelação de um processo de fermentação, recorre-se a um programa ("software") e testa-se aos pontos experimentais obtidos. No entanto, nem sempre o melhor ajuste, com um coeficiente de correlação mais elevado entre os dados simulados e os dados experimentais, é o mais adequado mas sim verificar também se o modelo permite uma interpretação biológica dos dados experimentais. 3.1.2 Cinética de crescimento celular A velocidade de crescimento da massa celular (rx = dX/dt) é expressa por uma equação de 1ª ordem, em relação ao nível da concentração em biomassa (X) e quantificada através de uma constante cinética, a taxa específica de crescimento µ. rx = µ * X Se a taxa específica de crescimento segue o modelo de Monod, vem então rx = µmax * S / (Ks + S) * X em que, os parâmetros cinéticos do crescimento celular, µmax e Ks, podem ser determinados pela linearização da equação anterior 1/µ = f(1/S). Estes parâmetros são 13 função da temperatura, do pH, da concentração do substrato limitante inicial, do oxigénio dissolvido, da concentração inicial do indutor, da fase de indução e de outras condições operatórias. 3.1.3. Cinética do consumo da fonte de carbono O crescimento celular implica consumo de substratos que fornecem matéria-prima e energia para a formação de novas células. Nas culturas de organismos heterotróficos, um determinado nutriente, S, serve, em geral, simultaneamente de fonte de carbono e de energia. Assim, para formar uma quantidade de biomassa ∆X, é consumida a quantidade de ∆S de substrato, de acordo com a equação: ∆S = (∆S) assimilação + (∆S)energia (1:14) em que (∆S) assimilação e (∆S)energia representam respectivamente as fracções de substrato consumido e incorporado na biomassa formada e a fracção que foi oxidada de modo a gerar a energia necessária à biossíntese. A velocidade do consumo de substrato fonte de carbono (rs = -dS/dt), depende da sua velocidade de incorporação na massa celular, ou seja, da velocidade de crescimento celular (rx) e também do consumo desse substrato na energia de manutenção das células (ms), sendo por isso quantificada matematicamente por, rs = rx / Yx/s + ms * X ou σs = rs / X = µ / Yx/s + ms Em que σs é a taxa específica de consumo do substrato, sendo os parâmetros; Yx/s (coeficiente de rendimento da formação da biomassa em relação ao consumo de substrato) e ms estimados pela relação linear entre σs = f1(µ). A energia de manutenção preserva a célula viável, ao regenerar os seus constituintes e controlar os gradientes de concentração entre, o interior e o exterior da célula (pressão osmótica). Contudo, a obtenção dos dados experimentais para a obtenção destes parâmetros cinéticos nem sempre são fáceis para sistemas biológicos muito simples e com um só substrato. No caso particular de sistemas de fermentação a partir de meios complexos então as dificuldades ainda são maiores. Por exemplo, nestas condições, o valor do coeficiente de rendimento, representado pelo quociente ∆X/(∆S)assimilação, e abreviado por Yx/s, está, na maior parte dos casos inacessível, quer por cálculo, quer experimentalmente. Na prática, a razão quantificável ∆X/(∆S) seria idêntica a rx/rSx , razão das velocidades específicas de formação de biomassa (rx) e consumo de substrato (rSx) para a 14 formação da biomassa num determinado período de tempo, i.e., o factor de rendimento biomassa / substrato (Yx/s) que exprime-se em kg kg-1 ou mol mol-1 poderia também ser calculado pela razão das taxas específicas de crescimento celular (µ) e consumo específico do substrato (σSx) obtidos nesse período de tempo. Yx/s = µ/(σSx) (l:15a) Como não é possível identificar exactamente o substrato incorporado na formação da biomassa então, em abordagens preliminares, é prática corrente calcular-se, os rendimentos directamente a partir dos dados experimentais, isto é, a biomassa formada em relação ao substrato total consumido ∆S, e calcula-se, assim, o chamado rendimento observado (ou rendimento experimental) (Y´x/s)obs, i.e., rx/rs e tendo em conta as taxas específicas, é naturalmente legítimo escrever: (Y´x/s)obs = µ/(σS) (1.16) 3.1.4. Cinética de consumo da fonte de azoto A velocidade de consumo de fonte de azoto (rn = -dN/dt) depende, tal como o substrato fonte de carbono, da sua velocidade de incorporação na massa celular e, por isso, pode também ser expresso por: rn = rx / Yx/n ou σn = rn / X = µ / Yx/n O coeficiente de rendimento da formação de biomassa em relação à fonte de azoto, Yx/n e, num modelo biológico muito simples, obtém-se da relação linear entre σn = f2(µ) em que, σn é a taxa específica de consumo da fonte de azoto. 3.1.5. Cinética de consumo do oxigénio Num determinado intervalo de tempo, as velocidades de consumo de oxigénio (dO2/dt), em que O2 é concentração do oxigénio dissolvido no meio de cultura, para a formação de biomassa, para a manutenção e a formação de bioproduto (respectivamente rO2x , rO2m e rO2p) correlacionam-se com rx , rsm e rp da seguinte forma: rO2x = rx / Yx/o (1.17) rO2m = rsm / Ys/o (1.18) rO2p = rp / Yp/o (1.19) e, em que Yx/o, Ys/o e Yp/o são, respectivamente, os rendimentos biomassa/oxigénio, fonte de carbono/oxigénio e produto/oxigénio. A velocidade de consumo do oxigénio global, rO2, também conhecida por oxygen uptake rate (OUR), é o somatório das velocidades de consumo de oxigénio parciais. 15 Por sua vez, a velocidade de transferência de oxigénio (OTR) é descrita por: OTR = kLa * (C* - CL) em que, kLa é o coeficiente global de transferência do oxigénio, C* e CL as concentrações de oxigénio de equilíbrio e dissolvido no meio liquido. Se esta última concentração é mais baixa do que um valor crítico, característico de cada microrganismo, do meio e das condições de fermentação, o oxigénio é o substrato limitante que controla o crescimento (ver tabela 4). A velocidade de consumo de oxigénio pelo microrganismo (OUR) é expressa em termos da concentração de células (X), da taxa específica de crescimento µ e do coeficiente de rendimento do consumo do oxigénio em relação à formação da biomassa ao oxigénio, Yo/x , pela equação. OUR = µ * X / Yo/x Na circunstância do crescimento ser limitado pelo oxigénio, a taxa de consumo é, neste caso, igual à taxa de transferência do oxigénio. OUR = OTR Observa-se então, uma dependência da taxa específica de crescimento, com o mecanismo de transferência de oxigénio, expresso por µ = Yo/x * kLa * (C* - CL) / X Em termos da velocidade de crescimento (dX/dt), vem dX/dt = Yo/x * kLa * (C* - CL) e, consequentemente, verifica-se que o crescimento do microrganismo é função linear da força motriz da transferência de oxigénio (C* - CL). 3.1.6. Cinética de formação do bioproduto A formação do bioproduto (P), com origem microbiana, está de alguma maneira associada ao crescimento celular. Durante os períodos de crescimento celular activo, o principal produto da reacção biológica é a própria biomassa. As reacções biológicas são autocatalíticas, i.e., quanto maior concentração das células em estado reprodutivo, mais elevada será a velocidade de formação de biomassa (g cel/L.h). Para além da biomassa formada, designam-se por “produtos metabólicos” os compostos biossintetizados nas reacções intracelulares que são excretadas para a fase abiótica (produtos extracelulares) e aqueles que a célula armazena (produtos intracelulares). Incluem-se nesta última categoria os materiais de reserva (ex: glicogénio, polifosfato, polihidroxialcanoatos, etc), enzimas intracelulares (ex: glucose16 isomerase) e proteínas recombinantes na forma de corpos de inclusão, entre outros. Em culturas desenhadas para a produção de metabolitos intracelulares a separação das células, a sua desintegração e o posterior isolamento do produto são etapas básicas do processo. Quando se trata de um produto extracelular há que proceder à sua separação das células presentes no meio de cultura e ao seu posterior isolamento e, eventual, purificação. Assim, alguns autores propuseram várias classificações de acordo com a biossíntese do bioproduto com o crescimento celular. A classificação de Gaden, 1959 [125] é a mais usual e muito utilizada na modelação da biossíntese do produto durante a fermentação. Esta classificação baseia-se em 3 tipos de cinéticas distintas de formação do produto em relação à biomassa, como se pode observar na figura 3.8. Figura 3.8. Evolução do crescimento celular (X) e formação do produto (P) em cultura descontínua : (a) produto associado ao crescimento, (b) formação do produto mista e (c) produto não associado ao crescimento [112]. A relação entre a velocidade de formação do produto (rp = dP/dt) com as velocidades de formação da biomassa (rx) e própria concentração de biomassa (X) foi quantificada por Luedeking e Piret, 1959 [126] de acordo com a seguinte relação matemática: rp = α * rx + β * X Esta equação permite distinguir 3 tipos de formação do produto: - Tipo I cinética associada com o crescimento (ex. metabolitos primários) rp = α * rx em que, β = 0 e α > 0, sendo este calculado da relação linear rp = f3 (rx). -Tipo II cinética mista (ex. biossíntese do ácido acético, cuja formação só está parcialmente associada com o crescimento) rp = α * rx + β * X 17 em que, α e β > 0, sendo obtidos da relação linear entre a taxa específica de formação do produto (Π = rp/X) com a taxa específica de crescimento (µ). Π=α*µ+β - Tipo III cinética não associada com o crescimento (ex. metabolitos secundários) rp = β * X em que, α = 0 e β > 0, sendo este obtido directamente da relação linear rp = f4(X). 3.2.7. Conceitos de modelação Ao propor-se um modelo de fermentação, pretende-se com ele descrever o processo de crescimento do microrganismo, a síntese de um dado bioproduto e se possível, prever os respectivos efeitos ao variar a composição do meio e as condições operacionais da fermentação. Para isso, o modelo estabelecerá relações de causa e efeito entre as variáveis da fermentação, tais como; as concentrações dos substratos (fontes de carbono, azoto, outros), da biomassa e do produto. Os processos biológicos são extremamente complexos, por isso, os modelos estruturados usados, ao nível dos componentes moleculares e macromoleculares intracelulares, na interpretação pormenorizada dos mecanismos metabólicos de biossíntese de bioprodutos (ex: proteínas, enzimas, antibióticos, etc) são muito difíceis de aplicar. A nível industrial, o que se procura é maximizar a produção de um dado bioproduto, sendo assim, é, em geral, mais conveniente optar por um modelo simples não estruturado, que descreva macroscopicamente o processo da sua biossíntese no fermentador. Este modelo baseia-se em fundamentos bioquímicos e físicos-químicos, que interpretam a célula como uma unidade, capaz de realizar reacções do tipo das esquematizadas na figura 3.9. Figura 3.9. Modelo não estruturado [124]. O modelo não estruturado considera as propriedades médias da célula, não tendo em 18 conta as suas diferenças individuais e desprezando por isso, a sua estrutura e diferenças biológicas. Neste modelo a célula responde em uníssono, ao estado e modificações das variáveis de fermentação no meio de cultura. O desenvolvimento de um modelo não estruturado, exige essencialmente três grupos de relações básicas, aplicadas ao volume de controlo coincidente com o fermentador, como sejam [124]: - Os balanços, envolvendo a massa total, os componentes individuais e a energia. - As velocidades de consumo (substratos), formação (bioprodutos) e ainda, de transferência de massa, energia e componentes individuais através da interface do meio circundante com o volume de controlo. - Relações termodinâmicas ou de equilíbrio. Neste caso, os balanços de massa e energia, as cinéticas bioquímicas tradicionais de crescimento celular, de consumo dos substratos e formação do bioproduto são muito utilizadas no modelo não estruturado. Assim, os respectivos parâmetros são coeficientes estequiométricos e/ou rendimento, constantes de velocidade de consumo dos substratos e/ou formação do bioproduto, constantes de saturação e de inibição, entre outros. Para os modelos mais complexos, estas cinéticas traduzem sistemas dinâmicos, descritos por equações diferenciais intimamente interligadas e, por isso, tem de recorrer-se a técnicas computacionais de resolução simultânea das diferentes equações, a partir dos dados experimentais, para a estimativa dos parâmetros do modelo. A solução encontrada para as diferentes equações é a que conduz à minimização da soma dos mínimos quadráticos do desvio entre os valores experimentais e os valores previstos pelo modelo. Todavia, um bom ajuste do modelo aos dados experimentais, não é razão suficiente para tornar o modelo aceitável, nem prova a sua aplicabilidade ou validade. 19 4. Microrganismos e meios de cultura de utilização industrial 4.1 Introdução A produção de bioprodutos por microrganismos heterótrofos aeróbios efectua-se por uma fermentação típica que se caracteriza pelos seguintes passos [113]: - Formulação dos meios para o inóculo, para o fermentador de sementeira, para o préfermentação e para a biossíntese do bioproduto. - Esterilização dos meios, fermentadores e outros equipamentos auxiliares. - Preparação de uma cultura pura a partir de um balão e multiplicada em quantidade suficiente em fermentadores de sementeira (“seed”) até ao pré-fermentador para inocular o fermentador de produção industrial. - Crescimento do microrganismo e biossíntese do bioproduto num meio e em condições favoráveis à sua formação. - Extracção do bioproduto do meio de fermentação exausto ou das células, no caso de ser um bioproduto intracelular, e sua posterior purificação. - Tratamento dos efluentes resultantes do processo fermentativo. Fig. 4.1 — Esquema geral de um processo fermentativo industrial. A Fig. 4.1 apresenta um esquema geral deste processo fermentativo de forma 20 simplificada e o seu sucesso depende muito de uma correcta definição de quatro pontos básicos: o microrganismo, o meio de cultura, a forma de condução do processo fermentativo e as etapas de recuperação do bioproduto. Na verdade, estes quatro pilares de um processo biológico industrial estão intimamente interligados e interagem entre si, sendo, por isso, necessário a sua optimização de forma conjunta levando em consideração aspectos biológicos e económicos, o que nem sempre é fácil de encontrar o compromisso ideal e mais adequado. Por exemplo, pode-se mencionar que pretende-se sempre empregar meios de cultura baratos, mas deve-se lembrar que o microrganismo deve encontrar neste meio condições adequadas para realizar eventualmente o seu crescimento e a biossíntese ou bioconversão pretendida e, assim, conseguir produzir o bioproduto alvo em biorreactores que podem atingir volumes de dezenas de milhares de litros. As operações finais para a recuperação do bioproduto alvo (operações de “downstream”), são igualmente de enorme importância pois se o bioproduto não tiver as especificações em termos de propriedades físico-químicas, actividade biológica, pureza, etc não terá valor comercial, por melhor e mais optimizado que tiver sido o processo fermentativo. No entanto, a importância de uma adequada definição das operações de recuperação do produto, fica mais clara quando se aborda a produção de bioprodutos de alto valor acrescentado, como a produção de antibióticos, enzimas, ou outras proteínas (insulina, hormonas de crescimento, vacinas, etc.). Para esses casos, as operações de recuperação do bioproduto podem ser responsáveis por 50 a 70% do custo do final, indicando, claramente, a importância em termos de uma adequada optimização global do bioprocesso. Os aspectos relacionados com a forma de operação de biorreactores, assim como as operações de recuperação de bioprodutos, serão abordados nos capítulos seguintes. Cabe, agora, abordar alguma reflexão e discussão sobre microrganismos e meios de cultura que podem ser eventualmente empregados em uma operação industrial. 4.2 Fontes de microrganismos de interesse Microrganismos que possam ter interesse industrial, podem ser obtidos basicamente das seguintes formas: - Isolamento a partir de recursos naturais, - Compra em colecções de culturas, - Obtenção de mutantes naturais, - Obtenção de mutantes induzidos por métodos convencionais, 21 - Obtenção de microrganismos recombinantes por técnicas de engenharia genética. O isolamento de microrganismos a partir de recursos naturais, tais como solo, água, plantas etc., sempre foi uma actividade de grande importância para a obtenção de novas estirpes produtoras de interesse industrial. Trata-se de uma actividade que envolve muito trabalho experimental e, logo, um custo relativamente elevado, porém pode conduzir ao isolamento de estirpes com maior capacidade produtora de um dado bioproduto, mas, mais importante do que isto, pode conduzir à descoberta de novos bioprodutos, o que confere a esta actividade industrial uma importância fundamental. Cumpre lembrar que as grandes empresas produtoras de antibióticos, ou enzimas, mantêm programas de isolamento de estirpes com origem em recursos naturais, justamente com o objectivo de incrementar a produção de certos bioprodutos, ou com o objectivo, por exemplo, de encontrar estirpes produtoras de novos antibióticos. Contudo, o isolamento de novas estirpes deve ter início com certas premissas, definindo-se o que se pretende obter, pois o simples isolamento poderá levar à disponibilidade de um número inimaginável de culturas, o que dificulta a sua utilização vantajosa no bioprocesso existente na fábrica ou o bioproduto que se pretende produzir. A compra de estirpes em colecções de culturas é presentemente bastante viável, tendo em vista a existência de muitas colecções de culturas em vários países. Nesse sentido, Stanbury et al.1 listam nada menos do que 11 colecções de culturas em vários países (tabela 1). Contudo, este número aumentou significativamente nos anos mais recentes. O contacto com essas colecções é actualmente muito facilitado, podendo-se utilizar os recursos da Internet para tal tarefa. Tabela 1. Exemplo de alguns centros internacionais que possuem coleção de culturas ou centros onde é possível obter informações. Coleção de culturas ATCC American Type Culture Collection, USA NCIMB National Collections of Industrial and Marine Bacteria, UK NRRL Northern Regional Research Laboratories, Agricultural Research Service, USA CBS Centraal Bureau voor de Schimmelcultures,, The Netherlands DSMZ Deutsche Sammlung fur Mikroorganismen und Zellkulmrcn, Germany IFO Institute for Fermentation Osaka, Japan IAM Institute of Applied Microbiology, University of Tokyo, Japan CMI Commonwealth Mycological Institute, UK CCT Coleção de Culturas Tropical de Campinas, Brasil Centros de informação WDC Worldwide Directory of Culture Collections, Japan MSDN Microbial Strain Data Network, Institute of Biotechnology Cambridge University, UK ICECC Information Center for European Culture Collections, Germany 22 Na produção industrial de um dado antibiótico, o microrganismo utilizado não estará disponível em uma colecção de culturas mas, em geral, será oriundo de programas de melhoramento genético realizado na própria empresa. Quando uma dada célula prolífera, em meios de cultura sólidos ou líquidos, há sempre uma pequena possibilidade de surgimento de mutantes naturais. Contudo, estas mutações naturais não são, de forma alguma, interessantes do ponto de vista de um processo fermentativo industrial e devem ser evitadas ou minimizadas a todo o custo. Por esse motivo, convêm isolar e ensaiar as células durante a preparação do inóculo no laboratório várias vezes com o objectivo de verificar e certificar da sua potencialidade na biossíntese de um dado bioproduto específico. E só uma vez garantida a reprodutibilidade da biossíntese do bioproduto, de acordo com um protocolo de caracterização previamente estabelecido, a estirpe é, então, seleccionada na preparação do inóculo num balão a ser usado na fábrica. Contudo, estas mutações naturais podem, eventualmente, gerar novas estirpes produtoras que apresentem interesse prático mas poderá significar o dispêndio de muito tempo, razão pela qual prefere-se, há já várias décadas, lançar mão de métodos que forcem o aparecimento de células mutantes, como é o caso de submeter suspensões de células ou esporos a radiações ultravioleta ou a substâncias químicas mutagénicas, como a nitrosoguanidina. Ao se permitir essa exposição ou contacto com agentes mutagénicos, ocorre uma drástica destruição da maioria das células, recuperando-se, a seguir, aquelas que sobreviveram, verificando-se se sofreram mutação em alguma direcção desejada, como seja, aumento na capacidade de biossíntese do bioproduto alvo. Esta técnica para a obtenção de mutantes é obviamente aleatória, tratando-se de recuperar as células sobreviventes em meios ou condições específicas, de forma a dirigir este isolamento para obter células com novas capacidades que se pretende. Tais programas de mutação/selecção costumam ser bastante dispendiosos, mas levaram a várias condições de sucesso descritas na literatura. Um caso bem relatado foi a significativa melhoria da estirpe mutante de Penicillium chrysogenum para a produção de penicilina. De fato, na década de 40 obtinha-se teor de penicilina no caldo fermentado da ordem de 100 unidades/cm3, passando-se a obter, já por volta de 1976, teores da ordem de 51.000 unidades/cm3. Acréscimos da ordem de 4 vezes foram obtidos entre 1970 e 19851, o que indica que este progresso costuma ser muito interessante, especialmente quando se parte de estirpes naturais. Outra direcção na obtenção de novas estirpes mutantes com interesse industrial pode ser, por exemplo, minimização da biossíntese de impurezas que acompanham concomitantemente a biossíntese do antibiótico alvo e, respectivos, epímeros. 23 Neste caso, pode-se ilustrar o exemplo das estirpes mutantes industriais de Streptomyces aureofaciens usadas na biossíntese de desmetilclorotetraciclina (DMCT), também designada por demeclociclina (Deme). Durante a fermentação e biossíntese de demeclociclina ocorre a formação simultânea de desmetiltetraciclina (DMT) em quantidades relativas que têm a haver com o próprio microrganismo produtor e as condições de fermentação. Por outro lado, em solução, as tetraciclinas sofrem também reacções reversíveis de epimerização dando origem a um produto menos activo (epis). O grau de extensão desta reacção está directamente relacionado com o tempo de exposição a um determinado pH e temperatura e com a presença ou não de iões fosfato ou citrato. O teor em epis aumenta com a exposição prolongada a temperaturas elevadas e a valores de pH extremos. Deste modo na produção de demeclociclina podem formar-se, em maior ou menor quantidades, os respectivos epímeros da desmetiltetraciclina como o 4epidesmetiltetraciclina (epiDMT), e o epímero da desmetilclorotetraciclina como por exemplo o 4- epidesmetilclorotetraciclina (epiDMCT) (Fig. 4.2). As agências reguladoras de produtos farmacêuticos como o FDA definem os teores máximos dessas impurezas e epímeros e podem considerar um dado bioproduto, neste exemplo antibiótico, sem valor farmacêutico e, logo, comercial se não se conseguir limitar a biossíntese dessas impurezas e reacções de epimerização durante o isolamento e purificação do antibiótico alvo. Outra direcção interessante neste procedimento de pesquisa de novas estirpes mutantes é o bloqueamento de algumas vias metabólicas, por exemplo minimização da biossíntese de ácidos orgânicos a partir de hidratos de carbono beneficiando directamente o rendimento em biomassa e/ou bioproduto em relação ao nutriente limitante existente no meio de cultura, por exemplo, fonte de carbono. Tais progressos, realmente significativos, costumam ser atribuídos apenas a esses programas de mutação/selecção da nova estirpe mutante, mas é conveniente lembrar o trabalho necessário de selecção mais adequada da estirpe durante a preparação do inóculo do balão ao pré-fermentador, da adaptação da estirpe ao meio de produção do bioproduto alvo, a forma e estratégias do modo de operação do processo fermentativo, e as alterações nas etapas de recuperação e purificação do produto, a fim de proporcionar o real surgimento das vantagens, ao nível de produção industrial.2 Outra estratégia de modificação genética de um microrganismo é a introdução de fragmentos de DNA de certas células bacterianas, animais, vegetais, e humanas em célula de outros microrganismos hospedeiros, via vectores virais ou plasmídeos de DNA, que permite a obtenção de células modificadas geneticamente, porém de forma muito mais inteligente e dirigida, do que as metodologias de mutação convencionais anteriormente 24 mencionadas, sendo possível ser executada em bactérias, leveduras, e fungos mas igualmente com células animais e vegetais. Fig. 4.2. Fórmulas estruturais de impurezas (desmetiltetraciclina) e epis que acompanham concomitantemente (demeclociclina). biossíntese do antibiótico alvo, a desmetilclorotetraciclina 25 Nas últimas décadas, estas técnicas de engenharia genética trouxeram sem dúvida um imenso avanço nas possibilidades de se obter células mais produtivas, por exemplo, introdução de mais cópias do gene de uma enzima específica que limita a velocidade de um determinado fluxo metabólico. Com esse procedimento, aumenta-se o número de cópias do gene responsável pela síntese da enzima específica, o que permite aumentar a velocidade da reacção limitante, pela presença de uma maior concentração da enzima responsável na biossíntese de um determinado bioproduto. Esta estratégia foi empregada, por exemplo, no incremento da produção de cefalosporina C por Cephalosporium acremonium.1 Outra situação poderia ser identificar a enzima de mais baixa actividade ou estabilidade e, por algum desses motivos, responsável do passo de catálise limitante da reacção global de uma via metabólica. Esta enzima poderia ser manipulada, através do conhecimento da sua estrutura e alteração de determinados aminoácidos, por técnicas de engenharia de proteínas, com o objectivo de obter uma nova enzima recombinante com actividade e/ou estabilidade aumentada. O gene correspondente a essa nova enzima recombinante seria adicionado, por exemplo, através de um plasmídeo de DNA usado para transformar a célula produtora, se possível, caracterizado também com capacidade de replicação multicópia. A potencialidade dessas técnicas é realmente enorme, pois, uma vez identificado e solucionado o problema de uma dada reacção limitante, outra reacção da sequência metabólica passará a ser limitante, o que permite imaginar a realização de igual estratégia para esta nova reacção. Claro está que tais procedimentos não são de simples execução, pois inclusive exigem um amplo conhecimento do metabolismo celular da estirpe produtora utilizada, mas apresentam um enorme interesse prático. Outra situação muito comum é a introdução de plasmídeo para tornar as células recombinantes produtoras de substâncias que naturalmente não são por elas produzidas, em virtude da ausência de codificação genética no seu(s) cromossoma(s). Neste grupo de substâncias, também designadas por heterólogas, podem-se destacar muitos exemplos, como sejam, enzimas, proteínas terapêuticas, anticorpos, hormonas e outros factores de crescimento, vitaminas, vacinas, DNA plasmídeo, etc. Nesse caso, genes de certas células são transferidos, via vectores virais ou plasmídeos de DNA adequados, a outras células hospedeiras, como é o caso de introduzir a codificação para a síntese de glucoamilase de Aspergilius em células de Saccharomyces cerevisiae, o que passa a permitir a realização da fermentação alcoólica de matérias-primas amiláceas, pela levedura geneticamente alterada.3,4 Com esse objectivo, a tecnologia do DNA recombinante tem sido utilizada para a obtenção de proteínas heterólogas de alto valor acrescentado, em particular, para uso em 26 saúde humana, como é o caso da produção de hormonas de crescimento humano, insulina, interferons, Factor VIII (tratamento da hemofilia), etc. Como microrganismos hospedeiros e receptores da codificação genética empregamse bactérias (ex: Escherichia coli, Bacilius subtilis), leveduras (ex: Saccharomyces cerevisiae) ou fungos filamentosos (ex: Aspergillus niger). Igualmente são empregadas células animais (ex: BHK - “Baby Hamster Kidney”, CHO - “Chinese Hamster Ovary”), particularmente para a produção de proteínas mais complexas e de maior valor acrescentado, o que explica o crescente interesse das grandes empresas do sector no cultivo de células animais. 4.3 Características desejáveis do microrganismo e do meio em aplicações industriais Apresenta-se agora algumas características gerais e desejáveis do microrganismo produtor, do meio de cultivo e condições de fermentação, lembrando que o desempenho de um dado microrganismo depende muito da composição do meio de cultura em que é cultivado no processo produtivo em larga escala. 4.3.1 Características desejáveis do microrganismo Para uma aplicação industrial, espera-se que os microrganismos apresentem as seguintes características gerais: • Elevada eficiência na conversão do substrato em bioproduto; • Permitir a expressão e acumulação do bioproduto no meio, de forma a haver logo elevada concentração no caldo fermentado e, também maior produtividade, expresso em g produto / L.h; • Não produzir substâncias e impurezas incompatíveis com a qualidade final do bioproduto; • Apresentar reprodutibilidade quanto ao comportamento; • Estabilidade durante o desenvolvimento do inóculo desde o balão até à préfermentação na fábrica; • Não ser patogénico; • Não exigir condições de processo fermentativo muito complexas; • Não exigir meios de cultura dispendiosos; • Permitir uma rápida expressão e, por exemplo se for produto extracelular, excreção do bioproduto para o meio de fermentação. 27 De fato, uma célula deve permitir elevada conversão do substrato em bioproduto, pois, com muita frequência, as matérias-primas incidem pesadamente no custo do produto final, uma vez que pode-se mencionar uma incidência de 38 a 73% do custo total de produção como sendo devido às matérias-primas, em particular a fonte orgânica de carbono.1 Por outro lado, é sempre desejável que o microrganismo permita uma elevada acumulação do bioproduto no meio, sem sofrer inibição mais acentuada, em virtude desta acumulação, pois isto concorre para uma redução nos custos de recuperação, os quais também podem ser muito acentuados. Tome-se como exemplo o caso da fermentação alcoólica, aqui representada simplificadamente pela equação química final (glucose sendo convertida em anaerobiose em etanol e dióxido de carbono): C6H12O6 2 C2H5OH + 2 CO2 Como se pode observar, o fator estequiométrico mássico teórico é igual a 0,511, ou seja, cada grama de glucose convertida gera 0,511g de etanol. Como a Saccharomyces cerevisiae é usada, normalmente, nesta fermentação com rendimento da ordem de 90% deste valor estequiométrico. Esta facto torna este microrganismo o mais importante para realizar esta conversão em termos industriais uma vez que outros microrganismos também podem acumular etanol no meio de fermentação, a partir da glucose, porém não com este que rendimento tão elevado. Obviamente, não se consegue manter um processo de fermentação alcoólica obtendose 100% de rendimento, pois as células produtoras têm de proliferar, o que significa a biossíntese de muitos outros compostos intermediários, sendo a acumulação de etanol a via metabólica, em condições de anaerobiose, que permite a geração de energia na forma de ATP (glicólise). Claro está que este é um ponto fundamental, pois a matéria-prima (custo da glucose 0,1 - 0,35 $/Kg) incide em algo como 60% do custo do etanol (0,2 – 0,8 $/kg) e, desta forma, baixos rendimentos tornariam inviável a produção deste bioproduto de baixo valor acrescentado. Por outro lado, sabe-se que quando se atinge 8 a 10% (em volume) em etanol no vinho fermentado, já ocorre uma clara inibição da levedura, o que faz com que a velocidade da bioconversão do açúcar em etanol fique prejudicada, razão pela qual procura-se não ultrapassar estes valores, pelo menos na produção de álcool combustível. Isso significa a necessidade de destilar um líquido que contém apenas 10% de etanol, o que, além de exigir o dispêndio significativo de energia, ainda irá gerar 90% de resíduo que necessita encontrar um destino adequado, em princípio, a estação de tratamento de efluentes líquidos. De qualquer forma, fica claro que a conversão da matéria-prima em produto já é 28 muito elevada, o que não permite visualizar grandes incrementos, lembrando, novamente, a necessidade de manter a viabilidade celular para que a fermentação não seja interrompida. O ideal seria encontrar leveduras mais resistentes ao etanol e, logo, sem diminuição da velocidade da fermentação alcoólica (sem queda na produtividade, i.e., g etanol/L.h), o que não é tarefa simples. Uma situação bem diversa é a que ocorre com os processos aeróbios, por exemplo, na produção de enzimas ou antibióticos. Nesse caso, a conversão do açúcar pode ser representada esquematicamente da seguinte forma: Açúcar + Fonte azoto + O2 Células + CO2 + H2O + Intermediários + Produto Neste caso, por se operar em aerobiose, a quantidade de células geradas costuma ser muito intensa, em relação ao açúcar consumido, ao lado de uma quantidade relativamente pequena do bioproduto alvo (antibiótico ou enzima). Se, por um lado, o custo da matéria-prima incide menos pesadamente no custo do produto final, as operações de recuperação do produto são necessariamente mais onerosas (chega-se a valores da ordem de 70%), mas compensado pelo fato de o bioproduto alvo ser de alto valor acrescentado. Assim, ao se encontrar estirpes produtoras que cresçam relativamente menos ou conduzam à biossíntese muito maior do bioproduto alvo, isto é, estirpes caracterizadas com maiores rendimentos de formação do bioproduto por biomassa (Yp/x). Este exemplo está conforme o plano de mutações e optimização do meio já mencionado anteriormente para o caso da produção de penicilina. Mesmo permitindo a acumulação do produto no meio, a célula produtora deve, ainda, contar com a característica de não produzir substâncias que sejam incompatíveis com o bioproduto alvo, pois isto pode levar a uma situação de desinteresse comercial do processo produtivo como o caso dos limites baixos exigidos de impurezas e epis discutida anteriormente na biossíntese da demeclociclina. Esta situação também pode ser muito bem ilustrada, por exemplo, na produção de uma dada enzima, ou proteína, mas se utilizar uma estirpe produtora que também seja simultaneamente uma boa produtora de proteases extracelulares. Assim, durante, a biossíntese da enzima, na sua excreção e acumulação no meio de fermentação, no passo de separação das células, nos vários passos de isolamento e purificação da enzima e durante o próprio armazenamento do produto, pode-se ter uma redução significativa da actividade enzimática em virtude da acção das proteases. Portanto, neste exemplo, é fulcral minimizar ou eliminar a biossíntese das proteases pela estirpe produtora ou eliminar, logo no início do bioprocesso, a sua presença nos extractos enzimáticos usados nos diferentes passos de 29 isolamento e purificação da enzima. Outro exemplo mais específico, é sobre a produção de glucoamilase por Aspergilius. Como se sabe, a glucoamilase é a enzima que hidrolisa o amido gerando glucose, sendo pois de muito interesse em várias aplicações, destacando-se a preparação de xaropes de glucose para a indústria alimentar. Ocorre que alguns microrganismos produtores de glucoamilase também sintetizam a transglucosidase, enzima esta que, quando na presença de glucose, volta a polimerizá-la, gerando moléculas que não são mais hidrolisadas pela glucoamilase. Portanto, neste caso, deve-se procurar e seleccionar uma estirpe produtora que não onduza à biossíntese ou minimize a produção da transglucosidase. Além destas características desejáveis, o microrganismo ideal deve também produzir o mínimo de outras substâncias ou impurezas, ao mesmo tempo em que biossintetiza o bioproduto alvo. Isso leva a uma maior disponibilidade de nutrientes para a biossíntese do bioproduto, mas também permite vislumbrar um processo mais fácil na recuperação deste bioproduto. Uma outra característica, também importante, refere-se à estabilidade fisiológica da estirpe produtora a ser usada industrialmente. Isso significa que não basta que se tenha uma estirpe hiperprodutora de uma dada substância de interesse, mas que se conheça as técnicas mais adequadas para a sua conservação e, mais ainda, que ela se mantenha como excelente produtora do bioproduto de interesse ao longo de todas as etapas envolvidas desde sua proliferação ao nível de laboratório, nos fermentadores de propagação (sementeira e préfermentação) e biorreactor principal na escala industrial (Fig. 4.1). Por esse motivo, o estudo constante das formas de conservação mais adequadas das estirpes produtoras de uso industrial é uma tarefa muito importante, conservando-se, na indústria, aquelas realmente de interesse, assim como o imediato descarte dos lotes que demonstrem alguma tendência à perda da capacidade de biossíntese do bioproduto, aumento da biossíntese de impurezas, diminuição da produtividade devido à inibição do bioproduto acumulado no meio de fermentação, ou atenuação quanto à excreção e acumulação do produto no meio extracelular. Assim, em termos de metodologias de conservação há sempre a tendência em verificar o crescimento da célula mas também deve verificar se a estirpe continua a biossintetizar o produto alvo, e a excretar e acumular o produto no meio de fermentação. Como o processo fermentativo típico, normalmente parte de uma massa muito reduzida de células produtoras nas etapas iniciais de preparação do inóculo (Fig. 4.1) e pretende-se chegar a biorreactores de dezenas de milhares de litros, contendo concentrações celulares com frequência acima de 10 g de matéria seca de células/L, o que significa gerar, em termos de massa de matéria seca, algo em torno de toneladas de células. 30 A propagação da estirpe produtora tem de passar, em geral, por vários estágios de propagação, nomeadamente, em um ou dois fermentadores de sementeira e pelo menos uma pré-fermentação, antes da sua utilização no fermentador industrial. O elevado número destes passos aumenta o risco de contaminação e a estirpe pode, entretanto, sofrer mutações naturais ou pode ocorrer alguma contaminação ou alguma outra deficiência que conduza à perda da estirpe antes atingir em quantidade suficiente para inocular o fermentador industrial. A estirpe produtora quando vai inocular o meio no fermentador industrial tem, em geral, de satisfazer os seguintes critérios [113]: - Encontrar-se num estado activo, de modo a minimizar a duração ou ser inexistente a fase de latência (lag). - Estar disponível em quantidade suficiente para um volume de inóculo óptimo, entre 3 e 10 % (v/v). - Estar numa forma morfologicamente adequada. - Estar livre de contaminações. - Reter as capacidades metabólicas de biossíntese do bioproduto alvo. Assim, a estabilidade material genético da estirpe produtora durante o desenvolvimento do inóculo, desde o balão até à pré-fermentação na fábrica, é um factor de maior importância pois um mau procedimento pode levar a elevadas perdas relacionadas com o custo dos nutrientes, mão-de-obra, energia, etc. Para disso pode também conduzir à paragem da fábrica, um ou mais dias, por perda de um lote do bioproduto a nível industrial e pode representar centenas ou milhares de kg de produto que vão atrasar a entrega de futuras encomendas. Este fenómeno da perda de estabilidade genética quer da capacidade de biossíntese ou de acumulação do bioproduto de interesse no meio de fermentação pode ocorrer tanto com estirpes naturais, como com as estirpes mutantes. Por isso, na fábrica, por exemplo, o departamento de investigação e desenvolvimento testa e monitoriza permanentemente as características das estirpes produtoras ao nível do laboratório e da escala piloto antes de seleccionar a estirpe a ser usada a nível industrial. Outra prática corrente no processo a nível industrial é duplicar todos os inóculos desde o simples balão até ao pré-fermentador e escolher o que tiver em melhor situação, de acordo com parâmetros morfológicos, bioquímicos, isentos de contaminação, etc para passar ao passo seguinte diminuindo desta maneira a probabilidade de haver falhas durante o desenvolvimento do inóculo na fábrica. O outro inóculo não seleccionado seja balão, fermentador de sementeira ou pré-fermentação será esterilizado, química ou termicamente, antes de ser encaminhado para a estação de tratamento de efluentes na fábrica. O emprego de estirpes relativamente instáveis, pode, inclusive, limitar o emprego de 31 sistemas de fermentação mais eficientes, como os processos contínuos, pois poderá ocorrer, ao longo do tempo, a selecção de células que privilegiem o crescimento em detrimento da biossíntese e acumulação do bioproduto alvo. Na literatura1 está bem documentada a viabilidade de projectar e construir fábricas a partir de mutantes auxotróficos, em processo contínuo, apenas quando se empregam mutantes auxotróficos em pelo menos dois aminoácidos e não em apenas um, a fim de evitar os mecanismos de correcção genéticos da célula e obter a acumulação intracelular intensa do(s) aminoácido(s) de interesse. Nessa condição, é mais difícil o retorno às características da estirpe original, em virtude de uma maior alteração a que a célula mutante foi submetida. Células recombinantes, por via da introdução de plasmídeos, igualmente podem ser instáveis em virtude da inexistência de replicação do plasmídeo para as células filhas, ou mesmo devido à destruição do plasmídeo na própria célula hospedeira, ou ainda à expulsão desse plasmídeo. É necessário lembrar que a introdução de novas codificações genéticas significa, em geral, um ónus energético adicional para a célula, o que põe em causa o seu objectivo natural, sobreviver e duplicar o seu crescimento. Inclusive, a integração de uma codificação genética contida em um plasmídeo no cromossomo da célula, o que poderia conferir a desejada estabilidade, pode ainda não resultar na obtenção de uma estirpe hiperprodutora, em virtude da existência de um número limitado de cópias do gene de interesse. Adicionalmente, a operação de biorreactores industriais, conforme mencionado anteriormente, do ponto de vista técnico e económico, praticamente exige o emprego de microrganismos não patogénicos, os quais possam ser manuseados sem riscos ambientais, particularmente, nas etapas seguinte, de separação da estirpe produtora do bioproduto alvo. Mesmo durante a fermentação, caso se manuseasse microrganismos patogénicos em reactores de dezenas de milhares de litros, os cuidados e a segurança teriam de ser bastante aumentados, particularmente, com os gases efluentes, o que incidiria em custos adicionais. O cultivo de patogénicos é efectuado, por exemplo, para a produção de vacinas, em reactores de pequeno porte (da ordem de centenas ou poucos milhares de litros), porém confinados em câmaras ou salas assépticas, tomando-se as precauções necessárias para a não ocorrência de contaminação do meio ambiente. Isso, logicamente, significa custo adicional, o qual pode ser justificado no caso de produção de vacinas, mas tornaria inviável a produção um bioproduto com menor valor acrescentado, como uma enzima ou mesmo um antibiótico. A obtenção de células recombinantes de Escherichia coli, via a introdução de plasmídeos, é sempre algo muito atraente, pois esta é uma das bactérias mais conhecidas 32 presentemente, mas encontra resistências em termos de uma utilização em instalações de grande porte, justamente por ser uma enterobactéria. Essa é uma das razões (não a única), pelas quais, hoje em dia, para se obter células recombinantes se prefere partir de células de leveduras ou fungos filamentosos, não patogénicos, ou mesmo de células animais. Apesar disso, ainda existem discussões a respeito da disposição e tratamento final dessas células recombinantes mas sempre de molde a não haver nenhum perigo ambiental por libertação de estirpes viáveis para o meio ambiente. Um microrganismo também não deve exigir condições de processo muito complexas, por motivos claros de economia da produção do bioproduto alvo. Pois, como se sabe, existem sempre valores óptimos do pH e da temperatura, por exemplo, em termos da biossíntese e acumulação do bioproduto alvo. No entanto, também se sabe que o controlo preciso do pH e da temperatura apenas é possível em reactores de bancada, sendo que em biorreactores de grande escala (dezenas de milhares de litros), deverá ocorrer uma certa heterogeneidade ao longo da altura de líquido dentro do biorreactor, de forma que a célula deverá manter o seu desempenho, apesar de uma certa flutuação nos valores destas grandezas. Em outras palavras, o ideal é que o microrganismo tenha uma faixa alargada de valores óptimos dessas grandezas e não valores pontuais, particularmente, no que se refere à biossíntese, excreção e acumulação do bioproduto alvo no meio de fermentação. Neste sentido, são igualmente muito interessantes as estirpes produtoras que conseguem manter um bom desempenho, quando cultivados em baixas concentrações de oxigénio dissolvido. Em virtude da necessidade de manutenção de altas concentrações de oxigénio dissolvido traz problemas bastante sérios no tocante a um maior dispêndio de energia, em virtude, de uma maior exigência de agitação e arejamento do meio de fermentação. Assim, também, as estirpes produtoras que crescem de forma aglomerada (por exemplo, na forma de micélio), são sempre mais complicadas de cultivar, pois a concentração de oxigénio no meio de cultivo submerso terá de ser mais elevada, a fim de que as células mais internas desses aglomerados tenham também acesso ao oxigénio, quando comparadas às células que crescem isoladamente ou no exterior dos aglomerados. Já foi abordado anteriormente a inconveniência em operar com estirpes que excretem quantidades exageradas de proteínas para o meio, em particular protéases, mas ainda há uma questão adicional, pois a geração de espuma frequentemente se atribui à presença de concentrações excessivas de proteínas e outros polipeptídeos no meio de cultura, situação ainda mais complexa para os processos aeróbios, devido à necessidade de arejar e agitar continuamente o conteúdo do biorreactor. Em geral, a geração de espuma pode ocorrer no início de um processo fermentativo aeróbio, quando se empregam meios de cultivo contendo extractos de carne ou de levedura, 33 ou água de maceração de milho (“corn steep liquor”), e nas etapas mais avançadas de um processo fermentativo em virtude da excreção e acumulação de proteínas no meio de fermentação. Isto causa sérios problemas, como, a necessidade de empregar um menor volume útil do biorreactor, a fim de ter condições de controlar eficazmente a espuma no seu interior, além da frequente necessidade de adicionar antiespuma que, além de onerarem o produto de produção, ainda podem causar dificuldades nas etapas de recuperação do bioproduto. Como não basta-se, o agente antiespuma provoca, em geral, também uma redução na eficiência de transferência de oxigénio, o que exige o aumento da agitação e do arejamento, agravando ainda mais este problema. Assim, é importante a selecção de estirpes que excretem poucas proteínas juntamente com o bioproduto desejado. O microrganismo seleccionado para um processo industrial não deve exigir meio de cultura extremamente dispendioso, claramente por questões de economia do processo produtivo. Essa é a razão pela qual um maior conhecimento das necessidades nutricionais de uma estirpe produtora é um estudo de vital importância, com o objectivo de fornecer os nutrientes apenas necessários. Em algumas circunstâncias esse desconhecimento leva à necessidade da adição de certas substâncias, como extracto de levedura, extracto de carne, peptona etc., as quais costumam ser bastante dispendiosas. Particularmente na área de produção de vacinas, costuma-se utilizar meios de cultura bastante complexos e dispendiosos, assim como nos cultivos envolvendo células animais, mas aqui, novamente, os volumes de reacção são relativamente pequenos e os bioprodutos gerados são considerados de muito alto valor acrescentado e, por isso, compensa o uso desses nutrientes mais dispendiosos. Finalmente, com muita frequência, procura-se estirpes produtoras para a produção de bioprodutos extracelulares, já que há todo o interesse em que a estirpe seleccionada excrete fácil e rapidamente o bioproduto para o meio de cultura, de onde ele será recuperado nas etapas seguintes de isolamento e purificação. Além do aspecto ligado a uma eventual inibição do próprio microrganismo, pela retenção de um dado bioproduto no meio de cultura, ainda cumpre lembrar que, com frequência, a primeira etapa de recuperação do produto significa a separação da estirpe produtora (por centrifugação ou filtração) e, em seguida, trabalhar com o líquido isento de células (respectivamente sobrenadante clarificado ou filtrado) enquanto as células são encaminhadas para a estação de tratamento de sólidos na fábrica e, depois de inviabilizadas, são então descartadas. Assim, se algum bioproduto alvo ainda permanecer no interior ou associado às células, será perdido diminuindo o rendimento global do bioprocesso. Sabe-se que a retenção de certos bioprodutos pelas células depende de uma série de factores, tais como: a estirpe produtora seleccionada, da composição do meio de cultura e 34 das condições de fermentação impostas (pH, temperatura, modo de operação descontínua ou semi-descontínua, etc.). Neste sentido, um exemplo interessante foi o apresentado por AGUERO et al.,5 trabalhando no estudo da produção de glucoamilase por Aspergillus niger NRRL 337 e Aspergillus awamori NRRL 3112, sendo esta segunda estirpe, sem dúvida, melhor produtora que a primeira. Esses autores indicaram que, a pH 4, o A. niger reteve cerca de 30% da actividade associada às células, enquanto o A. awamori apenas algo em torno de 10%, indicando que a estirpe melhor produtora tende a ser mais eficiente na excreção do bioproduto de interesse. Já a pH 6, as células de A. niger retiveram cerca de 70% da actividade enzimática, enquanto nas células de A. awamori esta retenção foi da ordem de 40%, em relação à actividade total (soma da actividade enzimática extracelular, encontrada no caldo, e a actividade intracelular, ou seja, a actividade encontrada nas células — actividades enzimáticas expressas por unidade de volume de amostra), mostrando de forma clara a influência do pH na eficiência da capacidade de excreção pelas duas estirpes produtoras células. Como as actividades totais obtidas com cada uma das estirpes atingiram valores muito próximos, tanto a pH 4 como 6, indica que o pH interferiu na excreção, mas não na biossíntese da enzima. Esses resultados indicam a necessidade de se verificar, com a devida atenção, a retenção do bioproduto de interesse pelas células produtoras, quando se procura efectuar trabalhos de selecção de estirpes, ou se esteja estudando diferentes condições de cultivo, mesmo que o interesse resida na recuperação de produtos extracelulares. Caso contrário, corre-se o risco de descartar estirpes, ou condições de fermentação, que poderiam ser potencialmente interessantes. 4.3.2. Características desejáveis de meios de cultura É sempre muito difícil mencionar as características da estirpe produtora, sem associá-los a um determinado meio de cultura. Dessa forma, as características da estirpe produtora, em muitos casos, dependem do meio utilizado, de maneira que as características do meio de cultura devem permitir a biossíntese, excreção e a acumulação de bioproduto no meio de fermentação e, também, não permitir ou minimizar a biossíntese de substâncias incompatíveis com a qualidade final do bioproduto, etc. Cada estirpe produtora tem necessidades nutricionais específicas. No entanto, em todas as culturas microbianas é preciso estar presente no meio de cultura água, fontes de energia, de carbono, de azoto, sais minerais, vitaminas e oxigénio, este último, no caso de ser uma fermentação aeróbia. Estes requisitos mínimos são essenciais para que as células 35 comecem a sintetizar todos os compostos necessários à manutenção e divisão celular. Enquanto em pequena escala, é simples e possível ter um meio constituído por compostos puros relativamente mais caros, bem pelo contrário, a nível industrial, tem de se recorrer inevitavelmente a nutrientes mais económicos, mas que obedeçam a alguns ou a todos os critérios seguintes [113]: • Ser o mais barato possível e de qualidade consistente; • Atender às necessidades nutricionais do microrganismo; • Auxiliar no controlo do processo fermentativo, como é o caso de ser ligeiramente tamponado, o que evita variações drásticas de pH, ou evitar formação de espuma excessiva; • Não provocar problemas na recuperação e purificação do bioproduto; • Os nutrientes que compõem o meio de cultura quer sejam líquidos, sólidos ou gasosos devem permitir ser armazenados, durante algum tempo, a fim de estarem disponíveis a qualquer instante e todo o ano; • Ter composição razoavelmente fixa e, logo, reprodutível; • Não causar dificuldades no tratamento final do efluente da fábrica; • Maximizar o rendimento do bioproduto versus substrato (Yp/s); • Maximizar concentração do bioproduto [P]; • Maximizar a actividade específica celular (Yp/s); • Minimizar o rendimento em produtos contaminantes. Todas estas características são importantes, destacando-se o custo do meio de cultura, que deve ser o menor possível, desde que atenda às necessidades e exigências nutricionais do microrganismo seleccionado. Justamente essa combinação de atender às necessidades nutricionais do microrganismo, a fim de que o bioproduto possa ser biossintetizado, e ser minimamente dispendioso, é que, com frequência, acaba por causar certas complicações na optimização do processo fermentativo principalmente a bioprodutos de baixo valor acrescentado. No caso de produtos de elevado valor acrescentado (ex. hormonas, anticorpos, proteínas recombinantes), a selecção dos nutrientes do meio de fermentação está condicionada pelo rendimento e grau de pureza final desse bioproduto, sendo o custo do meio de fermentação um factor de menor importância [115]. A formulação correcta do meio de cultura, é fundamental para a obtenção de um rendimento óptimo e, por isso, a composição dos meios de fermentação industriais não é usualmente publicada, devido ao seu enorme valor comercial para a empresa. A maioria das estirpes produtoras, como os heterótrofos aeróbios, é utilizada na 36 produção de uma grande variedade de bioprodutos e exibe alguma flexibilidade ao nível da natureza, bem como no número de substratos orgânicos capazes de metabolizar. Contudo, a principal fonte de energia, para o crescimento aeróbio, provém da oxidação desses compostos orgânicos presentes no meio de cultura que são, em geral, também fonte de carbono. A energia produzida ou gerada durante o metabolismo da fonte de carbono, é armazenada em compostos de fosfato de elevada energia, como a adenosina trifosfato (ATP) ou pela fosforilação de elevados níveis dos compostos nutrientes, em especial, os substratos fonte de carbono. Esta energia bioquímica é, posteriormente, utilizada em reacções biossintéticas e na manutenção das células sendo, contudo, alguma dessa energia perdida na forma de calor. As fontes de carbono são inúmeras, mas é possível agrupá-las em; hidratos de carbono (melaços de cana e beterraba, farinhas de milho e outros cereais, polissacarídeos como amido ou celulose, glucose, sacarose, fructose, lactose , licor de maceração do milho, .....); lípidos assimilados na forma de ácidos oleico, linoleico e linolénico provenientes de óleos vegetais (azeite, milho, soja, ......) e os próprios aminoácidos. Tem também sido prestado alguma atenção a fontes de carbono definidas e mais simples, tais como; alcóois, ácidos orgânicos e alcanos (ex: metano, etano, outros) e, mais recentemente, o glicerol. As fontes de azoto podem ter origem em compostos inorgânicos (gás e sais de amónio e nitratos), os quais costumam provocar reduções significativas do valor de pH, e orgânicos (licor de maceração do milho, farinha de soja, soro, Pharmamedia, Proflo, hidrolisados de proteina, farinha de peixe, extracto de levedura, peptona, .....) assimilados pelo microrganismo, respectivamente, na forma de iões de amónio e aminoácidos. A membrana celular é permeável à maior parte dos compostos químicos de baixo peso molecular. No caso de polímeros orgânicos (ex: amido, celulose, quitano, agarose, proteína, etc) estarem presentes no meio de cultura e serem potenciais fontes nutricionais, a sua metabolização só é possível devido à produção, pelo microrganismo, dos chamados exoenzimas (ex: amilases, celulases, pectinases, chinitases, agarases, xilases, proteases, ......). Estas enzimas são excretadas para o meio de fermentação hidrolisando esses polímeros nos seus monómeros constituintes que, por sua vez, já são transportados para o interior da célula. As exigências da maior parte dos microrganismos em enxofre e iões inorgânicos (magnésio, manganês, ferro, cobre, molibdénio, cobalto, zinco, cálcio, potássio, sódio, cloro, .....) são satisfeitas pela adição dos respectivos sais de sulfato e/ou fosfato, existentes nos meios orgânicos complexos, ou na água de preparação do próprio meio de fermentação. Os microrganismos aeróbios estão dependentes do mecanismo da respiração para a geração de energia e, por isso, requerem oxigénio molecular como aceitador de hidrogénio 37 ou electrões. Devido à baixa solubilidade de oxigénio na água (6,99 ppm a 35ºC [116]) é essencial a transferência contínua do oxigénio para o meio líquido de crescimento. O arejamento do meio de cultura é efectuado por agitação orbital dos balões em plataformas mecânicas, enquanto, nos fermentadores de cultura submersa, tem de se injectar ar comprimido associado a uma agitação adequada do caldo fermentativo. No caso de fermentação em estado sólido o microrganismo contacta directamente com o ar e, logo, assimila o oxigénio directamente da fase gasosa. Alguns microrganismos não possuem vias metabólicas necessárias à síntese de alguns nutrientes específicos, essenciais ao crescimento celular e, indirectamente, à produção de proteínas e enzimas. Entre eles, destacam-se alguns aminoácidos, purinas, pirimidinas, vitaminas e outros compostos. Por isso, eles têm de ser adicionados directamente ao meio, ou fornecidos por fontes complexas, como o extracto de levedura ou outros nutrientes complexos. As fontes orgânicas complexas são sem dúvidas, os constituintes mais utilizados na fermentação industrial como fontes de carbono, de azoto e de micronutrientes devido a serem subprodutos baratos, resultantes de indústrias de carne, queijo, cereais, fibras e outras. As tabelas 4.1 a 4.4. mostram, que muitos destes nutrientes complexos providenciam um número elevado de constituintes essenciais ao crescimento dos microrganismos. O pH no caldo fermentativo, durante o desenvolvimento microbiano, está dependente dos constituintes do meio de cultura e do próprio metabolismo celular da estirpe produtora. O seu valor pode afectar o crescimento, a formação do produto como já vistos anteriormente, o metabolismo de vários nutrientes e algumas actividades fisiológicas celulares. Por outro lado, o pH óptimo de crescimento pode não coincidir com o da biossíntese de um dado bioproduto. Por último, convém destacar a adição de compostos especiais ao meio de fermentação, que funcionam como: - Percursores quando são incorporados directamente na estrutura do bioproduto (ex: ácido fenilácetico induz e é incorporado na estrutura da penicilina G ou benzilpenicilina), - Inibidores quando reduzem o rendimento de formação de produtos indesejáveis e contaminantes do biproduto e, - Indutores quando são necessários a sua adição meio de cultura para ocorrer a biossíntese da maior parte das enzimas envolvidas nas vias metabólicas e essenciais à biossíntese do bioproduto alvo. A natureza dos constituintes do meio de fermentação é importante. No entanto, a sua concentração tem de ser optimizada ao nível do inóculo e nos vários estágios de desenvolvimento, do meio de crescimento celular e da biossíntese do bioproduto no 38 fermentador industrial. A técnica clássica de optimização do meio de fermentação consiste no estudo do efeito de um componente de cada vez, todavia, utiliza-se, hoje em dia, cada vez mais estratégias de optimização estatística ("factorial design"). 4.3 Meios de cultura com nutrientes complexos versus definidos Quando os meios de cultura são constituídos apenas por estas nutrientes de composição muito bem definida costumam ser chamados de meios definidos, ou meios sintéticos, cuja composição química é sempre muito bem conhecida e pode ser reproduzida a qualquer instante. Por essa razão, para as células que apresentam bom desempenho em meios desse tipo, espera-se a ocorrência de um sistema produtivo muito estável, além de, em geral, não apresentarem problemas quanto à recuperação e purificação do produto final. Esses meios, mesmo sendo mais dispendiosos, podem ser preferidos, caso realmente permitam uma maior economia nas etapas de recuperação e purificação do bioproduto. No entanto, para uma grande variedade de estirpes produtoras, há a necessidade da adição de certos “factores de crescimento”, ou seja, alguns aminoácidos específicos ou vitaminas (ex: biotina, tiamina, riboflavina, etc.). Claro está que, quando se conhecem essas necessidades específicas, o que nem sempre é o caso, é possível adicionar essas substâncias puras, a fim de manter o meio em sua forma mais definida, mas o custo destes meios pode tornar-se inviável, particularmente, para instalações industriais de grande capacidade fermentativa, a menos que isto signifique um enorme ganho económico na biossíntese e na recuperação e purificação do bioproduto, ou preserve alguma característica fundamental deste bioproduto, necessariamente, de alto valor acrescentado. Alternativamente, para suprir as necessidades de estirpes mais exigentes e, em geral, com características nutricionais mal conhecidas, pode-se adicionar certos materiais complexos como: extracto de levedura (autolisado de leveduras), extracto de carne, extracto de malte, peptona (hidrolisado de proteínas), etc. Esses materiais (individualmente ou adicionados conjuntamente) permitem introduzir no meio de cultura os factores ausentes num meio definido, mas, além de dispendiosos, são complexos e de composição variável ao longo do tempo de armazenagem e na dependência do fabricante e do lote empregado. Assim, pode-se imaginar a ocorrência de oscilações no processo fermentativo, além de possíveis dificuldades nas operações de recuperação e purificação do bioproduto final. Nos trabalhos básicos de selecção de estirpes, é frequente observar-se, o emprego de meios de cultura contendo quantidades muito grandes desses extractos ou hidrolisados (vários gramas por litro, ou mesmo dezenas de gramas por litro). Dessa forma, no 39 desenvolvimento do processo fermentativo para larga escala, uma das tarefas iniciais é verificar a possibilidade da obtenção de iguais desempenhos, porém em meios isentos desses materiais, ou com a adição de quantidades mínimas, tendo em vista o custo de produção envolvido. Ainda relacionado com os meios mais complexos e, igualmente, menos dispendiosos, razão pela qual são empregados na maioria dos processos fermentativos em grande escala, cumpre mencionar o uso de matérias-primas naturais ou subprodutos de outras indústrias, tais como caldo de cana-de-açúcar, melaços, farinhas diversas (farinha de trigo, milho, soja, cevada), água de maceração de milho (“corn steep liquor”), etc. Essas matérias-primas são de composição química desconhecida, podendo-se conhecer os teores dos açúcares disponíveis, azoto, fósforo, mas não se conhecem os teores dos sais minerais, pois certamente há sempre um número muito grande de constituintes. Meios de cultura contendo esses materiais naturais com frequência são completados com alguns sais (particularmente contendo azoto e fósforo). Claro está que a composição química estará na dependência de uma série de factores, tais como solo, variedade do vegetal, colheita, clima, processamento durante a colheita e armazenagem, etc. Esses factos indicam já a expectativa de que possam ocorrer oscilações no processo fermentativo que emprega essas matérias-primas, além de obrigarem as empresas produtoras, por exemplo, de antibióticos, ou enzimas a manterem instalações piloto para o ajuste da composição do meio a cada novo lote de matéria-prima que a empresa recebe (particularmente aquelas que usam, por exemplo, a água de da maceração de milho), a fim de evitar maiores surpresas na biossíntese do bioproduto alvo nos biorreactores industriais. Inclusive essas matérias-primas naturais podem causar problemas adicionais na recuperação e purificação do produto final, assim como problemas nos tratamentos das águas residuais. No entanto, ainda continuam a ser as matérias-primas preferidas em grande número de casos, pela simples razão de serem as mais baratas. 40 Tabela 4.1. Exemplo da grande diversão de fonte de carbono a usar nos meios de cultura. Fonte Carbono Composição Definida Glucose C6H12O6 Sim Amido (C5H10O5)x Sim milho Diferentes açucares (glucose, dextrinas) Xarope alto teor frutose, glucose, outros frutose sacarídeos Molassos Principalmente carbohidratos Xarope No Sim No Farinha algodão Principalmente proteínas e No seed carbohidratos Licor maceração Principalmente proteínas e No de milho (CSL) peptídeos, ácido láctico, açúcar Óleo de soja Gorduras e ácidos gordos Sim Óleo de palma Gorduras e ácidos gordos Sim Glicerol C3H8O3 Sim Etanol C2H6O Sim Metanol CH4O Sim Gama preço Fonte ($/kg) 0.10—0.35 Amido Observações Preço depende da quantidade e pureza Com impurezas, proteínas, gorduras, ácidos gordos. Cerca de 70-80% peso seco 0.05—0.35 Milho, batata, grão, arroz, etc 0.35—0.45 Hidrolisado de amido de milho ou batata 0.45—0.85 Hidrolisado de amido de Cerca 50% frutose e 50% milho glucose, outros sacarídeos 0.08—0.12 Açúcar de cana e beterraba Cerca 50% açúcares fermentáveis, 20% água, 10% ácidos orgânicos, fonte N, vitaminas e minerais Cerca 40-50% proteínas, 200.12—0.55 Algodão 40% carbohidratos, também aminoácidos, gorduras, vitaminas, minerais, fonte N eP Subproduto resultante do Cerca de 50% peso seco; 0.05—0.15 processo de hidratação e teor em proteína variável maceração do milho depende da fonte (20-50%); fonte de N e P Cerca de 100% 0.15—0.50 Soja gorduras/ácidos gordos Cerca de 100% 0.15—0.50 Palmeira gorduras/ácidos gordos Óleos naturais Hoje subproduto da 0.2—0.3 produção do biodiesel Petróleo / gás natural ou 0.2—0.8 fermentação 0.20—0.25 Petróleo / gás natural 41 Tabela 4.2. Principais constituintes dos meios de fermentação, em especial, presentes em meios orgânicos complexos [111]. Glucose comercial Farinha milho Licor Mac. milho "Dried dist. Solubles" Hidrolisado proteina Farinha de peixe Melaço de beterraba Farmamedia Proflo Farinha de soja Soro Levedura de cerveja Peso seco 91,5 93,0 50,0 92,0 - 92,0 77,0 99,0 98,8 90,0 95,0 95,0 Proteina - 22,6 24,0 26,0 7,5 65,0 6,7 59,2 61,1 42,0 12,0 43,0 Carbohidratos 91,5 53,2 5,8 45,0 - - 65,1 24,1 23,2 29,9 68,0 39,5 Gorduras - 1,9 1,0 9,0 - 3,8 0,0 4,0 4,1 4,0 1,0 1,5 Fibras - 9,5 1,0 4,0 - 1,0 0,0 2,6 3,2 6,0 0,0 1,5 Cinzas - 3,3 8,8 8,0 6,0 21,3 5,2 6,7 6,7 6,5 9,6 7,0 Cálcio - 0,3 - 0,3 - 4,0 0,16 0,25 0,25 0,25 0,9 - Magnésio - 0,16 - 0,65 - 0,25 0,23 0,74 0,75 0,25 0,13 - Fósforo total - 0,57 - 1,3 - 2,6 0,02 1,31 1,31 0,63 0,75 - Fósforo disp. - 0,16 - 1,2 - 2,6 0,01 0,31 0,35 0,16 0,75 - Potássio - 0,34 - 1,75 - 0,74 4,71 1,72 1,73 1,75 1,2 1,48 Enxofre - 0,32 - 0,37 - 0,54 0,47 0,6 1,56 0,32 1,04 0,49 Constituintes Macro-Componentes ( % ) Iões Inorgânicos ( % ) 42 Tabela 4.2. Principais constituintes dos meios de fermentação, em especial, presentes em meios orgânicos complexos [111] (cont.) . Glucose comercial Farinha milho Licor Mac. milho "Dried dist. Solubles" Hidrolisado proteina Farinha de peixe Melaço de beterraba Farmamedia Proflo Farinha de soja Soro Levedura de cerveja Biotina - - 0,88 2,86 - - - 1,52 0,79 - - - Choline - 1760 - 4400 - 3740 880 3270 33,4 2420 2420 4840 Niacin - 41,8 - 110,0 - 93,5 39,6 83,3 83,8 30,4 11,0 498,3 Pantothenic - 4,4 - 19,8 - 9,7 4,6 12,4 12,5 14,1 48,4 121,4 Pyridoxine - - - 19,4 - - - - 16,4 0,9 2,9 49,7 Riboflavina - 3,7 15,4 - 9,5 2,2 4,8 5,1 3,1 19,8 35,2 Thiamine - - 0,9 5,5 - - - 4,0 4,4 - 4,0 74,8 - 1,3 0,4 0,9 0,6 1,1 0,2 - 0,4 0,5 1,1 0,3 0,9 0,1 0,2 0,5 0,3 0,1 0,5 1,0 0,6 1,1 0,7 1,6 2,1 0,9 0,6 1,5 1,0 0,2 0,7 1,5 3,1 2,2 1,7 1,9 5,4 10,0 10,0 1,8 3,4 3,8 2,1 3,3 4,1 3,6 0,6 6,3 1,3 2,4 4,3 4,7 1,9 2,4 2,8 0,7 1,9 2,8 - 12,3 1,5 3,8 3,0 3,3 6,1 4,5 1,5 5,9 3,3 1,0 3,4 4,6 7,2 1,5 2,8 2,0 2,4 6,5 3,3 1,4 4,2 2,5 0,9 2,5 3,3 2,9 0,6 2,8 0,6 1,7 0,6 - 0,4 0,4 0,7 0,2 0,7 1,2 1,0 0,4 0,5 0,6 0,2 0,5 0,6 2,2 0,6 3,4 1,3 2,7 3,3 3,4 1,0 1,8 2,5 0,8 1,9 2,4 Constituintes Vitaminas ( mg/kg ) Amino ácidos (%) Arginina Ciateina Glicina Histidina Isoleucina Leucina Lisina Meteonina Fenilalanina Treonina Triptofano Tirosina Valina 43 Tabela 4.1. Exemplo de um catálogo (Traders Protein) de nutrientes de composição complexa usados em meios de cultura. 44 5. Estequiometria das reacções biológicas 5.1 Composição das células microbianas A composição das células de uma espécie microbiana depende das condições de crescimento e dos substratos utilizados na cultura. No entanto, estas diferenças são pequenas ao comparar valores dentro de uma determinada espécie e é notável que a composição varia também muito pouco em todo o mundo microbiano (Tabela 1). A compilação de composições elementares determinadas por inúmeros autores conduziu Roels (1980) adoptar como “fórmula elementar média da biomassa” CH1,8O0,5N0,2, considerando apenas os quatro elementos mais abundantes (C, H, O, N). Acrescentando o teor em enxofre e fósforo, a fórmula média vem então CH1,8O0,5N0,2S0,0045P0,0055 cujas massas moleculares correspondentes são respectivamente, 24,6 e 24,9 g/mol de C, a que é usual adicionar 4 a 10% (mínimo) de cinzas (matéria incombustível presente na biomassa). Tabela 5.1 – Composição da biomassa de algumas espécies microbianas em termos dos elementos químicos maioritários (C, H, O, N) (Livro Prof Manuela) Condições da cultura Espécie Composição elementar Escherichia coli CH1,77O0,49N0,24 Cultura descontínua Klebsiella aerogenes CH1,73O0,43 N0,24 Cultura contínua*, D = 0,85 h-1 limitação por ião amónio ou glicerol Pseudomonas fluorescens CH1,93O0,55N0,25 Cultura descontínua Xanthobacter Py2 CH1,80O0,55N0,22 Cultura descontínua em penteno Candida utilis CH1,87O0,56No ,20 Cultura contínua*, D = 0,45 h-1, limitação por ião amónio ou glucose Saccharomyces cerevisiae CH1,70 O0,45N0,17 Cultura descontínua Aspergillus niger CH1,72O0,55N0,17 Cultura descontínua Penicillium chrysogenum CH1,70O0,58N0,15 Cultura descontínua (dados retirados de Pirt (1975), Atkinson e Mavituna (1991), van Keulen e da Fonseca (1994), Mene (1996)). Por sua vez, a fórmula reduzida de uma espécie microbiana ou animal ou vegetal é o resultado da sua composição nas macromoléculas que compõem os seres vivos. Tabela 5.2 Composição média da Saccharomyces cerevisiae sem as cinzas (4-8%) [2.35]. Dados de Kluwer Acadëmic Publishers. Macromoléculas Composição elemental % (p/p) (g/C-mol) Proteinas CH1,58O0,31N0,27S0,004 57 22,5 RNA CH1,25O0,25N0,38P0,11 16 34,0 3 31,6 DNA CH1,15O0,62N0,39P0,10 Carbohidratos CH1,67O0,83 10 27,0 Fosfolípidos CH1,91O0,23N0,02P0,02 10,8 18,5 Gorduras neutras CH1,84O0,12 2,5 15,8 Outros metabolitos celulares CH1,80O0,30N0,20S0,01 0,7 29,7 45 5.2 Equação macroquímica do crescimento celular microbiano A falta de uma rigorosa quantificação dos processos microbiológicos não permite a descrição de acordo com um modelo cinético de crescimento celular e biossíntese de bioprodutos intra e/ou extracelulares. Por isso, uma reacção microbiológica pode ser encarada de modo esquematizado e de uma forma simplista de acordo com o modelo na Figura 1. Figura 5.1 - Nos processos microbiológicos as células microbianas heterotróficas utilizam uma fonte de carbono e energia (CAHBOC) e uma fonte de azoto (CA´HB´OC´ND´) para produzir mais células e o bioproduto alvo. A célula é representada como uma caixa negra que recebe os substratos, nomeadamente uma fonte de carbono e energia (CAHBOC), de azoto (CA´HB´OC´ND´) e oxigénio e, pode ser descrita genericamente pela seguinte esquema de reacção química. Fonte Carbono + Fonte Azoto + O2 Biomassa + Produto + CO2 + H2O Com o consumo dos substratos (∆S) disponíveis no meio de fermentação a célula gera mais células e biossintetiza produtos, i.e., biomassa, “fórmula elementar” (CαHβOγNδ), bioproduto de interesse (Cα´Hβ´Oγ´Nδ´), água e dióxido de carbono. Considera-se neste reacção biológica que os três produtos são extracelulares e, neste caso, a reacção biológica global poderá ser representada em termos dos elementos “macroquímicos” do crescimento celular com enormes simplificações: a CAHBOC + b O2 + c CA´HB´OC´ND´ d CαHβOγNδ + e CO2 + f H2O + g Cα´Hβ´Oγ´Nδ´ (1:1) Quando a biomassa é o produto pretendido, como na produção de levedura de padeiro (Exemplo 1), o coeficiente g da equação (1.1) é nulo. O mesmo se passa durante a fase de crescimento quando a produção do produto de interesse surge desfasada do 46 crescimento, i.e., o produto é um metabolito secundário. Tal é ilustrado no Exemplo 2, referente ao período de desenvolvimento do micélio antecedente à fase de produção de penicilina. Exemplos de equações macroquímicas em situações de cultura aeróbia em que o único produto é a própria biomassa: Exemplo 1 - Cultura de Saccharomyces cerevisiae em glucose (Battley, 1979): C6H12O6+ 3,94 O2 + 0,33 NH3 1,93 CH1,703O0,459N0,171 + 4,07 CO2 + 4,85 H2O Exemplo 2 - Cultura de Penicillium chrysogenum em glucose (Menezes, 1996): C6H12O6 + 0,6 NH4OH + 1,91 O2 4,0 CH1,70O0,58N0,15 + 2,0 CO2 + 4,1 H2O Quando para além do crescimento das células num processo aeróbio também há a biossíntese e excreção, para o meio de fermentação, de bioproduto alvo então a reacção biológica pode se descrita pela equação 1:1, em que todos os coeficientes estequiométricos são positivos e superiores a zero. Então como prosseguir para conseguir obter os coeficientes estequiométricos e descrever esta reacção biológica mesmo de forma muito simplista como a descrita na equação macroquímica (1:1)? A composição em macrocomponentes das fontes de carbono e azoto é, em princípio, conhecida ou pode ser obtida por análise elementar (C , H , O , N) enquanto a composição das células pode ser determinada também por análise elementar aos átomos ou, se não for possível, assumir composições médias de estirpes semelhantes com as descritas na tabela 5.1. Da equação macroquímica (1:1) resultam então o desconhecimento do valor dos sete coeficientes estequiométricos. Se o objectivo é conhecer as relações estequiométricas, interessa encontrar uma via para acertar a equação macroquímica. Para tal pode recorrer-se a várias equações independentes, por exemplo, quatro equações resultantes dos balanços aos átomos (C , H , O , N): - Balanço ao carbono - Balanço ao hidrogénio a.A + c.A´ = d.α + e.1 + g.α´ a.B + c.B´ = d.β + f.2 + g. β´ - Balanço ao oxigénio - Balanço ao azoto a.C + b.2 + c.C´ = d.γ + e.2 + f.1 + g.γ´ c.D = d.δ + g.δ´ Contudo, são necessárias pelo menos mais três equações independentes para resolver o sistema. Uma hipótese é obter informação adicional de carácter experimental em termos de quantificar o consumo dos substratos (fonte de carbono, azoto, oxigénio) e a formação de biomassa e de produtos. Com estes valores é, então, possível quantificar as necessidades em nutrientes e as capacidades de produção de um microrganismo através dos factores de rendimento, nomeadamente produto/substrato, 47 produto/biomassa, biomassa/oxigénio, etc. Estes valores obtidos experimentalmente podem ser utilizados no cálculo do(s) chamados rendimento(s) observados, por exemplo, de biomassa ou produto em relação substrato, em geral, o substrato limitante presente no meio de fermentação, i.e., produzem-se d “moles de células” ou g “moles de produto” por a “moles de substrato” consumido de acordo com a equação (1:1). Neste caso, por exemplo; - Rendimento Biomassa/Substrato: Y´x/s = (d.PMx)/(a.PMs) = ([X]f - [X]o) / ([S]o - [S]f) - Rendimento Produto/Substrato: Y´P/s = (g.PMP)/(a.PMs) = ([P]f - [P]o) / ([S]o - [S]f) em que, PMx, PMs e PMp são respectivamente os pesos moleculares da biomassa, do substrato e do produto, enquanto [X]f , [S]f , [P]f , [X]o, [P]o e [S]o são respectivamente as concentrações, medidas experimentalmente, da biomassa, substrato e produto no final e no inicio da fermentação. Outro rendimento que também pode ser utilizado, por exemplo, baseado na relação entre o dióxido de carbono formado e oxigénio consumido, durante um determinado período de tempo, também designado por quociente respiratório, RQ (razão molar e/b entre o CO2 produzido e o O2 consumido) e que é, frequentemente, um dado experimental obtido pela monitorização e quantificação da pressão parcial do O2 e CO2 e, logo, a composição da fase gasosa na entrada e saída do fermentador utilizando para isso, por exemplo, um espectrómetro de massa. A título de exemplo refira-se também que é possível usar, numa fase preliminar, os valores publicados de factores de rendimentos obtidos por outros investigadores em processos biológicos similares, por exemplo, na cultura aeróbia de Saccharomyces cerevisiae, em glucose e amoníaco, obtém se, tipicamente, Y´x/o = 1,0 kg.kg-1 e Y´x/N = 0,1 kg.kg-1. Quando o objectivo da cultura é somente produzir biomassa, o número de incógnitas reduz-se a seis pois g = 0. Neste caso, no final temos de rectificar os coeficientes estequiométricos molares obtidos de modo a que as quantidades consumidas de substratos e geradas de biomassa e produto(s) sejam iguais como se pode ver no exemplo 1. Substratos consumidos Produtos gerados a.PMs b.PMO2 =1 x 180 = 3,94 x 32 d.PMx e.PMCO2 = 1,93 x 23,44 = 4,07 x 44,00 c.PMNH3 Total = 0,33 x 17 = 311,6 g f.PMH2O Total = 4,85 x 18,00 = 311,6 g Caso contrário, os cálculos dos coeficientes estequiométricos não estão correctos ou algumas das equações não são independentes. Outra equação para resolver o sistema também muito assumida é a normalização dos coeficientes: 48 a=1 Mas, neste caso específico, temos depois de rectificar se os valores dos coeficientes estequiométricos estimados conduzem a concentrações de biomassa e/ou produto(s) iguais aos obtidos experimentalmente. Se não houver coincidência da previsão das quantidades (biomassa e/ou produtos) com os valores obtidos experimental deve-se calcular um factor correctivo (FC), por exemplo: FC = [Biomassa]prevista / [biomassa]experimental E, com ele, é, então, possível corrigir os coeficientes estequiométricos de todos os substratos e produtos envolvidos na equação macroquímica de molde a coincidir com os valores obtidos experimentalmente e conseguir, assim, descrever de forma simplista a reacção biológica de crescimento celular e biossíntese do(s) produto(s) em relação aos dados experimentais disponíveis. Outra ferramenta de análise útil para o estabelecimento da estequiometria de uma reacção biológica é o balanço ao “grau de redução”, Ψ (Castrilio e Ugalde, 1994; Vicente et al., 1998). O grau de redução de um composto é definido neste contexto, como o número “moles de electrões” disponíveis (por átomo-grama de carbono) para serem transferidas para o oxigénio quando o composto sofre combustão e se obtêm como produtos finais dióxido de carbono, água e azoto molecular. Considere-se H como a unidade de potencial redox. Defina-se um composto neutro para cada elemento. Seja CO2 para o carbono, H2O para o oxigénio, NH3 para o azoto, H2SO4 para o enxofre e H3PO4 para o fósforo. Então o grau de redução destes elementos mais comuns em biorreacções virá: (C, O, N, S, P) = (4, -2, -3, 6, 5) O grau de redução da fonte de carbono, da biomassa e do produto, em relação à equação macroquímica (1:1), podem, então, ser calculados pelas seguintes equações: Ψs = (4.A + 1.B – 2.C) / A ΨN = (4.A´ + 1.B´ – 2.C´ - 3.D´) / A´ Ψx = (4.α + 1.β - 2.γ - 3.δ) / α ΨP = (4.α´+ 1.β´ - 2.γ´ - 3.δ´) / α´ Assim o grau de redução da glucose (C6H12O6), do ácido acético (C2H4O2) e do ácido láctico (C3H6O3) é 4, do etanol (C2H6O) é 6 e glicerol (C3H8O3) é 14/3. Ao utilizar NH3 como fonte de azoto e com base na conservação do número de electrões transferíveis para o oxigénio durante o metabolismo, o balanço de electrões à equação (1.1) vem então: 49 a.A.Ψs + (-2).2.b = d.α.Ψx + e.0 + f.0 + g.α´.ΨP b = (a.A.Ψs - d.α.Ψx - g.α´. ΨP) / 4 (1.2) (1.3) em que os ΨH2O e ΨCO2 tem graus de redução iguais a zero. A equação (1.3) permite calcular o consumo teórico de oxigénio (b) da reacção da equação (1:1) desde que os graus de redução de biomassa ((Ψx), substrato (Ψs) e produto (ΨP), e os coeficientes estequiométricos a, d e g sejam conhecidos. Por exemplo, no caso do exemplo 1, vem então com base em prossupostos experimentais, por exemplo, na base de 1 litro: ∆S = 180 g a = 1,00 ∆X = 45,24 g d = 1,93 Balanço ao átomo de azoto ∆P = 0,0 g g = 0,00 c.D = d.δ + g.δ´ Balanço ao átomo de carbono Balanço ao átomo de hidrogénio a.A + c.A´ = d.α + e.1 + g.α´ a.B + c.B´ = d.β + f.2 + g. β´ E do grau de redução da transferência de electrões para o oxigénio (equação 1:3) vem: b = (a.A.Ψs - d.α.Ψx - g.α´. ΨP) / 4 Os graus de redução da glucose e biomassa (CH1,703O0,459N0,171) Ψgluc = (4.A + 1.B – 2.C) / A = (4 . 6 + 1 . 12 – 2 . 6) /6 = 4 Ψbiom = (4.α + 1.β - 2.γ - 3.δ)/α = (4 . 1 + 1 . 1,703 – 2 . 0,459 – 3 . 0,171) /1 = 4,272 Resolvendo este sistema de equações vem então: c = 0,33 e = 4,07 f = 4,85 b = (1. 6 . 4 – 1,93 . 1 . 4,272 – 0) / 4 = 3,94 Pode-se pensar em acrescentar mais relações estequiométricas para poder descrever com mais detalhe os passos bioquímicos envolvidos no processo global de crescimento celular e biossíntese de produto(s). Contudo, convêm, não esquecer, que neste caso teria de dispor-se de outras ferramentas analíticas complementares para obter mais dados experimentais mas no final permitiria desenvolver “modelos metabólicos” e levar a cabo uma “análise de fluxos metabólicos” (Bailey, 1991). 5.3 Consumo de substratos fornecidos através de uma gasosa O fornecimento de um substrato gasoso a um biorreactor faz-se normalmente por injecção do mesmo na forma de gás comprimido (puro ou componente de mistura) na base do reactor através do dispersor da fase gasosa. A transferência da fase gasosa para 50 o seio da fase líquida poderá ser crítica quando se trata de gases pouco solúveis (nomeadamente o oxigénio, o hidrogénio e hidrocarbonetos). O caso do oxigénio é particularmente importante por ser comum a todas as fermentações aeróbias. Outro substrato gasoso importante é o dióxido de carbono para os organismos autotróficos. O O2 apresenta uma solubilidade em meio aquoso consideravelmente superior à do oxigénio e o seu fornecimento é, portanto, menos problemático. De facto o valor da constante de Henry correspondente a água pura a 25°C é de 29,7 atm.L.mol-1 para o CO2 e é de 790,6 atm.L.mol-1 para o oxigénio. Em reactores air-lift o amoníaco é por vezes fornecido através da fase gasosa como fonte de azoto. EXERCÍCIOS Exercício 1 Fizeram-se determinações experimentais com uma determinada espécie microbiana e concluiu-se que as células conseguem converter em biomassa 2/3 do carbono da glucose presente no meio. Sabendo que a amónia é a fonte de azoto e que a fórmula elementar da biomassa é C4,4H7,301,2N0,56, calcule: a) Os coeficientes estequiométricos da equação macroquimica. b) Os factores de rendimento Y´x/s (kg peso seco/kg glucose) e Y´x/o (kg peso seco/kg oxigénio). Exercício 2 Uma cultura mista de microrganismos, presente num tanque arejado de uma estação de tratamento, degrada um poluente orgânico da água residual de acordo com a equação: C6H5NO3 + a O2 + b NH3 c CH1,400,4N0,2 + d H2O + e CO2 a) Sabendo que Y´x/s = 0,36 kg kg-1, calcule os coeficientes estequiométricos da equação. b) Calcule o grau de redução do substrato e da biomassa. c) Indique os valores dos factores de rendimento Y´x/o e Y´x/NH3, bem como o quociente respiratório (RQ) da cultura. Exercício 3 Considere a produção de um metabolito secundário numa fermentação aeróbia descrita pela equação: CH2O + a NH3 + b O2 c CH1,79O0,5N0,2 + d CH2N0,5O1,5 + e CO2 + f H2O Calcular as quantidades consumidas da fonte de carbono, fonte de azoto e oxigénio e as quantidades formadas de CO2, H2O e biomassa para uma produção de produto de 25 g/l. Calcular também a OUR, sabendo que a fermentação dura 200 horas. 51 Sabe-se que Yx/s = 0,400 e Y p/s = 0,300 Depois calcule também a quantidade de fonte de carbono a usar supondo que é amido e a de fonte de azoto a usar supondo que é uma proteína. Admita que quer a fonte de carbono quer a fonte de azoto residual no final da fermentação são de 5% do valor inicial. Exercício 4 Considere a produção de biomassa num pré-fermentador, para inoculação de um fermentador industrial, sob condições aeróbias descrita pela equação CH2O + a NH3 + b O2 c CH1,7900,5N0,2 + d CO2 + e H2O Calcular as quantidades consumidas da fonte de carbono, fonte de azoto e oxigénio e as quantidades formadas de CO2 e H2O. Calcular também a OUR. São dados: 1) A quantidade de biomassa a produzir é de 20 g/l 2) O tempo de pré-fermentação é de 30 horas. Após resolução das questões acima suponha o seguinte: - A fonte de carbono é o amido e a percentagem não consumida é de 5% do valor total. - A fonte de Azoto é uma proteína e a percentagem de NH3 não consumida é de 5%. Admita que o azoto usado é só azoto amoniacal. Calcular: 1) A quantidade a usar de amido em g/l no meio de fermentação. 2) A quantidade de proteína a usar em g/l no meio de fermentação. 3) Calcular o valor de Y´x/s 4) Calcule as sacas de 25 Kg de amido e proteína a serem necessários para um fermentador com volume útil de 50m3. Exercício 5 A Demeclociclina (DCC) (C21H21C1N203, PM = 464,9 g/mol) é um antibiótico da família das tetraciclinas e é um metabolito secundário produzido via “fermentação” directa, isto é, resultante da cultura aérobia submersa de estirpes mutantes de Streptomyces aureofaciens (CH2,800,8N0,2, PM = 30,4 g/mol). A fermentação ocorre a 27°C a um caudal do ar constante equivalente a 0,7 vvm de acordo com a composição inicial do meio de produção do antibiótico descrita na tabela 1. A fermentação não decorre a uma temperatura constante mas sim de acordo com um gradiente de temperatura decrescente (0-36h a 129°C; 37-48h a 128°C; 49-6lh a 127°C; 62 -l95h a 126°C) mas que se admite, neste caso, ser constante e igual a 27°C, enquanto o caudal do ar é mantido constante entre as 0 e as 26h equivalente a 0,5vvm e depois aumenta para 0,7vvm e permanece constante até às l95h, mas admite-se ser, neste caso, sempre 0,7vvm. O fermentador com uma taxa de ocupação máxima de 75% mantém uma pressão em cúpula de 0,5 Kg/cm2 e um pH na gama de 6,0 a 6,4 pela adição de NH3 (solução a 25% min) num total de cerca de 11 litros por m3 de caldo de fermentação que é utilizada como fonte de azoto durante a fase de produção do antibiótico e considere ser adicionado no tempo zero. Durante a fermentação também há controlo do nível de espuma através da adição de uma mistura, em partes iguais de óleo de soja e banha de porco, que se estima em cerca de 16 litros de 6 em 6 horas, entre as 52 95 e 180 horas do período de fermentação e que pode ser utilizado como fonte de carbono e considere também ser adicionado no tempo zero. Tabela 1. Constituintes e composição inicial do meio usado na fermentação. Constituintes Concentração (g/l) Amido de milho 60 Dextrina 25 Pharmamédia 22 Caseína 4,25 CaCO3 5,1 NH4C1 2 Farinha de soja 12,8 Levedura de cerveja 1 Óleo de soja 24 Banha de porco 11,2 CuSO4 0,05 NiSO4 0,05 pHinicial 6,40 No final da fermentação atinge-se uma produção de antibiótico (DCC) de 10 Kg/m3 de caldo que se apresenta na forma de um complexo de cálcio [(DCC)2Ca2+ ou (C21H20N2O8Cl)2Ca2+ MW 967,9 g/mol], insolúvel e, assim, diminui o seu efeito inibitório sobre o microrganismo. O meio de cultura caracteriza-se então por uma densidade 1,04, concentração em micélio de 45,6 gdcw/l e viscosidade de centenas de cp. O tempo necessário para as operações de lavagem do fermentador, carga, esterilização e descarga do meio é estimada em cerca de 21horas, o que perfaz um tempo total de ocupação do fermentador de cerca de 216 horas (9 dias). Para a produção de 50 ton/ano de Cloridrato de Demeclociclina e um rendimento global de 72,9%, qual o volume útil do fermentador de modo a ter a área de isolamento de purificação a trabalhar 24 sobre 24 horas? Qual o consumo de nutrientes por fermentação e por ano? Balanço à fermentação baseia-se numa reacção de consumo a 63,5; 100 e 50 % respectivamente em relação aos carbohidratos (massa de glucose = massa de carbohidratos * 1,111), amónia (fonte NH4Cl e amónia a 25% min) e lípidos. Qual são os coeficientes estequiométricos da equação macroquímica que a descreve a reacção biológica. 53