O ABC DA VIDA ESPIRITUAL (Transcrições de conversas que ocorreram no Ashram Vrajabhumi, Teresópolis, RJ, com Chandramukha Swami) No começo da Bhagavad-gita Krishna analisa detalhadamente a diferença entre o corpo e a alma. Embora esse assunto seja considerado o abc da vida espiritual, ele é da maior importância, pois sem compreender isso não se pode falar efetivamente em vida espiritual. Essa análise apresentada por Krishna ao guerreiro Arjuna no início do capítulo dois é especificamente conhecida como Samkhyayoga. Tudo começou quando, diante de sua incapacidade de resolver seus problemas, Arjuna pede ajuda a Sri Krishna, dizendo: “Agora estou confuso quanto ao meu dever e, devido à fraqueza, não sei o que é melhor para mim”. Ele então se coloca como um discípulo rendido e se abre para receber instruções espirituais. Visitante: Existem casos de seres especiais que se auto-iluminam e não necessitam de um mestre espiritual? Swami: Segundo as escrituras védicas, a iluminação definitiva e completa não pode ser obtida sem a ajuda de um verdadeiro guru. Ou seja, todos precisam de conhecimento espiritual, e para que seja verdadeiro, esse conhecimento deve ser recebido de um guru autêntico. Os problemas são sempre de origem material, enquanto as verdadeiras soluções dependem de compreensão espiritual. É por isso que na Bhagavad-gita o guerreiro Arjuna pede para Krishna o aceitar como discípulo. Assim, ele mostra que ninguém consegue superar os problemas da vida sem a ajuda de um mestre espiritual. Se alguém quiser desenvolver discernimento espiritual deve seguir os passos de Arjuna, que, com humildade, admitiu sua confusão mental e incapacidade de cumprir corretamente seu dever, ou dharma. Como eu já disse, Krishna começa a Gita explicando a filosofia Samkhya: a primeira lição é que o verdadeiro eu, ou a jiva, é a alma espiritual plena de qualidades - uma partícula integrante do Absoluto. Em seguida, Ele ensina que o corpo não é o verdadeiro eu. O corpo está sempre em transformação. Diariamente milhares de células nascem e morrem e, assim, ocorrem o crescimento e a velhice. Mas, sendo a centelha espiritual viva, a alma permanece inalterada dentro do corpo. Deu para entender? Visitante: Sim, parece que não é tão difícil. Existe o corpo e a alma, mas somos a alma, e não o corpo... Swami: Exatamente, somos a alma e essa alma é imutável e nada tem a ver com as mudanças sofridas pelo corpo. Em outras palavras, o corpo é simplesmente a cobertura da alma, ou jiva. Uma espécie de veículo da jiva. É preciso que se entenda também que o corpo só apresenta vida quando existe a alma dentro dele. Visitante: E o que é a consciência? Swami: A consciência nada mais é do que o sintoma da presença da alma que, a partir do coração, se expande por todo o corpo. Ou seja, o corpo tem consciência somente porque a alma está nele. Por natureza, o corpo material é energia material e sem vida. Mas a jiva eterna e autoluminosa é parte da luz suprema. É devido a ela que uma variedade de elementos materiais se reúne para constituir um corpo específico, tanto que quando a alma parte do corpo, o que é comumente chamado de morte, ele começa a se decompor. Visitante: Você poderia explicar melhor o que é a morte? Swami: A morte é simplesmente um fenômeno material. Ou seja, chama-se de morte o momento em que a jiva sai do corpo, o que ocorre quando, devido ao karma ou algum outro fator, o corpo não mais apresenta condições apropriadas para a permanência da alma. Visitante: O que significa dizer que a jiva é eterna? Swami: Significa que todas as transformações do corpo, como nascimento, crescimento, reprodução e decomposição, não afetam a jiva e nada têm a ver com ela. Ou seja, a jiva não nasce, não se reproduz e não se decompõe. O que ocorre é que, pela vontade divina, ela é enviada para um determinado ventre e, por isso, fica coberta por um corpo. Visitante: Então para que um corpo se desenvolva é preciso que haja uma jiva dentro dele? Swami: É claro que sim. A jiva é exatamente a força que dá condições para que o corpo se desenvolva. Tudo o que nasce também morre. Ou seja, o corpo nasce e morre, mas a jiva não tem nascimento ou morte. Ela não é afetada pelo tempo. Visitante: Como é possível que a jiva dentro do corpo nunca seja afetada pelas ações do tempo? Swami: Passado, presente e futuro são conceitos ligados ao tempo, e o tempo (pelo menos o que nós entendemos como tempo) só atua no mundo material. Mas para a jiva essas três fases do tempo não atuam, já que ela é sempre-existente. Outro ponto é que, além da jiva nunca ser afetada pelas mudanças do corpo, não é ela também que produz filhos. Eles são nada mais que subprodutos do corpo. Visitante: Engraçado dizer que meus filhos são meus subprodutos... Swami: Nada disso, pois você não é o corpo. Os filhos são subprodutos do corpo e não seus subprodutos, pois você é a jiva. E cada corpo possui uma jiva ou alma individual. Portanto, o corpo só se desenvolve por causa da presença da jiva. Mas ela está sempre livre de qualquer alteração. Visitante: Existe um local específico onde a jiva se situa? Swami: Sim, ela está localizada no coração da entidade viva. Do coração ela fornece energia para que o corpo possa executar suas funções. Visitante: Há como se provar a existência da alma? Swami: Pode-se usar o exemplo das nuvens no céu. Às vezes as nuvens cobrem o Sol, mas a claridade do céu serve como prova de que o Sol ainda está presente. Da mesma forma, devido às nuvens da ignorância, ninguém vê a jiva dentro do coração com seus olhos materiais. Mas, se o corpo apresenta consciência, isso não seria prova suficiente da presença da jiva dentro dele? Por outro lado, também é um fato que se o corpo perde sua consciência é porque a jiva partiu dele e foi transferida para um outro corpo ou alcançou moksha, a libertação final. Visitante: Como as almas são transferidas para outros corpos? Swami: Na Gita Krishna explica que essa transferência é feita sob a supervisão da Superalma, a manifestação do Absoluto que acompanha a jiva dentro de todos os corpos e em cada átomo do Universo. A natureza material, prakrti, se encarrega de tudo. Essa natureza está sob a supervisão de Isvara, a Superalma, a qual conta com a ajuda de Seus agentes administradores do cosmo, os semideuses. Continuando Sua explicação da filosofia Samkhya, Krishna esclarece ainda que a jiva tem características transcendentais. Ela é indestrutível, imensurável e eterna, e não chega ao fim, como acontece com o corpo material. A jiva não-nascida não pode nem matar nem morrer. Krishna dá um exemplo muito claro ao comparar o corpo simplesmente com a roupa da alma. Ou seja, assim como alguém veste roupas novas, deixando de lado as antigas, a jiva troca seu corpo antigo por um novo. O corpo é feito de material impermanente, mas a alma é energia pura e permanente. Ela se encontra em toda parte - na água, no fogo, no ar, na terra... Ela nunca pode ser destruída por arma alguma, queimada pelo fogo, umedecida pela água ou secada pelo vento. Essa jiva é invisível, inconcebível e imutável. Tudo isso é bem explicado no capítulo dois da Bhagavad-gita. Mais à frente, no capítulo treze, Arjuna volta a mostrar interesse sobre esse tema e pergunta: “O que é prakrti?”, “Quem é o purusha?”, “O que é kshetra?”, “Quem é kshetrajña?”, “O que é jñanam?” e “Quem é jñeya?”. São muitos termos técnicos, mas não é nada complicado. Prakrti significa a matéria, purusha se refere à própria alma, ou jiva. Kshetra é um nome que se aplica ao corpo, pois, especificamente, a palavra kshetra significa campo de atividades. Kshetrajña é o conhecedor do kshetra, jñanam é o conhecimento propriamente dito e jñeya se refere à meta do conhecimento. Mais uma vez, Arjuna dá o exemplo de um discípulo qualificado ao mostrar interesse por esses temas relevantes. Um verdadeiro discípulo não deve se aproximar de um guru por uma questão meramente de modismo ou por algum tipo de interesse material. Como exemplificou Arjuna, ele deve ser ávido por conhecimento transcendental. Por outro lado, é claro que Krishna é o exemplo perfeito de um guru e dá respostas claras e satisfatórias a Seu discípulo. Sem entrarmos em detalhes, já que é melhor que todos estudem a Bhagavad-gita, o fato é que existe uma distinção bastante clara entre o corpo e a jiva, a qual é também conhecida como kshetrajña, ou a proprietária do corpo. Além desses dois itens, é preciso que se compreenda também a Superalma, o purusha supremo, ou Purushottama. É Ele que outorga o verdadeiro conhecimento. Externamente, Ele atuou na Terra há cinco mil anos e revelou esse conhecimento na forma da Bhagavad-gita, e internamente Ele é a Superalma que ilumina o coração do buscador sincero. Ele é, portanto, a única fonte de conhecimento e a meta última, jñeya. Visitante: Dá para explicar melhor por que o corpo é chamado de kshetra ou campo? Swami: O corpo material é chamado de kshetra porque, de fato, ele é o campo de atividades da jiva, a entidade viva. Ou seja, ela obtém o seu kshetra específico conforme sua capacidade e desejo de se assenhorear e controlar a prakrti, ou natureza material. Devido a essa propensão de desfrutar da prakrti, a jiva é também conhecida como purusha. Mas ao tornar-se uma verdadeira kshetrajña, ou conhecedora perfeita do campo, a jiva compreende que não é esse corpo e que está na condição de simples usufrutuária dele. A verdadeira jiva iluminada, ou kshetrajña, vai além dessa compreensão ao entender que dentro desse kshetra habita também junto dela um outro ser. Trata-se do parama purusha, o Ser Supremo. Ele é conhecido por inúmeros nomes, tais como Isvara, Paramatma ou Purushottama. Diferentemente da jiva, esse supremo purusha nunca cai em ilusão e é sempre o supremo conhecedor de tudo. Ele é também o amigo eterno da jiva. A conclusão da filosofia Samkhya é que a jiva é eterna e individual - absolutamente distinta do corpo material temporário. Ao mesmo tempo, existe a Superalma que habita todos os diferentes corpos e é a fonte de todo o conhecimento, ou jñana. Ela é também a própria meta do conhecimento, ou jñeya.