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MENINAS-MULHERES-NEGRAS: CORPOS EM MOVIMENTO
Palavra-chave: dança
Para intensificar e aprofundar os meus desejos de compreender a dança afrobrasileira como possibilidade de incorporação, aglutinação e aceitação da cultura
negra, procurei investigar o próprio processo do grupo Dandara.
Utilizei-me de uma pesquisa de natureza etnográfica , propondo-me estudar
meu próprio processo aplicando uma entrevista com as meninas do grupo. Inicialmente
reconstituí a história do grupo Dandara através dos vestígios que eu havia guardado:
fotografias, registros escritos. Posteriormente propus uma entrevista com pequeno
grupo. A partir daí realizamos uma entrevista coletiva (10 meninas), tendo como
pontos: falar sobre o Dandara, sobre o significado do grupo para a vida delas.
Decidi fazer uma filmagem desse processo de entrevista, partindo, após para a
decriptagem da fita de vídeo, identificando marcas que sinalizaram as falas, os gestos
próprios desse processo de construção do Dandara. A partir daí, passo a estudar essas
marcas simbolizadas nos corpos que dançam, tendo como horizontes as relações entre
o negro e o estereótipo branco de beleza absoluta, a dança como tradição histórica
negra e como elemento de resistência ao racismo velado.
Quando me deparo com as produções que se referem à cultura negra e à
religiosidade, antevejo algumas proximidades entre o que faço e o que nos apresenta
Fernandes( 1995):
"(...) cada orixá tem sua forma peculiar e própria de dançar no
terreiro durante os cultos, festas ou cerimônia que acontecem
periodicamente(...)Os gestos, como já dissemos, expressam
funções, mitos e relações deste orixá com o mundo dos
homens(...)"
Nesse contexto é que Souza e Assis ( in Fernandes,1995) buscam a reflexão
sobre a origem da dança, partindo do princípio de que a representação corporal do
negro e suas mais variadas expressões são produção de ritos do cotidiano, que
manifestam todos os aspectos de sua vida: do nascimento à morte, de indivíduo e de
coletividade.
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O Lundu, o Cateretê, o Afoxé, a Congada, a Folia de Reis, o Samba de Roda, o
Pagode, o Maracatu, o Coco, a Catira, o Calango, a Capoeira, enfim, o Samba são
manifestações que incorporaram a experiência africana aos diferentes espaços
brasileiros: do Nordeste ao Sul do Brasil esses jeitos de dançar foram-se constituindo
como manifestações folclóricas.
A colonização de base européia e a predominância do trabalho escravo no
extremo-sul do Rio Grande do Sul ao trabalho nas charqueadas, considerado por
estudiosos como dos mais aviltantes, penosos e que levavam facilmente os negros à
morte e à contrair inúmeras doenças, só possibilitaram as manifestações ligadas aos
clubes, como o Club Nagô, que ora funcionava em casas particulares, ora realizava
entrudos de rua, ou ao Club de Mina .Em Pelotas o famoso baile do redondo, realizado
na Praça Coronel Pedro Osório nos anos 40 e 50 do século XX, pode ter -se originado
do espaço da Praça Pedro II, local de dispersão e aglutinação desses blocos no final
do século XIX.
Sobreviveram como manifestações na nossa localidade, dando visibilidade aos
negros e seus descendentes, os Batuques, como crença e prática religiosa. Por isso o
meu trabalho tem o vínculo da dança afro-brasileira com o arquétipo dos orixás. Os
traços afro-brasileiros também transparecem na própria distinção do grupo: meninasmulheres-negras revestidas de poder, de sedução, de mexendo o corpo como quem
mexe com a vida, associadas às divindidades femininas de origem africana – oxuns,
iansãs, iemanjás, obás, nanãs, ewas.
O espaço geográfico que apresentava a Àfrica nativa e seus conteúdos foi
transferido para lugares onde foram levantadas casas, templos ou quartos, em cujos
recintos se plantaram, junto com os elementos e símbolos, os poderes dos
antepassados e das entidades sobrenaturais, que garantiriam não só a continuidade da
existência mas também uma forma de viver. Foi através da prática contínua da religião
que o negro conservou um sentido profundo de comunidade. A América Latina viu
transportar, implantar e reformular em seu solo um complexo cultural que se expressa
através de associações religiosas, nas quais se mantém e renova o mais específico de
seus sistemas de origem. dançar para os deuses, “virar em santo”, comer em
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comunidade, girar no sentido anti-horário, não se constituem apenas em maneiras de
cultuar mas, sobretudo, em formas de existência.
Há oito anos (1991) vivo a dança-afro-brasileira. Inicialmente uma curiosidade
descompromissada. A escola onde estudava oferecia aulas de dança no turno inverso
ao que freqüentava, fui ver como seria participar de um grupo de dança.
Eram ditas muitas coisas nas aulas, como: “ a dança conta a nossa história,
dançar de pés descalços significa contato com a energia da terra, negro escravizado,
os negros construíram o Brasil(...)” Inicialmente eu queria aprender a dançar, só isso.
Não tinha percepção do significado da dança, na forma como acredito hoje, e nesse
sentido me encontro com Marques (1996):
“ Há alguma coisa no corpo que pode se revoltar contra o poder
que o inscreve. Ele manifesta a dialética entre nosso mundo
interior e exterior e, portanto, guarda consigo as memórias de
nossas experiências de vida. O corpo como algo que guarda
conhecimento de vida fornece material básico do qual
começamos fazer nossa existência ter sentido(...).”
Não sei que dia, ou hora, ou mês, mas no fundo da aula não ficava mais, nas
laterais, pelo meio, lá estava eu. As músicas diziam coisas interessantes sobre os
negros, conseguia entrar no ritmo, era o meu ritmo. Movimento de tronco, pernas
flexionadas, movimento de quadril, e eu conseguia fazer, o grupo conseguia fazer.
Éramos todos o grupo de Dança Afro-Brasileira da escola: negros, brancos, gordos,
baixos, filha do professor, filha da servente. Éramos o grupo de dança da escola.
Conrado (1993) acredita na possibilidade de afirmação de identidade do negro aqui no
Brasil através da dança, numa espécie de reconstrução da identidade social que foi
deturpada no momento da colonização. A autora considera que:
“ A dança na escola tem importância nesse momento de
discussões, reflexões e reformulações de códigos, conceitos e
práticas educacionais. Sabemos que é parte das culturas
ameríndia e negra, a educação e conhecimento através dos
contos- mitos, das danças, músicas, religião, e por herança, são
traços da sociedade brasileira”.
O interesse pela dança Afro-Brasileira cresceu de tal modo dentro de mim que
hoje sou professora de dança Afro-Brasileira. Como disse
anteriormente, sempre
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gostei das atividades que envolvessem o movimento corporal. Adorava as aulas de
Educação Física, os professores, e acreditava que fazer ao cursar teria possibilidade
de trabalhar com dança, em específico com dança Afro-Brasileira. Não consegui suprir
minhas necessidades no espaço de formação, mas fui em busca de cursos, livros,
vivências, oficinas.
A partir dessa minha experiência com dança Afro-Brasileira, foram surgindo
oportunidades de ministrar oficinas/vivências em encontros universitários, academias
da cidade. Quando vi já era professora de dança afro brasileira. E foi durante esta
trajetória que aconteceu algo muito significativo na minha vida profissional.
No meu segundo ano de Faculdade tive a possibilidade de estagiar no Instituto
São Benedito - uma obra assistencial, que atende crianças oriundas dos bairros da
periferia de nossa cidade, como: Dunas, Pestano, Bom Jesus, Navegantes, Getúlio
Vargas, Sanga Funda, entre outros. Trabalhei como estagiária voluntária com meninas
de 1ª a 4ª séries e com externas (alunas que estão no ensino fundamental em outras
escolas). Os encontros aconteciam uma vez por semana devido ao meu horário da
Faculdade. Eram na sua grande maioria meninas negras.
Devido à impossibilidade de horários, tive que deixar de atender todas as
turmas, só consegui continuar com as meninas externas as que já haviam saído da
escola mas que continuavam a ir em turno inverso para cursos de formação, aulas de
informática e dança a Afro Brasileira.
Até que no meio 1998 consegui fazer um acordo com
a academia onde
trabalho, para poder dar aulas no seu espaço. Surge assim o grupo Dandara. Não
queria mais vinculo com instituições assistenciais, queria realizar um trabalho que não
tivesse caráter assistencialista.
Expliquei para as participantes do projeto o porquê do nome grupo Dandara.
Alguns referem-se à esposa ou filha de Zumbi dos Palmares, mas a idéia era pensar na
possibilidade de sermos todas guerreiras. Guerreiras sim! A partir da nossa dança
falaríamos a nossa história. Nada de um olhar melancólico e intimidado. Éramos e
somos um grupo que sabe que as coisas neste mundo não são fáceis, elas e eu de
certa forma sabemos na carne o que é ser pobre e negra, nossas vidas nos ensinaram
desde muito cedo quais as cargas de uma infância negra.
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É “engraçado” não se achar em lugar nenhum e estar em todos os lugares.
Refiro-me aos livros, à televisão, às revistas. Onde estão as crianças negras? Nos
barracos da cidade. Quem são? Filhos de quem? De ninguém? Somos todas filhas das
escravas.
O texto “O filho da escrava “ ( Mattoso , 1991 ), que trata dos trinta últimos anos
de escravidão no Brasil, é o retrato refletido num espelho de nossos tempos, é
contemporâneo. A experiência das meninas do Instituto São Benedito ainda se
configura com aproximações de sua raiz: “assiste às meninas negras para que não
venham a cair na vida.” A autora analisa que a criança escrava é criada
essencialmente pela mãe ou num ambiente feminino, que sua infância está restrita até
os sete para os oito anos, afirmando
“ que a vida dos folguedos infantis é curta. É nos seus sete para
oito anos que a criança se dá conta de sua condição inferior em
relação principalmente às crianças livres brancas. As exigências
dos senhores tornam-se precisas, indiscutíveis. A passagem da
vida da criança para a vida de adolescente era o primeiro choque
importante que recebia a criança escrava.” ( Mattoso, 1991,34 )
Se a criança escrava sofria esse impacto pode-se associar essa experiência
às meninas do São Benedito que viviam sob os cuidados da Instituição onde “todos são
iguais” sendo posteriormente, levadas aos impactos do descrédito, das críticas, piadas
e apelidos pejorativos sem falar das dificuldades financeiras que vêm agregar
conteúdos mais sofridos aos descendentes de escravos no Brasil, justamente quando
vão se tornando adolescentes e se deparando com a segregação étnica, justamente
num período em que os grupos são sua forma de inserção e de expressão: visões de
adolescência tão propagadas na sociedade capitalista.
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Hoje elas não estão mais confinadas ao Instituto São Benedito, mas ainda
carregam, como meninas-adolescentes negras oriundas daquela instituição, as marcas
de viverem protegidas do espaço público. Aqui o público tem o significado de mundano,
danoso, pernicioso. O grupo Dandara trabalha no sentido contrário, fortalecendo as
raízes étnicas, mas projetando-as para o mundo público e, contraditoriamente, para o
espaço privado da dança, numa sociedade que tem essa arte predominantemente nas
trajetórias das elites.
Aqui associo a dança a espaço, tempo de (re)conhecimento público. Quando
as meninas falaram sobre o que sentem nas apresentações, no andar na rua, na
escola, riram , se emocionaram, atropelaram as palavras sem palavras, eu também:
“Eu já começo chorando, acho que é emoção, sei lá, eu adoro dançar, tô
sempre dançando na frente do espelho. Aí vendo aquele público me olhando...Vê todas
dançando juntas, que a gente lutou, realizou juntas um trabalho , um objetivo juntas,
que a gente batalhou, lutou, pra mostrar. Lutou pra chegar naquele momento embora
tudo...(Odara)
“A dança na minha vida é tudo, eu me expresso de outra maneira, quando eu
tô dançando eu me realizo, me sinto muito bem no palco, me sinto muito bem
dançando, faz parte da minha vida. (Enaíba)
As meninas nestas falas sensações de força, de reconhecimento, de saída do
anonimato e vão paulatinamente superando a baixa auto-estima, o estigma de serem
feias, negras, pobres para ocuparem os palcos como dançarinas afro-brasileiras:
“ É bom, é bom, é muito bom, passar e dizerem eu te vi dançando, eu sou do
projeto Dandara”.(Melissa)
“Nos aceitam no colégio” (Niôro)
Nesta última fala, fica explícita a relação negro e processo educacional, a
negação e a aceitação que parece surgir a partir da inserção no grupo. Silva(1997) ao
analisar essa relação traz à tona a seguinte constatação:
“A discriminação racial manifesta-se na escola por intermédio dos
procedimentos pedagógicos. Há de se considerar, entretanto, que
os professores tendem a transmitir estereótipos humilhantes
acerca dos grupos étnicos-raciais negros. Dificulta, assim, às
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crianças negras a formação de um ideal de Ego negro, e, em
relação às crianças, de uma forma geral, estes conteúdos racistas
acabam reforçando atitudes discriminatórias entre os segmentos
sociais significativos desta sociedade.”
As falas retratam os olhares sobre a participação em um grupo, o elogio, a
saída do estar à sombra. As meninas apresentam as coreografias em suas escolas e
seus bairros, pronunciam-se como grupo.
A paixão pela idéia de estarem em um palco sendo vistas aplaudidas,
consagradas, reconhecidas pelo seu próprio esforço.
As lágrimas caem antes de
subirem ao palco. O medo e a coragem se confundem, mas ali estão, nos teatros, nas
ruas, nas escolas. Referindo-me ao primeiro (o teatro), faço um destaque mais peculiar.
Nunca vou me esquecer, quando dançaram a primeira vez (1998) no Guarani: subiam
e desciam aquelas escadas, faziam-se perceber com seus cucurutos, com seus
trançados, suas camisetas coloridas, sua negritude. Era o único grupo exclusivamente
negro que ali iria se apresentar. Sem medo digo que foi um momento extremamente
importante para a nossa história de vida, uma conquista, um grito de liberdade.
De liberdade de nossos medos construídos por uma história que nos nega o
pronunciamento, que amordaça nossas bocas, que faz de nós “coadjuvantes”, não
senhores de nossa própria história. Socialmente estão implantadas compreensões,
estereótipos de um negro que precisa de uma alma branca e que aceita esta imposição
como algo natural. Inúmeras vezes ouvimos dizer: “ Sou um negro de alma branca”.
Que significado isto carrega? Que marcas estão atreladas a este pensar? Que lugar de
negro é em escola de samba, em campo de futebol, trabalhar em casa de família e
aprender com eles a ser mais limpo e organizado para depois poder ser alguém na
vida. Assim definem-se zonas, limites, lugares pré- estabelecidos.
E isso se repete hoje: ao entrar na escola as crianças negras são levadas a
perceber sua condição de inferioridade em relação à criança branca; a escola não traz
em seu currículo nada que fale de sua beleza, de sua condição étnica de forma
valorativa; os heróis são brancos; os livros que mostram alguma imagem de negros é
no tronco, humilhados, inferiorizados, ridicularizados; as professoras são brancas, a
diretora é branca e possivelmente a servente será negra. Como fica a auto-estima
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desta criança negra, que é chamada de “moreninha”, já que a palavra negro pesa,
inferioriza, é feia, é de tudo que não é branco, bonito, superior?
Em relação à formação desta auto-magem da criança negra Frenette, (1998)
afirma que:
“Desse modo, a criança negra desenvolve um sentimento de
inferioridade frente ao branco que poderá acompanhá-la, durante
toda a sua vida. Em outras palavras, logo a partir da idade em que
seus órgãos visuais e sua capacidade cognitiva estão
suficientemente desenvolvidos, a criança negra recebe, como um
ultimato, o aviso de que sua pele não é branca (“não é bonita”), e
de que isso é algo que deve de fato ser lamentado. Em quem
sabe, até, se ela não vai chegar à conclusão de que deveria
agradecer aos céus, por não ter as ventas do nariz muito abertas
e lábios leporinos?”
Sou professora, aluna, mulher negra e me orgulho disso. Adoro a cor da minha
pele, meu nariz, minha boca, minhas canelas finas, meu corpo negro, mas não nasci
me amando. Já quis ser mais clara, ter cabelo liso, ser menos negra para ser igual ou
quem sabe mais parecida com a maioria dos meus colegas. Diariamente nos é dito que
ser negro não é lindo, os modelos de beleza são brancos, as protagonistas dos filmes e
novelas são brancas e os assaltantes são negros ou tem a pele mais escura do que o
belo e bom menino branco.Como fazer surgir uma outra mentalidade, uma outra autoimagem que não tenha o branco como padrão de beleza e negro padrão de feiura.
Como fazer nascer a frase ser negro lindo, sendo negro mesmo, sem dissimular, sem
criar uma falsa negritude onde o belo é ser um negro de alma branca?
Frenette, analisa e denuncia melhor a questão dos referenciais brancos de
beleza e repercussão deste fato na infância:
“A criança negra, então, é levada a construir a sua auto-imagem a
partir de referências estéticas que não legitimam seus traços
físicos e a cor de sua pele. O resultado final, evidentemente, é
desastroso. A partir do momento em que ela comunga com
valores estéticos brancos, inicia-se em seu íntimo uma guerra
onde o campo de batalha é o reflexo da própria imagem: o que
faço com meu nariz largo, com o meu cabelo crespo, com o
formato dos meus pés, com meus lábios grossos e com a minha
pele escura? Nessa luta infantil, e já insana, que passa batida
diante dos olhos dos adultos-rãs, nem sempre a negritude vence”.
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Pensar quem são estes sujeitos leva-me a refletir sobre a construção do corpo
que dança, o que dança, e onde dança. Marques (1996) faz uma análise extremamente
pertinente, traçando uma relação entre arte, dança, corpo, corpo negro escravo.
“As artes, freqüentemente associadas ao trabalho manual, foram
também associadas a condição de “escravos” . Não é de se
admirar, portanto, que uma arte como a dança, que trabalha direta
e primordialmente com o corpo, tenha sido durante séculos presa
nos porões e escondida nas senzalas: foi banida do convívio de
outras disciplinas na escola, ou então atrelada ao tronco e
chicoteada, até que alguma alma boa pudesse convencer “ o
feitor” de sua “inocência”.
Direciono um olhar coreográfico originado da vida dos que praticam a dança
afro brasileira. Olho agora para as formas, as intensidades dos gestos, as saídas do
chão, os giros, as quedas, os balanços, os gingados, a sensibilidade, a emoção, a
suavidade, a energia . Energia de quem no momento que se envolve com a dança,
fala, grita, chora, sorri, que tenta romper com a barreira dos pré- conceitos e
estereótipos. Que a nossa corporeidade seja ouvida, sentida, transpirada pelos poros.
Buscando alternativas, percebendo estas questões em meu próprio corpo, o
grupo Dandara hoje existe. Trabalhar com a dança afro-brasileira, portanto, é falar de
nossa história, contá-la através de nossos corpos, que falam sobre nossas vidas,
nossos antepassados, de nossa religiosidade, nossos dias de vitória, nossa vontade de
viver numa sociedade onde o racismo não seja velado.
Ao perceberem-se como senhoras daquele espaço (o grupo Dandara),
expressam-se:
Dança afro é uma dança bem de negro, mas não que só negros dançam, o
grupo tem uma brancada legal”. (Negra)
“Essa mistura foi super legal entraram na nossa deu super certo, eles
começaram a ter uma ginga parecida não igual, não é igual, de repente até melhor,
mas não é igual...” ( Iâmi, Negra)
De certa forma hoje consigo perceber a positividade deste espaço, grupo
Dandara, como uma garantia a
elas, uma inversão
nos espaços onde se fazem
presente aos quais nem conseguem chegar. Como já referi anteriormente, é como
estar em todos os lugares e não estar em lugar nenhum. A negrada é quem comanda
ali. São traços da
gestualidade, da relação do negro
com o ritmo, que acabam
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produzindo um clima de negritude, de manifestações como a gargalhada, o deboche, a
afetuosidade, a espontaneidade. A senzala era reduto de tristeza e de dor, mas
também partilha de ritmo, musicalidade e, como não dizer, religiosidade. No quilombo
esse exercício coletivo se expandia e aquilo que precisava estar estrategicamente
oculto insurgia-se como polo dinamizador de um novo/velho jeito de ser negro, não
sendo escravo.
O espaço que criamos a partir da dança afro-brasileira é de trabalhar com
referenciais
negros,
dentro
do
conseqüentemente, da formação de
princípio
de
uma
valorização
étnica
e,
uma auto-imagem que reflita a beleza da
negritude. Busca-se assim a possibilidade de dançar algo que tenha sentido, que dê
sentido ao corpo que se movimenta.
A mudança de papéis, a saída do anonimato, o (re)conhecimento, a mudança
de uma rotina instituída casa–escola confirmam a positividade de um coletivo afrobrasileiro
“ Ah! Tem um monte de coisa, mudou um monte, nem , quase nunca eu saía
de casa.” (Iâmi)
“Antes do projeto ia da casa para o colégio” (Negra)
“ Antes ia da casa para colégio, agora é ensaio, uma coisa que a gente gosta
de fazer e pode ter futuro. A semana tem que ser organizada, a gente se organiza.”
(Enaíba)
As falas parecem, ao meu olhar, garantir uma auto-imagem extremamente
positiva: elas vão construindo outros referenciais de belo, de estar-no-mundo. No
depoimento coletivo e nas situações de aula, nas apresentações, elas explicitam este
se curtir, o gostar de estarem juntas. Quando falam sobre o que esperam para o
Dandara : crescer juntas e estarem mais tempo, desejo de permanência no grupo.
Penso nas saídas da solidão, que percebo em evidência no sujeito de pesquisa
denominado Negra, quando fala na importância que o grupo tomou na sua vida: “Choro
quando não tem dança”,diz ela, revelando que não consegue se pensar sem estar no
grupo.
Na iniciação à pesquisa realizada aprendi a repensar o meu trabalho de
militância afro-brasileira, de constituição de um novo olhar sobre o trabalho com as
meninas do Dandara. Observei a força das falas, dos gestos, sorrisos, paixão...crença
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no grupo, o acreditar nelas mesmas, um grupo de adolescentes na sua maioria negras,
pobres com muito desejo de vitória, e o essencial, juntas. Levo-me a pensar que a
proposta de dança afro-brasileira quebra com a rotina de isolamento destes sujeitos,
reforça a herança negra da coletividade, e este coletivo que pensamos é dentro da
idéia de quilombo, que se gesta da necessidade de uma corporeidade esquecida e
negada.
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13
SILVA, Jacira Reis da. Resistência Negra e educação: limites e possibilidades
no contexto de uma experiência escolar. Dissertação de Mestrado, Porto Alegre:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1992.
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São quatro horas da manhã e minha cabeça, meu corpo está um