Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Colóquio “Por prisão o infinito: censuras e liberdade na
literatura”.
26 e 27 de Setembro 2011
Maria Velho da Costa: uma escrita que se faz “barragem contra a voz
passiva”
(…) “Guarda-te porém dos que te vêm pelo lado esquerdo, já corruptos da
imitação comedida dos teus próprios passos, dando-te a jornada por finda. Guarda-te
dos fruidores, tropeços crónicos, bancários da sabedoria que sangra. Guarda-te dos
que não vão amar senão à tua imagem, afagadores subtis de espelhos bafejados, os
arteiros do opaco. Guarda-te do mecenato servil que te oferecem, que outra coisa não é
senão escrínio e bom gosto da tua escravidão. Guarda-te dos pequenos mercadores do
tempo que só esses saberão encerrar-te em criptas derradeiras e fazer-te póstumo à
obra e à indagação.
(…) Nada há de mais pernicioso sobre a terra do que os parasitas da
consciência alarmada e desperta, os coleccionadores de nomes e desastres alheios.
Mata, porque esses são deveras os mediadores dos tiranos, os partidários da esperança
iníqua de que tudo possa ser sem esforço ou danação.
(…) Que tu és para matar e ter sobrevivido. Íntegra, textualmente, texto e
acto.”1
Maria Velho da Costa, in Cravo
Num colóquio que abre sob o signo do infinito e da liberdade ativa, e ao qual me
propus trazer Maria Velho da Costa, pareceu-me adequado iniciar a minha comunicação
pela leitura de excertos de um texto da própria autora que se intitula, muito
significativamente, “Voo de amiga pelos maiores céus”, e cujo tom é o de um manifesto
em favor da inteireza do escritor e da sua função indagadora do mundo e instigadora das
consciências.
1
- Costa, Maria Velho da “Voo de amiga pelos maiores céus”, in Cravo, Lisboa, 1994, D. Quixote, p.6566..
1
Atribuindo ao escritor o propósito de “alinhar palavras por forma a que lhe
façam sentido. E aos outros.” (Costa, 1994:25), o percurso de Maria Velho da Costa tem
vindo a cimentar-se no seu fascínio pela língua e pelas potencialidades desse “verbohistória português” (idem:84) de que é preciso fazer eco, e de que competirá aos
escritores a responsabilidade de preservar enquanto fator de identidade cultural
nacional, estimulando o seu conhecimento profundo e a destreza no seu manuseio para
que, como diz em Cravo, não “se estanque no povo a vocação de indagar do difícil e do
trabalhado” (idem:85).
Datados embora do período pré e imediatamente pós-revolucionário, e nesse
contexto necessariamente colados a um certo fervor mais ideológico e socialmente
interventivo que marcou, nessa fase, muitos artistas, os textos de Cravo e de Desescrita,
em formato de crónica, têm vindo, na minha perspetiva, a balizar a produção literária de
Maria Velho da Costa e a contextualizar as suas opções discursivas e os universos
ficcionais que engendra, e, nesse movimento, a fecundar os conceitos de censura e de
liberdade de que se ocupa este colóquio. Nessas crónicas do período revolucionário, a
escritora brandia a língua como voz ativa face ao poder e insurgia-se contra os criativos
“a soldo” (Costa, 1973:41) que, pelo seu dizer fácil, ratificavam o analfabetismo do
povo e fomentavam o entorpecimento mental e o unanimismo, coartando o poder
enérgico da língua na sua capacidade de desencadear a indagação. Hoje, o conjunto da
sua obra está aí para atestar a coerência de um percurso onde a escrita é atividade
subversiva, porque agitadora da pacatez amorfa e acrítica, e exercício sempre
comprometido, enquanto permanente indagação sobre o mundo e a sua ordem ou as
suas desordens.
A consciência da possibilidade de um uso subversivo da língua apareceu muito
cedo na vida desta escritora, quando se apercebeu dos interditos familiares, sociais ou
morais, e da conveniência de falar sem dizer nada, estratégia do saber estar e do saber
viver nos círculos que conhecia. Contra isso, arremessou a “indecência de querer dizer
quando falava” (Costa, 1994: 176) e começou a explorar as potencialidades libertadoras
da palavra. Daí até ao conhecimento e ao fascínio pelos códigos dissonantes e à
experiência própria da dissonância foi apenas mais um golpe de ousadia que lhe abriu o
acesso a possibilidades infinitas de tessitura textual e de produção de sentidos.
Porque, em Maria Velho da Costa, é de querer dizer que se trata, de língua
comprometida em ato através do gesto laborioso de um artesanato da palavra para a
tornar “instrumento de pesquisa do real total” (idem: 26), exercício prospetivo e
2
instigador da reflexão sobre o homem e o mundo. Diz-nos a autora no seu “Manifesto
de escritor em linguagem fácil para uma campanha difícil”: “O escritor, exactamente
porque oficia nessa via sacra para a maior consciência que é a palavra, sabe sempre que
mente quando mente. E mentir, na profissão, é ser conveniente ou entreter” (ibidem).
Seria essa a estratégia para passar incólume ao lápis censor da ditadura. Será
essa hoje a solução para aparecer nos escaparates das livrarias ou na secção cultural dos
supermercados e receber os proventos das grandes tiragens. Mas hoje, a autora está
consciente de que a sua forma de alinhar palavras não é vendável e que o leitor comum
anda arredio. Essa constatação, partilhada com o seu parceiro de escrita, Armando Silva
Carvalho, no romance epistolar O Livro do meio através da pergunta “Mas quem é o
leitor comum que nos pega?” (Carvalho e Costa, 2006: 29), é a de quem sabe ter uma
escrita frontal, íngreme e, portanto, incómoda.
Durante a ditadura, era assim que a escritora reagia à imposição de uma escrita
conveniente:
Ecidi escrever ortado; poupo assim o rabalho a quem me orta. Orque quem me orta é
pago para me ortar. Também é um alariado. Também ofre o usto de ida.
(…) A iteratura eve ser uma oisa éria e esponsável. Esta é a minha enúncia ública. (Eço
esculpa de esitar nalguns ortes, mas é por pouco calhada neste bom modo de scrita usta ao
empo e aos odos).
(…) Olegas, em ome da obrevivência da íngua, vos eço pois:
Reinai-vos a ortar-vos uns aos outros
Omo eu me ortei. (Costa, 1973:55-56)
É de escrita comprometida que se trata, portanto, e desassombrada. Hoje, como
em 1969, data da publicação de Maina Mendes, ou nos primeiros anos da década de 70,
fase da criação de Novas Cartas Portuguesas e de Desescrita, ou ainda como nos anos
fervilhantes da revolução dos cravos, a escrita de Maria Velho da Costa mantém-se fiel
ao compromisso de ser “barragem contra a voz passiva” (Costa, 1979:83) e de, como
tal, se erguer em exercício obrigatório de indagação, em “compulsividade de registo”
(ibidem) para “entender o que nos comove e move para onde”, objetivo que apresenta
numa das crónicas de Cravo, em texto datado de Dezembro de 1975 (Costa, 1994:11).
A expressão “barragem contra a voz passiva” é uma espécie de lema de vida de
Elisa, personagem escritora em Casas Pardas, mulher emancipada e rebelde, em
percurso de autoconhecimento e de busca do seu lugar numa escrita que quer
significante e de visão apurada sobre o mundo. Reivindicando sempre o direito a dizer
contra o bom tom das conveniências e da hipocrisia familiar e social, Elisa erige-se em
barreira contra os que dela esperariam a postura dependente, cordata e socialmente
aprazível de um sujeito passivo, de que a sua irmã Mary é exemplo trágico. O lugar de
3
Elisa será sempre o do sujeito que age e nunca o do que se sujeita à ação de um
qualquer agente. E se, de facto, como se diz no romance, “Ela abandona-se é o contrário
de Ela é abandonada” (Costa, 1979:83), Elisa estará sempre do lado dos que escolhem e
vão desenhando o seu percurso de vida, assumindo os riscos e as responsabilidades
desse exercício de liberdade que se autoimpõem, sem admitir que outros decidam por si.
É com Maina Mendes que, na grande ficção, Maria Velho da Costa começa a
rasgar o caminho da transgressão, quer em termos do código linguístico, quer ao nível
das convenções sociais e familiares. Publicado em 1969, este romance foi acolhido pela
crítica portuguesa como um marco literário no âmbito da construção narrativa e do
trabalho sobre a língua, emparceirando significativamente com A Noite e o Riso, de
Nuno Bragança, lançado no mesmo dia. Nele, Maina Mendes protagoniza uma
expressiva reação contra uma sociedade patriarcal castradora onde se espera que todos
falem na mesma voz. Curiosamente, Maina abdicará desse instrumento maior de
afirmação de si para, em exercício de negação, se afirmar e se impor aos outros na sua
individualidade e na sua inteireza. Dessa forma, constitui-se em reduto íntimo inviolável
onde esperará, no silêncio que se autoimpõe e exibe aos outros, as sementes de uma
transformação social. Maina cala-se para que no silenciamento da sua voz se torne
audível a reivindicação do seu lugar no mundo. Pela sua força simbólica, o seu protesto
é o de gerações de mulheres confinadas a um espaço vital de estreitos e predeterminados
limites e a papéis passivos e alienantes. Trata-se, pois, de um grito de alerta, ainda que
mudo, para a consideração de uma nova ordem e de novas sensibilidades que põem em
jogo diferentes cenários de poder, a partir dos quais se problematizam processos sociais
e identitários ao longo de três gerações. Na represa onde segura a voz até que a
mereçam, Maina Mendes guarda, como diz Eduardo Lourenço no prefácio à quarta
edição do romance, “a voz silenciada, negada ou submersa que se recusa à afonia
definitiva”.2
A publicação, em 1972, de Novas Cartas Portuguesas, obra escrita em parceria
com Maria Isabel Barreno e Maria Teresa Horta, continuou o fulgor subversivo do
primeiro romance, rasgando os véus de hipocrisia social e moral e reivindicando para a
mulher o direito a dizer-se, a dizer o seu corpo e a sua sexualidade, e reclamando para
ela o estatuto de equidade que lhe cabia numa sociedade habituada a pensar no
masculino e escorada sobre as vigas já carcomidas de um conservadorismo burguês
2
- Eduardo Lourenço, in prefácio à 4ª edição de Maina Mendes, 2001, Lisboa, Publicações D. Quixote,
p.14.
4
retrógrado. Arrojado e transgressor, considerado pornográfico e atentatório da moral
pública, este livro representou, para Isabel Allegro de Magalhães, a “conjunção da
denúncia da opressão no domínio privado e da opressão no domínio público”
(Magalhães, 1992:155), sustentando-se, agora no dizer de António Guerreiro, sobre um
“discurso da reivindicação do corpo da mulher, da nomeação, por ela própria, do seu
prazer, do seu desejo, do seu erotismo (…) do poder de nomear” contra uma lógica de
dominação machista (Guerreiro, 2011: 32). Escrito a três, numa assunção primeira de
que a autoria dos textos permaneceria incógnita, este livro continua a suscitar o interesse
quer dos críticos quer do público em geral, o que determinará ter atingido presentemente
a nona edição, que é também a primeira edição anotada, por uma equipa liderada por
Ana Luísa Amaral. Atentatória em toda a linha, até ao nível da linguagem que aí fulgura
de disrupção e variância, etiquetada de subversiva, esta obra projetou decisivamente o
nome das suas autoras no domínio público. Desde então, Maria Velho da Costa tem sido
uma das Três Marias, o que a conotou irremediavelmente com uma ala feminista radical
e transgressora.
A apreensão da obra pelo regime e o processo judicial entretanto movido às
autoras foram a sua “melhor campanha publicitária”3, como viria a admitir Isabel
Barreno. O alarido que se gerou, pela notícia da perseguição às três escritoras e pela
natureza transgressora de convenções de Novas Cartas Portuguesas, provocou forte
impacto nos movimentos feministas europeus, o que, acrescente-se, viria posteriormente
a desagradar a Maria Velho da Costa por sentir o livro demasiado aprisionado a um
conceito. Em carta ao jornal A Capital, a escritora dirá: “Não gosto do que foi feito
daquele livro. Não gosto do que foi feito de mim com ele. Quando foi feito, era um
livro. Hoje é um livro feminista” (apud Gallo, 2008:34). Reação natural de quem
conhece, e por isso mesmo recusa, as peias dos movimentos clubistas e o quanto eles
podem conter de força paralisante da língua e do pensamento.
Com efeito, se é verdade que a ficção de Maria Velho da Costa se constrói
maioritariamente em torno de personagens femininas e que muitos dos trabalhos
académicos que sobre ela se produziram enfatizam a vertente feminista e o pendor
libertário que sempre se lhe associou, se é verdade também que as mulheres da sua
escrita empreendem percursos de vida que são roteiros de ousadia num universo de
cinzentismo masculino entorpecedor, parece-me muito redutor confinar a sua obra a um
discurso de emancipação feminista, pesada embora a sua pertinência e atualidade no
3
- Afirmação de Isabel Barreno em entrevista a Textos e Pretextos, nº 3, 2003, pp. 67.
5
contexto dos anos sessenta e setenta. Se é certo que as mulheres são preponderantes na
sua ficção, a funcionalidade da sua utilização terá mais a ver com a multiplicidade de
funções a que se dedicam e com a versatilidade que as caracteriza e lhes permite
funcionar, no universo literário engendrado pela autora, como instrumentos de análise
de múltiplos setores de vida e como agentes de transformação.
Desde a mulher burguesa ociosa e fútil, que nos bancos dos colégios de freiras
iniciava a sua formação na arte da conveniência de se acomodar à passividade e ao
estatuto de acompanhante fina do marido, (veja-se o caso da mãe de Maina, de Mary ou
da sua mãe, em Casas Pardas), à mulher doméstica e remediada, como Elvira, também
em Casas Pardas, que se desdobra em tarefas para garantir um quotidiano digno e
confortável, à dona de casa amarga e insensível (como acontece com a mãe de Mariana
Amélia em Lucialima), ou às criadas de diferentes estatutos e funções que vão
fornecendo imagens de bastidores sociais, a panóplia é rica e diversificada. E o leitor vai
também acedendo às diferentes vivências do amor e da sexualidade, à consciência ou à
alienação cívica ou política de alguns setores sociais, ao embate cru e duro com a
delinquência, os dramas da imigração e da exploração humana, a violência e a solidão, a
incomunicabilidade e o vazio existencial que constituem muitos dos dramas da
contemporaneidade e habitam os universos ficcionais de Lucialima, Missa in Albis,
Dores, Irene ou o contrato social e, mais recentemente, Myra.
Nas diferentes obras de Maria Velho da Costa, esses contextos têm vindo a
prefigurar um mundo feito de relações de poder, bipolarizado, e onde nem sempre é
fácil às personagens “cortar fronteira entre farrapo preto e crepes” (Costa, 1979:180),
como se reconhece em Casas Pardas. Trata-se, quase sempre, de confrontar o leitor
com roteiros de devastação, numa abordagem algo trágica da atualidade e que, de
alguma forma, enferma de uma espécie de “ordem das mágoas”, expressão que importo
do poema “Princípio”4, de Joaquim Manuel Magalhães por achá-la elucidativa de uma
tendência para a disforia, ainda que por vezes irónica e cáustica, que me parece marcar a
obra de Maria Velho da Costa, mas também alguma da nova ficção portuguesa
recentemente publicada, como sejam os casos de Dulce Maria Cardoso, José Luís
Peixoto ou valter hugo mãe.
Estes roteiros de devastação não se oferecem em “lisura informativa” (Carvalho
e Costa, 2006:181), estratégia que n’O Livro do Meio, se denuncia como prática
4
- Joaquim Manuel Magalhães (1974), Os Dias, Pequenos Charcos, Lisboa, Presença, p.13.
6
frequente de muitos autores, mas através de múltiplas plataformas enunciativas e
relacionais e de uma hibridez discursiva que exercitam a atenção do leitor e espevitam a
sua capacidade crítica e indagadora. Aliás, o aviso sobre as suas opções discursivas
tinha sido dado já em 1975, num texto a que a autora chamou “Nota de leitura”: “… a
percepção discursiva da realidade não me é a via mais natural e o meu modo
preferencial de comunicar por escrito não é a explicitação” (Costa, 1994:105).
Sempre de olhar centrado no mundo e nas pessoas que o habitam, Maria Velho
da Costa não os escreve na sua ficção enquanto objetos do texto, mas apenas como
elementos convocados, escusando-se sempre ao que chama a “desenvoltura retrateira”
(Costa, 1979:89). A autora opera por estratégias que são sobretudo de alusão e de
“deslize da referência” (Gusmão, 1988: 51), como reconhece Manuel Gusmão,
desprotagonizando a História e, dessa forma, intemporalizando as situações de forma a
permitir uma abordagem evolutiva que suscita, por parte do leitor, uma postura crítica e
reativa. Tratar-se-á aqui de um “Zeitgeist muitas vezes difuso, mas nem por isso menos
real” (Barrento, 1995:157), expressão que João Barrento utiliza para designar o sentido
do tempo e da História na poesia contemporânea, mas me parece poder aplicar-se
cabalmente aos universos ficcionais de Maria Velho da Costa. Tempo e História, apesar
de presentes, não objetivam nem contextualizam as imagens do mundo, servindo apenas
de atmosferas para a configuração de territórios subjetivos onde as personagens
evoluem, se interrogam e se buscam num processo onde o leitor é permanentemente
convocado. Este, como já se disse, exige-se ativo perante a ficção desta autora, pela
natureza interrogativa do seu texto. Este conceito, na formulação apresentada por
Catherine Belsey, designa a solicitação que o texto opera sobre o leitor no sentido de o
levar a um processo de indagação sobre a matéria implícita ou explicitamente suscitada
pelo texto (Belsey, apud Hutcheon, 2002:220-221).
Na sua vocação de comprometimento, que faz das suas obras plataformas de
indagação do mundo, mas também dos outros e de si, Maria Velho da Costa confere à
sua escrita uma importante dimensão autorreferencial onde permanentemente se
equaciona o fazer literário e as condições em que os textos poderão ou não interagir
com os seus leitores. Nesse âmbito se joga muitas vezes a vertente interventiva da sua
escrita e a sua vocação de autonomia e de liberdade. A criação de personagens
escritoras é forma engenhosa, e enviesada, de trazer ao universo ficcional uma espécie
de consciência autoral delegada, através da qual recorrentemente se chama à reflexão
sobre o estatuto e as funções do escritor, as potencialidades da língua e o uso que dela é
7
feito. Se, como diz no romance Missa in Albis, tudo se resolve num vertiginoso “acto a
três: o autor, a surpreendente voz do escrito e o censor que é aquele que vai ler” (Costa,
1988:229), torna-se pertinente a pergunta deixada n’O Livro do Meio: “Mas também
quem é que quer o leitor para lesma submissa?” (Carvalho e Costa, 2006:308).
Estamos, portanto, perante uma escrita que se faz barragem. Contra a voz
passiva, mas também contra a leitura passiva. A barragem a que se alude
orgulhosamente em Casas Pardas não é, no entanto, necessariamente uma força de
bloqueio. Contra os que usam a língua, ou a literatura, em atitude de subserviência ou
de covarde e alienada mansidão, a barragem que Elisa ergue pode ser reduto de
aprendizagem e de reflexão para outros, oportunidade para compreender e assimilar o
potencial enérgico da palavra e, a seu tempo, experimentá-la também em exercício
consciente e empenhado. Não é por acaso que, ao contrário de uma barreira, uma
barragem contém pontos de fuga, escapes libertadores por onde a água jorra
impetuosamente após o cerco imposto pelas comportas fechadas. Este parece ser o
compromisso da escrita de Maria Velho da Costa: o de ser altaneiramente autónoma e
de, pelo seu exemplo, suscitar o mesmo impulso.
Un Barrage contre le Pacifique é o título de um romance de Marguerite Duras,
já adaptado ao cinema. Desconheço a existência de uma qualquer intenção no
estabelecimento de afinidades entre este título e a expressão já referida, embora ela não
seja de descartar, tendo em conta o gosto de Maria Velho da Costa pelas citações e o seu
engenho no entretecimento de referências culturais de vária ordem nos seus textos.
Propositadamente ou não, Un Barrage contre le Pacifique ecoa no texto de Casas
Pardas e fecunda-o do vigor resistente e subversivo dessa outra autora coetânea,
Marguerite Duras, cujas personagens femininas se oferecem também em versões
marcantes de ousadia e de inconformismo.
Maria José Carneiro Dias
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