22 Crise nas Águas • Ricardo M. Pinto- Coelho & Karl Havens 3 - A Água e a Economia A água desempenha um papel muito mais importante na vida econômica de um país do que o de representar apenas uma matéria-prima ou insumo essencial. Em primeiro lugar, temos que reconhecer que a água é essencial para a manutenção da vida e do bem-estar dos indivíduos que fazem a economia funcionar. Em segundo lugar, a água é um insumo vital para a agricultura e, consequentemente, garante a segurança alimentar da civilização humana. Em terceiro lugar, a abundância ou escassez da água representa quase que diretamente o mesmo para a produção de energia. Sem água, não há produção de energia. Isto não é válido apenas para a hidreletricidade. As termelétricas e mesmo as usinas termonucleares não funcionam sem água em abundância. A civilização industrial depende dos minérios, particularmente do ferro e do alumínio. A extração e o beneficiamento primário desses dois minerais, bem como de dezenas de outros elementos essenciais a nossa civilização dependem da água. Enfim, em todo e qualquer segmento das múltiplas atividades econômicas, a água comparece seja como uma matéria-prima essencial, seja como um bem que possui um valor intangível, porém indispensável para todas essas atividades. O que seria da indústria do turismo e do lazer, se houvesse uma grande escassez de água nos locais onde florescem tais atividades? Em termos de recursos hídricos, os principais usos humanos são o gasto de água nos domicílios, seu emprego na agricultura e na indústria (Fig. 3.1). De modo geral, a agricultura é a atividade com maior consumo de água em comparação com outros usos. Não somente os montantes, mas também os porcentuais de uso da água dessas diferentes formas variam amplamente. Um grande exportador de “commodities” minerais e de alimentos, como o Brasil, é, antes de tudo, um grande exportador de água. Brasil Agrícola Industrial Doméstico EUA Canadá Figura 3.1 – Porcentuais de usos da água em diferentes setores da economia no Canadá, EUA e Brasil (IBGE e AQUASTAT-FAO). Crise nas Águas • Ricardo M. Pinto- Coelho & Karl Havens As expectativas de crescimento no consumo de água são bem elevadas para os próximos anos (Fig. 3.2). O aumento no gasto de água em decorrência da agricultura e da pecuária será expressivo, quando comparado com o aumento previsto para outros usos. Uma das principais características do consumo de água usado na produção de alimentos é o porcentual baixo de retorno, quando comparado aos usos industriais e domésticos. Espera-se também um elevado crescimento do uso de água em domicílios, sendo que, nesses casos, as taxas de retorno da água usada nos domicílios também deverão aumentar de modo proporcional. Trilhões de M3 7 6 6 6 5 5 4 4 3 3 2 2 1 1 0 7 7 Mercado 2000 2025 2050 0 7 Segurança 6 5 5 4 4 3 3 2 2 1 1 0 0 2000 2025 Agricultura Doméstico Eletricidade Indústria 2050 Política 2000 2025 2050 Sustentabilidade 2000 2025 2050 Figura 3.2 – Usos da água pelo homem: a agricultura é a atividade em que mais se gasta água. A segunda refere-se à produção de eletricidade. Os usos de água pelos domicílios devem aumentar nos países com forte crescimento econômico ou naqueles submetidos a fortes políticas de proteção social. Já o uso da água pelas indústrias não deve sofrer grandes alterações nas próximas décadas. Os gráficos incluem uma previsão de aumento no gasto das reservas de água até o ano 2025, segundo quatro cenários diferentes de governança ambiental (vide Cap. 13). Fonte: UNEP/Geo-4 (2007). 23 Crise nas Águas • Ricardo M. Pinto- Coelho & Karl Havens Para entender o quanto de água que determinadas atividades econômicas têm embutido em suas atividades, vamos tomar dois exemplos na indústria e na agricultura: (a) a siderurgia, mais precisamente a produção de aço e (b) a produção de alimentos. O aço faz parte de quase todos os objetos que usamos na vida cotidiana: construção civil, utensílios domésticos, veículos, ônibus, caminhões, trens, embarcações e até em aviões. O aço é usado na indústria química, nos diversos materiais de telecomunicações, equipamentos hospitalares etc. O principal consumo de água na produção do aço ocorre na fase de coqueria, na torre, quando é realizado o apagamento úmido de coque. Informações obtidas a partir de uma planta típica indicam que essa demanda pode chegar a 807 toneladas de água por hora, dos quais 161 toneladas por hora são perdidas somente por evaporação durante o apagamento (Fig. 3.3). Para completar o quadro do gasto de água necessário para se produzir uma tonelada de aço, devemos ainda adicionar a quantidade de água requerida na produção do minério de ferro e do carvão mineral ou vegetal. No caso do carvão vegetal, principalmente aquele produzido a partir de monocultivos de eucalipto, o gasto é ainda maior, pois deve-se considerar, ainda, a perda de água por evapotranspiração ocorrida durante o crescimento dessa árvore. Por conseguinte, para se produzir uma tonelada de aço são gastas, pelo menos, 50 toneladas de água. Gasto de água (Siderurgia) Litros água / Tonelada de aço 24 Processo Figura 3.3 – Gasto de água por evaporação e descarte (geração de efluentes) para várias opções siderúrgicas (modificado de Johnson, 2003). Crise nas Águas • Ricardo M. Pinto- Coelho & Karl Havens Necessitamos de alimentos para viver. A produção de alimentos é a base da segurança de toda sociedade humana. Inúmeras guerras já foram realizadas para disputar territórios férteis ou com elevada aptidão agrícola. A produção de uma tonelada de grãos (trigo) requer mil toneladas de água (Fig. 3.4). A pecuária bovina é a atividade que mais gasta água e ainda está associada à maior destruição de hábitats (Fig. 3.4). Os gastos de água com a pecuária bovina nos trópicos são ainda mais elevados por causa das temperaturas mais elevadas. Litros água / Tonelada Produção de alimentos Processo Produto Figura 3.4- Volume em litros de água necessários para produzir uma tonelada (com base nos dados de produção do estado da Califórnia, EUA). Fonte: World\ Watch Institute. As exportações anuais de grãos dos Estados Unidos (2003), totalizaram 90 milhões de toneladas/ano. Essa produção requer pelo menos 90 bilhões de toneladas de água, um volume que suplanta o fluxo anual do Rio Missouri, que é de 67 bilhões de toneladas anuais. O Brasil produziu, em 2003, cerca de 70 milhões de toneladas de grãos (segundo a FAO, foram 67,45 milhões de toneladas, em 2003). Essa produção demanda cerca de 70 bilhões de toneladas de água. O Rio São Francisco joga no mar todo ano cerca de 89 bilhões de toneladas de água (QSF = 2.850 m3.s-1, segundo Salati et al., 2009). Um bom exemplo que ilustra a quantidade de água usada para a produção de alimentos pode ser visto na irrigação, uma atividade que vem se expandindo em todos os continentes, muitas vezes de forma totalmente insustentável (Fig. 3.5). 25 26 Crise nas Águas • Ricardo M. Pinto- Coelho & Karl Havens Áreaequipadaparairrigação(1000hectares)-Status2003 Figura 3.5 – Extensão em milhares de hectares destinada aos empreendimentos de irrigação nos diferentes países. Status de 2003. Fonte: AQUASTAT-FAO (2008). A irrigação exige uma enorme captação de água ante o que efetivamente é absorvido pelas plantas irrigadas. É verdade que uma grande parte da água usada na irrigação volta aos aquíferos, lagos e rios de onde é retirada (descontando-se a evapotranspiração que pode ser muito alta nas regiões tropicais). Entretanto, essa água retorna com uma qualidade muito pior, normalmente contaminada pelo excesso de nutrientes (N e P), metais traços e outros xenobióticos (exemplo: agrotóxicos), usados nesses empreendimentos. No Brasil, a expansão da irrigação tem causado uma série de conflitos entre irrigantes e municípios e, em alguns casos, com queda expressiva da vazão média de rios importantes (Cunha, 2009). Os exemplos da agricultura e da siderurgia não foram escolhidos por mero acaso. Essas duas atividades estão na base da civilização moderna, e seus produtos são essenciais para o nosso bem-estar e para a nossa segurança alimentar. Dessa forma, não se questiona a importância dessas atividades. O que se questiona é o fato de que as pessoas, em geral, possuem uma noção muito vaga do elevado custo ambiental, principalmente em termos de gasto de água, necessário para que essas e outras atividades econômicas possam existir. Alguns países já perceberam que é melhor economizar água do que abusar de suas reservas disponíveis. Ao contrário do que muitos pensam, adotar medidas de sustentabilidade na política macroeconômica de um país não implica necessariamente em crescimento econômico menor. O gráfico ao lado (Fig. 3.6) ilustra uma tendência mundial para menores gastos per capta de água mesmo mantendo uma expansão do produto interno bruto. Esse decréscimo é mais notável nos países que enfrentam escassez de água, tais como o Egito, a Espanha ou mesmo a Itália. Entretanto, países com grande disponibilidade de recursos hídricos também optaram por um modelo econômico que implica em menores gastos de água. Crise nas Águas • Ricardo M. Pinto- Coelho & Karl Havens Figura 3.6 – Razão entre o consumo de água e o produto nacional bruto (PNB) em alguns países entre os anos de 1975 e 2000. Fonte: UNEP/GEO4 (2007). O modelo econômico do Brasil está na contramão dessa tendência mundial observada por muitos países que adotaram uma estratégia para menores gastos per capta de água. Pecuária bovina extensiva, mineração, hidreletricidade, biomassa, siderurgia e petroquímica estão na base de nossa economia. O Brasil é um dos maiores exportadores de alimento e outras commodities básicas do Globo (minérios, celulose). Isso quer dizer que o País é um dos que exporta maiores quantidades de “água virtual”, uma água que não se vê, mas que está embutida nos alimentos exportados (Fig. 3.7). Balanço regional de água virtual e fluxo interregional de água virtual Relativos ao comércio de produtos agrícolas (1997 - 2001) 10,4 15,5 15,8 16,7 49,0 15,1 49,0 18,7 75,8 12,0 19,2 29,0 Figura 3.7 – Balanço hídrico de “água virtual”, ou seja, aquela associada à exportação de produtos agropecuários. Em azul, os países fontes de “água virtual” e em diferentes tons de vermelho, os países que mais importam a “água virtual”. Fonte: Modificado da Box 2.1, Pag. 35, UNESCO/WWDR, 2009 e de Hoekstra & Chapagain, 2008. Unidades em bilhões de metros cúbicos por ano. 27 28 Crise nas Águas • Ricardo M. Pinto- Coelho & Karl Havens Todas essas atividades estão associadas não só a um maior gasto de água mas também a uma grande depreciação da qualidade de água nos efluentes gerados por esses empreendimentos. Acreditamos que está mais do que na hora de rever profundamente essas prioridades da economia brasileira, adotandose no País, de fato, uma visão de progresso econômico atrelado à capacidade de suporte dos recursos hídricos existentes. 3.1 - Água e Energia Uma das mais importantes atividades econômicas da civilização humana refere-se à produção de energia. Necessitamos de energia para quase tudo o que fazemos em nossa vida cotidiana: transporte, saúde, educação, segurança, lazer, produção de alimentos e de bens de consumo. Apesar de sua importância, não estamos muito preocupados em saber o custo ambiental da energia que usamos. Toda forma de energia, usada pelo homem, necessita de volumes consideráveis de água para ser produzida. A Figura 3.8 nos fornece uma ideia desses valores. Consumo de água na produção de energia Figura 3.8 – Consumo de água (renovável e não renovável) nas várias formas industriais de produção de energia (Fonte: IPCC, 2011) Podemos dividir o consumo de água usada na produção de energia em duas grandes categorias: (a) água renovável, (b) água não renovável. Algumas formas de produção de energia usam quase que exclusivamente a primeira modalidade, tal como é o caso da energia hidroelétrica. Já outros casos, como na produção de energia a partir do biogás ou a partir do carvão, a maior parte da energia usada está sob a forma de não renovável. A produção de energia hidroelétrica requer um enorme aporte de água. Inicialmente, temos de considerar que para se produzir 1 Mwh necessitaremos de, pelo menos, 200 m³ de água para mover as turbinas. E essa água não é qualquer água. Ela deve estar represada. A construção e a operação de Crise nas Águas • Ricardo M. Pinto- Coelho & Karl Havens represas hidrelétricas pode ser considerada uma das obras de engenharia que maior impacto ambiental causa, sendo a maioria desses impactos não reversíveis. A água usada nas hidrelétricas sofre substanciais transformações para ser turbinada, a construção de reservatórios, particularmente nas regiões tropicais, também aumenta muito as perdas de água simplesmente por evaporação. Além disso, pesquisas recentes sugerem que os reservatórios tropicais são grandes fontes de gases formadores do efeito estuda e, dentre estes, o metano (Tremblay et al. 2004; Fearnside, 2004; Fearnsinde, 2005_a; Ferrnside, 2005_b, Giles, 2006; Lima et al., 2008;). As modalidades de energia nuclear e energia produzida a partir do carvão, gás natural ou por queima de biomassa também geram importantes gastos de água. Nesses casos, e particularmente no caso da energia térmica derivada do carvão, gás natural e biomassa, volumes consideráveis de água são perdidos. O gasto de água das usinas térmicas irá depender do modelo e da tecnologia de resfriamento (as alternativas em circuitos fechados, abertos ou semiabertos de resfriamento). Dessa forma, os investimentos em produção de energia devem também ser melhor direcionados não só na melhoria da eficiência dessa produção, mas também em menores demandas de uso de água e outros insumos (Fig. 3.8). Muitos países atravessam sérias crises de abastecimento de energia. O Brasil já passou por esse tipo de crise em 1973, quando houve um brusco e inesperado aumento nos preços do petróleo. Outra grande crise energética foi enfrentada pelo País, em 2001 (crise do “apagão elétrico”), quando houve uma ameaça de colapso no sistema nacional de produção de energia elétrica, causado por um período de grande escassez de chuvas associado aos efeitos da corrente do “El Niño”. Na crise do petróleo de 1973, o País não tinha uma produção de combustíveis suficiente para cobrir a demanda interna e também não dispunha de recursos suficientes para importar o petróleo com o novo preço. Foram necessárias algumas décadas de planejamento e altos investimentos em pesquisa e infraestrutura para que o País aprendesse a lição de não ter um planejamento energético a longo prazo. Uma das consequências dessa crise foi a criação do Programa Nacional do Álcool (Proálcool), um programa bem-sucedido de biocombustíveis que veio a ser copiado por vários outros países, anos depois. A crise do “apagão elétrico” de 2001 mostrou a fragilidade da matriz energética brasileira, já que o Brasil dependia muito de um conjunto de usinas hidrelétricas concentradas nas Regiões Sul e Sudeste. As soluções encontradas pelo governo para enfrentar essa questão não foram tão originais como o lançamento do programa de biocombustíveis na década de 70. A principal estratégia encontrada foi a opção por empreender um ambicioso programa de construção de hidrelétricas na Amazônia. Esse programa vem sendo executado a todo vapor mas o preço ambiental associado à construção de grandes usinas no meio da Floresta Amazônica é muito alto. Os impactos ambientais associados à construção de barragens na Amazônia não estão somente no afogamento de matas nativas, nas ameaças de extinção de peixes endêmicos importantes ou no deslocamento de grandes contingentes de populações indígenas. Uma vez que a Amazônia está muito distante dos centros consumidores do sudeste do Brasil, a construção dessas usinas requer a implantação de longas linhas de transmissão; demanda a abertura de novas estradas. Em última análise, a sequência de hidrelétricas na Amazônia implica na implantação de um modelo de intenso desenvolvimento econômico em um ecossistema muito mais frágil do que aqueles do Sul e do Sudeste do Brasil. No caso das usinas situadas ao longo do Rio Madeira (UHE Santo Antônio e UHE de Jirau), existem ainda importantes alterações de vazões a jusante das barragens que têm causado sérios problemas na estabilização das margens desse caudaloso rio. Não podemos deixar de considerar, no entanto, que a disponibilidade adequada de energia é essencial para o bem-estar das populações humanas. A maior parte se não todas as metas MDGs, propostas pela ONU, depende de suficiente aporte energético. Isso, no entanto, não quer dizer que não possamos adotar um planejamento estratégico mais sustentável. O gráfico abaixo (Fig. 3.9) ilustra as diferenças nos gastos de energia quando se adota um planejamento voltado à sustentabilidade, nesse caso, com maior eficiência energética em relação ao mesmo gasto de água. 29 30 Crise nas Águas • Ricardo M. Pinto- Coelho & Karl Havens População, Energia e Consumo de Água Figura 3.9 – Estimativas para o período 2005-2015 de crescimento populacional, consumo de energia e requerimentos de água para a produção dessa energia segundo dois modelos: (a) modelo convencional (CONV); (b) modelo com eficiência energética (EFC) (Fonte: WEC 2010). Em agosto de 2014, o Brasil se viu diante de uma ameaça de racionamento de energia elétrica por causa da seca advinda graças a uma diminuição observada nos totais de chuvas nos anos de 2012 e 2103, ou seja, experimentamos uma repetição da ”crise do apagão de 2001”. O cartograma abaixo (Fig. 3.10) traz o resultado de simulações climáticas feitas pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) (IPCC, 2007) sobre variações esperadas nos totais de chuva nos oceanos e continentes para as próximas décadas. É evidente que, além dos aumentos de temperaturas previstos e já em curso, grande parte do território brasileiro sofrerá (e, na realidade, já vem sofrendo), com as secas que se tornarão cada vez mais frequentes e intensas. Aparentemente, o governo brasileiro não tem levado a sério essas previsões feitas pelo IPCC, já que não vemos grandes mudanças no planejamento estratégico da matriz energética brasileira. Alterações nos totais pluviométricos previstos para (2080 - 2099) Figura 3.10 – Mudanças previstas para aumento (em azul) ou diminuição dos totais pluviométricos previstos para o período 2080 a 2099, em relação ao período 1980 a 1999, segundo modelos climáticos que simulam o aumento das temperaturas e variações de precipitação atmosférica (IPCC, 2007). Crise nas Águas • Ricardo M. Pinto- Coelho & Karl Havens 3.2 - Pesca e Aquicultura A pesca, seja marinha seja continental, não está crescendo para suprir as demandas de consumo mundial de pescado. Desde meados dos anos 90, os totais desembarcados de pescado têm permanecido no mesmo patamar. Enquanto isso, os estoques disponíveis para a pesca comercial têm sofrido um declínio constante (Fig. 3.11). A crescente industrialização da frota pesqueira, os fortes investimentos de muitos governos nacionais no aumento da indústria da pesca mesmo aquela não sustentável (principalmente em alguns países da Ásia) e, ainda, mudanças no clima e na dinâmica dos oceanos podem ser alguns dos fatores que explicam o grande declínio observado nessa atividade em todo o mundo (Pauly et al. 2002). % Milhões de Toneladas 95 95 90 90 85 85 80 80 75 75 70 70 65 65 Pesca 60 Estoque sustentável disponível para pesca 55 50 Figura 3.11 – Evolução dos desembarques pesqueiros em todo o mundo (1970-2011). em contraposição com os estoques sustentáveis disponíveis para a pesca (1970-2009). Valores em toneladas métricas de pescado (Fonte: FAO-UNO, 2010). 60 1970 1975 1980 1985 1990 1995 2000 55 2005 2010 50 Em contraste com a estagnação da pesca mundial, o avanço de novas tecnologias advindas do crescente conhecimento em algumas áreas, particularmente na Zootecnia, Genética e Ecologia, bem como a crescente demanda por peixes e outros animais aquáticos, são alguns dos fatores que explicam o enorme avanço da aquicultura nas últimas décadas. Aquicultura é a produção de organismos de valor econômico com hábitat predominantemente aquático, em cativeiro, em qualquer um de seus estágios de desenvolvimento (Beveridge, 2004; Boyd & Tucker, 1998). Pesca Aquicultura 140 160 40 Fonte: FIGIS 2009 0 Fonte: FIGIS 2009 2000 20 1990 20 60 1980 40 80 1970 60 100 1960 80 Pesca Aquicultura 140 120 1950 100 Milhões de Toneladas 120 2000 1990 1980 1970 1960 0 1950 Milhões de Toneladas 160 Figura 3.12 – Crescimento da atividade aquícola em contraste com a estagnação da pesca comercial em todo o mundo (Outras fontes: FAO/UNO, 2010 e FIGIS, 2009) 31 32 Crise nas Águas • Ricardo M. Pinto- Coelho & Karl Havens A aquicultura depende fundamentalmente da boa saúde ambiental dos ecossistemas nos quais está inserida. É fundamental que seja mantido um equilíbrio entre produção sustentável de peixes ou de outros produtos, desde que seja também preservado todo o conjunto de organismos e de processos essenciais para a integridade dos ecossistemas explorados. Assim, é um pressuposto básico da aquicultura entender que a preservação ambiental é parte do processo produtivo, e os custos dessa preservação devem ser considerados em qualquer plano de negócio de um projeto viável de aquicultura. A aquicultura experimentou, em todo o mundo, um enorme crescimento a partir dos anos 80 (Fig. 3.12; Fig.3.13). Hoje, a China é o maior produtor de pescado de origem aquícola, e sua produção corresponde a 70% da produção mundial. Em segundo lugar, destacam-se os demais países da Ásia, notadamente a Índia. O Brasil ocupa o 2º lugar no ranking na América do Sul, ficando logo atrás do Chile (Crepaldi et al., 2006; Kubitza, 2007). O País possui condições favoráveis para o desenvolvimento da aquicultura, pelas suas condições naturais propícias à atividade, como a grande riqueza e variedade de ecossistemas aquáticos existente, uma elevada riqueza em espécies nativas e heterogeneidade de microclimas. O Brasil está investindo bastante na capacitação de pessoal e vem desenvolvendo pesquisas inovadoras na área. Dentre a elevada riqueza de espécies nativas de peixes, já é sabido que algumas delas possuem alto potencial para a aquicultura. Podemos citar os peixes redondos, tais como o tambaqui e o pacu, e alguns peixes silurídeos, tais como o pintado. Entretanto, essa atividade no País é ainda dominada por espécies exóticas, principalmente a tilápia e a carpa. Para que possamos desenvolver bons modelos zootécnicos com os peixes nativos brasileiros, é preciso investir em estudos com as espécies locais que possibilitem sua plena viabilidade zootécnica e econômica. Um bom exemplo, é o estudo que a UFMG vem fazendo com algumas das espécies com bom potencial para a prática da aquicultura, tais como o pacamã, uma espécie nativa da Bacia do Rio São Francisco (Souza e Silva et al., 2014) ou o cascudo que também ocorre nessa bacia (Luz & Santos, 2010). Aquacultura no mundo (1970-2008) Fig. 3.13 – Evolução da aquicultura no mundo (1970-2008) (FAO-UNO, 2010). A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda o consumo anual de pescado de pelo menos 12 quilos por habitante/ano. O brasileiro ainda consome abaixo disso. Entretanto, houve um crescimento de 6,46 kg para 9,03 kg por habitante/ano entre 2003 e 2009. O Programa “Mais Pesca e Aquicultura”, do Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA), previa o consumo de 9 kg por habitante/ano apenas, em 2011. Portanto, essa meta foi atingida com dois anos de antecedência. Crise nas Águas • Ricardo M. Pinto- Coelho & Karl Havens A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) prevê que até 2030, a demanda internacional de pescado advindo de projetos aquícolas aumente em mais 100 milhões de toneladas por ano. A produção mundial hoje é da ordem de 126 milhões de toneladas, e deverá dobrar em 15 anos. Segundo a FAO, o Brasil poderá tornar-se um dos maiores produtores em aquicultura do mundo, até 2030, ano em que a produção pesqueira nacional teria condições de atingir 20 milhões de toneladas. Entretanto, a produção nacional mostra-se muito acanhada diante da grande demanda que está por vir. Os preços ainda são muito elevados e a população ainda não tem o hábito de consumir produtos de origem aquícola com regularidade. Dentre os principais fatores que impedem o avanço da aquicultura no Brasil pode-se citar a falta de tecnologia apropriada, com o uso frequente de metodologia ainda muito artesanal (Tab. 3.1). Além, disso, faltam empreendedores e linhas de crédito apropriadas. Há uma crônica ausência de técnicos Tabela 3.1 - Fatores positivos e negativos que afetam o desenvolvimento da aquicultura no Brasil. Pontos Positivos 1 Qualidade de produtos 2 Segurança alimentar 3 Possibilidade de produção em áreas tidas como impróprias; 4 Avanço da genética e da zootecnia 5 Existência de políticas públicas Pontos Negativos 1 Alto custo de terras 2 Questões ambientais 3 Custo energético 4 Falta de mão-de-obra capacitada 5 Falta de capital para investimento 6 Falta de visão estratégica empresarial Fica claro que a atenuação ou agravamento da atual crise nas águas que estamos vivendo está na dependência de uma grande mudança dos fundamentos da ordem econômica mundial. Está mais do que na hora da sociedade não só exigir claras mudanças junto aos políticos e formuladores da política econômica, em todos os níveis de governo e junto à comunidade internacional, mas também participar ativamente dessas transformações. A principal mudança deve ser a do alinhamento de toda e qualquer atividade econômica aos fundamentos do desenvolvimento sustentável e uma observância ortodoxa à capacidade de suporte dos ecossistemas. Embora seja fácil de propor, essa mudança irá exigir grandes sacrifícios de todos nós. O prêmio é a garantia de um futuro digno para as próximas gerações. 33