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SABERES E PRÁTICAS DO ENSINO DAS CIÊNCIAS NATURAIS
NO COLÉGIO CULTO À CIÊNCIA DE CAMPINAS
Reginaldo Alberto Meloni
Universidade Estadual de Campinas
RESUMO
Este trabalho integra o projeto de pesquisa Preservação do Patrimônio histórico-educativo das
Escolas Públicas mais antigas da Cidade de Campinas, que se desenvolve na Faculdade de
Educação da Universidade Estadual de Campinas, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Cristina
Menezes, e que tem como objetivo a preservação dos acervos históricos, compostos por
documentos, livros, mobiliário e material pedagógico das instituições. Neste subprojeto objetiva-se
verificar a circulação dos saberes e práticas científicas que estão associados à organização do
gabinete de física e do laboratório de química no colégio Culto à Ciência, a partir, entre outras
iniciativas, da aquisição de artigos por importadoras de materiais europeus, no período
compreendido entre 1873 (ano de fundação da instituição) e o início do século XX. A região de
Campinas, no último quartel do século XIX, foi o centro de um grande desenvolvimento econômico
proporcionado pela expansão do comércio de café. Este fato gerou na província um processo de
modernização identificado pelos historiadores pela chegada da iluminação elétrica, do transporte
ferroviário, do telefone, do cinema, ou seja, com os setores da produção e do lazer. Por outro lado, a
província de Campinas, neste período, era mantida por uma economia essencialmente rural, baseada
ainda no trabalho escravo e na monocultura de café que era realizada de forma extensiva e com
técnicas muito rudimentares. Embora os anos 1870 sejam apontados por historiadores e, inclusive
por alguns dos homens da época, como o momento em que se começa a ter uma maior valorização
da ciência no Brasil, é de se questionar como se deu esse processo nas condições específicas de
Campinas e, particularmente, no colégio Culto à Ciência. Os resultados obtidos até o momento
indicam que nos primeiros anos de existência a instituição não ofereceu nenhuma disciplina voltada
a este ramo do conhecimento. A pesquisa até o momento mostra que é somente a partir de 1898 que
há um movimento no sentido de intensificar o ensino das disciplinas ligadas às ciências naturais,
com a nomeação do primeiro docente para a cadeira que englobava as disciplinas de Química, de
Física e de História Natural – o lente José Pinto de Moura - e com a destinação de verbas para a
constituição do gabinete de física e o laboratório de química. Neste período, houve um esforço da
direção desta instituição escolar no sentido de conseguir apoio de várias instituições científicas
brasileiras, tais como, a Escola de Minas de Ouro Preto, o Laboratório Pharmacêutico do Estado de
São Paulo, a Escola Normal da Capital, o Instituto Agronômico de Campinas e a Comissão
Geográphica e Geológica do Estado, no sentido de conseguir doações de objetos ou produtos
químicos para a escola. Além disso, há indicações de aquisição de muitos materiais para as
disciplinas de Física, Química e História Natural na Europa. A respeito desse material, há uma
grande quantidade de equipamentos na escola que passam neste momento por um processo de
identificação, de verificação da época de aquisição e de comparação aos existentes nos manuais
adotados no mesmo período, no sentido de apontar as possibilidades e formas de uso.
2062
TRABALHO COMPLETO
O Projeto
Este trabalho integra o projeto de pesquisa “Preservação do Patrimônio HistóricoEducativo das Escolas Públicas mais Antigas da Cidade de Campinas, que se desenvolve na
Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, sob a orientação da Profa. Dra.
Maria Cristina Menezes, e que tem como objetivo a preservação dos acervos históricos, compostos
por documentos, livros, mobiliário e material pedagógico das instituições.
Neste subprojeto objetiva-se verificar como se deu a mudança da educação clássicohumanista – mais adequada a uma sociedade baseada no trabalho escravo e que, portanto não
dependia da tecnologia – para uma educação que tinha como meta a valorização das ciências. Para
isso buscar-se-á compreender como se deu a circulação dos saberes e práticas de ensino na área das
ciências naturais que estão associados à organização do gabinete de física, do laboratório de
química e do museu de história natural no colégio Culto à Ciência, a partir, entre outras iniciativas,
da aquisição de artigos por importadoras de materiais europeus, no período compreendido entre
1873 (ano de fundação da instituição) e o início do século XX.
O Contexto
A região de Campinas, nos últimos vinte e cinco anos do século XIX, foi o centro de um
grande desenvolvimento econômico proporcionado pela expansão do comércio de café. Este fato
gerou na província um processo de modernização identificado pelos historiadores pela chegada da
iluminação elétrica, do transporte ferroviário, do telefone, do cinema, ou seja, com os setores da
produção e do lazer.
Por outro lado, a província de Campinas, neste período, era mantida por uma economia
essencialmente rural, baseada ainda no trabalho escravo e na monocultura de café que era realizada
de forma extensiva e com técnicas muito rudimentares. Embora os anos 1870 sejam apontados por
historiadores e, inclusive por alguns dos homens da época, como o momento em que se começa a
ter uma maior valorização da ciência no Brasil, é de se questionar como se deu esse processo nas
condições específicas de Campinas e, particularmente, no colégio Culto à Ciência.
A Instituição
O Colégio Culto à Ciência de Campinas foi fundado oficialmente em 13 de abril de 1873
com forte influência dos positivistas e dos maçons desta região da província1 e em sintonia com os
ideais de progresso e do culto à razão, característicos do século XIX. Reflete parte deste ideal o
discurso proferido por Campos Sales no momento da inauguração deste colégio, em 12 de janeiro
de 1874:
É já muito na verdade quando sentimos que temos sede de instrução. É o
sintoma precursor da saúde moral dos povos. Sim, a sociedade caminha, obedece às
leis do progresso e já agora vê o verdadeiro ponto de partida para os mais altos
destinos no desenvolvimento da razão, na cultura do espírito, esse centro luminoso
1
No início da instituição todo o corpo docente era maçom. Moraes, C. S. V., O Ideário Republicano e a
Educação – o Colégio Culto á Ciência de Campinas, 1869/1892. Campinas, Unicamp, 1982, (Dissertação e
mestrado), p 187.
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onde reside por excelência a distinção suprema que caracterizou o ser humano – a
coroa da criação.2
Até o ano de 1892 a escola funcionou como instituição privada, dirigida pela “Sociedade
Culto à Ciência”. Neste ano a escola fechou suas portas em função dos problemas financeiros e da
epidemia de febre amarela e o colégio só foi reaberto em 1896, já sob o controle do poder público.
Há, portanto, duas grandes fases neste período em que a instituição está sendo analisada:
uma é a que compreende desde sua fundação (1873) e vai até o ano de 1892; a outra, iniciou-se em
1896 e estende-se até o início do século XX. Na primeira a instituição é privada e autônoma para a
definição de sua organização e dos seus objetivos. Na segunda fase, a instituição é pública e
totalmente vinculada às normas estaduais e federais que regiam a educação.
Os resultados obtidos até o momento indicam que nos primeiros anos de existência a
instituição não ofereceu nenhuma disciplina voltada à área das ciências naturais. O currículo, em
1874 era composto por Português, Alemão, Aritmética, Álgebra, Francês, Inglês, Geografia, Latim,
Desenho, Doutrina Cristã, Música e Ginástica.3 A única referência ao ensino das ciências neste
primeiro período é a de que em 1882 houve a montagem de um gabinete de física pelo prof. João
Kopke,4 mas até o momento não foi encontrado nenhum documento que confirme esta afirmação.
Nesta primeira fase da escola era oferecido aos alunos um ensino de caráter humanístico e literário e
não há qualquer menção à existência de aulas de história natural ou outra disciplina relacionada a
esta.5
É somente a partir de 1898 que há um movimento no sentido de intensificar o ensino das
disciplinas ligadas às ciências naturais que se reflete na destinação de verbas para a constituição do
gabinete de física, o laboratório de química e o museu de história natural, a presença constante do
tema nos documentos oficiais e a nomeação de lentes para esta área do conhecimento.
A Equiparação
Nesta nova fase o colégio participa de uma grande mobilização no sentido de dotar as
instituições educacionais paulistas das vantagens que tinha o Gymnasio Nacional (Colégio Pedro II
nos tempos do Império) do Rio de Janeiro. A discussão girou em torno do Regulamento dos
Gymnasios do Estado de São Paulo. Desde 18 de dezembro de 1897 (Decreto 503) já havia uma
regulamentação para estas instituições, mas em agosto de 1900 o debate voltou à tona com a
apresentação de um projeto na Câmara dos Deputados de São Paulo “dispondo sobre os gymnasios
officiaes do Estado, amoldando-os ao Gymnasio Nacional”.
Em função da urgência em se obter a equiparação ao Gymnasio Nacional a aprovação do
projeto foi muito rápida, pois a apresentação se deu em 25 de agosto e a aprovação aconteceu em
apenas cinco dias, ou seja, no dia trinta do mesmo mês. O tempo de tramitação também não se
alongou muito, já que o que se pretendia era estabelecer um regulamento muito semelhante ao da
instituição carioca. Com exceção da questão dos vencimentos dos professores e demais funcionários
das instituições escolares a tramitação transcorreu sem maiores debates. Com isso, em novembro de
2
Discurso de Campos Sales proferido na inauguração do Colégio em 12 de janeiro de 1874.
Paula, C.F.de, Culto à Ciência – colégio, ginásio e colégio estadual, Monografia Histórica, Campinas, 1946,
p 16.
4
Idem, p 21.
5
Moraes, C.S.V., Op.cit., p 277.
3
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1900 as instituições paulistas já possuíam um regulamento que era muito semelhante ao do ginásio
da capital federal.
Para o Colégio Culto à Ciência o decreto de equiparação foi assinado por Campos Sales em
16 de fevereiro de 1901,6 após a instituição ter realizado as adaptações em suas instalações e em seu
currículo de acordo com o que previa o regulamento dos ginásios do Estado de São Paulo e,
conseqüentemente, do Gymnasio Nacional. Algumas das mais significativas adaptações são as que
têm relação com o ensino das ciências naturais.
O Código dos Institutos Officiaes de Ensino Superior e Secundário já previa que para se
conseguir e manter a equiparação era obrigatório para os estabelecimentos “a existência de
laboratórios e gabinetes necessários ao ensino”.7 De acordo com este mesmo código a organização
dos programas de ensino e o estabelecimento das regras para a execução deste programa eram de
competência da Congregação do Gymnasio Nacional e como este estabelecimento de ensino
possuía os espaços necessários ao ensino prático das ciências8, era obrigatório que todas as
instituições equiparadas também o tivessem.
Com isso, o regulamento aprovado para as instituições paulistas procurou ser o mais claro e
objetivo possível quando tratou do ensino das ciências naturais. Em dois artigos são definidos que
“o ensino de Physica e Chimica terá por base repetidas experiências em gabinetes e laboratórios,
acompanhando a exposição e explicação methodica das respectivas teorias” e que “o ensino de
História Natural será completado, sem prejuízo das aulas, com excursões scientificas e visitas a
museus, para conhecimento pratico das exposições que forem feitas”.9
É interessante notar que, embora haja uma preocupação com a equiparação e,
conseqüentemente, em estabelecer um regulamento equivalente ao do Gymnasio Nacional, o
Decreto que regulamenta as instituições paulistas é publicado antes do Código dos Institutos
Oficiais e também antes do regulamento da instituição da capital federal10, indicando que já havia
uma idéia clara neste meio da importância de se adotar métodos mais interativos para o ensino das
ciências.
Embora o Colégio Culto à Ciência tenha retomado suas atividades em 1896, as aulas de
ciências naturais provavelmente só foram ministradas, nesta segunda fase, a partir de 1899, pois em
1897 foram abertas as classes das três primeiras séries, em 1898 foi aberto o quarto ano, em 1899
abriu-se uma turma de quinto ano e somente em 1900 a escola ofereceu o curso completo de seis
anos.11 Pelo regulamento do Gymnasio Nacional as ciências naturais seriam distribuídas da seguinte
forma (Art. 4): no 5º ano, 4 aulas de física e química e 2 aulas de história natural; no 6º ano 3 aulas
de física e química e 5 aulas de história natural. Com isso as aulas destas ciências, no colégio de
Campinas também devem ter sido ministradas no 5° ano (a partir de 1899) e 6° ano (a partir de
1900).
6
Decreto 3928, DOU 17/02/1901.
DOU de 25 de janeiro de 1901, Decreto 3890 de 01 de janeiro de 1901 – Código dos Institutos Officiaes de
Ensino Superior e Secundário.
8
Regulamento para o Gymnásio Nacional, Art. 5° [...] “Haverá em cada estabelecimento um preparador de
Physica, Chimica e um de História Natural.
9
Regulamento dos Gymnasios do Estado de São Paulo aprovado por decreto N. 505, de 18 de dezembro de
1897.
10
O Decreto N. 503 é de 1897, o Código dos Institutos Officiaes e o Regulamento do Gymnasio Nacional são
de 1901.
11
Relatório do delegado fiscal do Governo Antônio Álvares Lobo de 15 de fevereiro de 1901.
7
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Os Professores
O movimento que se estendeu por pelo menos dez anos tem um marco em 02 de fevereiro
de 1898 com a nomeação do primeiro docente para a cadeira que englobava as três disciplinas
ligadas às ciências naturais - Química, Física e História Natural – o lente José Pinto de Moura que
ficou neste cargo até o período em que a escola obteve a equiparação com o Gymnasio Nacional.
Neste momento houve uma divisão nesta área e as disciplinas de química e física compuseram a
cadeira de número 12 e a história natural a cadeira de número 13. Para a cadeira de química e física
foi nomeado o lente Manoel Agostinho Lourenço que ficou no cargo até seu falecimento em 1909 e
para a cadeira de historia natural foi nomeado o lente Antonio Álvaro Muller.12
José Pinto de Moura trabalhou como pesquisador na área de química no Instituto
Agronômico de Campinas nos anos de 1895 e 1896. No ano de 1897 não foi encontrado o registro
de funcionários desta instituição13, mas no início de 1898 ele foi nomeado para a cadeira nove de
química do Culto à Ciência onde permaneceu até início de 1901. Mesmo sendo um dado que carece
maior detalhamento, uma hipótese que deverá ser perseguida é a de que este pesquisador não
possuía formação de professor e por isso não pode continuar na escola após a equiparação, mas
possuía uma formação como pesquisador que era útil à escola no momento em que ela procurava se
capacitar para ensinar as ciências naturais também de forma prática. Sendo assim, está aí uma
interessante indicação de que neste momento houve de fato um esforço neste sentido e não se
restringiu ao papel a preocupação com a prática.
Os Laboratórios
No período em que José Pinto de Moura trabalhou no colégio, várias iniciativas foram
tomadas pela direção desta instituição escolar no sentido de conseguir apoio de outras instituições
científicas brasileiras. Para a disciplina de História Natural foram feitas solicitações de “coleções”
ao Museu do Ipiranga e de “mineraes” à Escola de Minas de Ouro Preto. Ofícios semelhantes,
solicitando “curiosidades naturaes” foram enviados ao Horto-botânico e à Comissão Geográfica e
Geológica do Estado de São Paulo. Além disso, foram solicitados também produtos químicos ao
Laboratório Pharmaceutico do Estado. Ainda não se sabe qual foi a integração do colégio de
Campinas com estas instituições de pesquisa, mas no livro de ofícios há o registro do recebimento
de materiais da Escola Normal da Capital e, em maio de 1902 há o registro de agradecimento do
recebimento da “colleção de Mineraes” da Escola de Minas de Ouro Preto.14
O que chama a atenção e que deve ser melhor explorado é a integração com o Instituto
Agronômico de Campinas. No final do século XIX esta instituição de pesquisa já possuía uma
estrutura bem razoável, tanto do ponto de vista das instalações, laboratórios e áreas de campo para
experimentações, como do ponto de vista de pessoal, com uma equipe de pesquisadores com alguns
anos de casa e com uma produção científica consistente.
Já foi registrado que o professor de ciências naturais do Colégio trabalhou como
pesquisador nesta Instituição Agronômica e há ainda o fato de que as duas instituições estavam a
poucas quadras de distância, em uma província sem muitas opções para a integração intelectual e
profissional de cientistas e professores. Todos estes fatores justificam uma grande aproximação
12
Livro de Actas das Sessões da Congregação do Gymnasio de Campinas de 1896 a 1904.
Meloni, R.A. Ciência e Produção Agrícola – a imperial estação agronômica de Campinas – 1887/1897,
Humanitas, FFLCH-USP, 2004, p 152.
14
Registro de copias de officios dirigidos a diversos (1898 – 1903).
13
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entre estes intelectuais que viveram em Campinas na virada do século XIX. Mas como isto se deu?
Que influências tiveram na formação científica dos jovens? São questões que ainda estão em aberto.
O que foi encontrado até o momento é um oficio do Colégio ao diretor do Instituto
Agronômico, datado de 23 de outubro de 1901, solicitando permissão para “uma excursão
scientifica ao Instituto”, demonstrando mais uma vez o a existência de uma integração das duas
instituições e sugerindo que pelo menos parte do programa das ciências naturais era voltada a uma
abordagem que poderia ser chamada “prática e útil”, no sentido de abordar as questões da ciência
que estivessem mais próximas dos problemas do cotidiano.
Além disso, sabe-se que desde o início deste processo houve por parte do colégio várias
solicitações ao Agronômico. Em julho de 1897 a escola solicitou “para servir ao ensino de physica e
chimica, ceder por empréstimo uma balança granatória e um kilogramma de tubos ocos”. Em agosto
do mesmo ano a escola remete lista de materiais que estão sendo necessitados ao ensino e pede
“ceder por empréstimo aqueles que possam ser dispensados”. Em setembro de 1898 há a
solicitação de água destilada “para o interesse do ensino official”. Estas solicitações sugerem uma
integração entre as duas instituições e a ocorrência de práticas científicas na instituição educacional.
Mas não foi somente de solicitação de doações de materiais que se valeu o Culto à Ciência
para a montagem de seus laboratórios. O Governo Estadual, também decidiu pela destinação de
verba especial para a organização deste espaço acadêmico. Sabe-se que desde abril de 1898 José
Pinto de Moura já havia preparado um orçamento dos materiais necessários ao ensino das ciências
naturais, provavelmente por solicitação do colégio. O que é certo é que este movimento resultou na
formação de um espaço institucional destinado exclusivamente ao ensino destas ciências, pois, no
início de 1901, o delegado fiscal do governo Antônio Álvares lobo, comunicou que
“Em espaço [...] se acham instaladas as aulas especiaes de Chimica e
Physica, Historia Natural e Antropologia.
Nelle se vêem perfeita e utilmente dispostos o laboratório de chimica com
os precisos aprestos, retortas, etc, o gabinete de physica que possue machina
pneumática e elétrica, bem como instrumentos para o ensino de elementos desta
sciência, o museu de historia natural, do naturalista Emilio Deyrolle,
compreendendo colleção de mineraes, do mesmo professor, devidamente
classificados”.15
E mais, este movimento não se conteve com este primeiro resultado. Em março de 1902, o
Delegado Fiscal Federal informavou em seu relatório que,
“O Gymnasio de Campinas, a vista das muitas aquisições [...] por ordem do
governo do estado, fez construir um novo edifício destinado a nelle instalarem-se os
apparelhos recém chegados para o laboratório”.16
A construção desta nova instalação parece que se desenvolveu de forma rápida, pois há, a
partir da documentação levantada a impressão de que este é um assunto que obteve uma certa
prioridade, tanto por parte do poder público, como por parte do colégio. Em ofício de julho de 1902
do diretor do colégio ao Secretário de estado dos Negócios do Interior, houve a comunicação de que
15
16
Relatório do delegado fiscal do Governo Antonio Alvares Lobo de 15 de fevereiro de 1901.
Idem de 31 de março de 1902.
2067
“[...] só agora depois de aquisição de armários próprios para o respectivo
acondicionamento é que ordenei a abertura dos caixões contendo apparelhos de
physica e chimica destinados a este estabelecimento”.17
E logo em seguida, em outubro de 1902, Antonio Álvares Lobo informou que
“Já se acha instalado em novo edifício annexo ao Gymnasio o gabinete de
Physica, assim como o laboratório de Chimica. Com essa nova construção os alunos
recebem de fato ensino pratico quer de chimica, quer de physica ou história
natural”.18
A partir deste momento, este tema saiu da pauta dos relatórios do delegado fiscal por cerca
de quatro anos. Neste período já existia uma boa estrutura para o ensino das ciências naturais. No
laboratório de química havia “32 balões, 22 funis, 18 provetas, 12 erlenmeyers, 15 copos para
experiências, 7 buretas graduadas, 51 vidros de 250cc, 6 vasos de vidro para gases”19 além de vários
outros aparelhos que estão em menor número. Havia também grande quantidade de produtos
químicos. O Museu de História Natural contava com cerca de 235 amostras de minerais, 204
amostras de fosseis, 223 amostras de peixes, batrachios, répteis, aves, mamíferos, crustáceos,
moluscos, aracnídeos, insetos e vermes. Além dessas amostras, na parte de zoologia havia cerca de
33 peças do Museu Schluter e 51 peças do Museu Deyrolle. O Gabinete de física contava com
aproximadamente 57 aparelhos para o ensino deste ramo da ciência.20
Sem dúvida neste momento a instituição já possuía um importante acervo nesta área. Para
os padrões atuais, pode-se dizer que era uma escola bem equipada. Mesmo sem ter informações de
outros estabelecimentos de ensino, é muito provável que este material fosse suficiente para colocar
o colégio entre os mais equipados do Estado de São Paulo. Sendo assim, pode-se dizer que a
organização desta estrutura representava uma grande atenção do poder público para este tema e a
existência de uma política de transformação da educação no sentido da valorização das ciências da
natureza. Uma indicação desta preocupação é que, apesar do que já havia sido realizado, no
Relatório de julho de 1906, o delegado fiscal do governo volta ao tema com novas preocupações e
novas reivindicações.
“O Gymnasio de Campinas tem uma sala vastíssima, onde os lentes de
Physica e Chimica e de Historia Natural dão as suas aulas, tendo ella portas de
entrada nas extremidades e janelas nas duas faces lateraes”.21
No entanto, estas instalações não estavam adequadas aos novos tempos que não permitiam
que, ao menos na área das ciências naturais, não se fizesse um investimento contínuo, pois segundo
o delegado
“Os aparelhos que os laboratórios “possuem, hoje, são os que existiam há
5 anos atraz; entretanto penso que devem ser aumentados para melhor compreensão
por parte dos alunos, dessas disciplinas” [...] “ O Gabinete não tem, porem,
condições de espaço que permittam as experiências e as demonstrações
17
Registro de Copias e Officios Dirigidos à Diversos – Ofício de 20 de julho de 1902.
Relatório do delegado fiscal do Governo Antonio Alvares Lobo de 8 de outubro de 1902.
19
Relação dos Aparelhos e Productos Chimicos existentes no Laboratório. Este livro foi organizado pelo
preparador Eugenio Bulcão em 16 de março de 1899.
20
Idem. Este levantamento foi realizado em 21 de setembro de 1905.
21
Relatório do Delegado Fiscal do Governo Federal de 18 de julho de 1906.
18
2068
indispensáveis sem algum incomodo ou perigo para os assistentes de taes
trabalhos”.22
Com isso, o laboratório recebeu novos investimentos para responder às demandas que
estavam sendo colocadas. No início de 1908 já consta que
“O Gabinete de Physica foi augmentado e o Laboratório egualmente. As
coleções para o estudo das sciencias naturaes receberam exemplares de valor vindos
da Europa e adquiridos em outros Estados da União. A sala onde se dão as aulas
dessas disciplinas já mostram outro aspecto pelo augmento dessas coleções e dos
apparelhos de estudo.
“Sem embargo disso a Diretoria do Gymnasio se esforça por adquirir maior
dotação orçamentária para o Gymnasio afim de poder expandir estudos práticos, as
experimentações e as provas que precisam fazer os alunos juntamente com seus
professores”.23
O que transparece a partir dos ofícios emitidos pela escola e pelos relatórios produzidos
pelo delegado fiscal do governo junto ao Gymnasio de Campinas é que nenhum outro assunto e
nenhuma outra área do conhecimento teve mais atenção do que a organização da área das ciências
naturais, no final do século XIX e início do século XX. É certo que disciplinas ligadas ao
conhecimento humanístico já tinham uma larga tradição, enquanto que as o ensino de ciências
teórico e, principalmente, prático, era algo, no mínimo novo. Já foi dito que o currículo desta escola,
em 1874, continha quatro línguas estrangeiras, além da língua portuguesa e nenhuma disciplina de
ciências naturais. Mas isso por si só justifica tanta atenção a esta área do conhecimento? O que está
em relação com este processo?
Um dos caminhos que pode ajudar a responder estas perguntas é tentar compreender o que
se pensava que poderia significar o domínio da natureza para o jovem estudante e para a sociedade.
Respostas para questões como: qual era a visão de ciência que era trabalhada na escola? e quais
métodos e quais práticas foram realizadas, no ensino secundário, nesta área do conhecimento, neste
início de século? podem ajudar a compreender melhor o conteúdo social deste processo de
transformação na educação.
As Aulas
A organização deste espaço institucional e a seqüência de solicitações de materiais
permanentes e alguns materiais de consumo, como água destilada ao Instituto Agronômico e
produtos químicos ao Laboratório Pharmaceutico do Estado, indicam que o ensino das ciências
estava sendo ministrado também de forma prática no Colégio de Campinas desde o final do século
XIX. Mas de que forma isto estava se dando?
Já foi visto que um método utilizado é o da observação direta de materiais extraídos da
natureza e animais em conserva. O próprio regulamento das instituições de ensino já previa a
obrigatoriedade de complementar as aulas com visitas a museus e excursões científicas, o que pode
ser constatado com pelo menos uma solicitação, feita pelo colégio, para uma visita ao Instituto
Agronômico de Campinas.
22
23
Idem, ibidem.
Relatório do Delegado Fiscal do Governo Federal de 24 de fevereiro de1908.
2069
Porém não está descartada a possibilidade de fosse utilizado como método de ensino a
realização de alguns experimentos diretamente pelos alunos. Entre as ciências, a química é a que
possui maior facilidade para que o aluno possa realizar algo de prático, pois neste ramo da ciência,
mesmo considerando que há o manejo de produtos que envolvem algum perigo, como ácidos,
álcalis e mesmo o fogo ou as vidrarias, algumas práticas poderiam ser realizadas sem maiores
dificuldades pelos alunos.
Uma das indicações desta possibilidade é a de que existia no laboratório de química grande
quantidade de materiais sendo que alguns tipos de vidros tinham em número suficiente para que
várias pessoas pudessem realizar experiências simultaneamente. No levantamento realizado pelo
preparador de laboratório – Eugênio Bulcão -, foi constatado que em 1899 havia 22 funis, 32 balões
e 51 vidros de 250cc.24 Ou seja, é perfeitamente possível que algumas análises simples ou reações
químicas pudessem ser praticadas pelos próprios estudantes. Esta é ainda uma questão que continua
sem resposta, mas de muito interesse para o conhecimento de como se deu a prática de ensino das
ciências naturais neste período.
Um primeiro passo para encontrar uma resposta a esta questão é investigar quais foram os
manuais adotados pelo Colégio e qual a linha de desenvolvimento dos conceitos que seguiam os
manuais. Em princípios de 1901 o prof. Manoel Agostinho Lourenço propõe para a 12ª cadeira os
seguintes manuais: Physique, de G. Langlebert e Traité Elementaire de Chimie, por R. Engel; e o
prof. Antonio Álvaro Muller indica os seguintes manuais: Philosophie, Essai de Psychologie
Generale, Precis de Mineralogia, Zoologia de Remis, Botânica de Desplat, Abregé de Geologia,
Memoire de Anthropologia de Girard.
A respeito das opções feitas pelos lentes observa-se a forte influência francesa e o fato de
que para a cadeira de história natural25 são adotados vários manuais, abrangendo várias áreas do
conhecimento. Outro dado importante é que, como o Culto à Ciência estava em processo de
equiparação ao Gymnasio Nacional, o programa de ensino da escola de Campinas devia ser igual ao
da instituição da capital federal.26
Analisando o Catálogo Geral das Obras da Biblioteca da escola, verificou-se que até 1909
não havia nenhum dos manuais indicados pelos lentes. Em 1898 há o registro de dois livros de
química no catálogo: Chimica de Langlebert e Chimica Inorganica de Grimaud (ou Grimaud); em
1902 há outros dois títulos: Chimica Orgânica de Grimaux e Chimica de Joly e em 1907 há o
registro do título Chimica Biologica de R. Engel.27 Assim, há uma dúvida sobre qual o manual que
foi efetivamente adotado. O livro de química de R. Engel não só não está no catálogo e na
biblioteca do Culto à Ciência, como também não foi encontrado nos fichários da biblioteca histórica
do Colégio Pedro II. Portanto, é necessário verificar, inclusive, se este autor escreveu algum livro
com este título. Por outro lado, o manual Physique de Langlebert, mesmo não constando no
catálogo, existe na biblioteca da escola até os dias de hoje.
24
Levantamento realizado em 16 de março de 1899.
Na ata da Congregação não há referência sobre a cadeira que está adotando estes manuais. Supõe-se que
seja de história natural.
26
DOU de 25 de janeiro de 1901, Decreto 3890 de 01 de janeiro de 1901, Código dos Institutos Officiaes do
ensino superior e Secundário. Sobre a organização das escolas equiparadas diz o Art. 382, ítem II: “A
organização dos programas de ensino é de exclusiva competência da congregação do Gymnasio Nacional” .
27
Catálogo Geral das Obras da Biblioteca.
25
2070
Analisando a obra Chimie de Langlebert28 verificou-se que ela apresenta nos primeiros três
capítulos algumas noções de química geral, como por exemplo: cristalização, nomenclatura e teoria
atômica. Após esta introdução, por vinte e cinco capítulos, a obra é dedicada a descrever elementos
e substâncias químicas inorgânicas. Neste caso, os experimentos são usados de forma demonstrativa
das propriedades que foram descritas ou são descritos para demonstrar o procedimento de preparo
destas substâncias.
.
Uma primeira hipótese é que, embora a descrição do experimento (muitas vezes com
ilustrações) possa ser uma forma de estimular os sentidos, não se procurava incentivar no aluno a
curiosidade e o estímulo pela investigação, pelo contrário, a transmissão de conteúdos prontos
pressupunha um aluno passivo diante dos fenômenos apresentados pelo mestre. Outra possibilidade
de investigação é a de que muitas destas experiências foram realizadas nos cursos secundários e,
especialmente no colégio Culto à Ciência, pelos próprios alunos, já que várias delas utilizam um
material relativamente simples e que estava disponível nos laboratórios do colégio. A elucidação
deste fato pode ser de muita utilidade para a compreensão da visão de ciência que se tinha e que se
tentava transmitir, neste período.
Em uma segunda parte da obra são descritas as características e as propriedades das
substâncias orgânicas e nesta parte da obra faz-se pouquíssimo uso do recurso da experiência. No
final da obra, em uma seção que ocupa menos de 10% do total do livro são tratadas as “Noções de
Análise Química” com as quais pretendia-se que o aluno pudesse identificar elementos e
substâncias químicas. Neste tópico pode-se imaginar que os alunos fizessem as análises, pois a
maioria delas é feita a partir de reações químicas produzidas de forma simples, com a mistura de
uma ou mais substâncias. Neste ponto do livro, há uma introdução à tabela analítica dos principais
sais minerais, que sugere a importância que se dava ao método de ensino que usava como recurso a
observação direta de objetos e a investigação dos fenômenos:
“Rien ne vaut, pour la mémoire, l’enseignement par la vue. Tout ce qu’on
voit s’y grave beaucoup plus vite et plus profondément que ce qu’on apprend par la
lecture ou par la parole. [...]”29
No entanto, em quase todo o livro o método usado foi o da descrição e não o da
investigação. Mesmo considerando que na última parte do livro possa haver alguma possibilidade
de realização de experimentos investigativos, pode-se afirmar que a maior parte do conteúdo deste
manual é tratada pela descrição. Ainda que este ponto mereça uma investigação mais apurada, é
bem possível que, com este método, o que mais se exigia do aluno era o desenvolvimento da
memória.
Finalmente, no caso da física, em quase todos os casos há um único exemplar de cada
aparelho. A hipótese de que as aulas eram preparadas a partir da exposição de conceitos e de
algumas demonstrações práticas é a mais plausível. Com isso, é quase certo que os aparelhos eram
usados para demonstrações de um determinado fenômeno já explicado teoricamente. Outro dado
que leva a esta conclusão é o fato de que a maioria dos aparelhos não possuem um funcionamento
trivial, sendo necessário algum conhecimento técnico para sua manipulação. Portanto, dificilmente
poderiam ser realizadas diretamente pelos estudantes. O mais provável é que essas experiências
fossem preparadas com antecedência para a demonstração prática da teoria já ministrada.
28
Mesmo não sendo indicada nas atas da Congregação, esta obra consta dos registros da biblioteca desde o
início desta nova fase da instituição.
29
Langlebert, J., Chimie, Delalain Frères, Paris, 1900, p 615.
2071
A respeito desse material, há uma grande quantidade de equipamentos na escola que passa
neste momento por um processo de identificação, de verificação da época de aquisição e de
comparação aos existentes nos manuais adotados no mesmo período, no sentido de apontar as
possibilidades e formas de uso.
BIBLIOGRAFIA
Meloni, R.A. Ciência e Produção Agrícola – a imperial estação agronômica de Campinas –
1887/1897, Humanitas, FFLCH-USP, 2004;
Moraes, C. S. V., O Ideário Republicano e a Educação – o Colégio Culto á Ciência de Campinas,
1869/1892. Campinas, Unicamp, 1982, (Dissertação de Mestrado);
Paula, C.F.de, Culto à Ciência – colégio, ginásio e colégio estadual, Monografia Histórica,
Campinas, 1946;
DOCUMENTOS
Catálogo Geral das Obras da Biblioteca;
Discurso de Campos Sales proferido na inauguração do Colégio em 12 de janeiro de 1874.
DOU 17/02/1901, 25/01/1901;
Livro de Actas das Sessões da Congregação do Gymnasio de Campinas de 1896 a 1904;
Registro de Copias de Officios Dirigidos à Diversos (1898 a 1903);
Regulamento dos Gymnasios do Estado de São Paulo, Decreto N. 503, de 18 de dezembro de 1897;
Relação dos Aparelhos e Productos Chimicos existentes no Laboratório (a partir de 1899);
Relatórios do Delegado Fiscal do Governo Antônio Álvares Lobo de 15/02/1901, 08/10/1902,
18/07/1906, 24/02/1908.
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