A História da Ciência na formação de professores de Ciências Naturais: reflexões acerca de uma abordagem ontológica materialista marxiana. Alceu Júnior Paz da Silva [email protected] Luiz Carlos Nascimento da Rosa [email protected] A incorporação da História da Ciência como elemento fundante da compreensão da natureza da Ciência e de seus processos vem sendo notadamente adotada pelos cursos de Licenciaturas das Ciências Naturais em acordo com as Diretrizes Nacionais para os Cursos de Formação de Professores de 2002. Essa abordagem histórica pressupõe mostrar a Ciência como atividade humana, mas o que determina e quais são os aspectos necessários para apreendermos esse caráter humano ao longo da História? Como superar as limitações internalistas da epistemologia historicista sem cair nas armadilhas sedutoras e vazias de uma epistemologia irracionalista pósmoderna? Para isso, utilizamos como suporte teórico-filosófico as investigações de Rosa em O trabalho, a Ciência e a formação do ser social (2008) no intuito de trazer para a historicização da Ciência as contribuições de uma ontologia materialista de base marxiana. Pedagogicamente, as problematizações acerca da categoria Trabalho e suas implicações na gênese e no desenvolvimento da Ciência partiram de fragmentos fílmicos das obras 2001: uma odisséia no espaço (Stanley Kubric) e de A guerra do fogo (Jean-Jacques Annaud) e foram acompanhadas por meio de um diário de bordo de pesquisa na disciplina Introdução às Ciências Naturais e Matemática do curso de Licenciatura em Ciências Naturais e Matemática da UFMT/Sinop. Com isso, acreditamos que uma reflexão ontológica materialista pode ser promissora na intenção de localizar o papel da Ciência, e de seus produtos e processos epistêmicos, no plano real-concreto das necessidades e contradições típicas da sua relação dialética com o devir das formações sociais. Palavras-chave: Ontologia materialista, História da Ciência, Formação de Professores. The History of Science in educators’ upbringing: reflections about a materialist ontological approach of Marxian basis. The incorporation of History of the Science as an important element to comprehend the nature of science and its process are being adopted by Natural Science’s graduation courses according to National Curriculums Guidelines to Educator’s Upbringing of 2002. This historical approach presupposes to show the science as a human activity. But what does determine and which aspects are necessary to understand this human character along the History? How to overcome the historicist epistemology’s internalist limitations without falling in empty and seductive traps of post-modern irrationalist epistemology? For that purpose, we adopted ROSA’s investigations in The work, the Science and the social being’s formation as methodological and theoretical tools to bring to the historical process the materialist ontology of Marxian’ basis. Pedagogically, the problematizations about Work category and its implications in science’s genesis and development was started with filmic fragments from 2001: a space odyssey (Stanley Kubric) and Quest for fire (Jean-Jacques Annaud) and was being accompanied by research’s diary in Introduction to natural sciences and mathematic, discipline of educators upbringing’s course in natural sciences and mathematic at Federal University of Mato Grosso. We concluded that is promising to explore the materialist ontological reflection as a mediator element to identify the relevant science’s role, its products and epistemic process, in concrete-real frame of typical needs and contradictions of its dialectic relationships with social formations’ becoming. Key-words: Materialist Ontology, History of Science, educators’ upbringing O contexto do surgimento da investigação O curso de Licenciatura em Ciências Naturais e Matemática da Universidade Federal de Mato Grosso, no Campus Universitário de Sinop, possui uma componente disciplinar intitulada Introdução às Ciências Naturais e Matemática destinada às atividades pedagógicas referentes ao estudo da História das Ciências. Situada no primeiro semestre acadêmico, esta atividade procura trazer e discutir o processo histórico de construção dos conhecimentos em Ciências Naturais de modo a corroborar as Diretrizes Nacionais Curriculares para os cursos de Formação de Professores para Educação Básica de 2002, onde ressalta que para se constituir a autonomia docente dos futuros professores é necessário “que eles saibam como são produzidos os conhecimentos que ensinam, isto é, que tenham noções básicas dos contextos e dos métodos de investigação usados pelas diferentes ciências, para que não se tornem meros repassadores de informações (Brasil, 2002, p.28)”. Referenciado, também, pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Química Licenciatura, Parecer CNE/CES 1.303/2001, ganha ênfase a assunção da História do fazer Ciência como principio formativo essencial, pois o futuro profissional deve ter “uma visão crítica com relação ao papel social da Ciência e à sua natureza epistemológica, compreendendo o processo histórico-social de sua construção (Brasil, 2001, p. 06)”. Dessa forma, localizamos o problema emergido a partir do momento teórico-curricular de se pensar no que ensinar? O universo de fatos e idéias na História da Ciência é sempre maior do que a atividade prática pode abarcar, ocorrendo sempre uma seleção de conhecimentos (conteúdo) situados numa organização pedagógica determinada (forma). Na busca por critérios norteadores, retomamos as expressões “visão crítica” e “processo histórico-social de sua construção”. No que tange a uma visão crítica em relação ao devir da Ciência, Hostins (2006) nos alerta acerca do quase esvaziamento, ou a inconstância temporal, dos eixos teóricos Filosofia e Ciência nos Programas de Pós-Graduação em Educação no Brasil. A redução “drástica” na relevância dada ao estudo dos problemas filosóficos inerentes à Ciência intensifica a discussão centrada sobre as “crises” da modernidade, da razão, da verdade, do sujeito e da objetividade do real. Na perspectiva Pós-Moderna o conhecimento perde sua ligação com qualquer dimensão objetiva, instituindo-se como discurso em si, produzido e relativizado intersubjetivamente. Com isso, a própria História (ou o seu fim!), ao se reduzir a uma coleção de narrativas, perde sua potencialidade enquanto meio de desvelar, criticamente, os processos passados e vislumbrar o seu dimensionamento futuro. Na contracorrente desse movimento, tomamos o seguinte problema investigativo: Como uma abordagem ontológica materialista de base marxiana pode contribuir para a constituição de uma disciplina curricular de História da Ciência? Em que medida esse aporte filosófico pode corroborar para o entendimento crítico do desenvolvimento da Ciência, de seus produtos e processos, ao longo da História? Para isso, utilizamos as reflexões de Rosa (2008 e 2003) acerca das relações entre Trabalho, Ciência e Formação do Ser Social como instrumento teórico de investigação dos fundamentos e de estratégias de abordagem pedagógica que propiciassem uma leitura crítica em relação à História da Ciência num curso de formação de professores de Ciências Naturais. Aliados a um Diário de Bordo procuramos com ele sistematizar as reflexões sobre nossa atuação em sala de aula, as quais foram divididas de acordo com os modos de produção no intuito de privilegiar o contexto social sobre o qual determinados conhecimentos foram produzidos, uma vez que o primeiro semestre acadêmico inviabilizava uma abordagem demasiada internalista baseada na intensa ênfase nos seus aspectos lógico-matemáticos. Um retorno à gênese: o trabalho como forma original da atividade científica Há muitas centenas de milhares de anos, numa época, ainda não estabelecida em definitivo... uma raça de macacos antropomorfos extraordinariamente desenvolvida. Darwin nos deu uma descrição aproximada desses nossos antepassados. Eram totalmente cobertos de pelo, tinham barba, orelhas pontiagudas, viviam nas árvores e formavam manadas. É de supor que, como conseqüência direta de seu gênero de vida, devido ao qual as mãos, ao trepar, tinham que desempenhar funções distintas das dos pés, esses macacos foram se acostumando a prescindir de suas mãos ao caminhar pelo chão e começaram a adotar cada vez mais uma posição erecta. Foi o passo decisivo para a transição do macaco ao homem... Em geral, podemos ainda hoje observar entre os macacos todas as formas de transição entre a marcha a quatro patas e a marcha em posição erecta. Mas para nenhum deles a posição erecta vai além de um recurso circunstancial. E posto que a posição erecta havia de ser para os nossos peludos antepassados primeiro uma norma, e logo uma necessidade, dai se depreende que naquele período as mãos tinham que executar funções cada vez mais variadas. ...enquanto trepavam, as mãos eram utilizadas de maneira diferente que os pés. ...Antes de a primeira lasca de sílex ter sido transformada em machado pela mão do homem, deve ter sido transcorrido um período, e tempo tão largo que, em comparação com ele, o período histórico por nós conhecido torna-se insignificante. Mas havia sido dado o passo decisivo: a mão era livre e podia agora adquirir cada vez mais destreza e habilidade; e essa maior flexibilidade adquirida transmitia-se por herança e aumentava de geração em geração (Engels, 2001, p. 02-05). A transformação da primeira lasca de pedra em machado enunciada por Engels revela o trabalho como o marco divisor da passagem do macaco ao homem. Para recorrer ao salto ontológico original utilizamos como estratégia um fragmento fílmico de 2001: uma odisséia no espaço (de Stanley Kubric), de modo a não identificá-lo deterministicamente, mas, por se tratar de uma produção estética, refletindo acerca de seus elementos cênicos, uma vez que o “salto, no entanto, permanece um salto e, em última análise, só pode ser esclarecido conceptualmente através do experimento ideal... (Lukács, s.d., p. 02)”. Para isso, localizamos o questionamento inicial acerca da descontinuidade fílmica a qual passa de um ambiente primitivo a uma realidade composta pelo domínio tecnológico espacial, com suas naves e estações espaciais. Daí, a pergunta (Fig. 1): o que existe em comum nessas duas realidades? Como e o que permitiu esse salto histórico? ? Figura 1. O colossal salto histórico Nesse momento a principal idéia surgida foi a de evolução. Embora, não tivéssemos abordado conceitualmente o termo evolução, localizamos questões do tipo o que é evolução? O que significa para você evolução? O que é preciso fazer para evoluir? Estas questões direcionaram p/ a questão central da ontologia. Se evolução é adaptação, história é transformação. O animal de adapta! O homem transforma! Clarear a idéia de evolução de modo que não pressuponha a história como acúmulo de conhecimentos, mas saltos qualitativos, rupturas e contradições (Diário de Bordo, 05/03/2009, p. 02 – os erros gramaticais do texto original serão preservados). Ainda nesse contexto um aluno mencionou a perspectivas criacionista como modelo explicativo para a origem do homem. Ainda, acrescentou que cientistas renomados estavam trabalhando em projetos que visavam comprovar tais teorias. Dessa forma, o fato em questão [...] me fez adiantar aspectos da atividade cientifica que tentaria desenvolver durante o curso, como a provisoriedade das verdades científicas. A armadilha que me ocorreu na hora era o paradoxo: se humanos cientistas descobrissem a ordem natural divina, a chave para todas as questões naturais, o que restaria a Ciência a fazer? Seria o fim da Ciência? Em termos ideológicos quais as conseqüências concretas dessa ‘comprovação’? O que mudaria na nossa relação com a natureza? O que está posto na naturalidade do mundo está para além da condição humana? Não se pode transformá-la? Enfim, a aceitação democrática das opiniões contrárias foi válida, entretanto, nas entrelinhas da prática pedagógica no curso elas serão retomadas (Diário de Bordo, 05/03/2009, p. 02-03). As discussões surgidas criaram a expectativa sobre o desfecho das questões na medida em que passamos a procurar no próprio filme elementos que mediassem à construção de conceitos e processos ontológicos, retornado a ele por meio de slides previamente selecionados. Figura 2. Do osso ao instrumento Atentos ao momento onde o osso é tomado pelo primata, e inicia a golpeá-lo sobre os demais ossos espalhados no chão (Fig. 2), pergunta-se o que o macaco possui nas mãos? As respostas rapidamente evidenciaram que era um dos ossos (a tíbia), como mais um osso entre os demais. A cena segue e notamos uma anta tombando e o hominídeo já com pedaços de sua carne (Fig. 3). Recorremos à questão anterior: o que ele possuía nas mãos? ... silêncio momentâneo. O que o possibilitou, de certa forma, aumentar a força empregada para além da que dispunha usando as mãos? Agora, rapidamente, surgiram palavras como: bastão e tacape já presentes no imaginário do “homem nas cavernas”. Novamente a recorrência: afinal é um osso ou é um tacape? Figura 3. O osso-tacape de caça Uma nova seqüência foi evidenciada (Fig. 4): o que eles possuem e estão fazendo em comum? Da observação do slide veio a firme resposta: eles estão comendo e todos possuem um osso perto deles, no chão! Novamente, foi posta a indagação: osso ou tacape? E como todos adquiriram esse instrumento? As respostas se basearam no tipo: “o primeiro foi ensinando aos outros... um foi passando a técnica que descobriu (Diário de Bordo, 05/03/2009, p. 03)”. Em seguida, o grupo que havia sido expulso da fonte de água volta ao local e um conflito se inicia (Fig. 5). Realizamos a questão: Agora o que ele tem em mão? A atenção dada acerca de um “direcionamento” das respostas, por meio da utilização do termo “agora”, fez com que buscassem respostas alternativas a um “mero osso”, fato que impulsionou respostas do tipo: “ele possui um tipo de tacape como uma arma para atacar... ele está usando agora como arma (Diário de Bordo, 05/03/2009, p. 03-04)”. Figura 4. Caça e socialização Dessa forma pensamos ter, pelo menos, criado o ambiente para a abordagem dos elementos ontológico-materialistas. Recorrendo aos exemplos, evidenciamos, inicialmente, os aspectos do salto ontológico, no sentido de que ele [...] implica uma mudança qualitativa e estrutural do ser, onde a fase inicial certamente contém em si determinadas premissas e possibilidades das fases sucessivas e superiores, mas estas não podem desenvolver-se a partir daquela numa simples e retilínea continuidade. A essência do salto é constituída por esta ruptura com a continuidade normal do desenvolvimento e não pelo nascimento, de forma imediata ou gradual, no tempo, da nova forma de ser (Lukács, s.d., p. 03). Figura 5. O tacape-arma Os ossos encontrados no chão e aquele “osso-arma” presente em suas mãos, implicavam num “significado relativo ao uso”, localizamos aí a ruptura como o processo de trabalho, e seus elementos constituintes. O osso de uma condição natural passa pela ação do trabalho a constituir-se como um objeto radicalmente novo, sendo que “a escolha da pedra [osso] como instrumento é um ato de consciência que não tem mais caráter biológico. [...] [M]ediante o reflexo e a sua elaboração na consciência, devem ser identificadas certas propriedades da pedra [do osso] que a tornam adequada ou inadequada para a atividade pretendida (Lukács, s.d., p. 16)”. Mesmo que o animal possa se tornar complexo, ao se desenvolver sobre a base bio-fisicoquímica, se mantém atrelado à sua auto-reprodução dentro dos limites impostos pelo ambiente. Embora não se elimine o pressuposto da necessidade orgânica para a formação do ser humano, o trabalho vai implicar numa relação indireta entre o ser e a objetividade do mundo, na medida em que faz surgir o Sujeito e o Objeto, provocando um distanciamento e uma relação mediatizada entre ambos, a base definidora da existência do humano. Essa nova relação, ao contrário das interações entre animal e ambiente, se constitui de forma mediada (Sujeito-Ferramenta-Objeto), onde os instrumentos possibilitam a formação de uma ação consciente para com a natureza, transformando-a e, nesse processo, transformando a própria natureza humana. Mas, em que consiste o trabalho? A criação de instrumentos não-existentes na naturalidade do mundo, como o tacape e arma-osso, pressupõe uma “posição teleológica”, isto é, que os fins necessários para uma determinada ação prática já existam previamente na consciência. O osso humanizado é tacape e sua utilização como arma já existia em pensamento, em possibilidade, para logo servir na caça maximizando e produzindo uma força motriz que não se dispunha, mas o osso deixado no chão é apenas osso, ficando sujeito as intempéries do clima, animais, etc. Dessa forma, o osso-arma passa a fazer parte de uma realidade não natural, mas humana. No dizer de Lukács, [s]omente no trabalho, quando põe os fins e os meios de sua realização, com um ato dirigido por ela mesma, com a posição teleológica, a consciência ultrapassa a simples adaptação ao ambiente - o que é comum também àquelas atividades dos animais que transformam objetivamente a natureza de modo involuntário - e executa na própria natureza modificações que, para os animais, seriam impossíveis e até mesmo inconcebíveis (Lukács, s.d., p. 12)”. Esse pôr teleológico implica na formação consciente de escolhas, pois, da variedade dos ossos (ou pedras) dispostos no ambiente, o homem primitivo escolhe a que serviria melhor aos seus fins a partir de variadas alternativas. O osso, na sua inorganicidade, não estava diretamente posto como instrumento-arma, sendo que naquele osso escolhido mediante “a observação e a experiência, isto é, mediante o reflexo e a sua elaboração na consciência”, puderam “ser identificadas certas propriedades” que o tornou “adequad[o] ou inadequad[o] para a atividade pretendida (Lukács, s.d., 15-16)”. Junto à capacidade de escolha, evidenciamos a necessidade, a qual difere de uma “necessidade animal”, uma vez que está localizada-determinada num estado futuro, isto é, nos fins estabelecidos previamente pela consciência, no pôr teleológico. É na especificidade da caça primitiva que a necessidade de superar os obstáculos promovidos pela resistência e a agilidade de determinados animais, que a divisão social do trabalho vai realizar, por meio da cooperação, um salto decisivo na constituição do ser social. Na esteira das investigações de Rosa (2003, p. 99-100) acerca da ontologia materialista vygotskiana vislumbramos o que Lukács denominou de “unitariedade finalística na preparação e na execução do trabalho (Lukács, 1968, p. 10)”. A superação coletiva dos obstáculos no processo de caça de animais maiores dividiu o trabalho em funções executora e diretiva, pressupondo a criação, o planejamento das etapas e da organização da ação permeadas pela assunção de determinadas alternativas, efetivação de escolhas, fato que, remetendo à reflexão, torna-se ato consciente. Mas a dinâmica de cooperação na caça, tendo um fim unitário, cria a necessidade de comunicação entre os sujeitos, na medida em que uma necessidade de interação se intensifica. Processo que, de um lado, implicarão na formação da linguagem e, no outro, as relações sociais, a perspectiva de sociedade. No que tange à linguagem, o salto ontológico necessário à formação do ser social irá produzir uma segunda forma de “construir ferramentas” que medeiem a relação entre o ser e o mundo. Se os instrumentos criados pelo ser social têm a capacidade de mediar a transformação da natureza (Sujeito [ser social] ÅÆ Ferramenta ÅÆ Objeto [natureza]), transformando, neste processo, as condições de existência e o próprio ser, a necessidade de comunicação implica na criação de signos, “ferramentas” mentais que auxiliam no controle do comportamento do ser. Medeia o processo de controle consciente de si mesmo, conseqüentemente, de seus atos. Sua operação voltada para o controle interno do pensamento é destacada por Vigotski: [a] função do instrumento é servir como um condutor da influência humana sobre o objeto da atividade; ele é orientado externamente; deve necessariamente levar a mudanças nos objetos. Constitui um meio pelo qual a atividade humana externa é dirigida para o controle e domínio da natureza. O signo, por outro lado, não modifica em nada o objeto da operação psicológica. Constitui um meio da atividade interna dirigido para o controle do próprio individuo; o signo é orientado internamente (Vigotski, 1994, p. 72-73, grifos do autor). Esse novo tipo de mediação produzirá a linguagem, ou seja, símbolos, sinais, gestos, sons que não se encontram postos na concretude do mundo, são inventados para expressar-organizar determinados pensamentos e características externas ao nível da consciência interferindo-orientando o comportamento do ser social sobre a base objetiva do mundo de modo mediatizado (SujeitoÅÆSignosÅÆObjeto). A necessidade de organização da caça coletiva implicou no desenvolvimento da fala, assim como situações de perigo, fome, etc. ficando explícito que este signo verbal, não só era não-existente na natureza, mas quanto foi capaz de se tornar comum aos demais sujeitos, como uma ferramenta coletiva capaz de determinar o autocontrole psíquico necessário à realização das escolhas de caminhos relacionados a uma finalidade previamente pensada. Foi na síntese individual de cada participante na atividade de caça dos processos postos pela divisão social do trabalho primitivo das funções executiva e diretiva que localizamos a gênese da Cultura na complexa formação do ser social. Em outras palavras, o que era antes compreendido em suas funções práticas elementares, cercar, atacar, afugentar, etc. entorno de uma teleologia coletiva ganha unitariedade na consciência de cada sujeito particular. Como reflete Rosa: Este processo torna-se radicalmente revolucionário na medida em que o trabalho, além de produzir, ontologicamente, seres que se relacionam teleologicamete com o mundo, produzem conhecimentos que se universalizam a partir destas relações. A evolução do ser humano e a evolução do trabalho vão produzindo novas formas de linguagem responsáveis pela tradução e universalização do conhecimento humano (Rosa, 2003, p. 100). A internalização das atividades socialmente produzidas abre a possibilidade de sua generalização, apropriação coletiva, onde cada avanço nos processos de trabalho institui-se como uma vitória do gênero humano sobre as limitações naturais, como o controle e a utilização do fogo para assar a carne ou afiar lanças de madeira, retratados no filme A guerra do fogo de Jean-Jacques Annaud. A cada novo problema ou nova necessidade enfrentada, novas alternativas são assumidas telelogicamente, renovando-qualificando o trabalho continuamente à medida que o ser social se afasta de uma base meramente instintiva. Pedagogicamente, nos afastamos de historiadores das Ciências que tomam esses avanços com base na prática de “descoberta” e “observação” (Chassot, 2004), o que, no limite, pode refletir numa perspectiva de “assimilação” circunstancial dos objetos e processos naturais. Embora, os produtos criados pelas atividades do ser social possam remeter às práticas rotineiras comuns e imediatas, esses, ainda, carregam a marca de sua construção mediada, queremos dizer que esta nova imediaticidade adquire, por meio do trabalho, um caráter não mais natural. A cocção de alimentos implica na necessidade de um recipiente que não deixe a água se esvair, uma forma geométrica côncava tal como crânios de animais. Mas, da possível observação da ação do fogo no endurecimento de terrenos argilosos macios à construção de utensílios côncavos, um simples “observacionismo” ou refinamento na capacidade de imitação-reprodução de aspectos físicos não condiz com o fato de que sua realização requerer a síntese destas relações previamente na consciência, se os primeiros objetos não foram bem sucedidos derivam do fato da tentativa de materialização de ideações na concretude do mundo, e do conseqüente enriquecimento dessas mesmas mediações postas telelogicamente. Essas contínuas atividades mediadas pelo trabalho forjam uma diversidade de mediações e posições teleológicas generalizadas e interiorizadas, por meio da linguagem, pelo grupo social. Se por volta de 4.000 anos a.C. se confeccionavam instrumentos de metais a partir do aquecimento de determinadas rochas (azurita) encontradas na natureza, pois o bronze surge como síntese de um metal (uma liga) radicalmente novo, uma vez que, não estando posto na natureza, a sua constituição requerer a mistura de cobre e estanho, de modo a produzir nessa nova natureza humanizada características físico-químicas diferentes das quais os metais possuíam quando separados. Dessa forma, nossa intencionalidade pedagógica buscou superar uma abordagem baseada na “descoberta”, típica das tradições positivistas de base empirista, ao confrontarmos o esvaziamentorecusa da metafísica, enquanto visão de mundo, característico dessa vertente epistemológica, com a introdução dos elementos de uma ontologia materialista de base marxiana como forma de localizar a gênese da Ciência e possibilitar o emprego dessas reflexões no movimento histórico ulterior à formação das sociedades primitivas e suas relações com a natureza. Breve histórico das formações sociais ulteriores: trabalho, práxis e os fenômenos da natureza A partir do desenvolvimento dos elementos filosóficos anteriores, seguimos no movimento das diferentes formações sociais e as respectivas investigações sobre os fenômenos da natureza produzidas em cada momento histórico, de modo a trazer para a sua leitura as contribuições de uma ontologia materialista. Nesse sentido, o conjunto das experiências particulares promovidas pelo trabalho adquire uma autonomia relativa ao generalizarem-se, isto é, deixam de ser implementadas em situações especificas e em procedimentos determinados, e a sua comunicação, por meio da linguagem, forjam a cultura, um somatório de conhecimentos produzidos que medeiam as relações intersubjetivas, típicos da vida em sociedade. Na perspectiva de Lukács, o trabalho, que, originariamente, implica na ação consciente de transformação da natureza, trás consigo uma segunda forma de posição teleológica, na qual a ênfase se dá na intencionalidade de construção de uma finalidade coletiva, isto é, se “o primeiro contém posições teleológicas que transformam a própria natureza, [...] o segundo tem como fim primeiro a ação sobre a consciência de outros homens com o fim de induzi-los às posições teleológicas desejadas (Lukács, s.d., p. 39)”. Dessa forma, o trabalho constitui-se como modelo de toda práxis social, mesmo as mais complexas e mediatizadas, onde o sujeito se relaciona dialeticamente com a natureza e com os outros sujeitos, de modo a transformar a concretude do mundo natural e social criando, assim, novas condições de existência e de reprodução do humano. A Ciência, como práxis social, apesar de apresentar características altamente complexas em seus métodos e linguagem ainda se liga ao trabalho pelo fato de ela estar vinculada ao processo de realização de necessidades humanas e mesmo o fato de que, cada vez mais, seus objetos de estudo e instrumentais de mediação tornem-se marcadamente humano-sociais, não retira, em última análise, a base objetiva natural inicial sobre a qual opera e retira os problemas a serem investigados. Em outras palavras, mesmo que a natureza se constitua como um instante especifico da atividade cientifica, a ela conserva-se a mesma relação original que se estabeleceu com o trabalho (teleologia, mediação, necessidade, alternativas, etc.) necessária para transformar a natureza em natureza humanizada (o “osso-tacape”). Dessa forma, a Ciência, como uma atividade de trabalho, também não irá produzir mais um mundo de fenômenos naturais, mas inserir-se-á num plano ontologicamente novo, na esfera de atividades e fenômenos eminentemente sociais. Baseados nisso, podemos afirmar que todo o existente, que passa pela intervenção de um processo de trabalho, transforma sua natureza e, portanto, passa a ser uma nova realidade, agora humana. Assim sendo, a determinação da fronteira entre o natural e o não natural deve-se à atividade de trabalho (Rosa, 2008, p. 06). Esses elementos ontológico-materialistas irão implicar profundamente na concepção de Historia da Ciência e, consequentemente, nas atividades materializadas no âmbito da formação de professores de Ciências Naturais, bem como, nas suas futuras práticas pedagógicas na Educação Básica. Portanto, é fulcral a superação das visões que pressupõe a evolução da Ciência como o contínuo acúmulo de sucessos realizados por gênios solitários, isolados do mundo e seus respectivos insights individuais e ideologicamente neutros. Pensamos, ao contrário, que as manifestações humanas [...] feitas no passado, sobre as suas formas de existência, não podem ser apreendidas como quimeras, objetos de riso e espanto, isto sim, como parte de um processo de evolução-transformação das condições materiais e culturais produzidas pelo ser humano no devir da história. É a revelação concreta da vinculação direta que existe entre os instrumentos realizadores da relação do humano com a natureza e o dizer humano sobre si e sobre a natureza. (Rosa, 2008, p. 07). Dessa forma, também, é tarefa da História da Ciência, e por ser um momento privilegiado na apreensão do devir da constituição desse ser capaz de produzir conhecimentos científicos, investigar a série de eventos e processos que dão forma e conteúdo á atividade cientifica. A análise de um objeto pressupõe a investigação do seu processo de construção, como forma de poder captar os fenômenos que lhe dão concretude, apreendendo sua essência, pois é neste “movimento que o objeto explicita o que ele é (Vigotski, 1994, p. 85)”. Nessa primeira investigação sobre a implementação pedagógica de elementos ontológicos na formação de professores de Ciências Naturais procuramos percorrer os principais períodos históricos da humanidade e evidenciar os conhecimentos produzidos acerca dos fenômenos da natureza. Partindo das sociedades antigas, destacaram-se os arcabouços explicativos fundados em perspectivas místicas e mágicas do mundo. Mesmo nas mais rudimentares concepções, manifestamse características desse ser social, já que, as respectivas representações, “em sua maioria, de ordem terrena: era preciso dominar as forças naturais desconhecidas”, tal como “aquelas conhecidas deviam ser dominadas pelo trabalho”. Ainda, “a existência de um além, no qual a recompensa ou a condenação conferissem à vida aquele sentido pleno que na terra permanecia ocasional e fragmentário, surgiu - como fenômeno humano geral - a partir da situação daqueles homens cujas perspectivas de vida não eram capazes de dar a esta um sentido terreno (Lukács, s.d., p. 48 - grifo nosso)”. Em momento seguinte, essa desantropomorfização se manifestará na Grécia Antiga. Segundo Ronan (2001-a), contrariamente aos povos egípcios e babilônicos, a visão grega não se essencializava numa doutrina ortodoxa baseada em livros sagrados e seus deuses “participavam das fraquezas e das paixões humanas”. A escolha crítica de seus elementos culturais fez surgir a formação de um “pensamento racional” por meio de uma separação parcial entre os aspectos ontológico-metafísicos sobrenaturais e as formulações teóricas particulares que intencionavam explicar-decodificar os fenômenos naturais. Demócrito (478 a.C.) ao observar a suspensão da poeira no ar, se beneficiando da incidência da luz solar sobre ela, num ambiente escuro, percebeu o deslocamento aleatório das partículas. Mas, o que faz com que todas as partículas de poeira não caiam no chão ao mesmo tempo? Por que as partículas se deslocam para um lado e, de repente, têm seu curso alterado voltando a se deslocar em sentido contrário? A resposta de Demócrito pressupôs da idéia de átomo, isto é, partículas infinitamente pequenas que, constituindo todos os corpos, no fogo e na alma, também estavam presentes no ar. A poeira adquiriu movimento aleatório pelo fato de não se deslocar no vazio, mas sim, interagir e colidir com outras partículas atômicas. Essa generalização (que fora também construção de Leucipo e Epicuro) explicava muitos fenômenos, o paladar era produzido a partir de interações entre átomos do alimento e da boca, corpos muito duros e rígidos tinham seus átomos mais próximos uns dos outros, ao passo que nos corpos macios seus átomos se encontravam razoavelmente mais afastados e as queimaduras promovia a dor, porque os átomos de fogo eram ásperos. Quando foi abordado em sala de aula o pensamento de Demócrito e sua defesa da realidade atômica, os discentes enfatizaram a “lógica” e a coerência da proposta explicativa. Como grande deles havia terminado a Educação Básica já passados alguns anos, surgiu o questionamento se desde aquela época já se “sabia sobre a existência de átomos”, isso abriu caminho para a localização da não aceitação dessa teoria por todos os filósofos da época e os aspecto conflituoso estabelecido pelo combate e criticas por esses últimos realizados. Explorado essas características, mais adiante, direcionamos para as contribuições de Arquimedes e os inventos de Herão, os mesmos tentaram romper com a tradição platônica e dimensionaram suas teorias em constructos e experimentações práticas. Uma estratégia pedagógica que obteve fundamental importância foi a de mostrar em vídeo documentário a máquina de Herão. Rapidamente, um aluno interferiu dizendo “é uma máquina a vapor primitiva?” Essa questão norteou a aula, no sentido de iniciar uma reflexão sobre o conhecimento produzido nessa época e as suas relações com a totalidade social grega. Como não ser especulativo numa sociedade que despreza o trabalho manual? Como produzir aparatos tecnológicos para a vida social cotidiana se a base da produção era a escravidão? Como qualificar o trabalho operário com ferramentas e máquinas nessa época e nesse contexto de escravidão? (Diário de Bordo, 23/04/2009, p. 10). A máquina de Herão transformava energia térmica em energia cinética, a água, quando aquecida num aparelho especifico, produzia movimento, entretanto, não era empregado em nenhum tipo de instrumento prática utilizável cotidianamente. De forma geral, a proliferação do fabrico do vinho, do azeite, do vidro, a implementação dos moinhos rotativos, da drenagem, de prensas de parafusos não significaram uma estagnação plena da produção técnica, entretanto, [...] não ocorreu nenhuma constelação de inovações que impulsionasse a economia antiga em direção a forças de produção qualitativamente novas. [...] Uma vez que o trabalho manual veio a estar profundamente associado à perda da liberdade, não havia uma lógica social livre para a invenção. [...] Tanto o trabalho agrícola como o artesanal eram essencialmente supostas “adaptações” à natureza, não transformações desta; eram formas de serviço (Anderson, 1984, p. 99-111). Certo avanço na diminuição dos entraves e obstáculos a liberdade dos operários e camponeses veio com a transformação dos escravos em servos a partir da consolidação do modo de produção feudal. A partir do século IV d.C., com a conversão de Constantino, O Grande, ao cristianismo, esse movimento adquiriu extrema autoridade e poderes que antes lhe foram negados. Nesse período, abordamos as principais características dos conhecimentos produzidos. O dilema estabelecido, a partir da hegemonia clerical sobre todas as formas de expressão da cultura humana, se consistiu em promover ou estagnar a atividade de construção de conhecimentos sobre os fenômenos naturais. As discordâncias na internalidade da estrutura clerical são evidenciadas por Ronan: Por um lado, podia-se dar uma boa razão para ignorar todos os estudos seculares científicos e outros - e concentrar toda a atenção no importante tema da salvação das almas. E, já que a Ciência, no mínimo, significava voltar às fontes gregas, aos ensinamentos pagãos, seria pelo menos prudente deixá-la de lado para que a mente não ficasse contaminada de idéias perigosas, prejudicando as almas cristãs. Por outro lado, havia uma concepção diametralmente oposta. Se Deus fez o mundo, e viu que estava bom, então estudar seu trabalho através da ciência só poderia provocar uma sensação de esplendor diante de tão divina sabedoria, e uma admiração por tais maravilhas que o Criador permitia que o homem visse. Do lado da ciência, com a poderosa crença de que a contemplação das obras de Deus só poderia trazer um aumento da consciência em relação à onipotência e à sabedoria da divindade, estava Aurelius Augustinus, que mais tarde seria canonizado como Santo Agostinho (Ronan, 2001-b, p. 134-135). Neste contexto, Roberto Grosseteste (1168-1253) influenciado pelo trabalho de Aristóteles escreveu importantes textos sobre de astronomia, som e deu ênfase aos estudos sobre óptica. Aqui podemos ver a influência ideológica (teleológica de um grupo!) de um grupo determinado sobre essa atividade particular, se no 1° Capítulo do Gênese vislumbra-se o primevo do Faça-se a luz, de igual forma vemos a primazia dada ao fenômeno da luz, uma vez que a óptica se estabelecia como a Ciência Mãe. Apesar de ter estudado o fenômeno da refração da luz, não conseguiu chegar a uma conclusão unitária e coerente sobre os seus diversos aspectos, isso só seria realizado no ano de 1621. Roger Bacon (1214-1292), por outro lado, instituiu o que mais tarde foi chamado de Magia Natural, as atividades experimentais se constituíam em duas dimensões: uma experiência advinha de uma mística interior e outra complementar era obtida por meio de fatores exteriores, com a ajuda de aparatos técnicos e da matematização dos dados. Essa era a fórmula, tanto para compreender os fenômenos da natureza, quanto para conhecer o Criador. As características dessa unidade de orientação teológica são descritas por Ronan Era o conhecimento obtido pela experiência do mundo natural, usando apenas o senso de cada um ou com o auxílio de instrumentos, sendo conduzido a “admiráveis” descobertas e descrições; mas não era um conhecimento obtido por experiências especialmente designadas para responder a uma questão específica (Ronan, 2001-b, p. 141). A cosmogonia clerical constituindo-se como uma superestrutura e exercendo sua hegemonia na sociedade feudal manterá o pensamento aristotélico como base norteadora das atividades investigativas, onde o movimento alquímico será uma de suas expressões. Por outro lado, a transformação do escravo em servo, e uma conseqüente diminuição das restrições de liberdade, promoverá certo desenvolvimento de instrumentais relativos ao artesanato, à agricultura e a criação de gado. Ao contrário do escravo, o servo se “interessará” ou vislumbrará a “necessidade” de qualificar o cultivo para atender a sua reprodução social e corresponder aos impostos cobrados pelo senhor de suas terras (nos referimos à utilização da charrua [um tipo de arado], do peitoral, da ferradura, a propagação e uso do moinho e a rotação de culturas). Se inicialmente o feudalismo se caracterizou por uma economia natural com um baixo, mas regular, desenvolvimento das forças produtivas, a partir do século XV, quando atingiu certo nível de desenvolvimento veremos o surgimento e a intensificação das relações comerciais. A produção pautada pela divisão social do trabalho torna-se voltada ao intercâmbio na base de um mercado nascente, implicando, por outro lado, em contradições entre os senhores feudais e os novos comerciantes e mestres de corporações de artesãos presentes nas cidades, que a cada vez mais se fortaleciam e requeriam poder político. Nesse contexto, o desenvolvimento das forças produtivas produzirá o fenômeno de transformação das corporações artesanais em manufaturas, germe para o ulterior surgimento da indústria. Marx nos descreve esse cenário: [...] Com a manufatura, as diversas nações entraram numa relação de concorrência, empenhando-se em lutas comerciais por meio de guerras, direitos alfandegários protecionistas e proibições, ao passo que, antes, as nações, quando em contato, mantinham entre si trocas inofensivas. O comércio, a partir de então, tem significação política [...] A manufatura e em geral o movimento da produção receberam um enorme impulso através da extensão do comércio, em conseqüência da descoberta da América e da rota marítima para as Índias Orientais. Os novos produtos importados destas regiões, e principalmente as massas de ouro e prata que entraram em circulação, transformaram totalmente a situação recíproca das classes sociais e desfecharam um rude golpe na propriedade feudal da terra e nos trabalhadores. As expedições de aventureiros, a colonização e, sobretudo a extensão dos mercados até a formação de um mercado mundial – que se tornara possível e se ampliava cada dia mais – provocaram nova fase no desenvolvimento histórico [...] Através da colonização dos países de descoberta recente, a luta comercial entre as nações recebeu novo alimento e, com isso, tornou-se mais extensa e encarniçada (Marx, 1989, p. 87-88). Esse clima de consolidação do mercantilismo e das grande navegações, também é palco da revolução copernicana e sua teoria heliocêntrica, muito embora Aristarco na Grécia Antiga já houvesse defendido tal teoria e, segundo Carl Sagan, Copérnico menciona a influência do Filósofo grego, entretanto, no seu livro final não o cita. Se num primeiro momento a Igreja não contrapõe radicalmente ao heliocentrismo, mesmo a sua conseqüente desestruturação dos fundamentos aristotélicos para a astronomia e o movimento dos corpos terrestres, uma vez que o possível abalo na visão acerca dos fenômenos da natureza pudesse implicar num igual cisma da cosmogonia clerical, num segundo, foi com Galileu que a tensão aumentara. Galileu, questionando os fundamentos do movimento dos corpos a partir de ensaios experimentais e matemáticos, concebe a trajetória parabólica. Na ausência de uma força externa, o corpo poderia continuar em movimento com velocidade constante, desde que não houvesse resistência ao movimento [primeiras idéias sobre a Inércia], dessa forma, a trajetória seria circular, porque, ao permanecer com a mesma distância em relação ao centro do circulo durante o percurso, significaria que a velocidade não se alteraria, isto é, seria constante. Assim, o movimento dos corpos deixava de ser visto por meio da tradição aristotélica como uma essência dos corpos. Mas o trabalho de Galileu consistia em necessidades e teleologias vindas da concretude mercantil, pois vimos em Strathern (1999, p. 39-42), que ele, além de aperfeiçoar o telescópio e criar uma bomba d’água, se interessando pela engenharia militar e os problemas da balística, inventa, a aprtir de seu arcabouço teórico, um compasso militar para calcular o alcance dos projéteis. Se associando a um ferramenteiro local, fabrica compassos militares em massa e logo escreve um manual para o aparato, entretanto sua declarada perspectiva de ganhar dinheiro pouco tempo depois se esvai, pois surgem no mercado modelos mais baratos. A luta comercial encarniçada necessitava de aparatos bélicos qualificados para a proteção da riqueza nacional. Esse momento histórico foi marcado, em seu conjunto, como um período de revoluções científicas, as quais foram amplamente difundidas por diversas áreas do conhecimento a partir do século XVIII, na Europa. O impulso dado por Galileu na investigação do movimento dos corpos contribuiu para construção teórica de Isaac Newton, a qual ganha ênfase nesse século, criando uma nova cultura mecanicista e materialista em contraposição às tradições teológicas. Num sentido inverso e extremo, vão se valorizar apenas aqueles conhecimentos que são produzidos e comprovados experimentalmente. Ao passo que, cada vez mais se perde a importância da reflexão teórica e especulativa no processo de construção dos conhecimentos. Ocorre um deslocamento radical da subjetividade (sujeito, teoria, pensamento...) para a objetividade (objeto, prática, fazer, experimentar...), onde para se “fazer Ciência”, isto é, produzir conhecimento científico, é necessário aperfeiçoar os meios e as experiências no intuito de descobrir os segredos escondidos na natureza. O pensamento e construção de teorias são conseqüências de uma atividade experimental bem sucedida, uma vez que a “verdade” cientifica dos fenômenos já está posta na natureza, não depende do pensamento do investigador, cabendo a ele ter a capacidade técnica de descobri-la. Revolução Industrial promoveu o surgimento de uma nova organização do trabalho e a metamorfose da “despretensiosa” máquina térmica de Herão. Nesse momento, o deslocamento do contingente de mão-de-obra, do campo para a cidade, e o seu barateamento intensificaram as atividades da manufatura urbana. Uma das conseqüências da aceleração da produção iria potencializar a construção da pedra de toque da Indústria, ou seja, da máquina a vapor, como descrever Braga et al. (2008): A escassez de carvão vegetal provocada pela devastação das florestas fez com que se procurasse uma outra fonte de aquecimento para a fundição de ferro. Por volta de 1710, já se utilizava o coque, produzido a partir de resíduos de carvão mineral. A extração do carvão tornou-se assim um negócio lucrativo. Ao longo da primeira metade do século XVIII, a paisagem da Inglaterra se transformou completamente. Os grandes desenvolvimentos na construção de máquinas a vapor [Savery, Newcomen e Watt] – surgidas da necessidade básica de extração de água das minas de carvão e depois aplicadas em inúmeras outras atividades manufatureiras – fizeram nascer o embrião do que seria a sociedade industrial (Braga, Guerra e Reis, 2008-d, p. 29-30). A tradição aristotélica da teoria dos quatro elementos perdia força à medida que os estudos sobre os gases e combustão ganhavam ênfase, por meio dos trabalhos de Joseph Black (1728-1799), Henry Cavendish (1737-1804) Joseph Priestley (1733-1804), Georg Stahl (1660-1734) Antoine Lavoisier (1743-1794). Certa ligação entre Indústria e Ciência começava a se estabelecer, tendo como amálgama as questões relativas à Energia. Na particularidade da teoria da combustão, um grande avanço qualitativo se deu por meio do emprego da balança para a mensuração das massas das substâncias envolvidas, provocando uma ruptura conceitual com o consenso flogistiniano. Já no século XIX, os problemas de pesquisa se deslocaram do estudo dos gases para o fenômeno da eletricidade. Definitivamente, intensifica-se a simbiose entre indústria e Ciência, pois se por um lado, nesse século, são construídas as teorias explicativas para o fenômeno da máquina a vapor, cem anos depois de sua construção, consolidando-se por meio de James Joule (1818-1889) nos princípios da Termodinâmica (1850), por outro, o motor elétrico é implementado depois de um ano após a publicação do principio teórico de funcionamento, por Michael Faraday (1791-1867) impulsionado pelos trabalhos de Oersted e Ampère. Século XX, coloca um novo horizonte no que tange à mediação das práticas cientificas, condizentes com a perspectiva ontológica-materialista, no dizer do historiador Ronan, A ciência que começou a avançar com muita velocidade durante o século XIX, tem progredido ainda mais rapidamente durante o século XX. [...] Um número cada vez maior de cientistas trabalha, usando um equipamento cada vez mais poderoso e sofisticado, e os resultados obtidos têm sido muitas vezes assombrosos e certamente teriam maravilhado as mentes mais imaginativas de gerações um pouco anteriores. [...] A ciência do século XX também foi transformada pelo notável desenvolvimento de sua tecnologia que facilitou a pesquisa em muitos campos novos. Embora não seja possível dar aqui uma relação completa de todas as diferentes tecnologias envolvidas no processo [...] temos pelo menos que mencionar a da eletrônica e a do computador, que desde a década de 1960m, vêm revolucionando a coleta e o processamento de dados de todas as espécies. De modo semelhante, o advento das viagens espaciais estimulou muitos trabalhos científicos – inclusive o desenvolvimento da eletrônica – [...] (Ronan, 2001-d, p. 78). A escola atomística do século XX, bem como, o desenvolvimento da Física, vão nos remeter a um mundo anteriormente desconhecido. O átomo e suas partículas, a dualidade do corpúsculoonda, a probabilidade como critério de cientificidade revolucionam a epistemologia, o objeto de análise não pode mais ser medido diretamente. Na microfísica da matéria não é mais o objeto que normatizará diretamente a investigação científica, como acreditavam os empiristas. No estudo do elétron não se pode determinar com precisão, simultaneamente, a velocidade e a posição deste no espaço, pois os próprios instrumentos usados para medição alterariam os resultados destas determinações. O elétron se comporta ora como onda, ora como partícula e é inútil uma tentativa substancialista de querer isolá-lo, ele está em estado de relação. Na investigação do mundo infinitesimal da matéria o cientista, agora, aumenta o rigor de sua pesquisa à medida que aumenta a importância que dá à organização racional de suas experimentações. Os cálculos matemáticos utilizados por Rutherford na construção do modelo atômico ou as equações de Schrödinger para o comportamento do elétron vêm contradizer um passado onde as construções matemáticas não passavam de hipóteses sem importância e de caráter provisório. No século XIX, essas hipóteses científicas tinham apenas um valor organizativoesquemático e o objeto é o critério que determinava a realidade científica. Agora o hipotético é fenômeno, a organização dos objetos é que representam o real, uma vez que, o contato com o real não é mais imediato e, se imediato for, assume a forma de um dado confuso e convencional. A experimentação é racionalmente organizada Na evolução dos modelos atômicos, e que em nossas práticas pedagógicas em sala de aula é, muitas vezes, “rápida e facilmente explicada”, encontramos outra característica importante do pensamento científico que é a “passagem” do modelo atômico de Sommerfeld para o modelo Quântico. A linguagem quântica não tem antepassados, uma nova linguagem é construída para explicar o fenômeno atômico. Há uma descontinuidade no pensamento e na prática científica provocada pela ruptura entre Física Clássica e a Física Quântica. Na Química moderna do século XX, a identificação das substâncias se opõe radicalmente aos métodos passados, como vemos na figura abaixo, onde está representada a molécula de benzeno (um químico bem instruído ”enxergaria” ali os átomos de hidrogênio e suas interações físicas). Por meio de uma instrumentalização, baseada em princípios físicos, o fenômeno investigado assume a forma de resultados gráficos que necessitam, para seu entendimento, de uma complexa racionalização. O espírito cientifico, agora explicita e conscientemente, rompe com a imediaticidade e passa a estabelecer relações mediatizadas com a realidade. A Ciência como superestrutura e força produtiva no século XX A “desideologização” da Ciência, para além de libertá-la do jugo clerical, implicará na visão de “neutralidade”, de “imparcialidade ideológica” do próprio devir científico. Se por um lado, a Ciência deveria desenvolver-se “livremente” para impulsionar o desenvolvimento da indústria e do próprio modo de produção capitalista, por outro, este sistema social continuava organizado em classes sociais, e tendo em essência a extração de mais-valia para a acumulação de capital. É nesse sentido, que a Ciência vai ser apreendida pelo capitalismo e elevar-se numa superestrutura, com a finalidade de mascarar as contradições sociais, justificando e servindo à manutenção e expansão deste modelo social de exclusão e discriminação, como afirma Gramsci: O progresso científico fez nascer a crença e a esperança de em um novo Messias, que realizará nesta terra o país da felicidade; as forças da natureza; sem nenhuma intervenção do esforço humano, mas através de mecanismos cada vez mais perfeitos, darão em abundância à sociedade tudo necessário para satisfazer suas necessidades e viver na fartura (Gramsci, 1989-a, p. 71). O progresso na perspectiva apontada por Gramsci assume caráter ideológico, uma vez que nele está subentendido a possibilidade de uma mensuração quantitativa e qualitativa: mais e melhor. [...] O nascimento e desenvolvimento da idéia de progresso correspondem à consciência difusa de que se atingiu uma certa relação entre sociedade e natureza (incluindo o conceito de natureza e de acaso e o de irracionalidade), relação de tal espécie que os homens - em seu conjunto estão mais seguros quanto ao seu futuro, podendo conceber racionalmente planos globais para sua vida (Gramsci, 1989-a, p. 44-45). Dessa forma, a “ideologia do progresso científico” produzida pelo capitalismo faz parte da operação que transforma os interesses das classes dominantes no interesse de toda a sociedade, ou seja, os “portadores” da idéia de progresso justificam as mudanças sociais ou ambientais (e as contradições já estabelecidas, como, por exemplo: o “desemprego tecnológico”) pelo desenvolvimento do conhecimento científico-tecnológico e sua inevitabilidade progressista. No dizer de Gramsci (1989-a, p. 45), estes “portadores” oficiais, perderam o controle racional do progresso, pois, suscitaram “forças destruidoras” e “angustiantes”, tornando-se (os portadores) uma “natureza” que deve ser dominada. O “progresso” corrobora para a propagação da “neutralidade” da prática científica, a fim de esconder as relações intrínsecas entre a Ciência e os interesses capitalistas. Juntamente com a crítica ao progresso, a Ciência deve ser entendida como uma força produtiva. Para Braverman (1987), depois do trabalho a ciência é a propriedade social mais importante a tornar-se um instrumento do capital. A Revolução Industrial, por meio da técnica, foi a alavanca do desenvolvimento da Ciência, pois, como vimos anteriormente, ela estava presa a superestrutura clerical e seu arcabouço teórico constituía-se de resquícios filosóficos da Antigüidade (na alquimia teoria dos 4 elementos, etc.). Se num primeiro momento, o da Revolução Industrial, a relação entre Ciência e capital é indireta, no processo histórico ulterior “o capitalista organiza sistematicamente e ornamenta a ciência, custeando a educação científica, a pesquisa, os laboratórios, etc. (Braverman, 1987, p. 138)”. A incorporação da Ciência pela indústria capitalista começa pela Alemanha, e além de fornecer a base para as duas grandes Guerras, “ensina” os demais países capitalistas a como procederem na incorporação da Ciência ao Capital. Nesse contexto, existiam avanços em diversas áreas como: eletricidade, aço, petróleo e motor a explosão, e a pesquisa científica inspirava estas áreas a fim de “demonstrar à classe capitalista, e especialmente às entidades empresariais gigantes, então surgindo como resultado da concentração e centralização do capital, sua importância como um meio de estimular ainda mais a acumulação do capital (Braverman, 1987, p. 140)”. O fraco desenvolvimento do capitalismo alemão se valeu do avançado nível teórico da Ciência alemã. Segundo Braverman (1987, p. 143), enquanto Inglaterra e EUA utilizavam os cientistas universitários de forma esporádica e no intuito de resolver problemas específicos, os capitalistas alemães já haviam integrado e organizado (nas universidades, nos laboratórios industriais, nas associações comerciais, Governo, etc.) um esforço contínuo para a produção científico-tecnólogica forjar a nova base da indústria moderna. O resultado desta simbiose pode ser expresso pelo extraordinário desenvolvimento obtido na Indústria Química alemã, como relata Bäumler: No caso da Hoechst – como praticamente também nos da Bayer e da BASF – este processo extraordinário consumou-se dentro de apenas quarenta anos. Neste período, o número de funcionários – calculada a partir o ano de fundação [1863] – se multiplicara mil vezes; surgira, de uma miserável barraca, uma cidade industrial com centenas de prédios, atravessada por quilômetros de ruas e trilhos. Um edifício com numerosos escritórios se tornara necessário, [inclusive] usinas de força de dimensões metropolitanas, para abastecê-la de eletricidade e vapor. A produção diária de produtos químicos inorgânicos e de corantes precisava ser medida agora em toneladas e em vagões ferroviários (Bäumler, 1963, p. 74). Mais adiante, encontramos o “ônus” desse processo para o capitalista: “Desde 1863, as distribuições de lucros oscilaram em 30 e 20 por cento. Tempos felizes para os acionistas! Em poucos anos, eles puderam duplicar o capital investido (Bäumler, 1963, p. 75)”. Temos que ressaltar que as investigações de Braverman (1987, p. 146) apontam para a mudança da dimensão da revolução científica e tecnológica em relação aos aspectos vivenciados durante a Revolução Industrial clássica. As inovações deixam de ser espontâneas (suscitadas indiretamente pela produção social), pois agora implicam num planejamento tecnológico e produtivo, ocasionado pela transformação da Ciência em mercadoria, comprada e vendida como qualquer outro meio de produção. Citado por Klaw em 1968 (apud Braverman, 1987, p. 173), um químico da época dizia: “Já não mais estou interessado em problemas que não impliquem considerações econômicas. Vim a perceber a Economia como outra variável com que lidar no estudo de uma reação – há pressão, há temperatura e há dólar”. O referido autor ainda acrescenta que a revolução científico-tecnólogica apenas pode ser entendida em sua totalidade, ou seja, a ciência e suas investigações como parte intrínseca do funcionamento do modo de produção, e não em seus produtos particulares, as inovações específicas. Ao contrário, diz Braverman (1987, p. 147), “a inovação chave não deve ser encontrada na Química, na Eletrônica, na maquinaria automática, na aeronáutica, na Física Nuclear, ou em qualquer dos produtos dessas tecnologias científicas, mas antes na transformação da própria Ciência em capital”. Na mesma linha investigativa de Braverman, Ernest Mandel identifica os principais aspectos da contribuição da Ciência (na chamada “aceleração da inovação tecnológica”) no desenvolvimento do capitalismo contemporâneo, o qual ele denomina de Capitalismo tardio (um desenvolvimento ulterior do capitalismo monopolista, onde continuam válidos os aspectos da chamada fase imperialista). Longe de assumir uma perspectiva “abstrata” e economicista, esse autor intenciona descrever o desenvolvimento capitalista do pós-guerra, assumindo uma perspectiva de totalidade, isto é, considerando os múltiplos aspectos que determinam o desenvolvimento do capitalismo tardio, ao incorporar em sua análise as dimensões: históricas, políticas, tecnológicas e, as especificamente, econômicas. O autor toma o modo de desenvolvimento da produção capitalista como movimentos cíclicos de oscilação ascendente e descendente, onde na fase de oscilação ascendente (Mandel, 1982, p. 75), a acumulação se acelera em face de uma fase descendente caracterizada pela diminuição da acumulação de capital. Nas palavras de Mandel, “o ciclo econômico capitalista aparece como o encadeamento da acumulação acelerada de capital, da superacumulação, da acumulação desacelerada de capital e do subinvestimento (Mandel, 1982, p. 75)”. Neste contexto, como afirma Mandel (1982, p. 16-77), é a renovação completa de capital fixo, e de uma só vez, que promove os momentos de aceleração da acumulação de capital, uma vez que, sob o estímulo da concorrência e na busca por superlucros, a redução dos custos de produção e do valor das mercadorias é atingida mediante uma renovação radical da tecnologia empregada no processo produtivo. Mandel (1982, p. 79) exorta que, nos ciclos econômicos, os períodos de subinvestimento de capital (na verdade, uma série de ciclos de subinvestimentos) criam um fundo de reserva de capital, com “a função objetiva” de liberar capital, permitindo, assim, a possibilidade dessa renovação da base tecnológica produtiva, embora isto, por si mesmo, não explique o fato de as revoluções tecnológicas ocorrem num dado momento, e não em outro. O referido autor caracteriza três revoluções tecnológicas, duas delas mencionadas anteriormente, além da Revolução Industrial clássica, da segunda metade do século XVIII: 1ª Revolução Tecnológica iniciada 1848 – motores a vapor; 2ª Revolução Tecnológica iniciada 1896 – motores elétricos e motores a combustão; 3ª Revolução Tecnológica iniciada 1940-45 – automação (microeletrônica) e energia nuclear. Essas revoluções tecnológicas vão transformar todo o conjunto produtivo e suas maquinarias (inclusive os sistemas de comunicação e transportes). A análise dessas revoluções leva Mandel a considerar que o desenvolvimento do capitalismo internacional se dá em períodos longos (as “ondas longas”) de aproximadamente 50 anos, constituídos de duas fases: uma de oscilação ascendente (acumulação acelerada de capital) e outra de oscilação descendente (acumulação desacelerada de capital). Dessa forma, vemos a inovação tecnológica como um elemento indispensável para o capitalismo, pois, tende a constituir e interferir nas próprias leis do seu funcionamento e desenvolvimento, emergindo, nesse quadro relacional entre tecnologia e leis econômicas capitalistas, as características fundamentais do capitalismo tardio para a Ciência e a tecnologia. É a partir da 3ª Revolução Tecnológica, que se constitui efetivamente a incorporação da Ciência e da tecnologia aos moldes organizacionais capitalistas, sob a égide de um processo de “aceleração da inovação tecnológica”, como descreve Mandel: A aceleração da inovação tecnológica é um corolário da aplicação sistemática da ciência à produção. Embora tal aplicação tenha raízes na lógica do modo de produção capitalista, não esteve de maneira alguma contínua e uniformemente entrelaçada à mesma, ao longo da história desse modo de produção (Mandel, 1982, p. 175). Embora, durante os séculos XIX e XX, as inovações científicas não se produziram de forma “independente” do capital, ou de qualquer outra necessidade social, é no capitalismo tardio que “a organização sistemática da pesquisa e desenvolvimento como um negócio específico, organizado numa base capitalista – o investimento autônomo em pesquisa e desenvolvimento –, se manifestou plenamente (Mandel, 1982, p. 176)”. Entretanto, o autor deixa claro que não há uma identidade entre “invenção científica e técnica” e “inovação tecnológica”, e igualmente, no processo de aceleração dessas inovações tecnológicas, é preciso distinguir a esfera das condições de produção da Ciência e da Tecnologia e das inovações tecnológicas e a esfera das condições econômicas capazes de propiciar a aplicação dessas inovações. Entrementes, deve-se buscar apreender a aceleração da atividade científica e tecnológica relacionando os múltiplos aspectos inerentes à história da ciência, do trabalho e da sociedade. Mandel (1982, p. 176) destaca o significado histórico da segunda revolução científica iniciada no início do século XIX, complementada pelo desenvolvimento da física quântica, da teoria da relatividade, da pesquisa atômica e da matemática moderna. Pois, assim como a física clássica ofereceu uma gama de possibilidades de aplicações tecnológicas (da máquina a vapor ao motor elétrico), essa segunda revolução científica forneceu uma base de aplicação tecnológica, que, a partir de 1920-30, culminou na energia nuclear, na cibernética e na automação. Mas, foram no contexto da Segunda Guerra Mundial e da ulterior economia armamentista que se desencadearam as condições objetivas dessa aceleração da inovação tecnológica. Num ambiente de acumulação desacelerada de capital, a economia armamentista começa a absorver as invenções e os conhecimentos científicos produzidos até então e potencialmente aplicáveis em novas inovações tecnológicas, na medida em que cria concomitantemente as pré-condições do desenvolvimento destas. Nosso autor enfatiza (Mandel, 1982, p. 177), tomando alguns exemplos, que os desenvolvimentos da bomba atômica, do radar, da miniaturização de equipamentos eletrônicos, de novos componentes eletrônicos, de aplicações da matemática em problemas econômicos, do modelo sinergético de planejamento empresarial, tiveram origem nesse contexto da economia armamentista, a qual abre caminho para a organização sistemática e intencional da pesquisa científica com a finalidade de acelerar a inovação tecnológica. O referido autor usa como síntese a paráfrase: “a confiança na pesquisa organizada foi ampliada pelos êxitos no tempo de guerra (Mandel, 1982, p. 177)”. A partir daí a pesquisa científica adentra diretamente no processo de produção de mercadorias de forma especializada e autônoma. “De início, a pesquisa e o desenvolvimento tornaram-se um rumo à parte dentro da divisão do trabalho das grandes companhias”, para, posteriormente, assumirem “a forma de empresa independente; surgiram laboratórios de pesquisa operados por particulares, que vendiam suas descobertas e inventos ao preço mais alto (Mandel, 1982, p. 177)”. Como em qualquer outro setor da produção capitalista, a pesquisa como área de investimento empresarial obedece à lei da lucratividade. Embora se constitua como investimento de alto risco, seus retornos são altamente compensatórios ao capitalista. Segundo Mandel (1982, p. 178), “as rendas tecnológicas se tornaram a principal fonte de superlucros”. Entretanto, Mandel reconhece que o capital investido em pesquisa e desenvolvimento só adquiriu sua valorização à medida que se materializa em mercadorias ou meios de produção que diminuam os custos de produção. Neste contexto o alto risco assumido é característico e tarefa para as grandes empresas monopolistas, que toma o “risco” do investimento e concorrência intercapitalista como necessidade factual de cada vez mais tentar diversificar e aperfeiçoar o planejamento da pesquisa. Essa tarefa reside no fato (assim acreditamos) de que não existe uma relação mecânica e imediata entre a pesquisa científica e a sua aplicação a produtos comerciáveis. Fica-nos mais explícito no pensamento e na investigação de Mandel quando ressalta que se deve considerar a Ciência, não como força produtiva direta (como Marx), mas sim, como uma força produtiva potencial. Para o autor é “mais que evidente que o conhecimento e a originalidade não podem ser produzidos da mesma maneira e com a mesma regularidade dos bens de consumo (Mandel, 1982, p. 181)”. O aspecto potencial de a ciência atuar como força produtiva, está relacionado à sua autonomia relativa de desenvolvimento, isto é, seu caráter interno não pragmático. A perspectiva capitalista se estabelece justamente no intuito de eliminar este “não pragmatismo” inerente a Ciência. Citamos um exemplo na Indústria Química alemã, que, de forma explícita, organiza-se capitalistamente: Nenhum sistema, por mais perfeito que fosse, seria capaz de prever as possibilidades futuras de uma invenção ou descoberta química. Quando parecia ser medianamente promissora, era necessário investir primeiro milhões de marcos. Só muito mais tarde é que se verificava então se se tratava de um êxito. De alguma centena de preparados, até 1909, apenas três tiveram bons resultados financeiros – ANTIPIRINA, PYRAMIDOM, e o soro ANTIDIFTÉRICO. Só nos anos seguintes acresceu o SALVARSAN (BÄUMLER, 1963, p. 75). Com isso, queremos inferir que, preservadas as condições históricas internas de desenvolvimento da pesquisa científica, o controle “externo” se dá em termos de decisões políticas e econômicas, as quais norteiam a pesquisa e direcionam a aplicação desses conhecimentos científicos e tecnológicos. Tal controle se dá na escolha dos “problemas de pesquisa”, na escolha entre esta ou aquela questão de pesquisa, como nos corrobora Löwy: Tanto a seleção do objeto de pesquisa, como a aplicação técnica das descobertas científicas dependem dos interesses e de concepções de classes e de grupos sociais que financiam, controlam e orientam a produção científico-natural, assim como da ideologia ou visão de mundo dos próprios pesquisadores. Isto vale não somente para os laboratórios das empresas privadas e para a pesquisa no campo dos armamentos, mas para o conjunto do sistema de produção de conhecimentos científicos na sociedade capitalista moderna (Löwy, 1994, p. 199). A interferência radical, ou seja, exercida no seu próprio conteúdo tende a levar a Ciência e seus processos a uma forma grotesca de prática científica, e ou a um estado de “pseudociência”. Como vimos anteriormente, a radicalidade exercida pela ideologia clerical na idade média, aprisionou o devir científico numa milenar base teórica aristotélica, praticamente em termos “alquímicos” pouco se avançou no desenvolvimento da Ciência. Fica-nos claro que sob a égide da lógica capitalista contemporânea, surgem novas contradições sociais: de um lado, o crescimento cumulativo da ciência, a necessidade social de dominá-la e disseminá-la ao máximo e a crescente necessidade individual de capacitação na ciência e na tecnologia contemporâneas, e, de outro lado, a tendência inerente ao capitalismo tardio de tornar a ciência uma prisioneira de suas transações de lucro e de suas estimativas de lucro (Mandel, 1982, p. 184 - 185). Posto dessa forma, ensejamos abordar o problema da “crise da ciência” para além de uma “crise de paradigmas”, pois esses estimulam, uma abordagem relativista dos processos da ciência, tanto da sua internalidade, quanto dos seus aspectos externos. Ao contrário das posturas que exortam a crise da Ciência, a abordagem da Ciência como superestrutura e força produtiva vêm colaborar para o entendimento do processo de construção do conhecimento científico e de suas tecnologias, uma vez que, sendo a Ciência uma atividade humana [...] inevitavelmente, seus problemas e seus processos estão diretamente relacionados às suas necessidades. Assim, para realmente compreender a importância do conhecimento e do fazer da ciência para a produção e o desenvolvimento do ser humano, faz-se necessário pensá-la ligada aos processos reais da vida. Para isso, entendemos a ciência, seus métodos e processos como produto de práticas sociais desenvolvidas por seres humanos que, além de produzirem estas práticas específicas, intencionalmente dirigidas para produzir o saber científico, estão sujeitos às práticas sociais da sociedade humana em geral (Rosa, 2008, p. 03). Do encontro com limites e desafios As reflexões apresentadas apontam para a necessidade de se investigar como os tratados de História, Epistemologia e Ontologia podem ser implementados na particularidade epistêmica da Educação e suas estratégias pedagógicas. A opção por inserir a discussão ontológica materialista de base marxiana no processo de constituição desse ser social que “faz Ciência” nos levou a construir alguns mediadores que possibilitassem evidenciar os principais aspectos ontológicos da categoria trabalho como forma original da atividade científica, entretanto, ao longo das abordagens históricas percebemos que uma recorrência aos elementos iniciais poderiam ter perpassado a dinâmica evolutiva percorrida, obviamente, requerendo novas estratégias de abordagem. O redimensionamento desses elementos filosóficos à prática docente se plasma em desafio e adquire relevância quando temos no horizonte a promoção de práticas emancipatórias, onde os futuros professores de Ciências Naturais, estabelecendo uma postura crítica em relação à Ciência, superem as visões de mundo fundadas na neutralidade ideológica característica no neopositivismo hegemônico contemporâneo. *** Alceu Júnior Paz da Silva (Químico Licenciado, Mestre em Educação pela UFSM, Professor do Instituto de Ciências Naturais, Humanas e Sociais no Curso de Licenciatura em Ciências Naturais e Matemática – Habilitação em Química, da Universidade Federal de Mato Grosso, Sinop/MT). Luiz Carlos Nascimento da Rosa (Químico Licenciado, Mestre em Educação pela UFSC, Professor no Departamento de Metodologia do Ensino do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria/RS). Bibliografia citada: Anderson, P. O modo de produção escravista in: Pinsky, J. 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