2.ª edição
(revista e alterada)
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Planos para férias
8 de Julho, último dia de aulas
— Assim, e para recapitular: o sujeito da frase
activa passa a agente da passiva, o verbo ser fica no
tempo do verbo da frase activa, e este no particípio
passado, e o complemento directo... Luís! Quantas
vezes já lhe disse para se virar para a frente?... passa
a sujeito da passiva. Entendido? Cláudia, venha ao
quadro passar esta frase para a passiva.
Que seca! Só mesmo a setôra de Português se
lembrava de acabar o ano lectivo a fazer revisões de
gramática. E o pobre do Luís, que antes da Páscoa era
o preferido dos professores todos, menos do setôr de
Educação Física, tinha-se transformado no bobo do
7.° C, e estava sempre a ser chamado à atenção, até nos
últimos minutos da última aula do último período.
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Levantei-me devagarinho, fui muito, mas
muito lentamente até ao quadro. Era a nossa última
aula, e a professora nem ao menos nos tinha deixado sair um bocadinho mais cedo! Fera até ao fim, a
setôra começou a fazer aquilo a que ela chama uma
«admoestação»:
— Então, Cláudia, despache-se...
Trriiim!
Salva! Mesmo a entrar para a boca do lobo,
veio a campainha a tocar para a saída livrar-me de
uma sorte pior do que a morte. É que este assunto
da passiva não é fácil de ser compreendido por mim
num dia de sol como o de hoje, nem o exercício
seria feito por esta aluna com o mínimo de atenção.
Saímos todos aos tropeções e aos gritos, ansiosos por nos vermos lá fora, livres, livres, livres! Não
é que não goste das aulas, mas a meio de Julho já
apetece não ter livros para carregar para a escola
nem secas de professoras para aturar.
Mais um ano chegou ao fim e as férias prometem.
Durante todo o ano eu tinha imaginado que
as férias grandes iam ser como de costume: até ao
fim de Julho a andar meio perdida pelo Porto, a passar as tardes em casa da avó, a tentar — em vão, que
ela não é para confianças — brincar com a sua cadela, a Sissi, a lanchar leite com cevada e pão com
manteiga às três e meia, a ver os programas na televisão que geralmente são uma seca tremenda no
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Verão, talvez a ir às compras com a avó e a ajudá-la
a tratar das centenas de plantas que tem pela casa
toda e na tirinha de jardim que fica em frente à casa.
Noutros dias planeava ir até à casa da Eva, a
minha melhor amiga, e jogávamos jogos, ou víamos
televisão juntas, sentadas com muito cuidado nos
sofás de veludo amarelo cobertos com mantas, para
não se estragarem. É que a dona Filomena, a mãe da
minha amiga Eva, preocupa-se muito com a limpeza e a arrumacão. De vez em quando talvez fôssemos até à Baixa com outros colegas da escola, ou ao
cinema. Mais nada. E depois, em Agosto, ia com os
meus pais para o Algarve. Só de pensar nos preparativos necessários para passar um mês a esturricar
ao sol e na viagem interminável para atravessar o
país de norte a sul (é que são seiscentos quilómetros!) até me davam dores de cabeça.
Isto pensava eu que seriam as minhas férias,
uns quinze dias antes de acabarem as aulas.
Mas não. Como que por magia, os planos
para o Verão modificaram-se completamente de um
dia para o outro.
O senhor Alves, o pai da Eva, disse há duas
semanas, no dia em que foram jantar a minha casa
pela primeira vez, convidados pela mãe:
— É verdade, senhor doutor, queria pedir-lhe
um favorzinho. Pode ser?
O pai é professor de Matemática (felizmente
não na minha escola), e deve ter imaginado que o
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senhor Alves lhe ia pedir que passasse algum filho
de amigos seus. Às vezes acontece aparecerem cá por
casa pessoas que mal conhecemos e que julgam que
pedir a um professor para passar um aluno não é um
insulto. Enfim... O pai já estava a ficar com cara de
caso, pronto para dar um sermão ao senhor Alves.
Disse-lhe, com ar de poucos amigos:
— Ora diga, senhor Alves.
E o pai da Eva:
— É o seguinte, senhor doutor. Como sabe, a
sua Claudinha e a minha Evinha são unha com
carne, não podem estar longe uma da outra mais do
que um dia seguido.
Também não é bem assim! Os adultos são uns
exagerados! Eu sou muito amiga da Eva e ela de mim
e por isso gostamos de estar na companhia uma da
outra. Quando fomos a Inglaterra na Páscoa passada, embora estivéssemos na mesma cidade, vimo-nos
poucas vezes e cada uma fez as suas amizades.
— É verdade, tem toda a razão — concordou
o pai. — Às vezes até me preocupa o facto de a
minha filha ser uma sentimental, muito agarrada às
pessoas.
— Ó pai, que mentira! — disse eu. — Tu até
te queixas que eu sou muito desprendida. Ainda
outro dia te estavas a queixar à mãe que eu já nem
te dou um beijo de boas-noites!
O pai ficou um bocado embaraçado e eu
arrependi-me logo do que tinha dito. Não devia ser
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tão brusca. Já lhe ia pedir desculpa quando ele
disse:
— Isto não é conversa para crianças. Vai até
ao teu quarto com a tua amiga.
É claro que já não lhe pedi desculpas nenhumas. O pai às vezes diz cada coisa! Conversa para
crianças! O que valeu foi que a mãe, com o seu bom
senso do costume, desviou a conversa de volta para
o assunto em questão:
— Ora diga, senhor Alves, que favor nos queria pedir?
O pai olhou para a mãe com um olhar um
pouco magoado.
O senhor Alves sorriu, virou-se para a sua mulher, a dona Filomena, como que a dar-lhe licença
de falar, e ela disse:
— Olhe, senhora dona Teresa, é o seguinte:
como sabe, a nossa Eva anda a aprender violoncelo.
Não é que eu faça muito gosto, preferia que tocasse um instrumento mais limpo...
— Mais limpo, mãe?! Mais limpo?! — disse a
Eva. — Tens cada coisa!
E o senhor Alves:
— Ó filha, não contraries a tua mãe, vá lá.
A dona Filomena continuou, já toda afogueada:
— Pois como eu estava a dizer, a Evinha toca
violoncelo, e há no Sul da França uma escola de
Verão e um festival de música que o professor dela
diz que são muito bons. E ainda por...
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O senhor Alves interrompeu a mulher:
— E, é claro, o que é que os pais não fazem
pelos filhos? De maneira que, em vez de irmos
descansar para uma praia, ou ao México, que é o
meu sonho, aí vamos nós a caminho do Sul da
França, para uma cidade pequena chamada Prades, metida no meio dos montes. Nem sei em que
vou passar o tempo. Comer e dormir, é o mais
certo.
O senhor Alves meteu mais um bombom de
recheio de menta à boca — e eu que contava com
os restos para amanhã! — e olhou para a mulher, a
dar-lhe de novo a palavra.
A dona Filomena é, como o marido, bastante
gorda, mas comeu muito pouco ao jantar. Talvez
fosse por se sentir pouco à vontade com os meus
pais, não sei muito bem porquê.
— Bem, o que nós queríamos pedir ao senhor
doutor e à senhora dona Teresinha — disse a dona
Filomena — era se deixavam a Cláudia vir connosco para Prades.
O meu pai quase se engasgou com o resto de
café que estava a acabar de beber. Disse logo:
— Para Prades? Para França? Sem nós? Sem os
pais?
Tantas perguntas! A Eva e eu já estávamos
encantadas com a ideia de irmos juntas de férias, e
já íamos começar a fazer planos. Mas o pai estava
ainda com as suas perguntas e dúvidas:
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— Sozinha, senhor Alves? Sem os pais, dona
Filomena? Mas nós vamos todos os anos para o
Algarve...
Felizmente cá em casa é a mãe quem decide:
— Mas eu acho uma óptima ideia — disse
ela. — Só vai fazer bem à Cláudia, que gosta tanto
de viajar. Olha, Alberto, até podemos combinar e
aparecer por Prades a passar uns dias. É óptimo!
E o senhor Alves:
— Então não é? Prades é formidável, muito
interessante; e então com os músicos todos, deve-me
ser cá uma animação! Que eu para mim, quem me
tira a boa música portuguesa, tira-me tudo. Uma
Amália, um Frei Hermano da Câmara. Agora, música de câmara... Ah, ah ah! Teve piada esta, não?
Rimo-nos todos, para agradar ao senhor
Alves, que é muito boa pessoa. Ficou decidido.
O resto de Julho iria passar-se como de costume,
mas na última semana, e na primeira de Agosto, a
França esperava-nos.
A Eva ia ter aulas de violoncelo todos os dias,
mas só de manhã, ia haver concertos todas as noites, numa abadia antiga, e o resto do tempo íamos
passá-lo da melhor maneira possível. O senhor
Alves tinha alugado uma casa numa aldeia à saída
de Prades, através da organização do festival, e a
única condição um bocado estranha era termos de
tratar das galinhas. Os Pirenéus Orientais estavam
ali, ao alcance da vista, havia bosques e rios e, de
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certeza, croissants franceses quentinhos, a escorrer
gordura, para o pequeno-almoço.
Por isto é que hoje, ao sair da aula de Português,
a última do ano, fui com a Eva até casa dela, para
começarmos a decidir que roupas levar, que livros
meter na mala para ler à sombra dos pinheiros dos
Pirenéus, e a lista dos amigos a quem temos de mandar postais. Ah, e também para falarmos sobre as nossas aulas de Francês, que começam já na segunda-feira.
Já no quarto da Eva, na maior barafunda
jamais vista, escolhíamos as aventuras dos Cinco
Cães e um Gato que queríamos reler e eu, que adoro
fazer listas, estava de caneta em punho e com o meu
bloco-notas no joelho, quando a mãe da Eva entreabriu a porta e, sem olhar directamente para o quarto — porque receia chocar-se com a desarrumação
de uma parte da sua casa, e não vale a pena insistir
com a Eva — avisou:
— Eva, está o Helder ao telefone. Passei-te a
chamada cá para cima.
A Eva virou-se para mim:
— O que quererá o Podre?
Chamamos Podre ao Helder porque ele é
muito rico; e ele não se ofende nada com a alcunha,
acho que até gosta.
A Eva foi ao telefone e voltou passado pouco
tempo com uma grande novidade: o Podre vai para
o Midi, que é o Sul da França, passar o mês de Agosto, e queria saber se podia visitar-nos em Prades,
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mais ou menos a meio do mês, numa altura em que
os pais dele estão convidados para um mini cruzeiro no iate de um amigo. Gente rica é outra coisa!
É claro que a Eva disse logo que sim, ainda
antes de pedir licença aos pais. Ela sabe que o que
eles querem é companhia para a filha, e tinham até
convidado o Luís, o intelectual do 7.° C, que agora
passou a bobo, para ir connosco para Prades. Mas o
Luís tinha de ficar a fazer companhia à mãe, que é
viúva.
A Eva perguntou-me, com um ar preocupado:
— Achas que fiz bem?
E eu respondi-lhe:
— Não sei. Se calhar era melhor teres pedido
primeiro aos teus pais.
— Não! — disse a Eva. — O que me preocupa é se o Podre nos vai estragar as nossas férias com
as suas manias e as piadinhas do costume.
Desde que viemos de Inglaterra que o Helder
parece outro. Há um Helder AI (Antes da Inglaterra) e um Helder DI (Depois da Inglaterra). Antes,
era trocista, brincalhão, muitas vezes insuportavelmente gabarolas. Depois de passar quinze dias de
cama em Inglaterra com varicela, tinha ficado
sorumbático e tristonho. Ultimamente andava a
dar sinais de querer voltar a ser como era. Eu disse
à Eva:
— Nem sei se preferia o Podre insuportável
que só se gabava do dinheiro que tinha e só gostava
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