A ponta do iceberg
Bartira Rodrigues Cortez1
“(...) Platão (...) afirma existirem dois tipos de médicos: os que cuidam
dos escravos e dos estrangeiros que, não sabendo falar, são medicados
em silêncio após detalhada observação, e os que cuidam dos cidadãos
que, sabendo falar, narram, numa linguagem mito-poiética epopéica as
origens e percursos, no corpo, daquilo que os faz sofrer, daquilo que é
pathos.”(BERLINK, 1998)2
Meu primeiro contato com Sr.Marcos foi durante uma visita ao Centro de
Terapia Intensiva do Hospital Universitário. Como de costume, o “caso” nos foi
apresentado, ali, à beira do leito, uma vida resumida em 5 linhas. Sr.Marcos, que ouvia
tudo atentamente, apenas entendeu que o assunto da nossa conversa era ele.
A sensação que se tem durante essas visitas é a de que estamos conversando
diante de “vitrines”. Como sempre, todos estavam apressados, o médico precisava
voltar ao seu consultório, os estudantes para suas aulas ou para outros procedimentos.
Teríamos que “produzir”. Além disso, como já fôra definido o “rumo” daquele paciente,
não havia “sentido” algum em continuar ali.
Se olhássemos para Sr.Marcos, veríamos apenas uma pessoa comum, com um
dedo do pé necrosado. Esse mesmo dedo me fez lembrar uma aula que tive, onde o
professor não cansava de falar: “Certamente o problema não está no dedo do pé (...). O
dedo é apenas a ponta do iceberg”.
A ponta do iceberg. Isso ecoou na minha cabeça durante todo o intervalo do
almoço. Voltei ao CTI e conversei com Sr.Marcos. Desde o início mostrou-se receptivo.
Um pouco desconfiado, afinal, aquilo não era comum. Inclusive ouvi um “Ah, deve ser
a psicóloga!” vindo de alguém da equipe daquele centro. Continuamos a conversa. A
princípio não tive muitas dificuldades, ainda estava na “ponta”. Mas não demorou muito
a perceber o quanto era rica a história daquele paciente.
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2
Aluna do sexto ano do curso de Medicina na Universidade Federal da Paraíba - UFPB e membro do
Laboratório de Psicopatologia Fundamental do EPSI – Espaço Psicanalítico: Estudos, Clínica e
Consultoria (João Pessoa, PB).
BERLINK, M. T. O que é Psicopatologia fundamental. Revista Latinoamericana de Psicopatologia
Fundamental. São Paulo, n. 1, p. 46-59, 1998
Quando Sr.Marcos começou a chorar, pensei que não iria levar adiante aquela
conversa. Para minha surpresa, quanto mais se emocionava, mais queria falar. E estava
feito o convite ao mergulho. Tive um pouco de medo, e quase chorei junto com ele. Foi
difícil deixá-lo, mas precisava assistir aula. Ele quase não me deixou partir, porém
aceitou quando prometi retornar no dia seguinte.
Diante disso, lembrei-me das primeiras aulas do curso médico. A nós é oferecido
um corpo inerte, sobre cujo leito frio e duro tantas vezes nos inclinamos. Não para ouvilo, mas para estudar os detalhes de um corpo sem nome, sem história. Um “corpo sem
alma”. Assim é iniciada nossa relação com o Outro.
Lembro-me ainda dos primeiros contatos com os pacientes, há anos atrás.
Assustei-me várias vezes ao me deparar com minhas próprias fraquezas quando passei
do contato com o inanimado para o corpo que chora, que pulsa, que quer falar comigo 3.
Estaria preparada para ouvi-lo? Ou ainda me inclinaria sobre o corpo sem voz daquelas
primeiras aulas, observando um conjunto de órgãos, um “organismo”?
Uma vez inclinada sobre este corpo, deveria ouvir a sua voz com o interesse
participante do espectador do teatro da antiga Grécia, pois, como nos lembra Berlink,
“Tanto o espectador como o médico de cidadãos se inclinam (...) diante de alguém que porta
uma voz única a respeito de seu pathos, de sua tragicomédia, mas, também, de seu sofrimento,
de suas paixões, de sua passividade.”4
Inclinar-se e ouvir. Escutar. O verbo escutar se origina do latim Auscultare, que
nos remete
ao método da escuta médica, a auscultação, que significa literalmente a “escuta
dos barulhos internos do sujeito” – método que significa aplicar o ouvido com
atenção para perceber ou ouvir; ouvir com atenção.Pode-se dizer, então, que
escutar é (...) dar ouvidos àquilo que se enuncia apenas veladamente, àquilo que
somente um ouvido atento e experimentado na arte da escuta pode acolher.”5
Nunca imaginei que uma simples entrevista médica fosse capaz de revolver
tantos afetos, antes adormecidos em mim. Ver-me refletida em um outro desconhecido,
reflexo muitas vezes sombrio: fico pensando em como isso poderia afetar o ouvinte,
3
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5
MELLO FILHO, Júlio et al. Psicossomática Hoje. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
BERLINK, M. T. “O que é Psicopatologia fundamental.” Revista Latinoamericana de Psicopatologia
Fundamental. São Paulo, n. 1, p. 46-59, 1998.
FERNANDES, M.H. “O Corpo Doente e a Psicanálise.” In. Siqueira, A. J. Palavra, Silêncio e Escuta:
textos psicanalíticos. 1ª ed. Recife: Editora Universitária, 2007.
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interferindo na relação médico – paciente. A nossa onipotência não nos permite ver o
nosso lado mais recôndito.
Muitas vezes somos treinados para detectar o problema e aplicar-lhe uma
solução. Numa atitude quase xamanística, tenta-se exorcisar o paciente do seu sintoma,
o espírito mau. Curar. Rápido assim, imediato. Objetivamente. Retirando aquilo que nos
incomoda. Não necessariamente ao outro. Nega-se ao corpo a expressão de sua dor mais
profunda. E surge a seguinte indagação: quem, nesse caso, estaria doente?6
Não há espaço para o afeto daquele que nos procura? Não raro este afeto lhe é
amputado, restando apenas uma simples “ponta” de um iceberg emergindo de águas
frias e umbralinas. Flutuante, perdida no meio do oceano. Que repúdio seria esse ao
afeto que nos afeta? O medo de ser arrastado por águas mais revoltas? Pode-se tentar
resistir a ele, ignorá-lo. Mas ele está ali, bem próximo. E, como que indiferente à nossa
recusa em ouvi-lo, grita. Tenta-se, então, abafar-lhe a voz, afogando-o em águas tão
profundas que temos a ilusão de seu aniquilamento. Dele não se pode fugir. Rejeitar
seria mais simples?
Não é difícil percebermos a diferença entre as duas entrevistas médicas a que o
Sr Marcos foi submetido. A tradicional, em sua linguagem técnica, direta, tenta nos
informar ao máximo sobre a doença, os achados, os sinais físicos. Em minúcias.
Dirigida ao meio médico, não há espaço para a voz do afeto entre tantos floreios e
jargões. O Outro perde sua autonomia para contar a história à sua maneira: com sua
linguagem própria, seus acentos, redundâncias, espontaneidade... Falar sobre a sua dor
escondida, a mais dolorosa. Essa dor que não está à vista, que não é reduzida a uma
simples associação de sinais aferentes e eferentes entre tantas redes neurais. Cada dor é
única, cada sofrimento é sentido de uma maneira peculiar. E como ter acesso a isso
numa entrevista padronizada, onde a voz está conosco e não com quem padece dessa
dor?
Quando nos fala o afeto, a história ganha um colorido novo. Quebram-se as
“vitrines”. O contato é mais próximo. Se atentos, podemos inclusive ouvir essa voz
vinda dos lugares mais sinistros. Porque muitas vezes é uma voz débil, como acontece
ao passarmos muito tempo calados.
Uma entrevista tradicional é simples. Basta “memorizar” a seqüência do
“interrogatório”. Muitas vezes preencher uma ficha, um mero “X” em algum item da
6
WINNICOTT, D.W. “A Cura.” In: WINNICOTT, D.W. Tudo Começa em Casa. 3ª ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
3
lista de sintomas “possíveis”. Perpetua-se a “perda da identidade”, com a justificativa de
“facilitar o manejo” dos pacientes7 A anamnese tradicional deixava lacunas, mas
precisava fazê-la. Lacunas... as mesmas às quais o próprio Freud se referiu em seu
artigo O Inconsciente (1915)8. Deveria haver algo além daqueles sintomas. Algo mais
sutil. Quais palavras estariam por trás de um afeto, de uma emoção? Permanecer na
ponta do iceberg é como nadar num mar tranqüilo, em um dia de sol... Em círculos.
Aceitar mergulhar em águas turvas pode parecer, a princípio, assustador. Mas é,
certamente, o mais fascinante dos mergulhos.
Quero mostrar agora alguns momentos das entrevistas abertas que realizei com o
Sr. Marcos com a simples intenção de demonstrar como uma atitude de escuta pode
revelar os sentimentos que permaneceriam velados pelo tecido espesso da anamnese
médica tradicional.
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MELLO FILHO, Júlio et al. Psicossomática Hoje. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
FREUD, Sigmund. “O inconsciente.” (1915). In: FREUD, Sigmund, Artigos Sobre Metapsicologia e
outros trabalhos, ESB, vol XIV. Rio de Janeiro: Imago 1977.
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Apêndice
1-Entrevistas
Sr.Marcos, 53 anos, casado, motorista, natural e procedente de X.
07/02/2008 - Centro de Terapia Intensiva
Sr.Marcos mostrou-se muito receptivo à entrevista, relatando logo no início que
tudo começou quando seu pé “inchou” e começou a sentir falta de ar.(...). Disse que era
motorista há 33 anos, com certo orgulho do tempo de trabalho. (...). Trabalhou em uma
empresa de ônibus durante 9 anos, juntamente com 3 filhos, frutos do primeiro
casamento. “Eu consegui o emprego para todos eles na empresa”, fala, com certa
satisfação. Depois disso começou a trabalhar como caminhoneiro.
Eu – O senhor trabalhava muito?
Sr.Marcos - Dia e noite! (...).
Sr.Marcos relata que esteve internado no mesmo hospital, anteriormente, após
sentir “dor forte no peito”. Após 30 dias de internação, recebeu alta hospitalar,
permanecendo em casa, repousando. Porém, no décimo quinto dia, percebeu “inchaço”
nas pernas. Na admissão atual referiu dor “nas pernas” e “dedo apodrecendo”. Disse que
após uma “tontura”, foi encaminhado para o CTI, onde julga ter permanecido “3 dias”,
embora o registro tenha sido de 9 dias. Recebeu alta do CTI e retornou à enfermaria de
Clínica Médica. Porém, no mesmo dia, à noite, lembra de ter “passado mal”. No dia
seguinte, acordou no CTI novamente.
Eu - Do que se lembra?
Sr.Marcos – Nada. A única coisa que me lembro é de ter ficado um pouco tonto
e espantado com a quantidade de remédios que a enfermeira me deu para tomar. (...).
Depois disso não lembro de nada. Amanheci no CTI. Dormi em um lugar e acordei em
outro.
Comentou sobre a cirurgia no dedo, a princípio mostrava-se indiferente (...),
dizendo que seria melhor que o tirassem logo. Mas, pouco tempo depois: “Eu pensava
que não iam tirar meu dedo. Mas se for pra ficar bom...”.
Perguntei se era casado, ele respondeu prontamente que morava com a esposa e
um neto de 8 anos(...)
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Eu - E seu neto?
Sr.Marcos – Ele é filho de uma namorada de um dos meus filhos, ela ia dar o
menino, porque não tinha condições de criar. (olhos cheios de lágrimas, ora fitando
meus olhos, ora fitando a parede). Ele é mais que um filho pra mim (começou a chorar).
Tão estudioso! (pausa).
(...) Sr.Marcos disse que tem 3 filhos com a primeira esposa, a segunda “não deu
filhos”, falecendo de “ca de pulmão” pouco tempo depois. A terceira já tinha 4 filhos
quando casaram. (...): “Ah, doutora, essa esposa é ótima. (...). A gente nunca briga (...)
Quando ela vem me visitar, meu neto fica na casa da tia”. (...)
Eu – Muitas visitas?
Sr.Marcos - Sim! Todos vêm me visitar, principalmente aos domingos.(...)
Eu – Seu neto também vem?
Sr.Marcos – Eu só podia ver meu neto quando eu estava lá em cima
(enfermaria). Aí eu descia na cadeira de rodas para encontrar com ele na recepção do
hospital. Ele é louco que eu vá embora, pediu até para eu falar pro médico pra deixar eu
passar uma semana com ele. (começou a chorar).
Eu – Muitas saudades.
Sr.Marcos – Sim. Ele é tão inteligente, estudioso. Pediu um computador, mas
como eu vou conseguir comprar, estando aqui? Eu preciso trabalhar (...). Fico pensando
que não vou viver até ver meu neto terminando os estudos dele (chora). (Pausa). (...)
Perguntei sobre os pais dele. Disse que o pai faleceu há 22 anos (...)
Eu – E sua mãe?
Sr.Marcos – Perdi minha mãe aos 4 anos. (o semblante mudou completamente:
ficou extremamente sério e relatava os fatos como se assistisse a um filme)
Eu – Perdeu?
Sr.Marcos – Ela abandonou a casa, a mim e ao meu pai após uma briga que teve
com ele (...) (comovido). Eu lembro, ela saiu de casa e eu saí correndo atrás dela, no
meio da rua. Ela, quando percebeu, pegou uma pedra pra jogar em mim, todo mundo
ficou olhando. Aí ela gritou que não queria levar menino nenhum com ela. Lembro de
tudo!(chorando). (Pausa).
(...)
Sr.Marcos – (...). Mas eu sempre quis encontrar minha mãe novamente. Quando
entrei pro exercito, eu saí procurando ela, eu tinha 18 anos.
Eu – Procurando?
6
Sr.Marcos – Sim, eu só sabia o nome completo dela, fui bater em cidade Z., aí
eu encontrei a casa dela. Bati na porta e a chamei pelo nome. Quando ela apareceu,
perguntei se ela lembrava de mim. Ela respondeu que não. “Eu sou seu filho”.Ela se
agarrou comigo e começou a chorar.(...). Domingo passado ela esteve aqui, foi uma
surpresa que meus irmãos fizeram pra mim (...). (Pausa).
Eu -Vamos continuar a conversa outro dia? O senhor se importaria?
Sr.Marcos – Não, pelo contrário! Eu me sinto melhor, desabafei muita coisa!
(...)
Eu -Depois conversaremos mais, o senhor vai voltar para a enfermaria e eu irei
visitá-lo. O que o senhor acha?
Sr.Marcos – Certo, minha filha, é muito bom pra mim desabafar. Que Deus a
abençoe.
09/02/2008 - Enfermaria
Fiz uma visita a Sr.Marcos que aguardava avaliação médica na enfermaria, em
um quarto com outros 2 pacientes. Seria difícil entrevista-lo ali. Esperei um pouco até
que os outros saíssem para realizar exames.Quando Sr.Marcos me viu, disse que estava
muito melhor, que iria receber a visita da esposa e do neto brevemente.(...)
Eu – Como é o seu relacionamento com a mãe dele?
Sr.Marcos – Eu não gosto dela. Ela “deu” meu neto. Ia dar pra qualquer pessoa,
assim que me disseram isso, eu fui lá e peguei meu neto.
Eu – Ela não se opôs?
Sr.Marcos – Não. Ela não ia ter condições de criar ele.
Eu - Por que o senhor não gosta dela?
Sr.Marcos – Porque ela é mulher de programa e queria dar meu neto.
Eu – Como está se sentindo hoje?
Sr.Marcos – (...) Estou ansioso pra resolver logo isso no meu pé, quero voltar
pra minha vida normal (chorando).
14/02/2008- Enfermaria
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O médico foi visitá-lo na enfermaria para avaliá-lo. Disse que Sr.Marcos iria
receber alta e o mesmo retornaria apenas para acompanhar a evolução do dedo
necrosado. Ele perguntou se não ia mais fazer a cirurgia, e o médico respondeu que não
poderia fazer uma cirurgia, pois havia um problema no sangue dele, precisavam esperar
um pouco mais. Tiramos o curativo para avaliar melhor o aspecto do dedo. Sr.Marcos
perguntou se estava chegando no osso, o médico respondeu que sim.(...)
Quando o médico palpou o pé no qual havia sido feito o curativo, ele comentou: “Esse
pé é gelado demais. Estou morrendo aos poucos?”.
Este pé gelado reaparece mais uma vez como a ponta de um iceberg. Mais uma
vez o procedimento médico não permitiu acolher o que se passava no paciente para
além do seu pé necrosado. Algo para o qual a Medicina não tem nenhum remédio a
oferecer. O medo da morte.
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A ponta do iceberg - Associação Universitária de Pesquisa em