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N I V E R S I D A D E
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U S Í A D A
D E
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I S B O A
Faculdade de Arquitectura e Artes
Mestrado Integrado em Arquitectura
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982):
contaminações tropicais
V. 1
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
Lisboa
Dezembro 2014
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N I V E R S I D A D E
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U S Í A D A
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I S B O A
Faculdade de Arquitectura e Artes
Mestrado Integrado em Arquitectura
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982):
contaminações tropicais
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
Lisboa
Dezembro 2014
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982):
contaminações tropicais
Dissertação apresentada à Faculdade de Arquitectura e
Artes da Universidade Lusíada de Lisboa para a
obtenção do grau de Mestre em Arquitectura.
Orientadora: Prof.ª Doutora Arqt.ª Helena Cristina
Caeiro Botelho
Lisboa
Dezembro 2014
Ficha Técnica
Autora
Orientadora
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
Prof.ª Doutora Arqt.ª Helena Cristina Caeiro Botelho
Título
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações
tropicais
Local
Lisboa
Ano
2014
Mediateca da Universidade Lusíada de Lisboa - Catalogação na Publicação
LEITE, Inês de Sousa Gonçalves de Almeida, 1968Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982) : contaminações tropicais / Inês de Sousa
Gonçalves de Almeida Leite ; orientado por Helena Cristina Caeiro Botelho. - Lisboa : [s.n.], 2014. Dissertação de Mestrado Integrado em Arquitectura, Faculdade de Arquitectura e Artes da
Universidade Lusíada de Lisboa.
I - BOTELHO, Helena Cristina Caeiro, 1970LCSH
1. Arquitectura - Brasil - Século 20
2. Silva, Francisco da Conceição, 1922-1982 - Crítica e interpretação
3. Universidade Lusíada de Lisboa. Faculdade de Arquitectura e Artes - Teses
4. Teses – Portugal - Lisboa
1.
2.
3.
4.
Architecture - Brazil - 20th Century
Silva, Francisco da Conceição, 1922-1982 - Criticism and interpretation
Universidade Lusíada de Lisboa. Faculdade de Arquitectura e Artes - Dissertations
Dissertations, Academic – Portugal - Lisbon
LCC
1. NA855.L45 2014
Às minhas filhas Carolina e Sara
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todas as pessoas e instituições que apoiaram ou contribuíram para a
elaboração deste trabalho. Em primeiro lugar, naturalmente a Faculdade de
Arquitectura da Universidade Lusíada, no seio da qual desenvolvi este estudo. Em
particular, a Professora Doutora Arquitecta Helena Botelho, pela orientação científica,
essencial para o bom termo deste trabalho. O Professor Doutor Horácio Bonifácio,
director da faculdade, que acolheu com entusiasmo este projecto. Catarina Graça, da
mediateca, pela prestável ajuda.
A família do arquitecto, pelo acesso ao arquivo do Atelier Conceição Silva e
informação prestada, nomeadamente João Pedro Conceição Silva e Francisco Manuel
Conceição Silva. A filha Paula Conceição Silva e a segunda mulher, Carmo Valente,
que contribuíram com vivas memórias do Brasil. Os antigos colaboradores no Rio, pelo
seu testemunho, em particular o arquitecto Ricardo Silva Pinto e ainda Luís Pinto da
Cunha, filho do sócio José-Augusto Pinto da Cunha. A viúva deste último, Lais Pinto
da Cunha, quem enviou alguns elementos, não obstante a distância.
Betty Steinberg, encomendadora da casa identificada como “Ronaldo Steinberg” (seu
marido) e Carlos Salém, genro de Arthur Kelson, antigo cliente de Conceição Silva.
Maria Antonieta Pais de Sousa, filha do amigo Mário Pais de Sousa, ambos no Rio no
pós 25 de Abril. O amigo António Guimarães de Andrade e Silva, à época director da
Michelin no Rio de Janeiro. José Dias Silva, que amavelmente fez a ponte com a
família Steinberg. Os amigos Ana Magalhães, Filipa Vicente, João Pedro Benamor e
Maria Pommerenke, pela ajuda e troca de ideias.
As minhas filhas Carolina e Sara, pela paciência dispensada em mais um estudo de
investigação.
APRESENTAÇÃO
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982):
Contaminações tropicais
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
Este trabalho faz o levantamento e a análise da obra de Francisco da Conceição Silva
(1922-1982) no Brasil, entre 1975 e 1982. Na sequência da Revolução Portuguesa de
25 de Abril de 1974, o arquitecto português exila-se no Rio de Janeiro, onde cria um
pequeno atelier com José Augusto Pinto da Cunha (1921-2006), vindo de Angola
igualmente por razões políticas. Depois de traçar o seu percurso profissional no Brasil,
procura-se no primeiro volume entender, numa abordagem mais analítica, como o
arquitecto interage com a cultura e contexto brasileiro, ou seja, a resposta dada a um
determinado tempo histórico e situação geográfica. O quadro de referências vai nessa
época da mais radical Escola Brutalista de São Paulo, dominada por Vilanova Artigas,
à nova tendência regionalista que procura uma aproximação ao contexto local, num
Brasil à procura de uma nova saída para a crise do Movimento Moderno. Com uma
metodologia que atende à circunstância específica de cada encomenda, Conceição
Silva revela aqui a sua sensibilidade ao território brasileiro, imprimindo uma identidade
local à sua obra. Essencialmente residencial, esta faz a ponte entre modernidade e
tradição, reflectindo a própria situação da arquitectura brasileira. O segundo volume
apresenta o levantamento das obras realizadas no Brasil em fichas, com descrição
detalhada e respectivos elementos gráficos.
Palavras-chave: Francisco da Conceição Silva; obra brasileira; Século XX; Rio de
Janeiro.
PRESENTATION
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982):
Contaminações tropicais
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
The purpose of this study was to survey and analyse the architectural works of
Francisco da Conceição Silva (1922-1982) in Brazil, between 1975 and 1982.
Following the Portuguese Revolution of the 25th of April 1975, the Portuguese architect
departs to Rio de Janeiro, where he creates a small studio with José Augusto Pinto da
Cunha, who came from Angola also due to political reasons. After tracing his
professional career in Brazil, in the first volume, we tried to understand in a more
analytical way, how Conceição Silva interacted with the Brazilian local culture, this is,
how he responded to a determined historical period and geographical situation. The
framework of references available went from the more radical Brutalist School of São
Paulo, dominated by Vilanova Artigas, to the new regionalist tendency that searched
for an approach towards the local context, in a country such as Brazil, looking for an
alternative to the crisis of the Modern Movement. With a methodology that takes into
account the specific circumstances of each commission, Conceição Silva reveals his
sensibility to the brazilian territory, giving a local identity to his work. Mostly residential,
his work establishes a link between modernity and tradition, reflecting the situation of
the brazilian architecture itself. The second volume presents the survey of the projects
realized in Brazil in files, with a detailed description and their respective graphic
elements.
Keywords: Francisco da Conceição Silva; brazilian work; Twentieth century; Rio de
Janeiro.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1 – Vista geral, Hotel do Mar, 2ª fase. (Silva, F. (1), ca.1965). ......... 26 Ilustração 2 - Planta 4º piso, 1ª fase. (Leite, 2007, Volume II ) ......................... 26 Ilustração 3 - Hotel da Balaia (HOTEL, 1970) .................................................. 29 Ilustração 4 - Bloco de apartamentos, Tróia (Ilustração nossa, 2006) .............. 29 Ilustração 5 - Casa José T. da Silva, Seixal (Ilustração nossa, 2007)............... 32 Ilustração 6 – Casa Ribeiro da Cunha, Restelo, (Silva, F. (1), ca. 1960) .......... 32 Ilustração 7 - Conceição Silva com a segunda mulher, Carmo Valente, e a filha,
Paula, no Rio. (Silva, P., ca.1978). .................................................................... 33 Ilustração 8 - Folheto do encontro luso-brasileiro de 1972, (Sousa, 2006). ...... 33 Ilustração 9 - Inauguração da Fábrica Sombra, 1977. Conceição Silva e Carmo
Valente são os dois penúltimos. (Durães, 2014). .............................................. 37 Ilustração 10 - Conceição Silva, Madalena Chicó e Pinto da Cunha no atelier da
Barra. (Silva, J. e Silva, F., 1987, p.168). .......................................................... 37 Ilustração 11 - Novo Atelier na Barra (Silva, J e Silva, F., 1987, p.168)............ 38 Ilustração 12 - Residência Anna Mariani, Ibiúna, de Joaquim e Liliana Guedes
(Oliveira, J. 2008). ............................................................................................. 45 Ilustração 13 - Casas Hélio Olga e Baeta, de Marcos Acabaya (Marcos
Acabaya Arquitetos, 2014). ............................................................................... 46 Ilustração 14 - Portugal: Casa da Minhoca, Sintra (Ilustração nossa, 2006)..... 47 Ilustração 15 - Hotel do mar, Sesimbra. (Medeiros, 1963). ............................... 47 Ilustração 16 - Casa do Rochedo, Sintra. (Silva, J. e Silva, F., 1987, p.55). ..... 47 Ilustração 17 - Brasil: Casa no Portinho do Massaru. (Silva, J. e Silva, F., 1987,
p.175)................................................................................................................. 47 Ilustração 18 – Pátio interior casa em bada Loteamento Poatã, (Pinto, ca.1980).
........................................................................................................................... 47 Ilustração 19 - Casa Coslowsky, (Silva, P e Silva, F, 1987, p173-174)............. 48 Ilustração 20 - Casa do arquitecto Severiano Porto, Manaus, 1971, Severiano
Porto. (Guerra e Ribeiro, 2006) ......................................................................... 49 Ilustração 21 - Aldeia infantil SOS, Manaus, e Centro de Protecção Ambiental
de Balbina, de Severiano Porto (Baratto, 2014). ............................................... 49 Ilustração 22 – Planta casa desconhecida no Rio e alçado Bar de Praia para o
Hotel Ponta Negra no Estado da Bahia (Silva, F. (2), ca.1980). ....................... 51 Ilustração 23 – Corte Bar de Praia para o Hotel Ponta Negra no Estado da
Bahia (Silva, J. e Silva, F., 1987, p. 182)........................................................... 51 Ilustração 24 - Restaurante Chapéu de Palha, Manaus, Severiano Porto. ....... 51 Ilustração 25 - Casa do Nilo, Rio de Janeiro, de José Zanine Caldas. ............. 53 Ilustração 26 - casa Thiago de Mello, de Lúcio Costa. ( Colin, 2010). .............. 53 Ilustração 27 - Casa Roberto Milan, São Paulo (1960). (Matera, 2005)............ 53 Ilustração 28 - Casa dos Arcos, Rio de Janeiro (1972-8), de Lelé. (Joana
França Fotografia, 2014). .................................................................................. 54 Ilustração 29 - Vila Serra de Amapá, de Oswaldo Bratke. ................................ 55 Ilustração 30 - Residência Paulo Nogueira Neto, de Oswaldo Bratke (Silva, N.
2011).................................................................................................................. 55 Ilustração 31 - Casa do Dafundo (Silva, J. e Silva, F., 1987). ........................... 56 Ilustração 32 - e Casa Ronaldo Steinberg (Silva, J. e Silva, F., 1987, p.171). .. 56 Ilustração 33 - Casa Salik Resner, frente para a rua e Casa Coslowsky, interior
(Cunha, 2006). ................................................................................................... 56 Ilustração 34 - Superintendência da zona Franca de Manaus, de Severiano
Porto (Andreoli, Forty, 2004). ............................................................................ 57 Ilustração 35 - Fábrica Sombra (Durães, 2014). ............................................... 57 Ilustração 36 - Casa Carlos Royle, Búzios e casa em Taquará, Rio (Silva, F.
(2), ca.1980). ..................................................................................................... 58 Ilustração 37 - Fábrica Sombra (Durães, 2014). ............................................... 58 Ilustração 38 - Unicamp, Campinas, de Joán Villà. (Zein, 2014)....................... 58 Ilustração 39 - Casa Telmo Porto, de Vilanova Artigas. (Carrilho, 2014) .......... 61 Ilustração 40 - Residência Martirani, de Vilanova Artigas (Mahfuz, 2006). ....... 62 Ilustração 41 – Residência Martirani, planta piso 0 (Mahfuz, 2006). ................. 62 Ilustração 42 - Casa Canoas, Rio de Janeiro, de Oscar Niemeyer (Guerra,
Ribeiro, 2006). ................................................................................................... 64 Ilustração 43 - Residência Waldo Perseu Pereira, São Paulo, Joaquim e Liliana
Guedes. (Andreoli, Forty, 2004). ....................................................................... 65 Ilustração 44 - Casa Lota de Macedo Soares, de Sérgio Bernardes. (Cavalcanti,
2009).................................................................................................................. 66 Ilustração 45 - Casa Ronaldo Steinberg, Plantas dos pisos 1 e 2, fachada para
a rua e perspectiva. (Silva, F. (2), ca.1980)....................................................... 67 Ilustração 46 - Casa Coslowsky, Planta do piso 0 (Silva, J. e Silva, F., 1987,
p.172)................................................................................................................. 68 Ilustração 47 – Casa Coslowsky, exterior (Cunha, 2013).................................. 68 Ilustração 48 - Casa Valadas Fernandes, Cascais. (Leite, 2007, Volume II). ... 69 Ilustração 49 - Casa Resner, planta do piso 1 e perspectiva. (Silva, J. e Silva, F.
1987, ps.186-187).............................................................................................. 70 Ilustração 50 - Vista superior da Casa Ronaldo Steinerg, a última à direita.
(Google Inc., 2014) ............................................................................................ 71 Ilustração 51. Casa Steinberg (Silva, J. e Silva, F. 1987, p.169). ..................... 72 Ilustração 52 - Casa Coslowsky, alçado frontal. (Silva, F. (2), ca.1980). ......... 72 Ilustração 53 - Casa Resner, corte EE e alçado para a rua (Silva, F. (2),
ca.1980). ............................................................................................................ 72 Ilustração 54 - Casa Coslowsky. (Silva, J. e Silva, P., 1987, ps.172-173). ....... 73 Ilustração 55 - Perspectiva do Loteamento da Cachamorra, Rio de Janeiro
(Pinto, 1980). ..................................................................................................... 74 Ilustração 56 Casa Royle, Búzios (Silva, F. (2), ca. 1980). ............................... 74 Ilustração 57 Casa Coslowsky e Casa em Angra dos Reis (Cunha, 2013)...... 74 Ilustração 58 - Casa Conceição Silva, Guincho, Portugal. (Silva, F. (2), ca.
1960).................................................................................................................. 75 Ilustração 59 - Casa Valadas Fernandes, Boca do Inferno (Ilustração nossa,
2007).................................................................................................................. 75 Ilustração 60 – Casa do Dafundo, Planta Piso 1 (Leite, 2007, Volume II)......... 75 Ilustração 61 - Casa própria, Lina Bo Bardi, São Paulo (Andreoli, Forty, 2004)76 Ilustração 62 - Casa Milton Guper, São Paulo, de Rino Levi. ( Andreoli, Forty,
2004, p.157)....................................................................................................... 76 Ilustração 63 - Residência Lota de Macedo, de Sérgio Bernardes. (Kamita,
2013).................................................................................................................. 77 Ilustração 64 - Residência RB, de Lélé. (França, 2014). ................................... 77 Ilustração 65 - Residência José Roberto Filipelli, de Ruy Ohtake. (Correa, 2014)
........................................................................................................................... 77 Ilustração 66 - Residência Gonçalves Dente (Silva, 2011). .............................. 77 Ilustração 67 - Conjunto Cafundá, Rio, Sérgio Magalhães e Ana
LuízaMagalhães (Ghione, 2014). ...................................................................... 80 Ilustração 68 - Hotel Méridien, Rio, Paulo Casé. (Barbosa, 2012). ................... 80 Ilustração 69 - Condomínio Nova Ipanema, Rio, Edmundo Musa. (Colin, 2011).
........................................................................................................................... 80 Ilustração 70 - Edifício Rosalina Brand, fachada, plantas do 15º piso e
cobertura, Rio (Silva, J. e Silva, F., 1987, ps.180-181). .................................... 81 Ilustração 71 – Edifício Rosalina Brand, vista varanda (Silva, J. e Silva, F.,
1987, p.180)....................................................................................................... 82 Ilustração 72 - Edifícios Triomphe e Maison de Mouette, São Paulo, de Ruy
Ohtake. (Ruy Othake Arquiteto, 2010). ............................................................. 82 Ilustração 73 - Conjunto das ruas Prof. Castilhos e Prof. Gonçalves, praça
interior e planta de conjunto. Rio (Silva, J. e Silva, F., 1987, ps.176-177). ....... 85 Ilustração 74 - Rua Olinda Ellis/João Ellis, conjunto e pátio interior, Rio. (Pinto,
ca.1980). ............................................................................................................ 85 Ilustração 75 – Planta de piso e alçado. Lateral Conjunto de Poatã, Rio (Silva,
J. e Silva, F., 1987, p179). ................................................................................. 86 Ilustração 76 – Conjunto da Cachamorra, plano director, Rio (Pinto, 1979). .... 87 Ilustração 77. Conjunto Cachamorra, Casa tipo AA3, plantas piso 0 e piso1
(Pinto, 1979). ..................................................................................................... 88 Ilustração 78 - Conjunto Cachamorra, Casa tipo AA3, corte AB (Pinto, 1979). 88 Ilustração 79 - Conjunto Cachamorra, perfil e perspeciva da rua; perspectiva de
uma casa tipo (Pinto, 1979). .............................................................................. 88 SUMÁRIO
Volume I
1. Introdução ................................................................................................................ 19 2. Percurso. O êxito em Portugal, a resistência no Brasil. ........................................... 25 2.1. Atelier Conceição Silva em Portugal. Singularidades. ...................................... 25 2.2. Um atelier artesanal no Rio de Janeiro. Em prol da sobrevivência. ................. 30 3. Análise à produção. Uma obra carioca. ................................................................... 41 3.1. Entre brutalismo e regionalismo. A tradição recuperada. ................................. 41 3.2. Modos de habitar e propostas espaciais .......................................................... 60 3.3. Da habitação colectiva à escala urbana ........................................................... 78 4. Considerações Finais .............................................................................................. 93 Referências .................................................................................................................. 99 Bibliografia .................................................................................................................. 105 Volume II
Fichas de projectos.
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
1. INTRODUÇÃO
Objecto de estudo e objectivos
Este trabalho tem dois objectivos principais: em primeiro lugar, levantar e recolher de
forma sistematizada a documentação relativa à obra do arquitecto Francisco da
Conceição Silva (1922-82) no Brasil1, entre 1975 e 1982; em segundo lugar, analisar
essa obra face ao contexto local, situando-a também na continuidade da obra
produzida em Portugal.
Pretende-se ainda com este estudo dar continuidade a uma dissertação de mestrado
sobre a produção do Atelier Conceição Silva, concluída pela autora em 2007 na
Universidade Nova, em História da Arte Contemporânea (Leite, Inês, 2007), no âmbito
da qual não foi possível cobrir a produção do outro lado do Atlântico. Corresponde à
última fase de trabalho do arquitecto, quem veio a falecer no Rio de Janeiro em 1982,
aos 59 anos, e cobre todo o período dos quase sete anos de permanência no Brasil.
Tomou-se assim como ponto de partida desta dissertação o ponto de chegada do
trabalho anteriormente realizado. Ainda considerável, a produção de cerca de duas
dezenas de projectos cobre programas como estabelecimentos comerciais, casas
unifamiliares, uma fábrica e conjuntos residenciais para os trabalhadores da
multinacional Michelin. A intenção inicial era proceder ao levantamento exaustivo
dessa obra, o que não foi possível pelo facto de se ter perdido o arquivo do atelier
brasileiro e termos de nos cingir, essencialmente, aos elementos encontrados no
escritório dos filhos2, em Lisboa.
Interessou-nos em particular averiguar as contaminações da arquitectura e do
ambiente brasileiros, ou seja a resposta dada por Conceição Silva a um novo contexto,
quer físico, quer cultural ou económico-social. E, no sentido contrário, identificar as
1
Conceição Silva tem como sócio, no atelier do Brasil, José Augusto Pinto da Cunha (1921-2006), sendo
a autoria dos projectos dos dois arquitetos. Pinto da Cunha é filho de Luís Alexandre da Cunha, antigo
director da Escola de Belas Artes de Lisboa, onde se formou em 1954. Instalou-se em Angola em 1955,
onde trabalhou na Câmara Municipal de Luanda com Simões de Carvalho, com quem fez o Centro de
Radiodifusão de Angola. De nota ainda, a casa própria na Ilha de Mussulo. Em 1975 foi para o Rio de
Janeiro onde se juntou a Francisco da Conceição Silva. Em 1982, com a morte deste, manteve atelier
com Carmo valente, quem regressou a Portugal em 1983. Em 1989, Pinto da Cunha mudou-se para o
Estado da Bahia.
Esta informação resulta de uma entrevista por email com a segunda mulher de José Augusto Pinto da
Cunha, Lais Pinto da Cunha e de um CV com listagem das obras de Pinto da Cunha. (Cunha, 2013).
2
Os filhos João Pedro Conceição Silva e Francisco Conceição Silva deram continuidade ao atelier de
Lisboa, localizado na Rua D. Pedro V. O arquivo do Atelier Conceição Silva aí permanece e inclui cópias
de grande parte dos projectos realizados por Francisco da Conceição Silva e José Augusto Pinto da
Cunha no Brasil, elementos recolhidos para a exposição do arquitecto na Sociedade Nacional de Belas
Artes, em Lisboa, em 1987.
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
19
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
contribuições da arquitectura que então se praticava em Portugal - de influência
europeia ou Ocidental - para essa produção. Consequentemente, o corpo do primeiro
volume não é um somatório de casos de estudo propiciados pelo levantamento da
obra ou pela eleição de dois ou três projectos, mas sim a análise dos factores de
inclusão ou exclusão desta obra no contexto brasileiro, cruzando um pequeno conjunto
de projectos mais significativos com a produção local. Não cronológica mas sim
comparativa, essa análise faz um estudo crítico a partir dos aspectos relevantes que
explicam as opções de projecto, recorrendo ao paralelo com a produção brasileira.
Optou-se assim por uma narrativa temática, apoiada num conjunto limitado de obras
mais sintomáticas das preocupações dos arquitectos. Em termos de contextualização
histórica, importou-nos inserir a obra dentro do quadro de referências polarizado entre
duas posturas extremas - o dominante brutalismo paulista e as correntes regionalistas
mais dispersas pelo território brasileiro, focando-nos igualmente em figuras mais
marginais com posturas menos classificáveis.
Por sua vez, o segundo volume compila em fichas toda a informação – nuns casos
mais completa, noutros mais escassa – relativa a todas as obras que conseguimos
identificar. Pelo seu desenvolvimento, estas fichas constituem na realidade casos de
estudo e serviram de suporte para justificar e construir a narrativa de teor analítico do
primeiro volume.
A nossa análise conduziu a uma leitura mais interpretativa, reconhecendo-se os riscos
de tal abordagem, sendo que este trabalho é uma pesquisa em aberto, que nos
propomos mais tarde aprofundar com o conhecimento real da obra in loco. O seu
interesse reside também na transformação que um texto com carácter mais ensaístico
tem sobre a própria obra. Essa releitura poderá assim dar um novo significado à obra,
ultrapassando as próprias intenções de seus autores, até porque acrescenta-lhes a
acção do tempo, não só do tempo decorrido, mas também uma visão retrospectiva a
partir do tempo presente.
Saliente-se a relevância deste trabalho, em primeiro lugar, como acima dito, para
completar o estudo sobre a produção de um dos mais importantes arquitectos
portugueses das décadas de sessenta e setenta do século XX, quem criou e dirigiu um
dos maiores e mais produtivos ateliers do país. Por outro lado, numa altura em que a
mobilidade na profissão era reduzida, limitando-se praticamente às então colónias
portuguesas, a criação de raiz de um atelier no Brasil, motivada pelo exílio político,
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
20
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
coloca-o numa posição singular e quase única no contexto dos arquitectos
portugueses. Salvo raras excepções, como Delfim Amorim (1917-72), quem se
estabelece no Recife em 1951, a maioria dos seus colegas também ali emigrados
foram trabalhar para ateliers locais e por curtos períodos, não tendo a sua produção a
independência autoral da obra de Conceição Silva e Pinto da Cunha.
É também de referir o caminho percorrido desde o primeiro trabalho de investigação
levado a cabo em 2007, com uma nova formação em arquitectura, possibilitando uma
leitura mais aprofundada ou completa da obra de Francisco Conceição Silva. Este
trabalho reflecte assim duas visões que se articulam, em função das duas formações
da autora, uma contextualização mais apoiada na História e uma leitura mais à luz da
prática e fundamentos da arquitectura e das suas questões operativas.
Por fim, o significado deste trabalho é tentar perceber qual a relevância da obra de
Francisco Conceição Silva no panorama da arquitectura carioca, se teve ressonâncias
no seu tempo, ou se, numa visão retrospectiva, lhe caberia um lugar na História da
Arquitectura Brasileira.
Estado da Arte
Sobre a “obra brasileira” de Francisco da Conceição Silva existe apenas o Catálogo
geral da exposição retrospectiva patente na Sociedade Nacional de Belas Artes em
1987 (Silva, João Pedro Conceição e Silva, Francisco M. Conceição, 1987) e um artigo
publicado pelo arquitecto Henrique Chicó, antigo colaborador do Atelier Conceição
Silva (em Lisboa), na revista “Arquitectura”, em 1983, um ano após a morte do
arquitecto (Chicó, Henrique, 1983, p-ps. 34 a 45). No catálogo acima mencionado, o
qual cobre quase exaustivamente a obra do arquitecto em Portugal e além fronteiras,
identificou-se grande parte da produção no Brasil e publicaram-se elementos gráficos,
nomeadamente
desenhos
técnicos
e
fotografias.
Michel
Toussaint
Pereira,
responsável pelo texto de apresentação, aborda sucintamente a fase do Rio,
retratando-a como uma das cinco etapas do percurso do arquitecto, caracterizada pelo
“retorno ao estirador” (Pereira, Michel Toussaint A., 1987), ou seja uma fase de maior
envolvimento de Conceição Silva com o projecto.
Henrique Chicó “explica a obra brasileira em continuidade e como resultado de todo o
percurso de Conceição Silva em Portugal, salientando essencialmente a criação de
percursos, a atenção à topografia e paisagem e o cuidado na pormenorização” (Leite,
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
21
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Inês, 2007, p. XXIV). Como apontado em estudo anterior, “ficaram no entanto por
avaliar as contribuições e sugestões do contexto particular brasileiro nesta obra”
(Leite, Inês, 2007, p. XXIV), para além da recolha sistematizada da produção e sua
análise mais aprofundada, que naturalmente não caberiam a um artigo de revista.
Especificamente sobre Francisco Conceição Silva e a sua restante obra, além do
catálogo acima citado, existem a dissertação de mestrado da autora3 e uma
dissertação de mestrado sobre os prédios de habitação colectiva de Tiago Rodrigues
(Rodrigues, Tiago, 2009). De salientar ainda um texto analítico de Paulo Martins
Barata na revista “Prototypo” (Barata, Paulo Martins, 2000, p-ps. 38 a 69), o qual
enquadra a obra e diferentes fases do Atelier Conceição Silva dentro das correntes
arquitectónicas internacionais, sem incluir a obra brasileira.
Organização e Metodologia
Este trabalho está organizado em dois volumes: um primeiro corpo geral teórico e
analítico e um conjunto de fichas individuais de projectos.
O texto do primeiro volume estrutura-se em duas partes, a primeira
enquadra os
antecedentes do Atelier Conceição Silva em Portugal, assim como o percurso traçado
no Rio de Janeiro e a segunda parte - o objecto de estudo propriamente dito – consiste
na análise à obra de Francisco Conceição Silva e seu sócio José Augusto Pinto da
Cunha, dentro do quadro político e cultural brasileiro. A segunda parte divide-se em
três capítulos: o primeiro faz o enquadramento mais teórico e histórico, tentando inserir
e comparar a obra dos arquitectos com as principais correntes vigentes no Brasil
desse período; o segundo capítulo analisa essencialmente três casas unifamiliares de
acordo com as suas características compositivas, volumétricas e espaciais, segundo
uma organização temática, comparando sempre com projectos de colegas brasileiros;
O terceiro capítulo foca-se nas obras de grande escala, a saber os conjuntos
residenciais para a Michelin e um prédio de habitação colectiva, separado pela
dimensão urbana da intervenção e pelo tipo de programa.
Refira-se, em termos biográficos e na análise dos projectos, o enfoque no arquitecto
Francisco Conceição Silva, pelo facto de, como já afirmado, este trabalho constituir um
complemento a uma dissertação de mestrado anterior e, consequentemente, o
3
Para um conhecimento mais completo sobre as referências ao arquitecto e sua obra na historiografia
portuguesa veja-se o sub-capítulo “0-3 O estado da Arte”, assim como as fichas de projectos do Volume
II, em Inês Leite, 2007, p-ps XXI a XXV e Volume II.
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
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Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
conhecimento mais profundo da sua obra. Sublinhe-se no entanto novamente que os
dois arquitectos eram sócios, formalmente ou não, não sendo possível com rigor
individualizar a contribuição de cada um. Ressalve-se ainda que José Augusto Pinto
da Cunha terá igualmente uma sólida produção em Angola, infelizmente nunca
estudada e, uma vez que não nos cabe, no âmbito deste trabalho, realizar esse
estudo, não nos foi possível fazer a ponte entre esta obra e aquela que agora se
apresenta.
O segundo volume consiste numa compilação sistemática de fichas individuais de
projectos, resultado do levantamento da obra. De fácil consulta, procedem à descrição
detalhada de cada obra na medida das possibilidades da informação disponível,
constituindo-se na maioria das vezes, casos de estudo. Sintetizam ainda a informação
geral, como datas de projecto, encomendadores, bibliografia, e apresentam os
elementos gráficos sobre cada projecto, nomeadamente desenhos técnicos e
fotografias. Esta recolha não foi exaustiva quanto ambicionávamos, devido à falta de
elementos disponíveis.
Em termos metodológicos, o trabalho partiu da recolha dos elementos primários,
principalmente os projectos que se encontram no arquivo do Atelier Conceição Silva,
em Lisboa, hoje dirigido pelos filhos do arquitecto. Infelizmente, os desenhos técnicos
encontram-se muito incompletos, não possuem memórias descritivas, por vezes não
têm moradas ou estas já não têm a mesma designação. Não obstante foi na maioria
dos casos sido possível localizar as obras com a colaboração das pessoas
entrevistadas ou através de pesquisas no Google Earth. Por sua vez, após a morte de
Conceição Silva em 1982, o arquivo original do atelier comum com Pinto da Cunha
ficou no escritório deste último e a sua viúva, Lais Pinto da Cunha, acabou por
desfazer-se dos desenhos devido à falta de espaço.
Na impossibilidade de num tão curto espaço de tempo nos deslocarmos ao Brasil, seja
para proceder à desejável consulta aos arquivos da Câmara Municipal do Rio de
Janeiro, seja para a visita aos imóveis, tivemos de nos cingir às cópias de projectos do
atelier Conceição Silva filhos, peças usadas na exposição de 1987, e a uma listagem
de projectos integrada no CV de Pinto da Cunha, dispensada por Lais Pinto da Cunha.
O antigo colaborador, Ricardo Silva Pinto, forneceu ainda o projecto completo do
Loteamento da Cachamorra. Tivemos igualmente acesso às fotografias do Atelier
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
23
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Conceição Silva usadas na exposição de 19874 e a outras de José Augusto Pinto da
Cunha, fornecidas por Laís Pinto da Cunha, assim como a registos de Ricardo Silva
Pinto, tirados quando trabalhava no atelier.
Por outro lado, foram realizadas entrevistas pessoais ou por email, com pessoas que
trabalharam ou conviveram directamente com os arquitectos – os antigos
colaboradores Ricardo Silva Pinto, quem esteve mais tempo no atelier brasileiro, Luís
Pinto da Cunha, filho de José Augusto Pinto da Cunha; Carmo Valente, a os clientes
Betty Steinberg (mulher de Ronaldo Steinberg),
Carlos Salém, genro de Arthur
Kelson; os amigos António Guimarães de Andrade e Silva, director da Michelin, e
Maria Antonieta Paes de Sousa, filha do amigo e cliente Mário Paes de Sousa. A
família também trouxe algumas informações, nomeadamente os filhos João Pedro
Conceição Silva, Francisco Conceição Silva, e Paula Conceição Silva.
Importa também realçar a escassez historiográfica sobre as décadas de setenta e
oitenta do século XX - um período demasiado recente da arquitectura brasileira agravada ainda por uma visão de certo modo hegemônica da corrente moderna filiada
na obra de Corbusier e, em particular neste período, na “escola brutalista de São
Paulo”. Começa apenas agora a esboçar-se uma história paralela que resgata um
conjunto de actuações mais individuais e dispersas, mas não menos importantes, no
seio das quais poderíamos enquadrar a obra deste atelier. Fomos assim forçadas a
uma pesquisa e síntese a partir de várias fontes sem haver ainda uma reflexão
aprofundada sobre o período, sendo o conhecimento ainda fragmentado e pouco
sistematizado. Manuais panorâmicos de referência como o de Segawa (Segawa,
Hugo, 1999) perdem a objectividade e tratam de forma menos estruturada o período
pós 1964, como o próprio autor alerta na introdução. Não sendo essa síntese o nosso
objecto de estudo, tivemos de proceder igualmente a uma análise microscópica, vendo
trabalhos de arquitectos brasileiros caso a caso e em função das disponibilidades
monográficas, assumindo o risco de alguma imparcialidade.
O objectivo final foi inserir a obra dos dois arquitectos portugueses no debate cultural
arquitectónico sobre o Rio, num certo recorte da geografia e da história.
4
Estas foram tiradas pelo filho João Pedro Conceição Silva, numa viagem ao Rio em 1980, e pelo antigo
colaborador, Henrique Chicó, quem visitou o arquitecto cerca de um ano antes.
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
24
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
"[...] É como se dissessem, pela média façam
isso: um templo de planta circular, a Deusa
Diana
em
estilo
Jônico,
com
as
elevações feitas com a sombra projectada a
45 graus, uma coisa incrível, alguns
exercícios eram assim. Mas, só pra você ter
uma ideia, entre as ordens gregas, eu inventei
uma ordem brasileira onde haviam macacos,
bananas, tudo assim e passou. Os colegas
gostavam muito e eu acredito que o Cristiano
sorriu muitas vezes pra mim por causa disso.
Aí eu fiz perfeitamente, de longe você não
percebia o que era, porque estava bem
acabado como era de esperar, um templo
qualquer onde havia frontão, mas se
aproximando você via que a alegoria toda era
feita na base do macaco, carro de boi,
5
Monteiro Lobato" (Matera, ano, p. 27)
2. PERCURSO. O ÊXITO EM PORTUGAL, A RESISTÊNCIA NO BRASIL.
2.1. ATELIER CONCEIÇÃO SILVA EM PORTUGAL. SINGULARIDADES.
Uma breve contextualização do Atelier Conceição Silva torna-se necessária para
perceber em que condições o arquitecto chega ao Rio6. Interessa sobretudo entender
as singularidades do atelier lisboeta - singularidades estas que lhe terão dado a
medida das suas ambições no Brasil -, assim como sintetizar o legado de referências e
conhecimento que serviram de base à actividade no novo contexto. Trata-se assim do
património imaterial que Conceição Silva leva consigo, numa dura “jornada” em que
não beneficia de qualquer suporte financeiro, já que parte literalmente com “uma mão
à frente e outra atrás”.
5
Paulo Mendes da Rocha, a propósito do ensino acadêmico na Mckenzie, São Paulo. (Apud Matera,
2005 p.27).
6
A evolução pormenorizada do Atelier Conceição Silva é traçada na dissertação já citada da autora.
Resumem-se aqui os aspectos mais marcantes, que justificaram uma posição inovadora no quadro da
profissão ou da produção. Para uma leitura detalhada da obra em Portugal ver Inês Leite, 2007.
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
25
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Ilustração 1 – Vista geral, Hotel do Mar, 2ª fase. (Silva, F. (1),
ca.1965).
Ilustração 2 - Planta 4º piso, 1ª fase. (Leite, 2007, Volume II )
Após uma primeira década de actividade sobretudo marcada pela encomenda de
residências unifamiliares, é o Hotel do Mar (1960-63, primeira fase) que coloca
Conceição Silva na ribalta, não só pelo sucesso que esta pequena unidade hoteleira
de luxo tem junto da elite burguesa (e igualmente internacional), mas também pelas
suas qualidades arquitectónicas, que justificam a sua publicação e destaque em várias
revistas e livros da especialidade portugueses e estrangeiros7. O Hotel do Mar é
reconhecido pela historiografia como um marco no panorama da arquitectura
portuguesa e apontado como um dos - senão o - projecto que mais marcou a carreira
do arquitecto. Contemporâneo ao Inquérito à Arquitectura Popular (1955-61), numa
altura em que se debatia o esgotamento da ortodoxia do movimento moderno e que se
procuravam formas operativas de uma aproximação às culturas locais, o Hotel do Mar
constitui-se como uma resposta prática às reflexões teóricas, uma bem lograda
contextualização ou “mediterranização” do moderno, com recurso a técnicas e
materiais vernaculares sem perder as lições da arquitectura moderna. A sensibilidade
demonstrada na implantação em socalcos adaptada à forte pendente, na inflexão do
edifício em função do terreno, na composição dos volumes de repetidas células
cúbicas (os quartos), revelam uma nova preocupação com a integração na paisagem.
Mas também a visão global e sistémica do projecto, com o desenho exaustivo até ao
mobiliário e aos arranjos exteriores, fazem-no figurar como uma das primeiras obras
portuguesas neo-organicistas, com influências quer do empirismo escandinavo, quer
através da recuperação da obra do então recém falecido Frank Lloyd Wright (18671959). O Hotel do Mar revela de forma significativa uma preocupação que
permanecerá ao longo de toda a vida de Conceição Silva: participar no debate
internacional sobre a evolução da arquitectura, não com uma reflexão teórica – o
7
A título de exemplo, foi publicado na Arquitectura nº80, Dezembro de 1963 e na DBZ nº7, Julho de
1970. Para mais informações e uma listagem bibliográfica completa ver a ficha do Hotel do Mar em Inês
Leite, 2007, Volume II.
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
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Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
arquitecto não deixou significativa produção escrita – mas sobretudo com a prática,
com a obra construída, já que, como defendia, esse é o fim último do arquitecto.
O Hotel do Mar será o primeiro de um vasto conjunto de projectos turísticos que irão
marcar a carreira do arquitecto - muitos não construídos - fazendo-lhe receber, a título
póstumo, em 1987, a Medalha de Mérito Turístico atribuída pela Direcção Geral do
Turismo, no mesmo ano em que a Sociedade Nacional de Belas Artes, da qual foi
presidente entre 1963 e 1970, lhe organizava uma exposição antológica. O seu êxito e
visibilidade são igualmente ligados à realização de outras unidades hoteleiras, numa
altura de grande crescimento do sector do turismo em Portugal. A nova escala da
encomenda permite a Conceição Silva a afinação do ponto de vista da organização e
metodologia de trabalho de um atelier de arquitectura, inovadoras e únicas em
Portugal, sintetizando quer influências da Bauhaus, quer modelos americanos ligados
à gestão de grandes gabinetes de projecto. É com o projecto do Plano de Expansão
Turística da Praia Maria Luiza (1964/67, Albufeira), no qual se integra o Hotel da
Balaia (1965-67 primeira fase), e para o qual convida a associar-se o colega Maurício
Vasconcelos, que o arquitecto vai delinear um tipo de organização que o poderia
colocar na vanguarda europeia. A real eficácia do atelier, a qual visava uma resposta
célere às encomendas e uma boa alocação de recursos, permitiu-lhe não só a
angariação e fidelização de vários clientes, como também alargar o leque de
responsabilidades a actividades que até agora não cabiam na profissão, como são
exemplo a construção ou até a delineação de estratégias comerciais para os
empreendimentos dos seus clientes. Para além de equipamento de ponta, como um
dos primeiros computadores num atelier de arquitectura e programas como o “Sistema
de Pert” para controlar a gestão de projecto, a grande inovação que tentará ser
seguida por outros gabinetes portugueses, mas sem nunca conseguir a abrangência e
nível de eficácia do Atelier Conceição Silva (refiram-se nomeadamente, os GAP, de
Maurício de Vasconcelos e o de Tomás Taveira, ex-sócio o primeiro e antigo
colaborador o segundo), consiste na organização da actividade em vários
departamentos complementares, desde a arquitectura, estruturas, desenho de
equipamento (onde estiveram o designer Eduardo Afonso Dias e a arquitecta Carmo
Valente), artes plásticas e cor (com o pintor Rolando Sá Nogueira) etc. Para além das
áreas nucleares, os arquitectos contavam ainda com o apoio de uma boa biblioteca
sempre actualizada com as últimas revistas e livros nacionais e internacionais da
especialidade, fotógrafa residente (Luísa Flores), boas condições físicas de trabalho e
salários, entre outras condições raras na profissão. Aparentemente único, o atelier
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
27
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
teve como residente um poeta – Herberto Helder, que tinha direito a uma sala com
uma privilegiada vista sobre Lisboa para melhor cumprir as suas funções – a
participação nalguns projectos, como na loja da Valentim de Carvalho em Cascais e
ainda a original tarefa de inspirar o processo criativo dos colaboradores.
O Atelier Conceição Silva foi na realidade um dos gabinetes de referência a partir de
meados da sessenta e durante uma década até à revolução de 25 de Abril de 1974,
tendo, um ano mais tarde e com a saída do arquitecto, sido tomado pelos
trabalhadores, à semelhança de muitas empresas em Portugal. Com uma quantidade
notável de encomendas, métodos inovadores, boas condições de trabalho, uma
preocupação constante na renovação da arquitectura e uma resposta qualificada à
encomenda, acabou por ser como uma “escola” para várias gerações de profissionais.
Conceição Silva tinha uma visão democrática da profissão, a qual privilegiava a equipa
e não o indivíduo, o mérito e não a proveniência social. A arquitectura e a Arte em
geral eram, em boa verdade, os seus principais interesses. Um entusiástico
empreendedor com uma visão progressista, interessava-se por tudo o que era
inovador, e à medida que a actividade ia crescendo, foi levado a investir em outras
áreas como a rádio, publicidade, lojas de design, galerias de arte, entre outros. O
dinheiro canalizado dessas e outras actividades servia para suportar o pouco rentável
atelier de projecto.
O Hotel da Balaia sintetiza e ilustra a visão do arquitecto de obra global e a sua
capacidade de resposta fomentada pela boa organização do atelier. Conceição Silva
expande aqui a experiência do Hotel do Mar, desenhando até aos menus do
restaurante, encomendado as obras de arte e responsabilizando-se pela construção.
O Hotel é entregue chave na mão, dentro do prazo previsto, com um nível de
pormenorização e uma qualidade de construção difícil de igualar. Numa altura em que
as relações entre cliente e projectista eram difíceis, Conceição Silva defendia o
controle de todo o processo pelos arquitectos, desde a concepção à obra construída,
chegando ao limite de criar uma construtora, a qual será responsável, entre outras
obras, pelas Torres de Alfragide e pelo conjunto turístico de Tróia.
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
28
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Ilustração 3 - Hotel da Balaia (HOTEL, 1970)
Ilustração 4 - Bloco de apartamentos, Tróia (Ilustração nossa,
2006)
A análise dos projectos hoteleiros ao longo do tempo é também reveladora dessa
procura incessante de actualização no que diz respeito às correntes arquitectónicas,
repercutindo ensaios nas casas de habitação unifamiliar, que Conceição Silva nunca
deixou de projectar. Se na primeira fase do Hotel da Balaia ainda se fazem sentir as
influências de revisão do moderno orientadoras do Hotel do Mar, já na segunda fase
(1971-73), concomitante com vários conjuntos para a vila de Sesimbra e com a casa
própria no Dafundo, começa a evidenciar-se o alinhamento com o brutalismo inglês,
influência essa incontornável em Tróia, fazendo neste último caso lembrar obras dos
arquitectos ingleses James Stirling (1926-1992) ou do casal Alison (1928-1993) e
Peter Smithson (1923-2003). Como veremos na segunda parte deste trabalho, a
produção brasileira vai reflectir os alinhamentos da obra portuguesa, mas com uma
liberdade próprias de uma obra madura e com incorporações locais que demonstram
um pensamento independente. O Movimento Moderno, a arquitectura vernacular, o
empirismo escandinavo, o organicismo “whrigtiano” ou o Brutalismo são um leque de
referências que constituem o património imaterial ao qual o arquitecto recorre
espontaneamente e sem antagonismos, no contexto brasileiro. Tão naturalmente
quanto é verdade que o contexto brasileiro é ele próprio contaminado por estas
influências que incorpora e transforma na sua assimilação. Importa assim ao
arquitecto ver a arquitectura como a resposta a um conjunto complexo de problemas,
tomando em consideração programa, história, geografia, contexto físico e social, e
não a adesão a modas efémeras sustentadas em imagens de modernidade.
Embora tímido e pouco sociável, Francisco da Conceição Silva era de um dinamismo
e entusiasmo que o levaram a participar em inúmeros projectos artísticos, desde o
desenho e a exposição de móveis, a criação de cenários de teatro (para a sociedade
Guilherme Cossoul), a organização de exposições de Artes Plásticas, ou a fundação
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
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Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
da Sociedade de Gravura; como já referido, foi presidente da Sociedade Nacional de
Belas Artes na década de sessenta - refira-se numa altura em que a instituição era
uma referência de primeira linha na divulgação das artes em Portugal -, dirigente do
Sindicato Nacional dos Arquitectos (correspondente à actual Ordem), participando
activamente na organização e defesa da profissão. Nada o vergava, nem mesmo o
desalento com que foi para o Brasil e os obstáculos que aí encontrou.
Pouco antes do 25 de Abril, não só como sinal de adesão a novos conceitos de
gestão, mas também com uma visão democrática da profissão que privilegiava a
equipa e não o indivíduo, Conceição Silva distribui parte do capital da sociedade pelos
seus principais colaboradores, não exclusivamente arquitectos. No seu tempo, a acção
do arquitecto não teve o merecido reconhecimento. O clima político era tenso, as
discussões e clivagens no seio da profissão agudizavam-se e o atelier com
características empresariais e com uma clientela considerada “capitalista” acabou por
colocar-se no cerne do debate em torno dos ateliers/empresas, no quadro da
crescente politização da sociedade portuguesa e a militância dos arquitectos em
particular, neste período que antecede a revolução. É no entanto importante deixar
claro que Conceição Silva, não sendo um activista político, era contra a ditadura e as
suas simpatias iam também, à semelhança dos colegas que lhe apontavam o dedo,
para as fileiras de esquerda.
Foi frustrado com o rumo político caótico que o país tomou e amargurado com as
insurreições dos colaboradores mais radicais – alguns antigos “protegidos” do
arquitecto que acolhia membros clandestinos do Partido Comunista e apoiava
financeiramente os mais necessitados quando lhes reconhecia o mérito profissional que Francisco da Conceição Silva auto exilou-se no Brasil para nunca mais regressar8.
2.2. UM
ATELIER ARTESANAL NO
SOBREVIVÊNCIA.
RIO
DE
JANEIRO. EM
PROL DA
Francisco da Conceição Silva refugia-se no Brasil em 1975, após sofrer um atentado à
porta da sua casa no Dafundo, em Lisboa. Desconhecem-se as razões que moveram
dois indivíduos a golpearem-no com uma matraca, do que resultou a sua
hospitalização durante mais de uma semana. Havia então rumores de que o arquitecto
corria risco de vida ou poderia ser preso. Uma semana depois de sair do hospital, sem
8
Para mais informações sobre o arquitecto Francisco da Conceição Silva, a sua obra ou a organização
do atelier, consulte-se Inês Leite, 2007.
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
30
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
nunca voltar ao atelier entretanto tomado pelos trabalhadores, numa atribulada
jornada, com a sua segunda mulher, Carmo Valente (1930-2011), e a filha, conduzidos
de carro pelo pai da primeira, atravessam a fronteira rumo a Espanha. Ao fim de mês e
meio escondidos em Madrid, a 15 de Março de 1975, voam para o Brasil e instalam-se
no Rio de Janeiro9.
O Brasil não lhe era desconhecido, já antes fizera uma viagem para participar num
encontro sobre as relações económicas luso-brasileiras inserido num grupo
organizado pelo amigo Mário Pais de Sousa (1925-2002)
10
, de 2 a 10 de Dezembro
de 1972, a São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Embora com fins principalmente
comerciais - Conceição Silva representava então a Sociedade Turística da Ponta do
Adoxe, empresa que explorava os overcrafts que faziam a ligação da Península de
Tróia a Setúbal -, o arquitecto aproveita a viagem para ver arquitectura, em particular a
capital brasileira11. A Moderna Arquitectura Brasileira tinha sido uma importante
referência para Conceição Silva, tal como para os seus pares, no início de carreira, em
particular no final da década de quarenta e início de cinquenta, numa altura em que
tentavam introduzir as correntes progressistas internacionais entre nós, em reacção às
imposições oficiosas de cariz tradicionalista do Estado Novo. As ressonâncias
internacionais da moderna arquitectura brasileira e de figuras como, entre outras,
Lúcio Costa (1902-1998), Oscar Niemeyer (1907-1912), legitimavam então a sua
“apropriação” por parte dos colegas portugueses. Estes, para além de terem acesso
às revistas estrangeiras, algumas com números monográficos a louvar a liberdade de
além Mar (como a Architecture d’Aujourd’hui 13-14, de 1947, e o nº42-43, de 1952) ou
o catálogo Brazil Builds da célebre exposição no Moma de 1943 (Goodwin, Philip,
1943), ainda tiveram a ocasião de ver mais de perto nas mostras promovidas em
Lisboa, nomeadamente, em 1948, no Instituto Superior Técnico de Lisboa e, em 1953,
a “Exposição de Arquitectura Contemporânea Brasileira», na SNBA em homenagem a
Lúcio Costa. Numa altura em que, a nível internacional, se esgotava a ortodoxia
moderna dita internacional (nomeadamente nos encontros e reflexões como o CIAM) e
9
De acordo com Carmo Valente, Conceição Silva foi convidado a ir para França, mas preferiu o Brasil,
“país que admirava”. Foi também convencido pelo irmão do seu amigo de juventude Francisco Marques,
quem lá residia.
(Valente, 2006).
Data de viagem fornecida pela filha, Paula Conceição Silva (Silva, P. 2006).
10
Mário Pais de Sousa, advogado e Ministro do Interior de Salazar era um dos principais amigos de
Francisco da Conceição Silva, refira-se, não obstante as posições políticas antagónicas.
11
De acordo com testemunho pessoal de Maria Antonieta Pais de Sousa, filha de Mário Paes de Sousa,
quem também participa na viagem. Segundo relatou, Conceição Silva fez uma visita guiada ao grupo em
que explicou detalhadamente os princípios urbanísticos do plano de Lúcio Costa e demonstrou um vasto
conhecimento sobre a arquitectura brasileira contemporânea (Sousa, 2006).
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
31
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
se buscavam novos modelos ou metodologias, a arquitectura moderna do outro
continente aparecia como o último fôlego do Movimento Moderno, ou explanava afinal
as suas possibilidades de migração e adaptação, em versões tropicais. As primeiras
obras do arquitecto são assim claramente influenciadas pela Moderna Arquitectura
Brasileira, ela mesmo filiada na obra “corbusiana”, como por exemplo a casa Ribeiro
da Cunha no Restelo, ou a casa A. Silva e Silva, no Seixal (ambas de1952-55) ou na
Casa das 3 Marias, em Cantanhede (1955-57).
Ilustração 5 - Casa José T. da Silva, Seixal (Ilustração nossa, 2007)
Ilustração 6 – Casa Ribeiro da Cunha, Restelo, (Silva, F. (1),
ca. 1960)
Deixando para trás um dos maiores ateliers do país, um pequeno grupo de empresas
desde o início da década de setenta, embora agora de insustentável gestão devido
aos tumultos gerados por alguns trabalhadores, o arquitecto vai para o novo mundo
praticamente de bolsos vazios, atravessando a fronteira com algumas notas
escondidas nos sapatos (Silva, P. 2006). Eram poucos os contactos que lhe pudessem
valer. Tinha conhecido Oscar Niemeyer, numa estadia em que este fizera em Portugal
e em que o arquitecto brasileiro chegou a jantar na casa do Dafundo (Valente, 2006).
Carmo Valente recorda-se ainda de terem visitado o atelier do mestre brasileiro, a
convite deste, e de haver a hipótese, nunca concretizada por falta de vontade por
parte de Conceição Silva, de trabalhar no gabinete de outro arquitecto brasileiro12. A
sua notoriedade em Portugal, que nunca passara as fronteiras, pouco lhe valera num
contexto com afinal maior tradição de arquitectura moderna e uma mão cheia de
profissionais de renome internacional. O único bem que conseguira enviar de Portugal,
um Jaguar que tencionava vender para ajudar ao sustento, acabou por nunca sair da
alfândega face às exigências burocráticas. Os primeiros meses foram de uma “enorme
12
Carmo Valente não se recorda qual.
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
32
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
violência”13, pese embora a solidariedade dos conterrâneos instalados há mais tempo
no Brasil e da visita de alguns amigos que traziam o pouco produto dos bens vendidos
em Portugal (Silva, P., 2006). Após umas semanas na pensão indicada pelo irmão de
Francisco Marques (Velente, 2006), ficaram um par de meses num pequeno andar de
dois quartos na Rua Visconde de Pirajá, em Ipanema, partilhado com outras famílias
de portugueses14, conseguindo depois alugar um T2, na Avenida Atlântica, em
Copacabana. Só mais tarde, em 1979, compraram um pequeno mas agradável15 T2
na Rua Barão da Torre, numa rua de segunda linha de Ipanema em relação ao mar.
Ilustração 7 - Conceição Silva com a segunda mulher, Carmo
Valente, e a filha, Paula, no Rio. (Silva, P., ca.1978).
Ilustração 8 - Folheto do encontro luso-brasileiro de 1972,
(Sousa, 2006).
Em termos profissionais, no arranque, Conceição Silva só conseguiu alugar
um
estirador no atelier de um arquitecto brasileiro, no Morro de Santa Teresa16, onde
projectou as primeiras obras. Relata o antigo colaborador Ricardo Silva Pinto que os
colegas do atelier do arquitecto brasileiro comentavam que “estava ali um português
13
Nos termos de Paula Conceição Silva, quem refere que levaram sempre uma vida com muitas
privações no Brasil: “vivemos com dificuldades, nunca viajávamos, só fomos a Minas Gerais de carro,
uma vez. Todos os gastos eram controlados, não íamos ao restaurante, não era uma vida folgada”. (Silva,
P. 2006).
14
Paula Conceição Silva refere serem cerca de15 pessoas no total e estar também a família do
engenheiro Fernando Ferreira dos Santos, quem trabalhava antes em Portugal na Câmara de Oeiras.
(Silva, P., 2006).
15
Segundo António Guimarães de Andrade e Silva, amigo de Conceição Silva, quem viveu no Rio na
mesma época e foi diretor da Michelin. Conheceram-se através dos filhos que andaram juntos no liceu
francês Charles Lepierre, em Lisboa, e reencontraram-se no Rio, no Liceu francês Molière. As respectivas
famílias eram ambas da Beira, o que fortaleceu os laços de amizade. (Silva, A., 2006)
As moradas e datas foram fornecidas pela filha Paula Conceição Silva.
16
O Morro de Santa Teresa é uma zona do Rio num cabeço, nessa altura caracterizada por moradias de
finais do século XIX, início de XX da pequena burguesia, bairro pitoresco e tradicional onde na
actualidade se instalaram muitos ateliers de artistas.
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
33
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
que desenhava muito bem”17. Nos primeiros tempos apoiou-se no escasso grupo de
relações pessoais, nomeadamente, mais uma vez, no inseparável amigo Mário Pais
de Sousa, quem abandonara o país um pouco depois, em Julho de 197518 e vai para o
Brasil em parte contaminado pelo entusiasmo de Conceição Silva. Sendo complicado
estabelecer-se como advogado no Brasil, Pais de Sousa vai dedicar-se à promoção
imobiliária, actividade que já desenvolvia paralelamente em Lisboa. Para o efeito, cria
uma sociedade com vários investidores portugueses, a qual adquire, de maior
envergadura, uma grande fazenda a 40 km do centro do Rio, o “Recreio dos
Bandeirantes”, na Vargem Grande, para lá do autódromo de Jacarépaguá e faz
também o condomínio Portinho do Massaru, em Itanhangá, com o brasileiro Arthur
Kelson. Pais de Sousa, que realizara várias obras em Portugal com desenho de
Conceição Silva (recuperação da casa de família em Santa Comba Dão, prédio na
esquina da Rua Marques de Portugal e da Imprensa Nacional, Torres de Alfragide,
ambos em Lisboa, Complexo Turístico de Tróia, entre outros) entrega assim vários
projectos ao arquitecto ou recomenda-o a outros clientes. Entre outros, a remodelação
do escritório no Rio de Janeiro, um grupo de cinco casas (apenas uma terá sido
construída) no Alto da Boavista, três casas no Condomínio Portinho do Massaru, a
antiga casa antiga da fazenda do Recreio dos Bandeirantes e um loteamento de
moradias para esta propriedade, o qual, infelizmente nunca logrará o aval das
autoridades municipais (Sousa, 2006). Mais tarde, Pais de Sousa cria uma carpintaria
- o Galpão, na fazenda do Recreio dos Bandeirantes (Sousa, 2006) - para a
construção civil e nomeadamente fornecer as obras de Conceição Silva, quem
empregará estruturas de madeira em larga escala nas obras brasileiras. Em finais dos
anos setenta a família Pais de Sousa regressa a Lisboa mas mantém os negócios no
Rio com estadias intermitentes (Sousa, 2006).
Uns meses depois de Conceição Silva19, chega ao Rio de Janeiro José Augusto Pinto
da Cunha (1921-2006), arquitecto vindo de Luanda, Angola, que tinha em comum uma
obra moderna de qualidade com grande preponderância de casas de habitação
unifamiliares para a alta burguesia angolana, tal como Conceição Silva nas décadas
de cinquenta e meados sessenta em Portugal (no final de sessenta e setenta o turismo
17
De acordo com Ricardo Silva Pinto, arquitecto que trabalhou, ainda estudante, vários anos no atelier de
Conceição Silva e Pinto da Cunha. A então mulher, Maria Cândida, arquitecta que trabalhava então no
atelier brasileiro onde Conceição Silva tinha o estirador, relatou o episódio (Pinto, 2013).
18
De acordo com a filha Maria Antonieta Pais de Sousa, avisaram-no que iria ser preso e fugiu de
comboio por Madrid, onde ficou dois meses antes de ir para o Rio de Janeiro (Sousa, 2006).
19
No currículo de Pinto da Cunha consta como data de início da atividade no Brasil, Setembro de 1975
(Cunha, 2013).
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
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Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
e o urbanismo ganham maior peso). Segundo testemunho de Carmo Valente, o amigo
comum e sócio de Conceição Silva em Portugal de 1965-67, Maurício de
Vasconcellos, recomendara Pinto da Cunha a Conceição Silva, quem lhe propôs
sociedade, dado o pouco trabalho que teria para lhe oferecer (Valente, 2006). Porém,
aos poucos, o arquitecto começa a
estabelecer alguns contactos possivelmente
inicialmente com Mário Paes de Sousa, quem se liga à comunidade judaica instalada
no Rio, da qual são oriundos os principais clientes do arquitecto20. O advogado
português fora por sua vez ajudado na sua estadia no Rio por Maercio Lemos de
Azevedo, administrador da Sóltroia em Portugal em representação do banqueiro
brasileiro Walter Moreira Salles, ou possivelmente por este último também21. E é
através de Pais de Sousa que Conceição Silva conhece o judeu Arthur Kelson22,
projectando para a sociedade, detida pelos dois, três casas no condomínio Portinho do
Massaru23, das quais se realizará apenas uma. Outra pessoa que o introduz na
comunidade judaica é o economista e jornalista Leonardo Ferraz de Carvalho, um dos
seus amigos incondicionais no Rio e igualmente grande amigo de Pais de Sousa, que
como ele emigra no pós 25 de Abril. Leonardo Ferraz de Carvalho dirigia então a área
não financeira do grupo Espírito Santo (este possuía investimentos como uma fábrica
de plásticos) e tinha boas relações profissionais e pessoais, nomeadamente com
Ronaldo Steinberg, também um dos primeiros clientes do arquitecto24.
Quando as encomendas o permitem, os dois sócios arrendam um escritório em
Humaitá, ao pé da Lagoa Rodrigo de Freitas, uma singela casa geminada das
primeiras décadas do século XX, numa artéria arborizada desse bairro de média
burguesia. Os arquitectos partilhavam uma das duas salas do rés-do-chão,
20
Segundo Carmo Valente, “tinha contactos de Tróia, com uma pessoa que era dona de um banco e tinha
o terreno onde se fez Tróia. Depois houve outros brasileiros que conhecemos lá que sabiam que ele era
um arquitecto muito bom por causa de saberem do trabalho de Tróia” (Valente, 2006).
21
Refere Maria Antonieta Paes de Sousa, quem trabalhava com o pai Mário Pais de Sousa, que a
Soltróia constitui-se nos anos sessenta do século XX como uma sociedade de capital luso-brasileiro para
adquirir os terrenos de Tróia aos irmãos Narciso. Eram sócios o banqueiro brasileiro Walter Moreira
Salles, Pais de Sousa (administrador da empresa) e o Coronel Branquinho. Em 1966, após limpar os
terrenos das barracas clandestinas, a Ponta do Adoxe (ponta Norte por onde se começou a primeira fase)
é vendida à Torralta (Sousa, 2006).
Por sua vez, Carmo Valente recorda-se de um acionista de um banco que era um dos proprietários dos
terrenos de Tróia e que tinha contactos no Rio, que terá introduzido o arquitecto aos primeiros clients
(Valente, 2006).
22
Maria Antonieta Pais de Sousa refere que o seu pai conhecia Arthur Kelson provavelmente através de
Maércio Lemos de Azevedo (Sousa, 2006).
23
A localização da casa de Arthur Kelson foi fornecida pela sua filha, Marion Kelson (Kelson, 2013).
24
Refere Betty Steinberg, mulher de Ronaldo Steinberg: “o que talvez tenha feito Ronaldo e eu irmos
adiante com a consulta foi o fato termos laços de amizade e trabalho com o economista Leonardo Ferraz
de Carvalho (falecido prematuramente) e com o engenheiro João Antas ambos emigrados depois da
revolução” (Steinberg, 2013).
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
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Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
trabalhando na outra José Luís Pinto da Cunha, filho de José Augusto Pinto da Cunha,
e Ricardo Silva Pinto, ambos estudantes de arquitectura na Pontifica Universidade
Católica (PUC)25. Entre estas ficava uma zona de estar e de leitura com livros e
revistas. No andar superior, havia uma sala para Carmo Valente, que trabalhava de
forma independente na área de interiores, e outra para o engenheiro português
Américo Trindade, responsável pelos projectos de estabilidade dos edifícios mais
complexos, sendo os outros realizados por um gabinete de arquitectos brasileiros
(possível no Brasil até determinada complexidade). Para além dos dois sócios, os dois
estudantes serão toda a equipa do atelier durante estes cinco primeiros anos de
actividade. Segundo Ricardo Silva Pinto, os meios eram poucos e trabalhava-se muito.
Tal como no atelier de Conceição Silva em Lisboa, seguia-se uma rigorosa disciplina,
exigindo-se esforço e dedicação. Conceição Silva e Pinto da Cunha chegavam de
manhã pelas 8h30 e trabalhavam afincadamente com apenas meia hora de almoço
até às 19h30. Ricardo Silva Pinto adianta que, de modo geral, as tarefas eram
partilhadas entre os dois arquitectos, que eram muito complementares. Para além das
funções comerciais, Conceição Silva tinha uma relação mais próxima com os clientes,
estava mais ligado à parte inicial de concepção e acabava por dar sempre a última
palavra, até por uma questão de personalidade. Pinto da Cunha, que era mais
reservado, dedicava-me mais ao desenvolvimento do projecto, tinha um grande
domínio dos aspectos construtivos e era geralmente encarregue do acompanhamento
de obra, embora Conceição Silva não dispensasse as principais reuniões de obra ou
com clientes. Ricardo Silva Pinto dava mais apoio a Conceição Silva e José Luís ao
seu pai. Mais uma vez, como já acontecia em Lisboa, os colaboradores eram
prioridade, recebendo sempre a tempo e horas, não obstante as dificuldades
financeiras. O antigo colaborador recorda o arquitecto como uma pessoa um pouco
distante mas muito humana, ferida pela saída de Portugal, de que nunca falava. Em
1979, José Luís Pinto da Cunha acaba o curso e vai para a Rodésia (actual
Zimbabwe), sendo substituído por um arquitecto brasileiro26.
25
De acordo com testemunho de Ricardo Silva Pinto, quem vai para o Brasil em 1975 em virtude do
encerramento da Escola de Belas Artes de Lisboa. Vai trabalhar com Conceição Silva quando se
encontrava no segundo ano do curso de Arquitectura, por sugestão do amigo José Luís Pinto da Cunha
(Pinto, 2013).
26
Toda a informação sobre o funcionamento do atelier foi fornecida por Ricardo Silva Pinto (Pinto, 2013).
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
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Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Ilustração 9 - Inauguração da Fábrica Sombra, 1977. Conceição Silva e
Carmo Valente são os dois penúltimos. (Durães, 2014).
Ilustração 10 - Conceição Silva, Madalena Chicó e
Pinto da Cunha no atelier da Barra. (Silva, J. e Silva, F.,
1987, p.168).
Tal como em Portugal, perseguindo a ideia de obra global, os projectos incluíam quase
sempre a parte de equipamento e decoração, a qual era entregue a Carmo Valente,
quem chefiara esse departamento no atelier de Lisboa. Só que, neste caso, os dois
arquitectos tinham as actividades separadas, podendo – o que acontecia na maioria
das vezes – os clientes coincidir ou não. Outra das relações fieis a nível pessoal e
profissional é José Sousa Braga, que tinha a fábrica de móveis Sousa Braga em
Portugal e com quem o casal trabalhara anteriormente. Sousa Braga muda-se também
para o Rio no pós 25 de Abril, onde monta uma empresa de fabrico de mobiliário,
constituindo-se um parceiro privilegiado de Carmo Valente (Pinto, 2013).
O grande salto dá-se finalmente com a Michelin, multinacional de pneus que tinha
desde 1927 um escritório comercial em São Paulo e instala-se em 1975 no Rio para
servir o mercado local, assim como se expandir na América Latina (Michelin, 2011).
Conceição Silva e Pinto da Cunha ganham então o concurso público para alojamento
do pessoal27 - que na altura contava já com cerca de duas centenas de estrangeiros-,
perto da fábrica, no Campo Grande, um subúrbio residencial do Rio para a classe
média. Os arquitectos fazem também o plano-piloto para a instalação da unidade
fabril, sendo esta última projectada por uns engenheiros franceses. Foi a maior
encomenda que Conceição Silva e Pinto da Cunha receberam no Brasil,
essencialmente habitacional, entre loteamentos, condomínios e blocos de habitação
para os funcionários, mas também equipamentos de apoio. As atribuições, de grande
27
De acordo com testemunho pessoal de António Guimarães de Andrade e Silva. Este refere nada ter
tido a ver com o concurso ou obra, sendo responsável pelas relações da Michelin com o Governo e
adianta que Conceição Silva lidava diretamente com o departamento de engenharia (Silva, A., 2006).
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
37
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
responsabilidade, incluíam não só os projectos, mas também a gestão da obra e
nomeadamente os pagamentos a fornecedores. Sobretudo graças a este trabalho, em
início de oitenta, mudam-se para um atelier maior na Barra da Tijuca, segundo o
amigo António Guimarães, muito bem equipado e decorado com obras de arte, numa
casa colonial de dois pisos. Só nessa altura conseguem contratar mais pessoal,
substituindo também Ricardo Silva Pinto, quem regressa a Lisboa em 1981, numa
decisão apressada que deixa Conceição Silva furioso28.
Ilustração 11 - Novo Atelier na Barra (Silva, J e Silva, F., 1987, p.168).
Tal como em Portugal, Conceição Silva esforçar-se-á no Brasil em fazer crescer a
actividade e alargá-la a outras áreas complementares. No início da década de oitenta,
pouco antes de morrer, cria a promotora GI (Gestão Imobiliária) com alguns sócios, a
qual infelizmente não chegará a arrancar com nenhum projecto. Possivelmente sob a
alçada desta empresa ou de outra, lança-se na construção, contando em carta, ao seu
amigo Pais de Sousa, que acreditava vir a ter uma das maiores construtoras do Rio de
Janeiro (Sousa, 2006). Não há dúvida de que Francisco Conceição Silva apreciava o
Brasil e a vida que levava no Rio, como relata nas cartas que envia à filha quando esta
estudava em Paris. Depois de expor as dificuldades pelas quais passava, contava ele
que “O Brasil continua o melhor do Mundo. Este verão maravilhoso, com muita chuva
mas também muito sol. Este calor que despe as gatinhas e transforma Ipanema no
grandioso espectáculo de gente e mais gente. De gente linda, de corpos tostados ao
sol. De gente que se torna feliz com pouco. Feliz por ter direito a tomar um sol. A “cair”
na água. A liberdade de andar na sua Terra que tanto ama. O brasileiro é
efectivamente, mais do que um alienado, um ser feliz. Ele já só pensa no Carnaval.
Começou o Ano, começou o Carnaval. Vamos todos pular. P’ra frente Brasil. Deus é
Brasileiro”. Exilado que adoptara a sua terra de acolhimento, não gostava de relembrar
28
Ricardo Silva Pinto recorda ter avisado Conceição Silva com 15 dias de antecedência, o que lhe valeu
uma forte reprimenda (Pinto, 2013).
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
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Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
nem falar de Portugal. Retrata o Brasil como um sítio alegre e solarengo onde sabe
bem viver: “Mesmo que se façam muitas reservas, sempre acabamos por aderir a
este povo maravilhoso, a este país ainda mais extraordinário (...) grande povo este,
que sabe sofrer, que aceita o sofrimento e que acredita no milagre. Acredita no futuro.
Vive feliz e transmite sua felicidade”. Porém, a vida que ali passou foi sempre de
resistência e sobrevivência, não era fácil vingar como arquitecto estrangeiro, alheio às
idiossincrasias
brasileiras,
com
as
quais
muitas
vezes
não
concordava.
Contrariamente ao que seria de esperar, nesse início de 80, o seu estado de espírito
não era de ânimo. “Faço um grande esforço para ir em frente, mas é tão difícil que por
vezes chego a desanimar e a sentir-me devastado frente à permanente luta que é o
dia a dia. No Brasil, nada se consegue sem luta e por vezes uma luta desleal e para a
qual não fomos preparados. Mas, como eles dizem, “estamos na luta”” (Silva, P.
1982), confessava à filha.
Por trás deste desalento, estavam muitas preocupações, sendo a principal um deslize
do seu contabilista que o colocara em situação de perder tudo o que tinha no Brasil,
quando justamente começava a poder viver com algum desafogo (Silva, P. 1982). Por
outro lado, a obra da Michelin, como referido com responsabilidades acrescidas,
trazia-lhe inúmeros aborrecimentos. Será justamente à saída de uma reunião de obra
que Conceição Silva sucumbe tragicamente a um ataque cardíaco, no dia 23 de
Janeiro de 1982, pouco antes de completar os sessenta anos29.
29
Conceição Silva tinha um problema cardíaco e tinha sido aconselhado a operar, cirurgia à qual nunca
se quis submeter (Valente, 2006).
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
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Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
40
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
3. ANÁLISE À PRODUÇÃO. UMA OBRA CARIOCA.
3.1. ENTRE BRUTALISMO E REGIONALISMO. A TRADIÇÃO RECUPERADA.
Como referido na introdução, interessa-nos em particular, com o estudo analítico da
obra de Conceição Silva, perceber as pontes que o arquitecto estabeleceu entre a
Europa e o Brasil. E, mais do que o apport da sua obra de Portugal, a forma como
reagiu ao novo contexto, ou seja, tentar perceber se a sua postura foi sensível ao
local, se entendeu a arquitectura como resposta a um determinado tempo histórico e
situação geográfica. Tentámos assim reestabelecer o seu modo de pensar, a forma de
actuar perante a nova realidade a que teve de se adaptar, a sua interação com a
cultura local. Isto permite-nos também situá-lo dentro do próprio contexto da produção
brasileira entendida como produção num determinado lugar, independentemente da
origem do seu autor. É aliás de relembrar que a moderna arquitectura brasileira e a
sua singularidade também se devem à contribuição de um significativo número de
arquitectos estrangeiros que aí se estabelece, nomeadamente durante as duas
grandes guerras, e que irão “mestiçar-se” com a cultura local, como são exemplos o
russo Gregori Warchavchik (1896-1972), o polaco Bernard Rudofsky (1905-1988), o
Checo Adolf Franz Heep (1902-1978) e a italiana Lina Bo Bardi (1914-1992).
Referindo-se a São Paulo, um dos principais polos de acolhimento, diz Dalva Thomaz:
Parte desses arquitectos que imigravam para o Brasil vinham seduzidos pela
vanguarda da arquitectura que se formava no país, no entanto é importante destacar
que alguns desses arquitectos, em contacto com o Brasil e os brasileiros, contribuíram
com sua cultura de origem e, na interação com a cultura local, foram capazes de
fertilizar obras que corroboram o poder de assimilação a que a moderna arquitectura
brasileira recorreu em sua origem, a partir de fontes europeias (apud Segawa, 1999, p.
139).
Procurou Conceição Silva situar-se neste contexto - postura que parecer-nos-ia mais
natural, sintomática até do modo de fazer português? Em Portugal, Conceição Silva
preocupou-se sempre em invocar a contemporaneidade, ou seja em introduzir novas
correntes, fossem elas de um moderno radical, mais revisionistas como o designado
“regionalismo crítico”, neo-empirismo ou o organicismo, ou do brutalismo emprestado
de Inglaterra, manifestação de uma nova sociedade tecnicista e global que procura
também responder a novos desafios urbanos. Neste novo mundo, a força do contexto
brasileiro, já de si local de emanação de arquitecturas com ressonâncias além
fronteiras, parecem tê-lo levado a uma leitura e participação do contexto, sem prejuízo
desse mesmo contexto poder ele também ser contaminado por correntes exteriores.
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
41
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Em primeiro lugar, podemos dizer que Conceição Silva estabeleceu um jogo de
equilíbrio entre a tradição e a modernidade, numa oscilação que é caraterística do
próprio processo brasileiro, seja visto de forma mais geral/cronológica, entre avanços
e recuos, ou na maneira como a arquitectura brasileira colheu e transformou a lição
moderna. Interessou-nos assim destacar da história da arquitectura brasileira do
século XX esse diálogo entre modernidade e tradição, o qual acabou por estar sempre
presente, mas de forma mais evidente em dois momentos: no acolhimento da
arquitectura moderna, a que poderíamos chamar de proto-moderna, sob a mão de
pessoas como Lúcio Costa; e num retorno à tradição no pós-brasília, incidindo mais
particularmente sobre processos e materiais construtivos, num Rio de Janeiro
esgotado da fase heroica do Movimento Moderno, ou em pesquisas regionalistas em
contextos mais secundários, fomentadas também pelo esforço do estado brasileiro em
ocupar e desenvolver as regiões do interior, o que conduziu à migração interna de
muitos arquitectos30. Nas décadas de sessenta e setenta, a historiografia, com a sua
metodologia focada em obras excepcionais e fundadoras de ideias, acabou por
destacar de forma apologética o brutalismo de São Paulo, também pela força e
coerência que conduziu à identificação de uma “escola”, marginalizando assim outras
posturas menos classificáveis, até por corresponderem a pesquisas mais individuais e
empíricas. Porém, mesmo no contexto das correntes mais radicais de São Paulo,
existiu sempre a procura de identificação local, seja pelos materiais, seja pela tentativa
de uma obra que emanasse das camadas populares. No mesmo sentido, esse foco
paulista correspondeu igualmente a um sentimento nacionalista, à procura de
justificações ou caminhos para a emancipação em relação aos vínculos estrangeiros.
A obra de Conceição Silva será no entanto condicionada pela natureza da própria
encomenda, sempre privada, de escala reduzida, essencialmente casas de habitação
unifamiliar, algumas lojas (de que não iremos falar face à falta de elementos e ao facto
de provavelmente já não existirem), uma fábrica, um prédio multifamiliar e só num
caso habitação colectiva de escala já incipientemente urbana, com os conjuntos
residências da Michelin. Além de privada, essa obra foi encomendada por uma elite
sofisticada, ao fim e ao cabo, o mesmo estrato social para o qual o arquitecto tinha
trabalhado em Portugal, pelo que naturalmente terá aqui posto em prática modos de
fazer idênticos aos do atelier de Lisboa, nomeadamente no que diz respeito a
processos projectuais, ou à procura de um certo conforto e domesticidade.
30
Sobre este assunto veja-se Hugo Segawa, 1999.
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
42
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Quando Conceição Silva chega ao Rio, em 1975, o Brasil encontra-se debaixo de uma
ditadura, na sequência do golpe militar de 1964 que depõe João Goulart, com
responsabilidades, indirectamente, nas novas referências arquitectónicas. Por um
lado, os grandes nomes da arquitectura moderna brasileira tinham saído do país
(Niemeyer vai para Tel Aviv, Argel e instala-se em Paris em 1972) ou deixado de
produzir por razões políticas, outros tinham já morrido (Eduardo Affonso Reidy em
1964, Rino Levi em 1965). A partir de 1968 a ditadura endurece com um regime
persecutório e repressivo que vai agravar-se na década seguinte com os esquadrões
da morte (Hensel, Michael e Kubokawa, Rumi, 1999), conduzindo ao afastamento do
ensino dos arquitectos ligados ao Partido Comunista - João Batista Vilanova Artigas
(1915-1985), Paulo Mendes da Rocha (1928- ) e Jon Maitrejean (1929- ) em 1969,
ainda antes da inauguração da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo projectada pelo primeiro -, ou mesmo a sua prisão. Por
sua vez, o Brasil tinha se afastado da cena internacional, resistindo à crítica ao
movimento moderno, já que o moderno brasileiro era aceite como emanação nacional,
fruto também da política desenvolvimentista que durará desde o Governo de Gertúlio
Vargas até ao fim da ditadura, ou seja de 1930 a 1985. Pese embora o ambiente de
repressão, com o “Projeto Brasil: Grande Poder” a economia vai beneficiar de um
período de crescimento (com um interregno nos anos de 1973 e 74, com a crise do
petróleo), com taxas de crescimento acima dos 10% no período do “Milagre Brasileiro”
dos governos militares de 1964 a 1985 (Colin, Silvio, 2011). Este programa vai
fomentar a modernização do país - com desaceleração após a crise do Petróleo de
1979 e a bancarrota do México em 1982 – sendo em contrapartida também
responsável pelo acelerar da inflação que se acentua na década seguinte. A “tradição
moderna” continuara então, como se vê nas grandes obras públicas, nomeadamente
nos equipamentos fomentados pelo Estado,
mas o principal centro de produção
deslocara-se para São Paulo, sob a influência de Vilanova Artigas, com uma nova
visão de forte cariz ideológico, explicado também pela distância aos principais centros
de decisão política.
O ambiente arquitectónico dos anos 70 é fortemente contaminado pelo Brutalismo
europeu, seja pela via mais ética e moral da corrente inglesa, seja pelo carácter mais
tectónico francês dominado pela obra mais tardia de Le Corbusier, afinal as mesmas
referências que informavam a obra de Conceição Silva em Portugal. Brutalismo este
matizado pela procura constante de uma arquitectura local, pela necessidade que o
Brasil tem de se afirmar como autónomo, dentro de um quadro mental nacionalista à
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
43
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
procura das suas raízes e identidade. Pese embora o protagonismo do Brutalismo da
“Escola de São Paulo” com fortes influências em todo o país, protagonismo esse que
resulta também de uma mais fácil identificação para as construções historiográficas,
verifica-se nos Anos Setenta um quadro diversificado, com várias correntes, surgindo
então no Rio de Janeiro uma tendência interessada em recuperar modos de fazer,
assim como uma iconografia, ligada à tradição, com bastante aceitação e
desenvolvimento. Tratava-se de pôr de lado essa arquitectura de origem estrangeira e
de responder às condições locais - a uma capacidade artesã que afinal nunca se tinha
perdido - assim como à natural disponibilidade dos materiais locais, como reacção
também à sofisticação forçada e cara da tecnologia do betão e como saída para as
críticas internacionais à permanência do Movimento Moderno. Constituía-se ainda
como uma arquitectura mais amena e acessível em termos de referências estéticas a
uma burguesia ou elite que refletia ainda modos de estar enraizados na antiga colónia,
ou, ao oposto, mais de acordo com uma identidade popular. Se bem que a
historiografia identifique esta tendência como um conjunto de actuações individuais, foi
em todo o caso uma corrente que atravessou todo o país e que se consolidou mais
tarde nos anos oitenta, nomeadamente num movimento que procurou definir uma
modernidade “apropriada” no seio dos Seminários de Arquitectura Latinoamericana31.
Esses encontros tentaram reflectir sobre a condição Latino americana e encontrar
novos caminhos fruto de uma criatividade local, mas adequados à realidade das
sociedades em que actuavam, quer a nível económico quer técnico.
A obra de Conceição Silva da segunda metade dos anos setenta vai enquadrar-se
nesse contexto do Rio de Janeiro que recupera a tradição sem perder as lições do
moderno, numa espécie de inversão em relação ao momento anterior em que o
Movimento Moderno não esquecera a cultura mais popular ou artesanal. Como refere
Roberto Conduro, “nos anos 50, quando os conceitos desenvolvimentistas estavam
propagados no Brasil, o internacionalismo universal era mais adequado à ideologia
política predominante e a tendência regionalista eclipsou-se parcialmente só
ressurgindo nos anos sessenta quando se propaga com uma força crescente até ao
final do século” (Conduru, Roberto, 2005, p. 71). Nas décadas de sessenta e setenta,
o recurso a sistemas construtivos tradicionais e materiais locais são intensamente
31
Considerados como os CIAM latinoamericanos, estes seminários decorrem em vários países do
espaço latino-americano entre 1985 e 2002. Refere Hugo Segawa que “as suas primeiras reuniões
articularam um original debate e uma acumulação de valores acrescentados em torno de questões como:
identidade, alienaçãoo e regionalismo”. O arquitecto esclarece ainda que esse movimento posicionava-se
também contra o pós-modernismo como única saída para os “impasses da arquitetura”.
(Segawa, 2005, ps. 50 e 51).
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Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
retomados como as estruturas de madeira, as coberturas inclinadas, com telha
cerâmica em expressões menos abstractas, ou o tijolo sem reboco, como vimos por
exemplo nos trabalhos de Lúcio Costa, Severiano Porto ou até de arquitectos paulistas
Carlos Barjas Millan (1927-1964) e Joaquim (1932-2008) e Liliana Guedes. O tijolo vai
justamente ganhar um crescente protagonismo nos anos oitenta em toda a América
Latina, vindo a ser considerado o material adequado à realidade local, que resolvia as
questões de identidade e técnicas, chegando a ganhar uma “dimensão doutrinária”32.
Mais recentemente, Marcos Acabaya (1944- ), arquitecto paulista muito interessado
nos aspectos técnicos e construtivos e com experimentação em vários materiais, fez
uma série de obras com estruturas de madeira, que “geometrizou numa expressão
contemporânea” (Segre, Roberto, 2005), como as Casas Hélio Olga (São Paulo, 198790) e Baeta (Praia de Iporanga, São Paulo, 1993), beneficiando na primeira da
experiência e cooperação (a nível do projecto de estruturas e na construção) do
cliente, o engenheiro Hélio Olga, dono de uma empresa de construção e estruturas de
madeira33.
Ilustração 12 - Residência Anna Mariani, Ibiúna, de Joaquim e Liliana Guedes (Oliveira, J. 2008).
32
Hugo Segawa cita Eladio Dieste no Uruguai, Rogelio Salmona na Colômbia e Togo Diaz na Argentina
como arquitectos que fazem um uso extensivo do tijolo, nesta caso considerado à vista e adverte para o
reducionismo a que se chegou ao considerar o tijolo como uma marca de latinomaricanismo. (Segawa, p.
53).
33
Refira-se que Hélio Olga teve as suas primeiras experiências de construção em madeira com Zanine
Caldas nos Anos Setenta.
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
45
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Ilustração 13 - Casas Hélio Olga e Baeta, de Marcos Acabaya (Marcos Acabaya Arquitetos, 2014).
Ao longo de toda a sua estadia no Rio de Janeiro, Conceição Silva vai construir uma
série de casas que denotam a sua preocupação em inserir-se no ambiente cultural
local, procurando uma identificação com a tradição em termos formais e tectónicos,
sem ser estritamente regionalista e muito menos historicista. Em particular, vai fazer
toda uma investigação em torno das estruturas em madeira, tirando partido da
disponibilidade deste nobre material que já em Lisboa usara não só com intenções
mais ambientais ou decorativas, mas também como elemento resistente ou estrutural.
Refiram-se a Casa Ribeiro da Cunha, (1961-66, Guincho), a Casa da Minhoca (196062, Sintra), o Hotel do Mar (1960-63, Sesimbra), ou ainda os bungalows da Serra da
Estrela, entre várias outras obras. O know-how adquirido em Portugal vai permitir-lhe
rapidamente adaptar-se e desenvolver esta tecnologia como vimos nas casas do
condomínio Portinho do Massaru, em Itanhangá (para uma sociedade de Arthur
Kelson e Mário Pais de Sousa); casa de Praia em Geribá, Búzios; nas casas de
Taquerá, ou ainda no projecto de um hotel de praia não construído, no Estado da
Bahia.
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
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Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Ilustração 14 - Portugal: Casa da
Minhoca, Sintra (Ilustração nossa,
2006).
Ilustração 15 - Hotel do mar, Sesimbra.
(Medeiros, 1963).
Ilustração 17 - Brasil: Casa no Portinho do Massaru. (Silva,
J. e Silva, F., 1987, p.175).
Ilustração 16 - Casa do Rochedo, Sintra.
(Silva, J. e Silva, F., 1987, p.55).
Ilustração 18 – Pátio interior casa em bada Loteamento Poatã, (Pinto,
ca.1980).
Mais sofisticada e de maior escala do que as casas do arquitecto já citadas, a casa
Simão Coslowsky, no Morro do Corvovado (projecto de 1976) denota a mesma
vontade
de
remissão
para
a
arquitectura
vernacular
numa
reinterpretação
contemporânea. A expressão é fortemente marcada pelo uso intensivo do tijolo
cerâmico à vista, material presente na arquitectura tradicional, de origem artesanal e
fácil domínio em termos de produção e mão de obra, e cuja matéria prima abundava
no Brasil. A cor, textura, resultando a sua repetição exaustiva até numa certa
abstração, realçada por um jogo volumétrico mais livre, permitem uma maior
integração na natureza, outra preocupação que vem já da revisão do Movimento
Moderno e das influências neo-organicistas - o que também é válido para as
construções em madeira. Essa tendência tem também paralelo no movimento
regionalista que se faz sentir com mais expressão ainda em cidades mais pequenas
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
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Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
do que as duas grandes metrópoles, o qual procura uma nova agenda ética e
socialmente responsável. Como refere Silvio Colin, trata-se de uma “tendência que
busca a recuperação do acervo cultural tectônico e arquitetônico de uma região, de
maneira seletiva e crítica, para estabelecer um ponto do partida autóctone no diálogo
com outras fontes culturais hegemônicas, atuantes pela intensa informatização global,
e muitas vezes impostas por uma cultura tida como dominante” (Colin, Silvio, 2011).
Trata-se também de uma questão ideológica, contra uma arquitectura “imperialista”
abstracta e a favor de um realismo que pudesse ser facilmente apreendido pelas
massas e que correspondesse às reais condições do país, numa altura em que a
esquerda intelectual se consolida em resposta à repressão da ditadura.
Ilustração 19 - Casa Coslowsky, (Silva, P e Silva, F, 1987, p173-174).
Severiano Mário Porto (n.1928- ) é um dos arquitectos que partindo da modernidade
irá desenvolver uma pesquisa mais profunda sobre a construção autóctone, em termos
construtivos e tipológicos, nos 30 anos que passa na Amazónia, com uma obra notável
e uma posição singular. Severiano Porto radicou-se em Manaus a partir de 1965,
mantendo actividade no Rio com o sócio Mauro Emílio Ribeiro (1930- ), e procurou
desde então adaptar as construções às condições locais da Amazónia, com uma
abordagem antropológica, recuperando um saber caboclo contra as correntes
dominantes de uma arquitectura desenraizada do sítio e também contra os
preconceitos em relação a um tipo de construção que se associava localmente à
pobreza (por exemplo, as estruturas em madeira, em comparação com a alvenaria que
se considerava mais durável). São disso exemplo, a casa de estrutura de madeira
desmontável do arquitecto em Manaus (1971) ou o mais radical Centro de Protecção
Ambiental (em Balbina, a 200 km de Manaus, 1983-1988), ambos realizados a partir
da pesquisa em torno das construções caboclas e índias, com materiais e técnicas
disponíveis na região, o último com estrutura e telhas de madeira. Concebida com
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
48
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
respeito pelo habitat natural, a aldeia SOS para crianças foi “cuidadosamente pensada
e planeada
para responder da melhor forma às questões ambientais e contexto
urbano, assim como oferecer bem estar aos seus utentes”. (...). “As diversas áreas do
complexo estão interconectadas pelos caminhos de formas sinuosas feitos de madeira
e folhas de palmeiras, onde se pode ver claras referências à cultura local, quer nos
métodos construtivos, quer na tipologia que se parece com os espaços comunitários
das habitações índias” (Oliveira, Beatriz Santos e Rovo, Mirian Ito, 2004). Os edifícios
adaptam-se à topografia e são construídos de forma a proporcionar a ventilação
natural, tomando em consideração os ventos dominantes. O denominado “arquitecto
da floresta” estudou aqui vários dispositivos para controlar a temperatura, como
aberturas na cobertura ou persianas que se abrem horizontalmente e verticalmente
permitindo optimizar a entrada e fluxo do ar, assim como controlar a incidência da luz.
Por sua vez, generosas varandas cobertas fazem a transição entre interior e exterior e
“funcionam como extensão da sala de estar e como protecção do acesso à casa”
(Oliveira e Rovo, 2004).
Ilustração 20 - Casa do arquitecto Severiano Porto, Manaus, 1971, Severiano Porto. (Guerra e Ribeiro, 2006)
Ilustração 21 - Aldeia infantil SOS, Manaus, e Centro de Protecção Ambiental de Balbina, de Severiano Porto (Baratto, 2014).
Conceição Silva também vai convocar materiais e dispositivos espaciais que inserem
as obras no seu contexto e conferem qualidades vivenciais de acordo com as
necessidades do sítio, como as varandas alpendradas, elemento preponderante nas
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
49
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
várias casas que projecta, como por exemplo na casa de Praia de Geribá, em Búzios,
nas casas de Taquará, a Oeste do Rio (estas últimas aparentemente não construídas),
ou nas casas dos conjuntos habitacionais que faz para a Michelin, no Campo Grande
(por exemplo, no loteamento de Poatã). Numa casa não identificada é notório o
protagonismo deste espaço de mediação entre interior e exterior, concebendo uma
autêntica sala de estar exterior. A ausência de portas entre esta generosa varanda e a
sala, como se de um único espaço se tratasse, diferenciado apenas pela sua relação
mais directa ou indirecta com o exterior, torna-o ainda mais híbrido e flexível. O
encerramento ao exterior faz-se por umas portadas de madeira que permitem colocar
a varanda na penumbra, protegendo-a do sol, ou abri-la ao jardim. Vale a pena citar as
considerações de Eduardo Rossetti que colocam a varanda como um dos principais
dispositivos da arquitectura brasileira :
“A incorporação da varanda na formulação do sentido do habitar no Brasil é tão
ancestral que sua origem oriental já desembarcou aqui junto com o linguajar
português.(...) Ainda que assuma significados regionais mais específicos, vinculandose ora à atividade de estar, ora às atividades de refeição, sua presença doméstica no
quotidiano a consolida como um espaço brasileiro de caráter tradicional. Ou seja, a
varanda é brasileira. A varanda está vinculada aos hábitos culturais de sociabilidade e
convivência pública, coletiva ou familiar desde sua configuração tipológicas nas sedes
dos engenhos de cana-de-açúcar. (...) Além disso, a varanda sempre pode oferecer um
ponto de vista privilegiado, abrindo amplas perspectivas sob a paisagem, apurando o
olhar dos habitantes e frequentadores como um mirante dessa paisagem, do lugar, do
território, do mar e depois das cidades. A varanda mantém sua gênese conceitual mas
se transforma, revigorando-se como um problema de projeto, ativando questões como
escala, material, estrutura, modos de vida, memória, tradição e as relações com a
cidade” (Rossetti, 2010).
Entre as obras mais “regionais”, podemos no entanto apontar o bar de praia que
projecta para um hotel não construído no Estado da Bahia, com uma cobertura em
estrutura de madeira e palha e muros de pedra, lembrando o Restaurante Chapéu de
Palha, em Manaus, de Severiano Porto (de 1967), possivelmente sem o cariz
antropológico do seu colega brasileiro, mas evidenciando a mesma vontade de
expressar as raízes locais.
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
50
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Ilustração 22 – Planta casa desconhecida no Rio e alçado Bar de Praia para o Hotel Ponta Negra no Estado da Bahia (Silva, F. (2),
ca.1980).
Ilustração 23 – Corte Bar de Praia para o Hotel Ponta Negra no
Estado da Bahia (Silva, J. e Silva, F., 1987, p. 182).
Ilustração 24 - Restaurante Chapéu de Palha, Manaus,
Severiano Porto.
A questão tecnológica não era pouco importante no Brasil. O uso intensivo do betão,
essa enganosa facilidade com que era empregue em obras de engenharia de uma
enorme exigência, nunca conseguiu ultrapassar as insuficiências tecnológicas,
repercutindo-se também num custo elevado. A sua aparente rudimentaridade, dada
pela nudez e revelação do processo produtivo, não correspondia no entanto à
dispensa de meios técnicos, mesmo que alguns o tenham defendido como paralelo da
“arte povera” – pense-se por exemplo em Vilanova Artigas ou Bo Bardi. Neste novo
ambiente de recuperação da tradição, a utilização de técnicas artesanais com recursos
locais era também um “manifesto” contra o esforço e sofisticação dessa tecnologia
importada e dificilmente dominada, ou mesmo impossível em certos contextos. A préfabricação não teve por exemplo grandes desenvolvimentos, pese embora as
tentativas sobretudo em finais de cinquenta e sessenta no ambiente mais industrial de
São Paulo34, ou nalguns casos experimentais como nos projectos de Lelé (João
Filgueiras Lima, 1932-2014) para a Bahia, arquiteto que procurava a racionalização e
industrialização da arquitectura e chegou mesmo a ter uma fábrica de pré-fabricados.
34
Refira-se, por exemplo, Carlos Millan, quem procurava uma economia de meios e racionalização do
processo construtivo com várias experiências, como na casa Antonio d’Elboux (1962-4), São Paulo. Ver
(Kamita, 2004, p. 163).
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
51
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Por outro lado, não obstante a adequação da austeridade do betão ao clima tropical,
as expressões mais tradicionais e os materiais mais nobres ou “amenos” eram mais
facilmente aceites pela alta burguesia ou elite, sintomático de uma sociedade, afinal,
bastante conservadora. Atente-se às encomendas das casas dos mestres da
arquitectura moderna brasileira, na sua maioria dos próprios ou para pessoas ligadas
às artes ou cultura. Na realidade, a historiografia, na sua leitura, retém sobretudo os
movimentos progressitas, mas a implantação da arquitectura moderna é limitada,
permanecendo dominante uma arquitectura corrente à margem desses movimentos.
Segundo Carlos Salém, genro de Arthur Kelson, a casa do Portinho do Massaru levou
alguns anos a ser vendida por causa da expressão moderna, servindo entretanto de
escritório para a empresa promotora, a Socit (Salém, 2013). Por essa razão, não
avançaram com os projectos de Conceição Silva em dois outros lotes35. Os projectos
acabaram por ser entregues ao responsável pelo plano geral do condomíno, José
Zanine Caldas (1918-2001),
arquitecto/artesão (era autodidata) cuja imagem de
marca era justamente umas inusitadas casas de expressão vernacular, de madeira ou
outros materiais. Figura polémica, Zanine é um caso singular no panorama da
arquitectura dos anos sessenta a setenta no Rio, com uma obra extensa e de grande
aceitação na burguesia, nomeadamente nos bairros em expansão da Joatinga e da
Barra da Tijuca. “Apresenta um estilo muito original misturando o desenho clássico das
plantas com técnicas vernaculares de construção e a utilização de materiais de
demolição”, como numa casa construída em pau-a-pique, “resgatando rigorosamente
esta técnica secular” (Colin, Silvio, 2011) e com uma tradicional planta cruciforme.
Colin enquadra-o numa corrente de um “Novo colonial” com postura historicista, na
qual inclui a obra mitigada de Lúcio Costa ( 1902-1998), entre a tradição das casas
coloniais e a modernidade de Le Corbusier, exemplificando com a casa do Poeta
Thiago de Mello (anos 70), nas proximidades de Manaus, a qual só era acessível de
barco, justificando o partido tomado de uma construção com materiais e técnicas
disponíveis.
35
Existe a dúvida se foram construídas uma ou duas casas. Ricardo Silva Pinto pensa terem sido
construídas duas deste conjunto de três (Pinto, 2013).
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
52
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Ilustração 25 - Casa do Nilo, Rio de Janeiro,
de José Zanine Caldas.
Ilustração 26 - casa Thiago de Mello, de
Lúcio Costa. ( Colin, 2010).
O recurso a materiais ou sistemas artesanais estava no entanto igualmente presente
nas obras brutalistas, como apropriação local da mesma ou amenização da rudeza
dessa corrente e será desde os Anos Sessenta prática corrente no Brasil, mesmo no
mais radical ambiente de São Paulo. O arquitecto paulista Sérgio Ferro designa
mesmo essa corrente de “brutalismo caboclo” (Matera, Sérgio, 2005, p.77) em
oposição ao “brutalismo estitizante europeu” (Idem). A obra de Carlos Millan,
cuidadosamente detalhada, denota esse hábil jogo de equilíbrio, como por exemplo na
casa que projectou para o seu irmão Roberto em 1960. O monólito de betão deve a
sua delicadeza ou sofisticação aos detalhes como a tijoleira cerâmica no tecto a
revestir as lajes em betão e no pavimento, as persianas de madeira pintadas de azul,
a estereotomia dos caixilhos pintados de zarcão laranja, cromias bem brasileiras,
denotando também as influências da obra mais tardia de Le Corbusier, como as
Maisons Jaoul (1952/1956), com suas abóbadas e paredes de tijolo maciço (de
inspiração catalã), estrutura aparente em betão e o peso da massa36. Este aspecto
revela a constante preocupação brasileira em provar a sua autonomia em relação aos
centros de emanação artística, seja da Europa, seja dos Estados Unidos, também
sustentada por questões identitárias e ideológicas.
Ilustração 27 - Casa Roberto Milan, São Paulo (1960). (Matera, 2005).
36
Podemos citar vários projectos que remetem para esta obra charneira de Corbusier como a casa
Dalton Toledo (1962), em São Paulo, de Joaquim Guedes.
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
53
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Ilustração 28 - Casa dos Arcos, Rio de Janeiro (1972-8), de Lelé. (Joana França Fotografia, 2014).
Com um conjunto de casas em que experimentam a combinação de materiais
artesanais em obras iminentemente modernas, particularmente nos anos setenta,
Joaquim e Liliana Guedes fazem prova da mesma preocupação de identificação da
sua obra com a cultura local. Guedes e Millan, antigos alunos da escola McKenzie,
próximos de Rino Levi, e que passam a dividir o escritório a partir de 1955,
representam justamente uma posição mais moderada do que os formados no
Politécnico de São Paulo, onde pontua Vilanova Artigas. Manifestam assim um maior
cuidado na pormenorização, nos detalhes construtivos, resultando numa obra mais
sofisticada e possivelmente mais elitista, ilustrando uma das duas correntes que
polarizam o ambiente paulista37. Oswaldo Bratke (1907- 1997), mais velho, quem
ocupará em São Paulo uma posição paralela à de Lúcio Costa no Rio, é, como este
último, mais caboclo na abordagem moderna. Formado ainda como engenheiroarquitecto na McKenzie, para além do enfoque construtivo próprio da cena paulista,
preocupou-se sempre na viabilidade económica das suas obras e na adequação ao
contexto. Cite-se o caso emblemático da Vila Serra do Navio no Amapá para
trabalhadores mineiros, na selva amazónica, da década de sessenta, com extenso
emprego de estruturas em madeira numa releitura das casas autóctones. E mesmo
Lelé, como já referido, um dos arquitectos mais interessados em tecnologias
avançadas como a pré-fabricação, também teve as suas experiências com sistemas e
materiais tradicionais. Veja-se a Casa dos Arcos (1972-78) de quase dois mil metros
quadrados, em Brasília, que projectou para o seu amigo Nivaldo Borges, com
reminiscências de construções romanas com os seus arcos e abóbadas de tijolo em
harmonia com a madeira e o vidro, a qual não deixa de lembrar a obra de Louis Kahn
(1901-1974).
37
Sobre este assunto veja-se a tese sobre Carlos Millan de Sérgio Matera, 2005.
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
54
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Ilustração 29 - Vila Serra de Amapá, de Oswaldo
Bratke.
Ilustração 30 - Residência Paulo Nogueira Neto, de Oswaldo Bratke (Silva,
N. 2011).
A já citada Casa Coslowsky reflete também as influências brutalistas, o carácter
tectónico, o protagonismo e peso da massa e a verdade dos materiais e estruturas
deixados à vista, lembrando igualmente a obra de Louis Kahn, mas também de Wright,
nomeadamente na composição espacial. Tal como nas outras obras do arquitecto
português, com mais evidência aqui, as construções em sistemas tradicionais
(madeira, tijolo) são combinadas com elementos estruturais em betão aparente,
reforçando o diálogo entre modernidade e tradição, patente também nas soluções
espaciais, como veremos a seguir. Importava então pôr em valor a característica
artesanal destas técnicas construtivas. Assim, tradição e tecnologia ou regionalismo e
brutalismo cruzam-se em combinações que aceitam as várias camadas da história
sem antagonismo, independentemente do maior peso de um ou de outro.
As residências Ronaldo Steinberg (1976-1979) e Salik Resner (1981) são as que mais
evidenciam o carácter brutalista, lembrando aliás de forma muito notória a obra do
arquitecto português de meados de sessenta até à sua ida para o Brasil em 1975 e,
em particular, a casa própria no Dafundo (1965-1967). Com a articulação de volumes
e varandas balançadas, as casas são menos monolíticas do que era então habitual ver
em São Paulo e traduzem um sistema construtivo ou pensamento construtivo de
articulação de elementos, lajes, paredes de betão, muito diferente das casas paulistas
construídas de um “casco” só, como as projectadas por Vilanova Artigas e que terão
igual desenvolvimento em seus seguidores como Carlos Millan, Fábio Penteado,
Eduardo de Almeida e Mendes da Rocha38. Nesse aspecto, as obras de Conceição
Silva e Pinto da Cunha aproximam-se mais do modo de fazer do Rio, contexto onde
aliás se inserem. A relação dos pequenos lotes, com pouca privacidade, com o meio
circundante conduz a uma solução que realça esse carácter bruto da construção, a
38
Refere Kamita que “estes projectistas continuaram com as formas compactas e austeras, o uso de
tecnologias avançadas, land-works e vastos espaços internos” (Kamita 2004, p. 162).
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
55
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
sua fachada cega do lado da entrada, como se vê em muitas obras brasileiras da
época (como na Casa Millan, acima citada). Mas Conceição Silva também dá
sequência a soluções utilizadas em Portugal (Casa Ribeiro da Cunha, Restelo, casa
Própria, Dafundo). Na realidade, a corrente brutalista tem muitas afinidades dos dois
lados do Atlântico, pelo que não seria difícil ao arquitecto adaptar-se a este novo
ambiente. As maiores diferenças entre a versão ocidental e a apropriação tropical
prendem-se com a mestiçagem entre brutalismo e técnicas ou materiais tradicionais e
o protagonismo da estrutura que se funde com a arquitectura (no caso mais particular
da escola Paulista).
Ilustração 31 - Casa do
Dafundo (Silva, J. e Silva,
F., 1987).
Ilustração 32 - e Casa Ronaldo Steinberg (Silva, J.
e Silva, F., 1987, p.171).
Ilustração 33 - Casa Salik Resner, frente para a rua e Casa Coslowsky, interior (Cunha, 2006).
A Casa Ronaldo Steinberg e, embora em menor medida, a Casa Coslowsky denotam
no entanto uma inusitada sofisticação em relação às suas congéneres brasileiras,
mesmo quando comparadas com uma obra bastante detalhada como é o caso das de
Carlos Millan ou dos Guedes. Esta sofisticação revela-se no desenho exaustivo dos
detalhes, no recurso a materiais nobres e, de modo geral, na vontade expressa de
criar um confortável ambiente doméstico. Os interiores da residência Steinberg
lembram com toda a evidência o cuidado posto nos pormenores na obra portuguesa
do arquitecto, como no Hotel da Balaia, ou na casa própria do Dafundo. Refiram-se, a
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
56
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
título de exemplo, a caixilharia e as guarnições da guarda da escada em madeira, a
escada alcatifada, o revestimento do tecto em réguas de madeira de dois tamanhos
diferentes. A liberdade volumétrica (e da planta, como veremos mais abaixo) destas
duas casas e da Resner é sintomática da recuperação do organicismo de Frank Lloyd
Wright na Europa, visível em muitas obras de Conceição Silva. A Casa Coslowsky é
no entanto a mais austera das três e tem certamente um carácter mais autóctone,
sobretudo pelo uso do tijolo em bruto, mas também pelo perfil piramidal a lembrar
construções primitivas e mesmo no carácter aditivo dos vários volumes que se
espraiam pelo terreno lembrando pequenas cabanas tribais. A forma piramidal lembra
o edifício da superintendência da zona Franca de Manaus, de Severiano Porto, de
1971, o qual usa um inteligente dispositivo de resposta aos excessos do clima tropical,
numa altura em que o ar condicionado já era de corrente utilização no Brasil. É
possível que a solução de cobertura da casa Coslowsky reflicta também essa
preocupação climática, sendo ainda de realçar a potenciação da ventilação natural
cruzada com a grande abertura da casa ao exterior, sobre várias frentes. A esse
respeito, a Casa Steinberg apresenta igualmente uma solução que tem repercussões
quer a nível do controle da temperatura, quer para a desejada integração na paisagem
– a cobertura ajardinada, então uma solução inovadora e tecnicamente exigente. Nos
mesmos anos, Mendes da Rocha desenhava uma solução semelhante com laje-jardim
e ainda espelho de água, para a casa António Junqueira (1976-80). Também na
Fábrica Sombra, no Bairro de Santa Cruz, a Oeste do Rio, Conceição Silva demonstra
a sua sensibilidade às questões de conforto ambiental, com um sistema de ventilação
natural conseguido pelas aberturas formadas pelos elementos de betão de cobertura
em V apoiados sobre as vigas, sem qualquer tipo de vedação, trazendo assim ar e luz.
Ilustração 34 - Superintendência da zona Franca de Manaus, de Severiano
Porto (Andreoli, Forty, 2004).
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
Ilustração 35 - Fábrica Sombra (Durães, 2014).
57
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Ilustração 36 - Casa Carlos Royle, Búzios e casa em Taquará, Rio (Silva, F. (2), ca.1980).
Esta variação entre Brutalismo e tradição responde também ao entorno em que a obra
se insere e às características particulares de cada encomenda, ou seja revela uma
resposta caso a caso, mediante os problemas colocados. Conceição Silva adopta
diferente partido segundo se trata de um quadro urbano, fora deste ou no limiar da
cidade, como no caso dos loteamentos de casas construídas para a Michelin. Nas
várias casas de praia que projecta ou no caso acima citado das residências para os
quadros da Michelin, opta por uma expressão mais popular, mais simplificada,
correspondendo também a um programa mais “económico”, partido que se vê na obra
de muitos arquitectos brasileiros. Estas casas são até bastante idênticas, quer em
termos formais, ou mesmo de tratamento do espaço, revelando até uma certa
“esteriotipização” de um modelo, apto a receber variantes, intencional no caso dos
conjuntos para a Michelin. Com seus generosos alpendres e soluções em planta
relativamente singelas lembram a arquitectura bandeirante. Mas também dão
sequência à obra portuguesa do arquitecto, como por exemplo as casas de férias
projectadas nos anos sessenta na zona de Sintra, perto de Lisboa – a Casa do Galo
ou a Casa do Penedo, embora menos sofisticadas do que estas.
Ilustração 37 - Fábrica Sombra (Durães, 2014).
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
Ilustração 38 - Unicamp, Campinas, de Joán Villà.
(Zein, 2014)
58
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Conceição Silva procurou sempre alinhar-se com o seu tempo e as novas tecnologias
construtivas fizeram sempre parte dos seus interesses sem que isso fosse um
objectivo em si. A pré-fabricação, com vista a uma maior economia da construção em
termos de tempo ou financeiros, foi uma tecnologia que procurou adoptar quer em
Portugal, quer no Brasil, quando o caso assim o justificava, como no Complexo
Turístico de Tróia, uma cidade de turismo de massas para vários estratos sociais da
população, para a qual instala uma fábrica de painéis de betão pré-moldados, num
esforço de sistematização e repetição dos elementos construtivos, como os elementos
de fachada. No Brasil, o seu interesse pelas construções em madeira levam-no a
montar uma estância de madeira com o seu amigo Mário Pais de Sousa, numa
fazenda por este último adquirida no Rio, no Recreio dos Bandeirantes, Vargem
Grande (Sousa, 2006), permitindo-lhe assim melhor dominar a tecnologia e o
fornecimento às obras. A própria organização do atelier de Lisboa reflectia essa
procura de eficácia e sistematização, com a estrutura em vários departamentos a
trabalhar em conjunto numa articulação muito bem “oleada”. Algo que nunca poderá
implementar no Rio por falta de escala e uma vez que o volume de trabalho assim não
o justificava. A fábrica de mobiliário Sombra, para o seu amigo João Durães39, é
também um exemplo de procura de racionalização dos meios para um menor custo e
maior rapidez da construção. O edifício é concebido com todos os elementos préfabricados, desde as estacas de fundação aos elementos estruturais em betão,
incluindo até umas telhas de grande dimensão em betão pré-moldado, os quais são
fornecidos por uma fábrica paulista – a Sobraf -, às paredes de enchimento com
blocos de betão celular vazado produzidos in loco por uma empresa especializada, a
Modern Blocks. O carácter experimental irá no entanto resultar nalguns dissabores,
sobretudo com problemas de infiltrações entre os elementos de cobertura que eram
encostados e ligados com massa. A preocupação em utilizar tecnologias industriais de
baixo custo, com vista à racionalização dos meios e uma utilização económica desses
materiais, como no caso da fábrica Sombra, com os blocos de cimento à vista,
começava então a fazer parte de um discurso pré-ecológico no Brasil, transpondo
princípios e a estética de tipos fabris para outros programas, como por exemplo no
39
João Durães era dono da loja Sombra, de mobiliário de exterior, em Lisboa e vai igualmente para o Rio
a seguir ao 25 de Abril (Durães, 2014).
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Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Conjunto Estudantil Unicamp, em Campinas, de Joan Villà (1988/1991), em que são
empregues painéis pré-fabricados de blocos cerâmicos à vista40.
A tradição ou a modernidade não são assim manifestações de uma ideologia
estanque na obra de Conceição Silva, nem tão pouco antagonistas. Na realidade, o
arquitecto revela uma prática sem repertório, antes uma abordagem metodológica em
que forma e técnica são adaptadas à circunstância. No Brasil, encontra um meio
suficientemente livre para dar continuidade às experimentações que caracterizaram
sempre a sua obra, com as referências que traz como património, mas também
condimentado pelos novos ingredientes sugeridos pelo novo contexto físico, humano e
cultural.
3.2. MODOS DE HABITAR E PROPOSTAS ESPACIAIS
Planta e volume fragmentados.
As propostas espaciais das casas brasileiras que conhecemos de Conceição Silva e
Pinto da Cunha apresentam uma planta bem diferente do modelo compactado e
essencial dos exemplares brutalistas paulistas, as quais correspondem ao carácter
monolítico do próprio volume. De modo geral, as casas brasileiras da época reflectem
ainda a filiação na visão funcional e mecanicista das vanguardas modernas. Mais
particularmente ainda na cena paulista, onde dominam as visões colectivistas ligadas
à ideologia de esquerda. É de referir que “foi no tratamento racional das plantas que
certa modernidade emergiu em São Paulo” e não “mediante os recursos formais que
caracterizaram a linha carioca” (Segawa, 1999), factor que reflete já de si a formação
mais técnica (recorde-se que só na década de 40 é que as escolas de arquitectura de
São Paulo se autonomizam da de engenharia, até aí eram arquitectos-engenheiros,
com formação limitada e muito técnica – Matera, 2005, p.39). A título de exemplo, as
soluções e organização espacial de casas como as residências Telmo Porto e
Martirani (de 1968-69), de Artigas, ou a casa própria de Paulo Mendes da Rocha
(1964), todas em São Paulo, lembram os princípios de Corbusier da autonomização da
estrutura e do invólucro exterior, liberdade espacial e elementos ou divisões da casa
tratados como órgãos internos. As brutas fachadas cegas não deixam adivinhar a
40
Joan Villà desenvolveu este sistema de pré-fabricação cerâmica com a Universidade de Campinas, em
1985. Tratam-se de painéis leves de tijolos cerâmicos solidarizados com betão armado destinados à
execução de paredes, lajes e coberturas. Mais tarde foram aplicados a conjuntos residenciais.
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
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Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
fluidez e liberdade com que é tratado o espaço interno, mas sempre dentro dos limites
das “caixas” que as encerram.
Na década de cinquenta, Conceição Silva segue também essa linha de pensamento
racional, com uma certa compactação dos espaços e a sua organização num volume
de geometria clara, como por exemplo na casa Ribeiro da Cunha, no Restelo (Lisboa),
sem no entanto atingir a radicalidade espacial das residências paulistas acima citadas,
as quais transcendem sem dúvida a lição funcional. Porém, como antes referido, em
Portugal, o final dessa década e a seguinte serão de revisão, colhendo os frutos do
novo empirismo escandinavo ou do organicismo wrightiano, lição a que Conceição
Silva dá sequência no espaço brasileiro. Recusando modelos pré-estabelecidos,
importa responder ao local, ao clima, à topografia e à vivência quotidiana de
determinada família. Assim, os volumes fragmentados refletem o trabalhar da
topografia, com vários níveis, e a individualização e hierarquização de cada espaço,
como é notório na complexidade e riqueza espacial que apresentam as casas
Steinberg, Coslowsky e Resner. A morfologia destas casas é o resultado do trabalhar
do espaço interno, do tratamento volumétrico do espaço em três dimensões e não só
em planta. Reflecte-se também aqui a leitura da imensidão do território brasileiro que
se repercute na explosão dos espaços, intensificando a experiência espacial.
O
espaço está aqui cheio de intenções e subtilezas e é ele que dá a forma, ao contrário
do partido da escola paulista em que é agenciado num volume mais puro e
indepentemente deste “casco”, não obstante a liberdade com que é trabalhado e a
fluidez e modernidade das várias propostas espaciais.
Ilustração 39 - Casa Telmo Porto, de Vilanova Artigas. (Carrilho, 2014)
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
61
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Ilustração 40 - Residência Martirani, de Vilanova Artigas
(Mahfuz, 2006).
Ilustração 41 – Residência Martirani, planta piso 0 (Mahfuz, 2006).
As casas brasileiras da dominante escola paulista das décadas 60 e de 70 são
também uma extensão dessa visão do objecto arquitectónico como uma infra-estrutura
urbana, numa altura em que o Estado Brasileiro vem fazendo um notável esforço de
investimento em grandes equipamentos para modernizar o país, nomeadamente
aeroportos, terminais rodoviários, hidroeléctricas ou estabelecimentos escolares41.
Tomando o caso paradigmático de Vilanova Artigas, refere Wisnik que o “tratar as
casas como cidades era um objectivo explícito” do arquitecto paulista que “gostava de
se referir à célebre imagem de Leon Battista Alberti: as cidades como as casas, as
casas como as cidades” (Wisnik, 2004, p.75). Nomeadamente, as radicais casas
Telmo Porto e Martirani “são ambas caixas de concreto armado e aparente, quase que
inteiramente cegas e voltadas para os seus próprios interiores, e com uma estrutura
que alude mais a uma obra de grande porte (laje nervurada, grandes vãos) do que à
imagem de uma casa” (Idem). Esta forma de entender a habitação, o seu
encerramento ao exterior, numa altura de forte crítica à ditadura militar, por sua vez, a
fluidez e o interior aberto sobre si próprio - os quartos sem janelas exteriores tais
“celas monásticas” (Wisnik, 2004, p.68) na casa Telmo Porto – o interior como um
espaço todo comunicante e aberto, independentemente da sua raiz moderna
“corbusiana”, são antes de mais a manifestação do engagement político no
pensamento arquitectónico, um manifesto contra o estado do país cerceado pela
ditadura militar e contra os estandartes de habitar burgueses. Estas casas de Artigas,
talvez o mais radical arquitecto brasileiro nas suas posições políticas42 e para quem
mais do que ninguém a ideologia se torna num dos principais ingredientes da
41
Sobre esse assunto, veja-se o capítulo “Episódios de um Brasil Grande e Moderno 1950-1980”,
(Segawa, 1999, ps 159 a 188).
42
Para além de Mendes da Rocha, os mais jovens Sergio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre dão
continuidade ao radicalismo político de Artigas (Kamita, 2004, p. 162).
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
62
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
arquitetura, são como “favelas racionalizadas”43. Como diz Wisnik, também a propósito
de Paulo Mendes da Rocha, estes arquitectos buscavam “urbanizar a vida doméstica,
isto é, abolir ao máximo possível a intimidade, extirpando as marcas idiossincráticas
pessoais ligadas à ideia romântica e burguesa de lar (...). O que procuravam, era
abolir os segredos e confortos do espaço privado familiar em prol de uma ideia cívica
de vida inteiramente pública: a casa como um fórum da vida coletiva da cidade, onde
cada um tem a sua liberdade pautada pela liberdade do outro, pois as regras de ordem
social controlam o arbítrio da subjectividade pessoal” (Wisnik, 2004, ps.78 e 79). Como
refere Kamita, Artigas revê “criticamente a hierarquia do espaço, a distribuição do
programa, a divisão funcional e as regras estilísticas da casa burguesa” (Kamita, 2004,
p.159).
Conceição Silva não se envolverá na discussão ideológica, os ideais políticos nunca
foram para o arquitecto português um ingrediente da concepção projectual. Interessalhe como resposta adequada à encomenda a criação de um ambiente sensível e
confortável, domesticado, tendo como matéria de trabalho as questões espaciais, a
intimidade, as nuances proporcionadas pela relação com o exterior, pela luz, pelas
qualidades tectónicas e sensoriais dos materiais, sem perder de vista a experiência
sensível da expressão de um artefacto sobre um determinado território. Por outro lado,
reage à questão geográfica, enfatiza a exuberância da natureza integrando-a na
arquitectura, trazendo-a para o espaço interno com pátios ajardinados, submergindo a
construção nessa natureza, não só com as floreiras que dão a ideia de que as casas
foram sendo tomadas pela vegetação, como pela forma como tira partido da condição
topográfica. Pese embora os espaços desenhados sem convenções, com grande
liberdade e modernidade, as três casas acima citadas respondem à vida de um
determinado estrato social, com um desdobramento de múltiplas salas e zonas
distintas separando claramente as funções sociais, privadas ou de serviços; são, sem
dúvida, casas modernas para uma elite burguesa, afinal a sua clientela, bem no
campo oposto da “colectivização da vida privada” de Artigas.
Mesmo no caso dos arquitectos cariocas, vimos, de modo geral, a mesma
compactação dos volumes e racionalidade das soluções espaciais, à excepção de
algumas experiências com plantas mais “orgânicas”, tratando-se na realidade de
aproximações mais formais em que as casas são entendidas como uma segunda
natureza, integrando-se nesta mais mimeticamente, embora geralmente com um
43
Nos termos de Flávio Motta, (Apud Wisnik, 2004, p. 78).
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
63
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
diálogo sensível com o entorno, como no Caso da Casa Canoas (São Conrado, Rio de
Janeiro, 1952-1953), de Oscar Niemeyer. O quase único vestígio da casa é um
coberto de betão curvilíneo a fechar um dos lados de uma clareira e a piscina de forma
irregular como um acidente natural no jardim. A zona social é delimitada por uma
parede curvada opaca que aproveita a maleabilidade do betão, mas sobretudo
transparente, com vidros igualmente curvilíneos, dissimulando-se a parede pelo seu
recuo em relação à cobertura. “A sensação de abertura é completa, como se o vazio
do terreno atravessasse a casa e continuasse através da floresta” (Kamita, 2004,
p.154). Conceição Silva, por sua vez, mantém sempre uma certa contenção formal,
não se aventura pelas liberdades de grande efeito plástico da corrente carioca, a qual,
de qualquer forma, quando ele chega ao Brasil, já fora alvo da crítica internacional e
perdera a sua vitalidade.
Ilustração 42 - Casa Canoas, Rio de Janeiro, de Oscar Niemeyer (Guerra, Ribeiro, 2006).
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
64
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Ilustração 43 - Residência Waldo Perseu Pereira, São Paulo, Joaquim e Liliana Guedes. (Andreoli, Forty, 2004).
Existem no entanto no Brasil algumas indagações mais sensíveis às possibilidades
espaciais e suas interacções com o território, como no caso, mais uma vez, de
Joaquim Guedes, arquitecto com obra muito experimental e radical. A residência
Waldo Perseu Pereira (com sua mulher Liliana, de 1967-9), de inusitada morfologia em
São Paulo, responde ao desafio de um lote triangular e com um desnível de cinco
metros, com um complexo jogo de volumes. Raro em terras brasileiras, reflecte uma
particular riqueza espacial, sobretudo nas zonas sociais “organizadas numa sequência
radial dando a impressão de grande abertura” (Kamita, 2004, p.164). Tal como na
casa Steinberg, organiza em volumes a zona de serviços, com os quartos dos
empregados sobrepostos à cozinha, e a zona dos donos da casa com os quartos por
cima das salas. A área social oferece uma riqueza de ambientes com diversas formas,
alturas de pé direito e vistas e expande-se para a mezzanine do andar superior. Pouco
convencional, sem descurar a racionalidade de algumas soluções, aproxima-se das
propostas do arquitecto português pela liberdade com que abandona a planta racional
para responder a pressupostos encontrados no terreno e no programa, também
complexo dadas as solicitações da encomenda para uma família da alta burguesia e
que exigia um apartamento independente para o pai do proprietário (Idem). A postura
analítica de Joaquim Guedes, a liberdade com que muda a forma em cada novo
projecto, sem parti pris mas antes em função da circunstância específica de cada
encomenda, com influência do empirismo escandinavo
44
,
aproxima-o do modus
operandi do arquitecto português. E, tal como Conceição Silva, Guedes importava-se
com a cultura dos seus clientes, com seu “gosto, classe social e necessidades psicofisiológicas” (Kamita, 2004, p.164), indiferente às críticas dos
membros da escola
paulista mais dogmáticos.
44
Kamita aponta a influência de Aaalto (Kamita, 2004, p. 164).
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65
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Ilustração 44 - Casa Lota de Macedo Soares, de Sérgio Bernardes. (Cavalcanti, 2009).
um pouco mais velho, Sérgio Bernardes (1919-2002), do Rio de Janeiro, é outro
arquitecto que trilha um caminho próprio dentro da modernidade, com obras que não
poem de parte a tradição. Doseando modernidade e rusticidade, a residência de Lota
de Macedo Soares (Petrópolis, 1951-53), ou a casa própria (Rio, 1960-61)
demonstram uma especial capacidade de mesclar linguagens aparentemente
antagónicas. Num dos sítios de veraneio mais elitistas da capital carioca, a casa Lota
Macedo (jardim de Roberto Burle Marx), com sua feição meia industrial, meia
artesanal - cobertura inclinada mas de alumínio ondulado sobre estrutura metálica de
treliças, muro de pedra no embasamento, mas rampas de betão, paredes de tijolo e
portadas de correr de madeira - oferece alguma variação na planta com avanços e
recuos e uma composição mais livre em vários volumes cruzados, interagindo com a
paisagem, incorporando inclusive uma rocha existente na zona dos quartos. Lauro
Cavalcanti refere a posição singular de Bernardes em relação ao racionalismo
corbusiano e as derivações plásticas da escola carioca, considerando a sua obra
“concomitantemente orgânica e racional”, próxima tanto de Mies van der Rohe, pela
sua “concepção racional e minimalista”, quanto do organicismo de Frank Lloyd Wright,
pelo diálogo estabelecido com a natureza e “o uso de materiais sem revestimento
algum, de modo a explorar as suas texturas naturais, assim como uma dominância
horizontal em suas composições” (Cavalcanti, 2009).
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
66
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Ilustração 45 - Casa Ronaldo Steinberg, Plantas dos pisos 1 e 2, fachada para a rua e perspectiva. (Silva, F. (2), ca.1980).
A casa Steinberg organiza-se em torno de uma centralidade (partido que vemos em
muitas casas de Wright), a sala desmultiplicando-se em vários espaços, em três níveis
distintos, expandindo-se ainda para a zona de refeições e para o escritório, numa
solução de grande fluidez. Estas casas reflectem simultaneamente o protagonismo
que o arquitecto atribui à socialização da família, e daí a centralidade e abertura dos
espaços comuns para onde tudo converge, e modos de habitar enraizados numa
sociedade tradicional e pouco igualitária, com uma forte estratificação social, onde a
burguesia tem ainda a capacidade de construir casas com uma considerável
complexidade programática. Refere Betty Steinberg, mulher de Ronaldo Steinberg,
que o arquitecto procurou saber os hábitos e necessidades da família antes de
apresentar uma proposta (Steinberg, 2013), metodologia que encontramos já nas
obras que projecta anos antes em Lisboa, influenciado pelas teorias psicologistas do
arquitecto californiano Richard Neutra (de origem austríaca, 1892-1970). Pese embora
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
67
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
se preocupe em responder às necessidades psico-fisiológicas da família, o arquitecto
não deixa de propor novas abordagens ao estilo de vida, com a abertura dos espaços
e nomeadamente a ausência de um hall de entrada, conduzentes a uma ousada
informalidade, solução que ainda hoje Betty Steinberg recorda como uma certa falta de
privacidade (Steinberg, 2013). Por sua vez, toda a área de serviço – com uma extensa
zona de quartos para empregados – fica bem segregada do resto da casa, afastada da
zona privada dos proprietários. A organização da casa Steinberg estrutura-se por
volumes, sempre com dois pisos: o de serviço, com os quartos dos empregados por
cima da cozinha, o das salas, com uma mezzanine, espaço indeterminado, que se
debruça por cima daquela, e o dos quartos, com a suite principal no piso superior. No
caso da casa Coslowsky, praticamente organizada num só piso mas também em
vários níveis, a sala é igualmente o elemento central desta organização tripartida entre
espaços privados dos proprietários, espaços comuns/ de estar e zona de serviço. A
teia de relações é aqui ainda mais complexa, já bem distante da clareza dos espaços
funcionalmente organizados da moderna arquitectura racionalista.
Ilustração 46 - Casa Coslowsky, Planta do piso 0 (Silva, J. e Silva, F.,
1987, p.172).
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
Ilustração 47 – Casa Coslowsky, exterior (Cunha, 2013).
68
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Ilustração 48 - Casa Valadas Fernandes, Cascais. (Leite, 2007, Volume II).
A residência Coslowsky, desenhada a partir da repetição de um módulo de base
quadrada, é a que apresenta uma maior fragmentação, lembrando soluções
wrightianas assim como a Casa Valadas Fernandes (1968-71), uma das últimas obras
unifamiliares do arquitecto em Portugal. Sem apresentar a organização em cruz da
casa portuguesa (típica do arquitecto norte-americano), a residência Coslowsky
espraia-se pelo terreno, com o avanço e recuo dos volumes, resultando numa base
irregular, volumes esses com dupla altura de pé direito nos quartos das crianças, os
quais tinham a zona de dormir em mezzanine. A composição obedece a uma lógica
aditiva em que se tira partido do terreno, bem ao oposto das concepções correntes
brasileiras da época em que a liberdade espacial se exerce dentro dos limites de um
volume compacto cuja presença se afirma no lote. A marcação modular prolonga-se
na piscina e no pavimento do seu espaço envolvente e é realçada, no exterior, pela
cobertura em pirâmides. A casa Resner, mais condicionada pelas limitações que
oferece um pequeno lote de base rectangular no Condomínio Nova Ipanema,
organiza-se em L, em torno de um espaço exterior central dominado pela piscina,
separando-se a ala dos quartos da dos espaços comuns e ficando os serviços na sua
intersecção. Mas também aqui a composição ajusta-se a um jogo livre de espaços e
volumes trabalhados nas três dimensões, expressa na complexa morfologia. O
escalonamento dos corpos atende, num e noutro caso, à necessidade de conferir
maior privacidade aos espaços que assim se individualizam.
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
69
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Ilustração 49 - Casa Resner, planta do piso 1 e perspectiva. (Silva, J. e Silva, F. 1987, ps.186-187).
Casa paisagem.
Uma característica determinante destes projectos, que se enraíza bem na prática
brasileira, é a interacção com a natureza, a qual é um ingrediente fundamental do
projecto e não um elemento a ser dominado e contra o qual se construía como no
Ocidente, onde, geralmente, no melhor dos casos se estabelecia um discreto diálogo
entre os dois elementos. Característica não só possibilitada, mas também fomentada,
pela situação geográfica, atendendo ao clima e à prodigalidade da vegetação. Nas
casas Steinberg, Coslowsky e Resner, a interpenetração entre exterior e interior é
levada ao limite, até à criação de uma nova geografia interior e as próprias
construções ganham um carácter topográfico. A arquitectura funde-se com a
paisagem, facto potenciado pelo jogo volumétrico em diálogo com a topografia, pela
vegetação que “brota” da construção em floreiras ou na cobertura (casas Steinberg e
Resner) e ainda pela alternância entre construção e vazios ajardinados. As casas
integradas na paisagem assumem o papel de uma nova natureza, com um sentido
telúrico que remete para o organicismo wrightiano. Agarradas a um morro e na
proximidade de um entorno de grande exuberância da vegetação e radicalidade da
paisagem, as casas Steinberg e Coslowsky parecem emergir como sedimentações
calcárias. Observada de uma vista superior, a casa Steinberg assume um carácter
abstracto, parecendo um marco na paisagem, mais ainda quando comparada com as
construções limítrofes. Do lado da rua, as frentes cegas assumem-se não como
fachadas frontais principais que denunciam a vida doméstica, mas sim como
abstracções que parecem antes anunciar o acesso a um espaço natural. E até a forma
de aceder à casa, por uma entrada a uma cota mais baixa, subterrânea, por um piso
semi-enterrado, exacerba essa sensação de descoberta, de se passar da rua, do meio
urbano, para um novo ambiente em harmonia com a natureza. Ao contrário, do outro
lado, onde se desenrola a vida doméstica, as grandes e pesadas massas enraizadas
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
70
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
no terreno são perfuradas nas frentes que se abrem para seus jardins ou pátios
interiores, numa atitude introspectiva.
Ilustração 50 - Vista superior da Casa Ronaldo Steinerg, a última à direita. (Google Inc., 2014)
Num contexto urbano consolidado, no centro do Bairro da Tijuca, próxima do mar,
também a residência Resner se nega ao bairro com a frente cega. A casa implanta-se
numa plataforma acima da cota da rua, numa solução que lembra a casa própria de
Paulo Mendes da Rocha em São Paulo (1964-6), embora de forma bem mais amena,
sem o carácter de “manifesto” da obra paulista. A casa Resner recusa também
qualquer relação directa com o exterior, criando um micro-cosmos virado para o pátio
interior. O lote é trabalhado no seu conjunto, numa articulação entre construção e
espaços exteriores que se desenvolvem em vários patamares, sendo assim ocupado
na sua totalidade pela construção que se adoça às extremidades, reconfigurando os
seus limites e dando uma nova modelação ao terreno. Esse sentido de trabalhar o lote
no seu todo, construção e natureza fazendo parte da mesma composição, revela-se
também claramente nos loteamentos de casas unifamiliares que faz para a Michelin no
bairro do Campo Grande, nomeadamente em Poatã ou na Rua Olinda Ellis, como
veremos mais abaixo. Não se desenha uma casa num jardim, mas todo um ambiente
num continuum que redesenha a totalidade do espaço disponível, criando-se assim
um lugar para a vida doméstica. São casas que dão significado à paisagem
assumindo-se como uma referência, que dissolvem a noção de casa numa parcela de
terreno. Dentro de uma lógica que parte dos mesmos princípios, mas com muito mais
radicalidade, arquitectos como Paulo Mendes da Rocha levarão essa ideia mais longe
criando edifícios com um carácter não só topográfico, mas sobretudo como marco
territorial, como é exemplo o Museu Brasileiro da Escultura (1986-95), no cruzamento
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
71
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
de duas artérias principais de São Paulo, já não jogo de volumes, mas sucessão de
superfícies e praças cobertas por um pórtico à escala urbana que dão continuidade ao
espaço público45.
Ilustração 51. Casa
Steinberg (Silva, J. e
Silva, F. 1987, p.169).
Ilustração 52 - Casa Coslowsky, alçado frontal. (Silva, F. (2), ca.1980).
Ilustração 53 - Casa Resner, corte EE e alçado para a rua (Silva, F. (2), ca.1980).
Quase uma constante em todas as casas projectadas, os espaços internos, com maior
incidência sobre as zonas sociais, são organizados em torno de pátios ajardinados,
atendendo a uma composição ritmada por cheios e vazios. Por outro lado, os
exteriores expandem-se para o interior pelos grandes vãos envidraçados nas salas e a
colocação intencional de algumas janelas no mesmo eixo, em lados opostos,
intensifica a sensação de estar no meio da vegetação. Na casa Steinberg, alguns
vidros são colados a seco, levando ao limite a relação contínua com o jardim. Mas
enquanto que nas Residências Steinberg e Resner ainda podemos dizer que o interior
expande-se para o exterior, assim como a natureza é levada para o interior com os
pátios ajardinados, na casa Coslowsky, há mesmo um diluir das fronteiras entre estas
duas realidades, com o tratamento dos espaços internos como se fossem exteriores. A
interpenetração entre exterior e interior resulta não só do espraiar dos pavilhões pelo
jardim, mas também do tratamento do espaço interno como se de uns terraços ou um
jardim mais arquitectónico se tratasse, lembrando a ambiguidade do terraço/galeria da
45
Sobre o carácter territorial deste edifício, veja-se (Segawa, 2005, p. 54 a 57).
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
72
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Residência Lota de Macedo, de Sérgio Bernardes. Atente-se ao acabamento das
paredes interiores com o tijolo à vista, sem qualquer reboco, e à evidenciação da
grelha estrutural marcada pelo ritmo dos pilares que quase parece um jardim
porticado; a grande abertura dos vãos, com as portas envidraçadas que se recolhem;
as coberturas ligeiras e transparentes deixando vislumbrar as copas das árvores e o
céu nalguns espaços; os pátios ajardinados e floreiras disseminados pela casa. É-se
assim levado a considerar os espaços de estar como uns terraços cobertos, não se
distinguindo com clareza o que é interior e o que é exterior, intenção que se vê
também em desenho. Não obstante, a casa oferece um ambiente confortável, com a
rudeza do tijolo aparente amenizada pelo recurso à madeira no pavimento, nalguns
tectos e na caixilharia. A riqueza expressiva dos materiais naturais, a rudeza ou
suavidade das texturas, a pedra em muros exteriores e paredes interiores (na casa
Steinberg), o tijolo à vista, as madeiras, conferem também qualidades sensoriais ao
espaços que aproximam estas arquitecturas da natureza. Trata-se de uma intenção
bem brasileira que se vê por exemplo na Casa Lota de Macedo, de Sérgio Bernardes.
Ilustração 54 - Casa Coslowsky. (Silva, J. e Silva, P., 1987, ps.172-173).
A importância da relação com o jardim é desde logo claramente revelada nos
desenhos de Conceição Silva, no protagonismo da vegetação e espaços exteriores
que se vê quer nas perspectivas, quer nos elementos rigorosos. Aparecem vários
desenhos onde se tenta transmitir a vivência ou o ambiente dos espaços exteriores,
com o mesmo peso até do que no interior das casas. Revelam também a cultura local,
como a rede no alpendre da Casa Royle, em Geribá e umas “garotas” de biquíni a
apanhar sol em poses descontraídas que ilustram uma certo ar dengoso tipicamente
brasileiro, numa proposta para uma casa num conjunto turístico na Ilha dos Macacos,
em frente a Angra dos Reis (tanto quanto se apurou, não construído). Também no
Loteamento da Cachamorra, o conceito do condomínio é alicerçado no projecto de
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
73
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
paisagismo, na criação de uma massa verde a partir da fazenda existente,
preservando-se as espécies pré-existentes e potenciando essa paisagem com novas
plantações. Essa é a verdadeira qualidade do conjunto residencial que se quer vivido e
percorrido nos seus espaços exteriores, possivelmente em função não só da memória
da pré-existência de uma fazenda, mas também da sua localização no limiar da zona
urbanizada do Campo Grande, fazendo a transição entre espaço natural e espaço
urbano.
Ilustração 56 Casa Royle, Búzios (Silva, F. (2), ca. 1980).
Ilustração 55 - Perspectiva do Loteamento da Cachamorra, Rio
de Janeiro (Pinto, 1980).
Ilustração 57 Casa Coslowsky e Casa em Angra dos Reis (Cunha, 2013).
Em Portugal, o arquitecto já havia dado provas da sua especial sensibilidade ao
contexto físico, à relação interior/exterior, nomeadamente desenvolvendo as casas em
torno de pátios ajardinados dentro da tradição da casa mediterrânica, incorporando
floreiras na arquitectura e adaptando a construção à topografia (Casa da Boca do
Inferno ou nas casas próprias do Guincho e do Dafundo, Casa Comandante Ferreira
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
74
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Neves em Oeiras, só para dar alguns exemplos). Porém, o protagonismo que a
paisagem ganha aqui na arquitectura é nitidamente uma resposta ao contexto que só
acontece por se tratar do espaço brasileiro.
Ilustração 58 - Casa Conceição Silva, Guincho,
Portugal. (Silva, F. (2), ca. 1960).
Ilustração 59 - Casa Valadas Fernandes, Boca
do Inferno (Ilustração nossa, 2007).
Ilustração 60 – Casa do
Dafundo, Planta Piso 1
(Leite, 2007, Volume II).
Essa interpenetração entre interior e exterior é uma constante no contexto brasileiro.
Como refere Kamita, “a casa moderna brasileira demonstra uma inclinação invulgar de
interação com a exuberante natureza tropical do seu meio ambiente (...), é uma
espécie de reconciliação entre natureza e cultura, uma pacificação de diferenças –
donde o sentimento hedonístico de bem estar nestes ambientes construídos” (Kamita,
2004, p.153). Porém, são mais correntes as organizações introspectivas em torno de
um pátio central, dispositivo que Conceição Silva usara várias vezes em projectos em
Portugal - como nas três casas pátio, no Guincho, ou na Casa Comandante Ferreira
Neves, em Oeiras. Nestas casas do Rio, reformula esse conceito levando essa
experiência mais longe, fundindo espaços internos e espaços externos de forma mais
abstracta, em sintonia até com a maior fragmentação da planta. Na casa Coslowski
desfaz a ideia de espaço exterior encerrado, diluindo os seus limites. A organização
em planta em torno de um pátio central, geralmente com os quartos virados para o seu
interior, tem raízes na própria casa colonial brasileira, sendo para Kamita a “relação
ambígua entre interior e exterior o principal aspecto que valia a pena retomar” (Kamita,
2004, p.146) na modernidade. Trata-se efectivamente de uma constante na casa
brasileira, quer se trate do primeiro modernismo, como as casas nativistas de Lúcio
Costa – por exemplo a residência Paes de Carvalho, no Rio de janeiro (1944), que se
desenvolve dos dois lados de um pátio central, pátio esse lateralmente fechado por
paredes, ou seja que tem uma inusitada interioridade (aspecto que se vê em muitos
projectos de Le Corbusier, nomeadamente nos terraços de cobertura), quer no pós-
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
75
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Brasília, tradição esta que chega aos dias de hoje. Citem-se, por exemplo, a casa Bo
Bardi, São Paulo (1949-51), um volume envidraçado suspenso sobre o jardim, o qual é
levado para dentro de casa com dois vazios, um na sala e um pátio para o qual abrem
os quartos. Porém, separa-se da natureza, o volume sendo assente em pilotis.
Ilustração 61 - Casa própria, Lina Bo Bardi, São Paulo (Andreoli, Forty, 2004)
Ilustração 62 - Casa Milton Guper, São Paulo, de Rino Levi. ( Andreoli, Forty, 2004, p.157).
A casa Milton, de Rino Levi, em São Paulo (1951-3), organizada num só piso, cria
vários pátios que servem as diferentes zonas da casa de modo a garantir a
privacidade do pequeno lote. O ambiente é marcado pelo jardim/pátio semi-coberto
com pérgula de betão que prolonga os espaços sociais para o logradouro, rompendo
com os limites entre interior e exterior. A solução já não é a caixa compacta isolada no
meio do lote, tirando aqui partido de todo o lote como nas casas dos arquitectos
portugueses, mas a organização mantem-se racional numa organização do espaço em
T e uma significativa clareza da forma. A casa Lota de Macedo, de Sérgio Bernardes,
também oferece uma rica teia de relações com a serra circundante, com o trabalhar
cuidado de vários graus de exterioridade, alternando espaços fechados e espaços
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
76
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
abertos, que são ao mesmo tempo terraço coberto, galeria e rampa de ligação entre
as várias zonas da casa e criando uma composição dos espaços exteriores.
A interação com a natureza e exploração de possibilidades de relações com o exterior
oferecidas pelo clima são uma constante na arquitectura brasileira, como se verifica
em obras mais tardias como a Residência RB de Lélé, a Residência José Roberto
Filipelli (1971) de Ruy Ohtake, e a casa própria de Edgar Gonçalves Dente (1975),
todas em São Paulo. Variam entre o ensimesmamento sobre um jardim interno como
na casa RB, mantendo-se a casa como um volume no meio do lote; e o
prolongamento do espaço interno para os limites externos, em espaços exteriores que
desenham todo o lote, muitas vezes concebidos com tratamento idêntico ao interior.
São salas de estar semi-cobertas de uso quotidiano como se vê na Casa Gonçalves
Dente, à semelhança também da casa Milton ou da casa projectada por Ohtake.
Ilustração 63 - Residência Lota de Macedo, de Sérgio
Bernardes. (Kamita, 2013).
Ilustração 64 - Residência RB, de Lélé. (França, 2014).
Ilustração 65 - Residência José Roberto Filipelli, de Ruy
Ohtake. (Correa, 2014)
Ilustração 66 - Residência Gonçalves Dente (Silva, 2011).
Estes grandes pátios centrais, vazados na construção, são, na dimensão doméstica ou
familiar, remissões do sentido público da praça à escala da cidade, lugar de encontro e
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Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
trocas sociais. São todos eles exemplos bem ilustrativos dessa ambiguidade entre
interior e exterior e dessa forma de tornar mais complexa e inter-dependente a relação
entre espaços internos e espaços externos. Porém, ou porque recusam o contacto
com o solo, porque a austeridade e frieza do betão esclarece sobre a sua natureza
industrial, ou ainda pela geometria pura do volume, afastam-se do território. As casas
dos arquitectos portugueses acrescentam a riqueza morfológica e o enraizamento com
o solo que as aproximam de uma “natureza artificial”, intensificando o grau de
simbiose entre os dois universos, sobretudo no caso mais radical da casa Coslowski.
3.3. DA HABITAÇÃO COLECTIVA À ESCALA URBANA
Os anos setenta são de confortável crescimento no Brasil, anos do “Milagre Brasileiro”,
beneficiando o investimento imobiliário e a encomenda privada, embora com poucas
consequências para os pequenos ateliers, numa altura em que começam a proliferar
as grandes empresas de projecto46. A família Steinberg, proprietária de uma
importante empresa de construção e promoção imobiliária, a Servenco47, enquanto
encomenda as residências para uso próprio ao arquitecto, desenha no seu gabinete os
projectos de maior escala como os centros comerciais que fará a partir dos anos 80.
Betty Steinberg confessa terem ficado muito entusiasmados com o portfólio do Atelier
Conceição Silva com as obras realizadas em Portugal (Steinberg, 2013) – o arquitecto
ainda não tinha construído nada de registo no Brasil. Uns anos depois da construção
da casa de Betty e Ronaldo Steinberg, Jacob e Clara Steinberg encomendam a
Conceição Silva um prédio de habitação colectiva para um lote da prestigiada Avenida
Delfim Moreira, em Copacabana, em frente ao mar, reservando para si os dois últimos
andares. Com a crescente industrialização que se faz sentir nas décadas de sessenta
e setenta e o crescimento do tecido empresarial, com grandes empresas que recorrem
a técnicas de marketing e uso da imagem para a sua promoção, surgem uma série de
edifícios nas grandes cidades brasileiras com uma imagem mais comercial e o recurso
a novos materiais industrializados e tecnologias construtivas, que promovem a ideia de
46
Sobre este assunto, ver (Hensel, Michael e Kubokawa, Rumi, 1999).
Também havia grandes ateliers de arquitectos, como o escritório de Edison Musa, no Rio, que depois se
expande para São Paulo e chega a ter mais de 130 colaboradores (Escritório Edison musa, 2014
47
A Servenco foi fundada em 1948 como empresa de projectos e construção pelo casal de engenheiros
Clara e Jacob Steinberg, pais de Ronaldo Steinberg. Expandiu-se depois para a promoção imobiliária, em
particular de centros comerciais temáticos, dentro da área de decoração e design, como o Rio Design
Center no Leblon (Servenco, 2012)
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
78
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
progresso e a mensagem corporativa. Diz Roberto Segre que “se os militares
procuraram modernizar o País com uma posição nacionalista, os sucessivos governos
democráticos aderiram ao processo do neoliberalismo e à globalização da economia
dominantes no mundo” apontando como consequências na arquitetura brasileira dos
anos 80 o anonimato de conjuntos residenciais, shoppings e prédios de escritórios
submissos às solicitações do sistema corporativo48 . Na opinião de Colin há mesmo
um regresso a um estilo internacional. “Objetividade, anti-individualismo, racionalismo,
determinismo funcional, uso de malhas quadrangulares ou retangulares na definição
da planta, formas puras e geométricas, leveza, uso de produtos industrializados, eram
suas características principais” (Colin, 2011), refere, dando como exemplo o Edifício
Sede do BNDES (1972-82), de Alfred Willer et Alii, no Rio e o Condomínio Nova
Ipanema (1973-9), de Edison Musa (1934).
São igualmente exemplo, o Méridien
(1973) de Paulo Casé (1931-), um arquitecto de referência no Rio dessa época, quem,
segundo Roberto Segre ecoou “o formalismo superficial do pós-modenismo
internacional” (Segre, 2005), à semelhança dos irmãos Edison e Edmundo Musa.
Paralelamente continua a vingar o brutalismo, como o núcleo habitacional do Cafundá
(1977/82), no Rio, de Sérgio e Ana Luíza Magalhães, Sívia e Clovis de Barros e Rui
Velloso com ressonâncias do complexo londrino Robin Hood Gardens (1969-72) do
Casal Smithon ou de Candilis. Com uma implantação mais flexível na cidade, adaptase à topografia de modo a preservar o desenho natural do morro, variando ainda a
altura dos edifícios e recupera dispositivos do modernismo como cobogós e quebrasóis.
48
Refere ainda que “numa visão "extremista" do estado da arquitetura nas duas últimas décadas, as
figuras representativas da vanguarda local ficaram reduzidas a poucos nomes: Oscar Niemeyer, Paulo
Mendes da Rocha, Lina Bo Bardi, Joaquim Guedes e Ruy Ohtake. Sem dúvida, eles representam a
continuidade de uma linguagem arquitetônica brasileira nas interpretações diferenciadas que conseguiram
desenvolver em temas culturais ou públicos, sem se submeter às solicitações do sistema corporativo”.
(Segre, 2005).
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
79
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Ilustração 67 - Conjunto Cafundá, Rio, Sérgio Magalhães e
Ana LuízaMagalhães (Ghione, 2014).
Ilustração 68 - Hotel
Méridien, Rio, Paulo Casé.
(Barbosa, 2012).
Ilustração 69 - Condomínio Nova
Ipanema, Rio, Edmundo Musa. (Colin,
2011).
O edifício Rosalina Brand está mais próximo da tradição brutalista, marcado pela
rudeza das grandes superfícies em betão aparente, em particular devido ao pesado e
cego volume que faz o coroamento e que, inscrito num rectângulo que ultrapassa os
limites de implantação do lote, ilusoriamente solto pelo recuar da fachada envidraçada,
parece pairar sobre o edifício. Este gesto, que lhe dá toda a personalidade e que deve
ter sido também responsável pela polémica a que será sujeito o edifício por parte do
Instituto dos Arquitetos Brasileiros49, responde na verdade inteligentemente às
necessidades físicas e estruturais para suportar e conter a caixa de água da piscina. A
repetição firme das varandas em consola, mesmo suavizadas pelo biselado de um dos
cantos onde se instala uma floreira, reforçam a expressão severa. Para além da
dissonância com as fachadas mais pretensamente “clássicas” e figurativas da avenida
- veja-se o edifício do lado -, a cor sombria do Rosalina Brand terá sido outra
justificação para as críticas dos colegas brasileiros.
A inscrição numa base
rectangular, o embasamento bem legível pelo recuo em relação ao alinhamento das
varandas e pelo duplo pé-direito, coroamento também demarcado como já referido,
verificam a intenção de clareza do desenho, afinal uma atitude bem clássica e que não
foge aos princípios da corrente brutalista. O edifício actualiza no entanto esta
referência com uma expressão que também deve aos anos oitenta, pelas grandes
superfícies de vidro e as guardas de acrílico escuro, revelando o esforço temperado de
Conceição Silva em experimentar materiais novos e de sempre pertencer ao seu
tempo. A “monotonia” e a monocromia são quebradas no último piso pelo volume
vermelho que sobressai na cobertura, cor que se repete nos acessos verticais, no
interior.
49
Refere Betty Steinberg que o edifício foi alvo de uma polémica por parte do Instituto dos Arquitetos
Brasileiros por ser muito diferente do que se fazia e devido à cor (Syeinberg, 2013).
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
80
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
A configuração singular do lote, uma parcela com cerca de 25 por 7 metros num
gaveto, sendo o lado mais curto virado para a praia, é engenhosamente trabalhada no
edifício Rosalina Brand. Tomando como exemplo o último piso, ao invés de tentar
contrariar o sentido longitudinal do lote, a distribuição dos espaços reforça esta
característica, com uma clara divisão entre serviços e acessos verticais do lado da
empena confinante e a zona social e dos quartos em espaços que se sucedem do lado
da rua lateral. A fluidez espacial das zonas comuns - sala, zona de refeições e
escritório apenas separados por painéis ou móveis soltos - revela a informalidade de
relações própria da época, dispensando-se uma vez mais o hall de entrada.
As
floreiras e recessos de saída para a varanda, além de estreitarem a relação com o
exterior que invade assim o apartamento, dinamizam o espaço interno. A cobertura é
um amplo espaço de estar e recepção ao ar livre, com dispositivos de apoio como uma
sala, pequena cozinha e instalação sanitária, cujos limites são tratados com floreiras
que amenizam a relação aberta com a cidade.
Ilustração 70 - Edifício Rosalina Brand, fachada, plantas do 15º piso e cobertura, Rio (Silva, J. e Silva, F., 1987, ps.180-181).
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
81
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Ilustração 71 – Edifício Rosalina Brand, vista varanda (Silva, J.
e Silva, F., 1987, p.180).
Ilustração 72 - Edifícios Triomphe
e Maison de Mouette, São Paulo,
de Ruy Ohtake. (Ruy Othake
Arquiteto, 2010).
Coerente com as residências já analisadas, a relação entre interior e exterior é aqui o
principal tema para qualificar o habitar no contexto tropical, neste caso em pleno
ambiente urbano, mas na proximidade do mar. As varandas, como já referimos,
dispositivo de uma enorme importância na arquitectura a na forma de estar brasileira
desde os tempos coloniais, têm todo o protagonismo, não só na expressão da
fachada, mas também nas possibilidades de viver o espaço. Generosas, ocupam a
quase totalidade do comprimento da fachada, interrompendo apenas para tornar o
toque no edifício do lado mais subtil ou para dar um pouco de dinâmica à rigidez do
volume. Por sua vez, o olhar mais atento poderá observar subtilezas no aparente
paralelepípedo de base, com pequenas reentrâncias para colocar floreiras que
invadem o interior, ou marcam a saída para o exterior. Um vazado permite criar um
saguão para trazer luz à cozinha e à casa de banho da suite, aproveitando-se sempre
para animar o espaço interno com uma floreira. Com a sua expressão bruta e
abstracta, dentro da tradição brutalista, o edifício Rosalina Brand é um marco, uma
escultura geometrizada, na principal artéria do Leblon, a avenida Delfim Moreira.
O papel dado às varandas na habitação colectiva é uma permanência na arquitectura
brasileira do século XX, com intenções mais compositivas e espaciais, ou mais
plásticas. Veja-se por exemplo a obra do paulista Ruy Ohtake (1938), quem deu
continuidade à liberdade formal da linha carioca, como no Edifício Triomphe de finais
de sessenta, ou mais recentemente, com edifícios como a Maison Mouette (1898-90),
com derivações escultóricas a partir do tema das varandas. Os seus edifícios mais
recentes, geralmente de estrutura leve de aço e vidros espelhados, denunciam a
adesão a um certo cosmopolitismo escultórico ou icónico fruto da globalização. Têm
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
82
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
no entanto a virtude de chamar a atenção para a importância da varanda na
arquitectura brasileira. Para Conceição Silva, quem nunca mostrou entusiasmo pelas
habilidades
plásticas,
a
qualidade
do
espaço
é
prioritária
no
pensamento
arquitectónico.
Nos conjuntos residenciais Michelin (1979/80), a sua obra de maior envergadura e
final, revela a consciência da importância do espaço público, evidente na forma como
tenta cozer as construções com o ambiente urbano. Como veremos, tenta aqui conferir
algum sentido de espaço público a conjuntos privados, no Campo Grande, numa zona
limítrofe da cidade, de expansão espontânea ou com menor controle das autoridades
municipais, sem planeamento dos espaços colectivos. Os arquitectos projectam para
este bairro no Noroeste do Rio de Janeiro, tanto quanto se conseguiu apurar, pelo
menos cinco conjuntos, os quais variam entre um condomínio fechado de moradias,
“Estrada da Cachamorra”; um quarteirão com 3 edifícios colectivos, “Rua Professor
Castilhos”; um conjunto de lotes para moradias, “Rua Poatã”; uma rua com um grande
bloco de apartamentos e três casas geminadas, “Rua Olinda Ellis” e um bairro
residencial, “conjunto GI”, o último não construído e existindo dúvidas sobre o primeiro,
o maior. Destinavam-se todos aos quadros da Michelin deslocalizados para o Rio, na
sua maioria franceses, à excepção do conjunto GI, possivelmente projecto de
promoção imobiliária do próprio Conceição Silva, uma vez que tem o mesmo nome do
que a firma que criou no Brasil para esse fim (e com nome idêntico a uma empresa de
promoção imobiliária que tinha em Portugal). A instalação da multinacional de pneus
vem na realidade gerar significativas alterações num bairro periférico e desordenado
do Rio de Janeiro - refere-se na memória descritiva50 do Cachamorra “a vizinhança
com zonas deterioradas” – quer económicas, quer paisagísticas. Além de gerar
emprego, a procura de terrenos e de casas dispersas pela zona conduz à sua
valorização repentina, sendo que a SOMIC (sociedade imobiliária da Michelin criada
para esse fim e também como forma de evitar a especulação) começa a comprar
todas as casas disponíveis que vai encontrando. Estas eram depois remodeladas
pelos arquitectos, para habitação dos funcionários que vão chegando para o
estabelecimento e arranque da fábrica, isto antes da construção dos grandes
conjuntos (Pinto, 2013). Por outro lado, muda também a fácies do bairro, tornando-o
mais atractivo com projectos de maior escala, de grande visibilidade e com
preocupações urbanas sem precedente, numa zona caracterizada por pequenas e
50
Memória descritiva cedida por Ricardo Silva Pinto (Pinto, 1979).
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
83
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
modestas casas e a permanência de algumas fazendas – embora a prazo - e
menosprezo pelo espaço público.
Os projectos são no entanto mais ou menos participativos da cidade consoante se
encontrem em zonas relativamente densas ou consolidadas, artérias principais ou ruas
secundárias, se trate de habitação unifamiliar ou colectiva e também em função das
necessidades da Michelin. Enquanto na Rua Prof. Castilhos, Ollinda Ellis ou conjunto
GI os edifícios integram-se na malha urbana ajudando a compô-la, no caso da Rua
Poatã e sobretudo na Cachamorra os conjuntos funcionam como condomínios, no
último caso reconhecendo-se a necessidade de uma solução “em ilha” por questões
de segurança, garantia de abastecimentos (por exemplo de água ou electricidade) e
tratamento dos espaços públicos, como justificado na memória descritiva. Por outro
lado, os conjuntos revelam essa preocupação por uma estética e soluções que
recuperam a tradição local, numa procura de identificação com a cultura brasileira,
criando uma imagem unitária e marcante naquele contexto sem referências, talvez até
reforçado pelo facto de estarem dispersos por vários pontos do Campo Grande. O
colorido da cerâmica, no revestimento de fachadas e nos muros em tijolo aparente ou
ainda nas coberturas inclinadas de telha, combinado com elementos de madeira, em
expressivos corrimãos nas varandas do bloco, nos portões e portadas das casas,
garantem a unidade e a intencional reposição de uma identidade brasileira. Trata-se
de uma revisitação do passado com a reinterpretação de novos sistemas e seu diálogo
com dispositivos contemporâneos, propondo-se sempre esse diálogo entre tradição e
modernidade. Assim, nas casas geminadas da Olinda Ellis as coberturas são de duas
águas e com telha, mas assentam em laje de betão com a viga de bordadura à vista e
as portas e portadas de correr em madeira apresentam desenho simplificado e
moderno. Os pilares/lâminas de betão no andar térreo e os grandes vãos
envidraçados com caixilhos de delicados perfis nos edifícios colectivos são elementos
que dialogam com as paredes texturadas de tijolo aparente ou a madeira que se
escolhe para as guardas das varandas ou mesmo para algumas empenas.
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
84
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Ilustração 73 - Conjunto das ruas Prof. Castilhos e Prof. Gonçalves, praça interior e planta de conjunto. Rio (Silva, J. e Silva, F., 1987,
ps.176-177).
Ilustração 74 - Rua Olinda Ellis/João Ellis, conjunto e pátio interior, Rio. (Pinto, ca.1980).
No complexo da Rua Professor Castilhos, dá-se especial ênfase ao piso térreo – a
cota pública – criando um vasto espaço comunitário entre os edifícios e percursos de
atravessamento pelo interior do conjunto que ocupa um quarteirão entre três ruas. O
tratamento do chão reforça esse sentido público, com a calçada à portuguesa a
revestir o pavimento e a sua extensão para debaixo dos edifícios cujo piso térreo é
recuado de forma a criar espaços de estar exteriores cobertos. O desenho de ondas
que remete para o calçadão de Burle Marx em Copacabana confirma mais uma vez
que Conceição Silva coloca a tônica na relação identitária com o contexto,
preocupação que se repete no conjunto das ruas Olinda Ellis/João Ellis com o mesmo
revestimento no pavimento, pese embora aqui em menor escala dada a configuração
em rua com acesso automóvel. A importância dos espaços de permanência exteriores
é transposta para o ambiente mais privado, com generosas varandas ora projectadas
para a cidade, ora vazadas dos edifícios, sempre qualificadas por floreiras, como já se
via no edifício Rosalina Brand.
Infelizmente, com os anos e os problemas de
insegurança que se agravaram no Rio, estes conjuntos perderam esse sentido urbano
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
85
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
com a construção de um muro em torno das Ruas Prof. Castilhos e Prof. Gonçalves e
uma cancela com porteiro na entrada da Rua João Ellis.
Ilustração 75 – Planta de piso e alçado. Lateral Conjunto de Poatã, Rio
(Silva, J. e Silva, F., 1987, p179).
O conjunto da Rua de Poatã consiste num pequeno loteamento de 27 casas
geminadas, numa “bolsa” que sai da rua de Poatã, constituída por três ruas que
culminam em becos sem saída, assim como num generoso espaço verde comum. As
casas seguem os mesmos princípios que a residência Resner, com a ocupação inteira
do lote murado, articulando-se espaço interior e espaço exterior. Este último é mais
uma vez um elemento determinante para a composição e qualificação espacial das
casas, conferindo-lhes também intimidade, com pátios interiores centrais ajardinados
ou terraços cobertos ou descobertos que descolam dos lotes confinantes ou criam
distanciamento em relação à rua. O terreno natural também dita ligeiras diferenças de
cotas entre zona dos quartos ou zona dos espaços mais públicos, reforçando a
privacidade na vivência das casas.
De maior escala, o loteamento da Cachamorra é também o mais “isolado da malha
urbana” como se assume na memória descritiva. Numa longa e larga estrada já de
saída do bairro, num terreno de quase 10 hectares, destinado a 71 casas unifamiliares
e serviços de apoio aos habitantes (uns 300 ou 400 se contarmos uns 5 habitantes por
casa) - os funcionários da Michelin - previa-se fechado em condomínio, com apertadas
regras de segurança. Numa zona onde praticamente começa a desaparecer a cidade,
na mesma estrada do que o próprio complexo industrial da Michelin, oferecia uma
série de serviços para fixar e dar qualidade de vida aos expatriados, nomeadamente
escola, complexo desportivo, piscinas, salas de festas e reuniões, assim como
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
86
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
bar/restaurante51. Não obstante a sua característica de ilha desconexa da cidade, a
principal linha orientadora do conjunto a construir nos terrenos de uma antiga fazenda
é de integração na paisagem no limiar entre o urbano e o rural, criando um maciço de
arvoredo que une todo o conjunto, respeitando-se a topografia com os arruamentos a
acompanhar as curvas de nível e as casas com desníveis de forma a tirar partido das
pendentes, valorizando e mantendo o arvoredo pré-existente.
Ilustração 76 – Conjunto da Cachamorra, plano director, Rio (Pinto, 1979).
51
Cf. Memória descritiva.
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
87
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Ilustração 77. Conjunto Cachamorra, Casa tipo AA3, plantas piso 0 e piso1 (Pinto, 1979).
Ilustração 78 - Conjunto Cachamorra, Casa tipo AA3, corte AB (Pinto, 1979).
Ilustração 79 - Conjunto Cachamorra, perfil e perspeciva da rua; perspectiva de uma casa tipo (Pinto, 1979).
O projecto de paisagismo, desenhado pelo próprio Conceição Silva, é que fixa as
principais regras definidoras do espaço colectivo qualificando-o com, por exemplo,
sebes entre os lotes em vez de muros, maciços arbóreos para proteger as zonas de
habitação e delimitar os diferentes programas, entre habitação, campos de ténis,
piscinas, polidesportivo, escola, edifício administrativo e restaurante. O espaço público
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
88
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
é cuidadosamente desenhado com passeios que chegam aos 5,5 metros, faixas para
bicicletas e outras relvadas para proteger os jardins das casas na sua relação com os
arruamentos, assim como pavimentos pré-determinados, para uma harmonia de
conjunto. Propõe-se aqui também uma intensa vida social, tudo congregando para a
zona central dos equipamentos comunitários, em torno da qual se organizam as ruas
com as casas em lotes de 600 a 1000m2. A escola, com 18 turmas do 1º e 2º ano,
ficava estrategicamente localizada do lado da estrada, protegendo até a vida interna
da rua, e, embora servisse prioritariamente o condomínio, oferecia entrada dos dois
lados abrindo a possibilidade de futuramente receber alunos externos.
Tudo indica que o loteamento da Cachamorra foi construído, existindo um cronograma
dos projectos e construção em termos de prazos e custos, orçamento detalhado para
todos os equipamentos e casas, porém, não nos foi possível confirmar. O projecto
informa ainda que além dos projectos de arquitectura e especialidades, Conceição
Silva tinha a seu cargo a gestão da construção, tarefa que lhe assegurava honorários
de quase o dobro da totalidade dos projectos, o que nos dá uma ideia da
responsabilidade de tal empreendimento. As especialidades incluíam projectos
correntes como estabilidade, mas também elementos que em princípio seriam de
responsabilidade municipal mas que neste caso ficam assegurados pelo condomínio,
como captação e abastecimento de água, tratamento de esgotos e até uma pequena
central eléctrica, garantindo assim fornecimentos e autonomia. Em termos formais,
este conjunto aproxima-se dos restantes projectos do Campo Grande, resgatando a
tradição e actualizando-a com a modernidade, com elementos e materiais que
garantem a unidade do conjunto, como as coberturas em duas águas e com telha
cerâmica, alpendres com estrutura de madeira, paredes de tijolo à vista (nos
equipamentos colectivos), combinados com elementos de betão aparente, grandes
vãos envidraçados e alguns volumes com coberturas planas. A organização do espaço
interno das casas também reflecte essa ambivalência, propondo por um lado uma vida
mais prática e relações informais proporcionadas pela fluidez espacial dos espaços
sociais abertos, mas não dispensando no programa quartos de empregada e
generosas zonas de tratamento de roupa em pátios exteriores, mesmo nas tipologias
mais pequenas. Se por um lado se garante a unidade ou harmonia do conjunto, por
outro lado propõe-se a quebra da monotonia com 22 desenhos de casas diferentes a
partir da variante de nove casas tipo, desde os T2 ao T4 (mais quarto de empregada)
e entre 90 e 135m2 de área coberta. No fundo, trata-se de um modelo precursor dos
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
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Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
condomínios fechados que vieram a proliferar nas décadas seguintes, programa que
Conceição Silva nunca abordara em Portugal.
Esta encomenda permitir-lhe-ia recolocar a actividade num estádio mais próximo do
que abandonara em Lisboa: a aproximação à escala urbana com outro nível de
preocupações, um atelier com uma incipiente profissionalização e, em princípio, meios
para se dedicar à promoção imobiliária, actividade que lhe permitiria assegurar a
sobrevivência do atelier e um domínio e autonomia sobre os projectos, sem os
constrangimentos impostos pelos clientes. Estes exerciam algum controle, como
denuncia o próprio em carta à filha, doze dias antes de falecer: ...”Já começo a estar
farto e já me falta a paciência para enfrentar determinadas situações pelas quais já
passei há 30 anos e que nessa altura até achava naturais e importantes. Para mim, ter
ainda hoje de defender princípios para impor a minha arquitectura parece-me além de
ofensivo, também cansativo e desanimador. Já não tenho saco e se pudesse (...)
acabava de vez com isto, mas infelizmente tenho que lutar, continuar lutando como se
ainda estivesse no começo da minha profissão, como um apóstolo que tem de explicar
tudo quanto pretende fazer e onde tudo lhe é contestado só porque não conhecem.
Nunca fizeram (...). É demais, chega a desesperar, mas parar é impossível e não
tenho outro remédio” (Silva, P. 1982).
Tudo indica que o arquitecto previa dar um novo passo, com a criação da GI (Gestão
Imobiliária), empresa vocacionada para a promoção imobiliária, para a qual talvez
fosse o bairro em Campo Grande com a designação de Olinda Ellis GI, projecto
aparentemente não concretizado. O meio não era fácil no Rio de Janeiro e tudo indica
que o arquitecto teria sido vítima de uma burla, colocando-o numa situação muito
delicada do ponto de vista fiscal, nomeadamente com o “Imposto de Renda”. Na
mesma carta, relata que o seu contabilista o roubou e que este não tinha entregue na
“Fazenda as contas do ano passado”, antevendo que isso lhe iria “trazer graves
problemas”, inclusive podendo “pôr em causa todos os bens que com tanto trabalho
consegui vir a realizar”. E acrescenta desalentado: “...parece que é meu destino nunca
ser rico e ter que começar sempre do zero. Se for mesmo necessário, volto a começar
tudo do princípio. Espero ainda ter força e entusiasmo para isso. Espero voltar a
conseguir”.
O ano de 1982 começava assim com muita actividade mas igualmente muitas
preocupações, as quais certamente contribuíram para o seu falecimento a 24 de
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Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Janeiro, poucas horas depois de uma tensa reunião de obra da Michelin.
Lamentavelmente, o infortúnio e a falta de tempo não lhe permitiram alcançar essa
dimensão e autonomia que almejava, decalcada sobre a experiência em Portugal.
Pouco antes de se apagar deixava à filha um dos seus últimos testemunhos sobre o
sentimento ambivalente que lhe causava o Brasil: “acredito nesta Terra, mas serão
precisos ainda alguns anos e muita gente com cultura e melhores conhecimentos para
“tocarem” estas massas no melhor sentido. Então sim, P’rá frente Brasil. Será para ti,
para a juventude de hoje o grande país do futuro” (Silva, P. 1982).
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Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
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Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Encetámos este trabalho questionando como teria Conceição Silva reagido ao novo
contexto? Que problemas colocou e que pistas seguiu na resposta às encomendas?
Qual o seu grau de permeabilidade a essa cultura tão próxima e ao mesmo tempo tão
distante daquela que ele acabava de deixar para trás?
Recoloque-se o arquitecto no seu ponto de partida. Conceição Silva vai para o Brasil
aos 53 anos, já não tão jovem para absorver novos conhecimentos, numa idade em
que é mais natural a resiliência do que a metamorfose. Além disso, leva um património
de conhecimentos e experiências proporcionados por uma obra notável e deixa uma
posição de primeira linha no seio da profissão em Portugal. No Brasil, a sua postura é
discreta, por força das circunstâncias – o exílio, a falta de trabalho e a forte
concorrência num país com um bom número de reconhecidos profissionais. Não
obstante, resiste às adversidades e não perde a ambição, antes reinventa-se, dando
continuidade a esse processo de experimentação que marcou a obra do seu atelier em
Portugal. Consegue manter – com Pinto da Cunha – um atelier independente e fazê-lo
crescer, parecendo até querer vir a replicar o modelo do grande escritório de Lisboa,
quando vem a falecer. Ao fim de meia dezena de anos de esforço e dedicação, logra
ganhar em concurso um projecto residencial de grande envergadura para a
multinacional de pneus Michelin, o que iria lançá-lo numa nova etapa. Muda de
escritório, recruta mais colaboradores e investe na construção e promoção imobiliária,
exactamente como fizera uma década antes em Portugal. E como já referido, segue
um percurso, com seu sócio Pinto da Cunha, praticamente único de um arquitecto
português emigrado no Brasil que consegue estabelecer-se com a actividade
independente e manter um elevado nível de qualidade em termos conceptuais e de
execução. Só tem paralelo, tanto quanto foi possível apurar, no percurso do colega
Delfim Amorim (1917-72), que vai décadas antes para o Recife, em 1951, e tem uma
posição de destaque no ensino da arquitectura e responsabilidades na disseminação
da arquitectura moderna pela região pernambucana52. No contexto bem mais
concorrencial do Rio de Janeiro, Conceição Silva não terá a influência que o seu
conterrâneo tem na construção de uma “escola pernambucana”, mas a sua acção
52
Hugo Segawa cita Silva (1988) quem o considera um dos mentores, a par de Borsoi, de uma “linha
pernambucana da arquitectura e que vai formar algumas gerações de arquitetos que hoje atuam por toda
a região”. (Segawa, 1999, ps.131,132 e 136).
Para além de um longo período de 20 anos passados no Recife, Amorim tem também como vantagem
ter-se associado a arquitectos brasileiros, como Acácio Gil Borsoi (1924), quem justamente o convida
para a faculdade de arquitectura, e Heitor Maia Neto.
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
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Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
mereceria ser resgatada do anonimato a que foi vetada no seio da arquitectura
brasileira53.
Conceição Silva tinha o conhecimento da moderna arquitectura brasileira, que foi para
ele, como para seus pares, uma das principais referências na introdução do
Movimento Moderno em Portugal. Ele pertence ao pequeno rol de arquitectos
portugueses que participam pioneiramente, em finais de cinquenta, do movimento que
contextualiza a arquitectura moderna, que não a põe de parte mas renova-a com
métodos empíricos de abordagem ao projecto, convocando a tradição, o popular, a
história, o contexto físico e humano. Na década de setenta, a sua obra ganha nova
vitalidade com a introdução do Brutalismo anglo-saxónico, reflexivo de uma sociedade
em transformação, de densidade e complexidade urbana, e crescente cosmopolitismo.
No Brasil, enceta uma última e derradeira fase proporcionada pelo confronto com o
novo contexto e é levado a uma reflexão mais profunda potenciada por essa
circunstância de recomeçar do zero e do “retorno ao estirador” (Pereira, p.26), ou seja
regressa a um maior envolvimento com a prática do desenho. Trata-se também de
uma fase de maturidade em que aplica o manancial de conhecimentos a uma nova
realidade transformando-os e integrando-os com os novos dados.
A sua obra brasileira reflecte os valores culturais que lhe servem de referência, assim
como questões da praxis ou seja metodológicas. No fundo, Conceição Silva faz um
exame localizado a cada encomenda, incorporando naturalmente as culturas a que
esteve exposto em Portugal e no Brasil. O resultado é uma resposta caso a caso, uma
leitura do lugar, do programa, dos hábitos de uma sociedade, aceitando as lições da
arquitectura moderna, mas com a preocupação de actualizá-la e inseri-la no seu
contexto, introduzindo questões que lhe dão um significado e uma identidade
brasileiras, fazendo a ponte entre identidade e modernidade, tradição e tecnologia. A
variedade de respostas e o que designámos de oscilação entre modernidade e
tradição traduzem o modo de operar, o método baseado na pesquisa e a leitura que
faz do contexto. Pese embora a variação de linguagens que denotam as várias casas
estudadas, a procura de uma identidade local é uma constante, seja através de
processos construtivos, de uma imagem reconhecível, espaços ou dispositivos que
remetem para a arquitectura local/colonial, como os sobrados, ou o diálogo com a
natureza, afinal uma leitura que a própria historiografia brasileira procura afirmar numa
53
A sua obra não teve qualquer repercussão nas publicações brasileiras especializadas, seja na época,
seja posteriormente. Foi apenas divulgada em revistas de decoração como a Casa Cláudia ou Caras.
Ver fichas do volume II.
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
94
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
tentativa de emancipar ou legitimar a Moderna Arquitectura Brasileira. É também essa
interpretação local que faz a projecção do caso brasileiro, a começar em Brazil Builds.
E é por sua vez a falta deste contexto local, a crítica ao excesso de formalismo e
incapacidade de superar o moderno, que o condena com o caso paradigmático de
Brasília.
Se é certo que retoma questões sobre as quais antes se debruçara em Portugal,
Conceição Silva leva agora as experiências mais longe, indiciado pelos novos dados
que encontra no território brasileiro e, em particular, pela consciência da geografia. Tal
é sobretudo visível nas casas unifamiliares estudadas, geralmente programas de
carácter mais experimental. É a partir da leitura atenta do entorno, que transforma a
arquitectura numa segunda natureza, não mimeticamente, mas assumindo o carácter
bruto e artificial da construção, que se fragmenta num desdobramento de volumes
trabalhados entre matéria calcária e matéria vegetal, criando uma nova topografia, na
continuidade da própria prodigalidade da natureza e em função das concepções
espaciais internas. As intervenções, que incidem sobre a totalidade do espaço
disponível, transformam-se numa segunda natureza, tanto uma paisagem que se
arquitecta, quanto uma construção que se assume como paisagem. Se nas casas que
projectou em Portugal já traz o entorno para dentro da construção, com pátios
ajardinados ou com uma maior permeabilidade ao jardim, aqui exacerba essa
interação. Cria uma teia complexa caracterizada pela ambiguidade entre interior e
exterior, reforçando o papel que os espaços exteriores têm na vida familiar. Mas
acrescenta-lhe também a experiência de estar num espaço interno exteriorizado, sem
os limites próprios de um refúgio que se constrói para proteger do clima, do frio ou da
cidade, como vimos, por vezes de uma forma até mais simbiótica do que nas próprias
casas projectadas pelos arquitectos brasileiros. Esse entrosamento entre construção e
natureza confere uma nova noção de tempo, um tempo mais lento, em suspenso,
introduzindo a ideia da acção da natureza numa camada que aos poucos se adiciona
à acção do homem, como a noção temporal que as ruínas adquirem na paisagem.
Importa então questionar se lhe caberia algum lugar na História da Arquitectura
Brasileira? Para justificar essa posição, seria necessário responder aos requisitos
imprescindíveis para se fazer parte da História, não só de qualidade, mostrando uma
posição inovadora dentro de um quadro mental e cultural de um determinado lugar e
tempo, mas também de quantidade e consistência da obra. Em termos quantitativos,
neste curto espaço de tempo – sete anos - face à actividade em questão, construiu
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
95
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
meia dúzia de casas isoladas, quase outro tanto de edifícios colectivos e pelo menos
dois loteamentos de casas (fora os projectos não construídos e o que não se
conseguiu identificar), corpo suficiente para daí extrair algumas consequências.
Com o distanciamento que o olhar estrangeiro lhe permite, o arquitecto português tem
a vantagem, face aos seus colegas brasileiros, de não sofrer dos constrangimentos da
recente crítica à Moderna Arquitectura Brasileira, numa altura em que estes ainda se
sentem órfãos desse momento heróico. Para ele, quem nunca teve de a renegar, a
Moderna Arquitectura Brasileira é já tradição, enquanto aqueles andavam à procura de
novos caminhos, nem europeus, nem estritamente modernos. Podíamos pensar em
incluir Conceição Silva no debate sobre a arquitectura moderna no Brasil, como parte
dessa onda de estrangeiros que contribuíram com os seus apports e que o cruzaram
com a cultura local, que partindo dos conhecimentos que traziam de fora, fizeram uma
nova arquitectura sincrética, permeável às transformações que o novo contexto lhes
proporcionou. A sua obra é suficientemente consistente e original para que se lhe
possa apontar um papel ao lado de figuras com percursos mais marginais, com
actuações individuais, mas que ofereceram uma alternativa à hegemonia da “Escola
Brutalista Paulista”. Trata-se de mais uma contribuição que vem reforçar a corrente
que depois de Brasília vai tentar realizar uma arquitectura identitária, contextualista e
que encontrará, anos mais tarde, eco na procura de uma modernidade “apropriada”54.
Conceição Silva não será tão regional quanto Severiano Mário Porto ou Oswaldo
Bratke, o seu contexto é também outro, nem tão experimental quanto Sérgio
Bernardes. Mas podemos aproximá-lo da postura mais empírica dos Guedes,
reflectindo também, antecipadamente, as preocupações com a história e a geografia, o
lugar, o clima, mostrando-se mais sensível ao micro e ao macro-território. Se é certo
que incorpora esse entendimento brasileiro da arquitectura como uma relação entre
interior e exterior ou entre construção e natureza, estabelece um diálogo mais natural
com a topografia e acrescenta-lhe esse sentido orgânico, que vem desde a
repercussão da vida interior na volumetria dos corpos, à sua pertença ao próprio
terreno em que se implanta, estabelecendo assim uma relação mais afectiva com a
natureza. O uso sensível dos materiais locais, sem pré-definições, determina também
uma arquitectura própria, bem ao inverso do partido “estruturalista” do Brutalismo
Paulista. Conceição Silva traz a experiência portuguesa, mas transforma essa lição
noutra coisa num processo sincrético de tropicalização. Da sua intervenção no novo
54
Como já referido, termo que ilustra uma corrente saída dos Seminários de Arquitectura Latinomarica.
(Segawa, 2005, ps. 50 e 51).
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
96
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
contexto surgiu algo de novo e até de mais potente, fortemente condimentado pelos
novos ingredientes, pela liberdade do povo brasileiro ou a prodigalidade da natureza,
mas também pela percepção das possibilidades infinitas deste território de imensidão
e exuberância.
Na sua procura de legitimar o Moderno pós-heróico e sua visão apologética da Escola
Paulista, a historiografia brasileira acabou por silenciar todo esse movimento de uma
arquitectura mais identitária, que afinal sempre existiu e teve nessa época um peso
considerável em particular no Rio ou em cidades secundarias, beneficiando emborade
um crescente interesse em estudos mais recentes. Conceição Silva poderia
enquadrar-se no limite dessa actuação, ou seja, a sua postura não é neo-regionalista,
como por exemplo a de Severiano Mário Porto ou Oswaldo Bartke, mas traduz a
preocupação em enquadrar a arquitectura no seu lugar. A sua obra anda entre estas
duas polaridades do Brutalismo Paulista e do Regionalismo, incorporando sem
militância contaminações da prática brasileira. Ora se aproxima mais da tradição,
nomeadamente em programas mais modestos, mais excêntricos aos centros urbanos
ou ligados a vivências de férias ou de praia, como se aproxima de uma corrente
paulista mais moderada, do denominado Brutalismo Caboclo, com figuras como Millan
ou Guedes, que dão continuidade à tradição Moderna ou Brutalista mas introduzem a
questão local com recurso a materiais nativos e cromatismos mais “tropicais”. Com
estes tem ainda em comum a atenção dada ao detalhe,
uma pormenorização
sistemática que dá um papel determinante aos aspectos construtivos. A arquitectura
de Conceição Silva, contrariamente ao Brutalismo Paulista, que encerra em si uma
certa negação, incide sobre a vida doméstica burguesa, na proposta de novas formas
de habitar, sendo mais próxima da postura apolítica e mais técnica do Rio55. No fundo,
faz a ponte entre o optimismo carioca e a estética mais dura paulista.
Por fim, a produção brasileira deve também ser enquadrada na globalidade da obra do
arquitecto, completando, como de início se propôs, o trabalho desenvolvido anos atrás
sobre o Atelier Conceição Silva em Portugal. Tratou-se da última de entre as várias
etapas que compõem a sua produção de quase 40 anos, momento mais solitário mas
de igual vitalidade e criatividade, do qual resultou uma arquitectura mestiça, afinal
brasileira. Confirma-se assim a capacidade de se reinventar de Francisco da
Conceição Silva, quem tem um importante papel na História da Arquitectura
55
Kamita refere uma atitude que pode ser considerada apolítica, neutra e técnica dos arquitectos do Rio
face ao compromisso político de Artigas, quem não separa arte e política, o que lhe permite começar a
questionar o uso, valor, o tipo e o programa da casa burguesa. (Kamita, 2004, p.158).
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
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Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais
Portuguesa e que tentámos inscrever na História da Arquitectura Brasileira, com a
contribuição deste trabalho.
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
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Lisboa
Dezembro 2014
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Faculdade de Arquitectura e Artes
Mestrado Integrado em Arquitectura
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982):
contaminações tropicais
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
Lisboa
Dezembro 2014
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982):
contaminações tropicais
Dissertação apresentada à Faculdade de Arquitectura e
Artes da Universidade Lusíada de Lisboa para a
obtenção do grau de Mestre em Arquitectura.
Orientadora: Prof.ª Doutora Arqt.ª Helena Cristina
Caeiro Botelho
Lisboa
Dezembro 2014
Ficha Técnica
Autora
Orientadora
Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite
Prof.ª Doutora Arqt.ª Helena Cristina Caeiro Botelho
Título
Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações
tropicais
Local
Lisboa
Ano
2014
Mediateca da Universidade Lusíada de Lisboa - Catalogação na Publicação
LEITE, Inês de Sousa Gonçalves de Almeida, 1968Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982) : contaminações tropicais / Inês de Sousa
Gonçalves de Almeida Leite ; orientado por Helena Cristina Caeiro Botelho. - Lisboa : [s.n.], 2014. Dissertação de Mestrado Integrado em Arquitectura, Faculdade de Arquitectura e Artes da
Universidade Lusíada de Lisboa.
I - BOTELHO, Helena Cristina Caeiro, 1970LCSH
1. Arquitectura - Brasil - Século 20
2. Silva, Francisco da Conceição, 1922-1982 - Crítica e interpretação
3. Universidade Lusíada de Lisboa. Faculdade de Arquitectura e Artes - Teses
4. Teses – Portugal - Lisboa
1.
2.
3.
4.
Architecture - Brazil - 20th Century
Silva, Francisco da Conceição, 1922-1982 - Criticism and interpretation
Universidade Lusíada de Lisboa. Faculdade de Arquitectura e Artes - Dissertations
Dissertations, Academic – Portugal - Lisbon
LCC
1. NA855.L45 2014
Fichas de projectos
levantamento
RIO DE JANEIRO Mapa de localização (Google Inc., 2014) Casa Arthur Kelson
(1976, Fonte: Silva J. e Silva F.,1987, p. 175).
Rua Poeta Khalil Gibran, Condomínio Portinho do Massaru, Itanhangá, Rio de Janeiro.
1
Encomendador: Socit, sociedade participada pelo empresário
brasileiro Arthur Kelson e Mário Pais de Sousa, advogado e amigo
de Conceição Silva. Arthur Kelson tinha tido uma fábrica de malas
de viagem, bolsas e plásticos até 1973 e fundou depois uma
empresa de promoção imobiliária com importantes investimentos
no Rio de Janeiro, entre os quais este condomínio (Salém, 2013). No total, foram projectadas 3 casas, das quais apenas uma
foi construída, de acordo com Carlos Salém, genro de Arthur
Kelson (Salém, 2013), se bem que Ricardo Silva Pinto,
arquitecto que trabalhou com Conceição Silva e Pinto da
Cunha, pensa terem sido construídas duas (Pinto, 2013).
Será aparentemente a primeira obra construída de Conceição
Silva no Brasil. Fica num dos cerca de 100 lotes do
Condomínio do Massaru, loteado pela Socit. Numa zona
privilegiada do Rio, mesmo em frente ao golfe de Itanhangá, o
condomínio de casas unifamiliares em pequenos lotes
destinava-se a uma classe média alta, a qual tinha como
referências uma arquitectura de feição mais tradicional - do
tipo da de Zanine Caldas, quem aliás desenhou o loteamento
- levando a que esta casa demorasse algum tempo a ser
vendida, devido à sua expressão moderna. Por essa razão,
não avançaram com as duas outras residências projectadas
por Conceição Silva. Durante algum tempo, a casa serviu de
escritório para a empresa de Arthur Kelson, acabando por ser
vendida um par de anos depois (Salém, 2013).
Infelizmente, não foram localizados os desenhos técnicos,
mas pode-se no entanto destacar a clara intenção de lhe
conferir uma identidade local. Partindo do moderno,
convocam-se sistemas construtivos e materiais locais. A casa
Localização (Google Inc., 2014). Exterior visto da rua (Pinto, ca.1980 e Silva, J. e Silva, F., 1987,p. 175).
é dominada pela varanda alpendrada em estrutura de
madeira, importante dispositivo da arquitectura brasileira que
privilegia o estar exterior e aqui se reinventa dando-lhe uma
expressão moderna. Porém, a varanda é virada para a rua
- se bem que num condomínio fechado -, e ainda por cima a
Sul, opção rara nas obras do arquitecto.
O muro de pedra e um telhado com telha cerâmica são
elementos que lhe prestam a nota tradicional, porém sempre
reinventando-se estes sistemas. Assim a cobertura de uma só
água resulta numa empena lateral original triangular em bico
e é ainda vazada no centro para se criar uma varanda a toda
a largura da casa, a qual serve os quartos.
Bibliografia: Silva P. e Silva F., 1987.
C.V arq Pinto da Cunha, espólio Laís Pinto da Cunha.
Fábrica Sombra (c.1977 constr.
2
Fonte: Durães, 2014).
Rua Darci Pereira, nº 904, Santa Cruz, Rio de Janeiro. Para além do mobiliário de exterior, ainda o principal negócio,
a Sombra dedica-se no Brasil igualmente aos móveis de
interior. Tratavam-se sobretudo de peças de vime e bambu,
tal como em Lisboa, destinadas a uma classe média-alta.
Aproveitaram parte dos modelos que tinham em Portugal e
criaram outros, como por exemplo uma linha inspirada no
mobiliário alentejano, estilizada, sempre com desenho de
João Durães. Tratava-se de um negócio promissor, então sem
concorrência no Rio, onde se instalam para seguir a clientela
emigrada. O negócio correu relativamente bem,
ultrapassando algumas dificuldades decorrentes de lógicas
distintas de negócio no ambiente brasileiro, mas a fábrica
acabou por fechar em 1984. Para além de escoar os seus
produtos no show-room da própria fábrica, a Sombra tinha
uma loja estrategicamente localizada na Avenida América, na
Barra da Tijuca, com projecto de um outro arquitecto
português, por escolha de Manuel Queirós Pereira, quem
passa a dominar o negócio depois de ficar com a cota de
Guedes de Sousa.
Aproveitando os incentivos para a indústria com boas
condições de empréstimos, João Durães monta uma fábrica
dez vezes maior do que a de Alfragide - 10700m2 num lote de
cinco hectares - respondendo a um mercado muito superior
ao português. Em Santa Cruz, a 70km do centro do Rio,
empregava 250 pessoas. Encomenda a fábrica a Conceição
Silva pela amizade que se estreitou na estadia no Rio e
dentro do espírito de entre ajuda que caracterizava a pequena
comunidade portuguesa de Copacabana. Após a sua
conclusão oferece uma cota de 10% ao arquitecto, quem no
entanto não tinha qualquer papel de gestão, nem no design
dos móveis.
A fábrica era organizada em dois volumes paralelepipédicos,
Encomendador: João Durães, dono da loja de mobiliário de
exterior de luxo “Sombra”, em Lisboa (na Avenida da
República), quem emigra em 1975 para o Rio. No Brasil,
tinha como sócios Guedes de Sousa e Manuel Queirós
Pereira. Dá também posteriormente uma cota de 10% a
Conceição Silva.
Localização (Google Inc., 2014). um fabril com um pé direito de cerca de 9 metros, e outro,
mais baixo, administrativo e com área de exposições. Tinha
também posto médico e refeitório.
O grande interesse desta fábrica passa pelo ensaio de novas
técnicas e sistemas construtivos, com vista a uma construção
económica e rápida, fazendo jus ao sentido de eficácia e
vontade de inovação do arquitecto, quem propõe um sistema
de pré-fabricação. Toda a estrutura de betão é encomendada
a uma fábrica, a Sobraf, empresa de pré-moldados de São
Paulo, a qual, de acordo com o filho do proprietário e então
director de produção, João Manuel Durães, construía pela
primeira vez no Rio (Durães, 2014); as estacas das
fundações (devido ao terreno instável levou mais de 200
estacas com cerca de 15 metros de profundidade), pilares,
vigas e elementos de cobertura (com uns 20 metros de
cumprimento) foram assim todos fornecidas e montadas por
esta empresa. Por sua vez, as paredes de enchimento foram
feitas in situ em blocos de betão celular vazados (com uma
secção de uns 30/10cm), pela Modern Blocks, empresa que
instalou as máquinas de prensagem e cofragem no terreno,
onde os blocos secos ao sol. Na ala administrativa, os vidros
colados a seco dispensavam os caixilhos, mas as
necessidades de acondicionamento térmico obrigaram à
colocação de ar condicionado, o que muito desgostou o
arquitecto. Ciente das necessidades de economia, as 14
secções industriais (carpintaria, serralharia, pintura, costura,
etc.) não tinham portas, apenas grandes vãos a toda altura e
com três metros de largura abertos para um corredor central.
O resultado é uma grande nave de expressão brutalista, com
a estrutura e os materiais à vista, quer dentro, quer fora e
com o destaque da estrutura no volume administrativo, sendo
os pilares soltos e as vigas prolongando-se ligeiramente para
além da cobertura. A fachada, muito linear e cega na parte
fabril, era caracterizada pela textura das paredes de blocos
de cimento. A frente, na zona administrativa e na zona de
estacionamento, era animada por umas floreiras préfabricadas em betão.
A construção verificou ser efectivamente muito rápida – uns 9
meses ou pouco mais – de tal forma que a empresa de betão
teve a dada altura de esperar pelo fornecimento de mais
peças. Em contrapartida, como muitos sistemas inovadores,
surgiram problemas, nomeadamente infiltrações, sendo as
peças de cobertura encostadas e a junta preenchida com
massa e não sobrepostas. Também as paredes de blocos de
cimento criavam um ambiente húmido com as escorrências
das paredes – embora neste último caso acabasse por secar.
Em contrapartida, o edifício, com folgas entre a cobertura e as
vigas era bem ventilado e fresco.
Exterior da fábrica e interior escritório (Durães, 2014).
Casa Ronaldo e Betty Steinberg (des.1977-79 constr.
Fonte: Silva, F. (2), ca.1980 e Steinberg, 2013).
Praça desembargador Estácio Benavides (anPga R. Prof. Ducidio Pereira), Jardim do Itanhangá, Rio de Janeiro. Casa de habitação unifamiliar com quatro pisos e extenso
programa servida por elevador, para uma elite abastada, num
bairro de prestígio, onde surgiram vários condomínios a partir
dos anos 70. Não se encontraram as plantas completas, mas
trata-se de uma casa com mais de 400m2 de construção.
Conta com duas suites, dois quartos, uma casa de banho e
um lavabo, sala de estar, zona de comer e escritório; área de
serviços com cozinha, copa, zonas de lavagem e tratamento
de roupas, dois quartos de empregadas, uma casa de banho
e saleta; primeira semi-cave com ginásio, sala de festas;
segunda semi-cave com entrada, garagem e zona técnica;
jardim com piscina.
A casa desenvolve-se em várias cotas, adaptando-se à
topografia do terreno, encostado a um morro e com forte
pendente. Acede-se por baixo (solução semelhante na casa
Coslowsky, construída pouco depois e em Portugal, na casa
Ribeiro da Cunha, no Guincho) pela segunda semi-cave, por
um elevador num volume que se destaca da casa, a esta
ligado por uma galeria envidraçada. Desemboca num espaço
de base quadrada com vista para uma floreira, ligado à
principal zona de estar da sala. A casa organiza-se a partir do
núcleo central da sala, o qual atravessa a casa
longitudinalmente e desdobra-se fluidamente em vários
espaços a diferentes cotas e com distintas alturas de pédireito, criando ambientes distintos. Este grande núcleo de
base quase rectangular organiza-se por sua vez em torno de
um pequeno jardim interior e estrutura-se em dois espaços de
estar, aos quais se agregam a zona de jantar e uma zona de
escritório, em local oposto, na diagonal. A principal zona de
estar, à cota inferior, relaciona-se abertamente com o jardim
3
Encomendador: Ronaldo Steinberg. De uma família de
origem judaica, filho de Jacob Steinberg, quem criou com
sua mulher, ambos engenheiros, uma empresa de
projectos, construção e promoção imobiliária no Rio de
Janeiro com alguma envergadura - a Servenco. Foi esta
empresa que construiu a casa.
De acordo com Betty Steinberg, foi vendida nos anos 80 ao
Sr. Tanaka, dono de uma cadeia de restaurantes japoneses
com o mesmo nome.
Localização (Google Inc., 2014). virado a Norte, o seu pé direito variando em função da galeria
superior. Separado pelo pátio interior ajardinado e a cerca de
um metro acima, encontra-se uma outra zona de estadia,
seguida de uma zona de transição para a área de refeições,
esta demarcada pela sua posição fora do rectângulo (à
semelhança do escritório). Cada zona tem a sua vista
intencionalmente
diferenciada, criando uma riqueza de
ambientes e reforçando a permeabilidade entre jardim e casa.
Da segunda zona de estar vê-se um jardim com penedos e
cascata; a zona de refeições tem a cobertura parcialmente
em vidro com vista para o Cristo Redentor.
De um lado do núcleo central, interceptando o rectângulo, fica
a área de serviços, cozinha, copa, zona de roupas,
directamente ligada à zona dos quartos de empregadas no
piso superior. No oposto, fica a zona dos quartos, que se
interliga também verticalmente e justifica os diferentes níveis
adaptados à topografia e a vontade de criar maior intimidade.
Estão separados da sala por uma passagem a cota superior
aberta sobre esta e do fundo da qual arranca uma generosa
escada que liga à galeria superior, solta nos dois extremos,
espaço de estar que serve a suite principal.
Exterior e interior (Silva, J. e Silva, F., 1987, p.169-171).
Perspectiva e planta do Piso 1. (Silva, J. e Silva, F., 1987, p. 169 e Silva, F.
(2), ca. 1980).
A organização espacial repercute-se no jogo volumétrico, com
avanços, recuos e balanços, livres e exuberantes como a
vegetação que rodeia e invade a construção com pátios e
recessos ajardinados, ou ainda com floreiras em consola que
coroam todo o exterior. A exacerbação do espaço interno,
volumetricamente expandido, com predominância do espaço
público e relação ambígua entre interior e exterior, atende a
um entender brasileiro do espaço, embora aqui com
tratamento menos duro, mais delicado pelo trabalho do
detalhe tão próprio ao arquitecto.
Tal como em Portugal, os materiais nobres, aplicados
segundo desenho rigoroso, são também aqui um elemento
natural que contribui para o conforto interior. A madeira com
desenho cuidado da caixilharia, dos rodapés, guardas da
escada, aqui animadamente pintadas de vermelho - um
apontamento que se harmoniza bem com o exotismo do
contexto - o pavimento e revestimento de tecto em madeira,
conferem conforto e requinte ao espaço difícil de tratar pela
sua amplitude. Em contrapartida, as paredes da sala
revestidas a pedra dão um carácter de exterioridade ao
espaço e intensificam a relação entre interior e exterior, o que
é ainda realçado pelo dobrar das janelas com algumas
esquinas com o vidro colado a seco, sem caixilho, por
exemplo no pequeno recanto ajardinado que intercepta a sala
inferior, ou no quarto, precisamente na zona da cama, detalhe
que anula as fronteiras com a paisagem. Também as floreiras
em betão descofrado atravessam do exterior para o interior,
levando ao limite o entrosamento entre dentro e fora, sendo
ainda de salientar a cobertura ajardinada, então uma solução
tecnicamente difícil, que aliás trouxe alguns problemas
Bibliografia:.
Silva P. e Silva F., 1987.
Silva, F. (2), ca. 1980.
C.V arq Pinto da Cunha, espólio Laís Pinto da Cunha.
Anos 90, revista brasileira Caras (Steinberg, 2013).
(Steinberg, 2013), ou o integrar de alguns elementos
encontrados no terreno, como os penedos, onde passa uma
cascata.
No exterior, a brutalidade do betão à vista é também
amenizada pelo recurso a muros de pedra tosca que
domesticam a topografia. Na entrada, uma parede de betão
com jacto de areia retirou a camada superficial tornando a
superfície mais rústica e natural.
O encaixe da casa que se ajusta e enraíza no terreno e a
materialidade texturada do betão tornam a construção como
uma pedra sedimentar que surge do terreno e se transforma
com o tempo. Por sua vez, a vegetação passa a dominar a
construção, integrando-a, tornando-a uma segunda natureza,
futuro que intencionalmente se previa nos desenhos de
perspectiva iniciais.
Esta obra remente para expressões wrightianas mas também
para o desenvolvimento de uma arquitectura moderna
brasileira, próxima do Brutalismo das década de sessenta/
setenta. Aponte-se a continuidade com obras como a casa
própria de Conceição Silva no Dafundo, em Lisboa, ou a casa
Valadas Fernandes, no Guincho, com uma ousadia
potenciada pelo entorno físico, assim como pelo modo de
viver mais livre e alegre da sociedade brasileira.
Note-se ainda que a encomenda incluiu todo o desenho de
equipamento, dos sofás aos candeeiros, estantes etc. como
se pode aferir na legenda dos desenhos de equipamento.
Esta secção ficou a cargo de Carmo Valente, responsável
pelo “departamento de equipamento” (termo que consta dos
desenhos).
Planta do Piso 2. (Arquivo Atelier Conceição Silva).
Casa Simão Coslowsky (des. 1976 Fonte: Silva, F. (2), ca.1980)
Rua Euclides Figueiredo c Rua Maria Eugenia – Lote 2 do PA 33 993, Humaitá, Rio de Janeiro. 4
Encomendador: Diagraphis – do Dr. Simão Coslowsky,
obstetra de renome do Rio de Janeiro.
Casa de habitação unifamiliar num piso térreo mais cave
semi-enterrada (Pinto, 2013) com um amplo programa: quatro
suites, ampla zona de estar, sala de música, zona de serviço
com dois quartos de empregados, anexo de caseiro. Em
semi-cave, o hall de acesso à casa, o estacionamento, um
ginásio e uma sauna.
Adossada ao morro, a casa integra-se no terreno, com seu
desenvolvimento modular, alternando pavilhões e pátios
ajardinados. O jogo de volumes obedece a uma matriz de
base quadrada, que se lê claramente na planta ou na
composição de coberturas individuais, pequenas e leves
pirâmides de cor clara que apoiam na malha de vigas de
betão à vista. As paredes de tijolo aparente não rebocadas
reforçam a ambiguidade entre exterior e interior e denotam
uma compreensão sensível do contexto, explorando as
possibilidade que geografia e clima permitem, ao ensaiar
estas texturas rústicas no interior, como se se vivesse numa
espécie de exterior domesticado. Aqui ainda menos
amenizado do que na casa Steinberg, sugere um quase
desconforto, porém perfeitamente amável num clima tropical
como o do Rio de Janeiro.
O próprio desenvolvimento dos módulos lembra um conjunto
pavilhonar de jardim. A composição aditiva, os vários pátios
ajardinados disseminados pela casa, um ribeiro que passava
no próprio interior - pela zona que faz a transição entre a sala
e os quartos - reforçam a permeabilidade entre interior e
exterior e tornam o percurso pela casa numa sequência do
jardim.
Localização (Google Inc., 2014). Por sua vez, o jardim vai ganhando uma interessante
configuração e diversos ambientes com os avanços e recuos
da construção. A marcação modular prolonga-se na piscina e
seu espaço envolvente, num deck de madeira trabalhado
segundo a mesma regra de uma quadrícula.
Acede-se à casa de forma indirecta, aproveitando a topografia
do terreno, por um piso semi-enterrado. Essa frente é
praticamente cega, negando qualquer relação com a
envolvente da rua, em contraste com a abertura da casa do
lado do jardim, onde se cria um microcosmos onde a vida
doméstica se desenrola com toda a privacidade. Tal como nas
casas Steinberg e depois Salik, revela desse lado o cariz
escultórico conseguido com o jogo abstracto dos volumes
“pétreos”. Chega-se de surpresa no piso superior no meio da
casa, numa zona de transição entre a zona de serviço e a das
salas, com vista para um “jardim de pedras”. A área pública
desdobra-se com grande fluidez entre várias zonas
separadas por pátios e floreiras: sala de jantar, zonas de
circulação e sala de música.
Os quartos, numa “ala” mais reservada, ganham privacidade
com o escalonar da construção. Os quartos das crianças
Exterior (duas da esq., Cunha, 2013; em baixo, Silva, J. e Silva, F. p. 173 e 174).
têm uma pequena mezzanine com um vão envidraçado para
dormir, libertando o espaço térreo para as actividades diurnas
e o estudo. Durante a construção descobriu-se uma pequena
linha de água que se deixou a descoberto atravessando o
interior desde os penedos da parte traseira, depois canalizada
para abastecer a piscina. A piscina, com um lado sem bordo,
funde-se no horizonte com a Lagoa Rodrigo de Freitas. A
água caía em cascata sobre o envidraçado da sauna por
baixo da piscina.
De notar a preocupação com questões térmicas apesar da
falta de regulamentação à época no Brasil: paredes duplas,
lajetas de cimento com caixa de ar nas zonas planas da
cobertura, ventilação cruzada em vários sentidos. É ainda de
supor que a forma piramidal da cobertura das salas visasse
um bom comportamento térmico, tal como as coberturas
ajardinadas, por cima dos quartos. Em contrapartida, a
experimentação de novas soluções/materiais conduzia por
vezes a problemas em obra ou na utilização corrente. Ricardo
Silva Pinto recorda-se por exemplo de alguns vidros das
coberturas com estrutura em aço terem partido devido às
dilatações do decorrentes das variações térmicas (Pinto,
2013).
Interior (em baixo e escada, Silva, J. e Silva, F., 1987, ps. 173-174; Outras,
Cunha, 2013).
Também esta casa nos lembra a obra lusa do arquitecto e
nomeadamente a influência do organicismo de F. Lloyd Wright
com seu jogo de volumes e o peso das massas, mas nunca
directamente ou mimeticamente, sempre com o sentido de
um acumular de experiências que ficam como património
empírico a ser usado intuitivamente.
Bibliografia: Silva, J. e Silva, F., 1987.
Silva, F. (2), ca. 1980.
C.V arq Pinto da Cunha, espólio Laís Pinto da Cunha.
Fachada frontal e fachada lateral direita; Cortes AB e CD; planta do piso 1. (Silva, F. (2),
ca.1980).
5
Casa Salik Resner (1981constr. Fonte: Silva, J. e Silva, F., 1987, p. 186.)
Rua Kobe, 1-­‐155, Condomínio Nova Ipanema, Barra, Rio de Janeiro. Encomendador: Engenheiro Salik Resner. Casa de habitação unifamiliar em três pisos com jardim e
piscina. Não foram encontradas plantas completas, porém,
pela observação dos desenhos, pressupõe-se que um piso é
em semi-cave com estacionamento e acesso, o piso térreo,
mais extenso, tem três suites, uma sucessão de salas e zona
de serviço; o piso superior deverá ter a suite principal e
provavelmente mais uma sala ou escritório. Trata-se de mais
uma casa para a elite carioca com um extenso programa,
com uma sofisticada diferenciação de espaços a nível das
áreas comuns e de serviços.
Em pleno centro urbano, o pequeno lote é trabalhado de
modo a conseguir alguma privacidade e melhor tirar partido
do espaço exterior. Agarrada aos limites do lote todo murado,
a casa abre-se em L para um pátio interior com piscina, a
uma cota acima da rua. A intimidade é também conseguida
pela “manipulação topográfica” da construção e jardim
entendidos como um todo, jogando com diferentes níveis e
ainda com a ajuda de cobertos com floreiras que protegem as
vistas e ensombram os vários acessos à casa.
Dentro da mesma linguagem que a casa Ronaldo Steinberg,
é marcada pelas grandes floreiras em betão em consola e o
jogo volumétrico, com avanços e recuos, ajudando a
“desenhar” o espaço exterior. Mais uma vez nega-se à rua
como casa, antes parecendo um jardim aos socalcos
domesticado pelos muros de pedra ou betão, aparecendo
como único indício da vida doméstica, o portão dos carros.
A zona de estar, central na organização do espaço, distribui
para a zona de serviços de um lado e a zona dos quartos
Localização (Google Inc., 2014). numa ala do lado oposto. A casa organiza-se entre vários
pátios/ jardins, fundindo a vegetação no espaço interno, mais
uma vez criando uma estreita relação entre interior e exterior.
De notar o extenso programa da zona pública, com espaços
de estar fluídos mas diferenciados, em torno de vários pátios
e a diversas cotas, denotando um modo de vida descontraído
mas em que as actividades desenrolam-se em espaços bem
definidos: quatro zonas de estar identificadas pelo mobiliário,
estratégia repetida nos quartos: uma de recepção, outra de
leitura, zona de jogos e sala de televisão. Mais a zona de
jantar, entre a área de serviços e a sala de recepção.
Também a zona de serviços é bem estratificada, com zona de
preparação, copa, área para refeições e quartos de
empregados. Nos quartos, zonas de vestir, do lado da porta
de entrada, separadas das áreas de dormir pelos roupeiros
com face dupla, conferem maior privacidade ao espaços. Os
vários acessos verticais desde o piso inferior, separando
escadas de serviço das principais, ou ainda das dos quartos,
revelam os costumes conservadores com uma clara
hierarquia que ainda marcavam a sociedade brasileira.
Exterior e casa de banho (Cunha, 2013).
Para além dessa ambiguidade entre interior e exterior bem
brasileira, o arquitecto resgata aqui outros elementos que
inserem a casa no seu meio ambiente cultural, como os
azulejos da piscina com o padrão em ondas idêntico ao
calçadão à beira mar desenhado por Burle Max (variação de
uma calçada que existia desde o início do século XX no Rio e
executada por calceteiros e pedra de Portugal, com as obras
de melhoramentos levadas a cabo por Pereira Passos,
prefeito da então capital), padrão esse que será reutilizado na
praça criada no conjunto da Rua Professor Castilhos para a
Michelin.
Bibliografia: Silva, J. e Silva, F. 1987.
Silva, F. (2), ca.1980.
C.V arq Pinto da Cunha, espólio Laís Pinto da Cunha.
Alçado para a rua, e corte/alçado Sul; Planta Piso 1, corte/alçado nascente;
Cortes CC e BB ; EE e DD planta do piso 1. (Silva, F. (2), ca.1987).
Edifício Rosalina Brand (1979 constr. Fonte: Silva, J. e Silva, F. p. 180).
Av. Delfim Moreira, 54, Leblon, Rio de Janeiro.
Edifício de habitação colectiva com uma implantação de cerca
de 6 por 20 metros, cinco apartamentos, sendo o último em
duplex, residência de Clara e Jacob Steinberg. Possui
garagem e tem ainda um piso térreo do qual desconhecemos
o programa.
Numa localização privilegiada, na frente mar, no Leblon, este
projecto gerou uma reacção controversa junto do Instituto dos
Arquitectos do Brasil, nomeadamente por causa da cor
escura da fachada, de acordo com Betty Steinberg
(Steinberg, 2013). O edifício tem um forte impacto do ponto
de vista plástico, marcado pela repetição das varandas
salientes e com expressão brutalista, dada sobretudo pela
alta “testa” de betão que remata o seu topo. As guardas de
acrílico ou vidro fumado, assim como as superfícies
espelhadas do hall de entrada e os elevadores lacados a
vermelho fazem a actualização a uma estética dos anos
oitenta. Mais uma vez, privilegia-se o estar exterior com o
dispositivo tão característico da arquitectura brasileira - a
varanda -, neste caso um amplo espaço de estar que
beneficia de uma vista impar sobre o mar.
Só se teve acesso às plantas do duplex que ocupa os dois
últimos pisos, mas supomos que, por questões técnicas e
lógicas, os pisos inferiores serão idênticos ao piso inferior da
cobertura. O andar desenvolve-se em dois pisos, sendo o
superior um amplo terraço com uma pequena piscina num
deck de madeira, uma casa de banho, apoio de cozinha e
salas de manutenção dos elevadores. O piso inferior é
bastante compacto, dispensa corredores e acede-se
6
Encomendador: Os engenheiros Clara e Jacob
Steinberg, de influentes famílias da comunidade
judaica do Rio de Janeiro, donos da Servenco, então
uma importante empresa de projectos, construção e
promoção imobiliária. São pais de Ronaldo Steinberg.
Localização (Google Inc., 2014). Exterior, varanda e cobertura da Av. Delfim Moreira (Silva, J. e
Silva, F., 1987, ps. 180-181).
Directamente a uma zona de transição da sala de estar, uma
solução com poucos inconvenientes tratando-se de um
apartamento por piso. A solução encontrada para o lote de
difícil geometria, 25 por cerca de 7 metros de frente, revela a
destreza dos arquitectos. Os acessos verticais, serviços e
uma instalação sanitária ficam “arrumados” do lado da
empena que encosta ao prédio confinante, recorrendo-se a
um saguão para a iluminação dos espaços mais interiores. Ao
invés de tentar contrariar o sentido longitudinal do lote, a
distribuição dos espaços reforça esta característica, com a
sucessão de espaços abertos, deste modo dando a ilusão de
uma maior amplitude. A sala vira-se para o mar e os quartos
para a rua lateral. A zona de comer e escritório são abertos apenas parcialmente separados por painéis -, revelando o
ambiente informal.
Dentro das limitações de um edifício de habitação colectiva,
aqui também se introduz a vegetação no interior, neste caso
pontuando estrategicamente com apontamentos de
pequenas floreiras – entre duas instalações sanitárias, ou
Fonte: Piso 0 e Piso 1 do duplex, átrio do prédio, interior apartamento (Silva,
F. (2), ca.1980; Silva, J. e Silva, F., 1987, p. 180; duas da esq., Silva, P. ca.
1980).
Por exemplo, separando o escritório da zona de comer. Por
sua vez, os acessos às varandas fazem-se por uma
reentrância na fachada, o que confirma essa vontade de
trazer o espaço exterior para dentro. Apesar de ser de finais
da década de sessenta e de uma certa escassez de espaço,
não se dispensam os quartos de empregados, sintomático de
um costume que se perpetua bem dentro do século XX.
O equipamento foi desenhado por Carmo Valente (Valente,
2006).
Bibliografia: Silva P. e Silva F., 1987.
Silva, F. (2), ca.1980.
C.V arq Pinto da Cunha, espólio Laís Pinto da Cunha.
Casa Carlos Royle (des. 1978 Fonte: Silva, F. (2), ca.1980).
Rua Gerbert Périssé, nº1552, Geribá, Búzios.
7
Encomendador: Rio do Sul, Agricultura, Comércio e Indústria
Ltda, de Carlos Royle.
Trata-se de uma casa de veraneio, num lote de 1038m2, com
dois pisos e 250 m2 de construção, numa das praias mais
populares - Geribá – na parte mais estreita da península de
Búzios, a 170km do Rio. Com seu clima tropical, Búzios
tornou-se na Saint Tropez brasileira – sítio de eleição da elite
carioca - depois de Brigitte Bardot a ter visitado em 1964.
Tinha como principal fonte o pau-brasil e foi ponto de
desembarque de escravos africanos. O seu nome deve-se à
estrutura para capturar peixes (armação), nomeadamente
baleias, trazida pelos portugueses no século XIX. Em meados
do século XX os herdeiros de um fazendeiro de bananas
desenvolveram a Companhia Odeon destinada ao turismo de
qualidade, preocupando-se em preservar a arquitectura
tradicional local. Na década de setenta do século XX recebeu
um grande fluxo de argentinos que emigraram devido à crise
no seu país, seguindo-se um período de ocupação
desenfreada pelo turismo e especulação imobiliária.
A construção ocupa quase a extremidade do lote estreito e
alongado, libertando o jardim em frente ao mar, a Norte, e
para onde se abre a sala de grandes vãos envidraçados. Esta
prolonga-se num generoso alpendre – cerca de três metros
de profundidade - com estrutura de madeira, novamente um
dispositivo que remete para a arquitectura tradicional e
colonial. Indo de uma extremidade a outra do lote, a casa tem
um pátio central (ou melhor jardim, com pelo menos uns 7/15
metros), para o qual apenas se sabe que dá um quarto,
pressupondo-se que seja na realidade um pequeno
apartamento independente, uma vez que o coberto que liga
as duas construções é uma passagem ao ar livre. Em vez de
se abrir apenas à rua principal – a Rua Gerbert Périssé
Localização (Google Inc., 2014). (antes Estrada do Marisco) – este tem igualmente janelas de
sacada viradas para o jardim interior, permitindo um maior
recato. Outros quartos estarão certamente no piso superior do
corpo principal. A cobertura tradicional de telha cerâmica,
muros de pedra não aparelhada – que, numa das frentes, tem
uma geometria e espessura que lembra uma fortaleza -,
portadas e roupeiros com frentes de madeira de ripas
remetem igualmente para imagens de uma arquitectura
tradicional, reinventada, integrada na paisagem de uma praia
de veraneio. Esta expressão mais vernácula, como vimos,
também era eleita pelos arquitectos brasileiros para contextos
não urbanos ou em cidades do interior.
As condições de segurança (ajudadas pela mão de obra
barata) já exigiam uma casa de guarda, a qual tem o mesmo
rigor e cuidado de desenho do que a casa principal e confirma
essa visão integrada de toda a ocupação do lote. Virada para
pátios interiores, constitui-se como um muro habitado,
conferindo uma espessura entre jardim e frente de rua. Muito
comum no contexto brasileiro, essa frente de rua caracterizase por um muro alto e um portão coberto, mantendo toda a
privacidade da casa. O muro/casa do guarda tem esquinas
arredondadas (uma delas solta do muro perpendicular) o que
lhe empresta um ar náutico ao mesmo tempo que facilita a
manobra de entrada do carro.
Bibliografia: Silva P. e Silva F., 1987.
Silva, F. (2), ca.1980.
C.V Pinto da Cunha.
Fachada para a praia e Corte CD, Fachada para Estrada e Corte
AB; Plantas de Implantação e de cobertura (Silva, F. (2), ca.1980).
8
Casas em Taquará
Rua Maria de Lacerda, Taquará, Rio de Janeiro.
Alçado e localização (Silva, F. (2), ca.1980 e Google Inc., 2014). Conjunto de três casas relativamente modestas, em Taquará,
bairro a Oeste do Rio que começou a urbanizar-se a partir
dos anos 70, acabando com as “chácaras” que o
caracterizavam. Todas com um só piso, variam entre T2 e T3,
em pequenos terrenos. A título de exemplo, a casa 1, a qual
tem duas variantes, tinha 167m2 de área coberta num lote de
272m2. Nestas casas bastante singelas é evidente a opção
de se inserir num contexto mais tradicional, com a expressão
marcada pelas coberturas de águas e telha cerâmica,
prolongadas em alpendres, ou as persianas de madeira de
ripas. Desconhece-se para quem se tratavam mas o
programa muito simples – pese embora sempre a zona de
empregados – e a ilustração com o típico carocha revelam
uma clientela da emergente classe média.
As construções adaptam-se ao terreno de forte pendente com
desníveis, mas mantendo a unidade da cobertura. Protegemse da rua com altos muros – no caso da casa 2 da altura de
um piso – interrompidos pelo portão de madeira. Algum
dinamismo é no entanto dado às fachadas com avanços e
recuos, mais particularmente na casa 1, a mais elaborada, a
qual apresenta duas versões. Na primeira, a mais
interessante, desenvolve-se de forma mais intimista em torno
de um pátio central aberto a nascente, mas protegido por um
arvoredo e pelo que parece ser um apoio de refeições. Nos
três casos, a planta bastante compacta revela uma
distribuição racional com o aproveitamento do espaço,
nomeadamente com entrada directa para a sala. A zona de
serviços fica no centro, a sala comum a Norte mas aberta
para o pátio e os quartos a Sul.
Com maior incidência de Sol num clima tropical, o lado Norte
protege-se com poucas aberturas, apenas um vão com uma
floreira que ilumina a zona de refeições, o qual fica no eixo
de um largo corredor e o estacionamento. A cozinha não
dispensa a copa e o quarto de empregada. Esta casa
apresentava portadas de correr na planta, contrariamente às
outras que têm portadas de abrir, porém no alçado são todas
iguais. A segunda versão desta casa é mais compacta,
dispensa o pátio e oferece mais espaço de estacionamento.
A casa 2 desenvolve-se numa base quase rectangular
adaptando-se ao lote estreito e alongado. Muito compacta,
tem neste caso a sala virada a Sul, mas a dar para o pátio
criado pelos altos muros, e os quartos seguidos no sentido
longitudinal. A zona de serviços tem um generoso alpendre
com zona de lavagens.
Não obstante ser mais pequena e mais compacta, a casa 3
tem uma pequena particularidade: a zona de serviço é
destacada da casa. É composta de dois volumes de base
rectangular, atravessados por uma larga passagem exterior
onde se situa a zona de lavagem, mas unidos pela cobertura.
A zona de serviços fica no volume a Norte, virado para essa
zona exterior enquanto a sala e a cozinha se abrem para um
alpendre lateral.
Bibliografia: Silva, F. (2), ca.1980.
Planta de piso Casa 1 e variante; Planta piso Casa 3; Vista de frente e
lateral Casa 3 (Silva, F. (2), ca.1980).
Casa Piano (1981 Fonte, Silva, J. e Silva, F. 1987)
Campo Grande, Rio de Janeiro.
Esta agência de viagens e casa de câmbio seria
possivelmente para servir a comunidade da recém instalada
Michelin no Campo Grande.
A loja, em dois pisos, é estreita e alongada. De notar a
geometria em viés que se introduz na planta de base
rectangular, criando recantos para os funcionários e que
permite o atendimento aos clientes com alguma privacidade.
A entrada faz-se por um recesso, recuo na fachada, solução
que se vê em inúmeros projectos comerciais de Conceição
Silva em Lisboa. No piso superior, recuado, não se dispensa
a generosa floreira, afinal uma nota brasileira presente em
todos os projectos.
Bibliografia: Silva P. e Silva F., 1987.
Silva, F. (2), ca.1980.
9
Encomendador: Jorge Piano que era
um empresário argentino dono de uma
casa de câmbio em Lisboa. Emigrou
para o Rio onde montou uma agência
de viagens e casa de câmbio com uma
boa clientela (Silva, A., 2006).
Alçado, plantas, corte e exterior (Silva, F. (2), ca.
1980 e Silva, J. e Silva, F. p. 184).
10
Hotel Ponta Negra (c. 1978-80. Fonte: Pinto, 2013).
Estado da Bahia.
Tratava-se de um hotel organizado em bungalows, junto a
uma praia no Estado da Bahia, projectado entre 1978 e 1980,
mas não desenvolvido, nem construído, de acordo com
informação prestada por Ricardo Silva Pinto. Só existem no
arquivo do Atelier Conceição Silva desenhos do bar de apoio
de praia, o qual tem uma área coberta de 285 m2.
Também aqui opta-se pela aproximação a uma arquitectura
de raiz regional, tentando integrá-la no ambiente cultural da
Bahia, com uma expressão de cabanas autóctones de
construção artesanal, com estrutura em madeira e cobertura
em palha e embasamento em muros de pedra rústica.
Lembra a obra “cabocla” de Severiano Mário Porto na
Amazónia. De notar a planta circular com uma organização
do espaço com sentido concêntrico. Bar de apoio em
esplanada coberta, apenas fechado na zona de cozinha e
serviços.
Bibliografia: Silva P. e Silva F., 1987.
Silva, F. (2), ca.1980.
Alçado, planta e corte (Silva, F. (2), ca.1980).
Conjunto residencial Olinda Ellis (1979 Fonte: Silva, J. e Silva, F., p. 178).
Rua Olinda Ellis com Rua João Ellis, Campo Grande, Rio de Janeiro.
Será o primeiro de quatro conjuntos desenhados para a
Michelin e ganhos em concurso e talvez o mais pequeno, se
não contarmos com as várias casas disseminadas pelo Bairro
do Campo Grande, compradas pela multinacional e
reabilitadas pelos arquitectos, de modo a suprir as
necessidades enquanto os “Bairros Michelin” não eram
construídos. Trata-se neste caso de um prédio de habitação
colectiva e conjunto de casas geminadas numa rua semiprivada (João Ellis) para os quadros da Michelin, rua
entretanto fechada e com guarda.
De notar, o sentido urbano do projecto, com a unidade do
conjunto e um desenho cuidado do espaço público. Pese
embora se trate de um programa misto com habitação
colectiva e unifamiliar, existe a preocupação em ligar e
homogeneizar o conjunto, recorrendo aos mesmo materiais
ou, por exemplo, descolando a casa contígua ao bloco de
apartamentos, mas ligando as duas construções com o muro
da casa e o prolongamento da viga de bordadura da
cobertura até à empena do prédio. O espaço público é
qualificado pelas floreiras e espaços ajardinados, ou os
acessos cuidados ao bloco de apartamentos, com, por
exemplo, floreiras que resolvem o desnível. O recuo do piso
inferior com o edifício apoiado em paredes/lâminas de betão e
a calçada preta e branca de padrão de ondas no acesso e
estacionamento dos automóveis (no vazio do piso térreo),
inspirada na intervenção de Burle Max no calçadão de
Copacabana, denunciam a vontade de dar um sentido urbano
à intervenção e integrá-la na cidade com referência a este
marco identitário.
11
Encomendador: Michelin, multinacional
da indústria de pneus, através da SomicSociedade Civil Habitacional, empresa
criada para desenvolver os loteamentos
destinados a residência dos seus quadros.
Localização (Google Inc., 2014). O recurso a materiais nobres, locais e artesanais – tijolo
maciço aparente, telhas cerâmicas, madeiras - são outra
manifestação da vontade de se inserir na tradição local. A
expressão formal, sobretudo das casas geminadas, também
reforça a ligação à tradição, não sem actualizar essas
referências com elementos como a cobertura inclinada e com
telha mas com pouca inclinação e projectada, estrutura em
laje de betão com a viga de bordadura à vista ou a reinvenção
dos caixilhos e portadas tradicionais de madeira.
Aparecem aqui as preocupações que vimos ao longo de toda
a obra: a valorização do espaço exterior e vontade de fundir
construção e paisagem com generosas varandas no prédio,
pátios ajardinados nas casas.
Infelizmente, não se encontraram os desenhos técnicos deste
conjunto.
Bibliografia: Silva P. e Silva F., 1987.
Silva, F. (2), ca.1980.
C.V arq Pinto da Cunha, espólio Laís Pinto da Cunha.
Exterior bloco apartamentos, pátio e interior casa em banda,
conjunto casas em banda (em baixo, Silva, J. e Silva,F. p.178;
outras, Pinto, ca.1980).
Conjunto Professor Castilhos (des. 1979, Fonte: Silva, F. (2), ca.1980).
Rua Professor Castilhos com Rua Professor Gonçalves, Campo Grande, Rio de Janeiro.
Num quase quarteirão entre estas duas ruas e ainda a
Estrada do Monteiro, projectaram-se duas torres de dez pisos
e um alongado bloco de quatro pisos. Implantados nos limites
do terreno de base poligonal, por cima do estacionamento
subterrâneo, libertam uma zona central que se constitui como
uma grande praça.
Tal como o conjunto da Rua Olinda Ellis, destinavam-se aos
trabalhadores da Michelin, sendo o “condomínio”
parcialmente aberto à cidade, parcialmente murado,
certamente por razões de segurança. O principal interesse do
conjunto passa justamente por esta estratégia urbana de abrir
o lote à cidade, criando um novo espaço público e
atravessamentos de ligação entre várias ruas. Este sentido
urbano de grandes espaços comunitários vem na tradição da
arquitectura moderna brasileira e denota a vontade de lhe
dar uma identidade carioca, reforçada pelo pavimento em
calçada à portuguesa em curvas parabólicas e ondas, de
cores vermelho, preto e branco, uma intencional referência ao
calçadão de Copacabana (de 1970) desenhado por Roberto
Burle Max, assim como pela preponderância das varandas, o
que se repete em todos os projectos de habitação colectiva
dos arquitectos. Recuados nos pisos térreos, de forma a
prolongar o espaço público para uma zona exterior mas
coberta debaixo das construções, os acessos fazem-se pelo
meio dos edifícios, com um acesso central no caso das torres
e três ao longo do edifício no bloco. No caso deste último, a
localização da caixa de escadas permite isolar nas traseiras o
quarto da empregada, o qual não é dispensado apesar da
tipologia T2.
12
Encomendador: Michelin,
multinacional da indústria de pneus,
através da Somic, empresa criada para
desenvolver os loteamentos
destinados a residência dos seus
quadros.
Localização (Google Inc., 2014). A planta muito racional revela o sentido de eficácia que
preside à distribuição espacial, com certeza uma orientação
da Michelin: sala comum e um quarto para a frente, zona de
serviços e outro quarto para as traseiras, casa de banho entre
os dois quartos localizada na parede confinante com o
vizinho, áreas de distribuição mínimas, dois vestíbulos lado a
lado, um para as zonas comuns, outro para os quartos. Mais
uma vez, apesar da distribuição compacta e do espaço
reduzido – por exemplo só tem uma casa de banho, além da
instalação sanitária da empregada – privilegia-se o estar ao ar
livre com amplas varandas (uns 10m2) espaço também de
transição entre a casa e o exterior, defendendo-as ainda da
rua com amplas floreiras designadas de “jardineiras”, cuja
etimologia revela o maior significado que os brasileiros dão a
este dispositivo que entre nós não passa de floreira. Tal como
manifestara já na configuração do espaço em Lisboa,
Conceição Silva usa aqui estratégias para “desfazer” o bloco,
dinamizando-o com volumes salientes (os quartos dos
empregados), recuando o vidro numa zona das varandas em
L, ou dispensando a parede de esquina para rematar a
varanda.
Planta de implantação do conjunto, vista exterior, praça
interior (Silva, J. e Silva, F. p.176-177).
São também dispositivos que asseguram privacidade aos
seus ocupantes, com as tais floreiras entre apartamentos ou a
entrar pelos quartos adentro, as paredes divisórias a
prolongarem-se fazendo a separação entre varandas, estas
com uma zona recuada, espaço de estar de eleição.
A configuração da Torre de base quadrada (referimo-nos à
planta da Torre A, a única encontrada) com os acessos num
bloco central permite uma interessante distribuição de quatro
apartamentos por piso simétricos, também eles quase
quadrados, criando-se uma morfologia com maior movimento
do que no bloco, com avanços e recuos mais dinâmicos.
Apesar de T3 com duas casas de banho – uma em suite seguem os mesmos princípios do bloco com uma distribuição
compacta sem corredores e sala comum. Em contrapartida, a
zona de serviços é ampla, com quarto de empregada,
sintomática da sociedade serviçal brasileira. Varandas
generosas cujo ambiente é dado pela designada “jardineira”,
bem revelador da intenção, são, naturalmente, o espaço que
se privilegia.
Refira-se que Carmo Valente foi responsável pela decoração
dos apartamentos.
Exterior (Silva, J. e Silva, F. p.177).
Bibliografia: Silva P. e Silva F., 1987.
Silva, F. (2), ca.1980.
C.V arq Pinto da Cunha, espólio Laís Pinto da Cunha.
À esquerda alçado Rua Professor Castilhos, planta tipo do bloco; à direita planta tipo
da Torre (Silva, F. (2), ca.1980).
Loteamento Poatã
(des. 1980, Fonte: Silva, F. (2), ca.1980).
Rua Poatã com Rua Camaipi, Campo Grande, Rio de Janeiro.
13
Encomendador: Michelin, multinacional da
indústria de pneus, através da Socit, empresa
criada para desenvolver os loteamentos
destinados a residência dos seus quadros.
O conjunto da Rua de Poatã consiste num pequeno
loteamento de 27 casas geminadas numa “bolsa” que sai da
rua de Poatã, com três ruas que culminam em becos sem
saída e num generoso espaço verde comum. A unidade do
conjunto e os arranjos exteriores denunciam a importância
que se dá ao espaço colectivo, quer em termos de imagem,
quer em termos de vivência. São disso exemplo, as ruas
arborizadas, as faixas relvadas e ajardinadas com percursos
pedonais em lajetas de betão que afastam as casas da rua e
o pavimento em blocos de betão que desacelera o percurso
dos automóveis.
A adaptação das casas à pendente da rua e algumas casas
de dois pisos criam um ritmo mais dinâmico ao conjunto. Os
volumes dos depósitos de água que encimam as construções
e marcam a sua expressão são mais um testemunho da
habilidade do desenho (eram obrigatórios, sendo a água
abastecida por gravidade). Todas com 3 quartos e compactas,
apresentam algumas variações. O lote é desenhado na sua
totalidade
criando pátios murados nos interstícios da
construção, descolando-a da casa confinante de um dos
lados e adossando-a ao muro da casa seguinte, numa
manifesta vontade de conseguir alguma privacidade. O
estacionamento e a varanda frontal criam espaços exteriores
virados à rua, mas, como referido, dela afastados por zonas
comuns ajardinadas.
Localização (Google Inc., 2014). Planta do conjunto, construção, interior e exterior (Silva,
J. e Silva,F. p.178-179; em construção, Pinto, ca. 1980).
Na casa C, talvez a mais interessante, o pátio central reforça
o sentido intimista, para ele abrindo a sala e a área de
entrada e ajudando a desenhar uma distribuição compacta.
Tirando partido da topografia, os três quartos ficam num nível
superior (cerca de um metro acima) e abrem-se para um pátio
com toda a largura do lote. Um deles, em suite, recua dandolhe maior privacidade. A zona de serviços abre-se para outro
pátio semi-coberto e com floreira suspensa, do lado do muro
que confina com o vizinho.
As outras casas apresentam pequenas diferenças,
nomeadamente o pátio interior encostado a um dos lados, por
exemplo na casa E, permitindo criar uma zona de refeições a
uma cota superior à da zona de estar, algumas com os
quartos num patamar superior ao da sala e da entrada, outras
têm o terraço frontal a uma cota abaixo da rua, uma ainda
beneficia de um grande pátio central (Casa F).
Infelizmente, de acordo com observação através do Google
Earth, verifica-se que estas casas foram bastante
adulteradas, como a colocação de coberturas em telha nos
depósitos de água, entre outros. E o conjunto também foi
fechado em condomínio com segurança.
Bibliografia: Silva P. e Silva F., 1987.
Silva, F. (2), ca.1980.
C.V arq Pinto da Cunha, espólio Laís Pinto da Cunha.
À esq. Casa A, Planta de Piso, Cortes AB, CD e EF. Casa C, Planta de piso,
Cortes; Casa F, Planta (Silva, F. (2), ca.1980).
Conjunto Habitacional GI (1980, Fonte: Silva P. e Silva F., 1987, p. 188).
Campo Grande, Rio de Janeiro.
Pelo nome, supõe-se que este empreendimento seria
promovido através da GI, empresa que Conceição Silva criou
para desenvolver investimentos imobiliários. Pensa-se não ter
sido construído e desconhece-se a localização exacta no
Bairro do Campo Grande, o qual, recorde-se, acaba por se
valorizar com a instalação da Michelin. Tratar-se-ia de um
grande conjunto habitacional do qual se conhecem apenas
uma perspectiva e os desenhos de um edifício de seis pisos –
uma planta com tipologias T3 e T3+1. Atendendo às tipologias
relativamente modestas, destinar-se-iam a uma classe média.
Neste prédio também se recupera uma expressão mais
tradicional com a cobertura inclinada de telhas cerâmicas, o
revestimento das paredes em tijolo ou as guardas das
varandas em madeira. Verifica-se uma grande racionalidade
da planta e economia do espaço, como nos T3, em que a
sala, no centro, faz a distribuição para a zona dos quartos e
dos serviços, em lados opostos. Trata-se de um andar muito
compacto, com o mínimo de áreas de distribuição e pequenas
áreas dos compartimentos: sala 22m2, quartos entre 9 e 10
m2, uma só casa de banho com 3,15m2 para 3 quartos. No
entanto, reflectindo o modo de vida da
sociedade
brasileira, o apartamento não dispensa o quarto de
empregada. Note-se também uma zona da cozinha separada,
provavelmente de tratamento de roupa e uma simpática
Perspectiva do conjunto (Silva, J. e Silva, F., p. 188).
14
Planta do T3+1; alçados (Silva, F. (2), ca.1980).
Varanda com floreira e espaço suficiente para uma mesa de
refeição, mais uma vez revelando a importância dada ao
espaço exterior. Pormenores como este ou o painel de
separação na entrada para conferir alguma privacidade
demonstram o cuidado posto no projecto, pese embora a
clara intenção de levar ao limite o aproveitamento do espaço
útil de 70m2 totais – na realidade engenhoso.
A planta refere 6 apartamentos – provavelmente na mesma
prumada. Outra variante muito semelhante tem como
principal diferença a não existência de quarto de empregada,
nem de varanda.
Casa isolada
Infelizmente esta casa não está localizada, porém tem
algumas particularidades que a tornam num interessante caso
de estudo. Trata-se de uma casa unifamiliar num lote murado
com três quartos mais quarto de empregada. A planta parece
organizada em dois volumes independentes unidos pela
cobertura, sendo o corredor que os separa um espaço mais
transparente, aberto dos dois lados por vãos envidraçados,
quase dando continuidade ao jardim como se de um corredor
exterior se tratasse. Contrariamente à maioria das casas em
que a privacidade entre zonas se garante por diferenças de
cotas – em função das próprias possibilidades do terreno
natural – aqui é o desenho de dois núcleos claros e
separados que assegura essa qualidade, adivinhando-se um
terreno plano.
Dominam os espaços exteriores, nomeadamente o generoso
alpendre com zona de estar e refeições, uma verdadeira sala
de estar ao ar livre que medeia entre a vida no interior da
casa e o jardim, mas que se pode colocar na penumbra
fechando as portadas de madeira, ou abrir ao jardim. Trata-se
assim de um interessante espaço intermédio que vem da
tradição da casa colonial brasileira mas que trabalha as
possibilidade oferecidas por este espaço híbrido com um
elemento também ele tradicional e note-se que a sala não
tem caixilhos para se fechar a este espaço. No volume de trás
um pátio/sala sem função determinada introduz uma clara
separação entre um quarto isolado, possivelmente de amigos,
e a zona de serviços – cozinha, lavagens e quarto de
empregada. De notar, o quarto de crianças separado em dois
nichos simétricos, com zona de dormir e de estudo, podendo
a zona comum abrir-se e atravessar-se da sala informal ao
15
alpendre, prolongando amplamente os seus limites. Sem
portas na sala e com portas de correr neste quarto, a casa
possibilita uma grande fluidez e invulgar circularidade
atravessando alpendre, sala e quarto. Mais íntima, com um
pequeno recesso de entrada, a suite principal pode
igualmente prolongar-se num espaço de estadia exterior,
graças a portas de correr que recolhem dentro da parede. De
notar ainda o portão vermelho, uma cor bem brasileira,
encimado por uma moderna floreira de betão, mas com um
muro lateral de pedra rústica, mais uma vez denotando o
gosto pelo diálogo entre tradição e modernidade. A
flexibilidade, com várias possibilidades de usufruir do espaço,
tornam esta casa invulgar, embora sem grandes luxos,
levando a crer que seria para um quadro dirigente da
Michelin. Sabe-se que a multinacional, para além dos
conjuntos listados, construiu uma série de casas isoladas,
comprando lotes dispersos pelo Campo Grande e Resende
(Pinto, 2013).
Planta piso 0 e alçado (Silva, F. (2), ca.1980).
Loteamento da Cachamorra (des. 1979 Fonte: Pinto, 1979).
Estrada da Cachamorra, Campo Grande, Rio de Janeiro.
Trata-se de um dos maiores projectos dos arquitectos no
Brasil, mais uma vez, para alojar os quadros da Michelin.
Previa a transformação da Fazenda Montenegro em
“Condomínio fechado”, como refere a memória descritiva
(projecto fornecido por Ricardo Silva Pinto), com um conjunto
de 71 casas em lotes individuais apoiadas num centro social
e recreativo, num terreno de cerca de 10 hectares. Na mesma
estrada do que o complexo industrial da Michelin (que se
apresenta na planta), desconhece-se se foi construído.
Nos limites do Campo Grande, ou seja da cidade, numa zona
ainda caracterizada por quintas e uma ocupação urbana
fragmentada e pouco organizada, a opção foi dar
continuidade a essa paisagem no limiar do rural, com um
condomínio fechado em que domina o projecto de
paisagismo, realçando-se na memória descritiva a área verde
para utilização comum, a qual corresponde a cerca de 25%
do terreno. Organizado em torno do centro social e recreativo
densamente arborizado, privilegia-se esta nova paisagem
criada por um parque verde que se constitui como a vista das
casas: “o centro será o espaço mais valorizado e aquele onde
incidirá uma maior intervenção paisagística de forma a fazer
convergir para ai a vida da comunidade”. Os próprios arranjos
exteriores das casas contribuem para o desenho de conjunto
com os espaços verdes e a sua implantação é ainda função
da vegetação existente evitando-se “os cortes
desnecessários” como se frisa na memória descritiva.
Fechado e guardado com segurança privada, oferecia um
conjunto de serviços para os seus habitantes terem os bens
essenciais à mão, sendo precursor dos condomínios que
caracterizarão as décadas seguintes e até hoje, o Rio e
outras grandes cidades. Cria-se assim um pequeno microcosmo com um conjunto de actividades, incluindo desportos e
16
Encomendador: Michelin, multinacional
da indústria de pneus, através da SomicSociedade Civil Habitacional, empresa
criada para desenvolver os loteamentos
destinados a residência dos seus quadros.
Localização (Google Inc., 2014). e escola, em que se promove a vida comunitária e o uso
comum desses espaços, nomeadamente possibilitando uma
fácil circulação com o desenho de uma ciclovia que possibilita
ainda a prática de cooper, em paralelo à via para os
automóveis. Prosseguindo o mesmo fim, fazem-se barreiras
vegetais com sebes em vez de muros (mesmo entre lotes de
casas) e propõem-se materiais que se integrem nessa massa
verde, como os cerâmicos, na alvenaria de tijolo aparente ou
as coberturas com telha e estrutura de madeira, também
numa manifesta vontade de uma expressão tradicional.
Promovendo uma certa autonomia e vida própria, num bairro,
que, como vimos, oferecia pouca qualidade urbana, o
conjunto apoia-se no centro social e recreativo com salas de
estar, de leitura e de jogos, bar, mini-mercado, zona
administrativa do condomínio e uma ampla zona exterior
coberta e descoberta com esplanadas em torno das piscinas
para adultos e crianças. A memória descritiva enfatiza a
unidade do conjunto com os vários edifícios de mesma
expressão e interligados, não descurando os espaços
exteriores, nomeadamente com uma esplanada em pedra que
liga as piscinas às construções. Previa ainda um anfiteatro de
180 lugares para teatro e música integrado nos espaços
verdes, a uma cota rebaixada, construído em peças prémoldadas de betão aparente. Outro actractivo para fixar os
seus residentes era o centro desportivo, mais uma vez
privilegiando as actividades ao ar livre, com 4 campos de
ténis, um campo de vólei e um campo polivalente para
basquete e futebol de salão envolvidos em densa vegetação,
sendo todo o equipamento comum “enquadrado por cortinas
de vegetação de forma a proteger as habitações por meio de
intensidade de plantação apropriada a
cada fim e aos
objectivos que se pretendem atingir”. O desenho de
paisagismo prevê assim “primeiros planos de vegetação baixa
e grupos de árvores” que permitem “sequências de volumes
diversos e facilmente controláveis”.
A escola, com dois corpos de aulas interligados por uma zona
central de serviços comuns e um total de 18 salas, servia
alunos de 1º e 2º grau e também se integra no conjunto de
edifícios colectivos com paredes exteriores em tijolo aparente.
Plano director (Pinto, 1979).
De forma a “garantir uma diversidade aconselhável e evitar a
identificação de casas repetidas” conceberam-se 22 projectos
diferentes a partir de variantes de 9 casas tipo para as 71
casas, variando ainda na implantação do lote, tipos de
materiais e arranjos exteriores. Tratam-se de casas de dois a
quatro quartos entre 90 e 135m2 cobertos, sendo que as
mais pequenas têm mais repetições. Por exemplo, a casa
designada B2, com dois quartos, é repetida 18 vezes e tem
duas variantes e a casa AA3, com quatro quartos é repetida
apenas 3 vezes e só tem uma variante. Procurando a
economia e eficácia da construção, são repetidos elementos,
como os sanitários, e processos construtivos, simplificados, e
com estrutura em pilar viga e laje de betão. Mantém-se aqui a
expressão tradicional, com cobertura de duas águas e “telha
colonial”, a madeira e o tijolo à vista, mas também
actualizando essas referências com, por exemplo, elementos
de betão aparente. Explica ainda a memória descritiva que se
procurou uma clareza da planta entre zonas sociais e
privadas e oferecer espaços generosos, com cerca de mais
10% do que exigia o programa, “visto o custo não ser
proporcional ao benefício que uma maior área poderá induzir
na habitação, sobretudo na zona de estar”. Pese embora a
fluidez e abertura dos espaços comuns, teve-se o cuidado de
localizar a entrada “de forma a não perturbar a intimidade da
zona de estar”. Como sempre, os interiores são cuidados e
persegue-se uma ideia de conforto ambiental, para além da
unidade, um cuidado sempre respeitado, sendo assim o
escasso leque de materiais muito semelhante em todos os
projectos – neste caso materiais cerâmicos ou madeiras nas
áreas sociais, em pavimentos, tectos, rodapés e rodatectos, e
alcatifamento nos quartos; materiais cerâmicos e azulejos nas
zonas de água.
Como referido, procura-se garantir uma certa privacidade das
casas no conjunto, também dos próprios lotes, com os jardins
limitados por sebes e faixas de 5 metros entre as suas
“barreiras” de sebes e os limites do terreno.
O Espaço colectivo é mais uma vez cuidado e pensado no
conjunto do condomínio, não só os “muros verdes” divisórios,
com sebes ou cortinas de árvores mas também toda a
pavimentação e circulação, com ruas para veículos com
“blockets” e meio-fio em concreto pré-moldado, passeios em
placas de betão e vastas zonas com relva. Como se pode ver
no perfil abaixo, na zona central, um passeio de 5,5 metros
permitiria uma ciclovia também para desportos pedestres
qualificada por uma faixa arbustiva de 2,5 metros. Do outro
lado, um passeio de 2 metros pavimentado com lajetas de
cimento pré-moldado e juntas preenchidas com relva e uma
pequena faixa arborizada. Por fim, note-se o cuidado em
propor espécies autóctones, denotando essa vontade de
integração e respeito pela cultura local.
Tomemos como exemplo uma das casas maiores, a AA3.
Com uma implantação sensível ao terreno, adapta-se ao
desnível, com um piso semi-enterrado e outro ligeiramente
acima da cota de entrada, numa solução parecida com a
adoptada na casa própria de Conceição Silva, no Dafundo,
em Lisboa. A entrada, aberta no interior, mas à cota da rua,
oferece a desejada privacidade, sendo o único contacto com
a rua, já que a casa é toda virada para o jardim, com o piso
da sala em baixo, à cota do jardim e o piso dos quartos em
cima, à excepção da suite principal, que fica também numa
cota ligeiramente abaixo da sala, por baixo do
estacionamento, com a entrada, o único espaço à cota da
rua. O piso inferior, semi-enterrado salvaguarda o contacto
com a terra localizando nesse limite instalações sanitárias,
área de empregada e 3 pátios ajardinados enterrados, à
inglesa, os quais trazem luz à casa de banho e zona de vestir
da suite e à casa de banho e quarto de empregada. Com uma
planta irregular, com o avanço da zona de jantar sobre o
jardim e o recuo da suite, quebra-se a monotonia da fachada,
com um tratamento mais volumétrico. A sala comum é
determinada por zonas bem marcadas, com as refeições num
espaço que invade o exterior e o espaço de estar numa
reentrância, sensivelmente no centro desse piso. Toda
envidraçada, os seus limites expandem-se para o exterior,
com um amplo terraço coberto. Como referido, a suite
principal, na cota mais abaixo e localizada no extremo do
volume, beneficia da máxima privacidade, recuada em
relação à linha de fachada e prolongando-se no exterior a
parede de separação com a sala.
Casa tipo AA3, plantas piso 1 e 0 e cobertura, alçado e corte AB (Pinto, 1979).
Casa tipo B1 perspectivas, plantas piso 0 e cobertura, fachada e corte AB (Pinto, 1979).
Por outro lado, um pátio ajardinado afasta-a do lote
confinante. No piso superior, os três quartos servidos por uma
casa de banho apresentam uma organização mais
convencional ou racional, dispostos em bateria, abrindo-se
para um terraço corrido com a frente envidraçada.
As casas mais pequenas são mais compactas e só possuem
um piso, como a tipo B1. Neste caso e certamente tentando
responder ao propósito de variedade (note-se que não indica
a orientação solar), a sala e a maior parcela de jardim ficam
do lado da rua, com o estacionamento lateral, debaixo da
cobertura que se projecta para também criar um espaço em
alpendre de transição para o jardim em terraço, em frente à
sala envidraçada. A entrada, lateral à sala mas aberta,
permite alguma privacidade. Numa cota ligeiramente acima,
fica a zona de jantar aberta para um pátio interior ajardinado.
Os três quartos, dos quais um de empregada com acesso
pelo exterior, ocupam toda a traseira, também nesse nível
superior, assegurando uma zona mais privada.
As casas oferecem assim sempre variantes, mas todas
apresentam constantes como os generosos alpendres em
frente às salas, confirmando a importância da vida no exterior,
ocupam ainda toda a largura dos lotes, permitindo criar duas
zonas exteriores de cada lado da construção, note-se com as
plantações previstas sempre bem marcadas, tiram partido do
terreno natural com desníveis que garantem zonas distintas e
maior privacidade, entradas abertas às salas mas laterais,
salas comuns mas com a distinção do espaço de estar e do
de refeições, seja por meio de diferentes níveis, seja por
mobiliário ou pelo desenho em planta menos regular. A
privacidade é assim um dos aspectos ao qual se nota que se
deu importância, não desprezível num condomínio em que a
casa garante a reserva de privacidade em contraste com a
vida comunitária na tal zona central que concentra a vida
pública e actividades sociais. Nenhuma dispensa o quarto de
empregada e boas zonas de serviços com espaço exterior
para tratamento de roupas.
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Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975