U N I V E R S I D A D E L U S Í A D A D E L I S B O A Faculdade de Arquitectura e Artes Mestrado Integrado em Arquitectura Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais V. 1 Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite Lisboa Dezembro 2014 U N I V E R S I D A D E L U S Í A D A D E L I S B O A Faculdade de Arquitectura e Artes Mestrado Integrado em Arquitectura Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite Lisboa Dezembro 2014 Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Dissertação apresentada à Faculdade de Arquitectura e Artes da Universidade Lusíada de Lisboa para a obtenção do grau de Mestre em Arquitectura. Orientadora: Prof.ª Doutora Arqt.ª Helena Cristina Caeiro Botelho Lisboa Dezembro 2014 Ficha Técnica Autora Orientadora Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite Prof.ª Doutora Arqt.ª Helena Cristina Caeiro Botelho Título Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Local Lisboa Ano 2014 Mediateca da Universidade Lusíada de Lisboa - Catalogação na Publicação LEITE, Inês de Sousa Gonçalves de Almeida, 1968Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982) : contaminações tropicais / Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite ; orientado por Helena Cristina Caeiro Botelho. - Lisboa : [s.n.], 2014. Dissertação de Mestrado Integrado em Arquitectura, Faculdade de Arquitectura e Artes da Universidade Lusíada de Lisboa. I - BOTELHO, Helena Cristina Caeiro, 1970LCSH 1. Arquitectura - Brasil - Século 20 2. Silva, Francisco da Conceição, 1922-1982 - Crítica e interpretação 3. Universidade Lusíada de Lisboa. Faculdade de Arquitectura e Artes - Teses 4. Teses – Portugal - Lisboa 1. 2. 3. 4. Architecture - Brazil - 20th Century Silva, Francisco da Conceição, 1922-1982 - Criticism and interpretation Universidade Lusíada de Lisboa. Faculdade de Arquitectura e Artes - Dissertations Dissertations, Academic – Portugal - Lisbon LCC 1. NA855.L45 2014 Às minhas filhas Carolina e Sara AGRADECIMENTOS Agradeço a todas as pessoas e instituições que apoiaram ou contribuíram para a elaboração deste trabalho. Em primeiro lugar, naturalmente a Faculdade de Arquitectura da Universidade Lusíada, no seio da qual desenvolvi este estudo. Em particular, a Professora Doutora Arquitecta Helena Botelho, pela orientação científica, essencial para o bom termo deste trabalho. O Professor Doutor Horácio Bonifácio, director da faculdade, que acolheu com entusiasmo este projecto. Catarina Graça, da mediateca, pela prestável ajuda. A família do arquitecto, pelo acesso ao arquivo do Atelier Conceição Silva e informação prestada, nomeadamente João Pedro Conceição Silva e Francisco Manuel Conceição Silva. A filha Paula Conceição Silva e a segunda mulher, Carmo Valente, que contribuíram com vivas memórias do Brasil. Os antigos colaboradores no Rio, pelo seu testemunho, em particular o arquitecto Ricardo Silva Pinto e ainda Luís Pinto da Cunha, filho do sócio José-Augusto Pinto da Cunha. A viúva deste último, Lais Pinto da Cunha, quem enviou alguns elementos, não obstante a distância. Betty Steinberg, encomendadora da casa identificada como “Ronaldo Steinberg” (seu marido) e Carlos Salém, genro de Arthur Kelson, antigo cliente de Conceição Silva. Maria Antonieta Pais de Sousa, filha do amigo Mário Pais de Sousa, ambos no Rio no pós 25 de Abril. O amigo António Guimarães de Andrade e Silva, à época director da Michelin no Rio de Janeiro. José Dias Silva, que amavelmente fez a ponte com a família Steinberg. Os amigos Ana Magalhães, Filipa Vicente, João Pedro Benamor e Maria Pommerenke, pela ajuda e troca de ideias. As minhas filhas Carolina e Sara, pela paciência dispensada em mais um estudo de investigação. APRESENTAÇÃO Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): Contaminações tropicais Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite Este trabalho faz o levantamento e a análise da obra de Francisco da Conceição Silva (1922-1982) no Brasil, entre 1975 e 1982. Na sequência da Revolução Portuguesa de 25 de Abril de 1974, o arquitecto português exila-se no Rio de Janeiro, onde cria um pequeno atelier com José Augusto Pinto da Cunha (1921-2006), vindo de Angola igualmente por razões políticas. Depois de traçar o seu percurso profissional no Brasil, procura-se no primeiro volume entender, numa abordagem mais analítica, como o arquitecto interage com a cultura e contexto brasileiro, ou seja, a resposta dada a um determinado tempo histórico e situação geográfica. O quadro de referências vai nessa época da mais radical Escola Brutalista de São Paulo, dominada por Vilanova Artigas, à nova tendência regionalista que procura uma aproximação ao contexto local, num Brasil à procura de uma nova saída para a crise do Movimento Moderno. Com uma metodologia que atende à circunstância específica de cada encomenda, Conceição Silva revela aqui a sua sensibilidade ao território brasileiro, imprimindo uma identidade local à sua obra. Essencialmente residencial, esta faz a ponte entre modernidade e tradição, reflectindo a própria situação da arquitectura brasileira. O segundo volume apresenta o levantamento das obras realizadas no Brasil em fichas, com descrição detalhada e respectivos elementos gráficos. Palavras-chave: Francisco da Conceição Silva; obra brasileira; Século XX; Rio de Janeiro. PRESENTATION Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): Contaminações tropicais Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite The purpose of this study was to survey and analyse the architectural works of Francisco da Conceição Silva (1922-1982) in Brazil, between 1975 and 1982. Following the Portuguese Revolution of the 25th of April 1975, the Portuguese architect departs to Rio de Janeiro, where he creates a small studio with José Augusto Pinto da Cunha, who came from Angola also due to political reasons. After tracing his professional career in Brazil, in the first volume, we tried to understand in a more analytical way, how Conceição Silva interacted with the Brazilian local culture, this is, how he responded to a determined historical period and geographical situation. The framework of references available went from the more radical Brutalist School of São Paulo, dominated by Vilanova Artigas, to the new regionalist tendency that searched for an approach towards the local context, in a country such as Brazil, looking for an alternative to the crisis of the Modern Movement. With a methodology that takes into account the specific circumstances of each commission, Conceição Silva reveals his sensibility to the brazilian territory, giving a local identity to his work. Mostly residential, his work establishes a link between modernity and tradition, reflecting the situation of the brazilian architecture itself. The second volume presents the survey of the projects realized in Brazil in files, with a detailed description and their respective graphic elements. Keywords: Francisco da Conceição Silva; brazilian work; Twentieth century; Rio de Janeiro. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Ilustração 1 – Vista geral, Hotel do Mar, 2ª fase. (Silva, F. (1), ca.1965). ......... 26 Ilustração 2 - Planta 4º piso, 1ª fase. (Leite, 2007, Volume II ) ......................... 26 Ilustração 3 - Hotel da Balaia (HOTEL, 1970) .................................................. 29 Ilustração 4 - Bloco de apartamentos, Tróia (Ilustração nossa, 2006) .............. 29 Ilustração 5 - Casa José T. da Silva, Seixal (Ilustração nossa, 2007)............... 32 Ilustração 6 – Casa Ribeiro da Cunha, Restelo, (Silva, F. (1), ca. 1960) .......... 32 Ilustração 7 - Conceição Silva com a segunda mulher, Carmo Valente, e a filha, Paula, no Rio. (Silva, P., ca.1978). .................................................................... 33 Ilustração 8 - Folheto do encontro luso-brasileiro de 1972, (Sousa, 2006). ...... 33 Ilustração 9 - Inauguração da Fábrica Sombra, 1977. Conceição Silva e Carmo Valente são os dois penúltimos. (Durães, 2014). .............................................. 37 Ilustração 10 - Conceição Silva, Madalena Chicó e Pinto da Cunha no atelier da Barra. (Silva, J. e Silva, F., 1987, p.168). .......................................................... 37 Ilustração 11 - Novo Atelier na Barra (Silva, J e Silva, F., 1987, p.168)............ 38 Ilustração 12 - Residência Anna Mariani, Ibiúna, de Joaquim e Liliana Guedes (Oliveira, J. 2008). ............................................................................................. 45 Ilustração 13 - Casas Hélio Olga e Baeta, de Marcos Acabaya (Marcos Acabaya Arquitetos, 2014). ............................................................................... 46 Ilustração 14 - Portugal: Casa da Minhoca, Sintra (Ilustração nossa, 2006)..... 47 Ilustração 15 - Hotel do mar, Sesimbra. (Medeiros, 1963). ............................... 47 Ilustração 16 - Casa do Rochedo, Sintra. (Silva, J. e Silva, F., 1987, p.55). ..... 47 Ilustração 17 - Brasil: Casa no Portinho do Massaru. (Silva, J. e Silva, F., 1987, p.175)................................................................................................................. 47 Ilustração 18 – Pátio interior casa em bada Loteamento Poatã, (Pinto, ca.1980). ........................................................................................................................... 47 Ilustração 19 - Casa Coslowsky, (Silva, P e Silva, F, 1987, p173-174)............. 48 Ilustração 20 - Casa do arquitecto Severiano Porto, Manaus, 1971, Severiano Porto. (Guerra e Ribeiro, 2006) ......................................................................... 49 Ilustração 21 - Aldeia infantil SOS, Manaus, e Centro de Protecção Ambiental de Balbina, de Severiano Porto (Baratto, 2014). ............................................... 49 Ilustração 22 – Planta casa desconhecida no Rio e alçado Bar de Praia para o Hotel Ponta Negra no Estado da Bahia (Silva, F. (2), ca.1980). ....................... 51 Ilustração 23 – Corte Bar de Praia para o Hotel Ponta Negra no Estado da Bahia (Silva, J. e Silva, F., 1987, p. 182)........................................................... 51 Ilustração 24 - Restaurante Chapéu de Palha, Manaus, Severiano Porto. ....... 51 Ilustração 25 - Casa do Nilo, Rio de Janeiro, de José Zanine Caldas. ............. 53 Ilustração 26 - casa Thiago de Mello, de Lúcio Costa. ( Colin, 2010). .............. 53 Ilustração 27 - Casa Roberto Milan, São Paulo (1960). (Matera, 2005)............ 53 Ilustração 28 - Casa dos Arcos, Rio de Janeiro (1972-8), de Lelé. (Joana França Fotografia, 2014). .................................................................................. 54 Ilustração 29 - Vila Serra de Amapá, de Oswaldo Bratke. ................................ 55 Ilustração 30 - Residência Paulo Nogueira Neto, de Oswaldo Bratke (Silva, N. 2011).................................................................................................................. 55 Ilustração 31 - Casa do Dafundo (Silva, J. e Silva, F., 1987). ........................... 56 Ilustração 32 - e Casa Ronaldo Steinberg (Silva, J. e Silva, F., 1987, p.171). .. 56 Ilustração 33 - Casa Salik Resner, frente para a rua e Casa Coslowsky, interior (Cunha, 2006). ................................................................................................... 56 Ilustração 34 - Superintendência da zona Franca de Manaus, de Severiano Porto (Andreoli, Forty, 2004). ............................................................................ 57 Ilustração 35 - Fábrica Sombra (Durães, 2014). ............................................... 57 Ilustração 36 - Casa Carlos Royle, Búzios e casa em Taquará, Rio (Silva, F. (2), ca.1980). ..................................................................................................... 58 Ilustração 37 - Fábrica Sombra (Durães, 2014). ............................................... 58 Ilustração 38 - Unicamp, Campinas, de Joán Villà. (Zein, 2014)....................... 58 Ilustração 39 - Casa Telmo Porto, de Vilanova Artigas. (Carrilho, 2014) .......... 61 Ilustração 40 - Residência Martirani, de Vilanova Artigas (Mahfuz, 2006). ....... 62 Ilustração 41 – Residência Martirani, planta piso 0 (Mahfuz, 2006). ................. 62 Ilustração 42 - Casa Canoas, Rio de Janeiro, de Oscar Niemeyer (Guerra, Ribeiro, 2006). ................................................................................................... 64 Ilustração 43 - Residência Waldo Perseu Pereira, São Paulo, Joaquim e Liliana Guedes. (Andreoli, Forty, 2004). ....................................................................... 65 Ilustração 44 - Casa Lota de Macedo Soares, de Sérgio Bernardes. (Cavalcanti, 2009).................................................................................................................. 66 Ilustração 45 - Casa Ronaldo Steinberg, Plantas dos pisos 1 e 2, fachada para a rua e perspectiva. (Silva, F. (2), ca.1980)....................................................... 67 Ilustração 46 - Casa Coslowsky, Planta do piso 0 (Silva, J. e Silva, F., 1987, p.172)................................................................................................................. 68 Ilustração 47 – Casa Coslowsky, exterior (Cunha, 2013).................................. 68 Ilustração 48 - Casa Valadas Fernandes, Cascais. (Leite, 2007, Volume II). ... 69 Ilustração 49 - Casa Resner, planta do piso 1 e perspectiva. (Silva, J. e Silva, F. 1987, ps.186-187).............................................................................................. 70 Ilustração 50 - Vista superior da Casa Ronaldo Steinerg, a última à direita. (Google Inc., 2014) ............................................................................................ 71 Ilustração 51. Casa Steinberg (Silva, J. e Silva, F. 1987, p.169). ..................... 72 Ilustração 52 - Casa Coslowsky, alçado frontal. (Silva, F. (2), ca.1980). ......... 72 Ilustração 53 - Casa Resner, corte EE e alçado para a rua (Silva, F. (2), ca.1980). ............................................................................................................ 72 Ilustração 54 - Casa Coslowsky. (Silva, J. e Silva, P., 1987, ps.172-173). ....... 73 Ilustração 55 - Perspectiva do Loteamento da Cachamorra, Rio de Janeiro (Pinto, 1980). ..................................................................................................... 74 Ilustração 56 Casa Royle, Búzios (Silva, F. (2), ca. 1980). ............................... 74 Ilustração 57 Casa Coslowsky e Casa em Angra dos Reis (Cunha, 2013)...... 74 Ilustração 58 - Casa Conceição Silva, Guincho, Portugal. (Silva, F. (2), ca. 1960).................................................................................................................. 75 Ilustração 59 - Casa Valadas Fernandes, Boca do Inferno (Ilustração nossa, 2007).................................................................................................................. 75 Ilustração 60 – Casa do Dafundo, Planta Piso 1 (Leite, 2007, Volume II)......... 75 Ilustração 61 - Casa própria, Lina Bo Bardi, São Paulo (Andreoli, Forty, 2004)76 Ilustração 62 - Casa Milton Guper, São Paulo, de Rino Levi. ( Andreoli, Forty, 2004, p.157)....................................................................................................... 76 Ilustração 63 - Residência Lota de Macedo, de Sérgio Bernardes. (Kamita, 2013).................................................................................................................. 77 Ilustração 64 - Residência RB, de Lélé. (França, 2014). ................................... 77 Ilustração 65 - Residência José Roberto Filipelli, de Ruy Ohtake. (Correa, 2014) ........................................................................................................................... 77 Ilustração 66 - Residência Gonçalves Dente (Silva, 2011). .............................. 77 Ilustração 67 - Conjunto Cafundá, Rio, Sérgio Magalhães e Ana LuízaMagalhães (Ghione, 2014). ...................................................................... 80 Ilustração 68 - Hotel Méridien, Rio, Paulo Casé. (Barbosa, 2012). ................... 80 Ilustração 69 - Condomínio Nova Ipanema, Rio, Edmundo Musa. (Colin, 2011). ........................................................................................................................... 80 Ilustração 70 - Edifício Rosalina Brand, fachada, plantas do 15º piso e cobertura, Rio (Silva, J. e Silva, F., 1987, ps.180-181). .................................... 81 Ilustração 71 – Edifício Rosalina Brand, vista varanda (Silva, J. e Silva, F., 1987, p.180)....................................................................................................... 82 Ilustração 72 - Edifícios Triomphe e Maison de Mouette, São Paulo, de Ruy Ohtake. (Ruy Othake Arquiteto, 2010). ............................................................. 82 Ilustração 73 - Conjunto das ruas Prof. Castilhos e Prof. Gonçalves, praça interior e planta de conjunto. Rio (Silva, J. e Silva, F., 1987, ps.176-177). ....... 85 Ilustração 74 - Rua Olinda Ellis/João Ellis, conjunto e pátio interior, Rio. (Pinto, ca.1980). ............................................................................................................ 85 Ilustração 75 – Planta de piso e alçado. Lateral Conjunto de Poatã, Rio (Silva, J. e Silva, F., 1987, p179). ................................................................................. 86 Ilustração 76 – Conjunto da Cachamorra, plano director, Rio (Pinto, 1979). .... 87 Ilustração 77. Conjunto Cachamorra, Casa tipo AA3, plantas piso 0 e piso1 (Pinto, 1979). ..................................................................................................... 88 Ilustração 78 - Conjunto Cachamorra, Casa tipo AA3, corte AB (Pinto, 1979). 88 Ilustração 79 - Conjunto Cachamorra, perfil e perspeciva da rua; perspectiva de uma casa tipo (Pinto, 1979). .............................................................................. 88 SUMÁRIO Volume I 1. Introdução ................................................................................................................ 19 2. Percurso. O êxito em Portugal, a resistência no Brasil. ........................................... 25 2.1. Atelier Conceição Silva em Portugal. Singularidades. ...................................... 25 2.2. Um atelier artesanal no Rio de Janeiro. Em prol da sobrevivência. ................. 30 3. Análise à produção. Uma obra carioca. ................................................................... 41 3.1. Entre brutalismo e regionalismo. A tradição recuperada. ................................. 41 3.2. Modos de habitar e propostas espaciais .......................................................... 60 3.3. Da habitação colectiva à escala urbana ........................................................... 78 4. Considerações Finais .............................................................................................. 93 Referências .................................................................................................................. 99 Bibliografia .................................................................................................................. 105 Volume II Fichas de projectos. Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais 1. INTRODUÇÃO Objecto de estudo e objectivos Este trabalho tem dois objectivos principais: em primeiro lugar, levantar e recolher de forma sistematizada a documentação relativa à obra do arquitecto Francisco da Conceição Silva (1922-82) no Brasil1, entre 1975 e 1982; em segundo lugar, analisar essa obra face ao contexto local, situando-a também na continuidade da obra produzida em Portugal. Pretende-se ainda com este estudo dar continuidade a uma dissertação de mestrado sobre a produção do Atelier Conceição Silva, concluída pela autora em 2007 na Universidade Nova, em História da Arte Contemporânea (Leite, Inês, 2007), no âmbito da qual não foi possível cobrir a produção do outro lado do Atlântico. Corresponde à última fase de trabalho do arquitecto, quem veio a falecer no Rio de Janeiro em 1982, aos 59 anos, e cobre todo o período dos quase sete anos de permanência no Brasil. Tomou-se assim como ponto de partida desta dissertação o ponto de chegada do trabalho anteriormente realizado. Ainda considerável, a produção de cerca de duas dezenas de projectos cobre programas como estabelecimentos comerciais, casas unifamiliares, uma fábrica e conjuntos residenciais para os trabalhadores da multinacional Michelin. A intenção inicial era proceder ao levantamento exaustivo dessa obra, o que não foi possível pelo facto de se ter perdido o arquivo do atelier brasileiro e termos de nos cingir, essencialmente, aos elementos encontrados no escritório dos filhos2, em Lisboa. Interessou-nos em particular averiguar as contaminações da arquitectura e do ambiente brasileiros, ou seja a resposta dada por Conceição Silva a um novo contexto, quer físico, quer cultural ou económico-social. E, no sentido contrário, identificar as 1 Conceição Silva tem como sócio, no atelier do Brasil, José Augusto Pinto da Cunha (1921-2006), sendo a autoria dos projectos dos dois arquitetos. Pinto da Cunha é filho de Luís Alexandre da Cunha, antigo director da Escola de Belas Artes de Lisboa, onde se formou em 1954. Instalou-se em Angola em 1955, onde trabalhou na Câmara Municipal de Luanda com Simões de Carvalho, com quem fez o Centro de Radiodifusão de Angola. De nota ainda, a casa própria na Ilha de Mussulo. Em 1975 foi para o Rio de Janeiro onde se juntou a Francisco da Conceição Silva. Em 1982, com a morte deste, manteve atelier com Carmo valente, quem regressou a Portugal em 1983. Em 1989, Pinto da Cunha mudou-se para o Estado da Bahia. Esta informação resulta de uma entrevista por email com a segunda mulher de José Augusto Pinto da Cunha, Lais Pinto da Cunha e de um CV com listagem das obras de Pinto da Cunha. (Cunha, 2013). 2 Os filhos João Pedro Conceição Silva e Francisco Conceição Silva deram continuidade ao atelier de Lisboa, localizado na Rua D. Pedro V. O arquivo do Atelier Conceição Silva aí permanece e inclui cópias de grande parte dos projectos realizados por Francisco da Conceição Silva e José Augusto Pinto da Cunha no Brasil, elementos recolhidos para a exposição do arquitecto na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, em 1987. Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 19 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais contribuições da arquitectura que então se praticava em Portugal - de influência europeia ou Ocidental - para essa produção. Consequentemente, o corpo do primeiro volume não é um somatório de casos de estudo propiciados pelo levantamento da obra ou pela eleição de dois ou três projectos, mas sim a análise dos factores de inclusão ou exclusão desta obra no contexto brasileiro, cruzando um pequeno conjunto de projectos mais significativos com a produção local. Não cronológica mas sim comparativa, essa análise faz um estudo crítico a partir dos aspectos relevantes que explicam as opções de projecto, recorrendo ao paralelo com a produção brasileira. Optou-se assim por uma narrativa temática, apoiada num conjunto limitado de obras mais sintomáticas das preocupações dos arquitectos. Em termos de contextualização histórica, importou-nos inserir a obra dentro do quadro de referências polarizado entre duas posturas extremas - o dominante brutalismo paulista e as correntes regionalistas mais dispersas pelo território brasileiro, focando-nos igualmente em figuras mais marginais com posturas menos classificáveis. Por sua vez, o segundo volume compila em fichas toda a informação – nuns casos mais completa, noutros mais escassa – relativa a todas as obras que conseguimos identificar. Pelo seu desenvolvimento, estas fichas constituem na realidade casos de estudo e serviram de suporte para justificar e construir a narrativa de teor analítico do primeiro volume. A nossa análise conduziu a uma leitura mais interpretativa, reconhecendo-se os riscos de tal abordagem, sendo que este trabalho é uma pesquisa em aberto, que nos propomos mais tarde aprofundar com o conhecimento real da obra in loco. O seu interesse reside também na transformação que um texto com carácter mais ensaístico tem sobre a própria obra. Essa releitura poderá assim dar um novo significado à obra, ultrapassando as próprias intenções de seus autores, até porque acrescenta-lhes a acção do tempo, não só do tempo decorrido, mas também uma visão retrospectiva a partir do tempo presente. Saliente-se a relevância deste trabalho, em primeiro lugar, como acima dito, para completar o estudo sobre a produção de um dos mais importantes arquitectos portugueses das décadas de sessenta e setenta do século XX, quem criou e dirigiu um dos maiores e mais produtivos ateliers do país. Por outro lado, numa altura em que a mobilidade na profissão era reduzida, limitando-se praticamente às então colónias portuguesas, a criação de raiz de um atelier no Brasil, motivada pelo exílio político, Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 20 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais coloca-o numa posição singular e quase única no contexto dos arquitectos portugueses. Salvo raras excepções, como Delfim Amorim (1917-72), quem se estabelece no Recife em 1951, a maioria dos seus colegas também ali emigrados foram trabalhar para ateliers locais e por curtos períodos, não tendo a sua produção a independência autoral da obra de Conceição Silva e Pinto da Cunha. É também de referir o caminho percorrido desde o primeiro trabalho de investigação levado a cabo em 2007, com uma nova formação em arquitectura, possibilitando uma leitura mais aprofundada ou completa da obra de Francisco Conceição Silva. Este trabalho reflecte assim duas visões que se articulam, em função das duas formações da autora, uma contextualização mais apoiada na História e uma leitura mais à luz da prática e fundamentos da arquitectura e das suas questões operativas. Por fim, o significado deste trabalho é tentar perceber qual a relevância da obra de Francisco Conceição Silva no panorama da arquitectura carioca, se teve ressonâncias no seu tempo, ou se, numa visão retrospectiva, lhe caberia um lugar na História da Arquitectura Brasileira. Estado da Arte Sobre a “obra brasileira” de Francisco da Conceição Silva existe apenas o Catálogo geral da exposição retrospectiva patente na Sociedade Nacional de Belas Artes em 1987 (Silva, João Pedro Conceição e Silva, Francisco M. Conceição, 1987) e um artigo publicado pelo arquitecto Henrique Chicó, antigo colaborador do Atelier Conceição Silva (em Lisboa), na revista “Arquitectura”, em 1983, um ano após a morte do arquitecto (Chicó, Henrique, 1983, p-ps. 34 a 45). No catálogo acima mencionado, o qual cobre quase exaustivamente a obra do arquitecto em Portugal e além fronteiras, identificou-se grande parte da produção no Brasil e publicaram-se elementos gráficos, nomeadamente desenhos técnicos e fotografias. Michel Toussaint Pereira, responsável pelo texto de apresentação, aborda sucintamente a fase do Rio, retratando-a como uma das cinco etapas do percurso do arquitecto, caracterizada pelo “retorno ao estirador” (Pereira, Michel Toussaint A., 1987), ou seja uma fase de maior envolvimento de Conceição Silva com o projecto. Henrique Chicó “explica a obra brasileira em continuidade e como resultado de todo o percurso de Conceição Silva em Portugal, salientando essencialmente a criação de percursos, a atenção à topografia e paisagem e o cuidado na pormenorização” (Leite, Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 21 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Inês, 2007, p. XXIV). Como apontado em estudo anterior, “ficaram no entanto por avaliar as contribuições e sugestões do contexto particular brasileiro nesta obra” (Leite, Inês, 2007, p. XXIV), para além da recolha sistematizada da produção e sua análise mais aprofundada, que naturalmente não caberiam a um artigo de revista. Especificamente sobre Francisco Conceição Silva e a sua restante obra, além do catálogo acima citado, existem a dissertação de mestrado da autora3 e uma dissertação de mestrado sobre os prédios de habitação colectiva de Tiago Rodrigues (Rodrigues, Tiago, 2009). De salientar ainda um texto analítico de Paulo Martins Barata na revista “Prototypo” (Barata, Paulo Martins, 2000, p-ps. 38 a 69), o qual enquadra a obra e diferentes fases do Atelier Conceição Silva dentro das correntes arquitectónicas internacionais, sem incluir a obra brasileira. Organização e Metodologia Este trabalho está organizado em dois volumes: um primeiro corpo geral teórico e analítico e um conjunto de fichas individuais de projectos. O texto do primeiro volume estrutura-se em duas partes, a primeira enquadra os antecedentes do Atelier Conceição Silva em Portugal, assim como o percurso traçado no Rio de Janeiro e a segunda parte - o objecto de estudo propriamente dito – consiste na análise à obra de Francisco Conceição Silva e seu sócio José Augusto Pinto da Cunha, dentro do quadro político e cultural brasileiro. A segunda parte divide-se em três capítulos: o primeiro faz o enquadramento mais teórico e histórico, tentando inserir e comparar a obra dos arquitectos com as principais correntes vigentes no Brasil desse período; o segundo capítulo analisa essencialmente três casas unifamiliares de acordo com as suas características compositivas, volumétricas e espaciais, segundo uma organização temática, comparando sempre com projectos de colegas brasileiros; O terceiro capítulo foca-se nas obras de grande escala, a saber os conjuntos residenciais para a Michelin e um prédio de habitação colectiva, separado pela dimensão urbana da intervenção e pelo tipo de programa. Refira-se, em termos biográficos e na análise dos projectos, o enfoque no arquitecto Francisco Conceição Silva, pelo facto de, como já afirmado, este trabalho constituir um complemento a uma dissertação de mestrado anterior e, consequentemente, o 3 Para um conhecimento mais completo sobre as referências ao arquitecto e sua obra na historiografia portuguesa veja-se o sub-capítulo “0-3 O estado da Arte”, assim como as fichas de projectos do Volume II, em Inês Leite, 2007, p-ps XXI a XXV e Volume II. Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 22 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais conhecimento mais profundo da sua obra. Sublinhe-se no entanto novamente que os dois arquitectos eram sócios, formalmente ou não, não sendo possível com rigor individualizar a contribuição de cada um. Ressalve-se ainda que José Augusto Pinto da Cunha terá igualmente uma sólida produção em Angola, infelizmente nunca estudada e, uma vez que não nos cabe, no âmbito deste trabalho, realizar esse estudo, não nos foi possível fazer a ponte entre esta obra e aquela que agora se apresenta. O segundo volume consiste numa compilação sistemática de fichas individuais de projectos, resultado do levantamento da obra. De fácil consulta, procedem à descrição detalhada de cada obra na medida das possibilidades da informação disponível, constituindo-se na maioria das vezes, casos de estudo. Sintetizam ainda a informação geral, como datas de projecto, encomendadores, bibliografia, e apresentam os elementos gráficos sobre cada projecto, nomeadamente desenhos técnicos e fotografias. Esta recolha não foi exaustiva quanto ambicionávamos, devido à falta de elementos disponíveis. Em termos metodológicos, o trabalho partiu da recolha dos elementos primários, principalmente os projectos que se encontram no arquivo do Atelier Conceição Silva, em Lisboa, hoje dirigido pelos filhos do arquitecto. Infelizmente, os desenhos técnicos encontram-se muito incompletos, não possuem memórias descritivas, por vezes não têm moradas ou estas já não têm a mesma designação. Não obstante foi na maioria dos casos sido possível localizar as obras com a colaboração das pessoas entrevistadas ou através de pesquisas no Google Earth. Por sua vez, após a morte de Conceição Silva em 1982, o arquivo original do atelier comum com Pinto da Cunha ficou no escritório deste último e a sua viúva, Lais Pinto da Cunha, acabou por desfazer-se dos desenhos devido à falta de espaço. Na impossibilidade de num tão curto espaço de tempo nos deslocarmos ao Brasil, seja para proceder à desejável consulta aos arquivos da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, seja para a visita aos imóveis, tivemos de nos cingir às cópias de projectos do atelier Conceição Silva filhos, peças usadas na exposição de 1987, e a uma listagem de projectos integrada no CV de Pinto da Cunha, dispensada por Lais Pinto da Cunha. O antigo colaborador, Ricardo Silva Pinto, forneceu ainda o projecto completo do Loteamento da Cachamorra. Tivemos igualmente acesso às fotografias do Atelier Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 23 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Conceição Silva usadas na exposição de 19874 e a outras de José Augusto Pinto da Cunha, fornecidas por Laís Pinto da Cunha, assim como a registos de Ricardo Silva Pinto, tirados quando trabalhava no atelier. Por outro lado, foram realizadas entrevistas pessoais ou por email, com pessoas que trabalharam ou conviveram directamente com os arquitectos – os antigos colaboradores Ricardo Silva Pinto, quem esteve mais tempo no atelier brasileiro, Luís Pinto da Cunha, filho de José Augusto Pinto da Cunha; Carmo Valente, a os clientes Betty Steinberg (mulher de Ronaldo Steinberg), Carlos Salém, genro de Arthur Kelson; os amigos António Guimarães de Andrade e Silva, director da Michelin, e Maria Antonieta Paes de Sousa, filha do amigo e cliente Mário Paes de Sousa. A família também trouxe algumas informações, nomeadamente os filhos João Pedro Conceição Silva, Francisco Conceição Silva, e Paula Conceição Silva. Importa também realçar a escassez historiográfica sobre as décadas de setenta e oitenta do século XX - um período demasiado recente da arquitectura brasileira agravada ainda por uma visão de certo modo hegemônica da corrente moderna filiada na obra de Corbusier e, em particular neste período, na “escola brutalista de São Paulo”. Começa apenas agora a esboçar-se uma história paralela que resgata um conjunto de actuações mais individuais e dispersas, mas não menos importantes, no seio das quais poderíamos enquadrar a obra deste atelier. Fomos assim forçadas a uma pesquisa e síntese a partir de várias fontes sem haver ainda uma reflexão aprofundada sobre o período, sendo o conhecimento ainda fragmentado e pouco sistematizado. Manuais panorâmicos de referência como o de Segawa (Segawa, Hugo, 1999) perdem a objectividade e tratam de forma menos estruturada o período pós 1964, como o próprio autor alerta na introdução. Não sendo essa síntese o nosso objecto de estudo, tivemos de proceder igualmente a uma análise microscópica, vendo trabalhos de arquitectos brasileiros caso a caso e em função das disponibilidades monográficas, assumindo o risco de alguma imparcialidade. O objectivo final foi inserir a obra dos dois arquitectos portugueses no debate cultural arquitectónico sobre o Rio, num certo recorte da geografia e da história. 4 Estas foram tiradas pelo filho João Pedro Conceição Silva, numa viagem ao Rio em 1980, e pelo antigo colaborador, Henrique Chicó, quem visitou o arquitecto cerca de um ano antes. Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 24 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais "[...] É como se dissessem, pela média façam isso: um templo de planta circular, a Deusa Diana em estilo Jônico, com as elevações feitas com a sombra projectada a 45 graus, uma coisa incrível, alguns exercícios eram assim. Mas, só pra você ter uma ideia, entre as ordens gregas, eu inventei uma ordem brasileira onde haviam macacos, bananas, tudo assim e passou. Os colegas gostavam muito e eu acredito que o Cristiano sorriu muitas vezes pra mim por causa disso. Aí eu fiz perfeitamente, de longe você não percebia o que era, porque estava bem acabado como era de esperar, um templo qualquer onde havia frontão, mas se aproximando você via que a alegoria toda era feita na base do macaco, carro de boi, 5 Monteiro Lobato" (Matera, ano, p. 27) 2. PERCURSO. O ÊXITO EM PORTUGAL, A RESISTÊNCIA NO BRASIL. 2.1. ATELIER CONCEIÇÃO SILVA EM PORTUGAL. SINGULARIDADES. Uma breve contextualização do Atelier Conceição Silva torna-se necessária para perceber em que condições o arquitecto chega ao Rio6. Interessa sobretudo entender as singularidades do atelier lisboeta - singularidades estas que lhe terão dado a medida das suas ambições no Brasil -, assim como sintetizar o legado de referências e conhecimento que serviram de base à actividade no novo contexto. Trata-se assim do património imaterial que Conceição Silva leva consigo, numa dura “jornada” em que não beneficia de qualquer suporte financeiro, já que parte literalmente com “uma mão à frente e outra atrás”. 5 Paulo Mendes da Rocha, a propósito do ensino acadêmico na Mckenzie, São Paulo. (Apud Matera, 2005 p.27). 6 A evolução pormenorizada do Atelier Conceição Silva é traçada na dissertação já citada da autora. Resumem-se aqui os aspectos mais marcantes, que justificaram uma posição inovadora no quadro da profissão ou da produção. Para uma leitura detalhada da obra em Portugal ver Inês Leite, 2007. Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 25 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Ilustração 1 – Vista geral, Hotel do Mar, 2ª fase. (Silva, F. (1), ca.1965). Ilustração 2 - Planta 4º piso, 1ª fase. (Leite, 2007, Volume II ) Após uma primeira década de actividade sobretudo marcada pela encomenda de residências unifamiliares, é o Hotel do Mar (1960-63, primeira fase) que coloca Conceição Silva na ribalta, não só pelo sucesso que esta pequena unidade hoteleira de luxo tem junto da elite burguesa (e igualmente internacional), mas também pelas suas qualidades arquitectónicas, que justificam a sua publicação e destaque em várias revistas e livros da especialidade portugueses e estrangeiros7. O Hotel do Mar é reconhecido pela historiografia como um marco no panorama da arquitectura portuguesa e apontado como um dos - senão o - projecto que mais marcou a carreira do arquitecto. Contemporâneo ao Inquérito à Arquitectura Popular (1955-61), numa altura em que se debatia o esgotamento da ortodoxia do movimento moderno e que se procuravam formas operativas de uma aproximação às culturas locais, o Hotel do Mar constitui-se como uma resposta prática às reflexões teóricas, uma bem lograda contextualização ou “mediterranização” do moderno, com recurso a técnicas e materiais vernaculares sem perder as lições da arquitectura moderna. A sensibilidade demonstrada na implantação em socalcos adaptada à forte pendente, na inflexão do edifício em função do terreno, na composição dos volumes de repetidas células cúbicas (os quartos), revelam uma nova preocupação com a integração na paisagem. Mas também a visão global e sistémica do projecto, com o desenho exaustivo até ao mobiliário e aos arranjos exteriores, fazem-no figurar como uma das primeiras obras portuguesas neo-organicistas, com influências quer do empirismo escandinavo, quer através da recuperação da obra do então recém falecido Frank Lloyd Wright (18671959). O Hotel do Mar revela de forma significativa uma preocupação que permanecerá ao longo de toda a vida de Conceição Silva: participar no debate internacional sobre a evolução da arquitectura, não com uma reflexão teórica – o 7 A título de exemplo, foi publicado na Arquitectura nº80, Dezembro de 1963 e na DBZ nº7, Julho de 1970. Para mais informações e uma listagem bibliográfica completa ver a ficha do Hotel do Mar em Inês Leite, 2007, Volume II. Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 26 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais arquitecto não deixou significativa produção escrita – mas sobretudo com a prática, com a obra construída, já que, como defendia, esse é o fim último do arquitecto. O Hotel do Mar será o primeiro de um vasto conjunto de projectos turísticos que irão marcar a carreira do arquitecto - muitos não construídos - fazendo-lhe receber, a título póstumo, em 1987, a Medalha de Mérito Turístico atribuída pela Direcção Geral do Turismo, no mesmo ano em que a Sociedade Nacional de Belas Artes, da qual foi presidente entre 1963 e 1970, lhe organizava uma exposição antológica. O seu êxito e visibilidade são igualmente ligados à realização de outras unidades hoteleiras, numa altura de grande crescimento do sector do turismo em Portugal. A nova escala da encomenda permite a Conceição Silva a afinação do ponto de vista da organização e metodologia de trabalho de um atelier de arquitectura, inovadoras e únicas em Portugal, sintetizando quer influências da Bauhaus, quer modelos americanos ligados à gestão de grandes gabinetes de projecto. É com o projecto do Plano de Expansão Turística da Praia Maria Luiza (1964/67, Albufeira), no qual se integra o Hotel da Balaia (1965-67 primeira fase), e para o qual convida a associar-se o colega Maurício Vasconcelos, que o arquitecto vai delinear um tipo de organização que o poderia colocar na vanguarda europeia. A real eficácia do atelier, a qual visava uma resposta célere às encomendas e uma boa alocação de recursos, permitiu-lhe não só a angariação e fidelização de vários clientes, como também alargar o leque de responsabilidades a actividades que até agora não cabiam na profissão, como são exemplo a construção ou até a delineação de estratégias comerciais para os empreendimentos dos seus clientes. Para além de equipamento de ponta, como um dos primeiros computadores num atelier de arquitectura e programas como o “Sistema de Pert” para controlar a gestão de projecto, a grande inovação que tentará ser seguida por outros gabinetes portugueses, mas sem nunca conseguir a abrangência e nível de eficácia do Atelier Conceição Silva (refiram-se nomeadamente, os GAP, de Maurício de Vasconcelos e o de Tomás Taveira, ex-sócio o primeiro e antigo colaborador o segundo), consiste na organização da actividade em vários departamentos complementares, desde a arquitectura, estruturas, desenho de equipamento (onde estiveram o designer Eduardo Afonso Dias e a arquitecta Carmo Valente), artes plásticas e cor (com o pintor Rolando Sá Nogueira) etc. Para além das áreas nucleares, os arquitectos contavam ainda com o apoio de uma boa biblioteca sempre actualizada com as últimas revistas e livros nacionais e internacionais da especialidade, fotógrafa residente (Luísa Flores), boas condições físicas de trabalho e salários, entre outras condições raras na profissão. Aparentemente único, o atelier Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 27 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais teve como residente um poeta – Herberto Helder, que tinha direito a uma sala com uma privilegiada vista sobre Lisboa para melhor cumprir as suas funções – a participação nalguns projectos, como na loja da Valentim de Carvalho em Cascais e ainda a original tarefa de inspirar o processo criativo dos colaboradores. O Atelier Conceição Silva foi na realidade um dos gabinetes de referência a partir de meados da sessenta e durante uma década até à revolução de 25 de Abril de 1974, tendo, um ano mais tarde e com a saída do arquitecto, sido tomado pelos trabalhadores, à semelhança de muitas empresas em Portugal. Com uma quantidade notável de encomendas, métodos inovadores, boas condições de trabalho, uma preocupação constante na renovação da arquitectura e uma resposta qualificada à encomenda, acabou por ser como uma “escola” para várias gerações de profissionais. Conceição Silva tinha uma visão democrática da profissão, a qual privilegiava a equipa e não o indivíduo, o mérito e não a proveniência social. A arquitectura e a Arte em geral eram, em boa verdade, os seus principais interesses. Um entusiástico empreendedor com uma visão progressista, interessava-se por tudo o que era inovador, e à medida que a actividade ia crescendo, foi levado a investir em outras áreas como a rádio, publicidade, lojas de design, galerias de arte, entre outros. O dinheiro canalizado dessas e outras actividades servia para suportar o pouco rentável atelier de projecto. O Hotel da Balaia sintetiza e ilustra a visão do arquitecto de obra global e a sua capacidade de resposta fomentada pela boa organização do atelier. Conceição Silva expande aqui a experiência do Hotel do Mar, desenhando até aos menus do restaurante, encomendado as obras de arte e responsabilizando-se pela construção. O Hotel é entregue chave na mão, dentro do prazo previsto, com um nível de pormenorização e uma qualidade de construção difícil de igualar. Numa altura em que as relações entre cliente e projectista eram difíceis, Conceição Silva defendia o controle de todo o processo pelos arquitectos, desde a concepção à obra construída, chegando ao limite de criar uma construtora, a qual será responsável, entre outras obras, pelas Torres de Alfragide e pelo conjunto turístico de Tróia. Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 28 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Ilustração 3 - Hotel da Balaia (HOTEL, 1970) Ilustração 4 - Bloco de apartamentos, Tróia (Ilustração nossa, 2006) A análise dos projectos hoteleiros ao longo do tempo é também reveladora dessa procura incessante de actualização no que diz respeito às correntes arquitectónicas, repercutindo ensaios nas casas de habitação unifamiliar, que Conceição Silva nunca deixou de projectar. Se na primeira fase do Hotel da Balaia ainda se fazem sentir as influências de revisão do moderno orientadoras do Hotel do Mar, já na segunda fase (1971-73), concomitante com vários conjuntos para a vila de Sesimbra e com a casa própria no Dafundo, começa a evidenciar-se o alinhamento com o brutalismo inglês, influência essa incontornável em Tróia, fazendo neste último caso lembrar obras dos arquitectos ingleses James Stirling (1926-1992) ou do casal Alison (1928-1993) e Peter Smithson (1923-2003). Como veremos na segunda parte deste trabalho, a produção brasileira vai reflectir os alinhamentos da obra portuguesa, mas com uma liberdade próprias de uma obra madura e com incorporações locais que demonstram um pensamento independente. O Movimento Moderno, a arquitectura vernacular, o empirismo escandinavo, o organicismo “whrigtiano” ou o Brutalismo são um leque de referências que constituem o património imaterial ao qual o arquitecto recorre espontaneamente e sem antagonismos, no contexto brasileiro. Tão naturalmente quanto é verdade que o contexto brasileiro é ele próprio contaminado por estas influências que incorpora e transforma na sua assimilação. Importa assim ao arquitecto ver a arquitectura como a resposta a um conjunto complexo de problemas, tomando em consideração programa, história, geografia, contexto físico e social, e não a adesão a modas efémeras sustentadas em imagens de modernidade. Embora tímido e pouco sociável, Francisco da Conceição Silva era de um dinamismo e entusiasmo que o levaram a participar em inúmeros projectos artísticos, desde o desenho e a exposição de móveis, a criação de cenários de teatro (para a sociedade Guilherme Cossoul), a organização de exposições de Artes Plásticas, ou a fundação Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 29 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais da Sociedade de Gravura; como já referido, foi presidente da Sociedade Nacional de Belas Artes na década de sessenta - refira-se numa altura em que a instituição era uma referência de primeira linha na divulgação das artes em Portugal -, dirigente do Sindicato Nacional dos Arquitectos (correspondente à actual Ordem), participando activamente na organização e defesa da profissão. Nada o vergava, nem mesmo o desalento com que foi para o Brasil e os obstáculos que aí encontrou. Pouco antes do 25 de Abril, não só como sinal de adesão a novos conceitos de gestão, mas também com uma visão democrática da profissão que privilegiava a equipa e não o indivíduo, Conceição Silva distribui parte do capital da sociedade pelos seus principais colaboradores, não exclusivamente arquitectos. No seu tempo, a acção do arquitecto não teve o merecido reconhecimento. O clima político era tenso, as discussões e clivagens no seio da profissão agudizavam-se e o atelier com características empresariais e com uma clientela considerada “capitalista” acabou por colocar-se no cerne do debate em torno dos ateliers/empresas, no quadro da crescente politização da sociedade portuguesa e a militância dos arquitectos em particular, neste período que antecede a revolução. É no entanto importante deixar claro que Conceição Silva, não sendo um activista político, era contra a ditadura e as suas simpatias iam também, à semelhança dos colegas que lhe apontavam o dedo, para as fileiras de esquerda. Foi frustrado com o rumo político caótico que o país tomou e amargurado com as insurreições dos colaboradores mais radicais – alguns antigos “protegidos” do arquitecto que acolhia membros clandestinos do Partido Comunista e apoiava financeiramente os mais necessitados quando lhes reconhecia o mérito profissional que Francisco da Conceição Silva auto exilou-se no Brasil para nunca mais regressar8. 2.2. UM ATELIER ARTESANAL NO SOBREVIVÊNCIA. RIO DE JANEIRO. EM PROL DA Francisco da Conceição Silva refugia-se no Brasil em 1975, após sofrer um atentado à porta da sua casa no Dafundo, em Lisboa. Desconhecem-se as razões que moveram dois indivíduos a golpearem-no com uma matraca, do que resultou a sua hospitalização durante mais de uma semana. Havia então rumores de que o arquitecto corria risco de vida ou poderia ser preso. Uma semana depois de sair do hospital, sem 8 Para mais informações sobre o arquitecto Francisco da Conceição Silva, a sua obra ou a organização do atelier, consulte-se Inês Leite, 2007. Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 30 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais nunca voltar ao atelier entretanto tomado pelos trabalhadores, numa atribulada jornada, com a sua segunda mulher, Carmo Valente (1930-2011), e a filha, conduzidos de carro pelo pai da primeira, atravessam a fronteira rumo a Espanha. Ao fim de mês e meio escondidos em Madrid, a 15 de Março de 1975, voam para o Brasil e instalam-se no Rio de Janeiro9. O Brasil não lhe era desconhecido, já antes fizera uma viagem para participar num encontro sobre as relações económicas luso-brasileiras inserido num grupo organizado pelo amigo Mário Pais de Sousa (1925-2002) 10 , de 2 a 10 de Dezembro de 1972, a São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Embora com fins principalmente comerciais - Conceição Silva representava então a Sociedade Turística da Ponta do Adoxe, empresa que explorava os overcrafts que faziam a ligação da Península de Tróia a Setúbal -, o arquitecto aproveita a viagem para ver arquitectura, em particular a capital brasileira11. A Moderna Arquitectura Brasileira tinha sido uma importante referência para Conceição Silva, tal como para os seus pares, no início de carreira, em particular no final da década de quarenta e início de cinquenta, numa altura em que tentavam introduzir as correntes progressistas internacionais entre nós, em reacção às imposições oficiosas de cariz tradicionalista do Estado Novo. As ressonâncias internacionais da moderna arquitectura brasileira e de figuras como, entre outras, Lúcio Costa (1902-1998), Oscar Niemeyer (1907-1912), legitimavam então a sua “apropriação” por parte dos colegas portugueses. Estes, para além de terem acesso às revistas estrangeiras, algumas com números monográficos a louvar a liberdade de além Mar (como a Architecture d’Aujourd’hui 13-14, de 1947, e o nº42-43, de 1952) ou o catálogo Brazil Builds da célebre exposição no Moma de 1943 (Goodwin, Philip, 1943), ainda tiveram a ocasião de ver mais de perto nas mostras promovidas em Lisboa, nomeadamente, em 1948, no Instituto Superior Técnico de Lisboa e, em 1953, a “Exposição de Arquitectura Contemporânea Brasileira», na SNBA em homenagem a Lúcio Costa. Numa altura em que, a nível internacional, se esgotava a ortodoxia moderna dita internacional (nomeadamente nos encontros e reflexões como o CIAM) e 9 De acordo com Carmo Valente, Conceição Silva foi convidado a ir para França, mas preferiu o Brasil, “país que admirava”. Foi também convencido pelo irmão do seu amigo de juventude Francisco Marques, quem lá residia. (Valente, 2006). Data de viagem fornecida pela filha, Paula Conceição Silva (Silva, P. 2006). 10 Mário Pais de Sousa, advogado e Ministro do Interior de Salazar era um dos principais amigos de Francisco da Conceição Silva, refira-se, não obstante as posições políticas antagónicas. 11 De acordo com testemunho pessoal de Maria Antonieta Pais de Sousa, filha de Mário Paes de Sousa, quem também participa na viagem. Segundo relatou, Conceição Silva fez uma visita guiada ao grupo em que explicou detalhadamente os princípios urbanísticos do plano de Lúcio Costa e demonstrou um vasto conhecimento sobre a arquitectura brasileira contemporânea (Sousa, 2006). Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 31 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais se buscavam novos modelos ou metodologias, a arquitectura moderna do outro continente aparecia como o último fôlego do Movimento Moderno, ou explanava afinal as suas possibilidades de migração e adaptação, em versões tropicais. As primeiras obras do arquitecto são assim claramente influenciadas pela Moderna Arquitectura Brasileira, ela mesmo filiada na obra “corbusiana”, como por exemplo a casa Ribeiro da Cunha no Restelo, ou a casa A. Silva e Silva, no Seixal (ambas de1952-55) ou na Casa das 3 Marias, em Cantanhede (1955-57). Ilustração 5 - Casa José T. da Silva, Seixal (Ilustração nossa, 2007) Ilustração 6 – Casa Ribeiro da Cunha, Restelo, (Silva, F. (1), ca. 1960) Deixando para trás um dos maiores ateliers do país, um pequeno grupo de empresas desde o início da década de setenta, embora agora de insustentável gestão devido aos tumultos gerados por alguns trabalhadores, o arquitecto vai para o novo mundo praticamente de bolsos vazios, atravessando a fronteira com algumas notas escondidas nos sapatos (Silva, P. 2006). Eram poucos os contactos que lhe pudessem valer. Tinha conhecido Oscar Niemeyer, numa estadia em que este fizera em Portugal e em que o arquitecto brasileiro chegou a jantar na casa do Dafundo (Valente, 2006). Carmo Valente recorda-se ainda de terem visitado o atelier do mestre brasileiro, a convite deste, e de haver a hipótese, nunca concretizada por falta de vontade por parte de Conceição Silva, de trabalhar no gabinete de outro arquitecto brasileiro12. A sua notoriedade em Portugal, que nunca passara as fronteiras, pouco lhe valera num contexto com afinal maior tradição de arquitectura moderna e uma mão cheia de profissionais de renome internacional. O único bem que conseguira enviar de Portugal, um Jaguar que tencionava vender para ajudar ao sustento, acabou por nunca sair da alfândega face às exigências burocráticas. Os primeiros meses foram de uma “enorme 12 Carmo Valente não se recorda qual. Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 32 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais violência”13, pese embora a solidariedade dos conterrâneos instalados há mais tempo no Brasil e da visita de alguns amigos que traziam o pouco produto dos bens vendidos em Portugal (Silva, P., 2006). Após umas semanas na pensão indicada pelo irmão de Francisco Marques (Velente, 2006), ficaram um par de meses num pequeno andar de dois quartos na Rua Visconde de Pirajá, em Ipanema, partilhado com outras famílias de portugueses14, conseguindo depois alugar um T2, na Avenida Atlântica, em Copacabana. Só mais tarde, em 1979, compraram um pequeno mas agradável15 T2 na Rua Barão da Torre, numa rua de segunda linha de Ipanema em relação ao mar. Ilustração 7 - Conceição Silva com a segunda mulher, Carmo Valente, e a filha, Paula, no Rio. (Silva, P., ca.1978). Ilustração 8 - Folheto do encontro luso-brasileiro de 1972, (Sousa, 2006). Em termos profissionais, no arranque, Conceição Silva só conseguiu alugar um estirador no atelier de um arquitecto brasileiro, no Morro de Santa Teresa16, onde projectou as primeiras obras. Relata o antigo colaborador Ricardo Silva Pinto que os colegas do atelier do arquitecto brasileiro comentavam que “estava ali um português 13 Nos termos de Paula Conceição Silva, quem refere que levaram sempre uma vida com muitas privações no Brasil: “vivemos com dificuldades, nunca viajávamos, só fomos a Minas Gerais de carro, uma vez. Todos os gastos eram controlados, não íamos ao restaurante, não era uma vida folgada”. (Silva, P. 2006). 14 Paula Conceição Silva refere serem cerca de15 pessoas no total e estar também a família do engenheiro Fernando Ferreira dos Santos, quem trabalhava antes em Portugal na Câmara de Oeiras. (Silva, P., 2006). 15 Segundo António Guimarães de Andrade e Silva, amigo de Conceição Silva, quem viveu no Rio na mesma época e foi diretor da Michelin. Conheceram-se através dos filhos que andaram juntos no liceu francês Charles Lepierre, em Lisboa, e reencontraram-se no Rio, no Liceu francês Molière. As respectivas famílias eram ambas da Beira, o que fortaleceu os laços de amizade. (Silva, A., 2006) As moradas e datas foram fornecidas pela filha Paula Conceição Silva. 16 O Morro de Santa Teresa é uma zona do Rio num cabeço, nessa altura caracterizada por moradias de finais do século XIX, início de XX da pequena burguesia, bairro pitoresco e tradicional onde na actualidade se instalaram muitos ateliers de artistas. Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 33 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais que desenhava muito bem”17. Nos primeiros tempos apoiou-se no escasso grupo de relações pessoais, nomeadamente, mais uma vez, no inseparável amigo Mário Pais de Sousa, quem abandonara o país um pouco depois, em Julho de 197518 e vai para o Brasil em parte contaminado pelo entusiasmo de Conceição Silva. Sendo complicado estabelecer-se como advogado no Brasil, Pais de Sousa vai dedicar-se à promoção imobiliária, actividade que já desenvolvia paralelamente em Lisboa. Para o efeito, cria uma sociedade com vários investidores portugueses, a qual adquire, de maior envergadura, uma grande fazenda a 40 km do centro do Rio, o “Recreio dos Bandeirantes”, na Vargem Grande, para lá do autódromo de Jacarépaguá e faz também o condomínio Portinho do Massaru, em Itanhangá, com o brasileiro Arthur Kelson. Pais de Sousa, que realizara várias obras em Portugal com desenho de Conceição Silva (recuperação da casa de família em Santa Comba Dão, prédio na esquina da Rua Marques de Portugal e da Imprensa Nacional, Torres de Alfragide, ambos em Lisboa, Complexo Turístico de Tróia, entre outros) entrega assim vários projectos ao arquitecto ou recomenda-o a outros clientes. Entre outros, a remodelação do escritório no Rio de Janeiro, um grupo de cinco casas (apenas uma terá sido construída) no Alto da Boavista, três casas no Condomínio Portinho do Massaru, a antiga casa antiga da fazenda do Recreio dos Bandeirantes e um loteamento de moradias para esta propriedade, o qual, infelizmente nunca logrará o aval das autoridades municipais (Sousa, 2006). Mais tarde, Pais de Sousa cria uma carpintaria - o Galpão, na fazenda do Recreio dos Bandeirantes (Sousa, 2006) - para a construção civil e nomeadamente fornecer as obras de Conceição Silva, quem empregará estruturas de madeira em larga escala nas obras brasileiras. Em finais dos anos setenta a família Pais de Sousa regressa a Lisboa mas mantém os negócios no Rio com estadias intermitentes (Sousa, 2006). Uns meses depois de Conceição Silva19, chega ao Rio de Janeiro José Augusto Pinto da Cunha (1921-2006), arquitecto vindo de Luanda, Angola, que tinha em comum uma obra moderna de qualidade com grande preponderância de casas de habitação unifamiliares para a alta burguesia angolana, tal como Conceição Silva nas décadas de cinquenta e meados sessenta em Portugal (no final de sessenta e setenta o turismo 17 De acordo com Ricardo Silva Pinto, arquitecto que trabalhou, ainda estudante, vários anos no atelier de Conceição Silva e Pinto da Cunha. A então mulher, Maria Cândida, arquitecta que trabalhava então no atelier brasileiro onde Conceição Silva tinha o estirador, relatou o episódio (Pinto, 2013). 18 De acordo com a filha Maria Antonieta Pais de Sousa, avisaram-no que iria ser preso e fugiu de comboio por Madrid, onde ficou dois meses antes de ir para o Rio de Janeiro (Sousa, 2006). 19 No currículo de Pinto da Cunha consta como data de início da atividade no Brasil, Setembro de 1975 (Cunha, 2013). Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 34 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais e o urbanismo ganham maior peso). Segundo testemunho de Carmo Valente, o amigo comum e sócio de Conceição Silva em Portugal de 1965-67, Maurício de Vasconcellos, recomendara Pinto da Cunha a Conceição Silva, quem lhe propôs sociedade, dado o pouco trabalho que teria para lhe oferecer (Valente, 2006). Porém, aos poucos, o arquitecto começa a estabelecer alguns contactos possivelmente inicialmente com Mário Paes de Sousa, quem se liga à comunidade judaica instalada no Rio, da qual são oriundos os principais clientes do arquitecto20. O advogado português fora por sua vez ajudado na sua estadia no Rio por Maercio Lemos de Azevedo, administrador da Sóltroia em Portugal em representação do banqueiro brasileiro Walter Moreira Salles, ou possivelmente por este último também21. E é através de Pais de Sousa que Conceição Silva conhece o judeu Arthur Kelson22, projectando para a sociedade, detida pelos dois, três casas no condomínio Portinho do Massaru23, das quais se realizará apenas uma. Outra pessoa que o introduz na comunidade judaica é o economista e jornalista Leonardo Ferraz de Carvalho, um dos seus amigos incondicionais no Rio e igualmente grande amigo de Pais de Sousa, que como ele emigra no pós 25 de Abril. Leonardo Ferraz de Carvalho dirigia então a área não financeira do grupo Espírito Santo (este possuía investimentos como uma fábrica de plásticos) e tinha boas relações profissionais e pessoais, nomeadamente com Ronaldo Steinberg, também um dos primeiros clientes do arquitecto24. Quando as encomendas o permitem, os dois sócios arrendam um escritório em Humaitá, ao pé da Lagoa Rodrigo de Freitas, uma singela casa geminada das primeiras décadas do século XX, numa artéria arborizada desse bairro de média burguesia. Os arquitectos partilhavam uma das duas salas do rés-do-chão, 20 Segundo Carmo Valente, “tinha contactos de Tróia, com uma pessoa que era dona de um banco e tinha o terreno onde se fez Tróia. Depois houve outros brasileiros que conhecemos lá que sabiam que ele era um arquitecto muito bom por causa de saberem do trabalho de Tróia” (Valente, 2006). 21 Refere Maria Antonieta Paes de Sousa, quem trabalhava com o pai Mário Pais de Sousa, que a Soltróia constitui-se nos anos sessenta do século XX como uma sociedade de capital luso-brasileiro para adquirir os terrenos de Tróia aos irmãos Narciso. Eram sócios o banqueiro brasileiro Walter Moreira Salles, Pais de Sousa (administrador da empresa) e o Coronel Branquinho. Em 1966, após limpar os terrenos das barracas clandestinas, a Ponta do Adoxe (ponta Norte por onde se começou a primeira fase) é vendida à Torralta (Sousa, 2006). Por sua vez, Carmo Valente recorda-se de um acionista de um banco que era um dos proprietários dos terrenos de Tróia e que tinha contactos no Rio, que terá introduzido o arquitecto aos primeiros clients (Valente, 2006). 22 Maria Antonieta Pais de Sousa refere que o seu pai conhecia Arthur Kelson provavelmente através de Maércio Lemos de Azevedo (Sousa, 2006). 23 A localização da casa de Arthur Kelson foi fornecida pela sua filha, Marion Kelson (Kelson, 2013). 24 Refere Betty Steinberg, mulher de Ronaldo Steinberg: “o que talvez tenha feito Ronaldo e eu irmos adiante com a consulta foi o fato termos laços de amizade e trabalho com o economista Leonardo Ferraz de Carvalho (falecido prematuramente) e com o engenheiro João Antas ambos emigrados depois da revolução” (Steinberg, 2013). Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 35 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais trabalhando na outra José Luís Pinto da Cunha, filho de José Augusto Pinto da Cunha, e Ricardo Silva Pinto, ambos estudantes de arquitectura na Pontifica Universidade Católica (PUC)25. Entre estas ficava uma zona de estar e de leitura com livros e revistas. No andar superior, havia uma sala para Carmo Valente, que trabalhava de forma independente na área de interiores, e outra para o engenheiro português Américo Trindade, responsável pelos projectos de estabilidade dos edifícios mais complexos, sendo os outros realizados por um gabinete de arquitectos brasileiros (possível no Brasil até determinada complexidade). Para além dos dois sócios, os dois estudantes serão toda a equipa do atelier durante estes cinco primeiros anos de actividade. Segundo Ricardo Silva Pinto, os meios eram poucos e trabalhava-se muito. Tal como no atelier de Conceição Silva em Lisboa, seguia-se uma rigorosa disciplina, exigindo-se esforço e dedicação. Conceição Silva e Pinto da Cunha chegavam de manhã pelas 8h30 e trabalhavam afincadamente com apenas meia hora de almoço até às 19h30. Ricardo Silva Pinto adianta que, de modo geral, as tarefas eram partilhadas entre os dois arquitectos, que eram muito complementares. Para além das funções comerciais, Conceição Silva tinha uma relação mais próxima com os clientes, estava mais ligado à parte inicial de concepção e acabava por dar sempre a última palavra, até por uma questão de personalidade. Pinto da Cunha, que era mais reservado, dedicava-me mais ao desenvolvimento do projecto, tinha um grande domínio dos aspectos construtivos e era geralmente encarregue do acompanhamento de obra, embora Conceição Silva não dispensasse as principais reuniões de obra ou com clientes. Ricardo Silva Pinto dava mais apoio a Conceição Silva e José Luís ao seu pai. Mais uma vez, como já acontecia em Lisboa, os colaboradores eram prioridade, recebendo sempre a tempo e horas, não obstante as dificuldades financeiras. O antigo colaborador recorda o arquitecto como uma pessoa um pouco distante mas muito humana, ferida pela saída de Portugal, de que nunca falava. Em 1979, José Luís Pinto da Cunha acaba o curso e vai para a Rodésia (actual Zimbabwe), sendo substituído por um arquitecto brasileiro26. 25 De acordo com testemunho de Ricardo Silva Pinto, quem vai para o Brasil em 1975 em virtude do encerramento da Escola de Belas Artes de Lisboa. Vai trabalhar com Conceição Silva quando se encontrava no segundo ano do curso de Arquitectura, por sugestão do amigo José Luís Pinto da Cunha (Pinto, 2013). 26 Toda a informação sobre o funcionamento do atelier foi fornecida por Ricardo Silva Pinto (Pinto, 2013). Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 36 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Ilustração 9 - Inauguração da Fábrica Sombra, 1977. Conceição Silva e Carmo Valente são os dois penúltimos. (Durães, 2014). Ilustração 10 - Conceição Silva, Madalena Chicó e Pinto da Cunha no atelier da Barra. (Silva, J. e Silva, F., 1987, p.168). Tal como em Portugal, perseguindo a ideia de obra global, os projectos incluíam quase sempre a parte de equipamento e decoração, a qual era entregue a Carmo Valente, quem chefiara esse departamento no atelier de Lisboa. Só que, neste caso, os dois arquitectos tinham as actividades separadas, podendo – o que acontecia na maioria das vezes – os clientes coincidir ou não. Outra das relações fieis a nível pessoal e profissional é José Sousa Braga, que tinha a fábrica de móveis Sousa Braga em Portugal e com quem o casal trabalhara anteriormente. Sousa Braga muda-se também para o Rio no pós 25 de Abril, onde monta uma empresa de fabrico de mobiliário, constituindo-se um parceiro privilegiado de Carmo Valente (Pinto, 2013). O grande salto dá-se finalmente com a Michelin, multinacional de pneus que tinha desde 1927 um escritório comercial em São Paulo e instala-se em 1975 no Rio para servir o mercado local, assim como se expandir na América Latina (Michelin, 2011). Conceição Silva e Pinto da Cunha ganham então o concurso público para alojamento do pessoal27 - que na altura contava já com cerca de duas centenas de estrangeiros-, perto da fábrica, no Campo Grande, um subúrbio residencial do Rio para a classe média. Os arquitectos fazem também o plano-piloto para a instalação da unidade fabril, sendo esta última projectada por uns engenheiros franceses. Foi a maior encomenda que Conceição Silva e Pinto da Cunha receberam no Brasil, essencialmente habitacional, entre loteamentos, condomínios e blocos de habitação para os funcionários, mas também equipamentos de apoio. As atribuições, de grande 27 De acordo com testemunho pessoal de António Guimarães de Andrade e Silva. Este refere nada ter tido a ver com o concurso ou obra, sendo responsável pelas relações da Michelin com o Governo e adianta que Conceição Silva lidava diretamente com o departamento de engenharia (Silva, A., 2006). Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 37 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais responsabilidade, incluíam não só os projectos, mas também a gestão da obra e nomeadamente os pagamentos a fornecedores. Sobretudo graças a este trabalho, em início de oitenta, mudam-se para um atelier maior na Barra da Tijuca, segundo o amigo António Guimarães, muito bem equipado e decorado com obras de arte, numa casa colonial de dois pisos. Só nessa altura conseguem contratar mais pessoal, substituindo também Ricardo Silva Pinto, quem regressa a Lisboa em 1981, numa decisão apressada que deixa Conceição Silva furioso28. Ilustração 11 - Novo Atelier na Barra (Silva, J e Silva, F., 1987, p.168). Tal como em Portugal, Conceição Silva esforçar-se-á no Brasil em fazer crescer a actividade e alargá-la a outras áreas complementares. No início da década de oitenta, pouco antes de morrer, cria a promotora GI (Gestão Imobiliária) com alguns sócios, a qual infelizmente não chegará a arrancar com nenhum projecto. Possivelmente sob a alçada desta empresa ou de outra, lança-se na construção, contando em carta, ao seu amigo Pais de Sousa, que acreditava vir a ter uma das maiores construtoras do Rio de Janeiro (Sousa, 2006). Não há dúvida de que Francisco Conceição Silva apreciava o Brasil e a vida que levava no Rio, como relata nas cartas que envia à filha quando esta estudava em Paris. Depois de expor as dificuldades pelas quais passava, contava ele que “O Brasil continua o melhor do Mundo. Este verão maravilhoso, com muita chuva mas também muito sol. Este calor que despe as gatinhas e transforma Ipanema no grandioso espectáculo de gente e mais gente. De gente linda, de corpos tostados ao sol. De gente que se torna feliz com pouco. Feliz por ter direito a tomar um sol. A “cair” na água. A liberdade de andar na sua Terra que tanto ama. O brasileiro é efectivamente, mais do que um alienado, um ser feliz. Ele já só pensa no Carnaval. Começou o Ano, começou o Carnaval. Vamos todos pular. P’ra frente Brasil. Deus é Brasileiro”. Exilado que adoptara a sua terra de acolhimento, não gostava de relembrar 28 Ricardo Silva Pinto recorda ter avisado Conceição Silva com 15 dias de antecedência, o que lhe valeu uma forte reprimenda (Pinto, 2013). Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 38 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais nem falar de Portugal. Retrata o Brasil como um sítio alegre e solarengo onde sabe bem viver: “Mesmo que se façam muitas reservas, sempre acabamos por aderir a este povo maravilhoso, a este país ainda mais extraordinário (...) grande povo este, que sabe sofrer, que aceita o sofrimento e que acredita no milagre. Acredita no futuro. Vive feliz e transmite sua felicidade”. Porém, a vida que ali passou foi sempre de resistência e sobrevivência, não era fácil vingar como arquitecto estrangeiro, alheio às idiossincrasias brasileiras, com as quais muitas vezes não concordava. Contrariamente ao que seria de esperar, nesse início de 80, o seu estado de espírito não era de ânimo. “Faço um grande esforço para ir em frente, mas é tão difícil que por vezes chego a desanimar e a sentir-me devastado frente à permanente luta que é o dia a dia. No Brasil, nada se consegue sem luta e por vezes uma luta desleal e para a qual não fomos preparados. Mas, como eles dizem, “estamos na luta”” (Silva, P. 1982), confessava à filha. Por trás deste desalento, estavam muitas preocupações, sendo a principal um deslize do seu contabilista que o colocara em situação de perder tudo o que tinha no Brasil, quando justamente começava a poder viver com algum desafogo (Silva, P. 1982). Por outro lado, a obra da Michelin, como referido com responsabilidades acrescidas, trazia-lhe inúmeros aborrecimentos. Será justamente à saída de uma reunião de obra que Conceição Silva sucumbe tragicamente a um ataque cardíaco, no dia 23 de Janeiro de 1982, pouco antes de completar os sessenta anos29. 29 Conceição Silva tinha um problema cardíaco e tinha sido aconselhado a operar, cirurgia à qual nunca se quis submeter (Valente, 2006). Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 39 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 40 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais 3. ANÁLISE À PRODUÇÃO. UMA OBRA CARIOCA. 3.1. ENTRE BRUTALISMO E REGIONALISMO. A TRADIÇÃO RECUPERADA. Como referido na introdução, interessa-nos em particular, com o estudo analítico da obra de Conceição Silva, perceber as pontes que o arquitecto estabeleceu entre a Europa e o Brasil. E, mais do que o apport da sua obra de Portugal, a forma como reagiu ao novo contexto, ou seja, tentar perceber se a sua postura foi sensível ao local, se entendeu a arquitectura como resposta a um determinado tempo histórico e situação geográfica. Tentámos assim reestabelecer o seu modo de pensar, a forma de actuar perante a nova realidade a que teve de se adaptar, a sua interação com a cultura local. Isto permite-nos também situá-lo dentro do próprio contexto da produção brasileira entendida como produção num determinado lugar, independentemente da origem do seu autor. É aliás de relembrar que a moderna arquitectura brasileira e a sua singularidade também se devem à contribuição de um significativo número de arquitectos estrangeiros que aí se estabelece, nomeadamente durante as duas grandes guerras, e que irão “mestiçar-se” com a cultura local, como são exemplos o russo Gregori Warchavchik (1896-1972), o polaco Bernard Rudofsky (1905-1988), o Checo Adolf Franz Heep (1902-1978) e a italiana Lina Bo Bardi (1914-1992). Referindo-se a São Paulo, um dos principais polos de acolhimento, diz Dalva Thomaz: Parte desses arquitectos que imigravam para o Brasil vinham seduzidos pela vanguarda da arquitectura que se formava no país, no entanto é importante destacar que alguns desses arquitectos, em contacto com o Brasil e os brasileiros, contribuíram com sua cultura de origem e, na interação com a cultura local, foram capazes de fertilizar obras que corroboram o poder de assimilação a que a moderna arquitectura brasileira recorreu em sua origem, a partir de fontes europeias (apud Segawa, 1999, p. 139). Procurou Conceição Silva situar-se neste contexto - postura que parecer-nos-ia mais natural, sintomática até do modo de fazer português? Em Portugal, Conceição Silva preocupou-se sempre em invocar a contemporaneidade, ou seja em introduzir novas correntes, fossem elas de um moderno radical, mais revisionistas como o designado “regionalismo crítico”, neo-empirismo ou o organicismo, ou do brutalismo emprestado de Inglaterra, manifestação de uma nova sociedade tecnicista e global que procura também responder a novos desafios urbanos. Neste novo mundo, a força do contexto brasileiro, já de si local de emanação de arquitecturas com ressonâncias além fronteiras, parecem tê-lo levado a uma leitura e participação do contexto, sem prejuízo desse mesmo contexto poder ele também ser contaminado por correntes exteriores. Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 41 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Em primeiro lugar, podemos dizer que Conceição Silva estabeleceu um jogo de equilíbrio entre a tradição e a modernidade, numa oscilação que é caraterística do próprio processo brasileiro, seja visto de forma mais geral/cronológica, entre avanços e recuos, ou na maneira como a arquitectura brasileira colheu e transformou a lição moderna. Interessou-nos assim destacar da história da arquitectura brasileira do século XX esse diálogo entre modernidade e tradição, o qual acabou por estar sempre presente, mas de forma mais evidente em dois momentos: no acolhimento da arquitectura moderna, a que poderíamos chamar de proto-moderna, sob a mão de pessoas como Lúcio Costa; e num retorno à tradição no pós-brasília, incidindo mais particularmente sobre processos e materiais construtivos, num Rio de Janeiro esgotado da fase heroica do Movimento Moderno, ou em pesquisas regionalistas em contextos mais secundários, fomentadas também pelo esforço do estado brasileiro em ocupar e desenvolver as regiões do interior, o que conduziu à migração interna de muitos arquitectos30. Nas décadas de sessenta e setenta, a historiografia, com a sua metodologia focada em obras excepcionais e fundadoras de ideias, acabou por destacar de forma apologética o brutalismo de São Paulo, também pela força e coerência que conduziu à identificação de uma “escola”, marginalizando assim outras posturas menos classificáveis, até por corresponderem a pesquisas mais individuais e empíricas. Porém, mesmo no contexto das correntes mais radicais de São Paulo, existiu sempre a procura de identificação local, seja pelos materiais, seja pela tentativa de uma obra que emanasse das camadas populares. No mesmo sentido, esse foco paulista correspondeu igualmente a um sentimento nacionalista, à procura de justificações ou caminhos para a emancipação em relação aos vínculos estrangeiros. A obra de Conceição Silva será no entanto condicionada pela natureza da própria encomenda, sempre privada, de escala reduzida, essencialmente casas de habitação unifamiliar, algumas lojas (de que não iremos falar face à falta de elementos e ao facto de provavelmente já não existirem), uma fábrica, um prédio multifamiliar e só num caso habitação colectiva de escala já incipientemente urbana, com os conjuntos residências da Michelin. Além de privada, essa obra foi encomendada por uma elite sofisticada, ao fim e ao cabo, o mesmo estrato social para o qual o arquitecto tinha trabalhado em Portugal, pelo que naturalmente terá aqui posto em prática modos de fazer idênticos aos do atelier de Lisboa, nomeadamente no que diz respeito a processos projectuais, ou à procura de um certo conforto e domesticidade. 30 Sobre este assunto veja-se Hugo Segawa, 1999. Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 42 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Quando Conceição Silva chega ao Rio, em 1975, o Brasil encontra-se debaixo de uma ditadura, na sequência do golpe militar de 1964 que depõe João Goulart, com responsabilidades, indirectamente, nas novas referências arquitectónicas. Por um lado, os grandes nomes da arquitectura moderna brasileira tinham saído do país (Niemeyer vai para Tel Aviv, Argel e instala-se em Paris em 1972) ou deixado de produzir por razões políticas, outros tinham já morrido (Eduardo Affonso Reidy em 1964, Rino Levi em 1965). A partir de 1968 a ditadura endurece com um regime persecutório e repressivo que vai agravar-se na década seguinte com os esquadrões da morte (Hensel, Michael e Kubokawa, Rumi, 1999), conduzindo ao afastamento do ensino dos arquitectos ligados ao Partido Comunista - João Batista Vilanova Artigas (1915-1985), Paulo Mendes da Rocha (1928- ) e Jon Maitrejean (1929- ) em 1969, ainda antes da inauguração da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo projectada pelo primeiro -, ou mesmo a sua prisão. Por sua vez, o Brasil tinha se afastado da cena internacional, resistindo à crítica ao movimento moderno, já que o moderno brasileiro era aceite como emanação nacional, fruto também da política desenvolvimentista que durará desde o Governo de Gertúlio Vargas até ao fim da ditadura, ou seja de 1930 a 1985. Pese embora o ambiente de repressão, com o “Projeto Brasil: Grande Poder” a economia vai beneficiar de um período de crescimento (com um interregno nos anos de 1973 e 74, com a crise do petróleo), com taxas de crescimento acima dos 10% no período do “Milagre Brasileiro” dos governos militares de 1964 a 1985 (Colin, Silvio, 2011). Este programa vai fomentar a modernização do país - com desaceleração após a crise do Petróleo de 1979 e a bancarrota do México em 1982 – sendo em contrapartida também responsável pelo acelerar da inflação que se acentua na década seguinte. A “tradição moderna” continuara então, como se vê nas grandes obras públicas, nomeadamente nos equipamentos fomentados pelo Estado, mas o principal centro de produção deslocara-se para São Paulo, sob a influência de Vilanova Artigas, com uma nova visão de forte cariz ideológico, explicado também pela distância aos principais centros de decisão política. O ambiente arquitectónico dos anos 70 é fortemente contaminado pelo Brutalismo europeu, seja pela via mais ética e moral da corrente inglesa, seja pelo carácter mais tectónico francês dominado pela obra mais tardia de Le Corbusier, afinal as mesmas referências que informavam a obra de Conceição Silva em Portugal. Brutalismo este matizado pela procura constante de uma arquitectura local, pela necessidade que o Brasil tem de se afirmar como autónomo, dentro de um quadro mental nacionalista à Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 43 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais procura das suas raízes e identidade. Pese embora o protagonismo do Brutalismo da “Escola de São Paulo” com fortes influências em todo o país, protagonismo esse que resulta também de uma mais fácil identificação para as construções historiográficas, verifica-se nos Anos Setenta um quadro diversificado, com várias correntes, surgindo então no Rio de Janeiro uma tendência interessada em recuperar modos de fazer, assim como uma iconografia, ligada à tradição, com bastante aceitação e desenvolvimento. Tratava-se de pôr de lado essa arquitectura de origem estrangeira e de responder às condições locais - a uma capacidade artesã que afinal nunca se tinha perdido - assim como à natural disponibilidade dos materiais locais, como reacção também à sofisticação forçada e cara da tecnologia do betão e como saída para as críticas internacionais à permanência do Movimento Moderno. Constituía-se ainda como uma arquitectura mais amena e acessível em termos de referências estéticas a uma burguesia ou elite que refletia ainda modos de estar enraizados na antiga colónia, ou, ao oposto, mais de acordo com uma identidade popular. Se bem que a historiografia identifique esta tendência como um conjunto de actuações individuais, foi em todo o caso uma corrente que atravessou todo o país e que se consolidou mais tarde nos anos oitenta, nomeadamente num movimento que procurou definir uma modernidade “apropriada” no seio dos Seminários de Arquitectura Latinoamericana31. Esses encontros tentaram reflectir sobre a condição Latino americana e encontrar novos caminhos fruto de uma criatividade local, mas adequados à realidade das sociedades em que actuavam, quer a nível económico quer técnico. A obra de Conceição Silva da segunda metade dos anos setenta vai enquadrar-se nesse contexto do Rio de Janeiro que recupera a tradição sem perder as lições do moderno, numa espécie de inversão em relação ao momento anterior em que o Movimento Moderno não esquecera a cultura mais popular ou artesanal. Como refere Roberto Conduro, “nos anos 50, quando os conceitos desenvolvimentistas estavam propagados no Brasil, o internacionalismo universal era mais adequado à ideologia política predominante e a tendência regionalista eclipsou-se parcialmente só ressurgindo nos anos sessenta quando se propaga com uma força crescente até ao final do século” (Conduru, Roberto, 2005, p. 71). Nas décadas de sessenta e setenta, o recurso a sistemas construtivos tradicionais e materiais locais são intensamente 31 Considerados como os CIAM latinoamericanos, estes seminários decorrem em vários países do espaço latino-americano entre 1985 e 2002. Refere Hugo Segawa que “as suas primeiras reuniões articularam um original debate e uma acumulação de valores acrescentados em torno de questões como: identidade, alienaçãoo e regionalismo”. O arquitecto esclarece ainda que esse movimento posicionava-se também contra o pós-modernismo como única saída para os “impasses da arquitetura”. (Segawa, 2005, ps. 50 e 51). Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 44 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais retomados como as estruturas de madeira, as coberturas inclinadas, com telha cerâmica em expressões menos abstractas, ou o tijolo sem reboco, como vimos por exemplo nos trabalhos de Lúcio Costa, Severiano Porto ou até de arquitectos paulistas Carlos Barjas Millan (1927-1964) e Joaquim (1932-2008) e Liliana Guedes. O tijolo vai justamente ganhar um crescente protagonismo nos anos oitenta em toda a América Latina, vindo a ser considerado o material adequado à realidade local, que resolvia as questões de identidade e técnicas, chegando a ganhar uma “dimensão doutrinária”32. Mais recentemente, Marcos Acabaya (1944- ), arquitecto paulista muito interessado nos aspectos técnicos e construtivos e com experimentação em vários materiais, fez uma série de obras com estruturas de madeira, que “geometrizou numa expressão contemporânea” (Segre, Roberto, 2005), como as Casas Hélio Olga (São Paulo, 198790) e Baeta (Praia de Iporanga, São Paulo, 1993), beneficiando na primeira da experiência e cooperação (a nível do projecto de estruturas e na construção) do cliente, o engenheiro Hélio Olga, dono de uma empresa de construção e estruturas de madeira33. Ilustração 12 - Residência Anna Mariani, Ibiúna, de Joaquim e Liliana Guedes (Oliveira, J. 2008). 32 Hugo Segawa cita Eladio Dieste no Uruguai, Rogelio Salmona na Colômbia e Togo Diaz na Argentina como arquitectos que fazem um uso extensivo do tijolo, nesta caso considerado à vista e adverte para o reducionismo a que se chegou ao considerar o tijolo como uma marca de latinomaricanismo. (Segawa, p. 53). 33 Refira-se que Hélio Olga teve as suas primeiras experiências de construção em madeira com Zanine Caldas nos Anos Setenta. Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 45 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Ilustração 13 - Casas Hélio Olga e Baeta, de Marcos Acabaya (Marcos Acabaya Arquitetos, 2014). Ao longo de toda a sua estadia no Rio de Janeiro, Conceição Silva vai construir uma série de casas que denotam a sua preocupação em inserir-se no ambiente cultural local, procurando uma identificação com a tradição em termos formais e tectónicos, sem ser estritamente regionalista e muito menos historicista. Em particular, vai fazer toda uma investigação em torno das estruturas em madeira, tirando partido da disponibilidade deste nobre material que já em Lisboa usara não só com intenções mais ambientais ou decorativas, mas também como elemento resistente ou estrutural. Refiram-se a Casa Ribeiro da Cunha, (1961-66, Guincho), a Casa da Minhoca (196062, Sintra), o Hotel do Mar (1960-63, Sesimbra), ou ainda os bungalows da Serra da Estrela, entre várias outras obras. O know-how adquirido em Portugal vai permitir-lhe rapidamente adaptar-se e desenvolver esta tecnologia como vimos nas casas do condomínio Portinho do Massaru, em Itanhangá (para uma sociedade de Arthur Kelson e Mário Pais de Sousa); casa de Praia em Geribá, Búzios; nas casas de Taquerá, ou ainda no projecto de um hotel de praia não construído, no Estado da Bahia. Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 46 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Ilustração 14 - Portugal: Casa da Minhoca, Sintra (Ilustração nossa, 2006). Ilustração 15 - Hotel do mar, Sesimbra. (Medeiros, 1963). Ilustração 17 - Brasil: Casa no Portinho do Massaru. (Silva, J. e Silva, F., 1987, p.175). Ilustração 16 - Casa do Rochedo, Sintra. (Silva, J. e Silva, F., 1987, p.55). Ilustração 18 – Pátio interior casa em bada Loteamento Poatã, (Pinto, ca.1980). Mais sofisticada e de maior escala do que as casas do arquitecto já citadas, a casa Simão Coslowsky, no Morro do Corvovado (projecto de 1976) denota a mesma vontade de remissão para a arquitectura vernacular numa reinterpretação contemporânea. A expressão é fortemente marcada pelo uso intensivo do tijolo cerâmico à vista, material presente na arquitectura tradicional, de origem artesanal e fácil domínio em termos de produção e mão de obra, e cuja matéria prima abundava no Brasil. A cor, textura, resultando a sua repetição exaustiva até numa certa abstração, realçada por um jogo volumétrico mais livre, permitem uma maior integração na natureza, outra preocupação que vem já da revisão do Movimento Moderno e das influências neo-organicistas - o que também é válido para as construções em madeira. Essa tendência tem também paralelo no movimento regionalista que se faz sentir com mais expressão ainda em cidades mais pequenas Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 47 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais do que as duas grandes metrópoles, o qual procura uma nova agenda ética e socialmente responsável. Como refere Silvio Colin, trata-se de uma “tendência que busca a recuperação do acervo cultural tectônico e arquitetônico de uma região, de maneira seletiva e crítica, para estabelecer um ponto do partida autóctone no diálogo com outras fontes culturais hegemônicas, atuantes pela intensa informatização global, e muitas vezes impostas por uma cultura tida como dominante” (Colin, Silvio, 2011). Trata-se também de uma questão ideológica, contra uma arquitectura “imperialista” abstracta e a favor de um realismo que pudesse ser facilmente apreendido pelas massas e que correspondesse às reais condições do país, numa altura em que a esquerda intelectual se consolida em resposta à repressão da ditadura. Ilustração 19 - Casa Coslowsky, (Silva, P e Silva, F, 1987, p173-174). Severiano Mário Porto (n.1928- ) é um dos arquitectos que partindo da modernidade irá desenvolver uma pesquisa mais profunda sobre a construção autóctone, em termos construtivos e tipológicos, nos 30 anos que passa na Amazónia, com uma obra notável e uma posição singular. Severiano Porto radicou-se em Manaus a partir de 1965, mantendo actividade no Rio com o sócio Mauro Emílio Ribeiro (1930- ), e procurou desde então adaptar as construções às condições locais da Amazónia, com uma abordagem antropológica, recuperando um saber caboclo contra as correntes dominantes de uma arquitectura desenraizada do sítio e também contra os preconceitos em relação a um tipo de construção que se associava localmente à pobreza (por exemplo, as estruturas em madeira, em comparação com a alvenaria que se considerava mais durável). São disso exemplo, a casa de estrutura de madeira desmontável do arquitecto em Manaus (1971) ou o mais radical Centro de Protecção Ambiental (em Balbina, a 200 km de Manaus, 1983-1988), ambos realizados a partir da pesquisa em torno das construções caboclas e índias, com materiais e técnicas disponíveis na região, o último com estrutura e telhas de madeira. Concebida com Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 48 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais respeito pelo habitat natural, a aldeia SOS para crianças foi “cuidadosamente pensada e planeada para responder da melhor forma às questões ambientais e contexto urbano, assim como oferecer bem estar aos seus utentes”. (...). “As diversas áreas do complexo estão interconectadas pelos caminhos de formas sinuosas feitos de madeira e folhas de palmeiras, onde se pode ver claras referências à cultura local, quer nos métodos construtivos, quer na tipologia que se parece com os espaços comunitários das habitações índias” (Oliveira, Beatriz Santos e Rovo, Mirian Ito, 2004). Os edifícios adaptam-se à topografia e são construídos de forma a proporcionar a ventilação natural, tomando em consideração os ventos dominantes. O denominado “arquitecto da floresta” estudou aqui vários dispositivos para controlar a temperatura, como aberturas na cobertura ou persianas que se abrem horizontalmente e verticalmente permitindo optimizar a entrada e fluxo do ar, assim como controlar a incidência da luz. Por sua vez, generosas varandas cobertas fazem a transição entre interior e exterior e “funcionam como extensão da sala de estar e como protecção do acesso à casa” (Oliveira e Rovo, 2004). Ilustração 20 - Casa do arquitecto Severiano Porto, Manaus, 1971, Severiano Porto. (Guerra e Ribeiro, 2006) Ilustração 21 - Aldeia infantil SOS, Manaus, e Centro de Protecção Ambiental de Balbina, de Severiano Porto (Baratto, 2014). Conceição Silva também vai convocar materiais e dispositivos espaciais que inserem as obras no seu contexto e conferem qualidades vivenciais de acordo com as necessidades do sítio, como as varandas alpendradas, elemento preponderante nas Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 49 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais várias casas que projecta, como por exemplo na casa de Praia de Geribá, em Búzios, nas casas de Taquará, a Oeste do Rio (estas últimas aparentemente não construídas), ou nas casas dos conjuntos habitacionais que faz para a Michelin, no Campo Grande (por exemplo, no loteamento de Poatã). Numa casa não identificada é notório o protagonismo deste espaço de mediação entre interior e exterior, concebendo uma autêntica sala de estar exterior. A ausência de portas entre esta generosa varanda e a sala, como se de um único espaço se tratasse, diferenciado apenas pela sua relação mais directa ou indirecta com o exterior, torna-o ainda mais híbrido e flexível. O encerramento ao exterior faz-se por umas portadas de madeira que permitem colocar a varanda na penumbra, protegendo-a do sol, ou abri-la ao jardim. Vale a pena citar as considerações de Eduardo Rossetti que colocam a varanda como um dos principais dispositivos da arquitectura brasileira : “A incorporação da varanda na formulação do sentido do habitar no Brasil é tão ancestral que sua origem oriental já desembarcou aqui junto com o linguajar português.(...) Ainda que assuma significados regionais mais específicos, vinculandose ora à atividade de estar, ora às atividades de refeição, sua presença doméstica no quotidiano a consolida como um espaço brasileiro de caráter tradicional. Ou seja, a varanda é brasileira. A varanda está vinculada aos hábitos culturais de sociabilidade e convivência pública, coletiva ou familiar desde sua configuração tipológicas nas sedes dos engenhos de cana-de-açúcar. (...) Além disso, a varanda sempre pode oferecer um ponto de vista privilegiado, abrindo amplas perspectivas sob a paisagem, apurando o olhar dos habitantes e frequentadores como um mirante dessa paisagem, do lugar, do território, do mar e depois das cidades. A varanda mantém sua gênese conceitual mas se transforma, revigorando-se como um problema de projeto, ativando questões como escala, material, estrutura, modos de vida, memória, tradição e as relações com a cidade” (Rossetti, 2010). Entre as obras mais “regionais”, podemos no entanto apontar o bar de praia que projecta para um hotel não construído no Estado da Bahia, com uma cobertura em estrutura de madeira e palha e muros de pedra, lembrando o Restaurante Chapéu de Palha, em Manaus, de Severiano Porto (de 1967), possivelmente sem o cariz antropológico do seu colega brasileiro, mas evidenciando a mesma vontade de expressar as raízes locais. Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 50 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Ilustração 22 – Planta casa desconhecida no Rio e alçado Bar de Praia para o Hotel Ponta Negra no Estado da Bahia (Silva, F. (2), ca.1980). Ilustração 23 – Corte Bar de Praia para o Hotel Ponta Negra no Estado da Bahia (Silva, J. e Silva, F., 1987, p. 182). Ilustração 24 - Restaurante Chapéu de Palha, Manaus, Severiano Porto. A questão tecnológica não era pouco importante no Brasil. O uso intensivo do betão, essa enganosa facilidade com que era empregue em obras de engenharia de uma enorme exigência, nunca conseguiu ultrapassar as insuficiências tecnológicas, repercutindo-se também num custo elevado. A sua aparente rudimentaridade, dada pela nudez e revelação do processo produtivo, não correspondia no entanto à dispensa de meios técnicos, mesmo que alguns o tenham defendido como paralelo da “arte povera” – pense-se por exemplo em Vilanova Artigas ou Bo Bardi. Neste novo ambiente de recuperação da tradição, a utilização de técnicas artesanais com recursos locais era também um “manifesto” contra o esforço e sofisticação dessa tecnologia importada e dificilmente dominada, ou mesmo impossível em certos contextos. A préfabricação não teve por exemplo grandes desenvolvimentos, pese embora as tentativas sobretudo em finais de cinquenta e sessenta no ambiente mais industrial de São Paulo34, ou nalguns casos experimentais como nos projectos de Lelé (João Filgueiras Lima, 1932-2014) para a Bahia, arquiteto que procurava a racionalização e industrialização da arquitectura e chegou mesmo a ter uma fábrica de pré-fabricados. 34 Refira-se, por exemplo, Carlos Millan, quem procurava uma economia de meios e racionalização do processo construtivo com várias experiências, como na casa Antonio d’Elboux (1962-4), São Paulo. Ver (Kamita, 2004, p. 163). Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 51 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Por outro lado, não obstante a adequação da austeridade do betão ao clima tropical, as expressões mais tradicionais e os materiais mais nobres ou “amenos” eram mais facilmente aceites pela alta burguesia ou elite, sintomático de uma sociedade, afinal, bastante conservadora. Atente-se às encomendas das casas dos mestres da arquitectura moderna brasileira, na sua maioria dos próprios ou para pessoas ligadas às artes ou cultura. Na realidade, a historiografia, na sua leitura, retém sobretudo os movimentos progressitas, mas a implantação da arquitectura moderna é limitada, permanecendo dominante uma arquitectura corrente à margem desses movimentos. Segundo Carlos Salém, genro de Arthur Kelson, a casa do Portinho do Massaru levou alguns anos a ser vendida por causa da expressão moderna, servindo entretanto de escritório para a empresa promotora, a Socit (Salém, 2013). Por essa razão, não avançaram com os projectos de Conceição Silva em dois outros lotes35. Os projectos acabaram por ser entregues ao responsável pelo plano geral do condomíno, José Zanine Caldas (1918-2001), arquitecto/artesão (era autodidata) cuja imagem de marca era justamente umas inusitadas casas de expressão vernacular, de madeira ou outros materiais. Figura polémica, Zanine é um caso singular no panorama da arquitectura dos anos sessenta a setenta no Rio, com uma obra extensa e de grande aceitação na burguesia, nomeadamente nos bairros em expansão da Joatinga e da Barra da Tijuca. “Apresenta um estilo muito original misturando o desenho clássico das plantas com técnicas vernaculares de construção e a utilização de materiais de demolição”, como numa casa construída em pau-a-pique, “resgatando rigorosamente esta técnica secular” (Colin, Silvio, 2011) e com uma tradicional planta cruciforme. Colin enquadra-o numa corrente de um “Novo colonial” com postura historicista, na qual inclui a obra mitigada de Lúcio Costa ( 1902-1998), entre a tradição das casas coloniais e a modernidade de Le Corbusier, exemplificando com a casa do Poeta Thiago de Mello (anos 70), nas proximidades de Manaus, a qual só era acessível de barco, justificando o partido tomado de uma construção com materiais e técnicas disponíveis. 35 Existe a dúvida se foram construídas uma ou duas casas. Ricardo Silva Pinto pensa terem sido construídas duas deste conjunto de três (Pinto, 2013). Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 52 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Ilustração 25 - Casa do Nilo, Rio de Janeiro, de José Zanine Caldas. Ilustração 26 - casa Thiago de Mello, de Lúcio Costa. ( Colin, 2010). O recurso a materiais ou sistemas artesanais estava no entanto igualmente presente nas obras brutalistas, como apropriação local da mesma ou amenização da rudeza dessa corrente e será desde os Anos Sessenta prática corrente no Brasil, mesmo no mais radical ambiente de São Paulo. O arquitecto paulista Sérgio Ferro designa mesmo essa corrente de “brutalismo caboclo” (Matera, Sérgio, 2005, p.77) em oposição ao “brutalismo estitizante europeu” (Idem). A obra de Carlos Millan, cuidadosamente detalhada, denota esse hábil jogo de equilíbrio, como por exemplo na casa que projectou para o seu irmão Roberto em 1960. O monólito de betão deve a sua delicadeza ou sofisticação aos detalhes como a tijoleira cerâmica no tecto a revestir as lajes em betão e no pavimento, as persianas de madeira pintadas de azul, a estereotomia dos caixilhos pintados de zarcão laranja, cromias bem brasileiras, denotando também as influências da obra mais tardia de Le Corbusier, como as Maisons Jaoul (1952/1956), com suas abóbadas e paredes de tijolo maciço (de inspiração catalã), estrutura aparente em betão e o peso da massa36. Este aspecto revela a constante preocupação brasileira em provar a sua autonomia em relação aos centros de emanação artística, seja da Europa, seja dos Estados Unidos, também sustentada por questões identitárias e ideológicas. Ilustração 27 - Casa Roberto Milan, São Paulo (1960). (Matera, 2005). 36 Podemos citar vários projectos que remetem para esta obra charneira de Corbusier como a casa Dalton Toledo (1962), em São Paulo, de Joaquim Guedes. Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 53 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Ilustração 28 - Casa dos Arcos, Rio de Janeiro (1972-8), de Lelé. (Joana França Fotografia, 2014). Com um conjunto de casas em que experimentam a combinação de materiais artesanais em obras iminentemente modernas, particularmente nos anos setenta, Joaquim e Liliana Guedes fazem prova da mesma preocupação de identificação da sua obra com a cultura local. Guedes e Millan, antigos alunos da escola McKenzie, próximos de Rino Levi, e que passam a dividir o escritório a partir de 1955, representam justamente uma posição mais moderada do que os formados no Politécnico de São Paulo, onde pontua Vilanova Artigas. Manifestam assim um maior cuidado na pormenorização, nos detalhes construtivos, resultando numa obra mais sofisticada e possivelmente mais elitista, ilustrando uma das duas correntes que polarizam o ambiente paulista37. Oswaldo Bratke (1907- 1997), mais velho, quem ocupará em São Paulo uma posição paralela à de Lúcio Costa no Rio, é, como este último, mais caboclo na abordagem moderna. Formado ainda como engenheiroarquitecto na McKenzie, para além do enfoque construtivo próprio da cena paulista, preocupou-se sempre na viabilidade económica das suas obras e na adequação ao contexto. Cite-se o caso emblemático da Vila Serra do Navio no Amapá para trabalhadores mineiros, na selva amazónica, da década de sessenta, com extenso emprego de estruturas em madeira numa releitura das casas autóctones. E mesmo Lelé, como já referido, um dos arquitectos mais interessados em tecnologias avançadas como a pré-fabricação, também teve as suas experiências com sistemas e materiais tradicionais. Veja-se a Casa dos Arcos (1972-78) de quase dois mil metros quadrados, em Brasília, que projectou para o seu amigo Nivaldo Borges, com reminiscências de construções romanas com os seus arcos e abóbadas de tijolo em harmonia com a madeira e o vidro, a qual não deixa de lembrar a obra de Louis Kahn (1901-1974). 37 Sobre este assunto veja-se a tese sobre Carlos Millan de Sérgio Matera, 2005. Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 54 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Ilustração 29 - Vila Serra de Amapá, de Oswaldo Bratke. Ilustração 30 - Residência Paulo Nogueira Neto, de Oswaldo Bratke (Silva, N. 2011). A já citada Casa Coslowsky reflete também as influências brutalistas, o carácter tectónico, o protagonismo e peso da massa e a verdade dos materiais e estruturas deixados à vista, lembrando igualmente a obra de Louis Kahn, mas também de Wright, nomeadamente na composição espacial. Tal como nas outras obras do arquitecto português, com mais evidência aqui, as construções em sistemas tradicionais (madeira, tijolo) são combinadas com elementos estruturais em betão aparente, reforçando o diálogo entre modernidade e tradição, patente também nas soluções espaciais, como veremos a seguir. Importava então pôr em valor a característica artesanal destas técnicas construtivas. Assim, tradição e tecnologia ou regionalismo e brutalismo cruzam-se em combinações que aceitam as várias camadas da história sem antagonismo, independentemente do maior peso de um ou de outro. As residências Ronaldo Steinberg (1976-1979) e Salik Resner (1981) são as que mais evidenciam o carácter brutalista, lembrando aliás de forma muito notória a obra do arquitecto português de meados de sessenta até à sua ida para o Brasil em 1975 e, em particular, a casa própria no Dafundo (1965-1967). Com a articulação de volumes e varandas balançadas, as casas são menos monolíticas do que era então habitual ver em São Paulo e traduzem um sistema construtivo ou pensamento construtivo de articulação de elementos, lajes, paredes de betão, muito diferente das casas paulistas construídas de um “casco” só, como as projectadas por Vilanova Artigas e que terão igual desenvolvimento em seus seguidores como Carlos Millan, Fábio Penteado, Eduardo de Almeida e Mendes da Rocha38. Nesse aspecto, as obras de Conceição Silva e Pinto da Cunha aproximam-se mais do modo de fazer do Rio, contexto onde aliás se inserem. A relação dos pequenos lotes, com pouca privacidade, com o meio circundante conduz a uma solução que realça esse carácter bruto da construção, a 38 Refere Kamita que “estes projectistas continuaram com as formas compactas e austeras, o uso de tecnologias avançadas, land-works e vastos espaços internos” (Kamita 2004, p. 162). Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 55 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais sua fachada cega do lado da entrada, como se vê em muitas obras brasileiras da época (como na Casa Millan, acima citada). Mas Conceição Silva também dá sequência a soluções utilizadas em Portugal (Casa Ribeiro da Cunha, Restelo, casa Própria, Dafundo). Na realidade, a corrente brutalista tem muitas afinidades dos dois lados do Atlântico, pelo que não seria difícil ao arquitecto adaptar-se a este novo ambiente. As maiores diferenças entre a versão ocidental e a apropriação tropical prendem-se com a mestiçagem entre brutalismo e técnicas ou materiais tradicionais e o protagonismo da estrutura que se funde com a arquitectura (no caso mais particular da escola Paulista). Ilustração 31 - Casa do Dafundo (Silva, J. e Silva, F., 1987). Ilustração 32 - e Casa Ronaldo Steinberg (Silva, J. e Silva, F., 1987, p.171). Ilustração 33 - Casa Salik Resner, frente para a rua e Casa Coslowsky, interior (Cunha, 2006). A Casa Ronaldo Steinberg e, embora em menor medida, a Casa Coslowsky denotam no entanto uma inusitada sofisticação em relação às suas congéneres brasileiras, mesmo quando comparadas com uma obra bastante detalhada como é o caso das de Carlos Millan ou dos Guedes. Esta sofisticação revela-se no desenho exaustivo dos detalhes, no recurso a materiais nobres e, de modo geral, na vontade expressa de criar um confortável ambiente doméstico. Os interiores da residência Steinberg lembram com toda a evidência o cuidado posto nos pormenores na obra portuguesa do arquitecto, como no Hotel da Balaia, ou na casa própria do Dafundo. Refiram-se, a Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 56 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais título de exemplo, a caixilharia e as guarnições da guarda da escada em madeira, a escada alcatifada, o revestimento do tecto em réguas de madeira de dois tamanhos diferentes. A liberdade volumétrica (e da planta, como veremos mais abaixo) destas duas casas e da Resner é sintomática da recuperação do organicismo de Frank Lloyd Wright na Europa, visível em muitas obras de Conceição Silva. A Casa Coslowsky é no entanto a mais austera das três e tem certamente um carácter mais autóctone, sobretudo pelo uso do tijolo em bruto, mas também pelo perfil piramidal a lembrar construções primitivas e mesmo no carácter aditivo dos vários volumes que se espraiam pelo terreno lembrando pequenas cabanas tribais. A forma piramidal lembra o edifício da superintendência da zona Franca de Manaus, de Severiano Porto, de 1971, o qual usa um inteligente dispositivo de resposta aos excessos do clima tropical, numa altura em que o ar condicionado já era de corrente utilização no Brasil. É possível que a solução de cobertura da casa Coslowsky reflicta também essa preocupação climática, sendo ainda de realçar a potenciação da ventilação natural cruzada com a grande abertura da casa ao exterior, sobre várias frentes. A esse respeito, a Casa Steinberg apresenta igualmente uma solução que tem repercussões quer a nível do controle da temperatura, quer para a desejada integração na paisagem – a cobertura ajardinada, então uma solução inovadora e tecnicamente exigente. Nos mesmos anos, Mendes da Rocha desenhava uma solução semelhante com laje-jardim e ainda espelho de água, para a casa António Junqueira (1976-80). Também na Fábrica Sombra, no Bairro de Santa Cruz, a Oeste do Rio, Conceição Silva demonstra a sua sensibilidade às questões de conforto ambiental, com um sistema de ventilação natural conseguido pelas aberturas formadas pelos elementos de betão de cobertura em V apoiados sobre as vigas, sem qualquer tipo de vedação, trazendo assim ar e luz. Ilustração 34 - Superintendência da zona Franca de Manaus, de Severiano Porto (Andreoli, Forty, 2004). Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite Ilustração 35 - Fábrica Sombra (Durães, 2014). 57 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Ilustração 36 - Casa Carlos Royle, Búzios e casa em Taquará, Rio (Silva, F. (2), ca.1980). Esta variação entre Brutalismo e tradição responde também ao entorno em que a obra se insere e às características particulares de cada encomenda, ou seja revela uma resposta caso a caso, mediante os problemas colocados. Conceição Silva adopta diferente partido segundo se trata de um quadro urbano, fora deste ou no limiar da cidade, como no caso dos loteamentos de casas construídas para a Michelin. Nas várias casas de praia que projecta ou no caso acima citado das residências para os quadros da Michelin, opta por uma expressão mais popular, mais simplificada, correspondendo também a um programa mais “económico”, partido que se vê na obra de muitos arquitectos brasileiros. Estas casas são até bastante idênticas, quer em termos formais, ou mesmo de tratamento do espaço, revelando até uma certa “esteriotipização” de um modelo, apto a receber variantes, intencional no caso dos conjuntos para a Michelin. Com seus generosos alpendres e soluções em planta relativamente singelas lembram a arquitectura bandeirante. Mas também dão sequência à obra portuguesa do arquitecto, como por exemplo as casas de férias projectadas nos anos sessenta na zona de Sintra, perto de Lisboa – a Casa do Galo ou a Casa do Penedo, embora menos sofisticadas do que estas. Ilustração 37 - Fábrica Sombra (Durães, 2014). Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite Ilustração 38 - Unicamp, Campinas, de Joán Villà. (Zein, 2014) 58 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Conceição Silva procurou sempre alinhar-se com o seu tempo e as novas tecnologias construtivas fizeram sempre parte dos seus interesses sem que isso fosse um objectivo em si. A pré-fabricação, com vista a uma maior economia da construção em termos de tempo ou financeiros, foi uma tecnologia que procurou adoptar quer em Portugal, quer no Brasil, quando o caso assim o justificava, como no Complexo Turístico de Tróia, uma cidade de turismo de massas para vários estratos sociais da população, para a qual instala uma fábrica de painéis de betão pré-moldados, num esforço de sistematização e repetição dos elementos construtivos, como os elementos de fachada. No Brasil, o seu interesse pelas construções em madeira levam-no a montar uma estância de madeira com o seu amigo Mário Pais de Sousa, numa fazenda por este último adquirida no Rio, no Recreio dos Bandeirantes, Vargem Grande (Sousa, 2006), permitindo-lhe assim melhor dominar a tecnologia e o fornecimento às obras. A própria organização do atelier de Lisboa reflectia essa procura de eficácia e sistematização, com a estrutura em vários departamentos a trabalhar em conjunto numa articulação muito bem “oleada”. Algo que nunca poderá implementar no Rio por falta de escala e uma vez que o volume de trabalho assim não o justificava. A fábrica de mobiliário Sombra, para o seu amigo João Durães39, é também um exemplo de procura de racionalização dos meios para um menor custo e maior rapidez da construção. O edifício é concebido com todos os elementos préfabricados, desde as estacas de fundação aos elementos estruturais em betão, incluindo até umas telhas de grande dimensão em betão pré-moldado, os quais são fornecidos por uma fábrica paulista – a Sobraf -, às paredes de enchimento com blocos de betão celular vazado produzidos in loco por uma empresa especializada, a Modern Blocks. O carácter experimental irá no entanto resultar nalguns dissabores, sobretudo com problemas de infiltrações entre os elementos de cobertura que eram encostados e ligados com massa. A preocupação em utilizar tecnologias industriais de baixo custo, com vista à racionalização dos meios e uma utilização económica desses materiais, como no caso da fábrica Sombra, com os blocos de cimento à vista, começava então a fazer parte de um discurso pré-ecológico no Brasil, transpondo princípios e a estética de tipos fabris para outros programas, como por exemplo no 39 João Durães era dono da loja Sombra, de mobiliário de exterior, em Lisboa e vai igualmente para o Rio a seguir ao 25 de Abril (Durães, 2014). Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 59 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Conjunto Estudantil Unicamp, em Campinas, de Joan Villà (1988/1991), em que são empregues painéis pré-fabricados de blocos cerâmicos à vista40. A tradição ou a modernidade não são assim manifestações de uma ideologia estanque na obra de Conceição Silva, nem tão pouco antagonistas. Na realidade, o arquitecto revela uma prática sem repertório, antes uma abordagem metodológica em que forma e técnica são adaptadas à circunstância. No Brasil, encontra um meio suficientemente livre para dar continuidade às experimentações que caracterizaram sempre a sua obra, com as referências que traz como património, mas também condimentado pelos novos ingredientes sugeridos pelo novo contexto físico, humano e cultural. 3.2. MODOS DE HABITAR E PROPOSTAS ESPACIAIS Planta e volume fragmentados. As propostas espaciais das casas brasileiras que conhecemos de Conceição Silva e Pinto da Cunha apresentam uma planta bem diferente do modelo compactado e essencial dos exemplares brutalistas paulistas, as quais correspondem ao carácter monolítico do próprio volume. De modo geral, as casas brasileiras da época reflectem ainda a filiação na visão funcional e mecanicista das vanguardas modernas. Mais particularmente ainda na cena paulista, onde dominam as visões colectivistas ligadas à ideologia de esquerda. É de referir que “foi no tratamento racional das plantas que certa modernidade emergiu em São Paulo” e não “mediante os recursos formais que caracterizaram a linha carioca” (Segawa, 1999), factor que reflete já de si a formação mais técnica (recorde-se que só na década de 40 é que as escolas de arquitectura de São Paulo se autonomizam da de engenharia, até aí eram arquitectos-engenheiros, com formação limitada e muito técnica – Matera, 2005, p.39). A título de exemplo, as soluções e organização espacial de casas como as residências Telmo Porto e Martirani (de 1968-69), de Artigas, ou a casa própria de Paulo Mendes da Rocha (1964), todas em São Paulo, lembram os princípios de Corbusier da autonomização da estrutura e do invólucro exterior, liberdade espacial e elementos ou divisões da casa tratados como órgãos internos. As brutas fachadas cegas não deixam adivinhar a 40 Joan Villà desenvolveu este sistema de pré-fabricação cerâmica com a Universidade de Campinas, em 1985. Tratam-se de painéis leves de tijolos cerâmicos solidarizados com betão armado destinados à execução de paredes, lajes e coberturas. Mais tarde foram aplicados a conjuntos residenciais. Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 60 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais fluidez e liberdade com que é tratado o espaço interno, mas sempre dentro dos limites das “caixas” que as encerram. Na década de cinquenta, Conceição Silva segue também essa linha de pensamento racional, com uma certa compactação dos espaços e a sua organização num volume de geometria clara, como por exemplo na casa Ribeiro da Cunha, no Restelo (Lisboa), sem no entanto atingir a radicalidade espacial das residências paulistas acima citadas, as quais transcendem sem dúvida a lição funcional. Porém, como antes referido, em Portugal, o final dessa década e a seguinte serão de revisão, colhendo os frutos do novo empirismo escandinavo ou do organicismo wrightiano, lição a que Conceição Silva dá sequência no espaço brasileiro. Recusando modelos pré-estabelecidos, importa responder ao local, ao clima, à topografia e à vivência quotidiana de determinada família. Assim, os volumes fragmentados refletem o trabalhar da topografia, com vários níveis, e a individualização e hierarquização de cada espaço, como é notório na complexidade e riqueza espacial que apresentam as casas Steinberg, Coslowsky e Resner. A morfologia destas casas é o resultado do trabalhar do espaço interno, do tratamento volumétrico do espaço em três dimensões e não só em planta. Reflecte-se também aqui a leitura da imensidão do território brasileiro que se repercute na explosão dos espaços, intensificando a experiência espacial. O espaço está aqui cheio de intenções e subtilezas e é ele que dá a forma, ao contrário do partido da escola paulista em que é agenciado num volume mais puro e indepentemente deste “casco”, não obstante a liberdade com que é trabalhado e a fluidez e modernidade das várias propostas espaciais. Ilustração 39 - Casa Telmo Porto, de Vilanova Artigas. (Carrilho, 2014) Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 61 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Ilustração 40 - Residência Martirani, de Vilanova Artigas (Mahfuz, 2006). Ilustração 41 – Residência Martirani, planta piso 0 (Mahfuz, 2006). As casas brasileiras da dominante escola paulista das décadas 60 e de 70 são também uma extensão dessa visão do objecto arquitectónico como uma infra-estrutura urbana, numa altura em que o Estado Brasileiro vem fazendo um notável esforço de investimento em grandes equipamentos para modernizar o país, nomeadamente aeroportos, terminais rodoviários, hidroeléctricas ou estabelecimentos escolares41. Tomando o caso paradigmático de Vilanova Artigas, refere Wisnik que o “tratar as casas como cidades era um objectivo explícito” do arquitecto paulista que “gostava de se referir à célebre imagem de Leon Battista Alberti: as cidades como as casas, as casas como as cidades” (Wisnik, 2004, p.75). Nomeadamente, as radicais casas Telmo Porto e Martirani “são ambas caixas de concreto armado e aparente, quase que inteiramente cegas e voltadas para os seus próprios interiores, e com uma estrutura que alude mais a uma obra de grande porte (laje nervurada, grandes vãos) do que à imagem de uma casa” (Idem). Esta forma de entender a habitação, o seu encerramento ao exterior, numa altura de forte crítica à ditadura militar, por sua vez, a fluidez e o interior aberto sobre si próprio - os quartos sem janelas exteriores tais “celas monásticas” (Wisnik, 2004, p.68) na casa Telmo Porto – o interior como um espaço todo comunicante e aberto, independentemente da sua raiz moderna “corbusiana”, são antes de mais a manifestação do engagement político no pensamento arquitectónico, um manifesto contra o estado do país cerceado pela ditadura militar e contra os estandartes de habitar burgueses. Estas casas de Artigas, talvez o mais radical arquitecto brasileiro nas suas posições políticas42 e para quem mais do que ninguém a ideologia se torna num dos principais ingredientes da 41 Sobre esse assunto, veja-se o capítulo “Episódios de um Brasil Grande e Moderno 1950-1980”, (Segawa, 1999, ps 159 a 188). 42 Para além de Mendes da Rocha, os mais jovens Sergio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre dão continuidade ao radicalismo político de Artigas (Kamita, 2004, p. 162). Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 62 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais arquitetura, são como “favelas racionalizadas”43. Como diz Wisnik, também a propósito de Paulo Mendes da Rocha, estes arquitectos buscavam “urbanizar a vida doméstica, isto é, abolir ao máximo possível a intimidade, extirpando as marcas idiossincráticas pessoais ligadas à ideia romântica e burguesa de lar (...). O que procuravam, era abolir os segredos e confortos do espaço privado familiar em prol de uma ideia cívica de vida inteiramente pública: a casa como um fórum da vida coletiva da cidade, onde cada um tem a sua liberdade pautada pela liberdade do outro, pois as regras de ordem social controlam o arbítrio da subjectividade pessoal” (Wisnik, 2004, ps.78 e 79). Como refere Kamita, Artigas revê “criticamente a hierarquia do espaço, a distribuição do programa, a divisão funcional e as regras estilísticas da casa burguesa” (Kamita, 2004, p.159). Conceição Silva não se envolverá na discussão ideológica, os ideais políticos nunca foram para o arquitecto português um ingrediente da concepção projectual. Interessalhe como resposta adequada à encomenda a criação de um ambiente sensível e confortável, domesticado, tendo como matéria de trabalho as questões espaciais, a intimidade, as nuances proporcionadas pela relação com o exterior, pela luz, pelas qualidades tectónicas e sensoriais dos materiais, sem perder de vista a experiência sensível da expressão de um artefacto sobre um determinado território. Por outro lado, reage à questão geográfica, enfatiza a exuberância da natureza integrando-a na arquitectura, trazendo-a para o espaço interno com pátios ajardinados, submergindo a construção nessa natureza, não só com as floreiras que dão a ideia de que as casas foram sendo tomadas pela vegetação, como pela forma como tira partido da condição topográfica. Pese embora os espaços desenhados sem convenções, com grande liberdade e modernidade, as três casas acima citadas respondem à vida de um determinado estrato social, com um desdobramento de múltiplas salas e zonas distintas separando claramente as funções sociais, privadas ou de serviços; são, sem dúvida, casas modernas para uma elite burguesa, afinal a sua clientela, bem no campo oposto da “colectivização da vida privada” de Artigas. Mesmo no caso dos arquitectos cariocas, vimos, de modo geral, a mesma compactação dos volumes e racionalidade das soluções espaciais, à excepção de algumas experiências com plantas mais “orgânicas”, tratando-se na realidade de aproximações mais formais em que as casas são entendidas como uma segunda natureza, integrando-se nesta mais mimeticamente, embora geralmente com um 43 Nos termos de Flávio Motta, (Apud Wisnik, 2004, p. 78). Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 63 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais diálogo sensível com o entorno, como no Caso da Casa Canoas (São Conrado, Rio de Janeiro, 1952-1953), de Oscar Niemeyer. O quase único vestígio da casa é um coberto de betão curvilíneo a fechar um dos lados de uma clareira e a piscina de forma irregular como um acidente natural no jardim. A zona social é delimitada por uma parede curvada opaca que aproveita a maleabilidade do betão, mas sobretudo transparente, com vidros igualmente curvilíneos, dissimulando-se a parede pelo seu recuo em relação à cobertura. “A sensação de abertura é completa, como se o vazio do terreno atravessasse a casa e continuasse através da floresta” (Kamita, 2004, p.154). Conceição Silva, por sua vez, mantém sempre uma certa contenção formal, não se aventura pelas liberdades de grande efeito plástico da corrente carioca, a qual, de qualquer forma, quando ele chega ao Brasil, já fora alvo da crítica internacional e perdera a sua vitalidade. Ilustração 42 - Casa Canoas, Rio de Janeiro, de Oscar Niemeyer (Guerra, Ribeiro, 2006). Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 64 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Ilustração 43 - Residência Waldo Perseu Pereira, São Paulo, Joaquim e Liliana Guedes. (Andreoli, Forty, 2004). Existem no entanto no Brasil algumas indagações mais sensíveis às possibilidades espaciais e suas interacções com o território, como no caso, mais uma vez, de Joaquim Guedes, arquitecto com obra muito experimental e radical. A residência Waldo Perseu Pereira (com sua mulher Liliana, de 1967-9), de inusitada morfologia em São Paulo, responde ao desafio de um lote triangular e com um desnível de cinco metros, com um complexo jogo de volumes. Raro em terras brasileiras, reflecte uma particular riqueza espacial, sobretudo nas zonas sociais “organizadas numa sequência radial dando a impressão de grande abertura” (Kamita, 2004, p.164). Tal como na casa Steinberg, organiza em volumes a zona de serviços, com os quartos dos empregados sobrepostos à cozinha, e a zona dos donos da casa com os quartos por cima das salas. A área social oferece uma riqueza de ambientes com diversas formas, alturas de pé direito e vistas e expande-se para a mezzanine do andar superior. Pouco convencional, sem descurar a racionalidade de algumas soluções, aproxima-se das propostas do arquitecto português pela liberdade com que abandona a planta racional para responder a pressupostos encontrados no terreno e no programa, também complexo dadas as solicitações da encomenda para uma família da alta burguesia e que exigia um apartamento independente para o pai do proprietário (Idem). A postura analítica de Joaquim Guedes, a liberdade com que muda a forma em cada novo projecto, sem parti pris mas antes em função da circunstância específica de cada encomenda, com influência do empirismo escandinavo 44 , aproxima-o do modus operandi do arquitecto português. E, tal como Conceição Silva, Guedes importava-se com a cultura dos seus clientes, com seu “gosto, classe social e necessidades psicofisiológicas” (Kamita, 2004, p.164), indiferente às críticas dos membros da escola paulista mais dogmáticos. 44 Kamita aponta a influência de Aaalto (Kamita, 2004, p. 164). Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 65 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Ilustração 44 - Casa Lota de Macedo Soares, de Sérgio Bernardes. (Cavalcanti, 2009). um pouco mais velho, Sérgio Bernardes (1919-2002), do Rio de Janeiro, é outro arquitecto que trilha um caminho próprio dentro da modernidade, com obras que não poem de parte a tradição. Doseando modernidade e rusticidade, a residência de Lota de Macedo Soares (Petrópolis, 1951-53), ou a casa própria (Rio, 1960-61) demonstram uma especial capacidade de mesclar linguagens aparentemente antagónicas. Num dos sítios de veraneio mais elitistas da capital carioca, a casa Lota Macedo (jardim de Roberto Burle Marx), com sua feição meia industrial, meia artesanal - cobertura inclinada mas de alumínio ondulado sobre estrutura metálica de treliças, muro de pedra no embasamento, mas rampas de betão, paredes de tijolo e portadas de correr de madeira - oferece alguma variação na planta com avanços e recuos e uma composição mais livre em vários volumes cruzados, interagindo com a paisagem, incorporando inclusive uma rocha existente na zona dos quartos. Lauro Cavalcanti refere a posição singular de Bernardes em relação ao racionalismo corbusiano e as derivações plásticas da escola carioca, considerando a sua obra “concomitantemente orgânica e racional”, próxima tanto de Mies van der Rohe, pela sua “concepção racional e minimalista”, quanto do organicismo de Frank Lloyd Wright, pelo diálogo estabelecido com a natureza e “o uso de materiais sem revestimento algum, de modo a explorar as suas texturas naturais, assim como uma dominância horizontal em suas composições” (Cavalcanti, 2009). Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 66 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Ilustração 45 - Casa Ronaldo Steinberg, Plantas dos pisos 1 e 2, fachada para a rua e perspectiva. (Silva, F. (2), ca.1980). A casa Steinberg organiza-se em torno de uma centralidade (partido que vemos em muitas casas de Wright), a sala desmultiplicando-se em vários espaços, em três níveis distintos, expandindo-se ainda para a zona de refeições e para o escritório, numa solução de grande fluidez. Estas casas reflectem simultaneamente o protagonismo que o arquitecto atribui à socialização da família, e daí a centralidade e abertura dos espaços comuns para onde tudo converge, e modos de habitar enraizados numa sociedade tradicional e pouco igualitária, com uma forte estratificação social, onde a burguesia tem ainda a capacidade de construir casas com uma considerável complexidade programática. Refere Betty Steinberg, mulher de Ronaldo Steinberg, que o arquitecto procurou saber os hábitos e necessidades da família antes de apresentar uma proposta (Steinberg, 2013), metodologia que encontramos já nas obras que projecta anos antes em Lisboa, influenciado pelas teorias psicologistas do arquitecto californiano Richard Neutra (de origem austríaca, 1892-1970). Pese embora Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 67 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais se preocupe em responder às necessidades psico-fisiológicas da família, o arquitecto não deixa de propor novas abordagens ao estilo de vida, com a abertura dos espaços e nomeadamente a ausência de um hall de entrada, conduzentes a uma ousada informalidade, solução que ainda hoje Betty Steinberg recorda como uma certa falta de privacidade (Steinberg, 2013). Por sua vez, toda a área de serviço – com uma extensa zona de quartos para empregados – fica bem segregada do resto da casa, afastada da zona privada dos proprietários. A organização da casa Steinberg estrutura-se por volumes, sempre com dois pisos: o de serviço, com os quartos dos empregados por cima da cozinha, o das salas, com uma mezzanine, espaço indeterminado, que se debruça por cima daquela, e o dos quartos, com a suite principal no piso superior. No caso da casa Coslowsky, praticamente organizada num só piso mas também em vários níveis, a sala é igualmente o elemento central desta organização tripartida entre espaços privados dos proprietários, espaços comuns/ de estar e zona de serviço. A teia de relações é aqui ainda mais complexa, já bem distante da clareza dos espaços funcionalmente organizados da moderna arquitectura racionalista. Ilustração 46 - Casa Coslowsky, Planta do piso 0 (Silva, J. e Silva, F., 1987, p.172). Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite Ilustração 47 – Casa Coslowsky, exterior (Cunha, 2013). 68 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Ilustração 48 - Casa Valadas Fernandes, Cascais. (Leite, 2007, Volume II). A residência Coslowsky, desenhada a partir da repetição de um módulo de base quadrada, é a que apresenta uma maior fragmentação, lembrando soluções wrightianas assim como a Casa Valadas Fernandes (1968-71), uma das últimas obras unifamiliares do arquitecto em Portugal. Sem apresentar a organização em cruz da casa portuguesa (típica do arquitecto norte-americano), a residência Coslowsky espraia-se pelo terreno, com o avanço e recuo dos volumes, resultando numa base irregular, volumes esses com dupla altura de pé direito nos quartos das crianças, os quais tinham a zona de dormir em mezzanine. A composição obedece a uma lógica aditiva em que se tira partido do terreno, bem ao oposto das concepções correntes brasileiras da época em que a liberdade espacial se exerce dentro dos limites de um volume compacto cuja presença se afirma no lote. A marcação modular prolonga-se na piscina e no pavimento do seu espaço envolvente e é realçada, no exterior, pela cobertura em pirâmides. A casa Resner, mais condicionada pelas limitações que oferece um pequeno lote de base rectangular no Condomínio Nova Ipanema, organiza-se em L, em torno de um espaço exterior central dominado pela piscina, separando-se a ala dos quartos da dos espaços comuns e ficando os serviços na sua intersecção. Mas também aqui a composição ajusta-se a um jogo livre de espaços e volumes trabalhados nas três dimensões, expressa na complexa morfologia. O escalonamento dos corpos atende, num e noutro caso, à necessidade de conferir maior privacidade aos espaços que assim se individualizam. Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 69 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Ilustração 49 - Casa Resner, planta do piso 1 e perspectiva. (Silva, J. e Silva, F. 1987, ps.186-187). Casa paisagem. Uma característica determinante destes projectos, que se enraíza bem na prática brasileira, é a interacção com a natureza, a qual é um ingrediente fundamental do projecto e não um elemento a ser dominado e contra o qual se construía como no Ocidente, onde, geralmente, no melhor dos casos se estabelecia um discreto diálogo entre os dois elementos. Característica não só possibilitada, mas também fomentada, pela situação geográfica, atendendo ao clima e à prodigalidade da vegetação. Nas casas Steinberg, Coslowsky e Resner, a interpenetração entre exterior e interior é levada ao limite, até à criação de uma nova geografia interior e as próprias construções ganham um carácter topográfico. A arquitectura funde-se com a paisagem, facto potenciado pelo jogo volumétrico em diálogo com a topografia, pela vegetação que “brota” da construção em floreiras ou na cobertura (casas Steinberg e Resner) e ainda pela alternância entre construção e vazios ajardinados. As casas integradas na paisagem assumem o papel de uma nova natureza, com um sentido telúrico que remete para o organicismo wrightiano. Agarradas a um morro e na proximidade de um entorno de grande exuberância da vegetação e radicalidade da paisagem, as casas Steinberg e Coslowsky parecem emergir como sedimentações calcárias. Observada de uma vista superior, a casa Steinberg assume um carácter abstracto, parecendo um marco na paisagem, mais ainda quando comparada com as construções limítrofes. Do lado da rua, as frentes cegas assumem-se não como fachadas frontais principais que denunciam a vida doméstica, mas sim como abstracções que parecem antes anunciar o acesso a um espaço natural. E até a forma de aceder à casa, por uma entrada a uma cota mais baixa, subterrânea, por um piso semi-enterrado, exacerba essa sensação de descoberta, de se passar da rua, do meio urbano, para um novo ambiente em harmonia com a natureza. Ao contrário, do outro lado, onde se desenrola a vida doméstica, as grandes e pesadas massas enraizadas Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 70 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais no terreno são perfuradas nas frentes que se abrem para seus jardins ou pátios interiores, numa atitude introspectiva. Ilustração 50 - Vista superior da Casa Ronaldo Steinerg, a última à direita. (Google Inc., 2014) Num contexto urbano consolidado, no centro do Bairro da Tijuca, próxima do mar, também a residência Resner se nega ao bairro com a frente cega. A casa implanta-se numa plataforma acima da cota da rua, numa solução que lembra a casa própria de Paulo Mendes da Rocha em São Paulo (1964-6), embora de forma bem mais amena, sem o carácter de “manifesto” da obra paulista. A casa Resner recusa também qualquer relação directa com o exterior, criando um micro-cosmos virado para o pátio interior. O lote é trabalhado no seu conjunto, numa articulação entre construção e espaços exteriores que se desenvolvem em vários patamares, sendo assim ocupado na sua totalidade pela construção que se adoça às extremidades, reconfigurando os seus limites e dando uma nova modelação ao terreno. Esse sentido de trabalhar o lote no seu todo, construção e natureza fazendo parte da mesma composição, revela-se também claramente nos loteamentos de casas unifamiliares que faz para a Michelin no bairro do Campo Grande, nomeadamente em Poatã ou na Rua Olinda Ellis, como veremos mais abaixo. Não se desenha uma casa num jardim, mas todo um ambiente num continuum que redesenha a totalidade do espaço disponível, criando-se assim um lugar para a vida doméstica. São casas que dão significado à paisagem assumindo-se como uma referência, que dissolvem a noção de casa numa parcela de terreno. Dentro de uma lógica que parte dos mesmos princípios, mas com muito mais radicalidade, arquitectos como Paulo Mendes da Rocha levarão essa ideia mais longe criando edifícios com um carácter não só topográfico, mas sobretudo como marco territorial, como é exemplo o Museu Brasileiro da Escultura (1986-95), no cruzamento Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 71 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais de duas artérias principais de São Paulo, já não jogo de volumes, mas sucessão de superfícies e praças cobertas por um pórtico à escala urbana que dão continuidade ao espaço público45. Ilustração 51. Casa Steinberg (Silva, J. e Silva, F. 1987, p.169). Ilustração 52 - Casa Coslowsky, alçado frontal. (Silva, F. (2), ca.1980). Ilustração 53 - Casa Resner, corte EE e alçado para a rua (Silva, F. (2), ca.1980). Quase uma constante em todas as casas projectadas, os espaços internos, com maior incidência sobre as zonas sociais, são organizados em torno de pátios ajardinados, atendendo a uma composição ritmada por cheios e vazios. Por outro lado, os exteriores expandem-se para o interior pelos grandes vãos envidraçados nas salas e a colocação intencional de algumas janelas no mesmo eixo, em lados opostos, intensifica a sensação de estar no meio da vegetação. Na casa Steinberg, alguns vidros são colados a seco, levando ao limite a relação contínua com o jardim. Mas enquanto que nas Residências Steinberg e Resner ainda podemos dizer que o interior expande-se para o exterior, assim como a natureza é levada para o interior com os pátios ajardinados, na casa Coslowsky, há mesmo um diluir das fronteiras entre estas duas realidades, com o tratamento dos espaços internos como se fossem exteriores. A interpenetração entre exterior e interior resulta não só do espraiar dos pavilhões pelo jardim, mas também do tratamento do espaço interno como se de uns terraços ou um jardim mais arquitectónico se tratasse, lembrando a ambiguidade do terraço/galeria da 45 Sobre o carácter territorial deste edifício, veja-se (Segawa, 2005, p. 54 a 57). Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 72 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Residência Lota de Macedo, de Sérgio Bernardes. Atente-se ao acabamento das paredes interiores com o tijolo à vista, sem qualquer reboco, e à evidenciação da grelha estrutural marcada pelo ritmo dos pilares que quase parece um jardim porticado; a grande abertura dos vãos, com as portas envidraçadas que se recolhem; as coberturas ligeiras e transparentes deixando vislumbrar as copas das árvores e o céu nalguns espaços; os pátios ajardinados e floreiras disseminados pela casa. É-se assim levado a considerar os espaços de estar como uns terraços cobertos, não se distinguindo com clareza o que é interior e o que é exterior, intenção que se vê também em desenho. Não obstante, a casa oferece um ambiente confortável, com a rudeza do tijolo aparente amenizada pelo recurso à madeira no pavimento, nalguns tectos e na caixilharia. A riqueza expressiva dos materiais naturais, a rudeza ou suavidade das texturas, a pedra em muros exteriores e paredes interiores (na casa Steinberg), o tijolo à vista, as madeiras, conferem também qualidades sensoriais ao espaços que aproximam estas arquitecturas da natureza. Trata-se de uma intenção bem brasileira que se vê por exemplo na Casa Lota de Macedo, de Sérgio Bernardes. Ilustração 54 - Casa Coslowsky. (Silva, J. e Silva, P., 1987, ps.172-173). A importância da relação com o jardim é desde logo claramente revelada nos desenhos de Conceição Silva, no protagonismo da vegetação e espaços exteriores que se vê quer nas perspectivas, quer nos elementos rigorosos. Aparecem vários desenhos onde se tenta transmitir a vivência ou o ambiente dos espaços exteriores, com o mesmo peso até do que no interior das casas. Revelam também a cultura local, como a rede no alpendre da Casa Royle, em Geribá e umas “garotas” de biquíni a apanhar sol em poses descontraídas que ilustram uma certo ar dengoso tipicamente brasileiro, numa proposta para uma casa num conjunto turístico na Ilha dos Macacos, em frente a Angra dos Reis (tanto quanto se apurou, não construído). Também no Loteamento da Cachamorra, o conceito do condomínio é alicerçado no projecto de Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 73 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais paisagismo, na criação de uma massa verde a partir da fazenda existente, preservando-se as espécies pré-existentes e potenciando essa paisagem com novas plantações. Essa é a verdadeira qualidade do conjunto residencial que se quer vivido e percorrido nos seus espaços exteriores, possivelmente em função não só da memória da pré-existência de uma fazenda, mas também da sua localização no limiar da zona urbanizada do Campo Grande, fazendo a transição entre espaço natural e espaço urbano. Ilustração 56 Casa Royle, Búzios (Silva, F. (2), ca. 1980). Ilustração 55 - Perspectiva do Loteamento da Cachamorra, Rio de Janeiro (Pinto, 1980). Ilustração 57 Casa Coslowsky e Casa em Angra dos Reis (Cunha, 2013). Em Portugal, o arquitecto já havia dado provas da sua especial sensibilidade ao contexto físico, à relação interior/exterior, nomeadamente desenvolvendo as casas em torno de pátios ajardinados dentro da tradição da casa mediterrânica, incorporando floreiras na arquitectura e adaptando a construção à topografia (Casa da Boca do Inferno ou nas casas próprias do Guincho e do Dafundo, Casa Comandante Ferreira Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 74 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Neves em Oeiras, só para dar alguns exemplos). Porém, o protagonismo que a paisagem ganha aqui na arquitectura é nitidamente uma resposta ao contexto que só acontece por se tratar do espaço brasileiro. Ilustração 58 - Casa Conceição Silva, Guincho, Portugal. (Silva, F. (2), ca. 1960). Ilustração 59 - Casa Valadas Fernandes, Boca do Inferno (Ilustração nossa, 2007). Ilustração 60 – Casa do Dafundo, Planta Piso 1 (Leite, 2007, Volume II). Essa interpenetração entre interior e exterior é uma constante no contexto brasileiro. Como refere Kamita, “a casa moderna brasileira demonstra uma inclinação invulgar de interação com a exuberante natureza tropical do seu meio ambiente (...), é uma espécie de reconciliação entre natureza e cultura, uma pacificação de diferenças – donde o sentimento hedonístico de bem estar nestes ambientes construídos” (Kamita, 2004, p.153). Porém, são mais correntes as organizações introspectivas em torno de um pátio central, dispositivo que Conceição Silva usara várias vezes em projectos em Portugal - como nas três casas pátio, no Guincho, ou na Casa Comandante Ferreira Neves, em Oeiras. Nestas casas do Rio, reformula esse conceito levando essa experiência mais longe, fundindo espaços internos e espaços externos de forma mais abstracta, em sintonia até com a maior fragmentação da planta. Na casa Coslowski desfaz a ideia de espaço exterior encerrado, diluindo os seus limites. A organização em planta em torno de um pátio central, geralmente com os quartos virados para o seu interior, tem raízes na própria casa colonial brasileira, sendo para Kamita a “relação ambígua entre interior e exterior o principal aspecto que valia a pena retomar” (Kamita, 2004, p.146) na modernidade. Trata-se efectivamente de uma constante na casa brasileira, quer se trate do primeiro modernismo, como as casas nativistas de Lúcio Costa – por exemplo a residência Paes de Carvalho, no Rio de janeiro (1944), que se desenvolve dos dois lados de um pátio central, pátio esse lateralmente fechado por paredes, ou seja que tem uma inusitada interioridade (aspecto que se vê em muitos projectos de Le Corbusier, nomeadamente nos terraços de cobertura), quer no pós- Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 75 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Brasília, tradição esta que chega aos dias de hoje. Citem-se, por exemplo, a casa Bo Bardi, São Paulo (1949-51), um volume envidraçado suspenso sobre o jardim, o qual é levado para dentro de casa com dois vazios, um na sala e um pátio para o qual abrem os quartos. Porém, separa-se da natureza, o volume sendo assente em pilotis. Ilustração 61 - Casa própria, Lina Bo Bardi, São Paulo (Andreoli, Forty, 2004) Ilustração 62 - Casa Milton Guper, São Paulo, de Rino Levi. ( Andreoli, Forty, 2004, p.157). A casa Milton, de Rino Levi, em São Paulo (1951-3), organizada num só piso, cria vários pátios que servem as diferentes zonas da casa de modo a garantir a privacidade do pequeno lote. O ambiente é marcado pelo jardim/pátio semi-coberto com pérgula de betão que prolonga os espaços sociais para o logradouro, rompendo com os limites entre interior e exterior. A solução já não é a caixa compacta isolada no meio do lote, tirando aqui partido de todo o lote como nas casas dos arquitectos portugueses, mas a organização mantem-se racional numa organização do espaço em T e uma significativa clareza da forma. A casa Lota de Macedo, de Sérgio Bernardes, também oferece uma rica teia de relações com a serra circundante, com o trabalhar cuidado de vários graus de exterioridade, alternando espaços fechados e espaços Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 76 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais abertos, que são ao mesmo tempo terraço coberto, galeria e rampa de ligação entre as várias zonas da casa e criando uma composição dos espaços exteriores. A interação com a natureza e exploração de possibilidades de relações com o exterior oferecidas pelo clima são uma constante na arquitectura brasileira, como se verifica em obras mais tardias como a Residência RB de Lélé, a Residência José Roberto Filipelli (1971) de Ruy Ohtake, e a casa própria de Edgar Gonçalves Dente (1975), todas em São Paulo. Variam entre o ensimesmamento sobre um jardim interno como na casa RB, mantendo-se a casa como um volume no meio do lote; e o prolongamento do espaço interno para os limites externos, em espaços exteriores que desenham todo o lote, muitas vezes concebidos com tratamento idêntico ao interior. São salas de estar semi-cobertas de uso quotidiano como se vê na Casa Gonçalves Dente, à semelhança também da casa Milton ou da casa projectada por Ohtake. Ilustração 63 - Residência Lota de Macedo, de Sérgio Bernardes. (Kamita, 2013). Ilustração 64 - Residência RB, de Lélé. (França, 2014). Ilustração 65 - Residência José Roberto Filipelli, de Ruy Ohtake. (Correa, 2014) Ilustração 66 - Residência Gonçalves Dente (Silva, 2011). Estes grandes pátios centrais, vazados na construção, são, na dimensão doméstica ou familiar, remissões do sentido público da praça à escala da cidade, lugar de encontro e Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 77 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais trocas sociais. São todos eles exemplos bem ilustrativos dessa ambiguidade entre interior e exterior e dessa forma de tornar mais complexa e inter-dependente a relação entre espaços internos e espaços externos. Porém, ou porque recusam o contacto com o solo, porque a austeridade e frieza do betão esclarece sobre a sua natureza industrial, ou ainda pela geometria pura do volume, afastam-se do território. As casas dos arquitectos portugueses acrescentam a riqueza morfológica e o enraizamento com o solo que as aproximam de uma “natureza artificial”, intensificando o grau de simbiose entre os dois universos, sobretudo no caso mais radical da casa Coslowski. 3.3. DA HABITAÇÃO COLECTIVA À ESCALA URBANA Os anos setenta são de confortável crescimento no Brasil, anos do “Milagre Brasileiro”, beneficiando o investimento imobiliário e a encomenda privada, embora com poucas consequências para os pequenos ateliers, numa altura em que começam a proliferar as grandes empresas de projecto46. A família Steinberg, proprietária de uma importante empresa de construção e promoção imobiliária, a Servenco47, enquanto encomenda as residências para uso próprio ao arquitecto, desenha no seu gabinete os projectos de maior escala como os centros comerciais que fará a partir dos anos 80. Betty Steinberg confessa terem ficado muito entusiasmados com o portfólio do Atelier Conceição Silva com as obras realizadas em Portugal (Steinberg, 2013) – o arquitecto ainda não tinha construído nada de registo no Brasil. Uns anos depois da construção da casa de Betty e Ronaldo Steinberg, Jacob e Clara Steinberg encomendam a Conceição Silva um prédio de habitação colectiva para um lote da prestigiada Avenida Delfim Moreira, em Copacabana, em frente ao mar, reservando para si os dois últimos andares. Com a crescente industrialização que se faz sentir nas décadas de sessenta e setenta e o crescimento do tecido empresarial, com grandes empresas que recorrem a técnicas de marketing e uso da imagem para a sua promoção, surgem uma série de edifícios nas grandes cidades brasileiras com uma imagem mais comercial e o recurso a novos materiais industrializados e tecnologias construtivas, que promovem a ideia de 46 Sobre este assunto, ver (Hensel, Michael e Kubokawa, Rumi, 1999). Também havia grandes ateliers de arquitectos, como o escritório de Edison Musa, no Rio, que depois se expande para São Paulo e chega a ter mais de 130 colaboradores (Escritório Edison musa, 2014 47 A Servenco foi fundada em 1948 como empresa de projectos e construção pelo casal de engenheiros Clara e Jacob Steinberg, pais de Ronaldo Steinberg. Expandiu-se depois para a promoção imobiliária, em particular de centros comerciais temáticos, dentro da área de decoração e design, como o Rio Design Center no Leblon (Servenco, 2012) Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 78 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais progresso e a mensagem corporativa. Diz Roberto Segre que “se os militares procuraram modernizar o País com uma posição nacionalista, os sucessivos governos democráticos aderiram ao processo do neoliberalismo e à globalização da economia dominantes no mundo” apontando como consequências na arquitetura brasileira dos anos 80 o anonimato de conjuntos residenciais, shoppings e prédios de escritórios submissos às solicitações do sistema corporativo48 . Na opinião de Colin há mesmo um regresso a um estilo internacional. “Objetividade, anti-individualismo, racionalismo, determinismo funcional, uso de malhas quadrangulares ou retangulares na definição da planta, formas puras e geométricas, leveza, uso de produtos industrializados, eram suas características principais” (Colin, 2011), refere, dando como exemplo o Edifício Sede do BNDES (1972-82), de Alfred Willer et Alii, no Rio e o Condomínio Nova Ipanema (1973-9), de Edison Musa (1934). São igualmente exemplo, o Méridien (1973) de Paulo Casé (1931-), um arquitecto de referência no Rio dessa época, quem, segundo Roberto Segre ecoou “o formalismo superficial do pós-modenismo internacional” (Segre, 2005), à semelhança dos irmãos Edison e Edmundo Musa. Paralelamente continua a vingar o brutalismo, como o núcleo habitacional do Cafundá (1977/82), no Rio, de Sérgio e Ana Luíza Magalhães, Sívia e Clovis de Barros e Rui Velloso com ressonâncias do complexo londrino Robin Hood Gardens (1969-72) do Casal Smithon ou de Candilis. Com uma implantação mais flexível na cidade, adaptase à topografia de modo a preservar o desenho natural do morro, variando ainda a altura dos edifícios e recupera dispositivos do modernismo como cobogós e quebrasóis. 48 Refere ainda que “numa visão "extremista" do estado da arquitetura nas duas últimas décadas, as figuras representativas da vanguarda local ficaram reduzidas a poucos nomes: Oscar Niemeyer, Paulo Mendes da Rocha, Lina Bo Bardi, Joaquim Guedes e Ruy Ohtake. Sem dúvida, eles representam a continuidade de uma linguagem arquitetônica brasileira nas interpretações diferenciadas que conseguiram desenvolver em temas culturais ou públicos, sem se submeter às solicitações do sistema corporativo”. (Segre, 2005). Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 79 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Ilustração 67 - Conjunto Cafundá, Rio, Sérgio Magalhães e Ana LuízaMagalhães (Ghione, 2014). Ilustração 68 - Hotel Méridien, Rio, Paulo Casé. (Barbosa, 2012). Ilustração 69 - Condomínio Nova Ipanema, Rio, Edmundo Musa. (Colin, 2011). O edifício Rosalina Brand está mais próximo da tradição brutalista, marcado pela rudeza das grandes superfícies em betão aparente, em particular devido ao pesado e cego volume que faz o coroamento e que, inscrito num rectângulo que ultrapassa os limites de implantação do lote, ilusoriamente solto pelo recuar da fachada envidraçada, parece pairar sobre o edifício. Este gesto, que lhe dá toda a personalidade e que deve ter sido também responsável pela polémica a que será sujeito o edifício por parte do Instituto dos Arquitetos Brasileiros49, responde na verdade inteligentemente às necessidades físicas e estruturais para suportar e conter a caixa de água da piscina. A repetição firme das varandas em consola, mesmo suavizadas pelo biselado de um dos cantos onde se instala uma floreira, reforçam a expressão severa. Para além da dissonância com as fachadas mais pretensamente “clássicas” e figurativas da avenida - veja-se o edifício do lado -, a cor sombria do Rosalina Brand terá sido outra justificação para as críticas dos colegas brasileiros. A inscrição numa base rectangular, o embasamento bem legível pelo recuo em relação ao alinhamento das varandas e pelo duplo pé-direito, coroamento também demarcado como já referido, verificam a intenção de clareza do desenho, afinal uma atitude bem clássica e que não foge aos princípios da corrente brutalista. O edifício actualiza no entanto esta referência com uma expressão que também deve aos anos oitenta, pelas grandes superfícies de vidro e as guardas de acrílico escuro, revelando o esforço temperado de Conceição Silva em experimentar materiais novos e de sempre pertencer ao seu tempo. A “monotonia” e a monocromia são quebradas no último piso pelo volume vermelho que sobressai na cobertura, cor que se repete nos acessos verticais, no interior. 49 Refere Betty Steinberg que o edifício foi alvo de uma polémica por parte do Instituto dos Arquitetos Brasileiros por ser muito diferente do que se fazia e devido à cor (Syeinberg, 2013). Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 80 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais A configuração singular do lote, uma parcela com cerca de 25 por 7 metros num gaveto, sendo o lado mais curto virado para a praia, é engenhosamente trabalhada no edifício Rosalina Brand. Tomando como exemplo o último piso, ao invés de tentar contrariar o sentido longitudinal do lote, a distribuição dos espaços reforça esta característica, com uma clara divisão entre serviços e acessos verticais do lado da empena confinante e a zona social e dos quartos em espaços que se sucedem do lado da rua lateral. A fluidez espacial das zonas comuns - sala, zona de refeições e escritório apenas separados por painéis ou móveis soltos - revela a informalidade de relações própria da época, dispensando-se uma vez mais o hall de entrada. As floreiras e recessos de saída para a varanda, além de estreitarem a relação com o exterior que invade assim o apartamento, dinamizam o espaço interno. A cobertura é um amplo espaço de estar e recepção ao ar livre, com dispositivos de apoio como uma sala, pequena cozinha e instalação sanitária, cujos limites são tratados com floreiras que amenizam a relação aberta com a cidade. Ilustração 70 - Edifício Rosalina Brand, fachada, plantas do 15º piso e cobertura, Rio (Silva, J. e Silva, F., 1987, ps.180-181). Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 81 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Ilustração 71 – Edifício Rosalina Brand, vista varanda (Silva, J. e Silva, F., 1987, p.180). Ilustração 72 - Edifícios Triomphe e Maison de Mouette, São Paulo, de Ruy Ohtake. (Ruy Othake Arquiteto, 2010). Coerente com as residências já analisadas, a relação entre interior e exterior é aqui o principal tema para qualificar o habitar no contexto tropical, neste caso em pleno ambiente urbano, mas na proximidade do mar. As varandas, como já referimos, dispositivo de uma enorme importância na arquitectura a na forma de estar brasileira desde os tempos coloniais, têm todo o protagonismo, não só na expressão da fachada, mas também nas possibilidades de viver o espaço. Generosas, ocupam a quase totalidade do comprimento da fachada, interrompendo apenas para tornar o toque no edifício do lado mais subtil ou para dar um pouco de dinâmica à rigidez do volume. Por sua vez, o olhar mais atento poderá observar subtilezas no aparente paralelepípedo de base, com pequenas reentrâncias para colocar floreiras que invadem o interior, ou marcam a saída para o exterior. Um vazado permite criar um saguão para trazer luz à cozinha e à casa de banho da suite, aproveitando-se sempre para animar o espaço interno com uma floreira. Com a sua expressão bruta e abstracta, dentro da tradição brutalista, o edifício Rosalina Brand é um marco, uma escultura geometrizada, na principal artéria do Leblon, a avenida Delfim Moreira. O papel dado às varandas na habitação colectiva é uma permanência na arquitectura brasileira do século XX, com intenções mais compositivas e espaciais, ou mais plásticas. Veja-se por exemplo a obra do paulista Ruy Ohtake (1938), quem deu continuidade à liberdade formal da linha carioca, como no Edifício Triomphe de finais de sessenta, ou mais recentemente, com edifícios como a Maison Mouette (1898-90), com derivações escultóricas a partir do tema das varandas. Os seus edifícios mais recentes, geralmente de estrutura leve de aço e vidros espelhados, denunciam a adesão a um certo cosmopolitismo escultórico ou icónico fruto da globalização. Têm Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 82 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais no entanto a virtude de chamar a atenção para a importância da varanda na arquitectura brasileira. Para Conceição Silva, quem nunca mostrou entusiasmo pelas habilidades plásticas, a qualidade do espaço é prioritária no pensamento arquitectónico. Nos conjuntos residenciais Michelin (1979/80), a sua obra de maior envergadura e final, revela a consciência da importância do espaço público, evidente na forma como tenta cozer as construções com o ambiente urbano. Como veremos, tenta aqui conferir algum sentido de espaço público a conjuntos privados, no Campo Grande, numa zona limítrofe da cidade, de expansão espontânea ou com menor controle das autoridades municipais, sem planeamento dos espaços colectivos. Os arquitectos projectam para este bairro no Noroeste do Rio de Janeiro, tanto quanto se conseguiu apurar, pelo menos cinco conjuntos, os quais variam entre um condomínio fechado de moradias, “Estrada da Cachamorra”; um quarteirão com 3 edifícios colectivos, “Rua Professor Castilhos”; um conjunto de lotes para moradias, “Rua Poatã”; uma rua com um grande bloco de apartamentos e três casas geminadas, “Rua Olinda Ellis” e um bairro residencial, “conjunto GI”, o último não construído e existindo dúvidas sobre o primeiro, o maior. Destinavam-se todos aos quadros da Michelin deslocalizados para o Rio, na sua maioria franceses, à excepção do conjunto GI, possivelmente projecto de promoção imobiliária do próprio Conceição Silva, uma vez que tem o mesmo nome do que a firma que criou no Brasil para esse fim (e com nome idêntico a uma empresa de promoção imobiliária que tinha em Portugal). A instalação da multinacional de pneus vem na realidade gerar significativas alterações num bairro periférico e desordenado do Rio de Janeiro - refere-se na memória descritiva50 do Cachamorra “a vizinhança com zonas deterioradas” – quer económicas, quer paisagísticas. Além de gerar emprego, a procura de terrenos e de casas dispersas pela zona conduz à sua valorização repentina, sendo que a SOMIC (sociedade imobiliária da Michelin criada para esse fim e também como forma de evitar a especulação) começa a comprar todas as casas disponíveis que vai encontrando. Estas eram depois remodeladas pelos arquitectos, para habitação dos funcionários que vão chegando para o estabelecimento e arranque da fábrica, isto antes da construção dos grandes conjuntos (Pinto, 2013). Por outro lado, muda também a fácies do bairro, tornando-o mais atractivo com projectos de maior escala, de grande visibilidade e com preocupações urbanas sem precedente, numa zona caracterizada por pequenas e 50 Memória descritiva cedida por Ricardo Silva Pinto (Pinto, 1979). Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 83 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais modestas casas e a permanência de algumas fazendas – embora a prazo - e menosprezo pelo espaço público. Os projectos são no entanto mais ou menos participativos da cidade consoante se encontrem em zonas relativamente densas ou consolidadas, artérias principais ou ruas secundárias, se trate de habitação unifamiliar ou colectiva e também em função das necessidades da Michelin. Enquanto na Rua Prof. Castilhos, Ollinda Ellis ou conjunto GI os edifícios integram-se na malha urbana ajudando a compô-la, no caso da Rua Poatã e sobretudo na Cachamorra os conjuntos funcionam como condomínios, no último caso reconhecendo-se a necessidade de uma solução “em ilha” por questões de segurança, garantia de abastecimentos (por exemplo de água ou electricidade) e tratamento dos espaços públicos, como justificado na memória descritiva. Por outro lado, os conjuntos revelam essa preocupação por uma estética e soluções que recuperam a tradição local, numa procura de identificação com a cultura brasileira, criando uma imagem unitária e marcante naquele contexto sem referências, talvez até reforçado pelo facto de estarem dispersos por vários pontos do Campo Grande. O colorido da cerâmica, no revestimento de fachadas e nos muros em tijolo aparente ou ainda nas coberturas inclinadas de telha, combinado com elementos de madeira, em expressivos corrimãos nas varandas do bloco, nos portões e portadas das casas, garantem a unidade e a intencional reposição de uma identidade brasileira. Trata-se de uma revisitação do passado com a reinterpretação de novos sistemas e seu diálogo com dispositivos contemporâneos, propondo-se sempre esse diálogo entre tradição e modernidade. Assim, nas casas geminadas da Olinda Ellis as coberturas são de duas águas e com telha, mas assentam em laje de betão com a viga de bordadura à vista e as portas e portadas de correr em madeira apresentam desenho simplificado e moderno. Os pilares/lâminas de betão no andar térreo e os grandes vãos envidraçados com caixilhos de delicados perfis nos edifícios colectivos são elementos que dialogam com as paredes texturadas de tijolo aparente ou a madeira que se escolhe para as guardas das varandas ou mesmo para algumas empenas. Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 84 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Ilustração 73 - Conjunto das ruas Prof. Castilhos e Prof. Gonçalves, praça interior e planta de conjunto. Rio (Silva, J. e Silva, F., 1987, ps.176-177). Ilustração 74 - Rua Olinda Ellis/João Ellis, conjunto e pátio interior, Rio. (Pinto, ca.1980). No complexo da Rua Professor Castilhos, dá-se especial ênfase ao piso térreo – a cota pública – criando um vasto espaço comunitário entre os edifícios e percursos de atravessamento pelo interior do conjunto que ocupa um quarteirão entre três ruas. O tratamento do chão reforça esse sentido público, com a calçada à portuguesa a revestir o pavimento e a sua extensão para debaixo dos edifícios cujo piso térreo é recuado de forma a criar espaços de estar exteriores cobertos. O desenho de ondas que remete para o calçadão de Burle Marx em Copacabana confirma mais uma vez que Conceição Silva coloca a tônica na relação identitária com o contexto, preocupação que se repete no conjunto das ruas Olinda Ellis/João Ellis com o mesmo revestimento no pavimento, pese embora aqui em menor escala dada a configuração em rua com acesso automóvel. A importância dos espaços de permanência exteriores é transposta para o ambiente mais privado, com generosas varandas ora projectadas para a cidade, ora vazadas dos edifícios, sempre qualificadas por floreiras, como já se via no edifício Rosalina Brand. Infelizmente, com os anos e os problemas de insegurança que se agravaram no Rio, estes conjuntos perderam esse sentido urbano Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 85 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais com a construção de um muro em torno das Ruas Prof. Castilhos e Prof. Gonçalves e uma cancela com porteiro na entrada da Rua João Ellis. Ilustração 75 – Planta de piso e alçado. Lateral Conjunto de Poatã, Rio (Silva, J. e Silva, F., 1987, p179). O conjunto da Rua de Poatã consiste num pequeno loteamento de 27 casas geminadas, numa “bolsa” que sai da rua de Poatã, constituída por três ruas que culminam em becos sem saída, assim como num generoso espaço verde comum. As casas seguem os mesmos princípios que a residência Resner, com a ocupação inteira do lote murado, articulando-se espaço interior e espaço exterior. Este último é mais uma vez um elemento determinante para a composição e qualificação espacial das casas, conferindo-lhes também intimidade, com pátios interiores centrais ajardinados ou terraços cobertos ou descobertos que descolam dos lotes confinantes ou criam distanciamento em relação à rua. O terreno natural também dita ligeiras diferenças de cotas entre zona dos quartos ou zona dos espaços mais públicos, reforçando a privacidade na vivência das casas. De maior escala, o loteamento da Cachamorra é também o mais “isolado da malha urbana” como se assume na memória descritiva. Numa longa e larga estrada já de saída do bairro, num terreno de quase 10 hectares, destinado a 71 casas unifamiliares e serviços de apoio aos habitantes (uns 300 ou 400 se contarmos uns 5 habitantes por casa) - os funcionários da Michelin - previa-se fechado em condomínio, com apertadas regras de segurança. Numa zona onde praticamente começa a desaparecer a cidade, na mesma estrada do que o próprio complexo industrial da Michelin, oferecia uma série de serviços para fixar e dar qualidade de vida aos expatriados, nomeadamente escola, complexo desportivo, piscinas, salas de festas e reuniões, assim como Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 86 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais bar/restaurante51. Não obstante a sua característica de ilha desconexa da cidade, a principal linha orientadora do conjunto a construir nos terrenos de uma antiga fazenda é de integração na paisagem no limiar entre o urbano e o rural, criando um maciço de arvoredo que une todo o conjunto, respeitando-se a topografia com os arruamentos a acompanhar as curvas de nível e as casas com desníveis de forma a tirar partido das pendentes, valorizando e mantendo o arvoredo pré-existente. Ilustração 76 – Conjunto da Cachamorra, plano director, Rio (Pinto, 1979). 51 Cf. Memória descritiva. Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 87 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Ilustração 77. Conjunto Cachamorra, Casa tipo AA3, plantas piso 0 e piso1 (Pinto, 1979). Ilustração 78 - Conjunto Cachamorra, Casa tipo AA3, corte AB (Pinto, 1979). Ilustração 79 - Conjunto Cachamorra, perfil e perspeciva da rua; perspectiva de uma casa tipo (Pinto, 1979). O projecto de paisagismo, desenhado pelo próprio Conceição Silva, é que fixa as principais regras definidoras do espaço colectivo qualificando-o com, por exemplo, sebes entre os lotes em vez de muros, maciços arbóreos para proteger as zonas de habitação e delimitar os diferentes programas, entre habitação, campos de ténis, piscinas, polidesportivo, escola, edifício administrativo e restaurante. O espaço público Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 88 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais é cuidadosamente desenhado com passeios que chegam aos 5,5 metros, faixas para bicicletas e outras relvadas para proteger os jardins das casas na sua relação com os arruamentos, assim como pavimentos pré-determinados, para uma harmonia de conjunto. Propõe-se aqui também uma intensa vida social, tudo congregando para a zona central dos equipamentos comunitários, em torno da qual se organizam as ruas com as casas em lotes de 600 a 1000m2. A escola, com 18 turmas do 1º e 2º ano, ficava estrategicamente localizada do lado da estrada, protegendo até a vida interna da rua, e, embora servisse prioritariamente o condomínio, oferecia entrada dos dois lados abrindo a possibilidade de futuramente receber alunos externos. Tudo indica que o loteamento da Cachamorra foi construído, existindo um cronograma dos projectos e construção em termos de prazos e custos, orçamento detalhado para todos os equipamentos e casas, porém, não nos foi possível confirmar. O projecto informa ainda que além dos projectos de arquitectura e especialidades, Conceição Silva tinha a seu cargo a gestão da construção, tarefa que lhe assegurava honorários de quase o dobro da totalidade dos projectos, o que nos dá uma ideia da responsabilidade de tal empreendimento. As especialidades incluíam projectos correntes como estabilidade, mas também elementos que em princípio seriam de responsabilidade municipal mas que neste caso ficam assegurados pelo condomínio, como captação e abastecimento de água, tratamento de esgotos e até uma pequena central eléctrica, garantindo assim fornecimentos e autonomia. Em termos formais, este conjunto aproxima-se dos restantes projectos do Campo Grande, resgatando a tradição e actualizando-a com a modernidade, com elementos e materiais que garantem a unidade do conjunto, como as coberturas em duas águas e com telha cerâmica, alpendres com estrutura de madeira, paredes de tijolo à vista (nos equipamentos colectivos), combinados com elementos de betão aparente, grandes vãos envidraçados e alguns volumes com coberturas planas. A organização do espaço interno das casas também reflecte essa ambivalência, propondo por um lado uma vida mais prática e relações informais proporcionadas pela fluidez espacial dos espaços sociais abertos, mas não dispensando no programa quartos de empregada e generosas zonas de tratamento de roupa em pátios exteriores, mesmo nas tipologias mais pequenas. Se por um lado se garante a unidade ou harmonia do conjunto, por outro lado propõe-se a quebra da monotonia com 22 desenhos de casas diferentes a partir da variante de nove casas tipo, desde os T2 ao T4 (mais quarto de empregada) e entre 90 e 135m2 de área coberta. No fundo, trata-se de um modelo precursor dos Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 89 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais condomínios fechados que vieram a proliferar nas décadas seguintes, programa que Conceição Silva nunca abordara em Portugal. Esta encomenda permitir-lhe-ia recolocar a actividade num estádio mais próximo do que abandonara em Lisboa: a aproximação à escala urbana com outro nível de preocupações, um atelier com uma incipiente profissionalização e, em princípio, meios para se dedicar à promoção imobiliária, actividade que lhe permitiria assegurar a sobrevivência do atelier e um domínio e autonomia sobre os projectos, sem os constrangimentos impostos pelos clientes. Estes exerciam algum controle, como denuncia o próprio em carta à filha, doze dias antes de falecer: ...”Já começo a estar farto e já me falta a paciência para enfrentar determinadas situações pelas quais já passei há 30 anos e que nessa altura até achava naturais e importantes. Para mim, ter ainda hoje de defender princípios para impor a minha arquitectura parece-me além de ofensivo, também cansativo e desanimador. Já não tenho saco e se pudesse (...) acabava de vez com isto, mas infelizmente tenho que lutar, continuar lutando como se ainda estivesse no começo da minha profissão, como um apóstolo que tem de explicar tudo quanto pretende fazer e onde tudo lhe é contestado só porque não conhecem. Nunca fizeram (...). É demais, chega a desesperar, mas parar é impossível e não tenho outro remédio” (Silva, P. 1982). Tudo indica que o arquitecto previa dar um novo passo, com a criação da GI (Gestão Imobiliária), empresa vocacionada para a promoção imobiliária, para a qual talvez fosse o bairro em Campo Grande com a designação de Olinda Ellis GI, projecto aparentemente não concretizado. O meio não era fácil no Rio de Janeiro e tudo indica que o arquitecto teria sido vítima de uma burla, colocando-o numa situação muito delicada do ponto de vista fiscal, nomeadamente com o “Imposto de Renda”. Na mesma carta, relata que o seu contabilista o roubou e que este não tinha entregue na “Fazenda as contas do ano passado”, antevendo que isso lhe iria “trazer graves problemas”, inclusive podendo “pôr em causa todos os bens que com tanto trabalho consegui vir a realizar”. E acrescenta desalentado: “...parece que é meu destino nunca ser rico e ter que começar sempre do zero. Se for mesmo necessário, volto a começar tudo do princípio. Espero ainda ter força e entusiasmo para isso. Espero voltar a conseguir”. O ano de 1982 começava assim com muita actividade mas igualmente muitas preocupações, as quais certamente contribuíram para o seu falecimento a 24 de Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 90 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Janeiro, poucas horas depois de uma tensa reunião de obra da Michelin. Lamentavelmente, o infortúnio e a falta de tempo não lhe permitiram alcançar essa dimensão e autonomia que almejava, decalcada sobre a experiência em Portugal. Pouco antes de se apagar deixava à filha um dos seus últimos testemunhos sobre o sentimento ambivalente que lhe causava o Brasil: “acredito nesta Terra, mas serão precisos ainda alguns anos e muita gente com cultura e melhores conhecimentos para “tocarem” estas massas no melhor sentido. Então sim, P’rá frente Brasil. Será para ti, para a juventude de hoje o grande país do futuro” (Silva, P. 1982). Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 91 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 92 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Encetámos este trabalho questionando como teria Conceição Silva reagido ao novo contexto? Que problemas colocou e que pistas seguiu na resposta às encomendas? Qual o seu grau de permeabilidade a essa cultura tão próxima e ao mesmo tempo tão distante daquela que ele acabava de deixar para trás? Recoloque-se o arquitecto no seu ponto de partida. Conceição Silva vai para o Brasil aos 53 anos, já não tão jovem para absorver novos conhecimentos, numa idade em que é mais natural a resiliência do que a metamorfose. Além disso, leva um património de conhecimentos e experiências proporcionados por uma obra notável e deixa uma posição de primeira linha no seio da profissão em Portugal. No Brasil, a sua postura é discreta, por força das circunstâncias – o exílio, a falta de trabalho e a forte concorrência num país com um bom número de reconhecidos profissionais. Não obstante, resiste às adversidades e não perde a ambição, antes reinventa-se, dando continuidade a esse processo de experimentação que marcou a obra do seu atelier em Portugal. Consegue manter – com Pinto da Cunha – um atelier independente e fazê-lo crescer, parecendo até querer vir a replicar o modelo do grande escritório de Lisboa, quando vem a falecer. Ao fim de meia dezena de anos de esforço e dedicação, logra ganhar em concurso um projecto residencial de grande envergadura para a multinacional de pneus Michelin, o que iria lançá-lo numa nova etapa. Muda de escritório, recruta mais colaboradores e investe na construção e promoção imobiliária, exactamente como fizera uma década antes em Portugal. E como já referido, segue um percurso, com seu sócio Pinto da Cunha, praticamente único de um arquitecto português emigrado no Brasil que consegue estabelecer-se com a actividade independente e manter um elevado nível de qualidade em termos conceptuais e de execução. Só tem paralelo, tanto quanto foi possível apurar, no percurso do colega Delfim Amorim (1917-72), que vai décadas antes para o Recife, em 1951, e tem uma posição de destaque no ensino da arquitectura e responsabilidades na disseminação da arquitectura moderna pela região pernambucana52. No contexto bem mais concorrencial do Rio de Janeiro, Conceição Silva não terá a influência que o seu conterrâneo tem na construção de uma “escola pernambucana”, mas a sua acção 52 Hugo Segawa cita Silva (1988) quem o considera um dos mentores, a par de Borsoi, de uma “linha pernambucana da arquitectura e que vai formar algumas gerações de arquitetos que hoje atuam por toda a região”. (Segawa, 1999, ps.131,132 e 136). Para além de um longo período de 20 anos passados no Recife, Amorim tem também como vantagem ter-se associado a arquitectos brasileiros, como Acácio Gil Borsoi (1924), quem justamente o convida para a faculdade de arquitectura, e Heitor Maia Neto. Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 93 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais mereceria ser resgatada do anonimato a que foi vetada no seio da arquitectura brasileira53. Conceição Silva tinha o conhecimento da moderna arquitectura brasileira, que foi para ele, como para seus pares, uma das principais referências na introdução do Movimento Moderno em Portugal. Ele pertence ao pequeno rol de arquitectos portugueses que participam pioneiramente, em finais de cinquenta, do movimento que contextualiza a arquitectura moderna, que não a põe de parte mas renova-a com métodos empíricos de abordagem ao projecto, convocando a tradição, o popular, a história, o contexto físico e humano. Na década de setenta, a sua obra ganha nova vitalidade com a introdução do Brutalismo anglo-saxónico, reflexivo de uma sociedade em transformação, de densidade e complexidade urbana, e crescente cosmopolitismo. No Brasil, enceta uma última e derradeira fase proporcionada pelo confronto com o novo contexto e é levado a uma reflexão mais profunda potenciada por essa circunstância de recomeçar do zero e do “retorno ao estirador” (Pereira, p.26), ou seja regressa a um maior envolvimento com a prática do desenho. Trata-se também de uma fase de maturidade em que aplica o manancial de conhecimentos a uma nova realidade transformando-os e integrando-os com os novos dados. A sua obra brasileira reflecte os valores culturais que lhe servem de referência, assim como questões da praxis ou seja metodológicas. No fundo, Conceição Silva faz um exame localizado a cada encomenda, incorporando naturalmente as culturas a que esteve exposto em Portugal e no Brasil. O resultado é uma resposta caso a caso, uma leitura do lugar, do programa, dos hábitos de uma sociedade, aceitando as lições da arquitectura moderna, mas com a preocupação de actualizá-la e inseri-la no seu contexto, introduzindo questões que lhe dão um significado e uma identidade brasileiras, fazendo a ponte entre identidade e modernidade, tradição e tecnologia. A variedade de respostas e o que designámos de oscilação entre modernidade e tradição traduzem o modo de operar, o método baseado na pesquisa e a leitura que faz do contexto. Pese embora a variação de linguagens que denotam as várias casas estudadas, a procura de uma identidade local é uma constante, seja através de processos construtivos, de uma imagem reconhecível, espaços ou dispositivos que remetem para a arquitectura local/colonial, como os sobrados, ou o diálogo com a natureza, afinal uma leitura que a própria historiografia brasileira procura afirmar numa 53 A sua obra não teve qualquer repercussão nas publicações brasileiras especializadas, seja na época, seja posteriormente. Foi apenas divulgada em revistas de decoração como a Casa Cláudia ou Caras. Ver fichas do volume II. Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 94 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais tentativa de emancipar ou legitimar a Moderna Arquitectura Brasileira. É também essa interpretação local que faz a projecção do caso brasileiro, a começar em Brazil Builds. E é por sua vez a falta deste contexto local, a crítica ao excesso de formalismo e incapacidade de superar o moderno, que o condena com o caso paradigmático de Brasília. Se é certo que retoma questões sobre as quais antes se debruçara em Portugal, Conceição Silva leva agora as experiências mais longe, indiciado pelos novos dados que encontra no território brasileiro e, em particular, pela consciência da geografia. Tal é sobretudo visível nas casas unifamiliares estudadas, geralmente programas de carácter mais experimental. É a partir da leitura atenta do entorno, que transforma a arquitectura numa segunda natureza, não mimeticamente, mas assumindo o carácter bruto e artificial da construção, que se fragmenta num desdobramento de volumes trabalhados entre matéria calcária e matéria vegetal, criando uma nova topografia, na continuidade da própria prodigalidade da natureza e em função das concepções espaciais internas. As intervenções, que incidem sobre a totalidade do espaço disponível, transformam-se numa segunda natureza, tanto uma paisagem que se arquitecta, quanto uma construção que se assume como paisagem. Se nas casas que projectou em Portugal já traz o entorno para dentro da construção, com pátios ajardinados ou com uma maior permeabilidade ao jardim, aqui exacerba essa interação. Cria uma teia complexa caracterizada pela ambiguidade entre interior e exterior, reforçando o papel que os espaços exteriores têm na vida familiar. Mas acrescenta-lhe também a experiência de estar num espaço interno exteriorizado, sem os limites próprios de um refúgio que se constrói para proteger do clima, do frio ou da cidade, como vimos, por vezes de uma forma até mais simbiótica do que nas próprias casas projectadas pelos arquitectos brasileiros. Esse entrosamento entre construção e natureza confere uma nova noção de tempo, um tempo mais lento, em suspenso, introduzindo a ideia da acção da natureza numa camada que aos poucos se adiciona à acção do homem, como a noção temporal que as ruínas adquirem na paisagem. Importa então questionar se lhe caberia algum lugar na História da Arquitectura Brasileira? Para justificar essa posição, seria necessário responder aos requisitos imprescindíveis para se fazer parte da História, não só de qualidade, mostrando uma posição inovadora dentro de um quadro mental e cultural de um determinado lugar e tempo, mas também de quantidade e consistência da obra. Em termos quantitativos, neste curto espaço de tempo – sete anos - face à actividade em questão, construiu Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 95 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais meia dúzia de casas isoladas, quase outro tanto de edifícios colectivos e pelo menos dois loteamentos de casas (fora os projectos não construídos e o que não se conseguiu identificar), corpo suficiente para daí extrair algumas consequências. Com o distanciamento que o olhar estrangeiro lhe permite, o arquitecto português tem a vantagem, face aos seus colegas brasileiros, de não sofrer dos constrangimentos da recente crítica à Moderna Arquitectura Brasileira, numa altura em que estes ainda se sentem órfãos desse momento heróico. Para ele, quem nunca teve de a renegar, a Moderna Arquitectura Brasileira é já tradição, enquanto aqueles andavam à procura de novos caminhos, nem europeus, nem estritamente modernos. Podíamos pensar em incluir Conceição Silva no debate sobre a arquitectura moderna no Brasil, como parte dessa onda de estrangeiros que contribuíram com os seus apports e que o cruzaram com a cultura local, que partindo dos conhecimentos que traziam de fora, fizeram uma nova arquitectura sincrética, permeável às transformações que o novo contexto lhes proporcionou. A sua obra é suficientemente consistente e original para que se lhe possa apontar um papel ao lado de figuras com percursos mais marginais, com actuações individuais, mas que ofereceram uma alternativa à hegemonia da “Escola Brutalista Paulista”. Trata-se de mais uma contribuição que vem reforçar a corrente que depois de Brasília vai tentar realizar uma arquitectura identitária, contextualista e que encontrará, anos mais tarde, eco na procura de uma modernidade “apropriada”54. Conceição Silva não será tão regional quanto Severiano Mário Porto ou Oswaldo Bratke, o seu contexto é também outro, nem tão experimental quanto Sérgio Bernardes. Mas podemos aproximá-lo da postura mais empírica dos Guedes, reflectindo também, antecipadamente, as preocupações com a história e a geografia, o lugar, o clima, mostrando-se mais sensível ao micro e ao macro-território. Se é certo que incorpora esse entendimento brasileiro da arquitectura como uma relação entre interior e exterior ou entre construção e natureza, estabelece um diálogo mais natural com a topografia e acrescenta-lhe esse sentido orgânico, que vem desde a repercussão da vida interior na volumetria dos corpos, à sua pertença ao próprio terreno em que se implanta, estabelecendo assim uma relação mais afectiva com a natureza. O uso sensível dos materiais locais, sem pré-definições, determina também uma arquitectura própria, bem ao inverso do partido “estruturalista” do Brutalismo Paulista. Conceição Silva traz a experiência portuguesa, mas transforma essa lição noutra coisa num processo sincrético de tropicalização. Da sua intervenção no novo 54 Como já referido, termo que ilustra uma corrente saída dos Seminários de Arquitectura Latinomarica. (Segawa, 2005, ps. 50 e 51). Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 96 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais contexto surgiu algo de novo e até de mais potente, fortemente condimentado pelos novos ingredientes, pela liberdade do povo brasileiro ou a prodigalidade da natureza, mas também pela percepção das possibilidades infinitas deste território de imensidão e exuberância. Na sua procura de legitimar o Moderno pós-heróico e sua visão apologética da Escola Paulista, a historiografia brasileira acabou por silenciar todo esse movimento de uma arquitectura mais identitária, que afinal sempre existiu e teve nessa época um peso considerável em particular no Rio ou em cidades secundarias, beneficiando emborade um crescente interesse em estudos mais recentes. Conceição Silva poderia enquadrar-se no limite dessa actuação, ou seja, a sua postura não é neo-regionalista, como por exemplo a de Severiano Mário Porto ou Oswaldo Bartke, mas traduz a preocupação em enquadrar a arquitectura no seu lugar. A sua obra anda entre estas duas polaridades do Brutalismo Paulista e do Regionalismo, incorporando sem militância contaminações da prática brasileira. Ora se aproxima mais da tradição, nomeadamente em programas mais modestos, mais excêntricos aos centros urbanos ou ligados a vivências de férias ou de praia, como se aproxima de uma corrente paulista mais moderada, do denominado Brutalismo Caboclo, com figuras como Millan ou Guedes, que dão continuidade à tradição Moderna ou Brutalista mas introduzem a questão local com recurso a materiais nativos e cromatismos mais “tropicais”. Com estes tem ainda em comum a atenção dada ao detalhe, uma pormenorização sistemática que dá um papel determinante aos aspectos construtivos. A arquitectura de Conceição Silva, contrariamente ao Brutalismo Paulista, que encerra em si uma certa negação, incide sobre a vida doméstica burguesa, na proposta de novas formas de habitar, sendo mais próxima da postura apolítica e mais técnica do Rio55. No fundo, faz a ponte entre o optimismo carioca e a estética mais dura paulista. Por fim, a produção brasileira deve também ser enquadrada na globalidade da obra do arquitecto, completando, como de início se propôs, o trabalho desenvolvido anos atrás sobre o Atelier Conceição Silva em Portugal. Tratou-se da última de entre as várias etapas que compõem a sua produção de quase 40 anos, momento mais solitário mas de igual vitalidade e criatividade, do qual resultou uma arquitectura mestiça, afinal brasileira. Confirma-se assim a capacidade de se reinventar de Francisco da Conceição Silva, quem tem um importante papel na História da Arquitectura 55 Kamita refere uma atitude que pode ser considerada apolítica, neutra e técnica dos arquitectos do Rio face ao compromisso político de Artigas, quem não separa arte e política, o que lhe permite começar a questionar o uso, valor, o tipo e o programa da casa burguesa. (Kamita, 2004, p.158). Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 97 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Portuguesa e que tentámos inscrever na História da Arquitectura Brasileira, com a contribuição deste trabalho. Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite 98 Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais REFERÊNCIAS ANDREOLI, Elisabetta, ed. ; FORTY, Adrian, ed. (2004) - Brazil’s modern architecture. London : Phaidon Press Limited. BARATA, Paulo Martins (2000) - Conceição Silva, poética sem rétorica. Prototypo. 2:4 (Novembro 2000) 38-69. BARATTO, Romullo (2014) – Aniversário Severiano Porto. Archdaily [Em linha]. ( fev. 2014). [Consult. 12 Maio. 2014]. Disponível em WWW:<URL: http://www.archdaily.com.br/br/01-177767/feliz-aniversario-severiano-porto>. BARBOSA, Antônio Agenor (2012) – Entrevista com o arquiteto Paulo Casé Arquitextos [Em linha]. 13:049.02 (Jan. 2012). [Consult. 12 Out. 2014]. 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Orientadora: Prof.ª Doutora Arqt.ª Helena Cristina Caeiro Botelho Lisboa Dezembro 2014 Ficha Técnica Autora Orientadora Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite Prof.ª Doutora Arqt.ª Helena Cristina Caeiro Botelho Título Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982): contaminações tropicais Local Lisboa Ano 2014 Mediateca da Universidade Lusíada de Lisboa - Catalogação na Publicação LEITE, Inês de Sousa Gonçalves de Almeida, 1968Francisco da Conceição Silva no Brasil (1975-1982) : contaminações tropicais / Inês de Sousa Gonçalves de Almeida Leite ; orientado por Helena Cristina Caeiro Botelho. - Lisboa : [s.n.], 2014. Dissertação de Mestrado Integrado em Arquitectura, Faculdade de Arquitectura e Artes da Universidade Lusíada de Lisboa. I - BOTELHO, Helena Cristina Caeiro, 1970LCSH 1. Arquitectura - Brasil - Século 20 2. Silva, Francisco da Conceição, 1922-1982 - Crítica e interpretação 3. Universidade Lusíada de Lisboa. Faculdade de Arquitectura e Artes - Teses 4. 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No total, foram projectadas 3 casas, das quais apenas uma foi construída, de acordo com Carlos Salém, genro de Arthur Kelson (Salém, 2013), se bem que Ricardo Silva Pinto, arquitecto que trabalhou com Conceição Silva e Pinto da Cunha, pensa terem sido construídas duas (Pinto, 2013). Será aparentemente a primeira obra construída de Conceição Silva no Brasil. Fica num dos cerca de 100 lotes do Condomínio do Massaru, loteado pela Socit. Numa zona privilegiada do Rio, mesmo em frente ao golfe de Itanhangá, o condomínio de casas unifamiliares em pequenos lotes destinava-se a uma classe média alta, a qual tinha como referências uma arquitectura de feição mais tradicional - do tipo da de Zanine Caldas, quem aliás desenhou o loteamento - levando a que esta casa demorasse algum tempo a ser vendida, devido à sua expressão moderna. Por essa razão, não avançaram com as duas outras residências projectadas por Conceição Silva. Durante algum tempo, a casa serviu de escritório para a empresa de Arthur Kelson, acabando por ser vendida um par de anos depois (Salém, 2013). Infelizmente, não foram localizados os desenhos técnicos, mas pode-se no entanto destacar a clara intenção de lhe conferir uma identidade local. Partindo do moderno, convocam-se sistemas construtivos e materiais locais. A casa Localização (Google Inc., 2014). Exterior visto da rua (Pinto, ca.1980 e Silva, J. e Silva, F., 1987,p. 175). é dominada pela varanda alpendrada em estrutura de madeira, importante dispositivo da arquitectura brasileira que privilegia o estar exterior e aqui se reinventa dando-lhe uma expressão moderna. Porém, a varanda é virada para a rua - se bem que num condomínio fechado -, e ainda por cima a Sul, opção rara nas obras do arquitecto. O muro de pedra e um telhado com telha cerâmica são elementos que lhe prestam a nota tradicional, porém sempre reinventando-se estes sistemas. Assim a cobertura de uma só água resulta numa empena lateral original triangular em bico e é ainda vazada no centro para se criar uma varanda a toda a largura da casa, a qual serve os quartos. Bibliografia: Silva P. e Silva F., 1987. C.V arq Pinto da Cunha, espólio Laís Pinto da Cunha. Fábrica Sombra (c.1977 constr. 2 Fonte: Durães, 2014). Rua Darci Pereira, nº 904, Santa Cruz, Rio de Janeiro. Para além do mobiliário de exterior, ainda o principal negócio, a Sombra dedica-se no Brasil igualmente aos móveis de interior. Tratavam-se sobretudo de peças de vime e bambu, tal como em Lisboa, destinadas a uma classe média-alta. Aproveitaram parte dos modelos que tinham em Portugal e criaram outros, como por exemplo uma linha inspirada no mobiliário alentejano, estilizada, sempre com desenho de João Durães. Tratava-se de um negócio promissor, então sem concorrência no Rio, onde se instalam para seguir a clientela emigrada. O negócio correu relativamente bem, ultrapassando algumas dificuldades decorrentes de lógicas distintas de negócio no ambiente brasileiro, mas a fábrica acabou por fechar em 1984. Para além de escoar os seus produtos no show-room da própria fábrica, a Sombra tinha uma loja estrategicamente localizada na Avenida América, na Barra da Tijuca, com projecto de um outro arquitecto português, por escolha de Manuel Queirós Pereira, quem passa a dominar o negócio depois de ficar com a cota de Guedes de Sousa. Aproveitando os incentivos para a indústria com boas condições de empréstimos, João Durães monta uma fábrica dez vezes maior do que a de Alfragide - 10700m2 num lote de cinco hectares - respondendo a um mercado muito superior ao português. Em Santa Cruz, a 70km do centro do Rio, empregava 250 pessoas. Encomenda a fábrica a Conceição Silva pela amizade que se estreitou na estadia no Rio e dentro do espírito de entre ajuda que caracterizava a pequena comunidade portuguesa de Copacabana. Após a sua conclusão oferece uma cota de 10% ao arquitecto, quem no entanto não tinha qualquer papel de gestão, nem no design dos móveis. A fábrica era organizada em dois volumes paralelepipédicos, Encomendador: João Durães, dono da loja de mobiliário de exterior de luxo “Sombra”, em Lisboa (na Avenida da República), quem emigra em 1975 para o Rio. No Brasil, tinha como sócios Guedes de Sousa e Manuel Queirós Pereira. Dá também posteriormente uma cota de 10% a Conceição Silva. Localização (Google Inc., 2014). um fabril com um pé direito de cerca de 9 metros, e outro, mais baixo, administrativo e com área de exposições. Tinha também posto médico e refeitório. O grande interesse desta fábrica passa pelo ensaio de novas técnicas e sistemas construtivos, com vista a uma construção económica e rápida, fazendo jus ao sentido de eficácia e vontade de inovação do arquitecto, quem propõe um sistema de pré-fabricação. Toda a estrutura de betão é encomendada a uma fábrica, a Sobraf, empresa de pré-moldados de São Paulo, a qual, de acordo com o filho do proprietário e então director de produção, João Manuel Durães, construía pela primeira vez no Rio (Durães, 2014); as estacas das fundações (devido ao terreno instável levou mais de 200 estacas com cerca de 15 metros de profundidade), pilares, vigas e elementos de cobertura (com uns 20 metros de cumprimento) foram assim todos fornecidas e montadas por esta empresa. Por sua vez, as paredes de enchimento foram feitas in situ em blocos de betão celular vazados (com uma secção de uns 30/10cm), pela Modern Blocks, empresa que instalou as máquinas de prensagem e cofragem no terreno, onde os blocos secos ao sol. Na ala administrativa, os vidros colados a seco dispensavam os caixilhos, mas as necessidades de acondicionamento térmico obrigaram à colocação de ar condicionado, o que muito desgostou o arquitecto. Ciente das necessidades de economia, as 14 secções industriais (carpintaria, serralharia, pintura, costura, etc.) não tinham portas, apenas grandes vãos a toda altura e com três metros de largura abertos para um corredor central. O resultado é uma grande nave de expressão brutalista, com a estrutura e os materiais à vista, quer dentro, quer fora e com o destaque da estrutura no volume administrativo, sendo os pilares soltos e as vigas prolongando-se ligeiramente para além da cobertura. A fachada, muito linear e cega na parte fabril, era caracterizada pela textura das paredes de blocos de cimento. A frente, na zona administrativa e na zona de estacionamento, era animada por umas floreiras préfabricadas em betão. A construção verificou ser efectivamente muito rápida – uns 9 meses ou pouco mais – de tal forma que a empresa de betão teve a dada altura de esperar pelo fornecimento de mais peças. Em contrapartida, como muitos sistemas inovadores, surgiram problemas, nomeadamente infiltrações, sendo as peças de cobertura encostadas e a junta preenchida com massa e não sobrepostas. Também as paredes de blocos de cimento criavam um ambiente húmido com as escorrências das paredes – embora neste último caso acabasse por secar. Em contrapartida, o edifício, com folgas entre a cobertura e as vigas era bem ventilado e fresco. Exterior da fábrica e interior escritório (Durães, 2014). Casa Ronaldo e Betty Steinberg (des.1977-79 constr. Fonte: Silva, F. (2), ca.1980 e Steinberg, 2013). Praça desembargador Estácio Benavides (anPga R. Prof. Ducidio Pereira), Jardim do Itanhangá, Rio de Janeiro. Casa de habitação unifamiliar com quatro pisos e extenso programa servida por elevador, para uma elite abastada, num bairro de prestígio, onde surgiram vários condomínios a partir dos anos 70. Não se encontraram as plantas completas, mas trata-se de uma casa com mais de 400m2 de construção. Conta com duas suites, dois quartos, uma casa de banho e um lavabo, sala de estar, zona de comer e escritório; área de serviços com cozinha, copa, zonas de lavagem e tratamento de roupas, dois quartos de empregadas, uma casa de banho e saleta; primeira semi-cave com ginásio, sala de festas; segunda semi-cave com entrada, garagem e zona técnica; jardim com piscina. A casa desenvolve-se em várias cotas, adaptando-se à topografia do terreno, encostado a um morro e com forte pendente. Acede-se por baixo (solução semelhante na casa Coslowsky, construída pouco depois e em Portugal, na casa Ribeiro da Cunha, no Guincho) pela segunda semi-cave, por um elevador num volume que se destaca da casa, a esta ligado por uma galeria envidraçada. Desemboca num espaço de base quadrada com vista para uma floreira, ligado à principal zona de estar da sala. A casa organiza-se a partir do núcleo central da sala, o qual atravessa a casa longitudinalmente e desdobra-se fluidamente em vários espaços a diferentes cotas e com distintas alturas de pédireito, criando ambientes distintos. Este grande núcleo de base quase rectangular organiza-se por sua vez em torno de um pequeno jardim interior e estrutura-se em dois espaços de estar, aos quais se agregam a zona de jantar e uma zona de escritório, em local oposto, na diagonal. A principal zona de estar, à cota inferior, relaciona-se abertamente com o jardim 3 Encomendador: Ronaldo Steinberg. De uma família de origem judaica, filho de Jacob Steinberg, quem criou com sua mulher, ambos engenheiros, uma empresa de projectos, construção e promoção imobiliária no Rio de Janeiro com alguma envergadura - a Servenco. Foi esta empresa que construiu a casa. De acordo com Betty Steinberg, foi vendida nos anos 80 ao Sr. Tanaka, dono de uma cadeia de restaurantes japoneses com o mesmo nome. Localização (Google Inc., 2014). virado a Norte, o seu pé direito variando em função da galeria superior. Separado pelo pátio interior ajardinado e a cerca de um metro acima, encontra-se uma outra zona de estadia, seguida de uma zona de transição para a área de refeições, esta demarcada pela sua posição fora do rectângulo (à semelhança do escritório). Cada zona tem a sua vista intencionalmente diferenciada, criando uma riqueza de ambientes e reforçando a permeabilidade entre jardim e casa. Da segunda zona de estar vê-se um jardim com penedos e cascata; a zona de refeições tem a cobertura parcialmente em vidro com vista para o Cristo Redentor. De um lado do núcleo central, interceptando o rectângulo, fica a área de serviços, cozinha, copa, zona de roupas, directamente ligada à zona dos quartos de empregadas no piso superior. No oposto, fica a zona dos quartos, que se interliga também verticalmente e justifica os diferentes níveis adaptados à topografia e a vontade de criar maior intimidade. Estão separados da sala por uma passagem a cota superior aberta sobre esta e do fundo da qual arranca uma generosa escada que liga à galeria superior, solta nos dois extremos, espaço de estar que serve a suite principal. Exterior e interior (Silva, J. e Silva, F., 1987, p.169-171). Perspectiva e planta do Piso 1. (Silva, J. e Silva, F., 1987, p. 169 e Silva, F. (2), ca. 1980). A organização espacial repercute-se no jogo volumétrico, com avanços, recuos e balanços, livres e exuberantes como a vegetação que rodeia e invade a construção com pátios e recessos ajardinados, ou ainda com floreiras em consola que coroam todo o exterior. A exacerbação do espaço interno, volumetricamente expandido, com predominância do espaço público e relação ambígua entre interior e exterior, atende a um entender brasileiro do espaço, embora aqui com tratamento menos duro, mais delicado pelo trabalho do detalhe tão próprio ao arquitecto. Tal como em Portugal, os materiais nobres, aplicados segundo desenho rigoroso, são também aqui um elemento natural que contribui para o conforto interior. A madeira com desenho cuidado da caixilharia, dos rodapés, guardas da escada, aqui animadamente pintadas de vermelho - um apontamento que se harmoniza bem com o exotismo do contexto - o pavimento e revestimento de tecto em madeira, conferem conforto e requinte ao espaço difícil de tratar pela sua amplitude. Em contrapartida, as paredes da sala revestidas a pedra dão um carácter de exterioridade ao espaço e intensificam a relação entre interior e exterior, o que é ainda realçado pelo dobrar das janelas com algumas esquinas com o vidro colado a seco, sem caixilho, por exemplo no pequeno recanto ajardinado que intercepta a sala inferior, ou no quarto, precisamente na zona da cama, detalhe que anula as fronteiras com a paisagem. Também as floreiras em betão descofrado atravessam do exterior para o interior, levando ao limite o entrosamento entre dentro e fora, sendo ainda de salientar a cobertura ajardinada, então uma solução tecnicamente difícil, que aliás trouxe alguns problemas Bibliografia:. Silva P. e Silva F., 1987. Silva, F. (2), ca. 1980. C.V arq Pinto da Cunha, espólio Laís Pinto da Cunha. Anos 90, revista brasileira Caras (Steinberg, 2013). (Steinberg, 2013), ou o integrar de alguns elementos encontrados no terreno, como os penedos, onde passa uma cascata. No exterior, a brutalidade do betão à vista é também amenizada pelo recurso a muros de pedra tosca que domesticam a topografia. Na entrada, uma parede de betão com jacto de areia retirou a camada superficial tornando a superfície mais rústica e natural. O encaixe da casa que se ajusta e enraíza no terreno e a materialidade texturada do betão tornam a construção como uma pedra sedimentar que surge do terreno e se transforma com o tempo. Por sua vez, a vegetação passa a dominar a construção, integrando-a, tornando-a uma segunda natureza, futuro que intencionalmente se previa nos desenhos de perspectiva iniciais. Esta obra remente para expressões wrightianas mas também para o desenvolvimento de uma arquitectura moderna brasileira, próxima do Brutalismo das década de sessenta/ setenta. Aponte-se a continuidade com obras como a casa própria de Conceição Silva no Dafundo, em Lisboa, ou a casa Valadas Fernandes, no Guincho, com uma ousadia potenciada pelo entorno físico, assim como pelo modo de viver mais livre e alegre da sociedade brasileira. Note-se ainda que a encomenda incluiu todo o desenho de equipamento, dos sofás aos candeeiros, estantes etc. como se pode aferir na legenda dos desenhos de equipamento. Esta secção ficou a cargo de Carmo Valente, responsável pelo “departamento de equipamento” (termo que consta dos desenhos). Planta do Piso 2. (Arquivo Atelier Conceição Silva). Casa Simão Coslowsky (des. 1976 Fonte: Silva, F. (2), ca.1980) Rua Euclides Figueiredo c Rua Maria Eugenia – Lote 2 do PA 33 993, Humaitá, Rio de Janeiro. 4 Encomendador: Diagraphis – do Dr. Simão Coslowsky, obstetra de renome do Rio de Janeiro. Casa de habitação unifamiliar num piso térreo mais cave semi-enterrada (Pinto, 2013) com um amplo programa: quatro suites, ampla zona de estar, sala de música, zona de serviço com dois quartos de empregados, anexo de caseiro. Em semi-cave, o hall de acesso à casa, o estacionamento, um ginásio e uma sauna. Adossada ao morro, a casa integra-se no terreno, com seu desenvolvimento modular, alternando pavilhões e pátios ajardinados. O jogo de volumes obedece a uma matriz de base quadrada, que se lê claramente na planta ou na composição de coberturas individuais, pequenas e leves pirâmides de cor clara que apoiam na malha de vigas de betão à vista. As paredes de tijolo aparente não rebocadas reforçam a ambiguidade entre exterior e interior e denotam uma compreensão sensível do contexto, explorando as possibilidade que geografia e clima permitem, ao ensaiar estas texturas rústicas no interior, como se se vivesse numa espécie de exterior domesticado. Aqui ainda menos amenizado do que na casa Steinberg, sugere um quase desconforto, porém perfeitamente amável num clima tropical como o do Rio de Janeiro. O próprio desenvolvimento dos módulos lembra um conjunto pavilhonar de jardim. A composição aditiva, os vários pátios ajardinados disseminados pela casa, um ribeiro que passava no próprio interior - pela zona que faz a transição entre a sala e os quartos - reforçam a permeabilidade entre interior e exterior e tornam o percurso pela casa numa sequência do jardim. Localização (Google Inc., 2014). Por sua vez, o jardim vai ganhando uma interessante configuração e diversos ambientes com os avanços e recuos da construção. A marcação modular prolonga-se na piscina e seu espaço envolvente, num deck de madeira trabalhado segundo a mesma regra de uma quadrícula. Acede-se à casa de forma indirecta, aproveitando a topografia do terreno, por um piso semi-enterrado. Essa frente é praticamente cega, negando qualquer relação com a envolvente da rua, em contraste com a abertura da casa do lado do jardim, onde se cria um microcosmos onde a vida doméstica se desenrola com toda a privacidade. Tal como nas casas Steinberg e depois Salik, revela desse lado o cariz escultórico conseguido com o jogo abstracto dos volumes “pétreos”. Chega-se de surpresa no piso superior no meio da casa, numa zona de transição entre a zona de serviço e a das salas, com vista para um “jardim de pedras”. A área pública desdobra-se com grande fluidez entre várias zonas separadas por pátios e floreiras: sala de jantar, zonas de circulação e sala de música. Os quartos, numa “ala” mais reservada, ganham privacidade com o escalonar da construção. Os quartos das crianças Exterior (duas da esq., Cunha, 2013; em baixo, Silva, J. e Silva, F. p. 173 e 174). têm uma pequena mezzanine com um vão envidraçado para dormir, libertando o espaço térreo para as actividades diurnas e o estudo. Durante a construção descobriu-se uma pequena linha de água que se deixou a descoberto atravessando o interior desde os penedos da parte traseira, depois canalizada para abastecer a piscina. A piscina, com um lado sem bordo, funde-se no horizonte com a Lagoa Rodrigo de Freitas. A água caía em cascata sobre o envidraçado da sauna por baixo da piscina. De notar a preocupação com questões térmicas apesar da falta de regulamentação à época no Brasil: paredes duplas, lajetas de cimento com caixa de ar nas zonas planas da cobertura, ventilação cruzada em vários sentidos. É ainda de supor que a forma piramidal da cobertura das salas visasse um bom comportamento térmico, tal como as coberturas ajardinadas, por cima dos quartos. Em contrapartida, a experimentação de novas soluções/materiais conduzia por vezes a problemas em obra ou na utilização corrente. Ricardo Silva Pinto recorda-se por exemplo de alguns vidros das coberturas com estrutura em aço terem partido devido às dilatações do decorrentes das variações térmicas (Pinto, 2013). Interior (em baixo e escada, Silva, J. e Silva, F., 1987, ps. 173-174; Outras, Cunha, 2013). Também esta casa nos lembra a obra lusa do arquitecto e nomeadamente a influência do organicismo de F. Lloyd Wright com seu jogo de volumes e o peso das massas, mas nunca directamente ou mimeticamente, sempre com o sentido de um acumular de experiências que ficam como património empírico a ser usado intuitivamente. Bibliografia: Silva, J. e Silva, F., 1987. Silva, F. (2), ca. 1980. C.V arq Pinto da Cunha, espólio Laís Pinto da Cunha. Fachada frontal e fachada lateral direita; Cortes AB e CD; planta do piso 1. (Silva, F. (2), ca.1980). 5 Casa Salik Resner (1981constr. Fonte: Silva, J. e Silva, F., 1987, p. 186.) Rua Kobe, 1-‐155, Condomínio Nova Ipanema, Barra, Rio de Janeiro. Encomendador: Engenheiro Salik Resner. Casa de habitação unifamiliar em três pisos com jardim e piscina. Não foram encontradas plantas completas, porém, pela observação dos desenhos, pressupõe-se que um piso é em semi-cave com estacionamento e acesso, o piso térreo, mais extenso, tem três suites, uma sucessão de salas e zona de serviço; o piso superior deverá ter a suite principal e provavelmente mais uma sala ou escritório. Trata-se de mais uma casa para a elite carioca com um extenso programa, com uma sofisticada diferenciação de espaços a nível das áreas comuns e de serviços. Em pleno centro urbano, o pequeno lote é trabalhado de modo a conseguir alguma privacidade e melhor tirar partido do espaço exterior. Agarrada aos limites do lote todo murado, a casa abre-se em L para um pátio interior com piscina, a uma cota acima da rua. A intimidade é também conseguida pela “manipulação topográfica” da construção e jardim entendidos como um todo, jogando com diferentes níveis e ainda com a ajuda de cobertos com floreiras que protegem as vistas e ensombram os vários acessos à casa. Dentro da mesma linguagem que a casa Ronaldo Steinberg, é marcada pelas grandes floreiras em betão em consola e o jogo volumétrico, com avanços e recuos, ajudando a “desenhar” o espaço exterior. Mais uma vez nega-se à rua como casa, antes parecendo um jardim aos socalcos domesticado pelos muros de pedra ou betão, aparecendo como único indício da vida doméstica, o portão dos carros. A zona de estar, central na organização do espaço, distribui para a zona de serviços de um lado e a zona dos quartos Localização (Google Inc., 2014). numa ala do lado oposto. A casa organiza-se entre vários pátios/ jardins, fundindo a vegetação no espaço interno, mais uma vez criando uma estreita relação entre interior e exterior. De notar o extenso programa da zona pública, com espaços de estar fluídos mas diferenciados, em torno de vários pátios e a diversas cotas, denotando um modo de vida descontraído mas em que as actividades desenrolam-se em espaços bem definidos: quatro zonas de estar identificadas pelo mobiliário, estratégia repetida nos quartos: uma de recepção, outra de leitura, zona de jogos e sala de televisão. Mais a zona de jantar, entre a área de serviços e a sala de recepção. Também a zona de serviços é bem estratificada, com zona de preparação, copa, área para refeições e quartos de empregados. Nos quartos, zonas de vestir, do lado da porta de entrada, separadas das áreas de dormir pelos roupeiros com face dupla, conferem maior privacidade ao espaços. Os vários acessos verticais desde o piso inferior, separando escadas de serviço das principais, ou ainda das dos quartos, revelam os costumes conservadores com uma clara hierarquia que ainda marcavam a sociedade brasileira. Exterior e casa de banho (Cunha, 2013). Para além dessa ambiguidade entre interior e exterior bem brasileira, o arquitecto resgata aqui outros elementos que inserem a casa no seu meio ambiente cultural, como os azulejos da piscina com o padrão em ondas idêntico ao calçadão à beira mar desenhado por Burle Max (variação de uma calçada que existia desde o início do século XX no Rio e executada por calceteiros e pedra de Portugal, com as obras de melhoramentos levadas a cabo por Pereira Passos, prefeito da então capital), padrão esse que será reutilizado na praça criada no conjunto da Rua Professor Castilhos para a Michelin. Bibliografia: Silva, J. e Silva, F. 1987. Silva, F. (2), ca.1980. C.V arq Pinto da Cunha, espólio Laís Pinto da Cunha. Alçado para a rua, e corte/alçado Sul; Planta Piso 1, corte/alçado nascente; Cortes CC e BB ; EE e DD planta do piso 1. (Silva, F. (2), ca.1987). Edifício Rosalina Brand (1979 constr. Fonte: Silva, J. e Silva, F. p. 180). Av. Delfim Moreira, 54, Leblon, Rio de Janeiro. Edifício de habitação colectiva com uma implantação de cerca de 6 por 20 metros, cinco apartamentos, sendo o último em duplex, residência de Clara e Jacob Steinberg. Possui garagem e tem ainda um piso térreo do qual desconhecemos o programa. Numa localização privilegiada, na frente mar, no Leblon, este projecto gerou uma reacção controversa junto do Instituto dos Arquitectos do Brasil, nomeadamente por causa da cor escura da fachada, de acordo com Betty Steinberg (Steinberg, 2013). O edifício tem um forte impacto do ponto de vista plástico, marcado pela repetição das varandas salientes e com expressão brutalista, dada sobretudo pela alta “testa” de betão que remata o seu topo. As guardas de acrílico ou vidro fumado, assim como as superfícies espelhadas do hall de entrada e os elevadores lacados a vermelho fazem a actualização a uma estética dos anos oitenta. Mais uma vez, privilegia-se o estar exterior com o dispositivo tão característico da arquitectura brasileira - a varanda -, neste caso um amplo espaço de estar que beneficia de uma vista impar sobre o mar. Só se teve acesso às plantas do duplex que ocupa os dois últimos pisos, mas supomos que, por questões técnicas e lógicas, os pisos inferiores serão idênticos ao piso inferior da cobertura. O andar desenvolve-se em dois pisos, sendo o superior um amplo terraço com uma pequena piscina num deck de madeira, uma casa de banho, apoio de cozinha e salas de manutenção dos elevadores. O piso inferior é bastante compacto, dispensa corredores e acede-se 6 Encomendador: Os engenheiros Clara e Jacob Steinberg, de influentes famílias da comunidade judaica do Rio de Janeiro, donos da Servenco, então uma importante empresa de projectos, construção e promoção imobiliária. São pais de Ronaldo Steinberg. Localização (Google Inc., 2014). Exterior, varanda e cobertura da Av. Delfim Moreira (Silva, J. e Silva, F., 1987, ps. 180-181). Directamente a uma zona de transição da sala de estar, uma solução com poucos inconvenientes tratando-se de um apartamento por piso. A solução encontrada para o lote de difícil geometria, 25 por cerca de 7 metros de frente, revela a destreza dos arquitectos. Os acessos verticais, serviços e uma instalação sanitária ficam “arrumados” do lado da empena que encosta ao prédio confinante, recorrendo-se a um saguão para a iluminação dos espaços mais interiores. Ao invés de tentar contrariar o sentido longitudinal do lote, a distribuição dos espaços reforça esta característica, com a sucessão de espaços abertos, deste modo dando a ilusão de uma maior amplitude. A sala vira-se para o mar e os quartos para a rua lateral. A zona de comer e escritório são abertos apenas parcialmente separados por painéis -, revelando o ambiente informal. Dentro das limitações de um edifício de habitação colectiva, aqui também se introduz a vegetação no interior, neste caso pontuando estrategicamente com apontamentos de pequenas floreiras – entre duas instalações sanitárias, ou Fonte: Piso 0 e Piso 1 do duplex, átrio do prédio, interior apartamento (Silva, F. (2), ca.1980; Silva, J. e Silva, F., 1987, p. 180; duas da esq., Silva, P. ca. 1980). Por exemplo, separando o escritório da zona de comer. Por sua vez, os acessos às varandas fazem-se por uma reentrância na fachada, o que confirma essa vontade de trazer o espaço exterior para dentro. Apesar de ser de finais da década de sessenta e de uma certa escassez de espaço, não se dispensam os quartos de empregados, sintomático de um costume que se perpetua bem dentro do século XX. O equipamento foi desenhado por Carmo Valente (Valente, 2006). Bibliografia: Silva P. e Silva F., 1987. Silva, F. (2), ca.1980. C.V arq Pinto da Cunha, espólio Laís Pinto da Cunha. Casa Carlos Royle (des. 1978 Fonte: Silva, F. (2), ca.1980). Rua Gerbert Périssé, nº1552, Geribá, Búzios. 7 Encomendador: Rio do Sul, Agricultura, Comércio e Indústria Ltda, de Carlos Royle. Trata-se de uma casa de veraneio, num lote de 1038m2, com dois pisos e 250 m2 de construção, numa das praias mais populares - Geribá – na parte mais estreita da península de Búzios, a 170km do Rio. Com seu clima tropical, Búzios tornou-se na Saint Tropez brasileira – sítio de eleição da elite carioca - depois de Brigitte Bardot a ter visitado em 1964. Tinha como principal fonte o pau-brasil e foi ponto de desembarque de escravos africanos. O seu nome deve-se à estrutura para capturar peixes (armação), nomeadamente baleias, trazida pelos portugueses no século XIX. Em meados do século XX os herdeiros de um fazendeiro de bananas desenvolveram a Companhia Odeon destinada ao turismo de qualidade, preocupando-se em preservar a arquitectura tradicional local. Na década de setenta do século XX recebeu um grande fluxo de argentinos que emigraram devido à crise no seu país, seguindo-se um período de ocupação desenfreada pelo turismo e especulação imobiliária. A construção ocupa quase a extremidade do lote estreito e alongado, libertando o jardim em frente ao mar, a Norte, e para onde se abre a sala de grandes vãos envidraçados. Esta prolonga-se num generoso alpendre – cerca de três metros de profundidade - com estrutura de madeira, novamente um dispositivo que remete para a arquitectura tradicional e colonial. Indo de uma extremidade a outra do lote, a casa tem um pátio central (ou melhor jardim, com pelo menos uns 7/15 metros), para o qual apenas se sabe que dá um quarto, pressupondo-se que seja na realidade um pequeno apartamento independente, uma vez que o coberto que liga as duas construções é uma passagem ao ar livre. Em vez de se abrir apenas à rua principal – a Rua Gerbert Périssé Localização (Google Inc., 2014). (antes Estrada do Marisco) – este tem igualmente janelas de sacada viradas para o jardim interior, permitindo um maior recato. Outros quartos estarão certamente no piso superior do corpo principal. A cobertura tradicional de telha cerâmica, muros de pedra não aparelhada – que, numa das frentes, tem uma geometria e espessura que lembra uma fortaleza -, portadas e roupeiros com frentes de madeira de ripas remetem igualmente para imagens de uma arquitectura tradicional, reinventada, integrada na paisagem de uma praia de veraneio. Esta expressão mais vernácula, como vimos, também era eleita pelos arquitectos brasileiros para contextos não urbanos ou em cidades do interior. As condições de segurança (ajudadas pela mão de obra barata) já exigiam uma casa de guarda, a qual tem o mesmo rigor e cuidado de desenho do que a casa principal e confirma essa visão integrada de toda a ocupação do lote. Virada para pátios interiores, constitui-se como um muro habitado, conferindo uma espessura entre jardim e frente de rua. Muito comum no contexto brasileiro, essa frente de rua caracterizase por um muro alto e um portão coberto, mantendo toda a privacidade da casa. O muro/casa do guarda tem esquinas arredondadas (uma delas solta do muro perpendicular) o que lhe empresta um ar náutico ao mesmo tempo que facilita a manobra de entrada do carro. Bibliografia: Silva P. e Silva F., 1987. Silva, F. (2), ca.1980. C.V Pinto da Cunha. Fachada para a praia e Corte CD, Fachada para Estrada e Corte AB; Plantas de Implantação e de cobertura (Silva, F. (2), ca.1980). 8 Casas em Taquará Rua Maria de Lacerda, Taquará, Rio de Janeiro. Alçado e localização (Silva, F. (2), ca.1980 e Google Inc., 2014). Conjunto de três casas relativamente modestas, em Taquará, bairro a Oeste do Rio que começou a urbanizar-se a partir dos anos 70, acabando com as “chácaras” que o caracterizavam. Todas com um só piso, variam entre T2 e T3, em pequenos terrenos. A título de exemplo, a casa 1, a qual tem duas variantes, tinha 167m2 de área coberta num lote de 272m2. Nestas casas bastante singelas é evidente a opção de se inserir num contexto mais tradicional, com a expressão marcada pelas coberturas de águas e telha cerâmica, prolongadas em alpendres, ou as persianas de madeira de ripas. Desconhece-se para quem se tratavam mas o programa muito simples – pese embora sempre a zona de empregados – e a ilustração com o típico carocha revelam uma clientela da emergente classe média. As construções adaptam-se ao terreno de forte pendente com desníveis, mas mantendo a unidade da cobertura. Protegemse da rua com altos muros – no caso da casa 2 da altura de um piso – interrompidos pelo portão de madeira. Algum dinamismo é no entanto dado às fachadas com avanços e recuos, mais particularmente na casa 1, a mais elaborada, a qual apresenta duas versões. Na primeira, a mais interessante, desenvolve-se de forma mais intimista em torno de um pátio central aberto a nascente, mas protegido por um arvoredo e pelo que parece ser um apoio de refeições. Nos três casos, a planta bastante compacta revela uma distribuição racional com o aproveitamento do espaço, nomeadamente com entrada directa para a sala. A zona de serviços fica no centro, a sala comum a Norte mas aberta para o pátio e os quartos a Sul. Com maior incidência de Sol num clima tropical, o lado Norte protege-se com poucas aberturas, apenas um vão com uma floreira que ilumina a zona de refeições, o qual fica no eixo de um largo corredor e o estacionamento. A cozinha não dispensa a copa e o quarto de empregada. Esta casa apresentava portadas de correr na planta, contrariamente às outras que têm portadas de abrir, porém no alçado são todas iguais. A segunda versão desta casa é mais compacta, dispensa o pátio e oferece mais espaço de estacionamento. A casa 2 desenvolve-se numa base quase rectangular adaptando-se ao lote estreito e alongado. Muito compacta, tem neste caso a sala virada a Sul, mas a dar para o pátio criado pelos altos muros, e os quartos seguidos no sentido longitudinal. A zona de serviços tem um generoso alpendre com zona de lavagens. Não obstante ser mais pequena e mais compacta, a casa 3 tem uma pequena particularidade: a zona de serviço é destacada da casa. É composta de dois volumes de base rectangular, atravessados por uma larga passagem exterior onde se situa a zona de lavagem, mas unidos pela cobertura. A zona de serviços fica no volume a Norte, virado para essa zona exterior enquanto a sala e a cozinha se abrem para um alpendre lateral. Bibliografia: Silva, F. (2), ca.1980. Planta de piso Casa 1 e variante; Planta piso Casa 3; Vista de frente e lateral Casa 3 (Silva, F. (2), ca.1980). Casa Piano (1981 Fonte, Silva, J. e Silva, F. 1987) Campo Grande, Rio de Janeiro. Esta agência de viagens e casa de câmbio seria possivelmente para servir a comunidade da recém instalada Michelin no Campo Grande. A loja, em dois pisos, é estreita e alongada. De notar a geometria em viés que se introduz na planta de base rectangular, criando recantos para os funcionários e que permite o atendimento aos clientes com alguma privacidade. A entrada faz-se por um recesso, recuo na fachada, solução que se vê em inúmeros projectos comerciais de Conceição Silva em Lisboa. No piso superior, recuado, não se dispensa a generosa floreira, afinal uma nota brasileira presente em todos os projectos. Bibliografia: Silva P. e Silva F., 1987. Silva, F. (2), ca.1980. 9 Encomendador: Jorge Piano que era um empresário argentino dono de uma casa de câmbio em Lisboa. Emigrou para o Rio onde montou uma agência de viagens e casa de câmbio com uma boa clientela (Silva, A., 2006). Alçado, plantas, corte e exterior (Silva, F. (2), ca. 1980 e Silva, J. e Silva, F. p. 184). 10 Hotel Ponta Negra (c. 1978-80. Fonte: Pinto, 2013). Estado da Bahia. Tratava-se de um hotel organizado em bungalows, junto a uma praia no Estado da Bahia, projectado entre 1978 e 1980, mas não desenvolvido, nem construído, de acordo com informação prestada por Ricardo Silva Pinto. Só existem no arquivo do Atelier Conceição Silva desenhos do bar de apoio de praia, o qual tem uma área coberta de 285 m2. Também aqui opta-se pela aproximação a uma arquitectura de raiz regional, tentando integrá-la no ambiente cultural da Bahia, com uma expressão de cabanas autóctones de construção artesanal, com estrutura em madeira e cobertura em palha e embasamento em muros de pedra rústica. Lembra a obra “cabocla” de Severiano Mário Porto na Amazónia. De notar a planta circular com uma organização do espaço com sentido concêntrico. Bar de apoio em esplanada coberta, apenas fechado na zona de cozinha e serviços. Bibliografia: Silva P. e Silva F., 1987. Silva, F. (2), ca.1980. Alçado, planta e corte (Silva, F. (2), ca.1980). Conjunto residencial Olinda Ellis (1979 Fonte: Silva, J. e Silva, F., p. 178). Rua Olinda Ellis com Rua João Ellis, Campo Grande, Rio de Janeiro. Será o primeiro de quatro conjuntos desenhados para a Michelin e ganhos em concurso e talvez o mais pequeno, se não contarmos com as várias casas disseminadas pelo Bairro do Campo Grande, compradas pela multinacional e reabilitadas pelos arquitectos, de modo a suprir as necessidades enquanto os “Bairros Michelin” não eram construídos. Trata-se neste caso de um prédio de habitação colectiva e conjunto de casas geminadas numa rua semiprivada (João Ellis) para os quadros da Michelin, rua entretanto fechada e com guarda. De notar, o sentido urbano do projecto, com a unidade do conjunto e um desenho cuidado do espaço público. Pese embora se trate de um programa misto com habitação colectiva e unifamiliar, existe a preocupação em ligar e homogeneizar o conjunto, recorrendo aos mesmo materiais ou, por exemplo, descolando a casa contígua ao bloco de apartamentos, mas ligando as duas construções com o muro da casa e o prolongamento da viga de bordadura da cobertura até à empena do prédio. O espaço público é qualificado pelas floreiras e espaços ajardinados, ou os acessos cuidados ao bloco de apartamentos, com, por exemplo, floreiras que resolvem o desnível. O recuo do piso inferior com o edifício apoiado em paredes/lâminas de betão e a calçada preta e branca de padrão de ondas no acesso e estacionamento dos automóveis (no vazio do piso térreo), inspirada na intervenção de Burle Max no calçadão de Copacabana, denunciam a vontade de dar um sentido urbano à intervenção e integrá-la na cidade com referência a este marco identitário. 11 Encomendador: Michelin, multinacional da indústria de pneus, através da SomicSociedade Civil Habitacional, empresa criada para desenvolver os loteamentos destinados a residência dos seus quadros. Localização (Google Inc., 2014). O recurso a materiais nobres, locais e artesanais – tijolo maciço aparente, telhas cerâmicas, madeiras - são outra manifestação da vontade de se inserir na tradição local. A expressão formal, sobretudo das casas geminadas, também reforça a ligação à tradição, não sem actualizar essas referências com elementos como a cobertura inclinada e com telha mas com pouca inclinação e projectada, estrutura em laje de betão com a viga de bordadura à vista ou a reinvenção dos caixilhos e portadas tradicionais de madeira. Aparecem aqui as preocupações que vimos ao longo de toda a obra: a valorização do espaço exterior e vontade de fundir construção e paisagem com generosas varandas no prédio, pátios ajardinados nas casas. Infelizmente, não se encontraram os desenhos técnicos deste conjunto. Bibliografia: Silva P. e Silva F., 1987. Silva, F. (2), ca.1980. C.V arq Pinto da Cunha, espólio Laís Pinto da Cunha. Exterior bloco apartamentos, pátio e interior casa em banda, conjunto casas em banda (em baixo, Silva, J. e Silva,F. p.178; outras, Pinto, ca.1980). Conjunto Professor Castilhos (des. 1979, Fonte: Silva, F. (2), ca.1980). Rua Professor Castilhos com Rua Professor Gonçalves, Campo Grande, Rio de Janeiro. Num quase quarteirão entre estas duas ruas e ainda a Estrada do Monteiro, projectaram-se duas torres de dez pisos e um alongado bloco de quatro pisos. Implantados nos limites do terreno de base poligonal, por cima do estacionamento subterrâneo, libertam uma zona central que se constitui como uma grande praça. Tal como o conjunto da Rua Olinda Ellis, destinavam-se aos trabalhadores da Michelin, sendo o “condomínio” parcialmente aberto à cidade, parcialmente murado, certamente por razões de segurança. O principal interesse do conjunto passa justamente por esta estratégia urbana de abrir o lote à cidade, criando um novo espaço público e atravessamentos de ligação entre várias ruas. Este sentido urbano de grandes espaços comunitários vem na tradição da arquitectura moderna brasileira e denota a vontade de lhe dar uma identidade carioca, reforçada pelo pavimento em calçada à portuguesa em curvas parabólicas e ondas, de cores vermelho, preto e branco, uma intencional referência ao calçadão de Copacabana (de 1970) desenhado por Roberto Burle Max, assim como pela preponderância das varandas, o que se repete em todos os projectos de habitação colectiva dos arquitectos. Recuados nos pisos térreos, de forma a prolongar o espaço público para uma zona exterior mas coberta debaixo das construções, os acessos fazem-se pelo meio dos edifícios, com um acesso central no caso das torres e três ao longo do edifício no bloco. No caso deste último, a localização da caixa de escadas permite isolar nas traseiras o quarto da empregada, o qual não é dispensado apesar da tipologia T2. 12 Encomendador: Michelin, multinacional da indústria de pneus, através da Somic, empresa criada para desenvolver os loteamentos destinados a residência dos seus quadros. Localização (Google Inc., 2014). A planta muito racional revela o sentido de eficácia que preside à distribuição espacial, com certeza uma orientação da Michelin: sala comum e um quarto para a frente, zona de serviços e outro quarto para as traseiras, casa de banho entre os dois quartos localizada na parede confinante com o vizinho, áreas de distribuição mínimas, dois vestíbulos lado a lado, um para as zonas comuns, outro para os quartos. Mais uma vez, apesar da distribuição compacta e do espaço reduzido – por exemplo só tem uma casa de banho, além da instalação sanitária da empregada – privilegia-se o estar ao ar livre com amplas varandas (uns 10m2) espaço também de transição entre a casa e o exterior, defendendo-as ainda da rua com amplas floreiras designadas de “jardineiras”, cuja etimologia revela o maior significado que os brasileiros dão a este dispositivo que entre nós não passa de floreira. Tal como manifestara já na configuração do espaço em Lisboa, Conceição Silva usa aqui estratégias para “desfazer” o bloco, dinamizando-o com volumes salientes (os quartos dos empregados), recuando o vidro numa zona das varandas em L, ou dispensando a parede de esquina para rematar a varanda. Planta de implantação do conjunto, vista exterior, praça interior (Silva, J. e Silva, F. p.176-177). São também dispositivos que asseguram privacidade aos seus ocupantes, com as tais floreiras entre apartamentos ou a entrar pelos quartos adentro, as paredes divisórias a prolongarem-se fazendo a separação entre varandas, estas com uma zona recuada, espaço de estar de eleição. A configuração da Torre de base quadrada (referimo-nos à planta da Torre A, a única encontrada) com os acessos num bloco central permite uma interessante distribuição de quatro apartamentos por piso simétricos, também eles quase quadrados, criando-se uma morfologia com maior movimento do que no bloco, com avanços e recuos mais dinâmicos. Apesar de T3 com duas casas de banho – uma em suite seguem os mesmos princípios do bloco com uma distribuição compacta sem corredores e sala comum. Em contrapartida, a zona de serviços é ampla, com quarto de empregada, sintomática da sociedade serviçal brasileira. Varandas generosas cujo ambiente é dado pela designada “jardineira”, bem revelador da intenção, são, naturalmente, o espaço que se privilegia. Refira-se que Carmo Valente foi responsável pela decoração dos apartamentos. Exterior (Silva, J. e Silva, F. p.177). Bibliografia: Silva P. e Silva F., 1987. Silva, F. (2), ca.1980. C.V arq Pinto da Cunha, espólio Laís Pinto da Cunha. À esquerda alçado Rua Professor Castilhos, planta tipo do bloco; à direita planta tipo da Torre (Silva, F. (2), ca.1980). Loteamento Poatã (des. 1980, Fonte: Silva, F. (2), ca.1980). Rua Poatã com Rua Camaipi, Campo Grande, Rio de Janeiro. 13 Encomendador: Michelin, multinacional da indústria de pneus, através da Socit, empresa criada para desenvolver os loteamentos destinados a residência dos seus quadros. O conjunto da Rua de Poatã consiste num pequeno loteamento de 27 casas geminadas numa “bolsa” que sai da rua de Poatã, com três ruas que culminam em becos sem saída e num generoso espaço verde comum. A unidade do conjunto e os arranjos exteriores denunciam a importância que se dá ao espaço colectivo, quer em termos de imagem, quer em termos de vivência. São disso exemplo, as ruas arborizadas, as faixas relvadas e ajardinadas com percursos pedonais em lajetas de betão que afastam as casas da rua e o pavimento em blocos de betão que desacelera o percurso dos automóveis. A adaptação das casas à pendente da rua e algumas casas de dois pisos criam um ritmo mais dinâmico ao conjunto. Os volumes dos depósitos de água que encimam as construções e marcam a sua expressão são mais um testemunho da habilidade do desenho (eram obrigatórios, sendo a água abastecida por gravidade). Todas com 3 quartos e compactas, apresentam algumas variações. O lote é desenhado na sua totalidade criando pátios murados nos interstícios da construção, descolando-a da casa confinante de um dos lados e adossando-a ao muro da casa seguinte, numa manifesta vontade de conseguir alguma privacidade. O estacionamento e a varanda frontal criam espaços exteriores virados à rua, mas, como referido, dela afastados por zonas comuns ajardinadas. Localização (Google Inc., 2014). Planta do conjunto, construção, interior e exterior (Silva, J. e Silva,F. p.178-179; em construção, Pinto, ca. 1980). Na casa C, talvez a mais interessante, o pátio central reforça o sentido intimista, para ele abrindo a sala e a área de entrada e ajudando a desenhar uma distribuição compacta. Tirando partido da topografia, os três quartos ficam num nível superior (cerca de um metro acima) e abrem-se para um pátio com toda a largura do lote. Um deles, em suite, recua dandolhe maior privacidade. A zona de serviços abre-se para outro pátio semi-coberto e com floreira suspensa, do lado do muro que confina com o vizinho. As outras casas apresentam pequenas diferenças, nomeadamente o pátio interior encostado a um dos lados, por exemplo na casa E, permitindo criar uma zona de refeições a uma cota superior à da zona de estar, algumas com os quartos num patamar superior ao da sala e da entrada, outras têm o terraço frontal a uma cota abaixo da rua, uma ainda beneficia de um grande pátio central (Casa F). Infelizmente, de acordo com observação através do Google Earth, verifica-se que estas casas foram bastante adulteradas, como a colocação de coberturas em telha nos depósitos de água, entre outros. E o conjunto também foi fechado em condomínio com segurança. Bibliografia: Silva P. e Silva F., 1987. Silva, F. (2), ca.1980. C.V arq Pinto da Cunha, espólio Laís Pinto da Cunha. À esq. Casa A, Planta de Piso, Cortes AB, CD e EF. Casa C, Planta de piso, Cortes; Casa F, Planta (Silva, F. (2), ca.1980). Conjunto Habitacional GI (1980, Fonte: Silva P. e Silva F., 1987, p. 188). Campo Grande, Rio de Janeiro. Pelo nome, supõe-se que este empreendimento seria promovido através da GI, empresa que Conceição Silva criou para desenvolver investimentos imobiliários. Pensa-se não ter sido construído e desconhece-se a localização exacta no Bairro do Campo Grande, o qual, recorde-se, acaba por se valorizar com a instalação da Michelin. Tratar-se-ia de um grande conjunto habitacional do qual se conhecem apenas uma perspectiva e os desenhos de um edifício de seis pisos – uma planta com tipologias T3 e T3+1. Atendendo às tipologias relativamente modestas, destinar-se-iam a uma classe média. Neste prédio também se recupera uma expressão mais tradicional com a cobertura inclinada de telhas cerâmicas, o revestimento das paredes em tijolo ou as guardas das varandas em madeira. Verifica-se uma grande racionalidade da planta e economia do espaço, como nos T3, em que a sala, no centro, faz a distribuição para a zona dos quartos e dos serviços, em lados opostos. Trata-se de um andar muito compacto, com o mínimo de áreas de distribuição e pequenas áreas dos compartimentos: sala 22m2, quartos entre 9 e 10 m2, uma só casa de banho com 3,15m2 para 3 quartos. No entanto, reflectindo o modo de vida da sociedade brasileira, o apartamento não dispensa o quarto de empregada. Note-se também uma zona da cozinha separada, provavelmente de tratamento de roupa e uma simpática Perspectiva do conjunto (Silva, J. e Silva, F., p. 188). 14 Planta do T3+1; alçados (Silva, F. (2), ca.1980). Varanda com floreira e espaço suficiente para uma mesa de refeição, mais uma vez revelando a importância dada ao espaço exterior. Pormenores como este ou o painel de separação na entrada para conferir alguma privacidade demonstram o cuidado posto no projecto, pese embora a clara intenção de levar ao limite o aproveitamento do espaço útil de 70m2 totais – na realidade engenhoso. A planta refere 6 apartamentos – provavelmente na mesma prumada. Outra variante muito semelhante tem como principal diferença a não existência de quarto de empregada, nem de varanda. Casa isolada Infelizmente esta casa não está localizada, porém tem algumas particularidades que a tornam num interessante caso de estudo. Trata-se de uma casa unifamiliar num lote murado com três quartos mais quarto de empregada. A planta parece organizada em dois volumes independentes unidos pela cobertura, sendo o corredor que os separa um espaço mais transparente, aberto dos dois lados por vãos envidraçados, quase dando continuidade ao jardim como se de um corredor exterior se tratasse. Contrariamente à maioria das casas em que a privacidade entre zonas se garante por diferenças de cotas – em função das próprias possibilidades do terreno natural – aqui é o desenho de dois núcleos claros e separados que assegura essa qualidade, adivinhando-se um terreno plano. Dominam os espaços exteriores, nomeadamente o generoso alpendre com zona de estar e refeições, uma verdadeira sala de estar ao ar livre que medeia entre a vida no interior da casa e o jardim, mas que se pode colocar na penumbra fechando as portadas de madeira, ou abrir ao jardim. Trata-se assim de um interessante espaço intermédio que vem da tradição da casa colonial brasileira mas que trabalha as possibilidade oferecidas por este espaço híbrido com um elemento também ele tradicional e note-se que a sala não tem caixilhos para se fechar a este espaço. No volume de trás um pátio/sala sem função determinada introduz uma clara separação entre um quarto isolado, possivelmente de amigos, e a zona de serviços – cozinha, lavagens e quarto de empregada. De notar, o quarto de crianças separado em dois nichos simétricos, com zona de dormir e de estudo, podendo a zona comum abrir-se e atravessar-se da sala informal ao 15 alpendre, prolongando amplamente os seus limites. Sem portas na sala e com portas de correr neste quarto, a casa possibilita uma grande fluidez e invulgar circularidade atravessando alpendre, sala e quarto. Mais íntima, com um pequeno recesso de entrada, a suite principal pode igualmente prolongar-se num espaço de estadia exterior, graças a portas de correr que recolhem dentro da parede. De notar ainda o portão vermelho, uma cor bem brasileira, encimado por uma moderna floreira de betão, mas com um muro lateral de pedra rústica, mais uma vez denotando o gosto pelo diálogo entre tradição e modernidade. A flexibilidade, com várias possibilidades de usufruir do espaço, tornam esta casa invulgar, embora sem grandes luxos, levando a crer que seria para um quadro dirigente da Michelin. Sabe-se que a multinacional, para além dos conjuntos listados, construiu uma série de casas isoladas, comprando lotes dispersos pelo Campo Grande e Resende (Pinto, 2013). Planta piso 0 e alçado (Silva, F. (2), ca.1980). Loteamento da Cachamorra (des. 1979 Fonte: Pinto, 1979). Estrada da Cachamorra, Campo Grande, Rio de Janeiro. Trata-se de um dos maiores projectos dos arquitectos no Brasil, mais uma vez, para alojar os quadros da Michelin. Previa a transformação da Fazenda Montenegro em “Condomínio fechado”, como refere a memória descritiva (projecto fornecido por Ricardo Silva Pinto), com um conjunto de 71 casas em lotes individuais apoiadas num centro social e recreativo, num terreno de cerca de 10 hectares. Na mesma estrada do que o complexo industrial da Michelin (que se apresenta na planta), desconhece-se se foi construído. Nos limites do Campo Grande, ou seja da cidade, numa zona ainda caracterizada por quintas e uma ocupação urbana fragmentada e pouco organizada, a opção foi dar continuidade a essa paisagem no limiar do rural, com um condomínio fechado em que domina o projecto de paisagismo, realçando-se na memória descritiva a área verde para utilização comum, a qual corresponde a cerca de 25% do terreno. Organizado em torno do centro social e recreativo densamente arborizado, privilegia-se esta nova paisagem criada por um parque verde que se constitui como a vista das casas: “o centro será o espaço mais valorizado e aquele onde incidirá uma maior intervenção paisagística de forma a fazer convergir para ai a vida da comunidade”. Os próprios arranjos exteriores das casas contribuem para o desenho de conjunto com os espaços verdes e a sua implantação é ainda função da vegetação existente evitando-se “os cortes desnecessários” como se frisa na memória descritiva. Fechado e guardado com segurança privada, oferecia um conjunto de serviços para os seus habitantes terem os bens essenciais à mão, sendo precursor dos condomínios que caracterizarão as décadas seguintes e até hoje, o Rio e outras grandes cidades. Cria-se assim um pequeno microcosmo com um conjunto de actividades, incluindo desportos e 16 Encomendador: Michelin, multinacional da indústria de pneus, através da SomicSociedade Civil Habitacional, empresa criada para desenvolver os loteamentos destinados a residência dos seus quadros. Localização (Google Inc., 2014). e escola, em que se promove a vida comunitária e o uso comum desses espaços, nomeadamente possibilitando uma fácil circulação com o desenho de uma ciclovia que possibilita ainda a prática de cooper, em paralelo à via para os automóveis. Prosseguindo o mesmo fim, fazem-se barreiras vegetais com sebes em vez de muros (mesmo entre lotes de casas) e propõem-se materiais que se integrem nessa massa verde, como os cerâmicos, na alvenaria de tijolo aparente ou as coberturas com telha e estrutura de madeira, também numa manifesta vontade de uma expressão tradicional. Promovendo uma certa autonomia e vida própria, num bairro, que, como vimos, oferecia pouca qualidade urbana, o conjunto apoia-se no centro social e recreativo com salas de estar, de leitura e de jogos, bar, mini-mercado, zona administrativa do condomínio e uma ampla zona exterior coberta e descoberta com esplanadas em torno das piscinas para adultos e crianças. A memória descritiva enfatiza a unidade do conjunto com os vários edifícios de mesma expressão e interligados, não descurando os espaços exteriores, nomeadamente com uma esplanada em pedra que liga as piscinas às construções. Previa ainda um anfiteatro de 180 lugares para teatro e música integrado nos espaços verdes, a uma cota rebaixada, construído em peças prémoldadas de betão aparente. Outro actractivo para fixar os seus residentes era o centro desportivo, mais uma vez privilegiando as actividades ao ar livre, com 4 campos de ténis, um campo de vólei e um campo polivalente para basquete e futebol de salão envolvidos em densa vegetação, sendo todo o equipamento comum “enquadrado por cortinas de vegetação de forma a proteger as habitações por meio de intensidade de plantação apropriada a cada fim e aos objectivos que se pretendem atingir”. O desenho de paisagismo prevê assim “primeiros planos de vegetação baixa e grupos de árvores” que permitem “sequências de volumes diversos e facilmente controláveis”. A escola, com dois corpos de aulas interligados por uma zona central de serviços comuns e um total de 18 salas, servia alunos de 1º e 2º grau e também se integra no conjunto de edifícios colectivos com paredes exteriores em tijolo aparente. Plano director (Pinto, 1979). De forma a “garantir uma diversidade aconselhável e evitar a identificação de casas repetidas” conceberam-se 22 projectos diferentes a partir de variantes de 9 casas tipo para as 71 casas, variando ainda na implantação do lote, tipos de materiais e arranjos exteriores. Tratam-se de casas de dois a quatro quartos entre 90 e 135m2 cobertos, sendo que as mais pequenas têm mais repetições. Por exemplo, a casa designada B2, com dois quartos, é repetida 18 vezes e tem duas variantes e a casa AA3, com quatro quartos é repetida apenas 3 vezes e só tem uma variante. Procurando a economia e eficácia da construção, são repetidos elementos, como os sanitários, e processos construtivos, simplificados, e com estrutura em pilar viga e laje de betão. Mantém-se aqui a expressão tradicional, com cobertura de duas águas e “telha colonial”, a madeira e o tijolo à vista, mas também actualizando essas referências com, por exemplo, elementos de betão aparente. Explica ainda a memória descritiva que se procurou uma clareza da planta entre zonas sociais e privadas e oferecer espaços generosos, com cerca de mais 10% do que exigia o programa, “visto o custo não ser proporcional ao benefício que uma maior área poderá induzir na habitação, sobretudo na zona de estar”. Pese embora a fluidez e abertura dos espaços comuns, teve-se o cuidado de localizar a entrada “de forma a não perturbar a intimidade da zona de estar”. Como sempre, os interiores são cuidados e persegue-se uma ideia de conforto ambiental, para além da unidade, um cuidado sempre respeitado, sendo assim o escasso leque de materiais muito semelhante em todos os projectos – neste caso materiais cerâmicos ou madeiras nas áreas sociais, em pavimentos, tectos, rodapés e rodatectos, e alcatifamento nos quartos; materiais cerâmicos e azulejos nas zonas de água. Como referido, procura-se garantir uma certa privacidade das casas no conjunto, também dos próprios lotes, com os jardins limitados por sebes e faixas de 5 metros entre as suas “barreiras” de sebes e os limites do terreno. O Espaço colectivo é mais uma vez cuidado e pensado no conjunto do condomínio, não só os “muros verdes” divisórios, com sebes ou cortinas de árvores mas também toda a pavimentação e circulação, com ruas para veículos com “blockets” e meio-fio em concreto pré-moldado, passeios em placas de betão e vastas zonas com relva. Como se pode ver no perfil abaixo, na zona central, um passeio de 5,5 metros permitiria uma ciclovia também para desportos pedestres qualificada por uma faixa arbustiva de 2,5 metros. Do outro lado, um passeio de 2 metros pavimentado com lajetas de cimento pré-moldado e juntas preenchidas com relva e uma pequena faixa arborizada. Por fim, note-se o cuidado em propor espécies autóctones, denotando essa vontade de integração e respeito pela cultura local. Tomemos como exemplo uma das casas maiores, a AA3. Com uma implantação sensível ao terreno, adapta-se ao desnível, com um piso semi-enterrado e outro ligeiramente acima da cota de entrada, numa solução parecida com a adoptada na casa própria de Conceição Silva, no Dafundo, em Lisboa. A entrada, aberta no interior, mas à cota da rua, oferece a desejada privacidade, sendo o único contacto com a rua, já que a casa é toda virada para o jardim, com o piso da sala em baixo, à cota do jardim e o piso dos quartos em cima, à excepção da suite principal, que fica também numa cota ligeiramente abaixo da sala, por baixo do estacionamento, com a entrada, o único espaço à cota da rua. O piso inferior, semi-enterrado salvaguarda o contacto com a terra localizando nesse limite instalações sanitárias, área de empregada e 3 pátios ajardinados enterrados, à inglesa, os quais trazem luz à casa de banho e zona de vestir da suite e à casa de banho e quarto de empregada. Com uma planta irregular, com o avanço da zona de jantar sobre o jardim e o recuo da suite, quebra-se a monotonia da fachada, com um tratamento mais volumétrico. A sala comum é determinada por zonas bem marcadas, com as refeições num espaço que invade o exterior e o espaço de estar numa reentrância, sensivelmente no centro desse piso. Toda envidraçada, os seus limites expandem-se para o exterior, com um amplo terraço coberto. Como referido, a suite principal, na cota mais abaixo e localizada no extremo do volume, beneficia da máxima privacidade, recuada em relação à linha de fachada e prolongando-se no exterior a parede de separação com a sala. Casa tipo AA3, plantas piso 1 e 0 e cobertura, alçado e corte AB (Pinto, 1979). Casa tipo B1 perspectivas, plantas piso 0 e cobertura, fachada e corte AB (Pinto, 1979). Por outro lado, um pátio ajardinado afasta-a do lote confinante. No piso superior, os três quartos servidos por uma casa de banho apresentam uma organização mais convencional ou racional, dispostos em bateria, abrindo-se para um terraço corrido com a frente envidraçada. As casas mais pequenas são mais compactas e só possuem um piso, como a tipo B1. Neste caso e certamente tentando responder ao propósito de variedade (note-se que não indica a orientação solar), a sala e a maior parcela de jardim ficam do lado da rua, com o estacionamento lateral, debaixo da cobertura que se projecta para também criar um espaço em alpendre de transição para o jardim em terraço, em frente à sala envidraçada. A entrada, lateral à sala mas aberta, permite alguma privacidade. Numa cota ligeiramente acima, fica a zona de jantar aberta para um pátio interior ajardinado. Os três quartos, dos quais um de empregada com acesso pelo exterior, ocupam toda a traseira, também nesse nível superior, assegurando uma zona mais privada. As casas oferecem assim sempre variantes, mas todas apresentam constantes como os generosos alpendres em frente às salas, confirmando a importância da vida no exterior, ocupam ainda toda a largura dos lotes, permitindo criar duas zonas exteriores de cada lado da construção, note-se com as plantações previstas sempre bem marcadas, tiram partido do terreno natural com desníveis que garantem zonas distintas e maior privacidade, entradas abertas às salas mas laterais, salas comuns mas com a distinção do espaço de estar e do de refeições, seja por meio de diferentes níveis, seja por mobiliário ou pelo desenho em planta menos regular. A privacidade é assim um dos aspectos ao qual se nota que se deu importância, não desprezível num condomínio em que a casa garante a reserva de privacidade em contraste com a vida comunitária na tal zona central que concentra a vida pública e actividades sociais. Nenhuma dispensa o quarto de empregada e boas zonas de serviços com espaço exterior para tratamento de roupas.