Ao invés de realizar uma apresentação de 20 minutos em Portugal, Patrícia Rangel foi detida no aeroporto de Barajas, Espanha, por mais de 48 horas. Para a polícia, era somente uma operação Patrícia Rangel, estudiosa e militante feminista é doutoranda em Ciência Política na Universidade de Brasília, mestre pelo antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Mineira de Juiz de Fora, sempre se considerou uma pessoa do mundo. Sua opção pela carreira acadêmica contribuiu para que ela se tornasse uma “cigana estudiosa”, como costuma brincar. Inglaterra, Rio de Janeiro, Brasília e Buenos Aires são alguns dos lugares que ela já chamou de lar. Fora isso, já conheceu boa parte do continente americano e da Europa: considera viajar, BARRADOS • Patricia Rangel de rotina – afinal de contas, um terço dos brasileiros que residem no exterior são imigrantes ilegais; para a grande mídia, mais uma matéria inusitada; mas para Patrícia, essa detenção na fronteira euro- Um ensaio sobre os brasileiros inadmitidos na Europa e o conto da aldeia global peia foi uma experiência traumática e transformadora. Graças a sua sensibilidade, ela foi capaz de entender seu caso como universal. Tendo sentido na pele o que significa ser detida arbitrariamente, em seu retorno ao Brasil, realizou um percurso teórico (via Foucault, Bauman, Negri e outros) para reconceitualizar o que havia acontecido com ela e transformar sua própria experiência em um estudo de caso etnográfico da injustiça que tantos imigrantes de países em desenvolvimento sofrem ao visitar a “Fortaleza Europa”. Barajas não é Auschwitz nem Guantánamo, mas no extremo todos podem ser considerados variações do campo que separa o “Nós” dos “Outros”. Ao mesmo tempo em que esse livro pode ser lido como uma investigação sociológica sobre a “terra de ninguém” que separa a barbárie da civilização, ele também é um relato do quanto custaram a Patrícia seus 15 minutos de fama. além de um vício, uma expressão de sua condição humana, como já havia argumentado Kant há mais Fredéric Vandenberghe de 200 anos. Aos 17 anos, foi estudar inglês em Professor visitante de sociologia Londres e desde então não parou mais em casa. Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ Pelo menos até ser arbitrariamente barrada em Barajas, experiência sobre a qual fala neste livro. BARRADOS Patricia Rangel BARRADOS Um ensaio sobre os brasileiros inadmitidos na Europa e o conto da aldeia global Brasília, DF • 2012 © Patrícia Rangel, 2012 Projeto gráfico: Paulo Roberto Pereira Pinto Impressão: Athalaia Digital Tiragem: 100 exemplares Ficha Catalográfica P196b Rangel, Patrícia. Barrados / Patrícia Rangel. Brasília : Editorial Abaré, 2012. 160p. ISBN 978-85-89906-15-9 1. Ciências sociais. I. Título. II. Autora. CDU 300 Abaré Editorial Telefones: (61) 3879.6886 / (61) 9986.3632 E-mails: [email protected] / [email protected] Ao embaixador espanhol no Brasil, Ricardo Peidró “Na semana passada, dois mestrandos foram barrados ao passar por Madri (Espanha) com destino a Lisboa (Portugal). O caso detonou um mal-estar entre Brasil e Espanha no que diz respeito à imigração”. (Folha de S. Paulo, 11/03/2008). “2.800 brasileiros repatriados pela Espanha entre de janeiro a março 2007. 97.715 pessoas repatriadas pela Espanha entre de janeiro a março 2007. 70.000 brasileiros residem na Espanha. 250.000 turistas brasileiros visitam a Espanha a cada ano. A Espanha é o segundo maior investidor do Brasil, só perde para os Estados Unidos”. (Publico.es, 10/03/2008) “As an academic organization BRASA is concerned about the implications of this broad trend of intolerance. It now affects Brazilian scholars who have no apparent interest in emigrating to Europe but nonetheless are detained and deported from a hitherto-friendly European capital while trying to carry on essential academic work: meeting with colleagues at conferences”. (Trecho da nota da Brazilian Studies Association - BRASA) “O embaixador espanhol no Brasil alegou que nossos estudantes, assim como muitos outros brasileiros,’não são prisioneiros’, estando ‘alojados em boas condições de higiene’. Dispensamos estas estranhas preocupações diplomáticas. Infelizmente, ele não soube explicitar adequadamente as razões desta retenção de nossos estudantes, nem a dureza do tratamento que receberam; nem parece que o poderia, porque tudo indica serem casuísmos arbitrários, manipulados por policiais pouco afeiçoados ao Estado de Direito”. (Trecho da carta de protesto do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) “O tratamento recebido pelos alunos do Iuperj contraria a longa tradição de intercâmbio e cooperação acadêmica entre Espanha e Portugal com os países latino-americanos e caribenhos”. (Trecho da nota de repúdio do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais) “Ricardo Peidró [embajador español en Brasil], en declaraciones a Público, asegura que (...) no ha habido ‘discriminación ninguna con los brasileños’ y ‘que han sido tratados correctamente’. El tono de los españoles, afirma Ricardo, ‘es agresivo para los latinoamericanos’ y en momentos tensos puede ‘ser malinterpretado”. (Publico.es, 10/03/2008) “O chanceler Celso Amorim declarou ontem que o tratamento dispensado aos brasileiros por autoridades da União Europeia (UE) deixou de ser um assunto consular para o governo Luiz Inácio Lula da Silva e tornou-se um tema político. Depois de uma audiência na Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, ele afirmou que o Brasil adotará o princípio da reciprocidade caso a Grã Bretanha exija visto para brasileiros”. (O Estado de S. Paulo, 18/06/2008) “A SBPC, que tem como missão o incentivo ao desenvolvimento da ciência no Brasil e no mundo, condena veementemente as atitudes das autoridades espanholas, que em muito desrespeitam a integridade desses jovens cientistas, representantes de universidades e institutos de pesquisas tradicionais no país”. (Trecho da nota de repúdio da Associação Brasileira de Ciência Política – ABCP) “O fato, já de conhecimento público, ocorrido com os dois estudantes e motivo de manifestações e protestos de toda a comunidade acadêmica, é mais um arbítrio a que estamos sujeitos, e merece nossa atenção para além dos membros envolvidos”. (Trecho da nota do Sindicato dos Sociólogos do Estado do Rio de Janeiro – SINDSERJ) “A SBS está encaminhando solicitação à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência para que encaminhe ao Governo Brasileiro, em nome das sociedades científicas, a nossa manifestação de repúdio e pedido para que gestões diplomáticas sejam feitas para evitar que tais fatos se repitam”. (Trecho da nota da Sociedade Brasileira de Sociologia – SBS) Sumário 1. Quem é gente pra gente? 19 2. Liberdade pra quem e até onde? 41 3. Cadernos do cárcere 53 4. Que soberania? 75 5. O espetáculo 99 6. Jihad vs McWorld 115 Referências bibliográficas 137 Referências de jornais e revistas 143 Repercussão 145 Prefácio Em março de 2008, ao tentar entrar no chamado Espaço Schengen1 para participar de um congresso em Portugal, fui detida no aeroporto madrilenho de Barajas pela polícia de fronteira da Espanha, que me acusava injustamente de não preencher os requisitos para entrar no território.2 A despeito da ação do corpo diplomático brasileiro, fui mantida sob o poder das autoridades espanholas, em um sequestro legitimado pelas regras da União Europeia. O caso foi denunciado e obteve reações consideráveis ao passo em que vinha à tona um enxame de outros abusos e arbitrariedades cometidas pelas autoridades europeias em relação a visitantes do Sul motivadas pela xenofobia. 1 Espaço limitado pelo Acordo de Schengen, convenção assinada por países da Europa. O Schengen estabelece a livre circulação de pessoas dentro dos países signatários, isentando-as de passar pelo controle de imigração nas fronteiras entre os mesmos após ser admitido em um deles. Por exemplo, se tivéssemos passado pela Espanha, não precisaríamos apresentar passaporte ao ir para Portugal e Alemanha. O Acordo de Schengen foi originalmente assinado por Bélgica, França, Alemanha, Luxemburgo e Países Baixos, em 14 de junho de 1985. Atualmente, o espaço Schengen é formado por 24 países: Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Islândia, Itália, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Noruega, Polônia, Portugal, República Tcheca e Suécia. Mônaco, San Marino e Vaticano foram incluídos por serem enclaves. Em Helgoland (Alemanha), Svalbard (Noruega), Groelândia e Ilhas Faroé (Dinamarca), o tratado não vigora. 2 Segundo comunicado da Comissão Europeia de Turismo, brasileiros não precisam de visto para entrar em qualquer um dos países europeus integrantes do Schengen e as formalidades, válidas para todos os destinos, são: portar passaporte com validade superior a seis meses; ter bilhete aéreo de ida e volta com permanência máxima de 90 dias; apresentar comprovante de alojamento; ter seguro saúde (varia de país para país); e comprovante de meios financeiros para manter-se durante a estada no país. Cumpríamos todos essas exigências na citada ocasião. 12 • BARRADOS A experiência de perder injustamente a liberdade, de sofrer maus-tratos e acompanhar de perto um atrito diplomático despertou-me para as diversas questões que motivaram este livro: o que faz de uma pessoa “um de nós” e o que faz dela “um outro”? Qual a influência da cultura nas políticas de migração? Qual o verdadeiro significado de entrar em outra comunidade: expressão de liberdade humana ou invasão? O que define alguém como ameaça? Por que direitos humanos são aplicados somente àqueles que possuem status de cidadão? A existência de um conflito multicultural contribui para a formação de identidades coletivas contemporâneas? O embate entre soberania popular e soberania territorial tem uma solução? Como diz Zygmunt Bauman,3 as pessoas tecem suas memórias de mundo usando o fio de suas experiências. É isso que me proponho a fazer: com base em fragmentos de lembranças da minha experiência, montar um compêndio de reflexões, de forma a transcender minha vivência e relacioná-la a um problema estrutural, que demanda soluções coletivas. Trata-se de uma tentativa de resolver uma questão que é, ao mesmo tempo, particular e global. Contudo, limitar-me-ei a reunir uma série de esboços e retalhos de pensamentos, em vez de apresentar argumentos logicamente encadeados nos tradicionais padrões acadêmicos. Minha intenção não é explicar os acontecimentos vivenciados, mas sim explicitar e problematizar o que observei. Trata-se mais de uma bricolagem livre do que de uma fotografia. Para ilustrar, vale citar a metáfora 3 BAUMAN, Z. (2004) Amor Líquido. Sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Patricia Rangel • da teoria como uma pintura e do estudioso como um pintor, que adiciona mais ou menos tinta para retratar uma imagem. Sem me preocupar em pintar um quadro idêntico ao meu objeto, considerando que isso é impossível, adicionarei mais cores a determinados aspectos e menos a outros, de acordo com a necessidade, o arcabouço teórico e o interesse por cada um dos assuntos abordados. De forma livre, relato minha experiência em Barajas (que cumpre aqui o papel de etnografia) e lanço mão dos trabalhos de Foucault, Bourdieu, Taylor, Giddens, Bauman, Benhabib, Negri, Castells, Cox, Wallerstein, Fraser, Hall, Ong e outros autores e outras autoras. Meu texto não possui nenhuma ambição além do esforço de se debruçar sobre as interpretações que esses autores já apresentaram para os fenômenos relacionados à minha experiência pessoal, de forma a entendê-los um pouco melhor. Não adotei nenhuma vertente teórica em especial nem fui fiel ao conjunto de pressupostos que compõem uma “grande família” interpretativa, de forma a tornar a avaliação mais fluída e permitir uma análise transversal de temas que aparentemente não se relacionam, para fazê-los dialogar em torno de um eixo. Eixo este, que, por sua vez, é uma experiência de vida, o que justifica o caráter pessoal do texto – escrito em primeira pessoa do singular –, que se apresenta como uma “conversação interior” tal qual apresentada por Margareth Archer, apontando a complexidade das experiências humanas e das ciências sociais. O livro está dividido em seis grandes partes, nas quais diversos temas são abordados sem a ambição de esgotar os debates já construídos em torno deles. No primeiro capítulo, dedico-me a reflexões acerca de sentimento de respeito, estima, cidadania, situações de desrespeito e preconceito, igualdade e desigualdade, e abordo 13 14 • BARRADOS conceitos de reconhecimento, exclusão, comunidades imaginadas, e a dicotomia turistas x vagabundos. O segundo é dedicado a um debate sobre a liberdade, o direito de ir e vir, o cosmopolitismo e o significado de entrar em uma comunidade estrangeira. No terceiro capítulo, relato minhas impressões sobre a detenção em Barajas e faço referência à lógica do encarceramento, ao significado da punição, às relações entre detentos, a poder e disciplina, distribuição espacial dos ambientes e técnicas de dominação e controle sobre o sofrimento humano. O quarto capítulo trata dos conceitos de soberania e sua aplicação (ou descompasso com a realidade), de identidades nacionais, inclusão e exclusão, além de abordar anomalias e novas formas de soberania. No quinto capítulo, analiso o papel da mídia como denunciante dos problemas relacionados à migração e ao papel do Estado e sua função de combater/reforçar os posicionamentos das autoridades e visões de mundo. O desfecho do ensaio se dá, no sexto capítulo, com um olhar sobre imigração e xenofobia, sobre a aprovação da “Diretiva de Retorno” pelo Parlamento Europeu e os possíveis significados e implicações da mesma, e com uma reflexão sobre o “conto da aldeia global” e as possibilidades de surgimento de uma cidadania cosmopolita. De antemão, desculpo-me com o leitor que esperava travar contato com um artigo acadêmico e se depara com um texto tão heterodoxo. No entanto, é impossível estabelecer um distanciamento entre o objeto e o observador neste caso. Por isso, agradeço ao professor Frédéric Vandenberghe, que lecionou a disciplina para a qual esse livro foi produzido como trabalho de final de curso, e foi extremamente compreensivo com meu estado de espírito. Agradeço também ao professor Charles Pessanha, que Patricia Rangel • incentivou a publicação do trabalho. Agradecimento especial para Fábio Barcelos, pelas incontáveis revisões e sugestões ao texto. Muito obrigada ao Paulo Roberto, que além de fazer todo o projeto gráfico do livro, foi o grande responsável por me impedir de desistir de sua publicação e por me convencer a seguir em frente. Por fim, sou grata à Editorial Abaré, por acolher esses escritos, e à Tereza Vitale por sua atenta revisão. Mais de três anos se passaram desde que estive injustamente presa no aeroporto de Madri e fui repatriada. Nesse meio tempo, as arbitrariedades das autoridades espanholas e de outros Estados europeus não cessaram. Muitos outros brasileiros foram submetidos a inexplicáveis maus-tratos, graças ao respaldo de figuras como o embaixador espanhol no Brasil, Ricardo Peidró. Entre elas, as religiosas que seguiam para a Alemanha em missão evangelizadora; o músico Guinga, que perdeu dois dentes após ser agredido por um policial do posto da Polícia Nacional Espanhola no aeroporto Barajas; o padre Jeferson Flávio Mengali, que, além de ficar detido, teve de suportar os policiais dizendo que suas roupas religiosas eram para o desfile de carnaval; a física Patrícia Camargo Guimarães, que me antecedeu nesta infeliz aventura e também denunciou o abuso das autoridades que a mantiveram presa por três dias sem qualquer justificativa; e a senadora Patrícia Saboya, cuja posição política não a impediu de se tornar mais uma vítima de maus-tratos e constrangimentos impostos pela polícia italiana no aeroporto de Roma; entre inúmeros outros brasileiros injustiçados. É a essas pessoas que, na realidade, dedico este livro. Patrícia Rangel, agosto de 2011 15 1. Quem é gente pra gente? Cada um vê o mundo com os olhos que a vida ensinou. Carlos Scliar Quando o estranhamento do respeito desencadeou lembranças e reflexões sobre a experiência com o desrespeito Hoje é 10 de junho de 2008 e estou embarcando num voo para Belo Horizonte, onde participarei de um congresso sobre estudos feministas. O estranhamento ao entrar na aeronave é inevitável. Todas essas comissárias sorrindo para mim, desejando boa viagem, tratando-me com naturalidade e respeito, como se eu fosse gente. Na última vez em que coloquei os pés num avião, o sentimento e o tratamento eram diferentes. Fazia frio naquele dia de inverno madrilenho, um sol que iluminava mas não aquecia, como lâmpada de geladeira, e um vento congelante de cortar os ossos. Quando desci do camburão da polícia de fronteira da Espanha, ouvi do oficial que nos conduzia um sarcástico “sua viagem de férias acabou” e fui entregue a outro policial. Este nos encaminhou até o avião que nos traria de volta ao Brasil, onde nos tornaríamos atração barata para os passageiros do voo ao passarmos escoltados pela escadinha da tripulação e, somente em nossos assentos, sermos deixados pelos policiais. Os passageiros eram gente de todos os tipos. 20 • BARRADOS Jovens bonitas, famílias, homens de negócios, aventureiros. Diferentes entre si, porém iguais em seus status de cidadãos, tratados como tais, vivendo seu cotidiano, sem imaginar os abusos que ocorrem no universo paralelo daquele aeroporto. Tristes, felizes ou indiferentes, aquelas pessoas todas pareciam ter um papel social, ou pelo menos eram reconhecidas enquanto seres humanos. Eu, pelo contrário, não me sentia gente. Não sei se pelo fato de a tripulação e os passageiros me olharem como um bicho ou pelo fato de eu mesma me sentir assim naquele momento. Vejamos. Era uma sexta-feira e eu não tomava banho desde a terça, ninguém se dirigia a mim a menos que fosse aos berros, estava injustamente presa, privada violentamente de gozar da liberdade inerente à minha condição de ser humano, não tinha meus documentos, minha bagagem e meus pertences, não podia me comunicar com ninguém, comia mal, dormia mal, sentia frio, sentia medo, sentia revolta, ninguém podia me ouvir, ninguém viria me salvar. É, eu não me sentia muito gente não. Enquanto isso, lá estava eu, sendo colocada no avião pelo policial, como alguém sem autonomia, um elemento que precisa ser controlado. O policial nos entregou a comissários de bordo que, dias antes, me sorriam e desejavam boa viagem, mas que agora faziam questão de demonstrar asco enquanto nos conduziam aos últimos assentos, ao lado do banheiro, cujo cheiro ao longo de diversas horas de voo não é exatamente agradável. “Sua viagem de turismo acabou”. Foram essas as últimas palavras que ouvimos em solo espanhol. Digo, em território internacional, pois estávamos “em trânsito”, ou seja, em um território que não pertence ao país de origem nem ao país de destino.4 Obra Patricia Rangel • do destino ou não, a frase condensa as características da nossa estadia nas dependências da polícia de fronteira: ironia, desdém, maus-tratos, humilhação e ignorância. Durante dois dias, fomos tratados como gado. Não tivemos o direito de nos pronunciar e muito menos de contestar as falsas afirmações a nosso respeito. A nós não era dirigida nenhuma palavra que não ordens. Fomos maltratados porque era natural que o fôssemos Durante nossa detenção na prisão nem um pouco improvisada de Barajas, muitas vezes me questionei de onde vinha tanto desrepeito por parte dos policiais com os quais travávamos contato diariamente. É óbvio que não se espera que numa prisão lhe tratem com carinho, mas, considerando que as salas por onde passei não constituíam oficialmente um centro de detenção, perguntava-me de onde vinha a legitimidade para as ações violentas daqueles funcionários. Foi quando percebi que estávamos sendo maltratados porque era normal que fôssemos. Éramos desiguais e assim devíamos ser tratados. Como sustentou Pierre Bourdieu,5 as desigualdades são perpetuadas por mecanismos sutis de dominação que naturalizam e legitimam todo tipo de diferença. Tais diferenças já estavam 4 Segundo a Recomendação do Conselho da União Europeia de 22 de dezembro de 1995 relativa à concertação e à cooperação na execução das medidas de afastamento, “trânsito” pode ser entendido como “passagem de uma pessoa não nacional de um Estado-membro pelo território ou zona de trânsito de um porto ou aeroporto de um Estado-membro”. Jornal Oficial nº C 005 de 10/01/1996 p. 0003-0007. 5 BOURDIEU, P. (1992) O poder simbólico, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 21 22 • BARRADOS incorporadas e engatilhadas por aqueles guardas muito antes de eles sonharem em nos ver. Não havia qualquer sentimento de identificação ou de solidariedade em relação a nós. Não éramos como seus filhos ou sobrinhos. Éramos outra coisa. É como quando você mata uma barata. Não há qualquer relação de afeto ou identidade entre você e a barata. Ela te incomoda, você a elimina. Porque é natural que seja assim. No sistema de relações sociais, vigoram moralidades distintas para grupos diferentes, o que permite a alguns oportunidades limitadas e a outros, todas as liberdades. A diferenciação extrema entre certos grupos sociais nos remete a Robert Merton6 e a seus conceitos de intragrupo e extragrupo. Há o grupo tomado por referência, ou intragrupo, e o grupo estranho, o extragrupo. Na realidade, não há nada significativo que os diferencie. Contudo, certos aspectos são reforçados e geram preconceito e marginalização. As características típicas do extragrupo são encaradas necessariamente como defeitos. Se um indivíduo deste grupo apresentar as mesmas qualidades valorizadas pelo intragrupo, estas serão distorcidas por uma “alquimia moral”, processo através do qual qualidades sociais “de ouro” são transformadas em “defeitos de chumbo” e vice-versa. Enquanto jovens latino-americanos, visitantes do sul empobrecido, éramos membros de um extragrupo. Não havia reconhecimento entre as partes, uma vez que esse conceito está vinculado à atribuição de respeito e autoestima, à formação de identidades. Quando um grupo sofre com o não reconhecimento (misrecognition), é projetada nele uma imagem redutora, 6 MERTON, R. (1970) Sociologia: teoria e estrutura. São Paulo: Mestre Jou. Patricia Rangel • desvalorizada. Também podemos aplicar aqui a ideia de habitus de Bourdieu: um sistema de estruturas cognitivas e disposições duráveis inculcadas desde sempre, que pré-molda oportunidades e proibições, liberdades e limites, de acordo com condições objetivas; um esquema de conduta que gera práticas individuais e coletivas, que motiva uma série de comportamentos possíveis dentro dos limites de determinadas regularidades. Esse sistema produz a “mágica social” que transforma pessoas em instituições feitas de carne. É o caso do filho mais velho e herdeiro em oposição ao mais novo, do homem em oposição à mulher, do policial europeu em oposição ao migrante latino: são diferenças instituídas que tendem a se transformar em distinções naturais. O que faz de uma pessoa “um de nós” e o que faz dela “um outro”? Segundo Aihwa Ong,7 migrantes e cidadãos de baixa qualificação são elementos excluídos dos mecanismos neoliberais e constituídos como populações em trânsito passíveis de serem excluídas. Robert Castel já havia chamado a atenção para o fato de que há um desenvolvimento diferenciado de tratamento para populações distintas nos Estados neoliberais avançados. Essas diferentes formas de tratamento maximizam o que é lucrativo e minimizam o que não é. Em poucas palavras, incentivam a rejeição dos visitantes com potencial de causar gastos ao Estado. 7 ONG, A. (2006) Neoliberalism as exception: mutations in citizenship and sovereignty. Durham and London: Duke Univeristy Press. 23 24 • BARRADOS Ao sermos assim considerados, nossa entrada foi legitimamente negada. Não importa o quanto tentássemos mostrar que portávamos todos os documentos necessários e que cumpríamos todos os requisitos exigidos para ingressar na União Europeia: a desconfiança do policial que aplica as regras é respaldada pelo mesmo sistema institucional que as criou. É a palavra deles contra a nossa. Enquanto seres de fora da comunidade, não podíamos medir forças com eles. Ainda é bem clara a lembrança de minha “entrevista” (um inter rogatório após o qual a repatriação é oficializada), realizada creio que 27 horas após ser detida. Ela demonstrou a política do “atira antes e pergunta depois” adotada pelas autoridades responsáveis. A primeira coisa dirigida a mim foi uma advertência por “mau comportamento”, uma repreensão por conta de suposta algazarra que eu teria feito em meu primeiro dia em Barajas. Tive que utilizar toda a minha capacidade cognitiva para deduzir que estavam se referindo ao momento em que entrei na prisão e comecei a chorar e protestar por estar em uma situação estranha sem compreender os motivos. Por ser impedida de anotar o telefone da embaixada brasileira e de, nessa única ocasião, ter reagido de forma truculenta por conta do absurdo. Até então, não me dava conta que estava em um estado de exceção, em uma terra sem regras claras e sem lugar (como já foi citado, estávamos em trânsito, não em território espanhol). Deveria ter desconfiado antes, quando fui minuciosamente revistada por uma policial à qual entreguei todos meus pertences, inclusive o antibiótico com o qual fazia tratamento. Fiquei apenas com a roupa do corpo e ainda ouvi a policial dizer que eu era tratada como bicho porque me comportava como bicho. Mais uma vez, faltou reconhecimento. Patricia Rangel • O papel do reconhecimento e os efeitos de sua ausência Para Charles Taylor e Axl Honneth,8 a intersubjetividade de cada indivíduo depende amplamente do reconhecimento que lhe é dado. Sem ele, podemos nos sentir e ser não reconhecidos ou estigmatizados causando sofrimento físico, moral ou social que passa a ser canalizado para uma única demanda por reconhecimento. De uma forma geral, políticas de reconhecimento se relacionam à noção de “reconhecimento cultural”, ou seja, à garantia por parte do Estado de que grupos étnicos, raciais e nacionais tenham asseguradas condições de preservação e exercício dos elementos culturais compartilhados pelos membros do grupo (suas práticas, crenças e valores). Cabe aqui a interpretação de Jünger Habermas9 sobre a função do direito como elemento de transformação, de transmutação das demandas políticas em realidade para alterar o sistema. Desta forma, os indivíduos poderiam desenvolver plenamente suas potencialidades sem prejuízo de suas identidades. Por outro lado, quando não há reconhecimento cultural, surgem representações negativas do grupo. A teoria de Honneth10 está inserida no seio da teoria crítica, que visa dar centralidade à noção de reconhecimento num projeto 8 Apesar de Honneth não falar de reconhecimento cultural, considerei interessante trazer alguns de seus argumentos para a seção. 9 HABERMAS, J. (2002) A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Edições Loyola. 10 HONNETH, A. (2003) Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Trad. Luiz Repa. São Paulo. 25 26 • BARRADOS de emancipação. A luta pelo reconhecimento é relacionada a um conflito social de caráter moral e busca a emancipação do indivíduo, além do desenvolvimento de relacionamentos que beneficiem tanto a inclusão social quanto a autorrealização. A partir da sistematização do status psicológico de um indivíduo em distintas experiências interativas e de tensões que surgem no processo de formação de uma subjetividade autônoma e autorrealizada, o autor mostra que a identidade só se forma integralmente se o sujeito desenvolve autoconfiança, autorrespeito e autoestima no processo de interação social. Esses três aspectos precisam surgir em três esferas: amor, direito e solidariedade. Aqui, “amor” é tomado de forma abrangente, contemplando os relacionamentos nos quais há um vínculo emocional forte entre poucas pessoas, como um estágio no qual os indivíduos são unidos por suas carências. Há uma tensão entre dependência e interdependência que só é superada quando o sujeito consegue expressar suas necessidades e desejos sem temer o abandono do outro. O amor que é encontrado nessa esfera, segundo Honneth, faz com que o indivíduo desenvolva autoconfiança e garanta assim a base emocional necessária para a sua participação na vida pública. Portanto, se ocorre um abuso físico, psicológico ou moral, o que está em jogo é a perda desta confiança e da habilidade de reconhecer suas capacidades enquanto sujeito integrado na sociedade. Para Nancy Fraser, o problema do conceito de reconhecimento em Honneth é que ele não captura todas as injustiças ao enfatizar o desenvolvimento psicológico de um indivíduo, perdendo assim seu caráter emancipatório. Ele não daria conta de enfrentar os modelos institucionalizados de valores culturais e simbólicos, além Patricia Rangel • das injustiças econômicas que colocam certos indivíduos em uma condição de subordinação. Fraser, ao transferir o reconhecimento para uma forma específica de justiça e descartar o alinhamento apenas no eixo da autorrealização, supera Honneth. Para ela, justiça é tomada como uma forma de status, o que nos permite examinar ao mesmo tempo padrões de subordinações cultural e institucional. A conclusão que nos permite a leitura de Fraser é a de que uma política de redistribuição não está somente ligada à injustiça de classe, mas também à política de identidades. Noções de raça e de gênero são, portanto, coletividades bivalentes porque sofrem injustiças tanto no âmbito cultural quanto no econômico. Daí a necessidade de se formular remédios e soluções que ajam concomitantemente, uma vez que tanto a falta de reconhecimento quanto as desigualdades materiais constituem impedimentos para a participação plena na arena pública. Sem tal estabelecimento da igualdade em diversos patamares e a criação de “iguais”, não há como esperar o surgimento de uma participação igualitária. A dimensão da dignidade e do respeito depende de uma noção de reconhecimento que muitos europeus não desenvolveram em relação aos povos do sul Com base no tratamento cruel que recebemos das autoridades policiais em Barajas, concluo que a dimensão da dignidade e do respeito depende de uma noção de reconhecimento que, infelizmente, muitos europeus não desenvolveram em relação aos povos do sul. Daí os maus tratos que sofremos em Madri, as perseguições de turcos por skinheads alemães, o assassinato de Jean 27 28 • BARRADOS Charles de Menezes pela polícia londrina, entre outros. Esses atos somente cessarão com mudanças nas práticas sociais e com transformações na dimensão jurídica e nos controles institucionais. Mudanças estruturais devem implicar mudanças qualitativas no tipo de habitus para todos os grupos sociais envolvidos. As disposições de comportamento internalizadas e incorporadas implicam em uma noção de dignidade que, quando compartilhada por todos os membros de diversos grupos, conseguem homogeneizar a economia emocional de uma sociedade. É essa dignidade que faz com que indivíduos levem o outro em consideração, atitude que se apresenta como fundamento do reconhecimento social para que a regra jurídica de igualdade seja eficaz e encha de sentido a noção moderna de cidadania. Essa dimensão de dignidade e respeito mútuo tem de ser disseminada para que a dimensão jurídica de cidadania seja efetiva em uma sociedade. Ou seja, controles institucionais só são eficazes se a percepção de igualdade estiver internalizada e presente no cotidiano. Merton11 argumenta que os remédios morais não servem ao físico. Assim, a criação de novos valores e a transformação cultural podem ajudar, mas são processos lentos e graduais que não devem ser tomados como base para a superação da marginalização. As instituições, estas sim, podem ajudar a alcançar mudanças de comportamento. É preciso dar um fim planejado e deliberado aos mitos, pois eles só se cumprem na ausência de controles institucionais eficazes. Desta forma, em circunstâncias administrativas e institucionais adequadas, a marginalização pode ser suplantada. 11 MERTON, R. (1970) Sociologia. Patricia Rangel • Em relação a modificações nas regras que regulam a migração, até a polícia espanhola concorda quanto à sua necessidade. “Admito que cometemos abusos, portanto, as regras têm que mudar para que não haja mais casos como o seu”, foi o que ouvi de um dos poucos policiais que conversaram comigo na última noite de minha “viagem de turismo”. Essas, sim, eu gostaria que tivessem sido as últimas palavras a ouvir em solo espanhol, digo, em território internacional. Respeito é manifestação do amor ao próximo e, consequentemente, do amor próprio Bauman12 fala do amor ao próximo não só como um dos preceitos fundamentais da vida civilizada. Para mim, parece bem claro que não amamos o próximo nem como fundamento da vida em comunidade nem como indício de qualquer outra coisa. Na verdade, só demonstramos afeto, boa vontade ou respeito pelos que são parecidos conosco, aqueles com os quais compartilhamos determinadas disposições morais ou culturais. Essa identificação faz com que seja possível amá-los como amamos a nós próprios. Já aos estranhos, que não nos atraem por nenhum valor ou significado adquiridos durante experiências pessoais, é difícil amarmos. Aliás, por serem tão diferentes, é natural esperar que na primeira oportunidade eles, os “outros”, me humilhem ou demonstrem sua superioridade. É daí que vem o excesso de diferenciação entre membros da comunidade e forasteiros, e o medo crescente em relação a estes. 12 BAUMAN, Z. (2004) Amor Líquido. 29 30 • BARRADOS Apesar de exigir um salto de fé, argumenta Bauman,13 amar o próximo pode ser o ato fundador da humanidade e a passagem do instinto de sobrevivência para a moralidade. Se somos respeitados pelos outros, é porque devemos possuir algo de único, de especial. Tal ato faz-nos pensar que nossa opinião importa, que não somos uma cifra, que fazemos diferença e não podemos ser substituídos ou descartados com facilidade. Esse pensamento nos faz acreditar que o mundo seria mais pobre sem nós ou sem cada um dos habitantes do planeta. Amando-nos profundamente, a exortação de amar o próximo como a nós mesmos evoca um desejo de ver no outro sua dignidade reconhecida e confirmada por, assim como nós, ser portador de um valor singular e insubstituível. Amar o outro como a si mesmo significa respeitar a singularidade e valorizar as diferenças como elementos enriquecedores do mundo. Esse raciocínio é construtivo e agregador. Seu oposto é negativo e contribui para a gênese de movimentos destrutivos como o terrorismo global, que possui raízes na segregação e no sentimento de marginalização. Quando se é excluído de uma comunidade, torna-se cada vez mais difícil amar seus membros como a si mesmo. É ilegítimo pensar que a cultura do “outro” possui capacidade limitada de expressão e que nossa interpretação, a partir de recursos de nossas próprias categorias, é capaz de compreender elementos dessa cultura. Quando realizamos esse tipo de julgamento, o resultado não pode ser muito diferente das repatriações em massa levadas a cabo pela União Europeia, que representa o 13 Ibid. Patricia Rangel • homem branco como mais forte e as outras etnias como inferiores. Essa representação, como veremos adiante, reforça a hegemonia dos países ricos e legitima seu papel civilizatório. Somente quando estivermos abertos para outras culturas é que poderemos aderir a um centro de perspectiva. O conflito que existe entre o “eu” e o “outro” faz parte de uma interpretação e de um exercício eterno de compreensão.14 Quanto às saídas para uma visão de mundo etnocêntrica, Everardo Rocha15 sugere que sejam praticadas ideias de relativização, ou seja, pensar a diferença, ver as coisas como suscetíveis à transformação e superar as visões preconceituosas que congelam as diferenças entre os seres humanos. Entretanto, o mundo em que vivemos não é povoado por pessoas que amam o próximo como a si mesmas. Ele é dividido entre turistas e vagabundos A rejeição sistemática de povos do sul pela União Europeia representa uma tendência de se exorcizar o medo coletivo gerado com a presença do forasteiro, do estranho, do que simboliza a insegurança dos tempos modernos. Os turistas, que levam o capital ao seu destino e aquecem a economia, são bem-vindos. Já os vagabundos, que usufruem dos recursos do país visitado, não. Se você é um turista e foi confundido com vagabundo, tudo o que tem a fazer é tentar superar o trauma em sessões de terapia 14 RICOEUR, P. (1975) Introdução. As culturas e o tempo. Estudos reunidos pela Unesco. Petrópolis: Vozes. 15 ROCHA, Everardo. (2004) O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense. 31 32 • BARRADOS e bater às portas da Europa nas próximas férias. Afinal, somente lá se pode fazer turismo decente. Ou então pode tentar questionar seu lugar neste mundo e problematizar a relação entre cidadania e direitos humanos, como estou fazendo agora. Por que esses direitos só são aplicados àqueles que possuem status de cidadão? Essa lógica cruel de distinção entre os turistas e os vagabundos, entre os desejáveis e os indesejáveis, apontada por Bauman, exporta para o sistema internacional a lógica de divisão que observamos todos os dias em nossas cidades, entre os que temem e os que são temidos. Da minha casa ao Iuperj, ambos no bairro carioca de Botafogo, num percurso de um quarteirão, passo por prédios de classe média alta com segurança 24 horas e por uma favela. Observo os “cidadãos de bem” atravessarem a rua para evitar pedintes e moradores de rua, vejo gente rica e gente pobre, sempre separadas. Tudo isso em um quarteirão. A solução mais imediata e simples para lidar com o medo gerado pelas diferenças é separar, segregar, impedir que os socialmente inferiores possam ultrapassar os territórios limitados a eles. A construção de condomínios, cada vez mais presentes no Rio de Janeiro e em outras capitais brasileiras, segue essa lógica: garantem proteção contra a presença dos indesejáveis, dos vagabundos, por meio da construção de muros e da contratação de serviços de segurança. Assim, pode-se, com eficiência, separar quem está dentro e quem está fora do espaço e da carga de significado contida nele. Os moradores dos condomínios estão dentro de uma ilha de calma e segurança, fora da vida ameaçadora e desconfortável da cidade. A sensação de controle é o principal atrativo desses condomínios, feitos para quem busca a segurança de estar efetivamente separado daquilo que não se deseja ver. Patricia Rangel • Há também a divisão entre turistas e semituristas Sim, o mundo está dividido entre “turistas” e “vagabundos”, e para se ter acesso aos maravilhosos destinos turísticos do mundo desenvolvido é preciso ser um turista completo. Certa vez, estávamos eu e um grupo de jovens brasileiros desfrutando do verão holandês. Era agosto de 2002 e eu tinha acabado de concluir o curso intensivo de inglês que frequentava em Londres. Passar os últimos dias de sol em Amsterdã pareceu-me o desfecho perfeito para minha estadia na Europa, após meses de muito estudo. Encontrei um grupo de alunos de Juiz de Fora, minha terra natal, para fazermos juntos a viagem. Durante nosso city tour, escolhemos fazer um daqueles passeios pelos famosos canais da cidade e que, segundo nossa guia, culminava com a visita a um museu de diamantes e à loja anexa a ele. No grupo, além de nós, havia pessoas de outros países europeus e alguns norte-americanos. Após o agradável passeio e a visita ao museu, a guia pediu aos outros turistas que a acompanhassem e nos informou que, para nós, o passeio havia acabado ali. Intrigada, perguntei o motivo, ao que fui prontamente respondida: “ora, obviamente jovens como vocês, de países subdesenvolvidos, não possuem condições de adquirir diamantes”. Ou seja, não poderíamos desfrutar totalmente do passeio, como os outros, porque, sendo jovens de países pobres, não éramos turistas completos – seríamos meio turistas ou semituristas. Retruquei que aquilo era um absurdo, uma discriminação, que ela não podia nos julgar pela nossa imagem e assumir que não tínhamos dinheiro. Ainda muito imatura e arraigada de preconceitos e insegurança, defendi minha posição de turista com 33 34 • BARRADOS unhas e dentes, reforçando assim essa dicotomia cruel que gera tratamento diferenciado para cidadãos de mesma origem, abrindo as portas para os “turistas” e batendo-as na cara dos “vagabundos”. Hoje, obviamente, meu discurso seria outro, uma vez que tenho consciência da lógica do absurdo que leva jovens brasileiros das classes altas a receberem tratamento digno, mas que, ao mesmo tempo, submete imigrantes voluntários e involuntários do mesmo país a um status de lixo humano. Foi preciso que eu conhecesse o outro lado para me dar conta disso. A empatia e as semelhanças de um grupo são aliadas para expulsar o diferente Não é preciso ir muito longe para perceber que a lógica de segregação praticada pelos condomínios e pelas autoridades Europeias é a mesma: busca-se separar o indesejável e manter o que provoca medo fora das fronteiras, das ilhas de calma e paz, de semelhança e mesmice, em meio a um oceano de diferença, como diria Bauman.16 Uma vez que todos são iguais, estão prontos para defender seu espaço da maneira como foi criado. O que os “cidadãos de bem” europeus querem não é muito diferente do que os moradores de condomínios desejam. Eles buscam manter seu cotidiano livre do contato com imigrantes inferiores e potencialmente perigosos. O que as autoridades de seus países fazem é o trabalho das empresas de segurança: manter a ameaça fora dos muros do condomínio. 16 BAUMAN, Z. (2004) Amor Líquido. Patricia Rangel • Esse processo, na medida em que isola determinadas comunidades, sejam moradores de condomínios ou populações de países, só aumenta o medo do outsider. Quanto mais as pessoas permanecem em um ambiente uniforme, menor sua capacidade de conviver com outros hábitos e símbolos, e maior seu horror em se confrontar com estranhos: praticar a separação territorial significa preservá-la e alimentá-la.17 As comunidades imaginadas e a identificação de uma multidão de desconhecidos Para dar conta do mistério da identificação de uma multidão de desconhecidos que acreditam compartilhar algo importante, Benedict Anderson18 criou o conceito de comunidades imaginadas. É essa categoria que nos permite entender como milhões de pessoas que não se conhecem se percebam como nós, como algo do que se faz parte. Para Anderson, a desintegração de vínculos impessoais teria atingido um estágio tão avançado que se tornou a única forma de se construir o convívio e o único tipo de defesa humana contra a solidão. Somente reunindo desconhecidos como potenciais parceiros em rituais de confissão, que revelam um interior familiar, e pressionando-os a compartilhar íntimas sinceridades é que se pode transformá-los em um de nós. 17 Ibid. 18 ANDERSON, B. (1983) Imagined Communities. London: Verso. 35 36 • BARRADOS É aqui que observamos, como fez Richard Sennett,19 a substituição de “interesses compartilhados” por uma “identidade compartilhada”. É quando a empatia e as semelhanças de um grupo seleto são aliadas para rejeitar os que não fazem parte dele. Todos aqueles que são diferentes – estrangeiros, desconhecidos, estranhos, cidadãos de segunda classe, indivíduos socialmente inferiores – podem e devem ser afastados. A identidade pode mudar de acordo com a ocasião Mas nem tudo é assim tão simples. Há momentos em que percebemos que há uma infinidade de “eus” nos habitando. O indivíduo pode ser analisado de posições dissonantes. Daí parte uma crítica ao conceito de habitus em Bourdieu: o mesmo sujeito que vai à ópera pode assistir novelas, não há uma coerência total nas ações das pessoas. Não se pode reduzir indivíduos a uma prática. Stuart Hall,20 por exemplo identifica diversos tipos de noções de identidade: o sujeito do Iluminismo (baseado em uma concepção individualista do sujeito e de sua identidade), o sujeito sociológico (que, refletindo a crescente complexidade do mundo moderno, era uma concepção “interativa” da identidade e do eu – a identidade seria formada na interação do “eu” com a sociedade) e o sujeito pós-moderno (ou seja, as identidades são diferentes em momentos distintos). Segundo a última, haveria dentro de cada um de nós uma multiplicidade de identidades, 18 ANDERSON, B. (1983) Imagined Communities. London: Verso. 20 HALL, S. (2006) A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A. Patricia Rangel • muitas contraditórias, que empurram em diferentes direções: sou mulher, mas também sou parda, sou brasileira etc. Em determinados momentos, essas identidades podem se chocar: por exemplo, qual identidade pesaria mais na escolha de um candidato a prefeito? É melhor votar numa candidata de direita ou num homem de esquerda? Votar num homem negro de direita ou numa mulher branca de esquerda? Eis um problema colocado pela complexidade da noção de identidade do sujeito pós-moderno. As identidades, por serem contraditórias, cruzam-se e deslocam-se mutuamente, atuando tanto na sociedade e em seus grupos estabelecidos quanto dentro da cabeça de cada indivíduo. Uma identidade singular (classe social, por exemplo) pode se alinhar com uma “identidade mestra” ou central, mas nem sempre isso é possível. Já que a identidade muda de acordo com a ocasião ou a forma como o sujeito é representado ou interpelado, a identificação não é automática, mas sim politizada, apontando a diferença entre uma política de identidade e uma política de diferença. A humilhação e o sofrimento de alguns não pode servir de legitimação para qualquer política ou instrumento institucional Não adianta, para nenhum fim político, destacar o abuso cometido contra uma pessoa ou um grupo e limitar um problema coletivo a um caso individual. Que o argumento acima não abra margem para se pensar que a minha experiência de sofrimento não mereça ser publicizada e destacada. Nenhum clamor de 37 38 • BARRADOS tormento pode ser maior do que o clamor de uma pessoa, já dizia Bauman.21 Também nenhum tormento pode ser maior do que aquele que somente uma pessoa é capaz de suportar: o mundo não pode sofrer tormento maior do que o de uma única alma. A embaixadora dos Estados Unidos na ONU justificou o ataque ao Iraque em 2003 argumentando que não se pode fazer uma omelete sem quebrar os ovos. O que precisamos perceber é que, se quebrar os ovos significa causar morte, fome, dor ou sofrimento emocional para outros seres humanos, a omelete simplesmente não pode ser feita. Nenhuma omelete, causa ou objetivo, pode valer esse preço. Ao depreciar a dignidade humana, qualquer causa perde seu sentido. Como afirmou Bauman,22 o que pode ser válido para omeletes não serve para tratar do bem-estar e da felicidade de pessoas. A ação dos governantes de grandes países ou de simples funcionários policiais não pode ser interessada, precisa ser ética – uma manifestação inatamente estimulada da humanidade, que não serve aos propósitos de alguém nem é guiada por expectativa de lucro ou glória. Com essas palavras, fecho este capítulo reafirmando que não importa o número de vítimas e o tipo de sofrimento a elas imposto: o abuso não pode ser respaldado pela legitimidade dos mecanismos institucionais. Ele simplesmente não pode ocorrer. 21 BAUMAN, Z. (2004) Amor Líquido. 22 Ibid. 2. Liberdade pra quem e até onde? ... lê génie inquiet et ambitieux des Européens... impatient d’employer les nouveax instruments de leur puissance...23 Jean-Baptiste-Joseph Fourier O dia em que a expressão de nossa liberdade humana virou a perda arbitrária dela Na noite do dia 04 de maio de 2008, eu e o companheiro de mestrado Pedro Luiz Lima saímos do Rio em direção a Lisboa, onde apresentaríamos trabalhos em um congresso da Associação Portuguesa de Ciência Política (APCP). Havíamos comprado uma passagem que fazia conexão em Madri, como todos os voos da Ibéria. No dia seguinte, aos desembarcar no aeroporto de Barajas, fomos arbitrariamente impedidos de seguir viagem. Ficamos prisioneiros por 50 horas até sermos levados ao avião que nos repatriaria. Intermináveis horas de detenção injustificada e maus-tratos. Na chegada a Madri, ao passarmos pelo posto de controle de imigração, fomos perguntados sobre o motivo da viagem, acomodação, recursos financeiros e respondemos tudo mostrando nossos comprovantes. Sem qualquer motivo ou justificativa, o funcionário que nos atendeu disse que teríamos que ir a uma sala nos fundos do saguão para carimbar nossas passagens. Ele 23Tradução: (...) o gênio irrequieto e ambicioso dos europeus (...) impaciente para empregar os novos instrumentos do seu poderio (...) 42 • BARRADOS ficou com nossos passaportes e cartões de embarque. Quando entrei na sala, ampla e fria, porém ainda com aparência de sala de espera de aeroporto, não fazia ideia que já era uma detida. Tudo que havia nos dito é que precisávamos carimbar as passagens para pegarmos a conexão para Lisboa. Omitindo-nos a verdade, a polícia nos submeteu uma incerteza que se estendeu por intermináveis horas. Disseram-nos que, caso viéssemos a perder nossa conexão, poderíamos embarcar no voo seguinte. Eles não precisavam ter contado essa mentira. Nessa primeira sala, havia somente africanos e latino-americanos. Minhas piores sensações lá, além do incômodo e do estranhamento de ser totalmente ignorada pelos policiais, foram a fome e o medo de perder o voo. Sentimentos bestas, pensaria eu depois. Não imaginava que, em menos de 24 horas, minha pior sensação seria a privação total da liberdade e a destituição da minha condição de humanidade. Nesta sala ficamos mais de duas horas sem entender o que estava acontecendo. Sem água, sem comida, sem comunicação. Era um estado definitivo de espera. Os policiais chamavam de vez em quando algumas pessoas para um pequeno escritório e faziam perguntas, mas nossa vez nunca chegou. Quando tentávamos pedir esclarecimentos, nossas perguntas eram respondidas do mesmo jeito: com um rude e frio “Tem que esperar!” Minha sorte é que meu colega estava calmo e tentava me tranquilizar. Eu, por outro lado, muitas vezes fui egoísta e só pensei em meu próprio desconforto e em minha angústia. Não conseguia olhar para o lado e perceber que todos estavam assustados e ansiosos. Talvez, só por isso, não tenha me dado conta da Patricia Rangel • minha condição de prisioneira em Barajas. O medo me paralisou e me cegou. A única investida considerável que fiz nesse primeiro momento, apesar das acusações de arruaça e mau comportamento, foi entrar em um dos três escritórios que ficavam dentro dessa grande sala e perguntar: “o que está havendo?” Em inglês, pois era a única língua que conseguia articular fora o português naquele momento de tensão. Eles disseram que não falavam inglês (a propósito, nenhum policial falava inglês, o que me parece estranho, levando em consideração que aquela é a polícia de imigração). O policial informou em espanhol que estavam conferindo minha documentação. Quando repliquei que minha documentação estava em ordem e que não entendia a razão de ficar esperando tanto tempo, ele gritou, que era a polícia que iria decidir se minha documentação estava em ordem. Foi aí que eu comecei a sentir medo de verdade. Estava sujeita à arbitrariedade da polícia de um país estrangeiro, para o qual o meu país não é exatamente relevante. Eu seria absolutamente qualquer coisa que a polícia decidisse. Quem iria questionar a legitimidade de autoridades europeias? Eu seria uma imigrante ilegal, uma traficante de drogas ou uma terrorista internacional perigosíssima se a polícia assim quisesse. Seria até uma turista com a documentação em ordem indo a Lisboa para participar de um congresso, se a polícia assim decidisse. Eu não era eu, era o que a polícia de Barajas decidisse. Eu iria até onde a polícia permitisse: seguiria para Lisboa se eles fossem com a minha cara ou voltaria para o Brasil se assim desejassem. Ficaria ainda, como fiquei, detida por três dias se eles quisessem me punir por minhas perguntas inconvenientes. 43 44 • BARRADOS As palavras de Kant sobre a liberdade de visitar comunidades estrangeiras se calam Segundo Ong,24 “liberdade” acabou se tornando uma palavra que se refere a “ação econômica livre”, não à liberdade política, assim como “liberalismo político” se tornou palavrão. Foi há mais de dois séculos que Immanuel Kant falou, mas algumas pessoas (entre elas, eu) ainda gostam de acreditar que hospitalidade não é filantropia ou virtude, mas sim direito. Hospitalidade é um direito que pertence a todos os seres humanos como participantes em potencial de uma república mundial, um direito que regula as interações de indivíduos pertencentes a diferentes entidades cívicas, que ocupa o espaço entre direitos humanos e direitos civis e que delimita o espaço cívico ao reger relações entre membros da comunidade e estranhos. O mesmo Kant, ao observar a forma esférica da Terra, concluiu que estávamos destinados a viver eternamente na companhia uns dos outros e que nossos constantes movimentos reduziriam as distâncias entre os povos. A Natureza, ao nos fazer brotar na superfície de um planeta esférico, teria nos dado como destino a perfeita união da espécie humana por meio de uma cidadania comum: die volkommende bürgerliche Vereinigung in der Menschengattung. Também seria uma imposição da Natureza a visão recíproca de hospitalidade enquanto preceito supremo da humanidade. Mais cedo ou mais tarde, acabaríamos por terminar nos reconhecendo todos como cidadãos globais. 24 ONG, A. (2006) Neoliberalism as exception. Patricia Rangel • Kant deixou claro que hospitalidade é diferente de Gastrecht (direito de permanência), de Hausgenossen (tornar-se um companheiro) e Besuchsrecht (permanência temporária). Hospitalidade seria o direito que um estranho possui de não ser tratado como inimigo quando chega às terras de outro. A hospitalidade seria obrigatória com base em duas premissas: 1) todos os seres humanos possuem a capacidade de se associar; e 2) a posse da (limitada) superfície da terra é comum a todos. Ou seja, devemos usufruir de seus recursos em conjunto, mas a propriedade já existente deve ser respeitada. É uma demanda de ordem moral com consequências legais na medida em que a obrigação do Estado em conceder residência temporária a estrangeiros está ancorada em uma ordem republicana cosmopolita que não possui um supremo Executivo como governante. Entrar em outra comunidade: expressão de liberdade humana ou invasão? Para Kant,25 o direito cosmopolita se refere a relações entre pessoas e Estados estrangeiros, diferentemente do direito de um Estado (referente a relações entre pessoas dentro de um mesmo Estado) e do direito das nações (relações entre Estados). Em sua Paz Perpétua, ele propõe três condições para que haja paz perpétua entre as nações. Um deles é: das Weltbürgerrecht soll auf Bedingungen der allgemeinen Hospitalität eingeschränkt sein, ou seja, que o direito cosmopolita seja limitado às condições da hospitalidade universal. 25 KANT, I. (1990) À Paz Perpétua. Trad. Marco A. Zingano. Porto Alegre: L&PM. 45 46 • BARRADOS Entrar em outra comunidade possui um significado de expressão da liberdade humana, não invasão ou ameaça, já dizia Kant. Viver em um território com regras diferentes não é um ato criminoso, mas uma manifestação de nossa condição de pessoas livres e da busca por um mundo melhor para compartilharmos. Apesar de muitos estudiosos apontarem caminhos em direção a um direito cosmopolita e a uma soberania relativizada, as atitudes dos governos europeus nos fazem ter a impressão de que estamos voltando no tempo. Contudo, esses pressupostos são inúteis para expressar o caráter cosmopolita se indivíduos cujo status é indefinido são tratados como criminosos pelas regras. A forma como democracias liberais tratam os forasteiros, os estrangeiros, os “outros”, expressa a consciência moral e a reflexibilidade política dessas sociedades. Isso nos faz perceber que justo nem sempre é sinônimo para legal. Há uma tensão constante entre o constitucional e o político no liberalismo. Seyla Benhabib26 fala da necessidade constante de o Estado liberal ser desafiado e rearticulado. Somente quando um grupo reclama ser incluído em um círculo de direitos do qual era inicialmente excluído é que se percebe a limitação da tradição constitucional e sua validade. A despeito de eventuais ressalvas em relação à sua obra, não podemos deixar de admitir que Kant foi um visionário. Sua afirmação de que não se pode negar a entrada de um estranho quando isso causa sua destruição foi incorporada pela Convenção de Genebra sobre o Status dos Refugiados de 1951. 26 BENHABIB, S. (2004) The Rights of Others: Aliens, Residents and Citizens. Cambridge: Cambridge University Press. Patricia Rangel • A tarefa moral do direito universal à hospitalidade se torna imperfeita, pois permite exceções, das quais a mais relevante é a autopreservação. São os Estados soberanos que interpretam o que constitui risco à vida ou à liberdade e isso cria um problema: o destino daquele que busca asilo se torna vulnerável à boa vontade do Estado ao qual pede refúgio. Ao formular políticas de asilo e regras de migração, os governos podem lançar mão de tal direito para inviabilizar a entrada de estranhos. Com base nesse argumento, defensores da soberania nacional territorial justificam o direito dos Estados de policiar suas fronteiras da forma que lhes convier. O direito à hospitalidade obriga a aceitação da permanência temporária pacífica, mas não da estadia permanente, considerada por Kant um privilégio. Esse pressuposto é um argumento a favor dos ferrenhos defensores da soberania num sentido vestifaliano. Kant morreu há dois séculos Infelizmente, as premissas de Kant foram escritas há muito tempo. Hoje, na prática, a política de migração é intimamente relacionada a uma política de conformismo e de disciplina dos estrangeiros e da oposição, baseada em critérios de identidade. Como argumentou Bauman,27 o mundo não prestou atenção em Kant – preferimos homenagear nossos sábios com placas e monumentos a seguir suas advertências. Nos dois séculos que se seguiram aos escritos do filósofo, os Estados se ocuparam em 27 BAUMAN, Z. (2004) Amor Líquido. 47 48 • BARRADOS desenvolver invenções modernas de controle como passaporte, visto e controles de imigração, utilizando mecanismos de identificação individual como formas de burocratização essenciais à consolidação e à centralização dos Estados nacionais modernos. John Torpey28 sustenta que, por meio da criação do passaporte, os Estados garantiram o monopólio do controle sobre a circulação dos cidadãos, processo que teve como consequência o surgimento de distinções entre cidadãos e não cidadãos. Em vez de aceitarmos nossa “natureza” e nosso destino enquanto cidadãos do mundo, preocupamo-nos em controlar os movimentos de pessoas como prerrogativa do poder do Estado, levantando barreiras à entrada dos que desejamos manter longe e colocando nessas barreiras guardas bem treinados, armados e disciplinados para desempenhar bem seu papel. Eis um grande erro, como argumenta Benhabib,29 pois o sistema internacional de Estados e povos é caracterizado por interdependência. Esse movimento, deveria nos levar a transcender a perspectiva de territorialidade, não a fechar fronteiras, favorecendo a disposições de um regime de soberania vestifaliano (Estado livres e iguais, com autoridade absoluta sobre todos os assuntos relativos ao seu território, para os quais relações com outros países são contingentes), em vez de uma soberania internacional liberal (interdependência entre Estados, valores, comuns, observância dos direitos humanos e respeito aos princípios democráticos). 28 TORPEY, J. (2002) The Invention of Passport – Surveillance, Citizenship and the State. Cambridge: Cambridge University Press. 29 BENHABIB, S. (2004) The right of Others. Patricia Rangel • Como esse movimento de transcendência não vigora, a soberania serve para que interesses de Estados xenófobos justifiquem o endurecimento de políticas e regras de migração, como é o caso da Espanha e da União Europeia de uma forma geral. A isso se relacionam também conceitos de soberania popular e soberania territorial. Este significa controle sobre um determinado território, enquanto aquele afirma que todos os submetidos às leis são também seus autores. Como então ser afetado por uma política da qual não se participa da formulação ou sobre a qual sequer se abre a possibilidade de opinar? Na época de Kant, a visão orientadora do homem foi associada à universalidade da liberdade individual. Tendo esse pressuposto sido esquecido ao longo dos séculos posteriores, fomos encarcerados, segundo Bauman,30 na nova prisão trina território-Estado-nação, sendo os direitos do homem definidos como produto da união entre o súdito de um Estado, o membro de uma nação e o residente (legítimo) de um território. O Estado, reafirmado e empoderado, criou então o direito de exclusão. Como Hannah Arendt31 afirmou, os direitos do homem, teoricamente inalienáveis, mostraram-se não aplicáveis naqueles lugares em que há pessoas que não são cidadãs de nenhum Estado. Os direitos humanos só existem e são aplicados àqueles que possuem status de cidadão. Desta forma, a comunidade humana da qual nos falou Kant parece hoje distante e ilusória. 30 BAUMAN, Z. (2004) Amor Líquido. 31 ARENDT, H. (1989) As origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras. 49 50 • BARRADOS O paradoxo da legitimidade democrática A soberania republicana deveria se ocupar de unir sua vontade de pré-comprometimentos ao conjunto de normas formais e substantivas que conhecemos como direitos humanos. Os direitos e demandas dos “outros” (estrangeiros, auxiliares da comunidade, povos subjugados etc.) são negociados sobre esse terreno flanqueado por direitos humanos de um lado e por afirmações de soberania por outro. A legitimidade democrática é baseada em ilusões como a homogeneidade dos povos e a autossuficiência territorial. Contudo, na contemporaneidade, há momentos em que a interpretação dos “direitos dos outros” acarreta transformações autor reflexivas.32 Assim, temos o desafio de realizar uma reconfiguração democrática que não seja assentada em ilusões como a ideia de autossuficiência territorial, que enfrenta o desafio de uma realidade de enorme interdependência entre os Estados. Como afirma Ong,33 a cidadania global só será possível se promovermos normas cosmopolitas capazes de mediar uma infinita diversidade de tradições, interesses e comunidades políticas. 32 Ibid. 33 ONG, A. (2006) Neoliberalism as exception. 3. Cadernos do cárcere Nada mudará a sociedade se os mecanismos de poder que funcionam fora, abaixo e ao lado dos aparelhos de Estado a um nível muito mais elementar, cotidiano, não forem modificados. Michel Foucault Lembranças de como fomos parar na prisão em Barajas e reflexões sobre o caráter desagregador do medo Aquela quarta-feira, aquele 05 de março de 2008, foi o pior dia da minha vida. Gostaria de não lembrar a situação na qual fui destituída de qualquer humanidade, em que fui tratada como um número, privada de comunicação com o mundo externo, comida, água, respeito. Enfim, de vários aspectos que, unidos, dão dignidade a uma pessoa. Continuando a narrativa interrompida pelas divagações acerca da liberdade humana, ficamos aproximadamente duas horas na primeira sala. A conexão para Lisboa estava perdida. Lá pelas duas horas da tarde chegou um policial que gritou para que saíssemos da sala em fila. Ouvi rumores de que agora poderíamos nos alimentar e que a situação estaria resolvida em breve. Para variar, estávamos enganados. Em elevadores de carga, fomos levados a um andar inferior, guiados como gado. Tudo que ouvia era os policias gritando “passa!”. Logo estávamos do lado de fora, em fila indiana, sendo colocados em um micro-ônibus e levados para Deus-sabe-onde. 54 • BARRADOS Conta Foucault34 que o treinamento escolar no século XIX era pautado por uma técnica de sinais ligados a ações unitárias e obrigatórias, de modo a excluir qualquer representação e necessidade de palavras, criando obediência cega e pronta. Assim, gestos, palmas ou um simples olhar serviam como comandos que deviam ser obedecidos sem qualquer comunicação verbal. O cotidiano em Barajas era semelhante ao treinamento escolar arcaico: poucas palavras, nenhuma explicação, silêncio total. O silêncio ensurdecedor dentro do veículo lotado foi o que mais chamou atenção. Salvo exceções, podemos dizer que, quando submetidas a situações assustadoras, as pessoas não se comunicam, não tentam se mobilizar, agir em conjunto. Cada um se fecha em sua própria dor e tenta “se salvar”. E lá estava eu naquele momento, fechada e encolhida. Foram cerca de 20 minutos por uma estrada que nos guiou ao terminal antigo do aeroporto. Nessa hora, já estava destruída pela sede e pelo cansaço. Sobre a burocracia policial, a arbitrariedade e o “jeitinho espanhol” Chegando ao antigo terminal, fomos levados a uma sala que já não parecia uma sala de espera de aeroporto, mas sim uma delegacia de polícia. Quando chegamos, já estava lotada de outros latino-americanos. Não lembro de ver nenhuma pessoa de outras partes do mundo nessa sala pequena e abafada, que abrigava o triplo de gente da anterior. Nomes eram chamados 34 FOUCAULT, M. (2008) Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Editora Vozes. Patricia Rangel • para serem entrevistados pelos policiais. “Primeiro os hispano-hablantes”, diziam eles, depois os brasileiros. Muitas pessoas pareciam estar sendo liberadas. Algumas inclusive sabíamos, por conta de prévias conversas casuais, estavam de fato indo trabalhar ilegalmente na Europa. Era possível usar os banheiros do terminal antigo, bem em frente à nossa sala, mas não podíamos nos afastar – havia policiais por todos os lados nos observando. Aos poucos, a sala foi esvaziando, as horas foram passando, a fome aumentando, a revolta e a humilhação também. Eu fiquei sentada no chão, o que irritou um dos guardas, que gritou para que eu me levantasse. Indaguei a razão, ele nos xingou de cachorros, dizendo que são cachorros que ficam no chão. Fiquei aliviada por ele não bater na gente. Foucault35 argumenta que o aparelho policial sempre esteve ligado ao excesso da justiça regulamentada e que, por isso, resistiu à reorganização do Poder Judiciário com um mínimo de modificações. É à polícia que a Justiça impõe mais pesadamente suas prerrogativas. É também a instituição que mais se identifica com a sociedade disciplinar: é ligada ao centro da soberania política, mas tem um aparelho coextensivo a todo o corpo social. O poder policial deve ser exercido sobre tudo e todos, sobre a massa dos acontecimentos, dos comportamentos, das opiniões, das ações. Seus objetos são as coisas de todo instante. Apesar de não nos bater, o policial conseguiu atrasar nosso processo. Fomos, daquela leva de brasileiros detidos, os primeiros a chegar e os últimos a sair de Barajas. É curioso notar que 35 Ibid. 55 56 • BARRADOS muito se fala sobre um “jeitinho brasileiro” e sobre uma suposta conduta ética exemplar por parte dos europeus. O que vi em Madri foi, ao contrário, a existência de um “jeitinho espanhol”, uma conduta que privilegia os que agradam, prejudica os que incomodam e que adapta a realidade de modo a fazê-la caber nos procedimentos. Isso nos remete à relativização do código legal/ilegal. As regras jurídicas frequentemente são flexibilizadas e influenciadas pelo código econômico e político. “Para os amigos tudo, para os inimigos a lei”. É nessa diretiva que se guiam muitos burocratas e autoridades, fazendo possível ter a lei sem as obrigações de sua aplicação. É o caso das constituições fictícias: sem o suporte necessário, a Carta Magna só existe no papel. Sem a aplicação ética por parte da polícia de fronteira, as regras de imigração da Europa também. Na prisão, a homogeneidade da exclusão se manifesta em todos os aspectos Já era noite quando um policial veio buscar os detidos restantes, nos quais estávamos incluídos. Fomos levados para um andar superior. Eu tinha esperança de estar sendo liberada, mas não. Estávamos sendo presos sem passarmos por qualquer entrevista, sem sermos ouvidos pelas autoridades. Quem disser que aquilo não é uma prisão estará mentindo. O lugar não é nada improvisado para receber um detido ou outro. É uma estrutura carcerária pronta e eficiente. Em vez de grades, vidros, como um Big Brother. Havia uma espécie de recepção que, na verdade, era o panóptico, cercada por Patricia Rangel • três grandes salas – uma ao norte, uma a leste e outra a oeste. Elas eram fechadas com vidros, cada uma tinha dois telefones públicos, mesas, cadeiras e dormitórios com dois beliches cada uma. A sala leste não tinha dormitórios, era lá que os “calouros” ficavam. A sala oeste tinha cinco dormitórios. Para lá iam os “veteranos” – quando você ia para essa sala, significava pelo menos 24 horas de detenção. A sala norte era a maior, tinha muitos dormitórios. Quem ia para lá era “bacharel”, tinha mais de dois dias de experiência. Alguns estavam lá há uma semana, como o uruguaio “Pepe”. Passamos por todas as salas. Ficamos detidos nessa prisão da quarta até a sexta-feira à noite. Junto conosco, dezenas de outros brasileiros e pessoas de outras nacionalidades, sobretudo da América Latina (apesar de haver também gente de países africanos), aguardando repatriação, mantidos em condições clas sificadas de “inadequadas” pela diplomacia brasileira. E eu garanto, elas eram no mínimo inadequadas. Para começar, a alimentação. Pareceu-me que era composta dos restos das refeições servidas nos aviões, oferecida dura e fria. Pessoas com restrições alimentares, como eu, certamente passam fome ali. Muçulmanos também correm o risco de passar fome, se os policiais decidirem se divertir servindo porco, como me contaram ter ocorrido dias antes. Não foram poucas as ocasiões em que tiver de alertar um companheiro muçulmano que, bastante distraído, quase comia a carne de porco que vinha misturada ao feijão. Na prisão, a individualidade não pode ser expressada, não existe o direito de se desviar dos padrões da cultura dominante. É preciso que todos sejam iguais, que você seja mais um número, mais uma cama ocupada e mais um passaporte riscado. 57 58 • BARRADOS Em qualquer casa de detentos, o cotidiano é semelhante: os detentos se levantam ao mesmo tempo e o guarda vem abrir as celas. Há filas para qualquer percurso ou atividade, horários estipulados para refeições e, racionamento da ração, horário para que todos se deitem, horário para apagar a luz e uma ronda noturna para certificar a ordem e o silêncio do local. Nesse sentido, Barajas é um exemplo de prisão. Lá, as crianças, os bebês de colo, os adultos, os jovens e os idosos são submetidos à mesma rotina e ao mesmo ambiente: do toque de recolher ao de alvorecer, passando pelas refeições, pelas sessões de humilhação e violência. Creio que a lógica do encarceramento seja desagradável e dolorosa para qualquer pessoa, culpada ou não. Mas devo admitir que ela é especialmente enlouquecedora quando submetida injustamente e sem preparo. Nenhum livro ou filme é capaz de passar uma ideia razoável do que acontece lá dentro, mesmo que não ocorra nenhuma tragédia. Em alguma medida, estar preso é algo semelhante a estar em uma situação de escravidão – a humilhação, a obediência e o medo se fazem presentes. Um sentimento de vulnerabilidade e fragilidade se torna perene quando você é destituído de seus documentos, colocado em silêncio, impedido de falar, e quando você percebe que está sujeito a qualquer tipo de agressão. Por mais insignificante que seja no sistema, ele é uma autoridade espanhola e você, um detido sob suspeita de ingressar ilegalmente no país. Significado da prisão: punição Numa sociedade em que a liberdade é um bem supremo que pertence a todos, a prisão é a pena por excelência. Retirar da Patricia Rangel • pessoa punida seu tempo é mostrar concretamente que a ação do indivíduo lesou a sociedade como um todo. Prender alguém e mantê-lo detido, privado de alimentação, aquecimento, impedi-lo de sair, de fazer amor etc. é a manifestação de poder mais delirante que podemos imaginar, escreveu Foucault.36 Nas prisões, o poder não se esconde nem se mascara, ele é mostrado em seus íntimos detalhes – ele é puro, totalmente justificado. Ele pode se formular no interior de uma moral que serve de enfeite ao seu exercício, e sua tirania aparece então como a dominação serena da ordem sobre a desordem, do bem sobre o mal. Ainda segundo o autor, os métodos punitivos não são simples regras do direito, mas técnicas que possuem sua especificidade num campo mais geral de processos de poder. Quando as situações de pânico criam relações que, apesar de fugazes, são intensas Em Barajas, ficou para mim bem clara a existência do que Bauman37 chama de comunidades da ocasião, ou seja, comunidades reunidas em torno de pânico, eventos, modas, ídolos. Unidos por uma situação de opressão e medo, eu e os outros detidos em Madri criamos uma afinidade instantânea, compartilhamos emoções, confidências, trocamos objetos que amenizavam o desconforto (quem tinha pasta de dente emprestava para quem não tinha, quem chegava com fome ganhava comida de quem 36 Ibid. 37 BAUMAN, Z. (2004) Amor Líquido. 59 60 • BARRADOS tinha guardado, os fumantes compartilhavam os poucos cigarros salvos para os que aceitavam correr o risco de serem pegos fumando no banheiro) e nos tornamos amigos por alguns dias. Contudo, apesar de e-mails e telefones terem sido trocados, nenhum contato foi mantido. Como as máquinas de cartões telefônicos só aceitavam notas pequenas (de dez ou cinco euros), os presos precisavam se empenhar na busca de dinheiro trocado. Como eu possuía muitas notas de dez euros, acabei assumindo a função de cambista que, combinada às conversas telefônicas com jornalistas e familiares, ocupava-me o tempo. A solidariedade entre os presos é ilustrativa da solidariedade do indivíduo da líquida sociedade moderna: as conexões interpessoais são frouxamente atadas para que possam ser facilmente desfeitas quando os cenários mudam.38 As relações surgidas em comunidade de ocasião não duram mais do que as emoções que estimularam a conjugação de interesses. Durante os dias em que estivemos presos, cada entrada de um guarda portando um papel na mão fazia nosso coração pular. Tratava-se das listas de convocados para as “entrevistas” e para as repatriações. Desejosos de esclarecer nossas situações e ansiosos por deixar aquela situação de sofrimento, não havíamos como deixar de nutrir expectativas quando víamos aquela folha de papel. Cada um que era chamado para ser repatriado recebia vários abraços e desejos sinceros de felicidades e superação. Para minha surpresa, a comunidade de ocasião surgida em Barajas também teve a capacidade de reunir indivíduos dos dois 38 Ibid. Patricia Rangel • lados. No turno noturno, com menos policiais presentes e com o controle afrouxado, tive a oportunidade de ver opressores e oprimidos compartilhando um momento de descontração e diálogo. Foi em minha última noite em Madri, quando um dos guardas, por sinal um dos mais duros, convidou os presos fumantes a sair para fumar no pátio. Num primeiro momento, o orgulho me fez ficar onde estava, mas depois fui vencida pela curiosidade e não me arrependi. Lá fora, enquanto autoridades espanholas acendiam os cigarros de prisioneiros do sul, surgiu o assunto da arbitrariedade na aplicação das normas e do preconceito embebido na mesma. Os policiais, em menor número, pareciam envergonhados com sua atuação. Foi quando um deles disse que admitia os abusos cometidos e que pensava que as regras deveriam mudar. Ele citou a necessidade de se formular procedimentos mais efetivos e neutros, como a adoção obrigatória de vistos. Não que eu concorde com a adoção de vistos para viagens curtas, mas aquelas palavras amenizaram minha revolta. Não tenho isso filmado, nem por escrito e sei que não mais de dez pessoas o ouviram. Mas serve, ainda que modestamente, para diminuir minha indignação. O erro foi admitido por pelo menos um deles, mesmo que em uma conversa informal, mesmo que o mundo não saiba. Da diferença sensorial entre violência física e violência psicológica, e da sua igualdade em produzir humilhação Sofri agressões verbais e fui submetida a uma tortura psicológica constante, mas alegro-me por não ter sofrido agressão física. 61 62 • BARRADOS Tenho certeza que tal agressão teria saído impune, da mesma forma que a arbitrariedade de me prender e me negar entrada à União Europeia. Certa vez, horas depois de ver uma mulher que estava tendo um ataque histérico virar motivo de zombaria dos policiais, presenciei uma moça brasileira sendo agredida na minha frente. Depois de ter sido empurrada para dentro de minha “sala”, como eles costumavam chamar as celas, a moça ficou praguejando e foi chorar. Juntei o pouco de coragem que tinha e fui falar com o guarda que ele estava errado e exigir uma explicação. Ele foi muito agressivo e mandou que eu me recolhesse. Procurei então a assistente social que, teoricamente, era a responsável por ouvir nossas queixas e cuidar de nossos assuntos. Quando entrei e fui recebida pouco amistosamente, tentei colocar as ideias em ordem e fazer a denúncia. Ela então, friamente, saiu da sala e me pediu que eu mostrasse onde ocorrera a agressão. Apontei o lugar e dei os detalhes. Ela perguntou se eu seria capaz de mostrar o guarda que praticou a agressão. Apontei o sujeito, que respondeu com um olhar de descaso. Após isso, ela me disse, mostrando uma câmera no alto da parede: “há câmeras aqui. É sua palavra contra a dele. Acho que você não teria como provar o que acabou de dizer”. Dito isso, ela me deu as costas e foi embora. Não reclamei mais depois disso. Como explicou Bauman,39 citando experiências realizadas com ratos, a incapacidade de escolha entre esperanças e temores – e no nosso caso, entre revolta e medo – resulta na paralisia da ação. Não reclamei nem 39 Ibid. Patricia Rangel • quando presenciamos um turco ser violentamente arrastado pelos guardas até uma salinha onde não havia ninguém, uma espécie de solitária. Ele se desesperara, pois havia sido jurado de morte em seu país e iria ser deportado no dia seguinte. Aquela noção kantiana de hospitalidade enquanto demanda de residência temporária que não pode ser negada quando envolver a destruição do outro, foi tacitamente negada ao jovem turco. Meus problemas pareceram bem menores depois disso, o que não me impediu de ficar miseravelmente triste. No cárcere, os procedimentos são unilaterais e o detido, desprovido de voz, cala-se Em Barajas, não há diálogo. Todos os processos são unilaterais. Até mesmo nas “entrevistas” – o eufemismo utilizado para interrogatório – não se pode falar. Eles decidem qual foi sua infração e você acata. Exauridas e humilhadas, as pessoas rezam para serem repatriadas logo. É mais ou menos aquela coisa de preferir o suicídio à tortura. De certo modo, cometi suicídio moral quando assinei aqueles papeis dizendo que eu não tinha como comprovar a razão e a documentação necessária para entrar no Território Schengen. Assim como o consulado brasileiro afirmou, eu tinha não só toda a documentação necessária como cumpria todos os requisitos para ingressar na União Europeia. Como bem explicou o colega Pedro Luiz Lima,40 “o lado de dentro da prisão dificilmente pode ser compreendido a partir do 40 Em artigo publicado no Jornal do Brasil, 10/03/2008. 63 64 • BARRADOS lado de fora. O roubo arbitrário e injustificado da liberdade pode ser teorizado das mais diversas maneiras, alcançando os tantos êxitos que advêm da teoria; mas o peso da prisão pode apenas ser sentido – e a razão analítica se rende, então, impotente frente ao sentimento da opressão.” Em solo espanhol, não passei de uma prisioneira. Uma prisioneira em Barajas e uma prisioneira em meu próprio corpo, pois possuía incorporadas todas as disposições da obediência, como diria Foucault41 em suas reflexões acerca da microfísica do poder e disciplina. Em relação ao tema do poder, chama-me atenção a dificuldade em se definir o fenômeno e a heterogeneidade do conceito. Alguns autores encaram poder como uma condição pré-dada, enquanto outros o percebem como uma construção social. Alguns pensam que a dominação é exercida de forma direta, enquanto que para outros ela está agregada em toda e qualquer ação humana. Estes apresentam, a meu ver, os argumentos mais interessantes, pois analisam relações de poder em toda a sua complexidade, sem se prender a modelos cientificistas que minimizam a compreensão do fenômeno. Dos autores que veem no poder uma construção, devemos citar como maior expoente Michel Foucault. Suas obras tratam da construção de uma cultura de opressão na qual o indivíduo nada mais é que um prisioneiro em seu próprio corpo, vivendo uma realidade que o violenta através de uma subordinação instaurada historicamente. Não resta dúvidas que a obra de Foucault 41 FOUCAULT, M. (1979) Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal. Patricia Rangel • influenciou as teorias pós-modernas, devido à sua abordagem pioneira da relação entre ideias e mundo material e à releitura do paradigma da soberania. De como já éramos todos, detidos e policiais, oprimidos e disciplinados bem antes de cruzamos a porta da prisão em Madri Foucault procura explicitar aspectos que permitam uma reflexão acerca da manipulação (às vezes autorizada) do ser humano por outros seres humanos, devido à necessidade que alguns possuem de controlar o abstrato pelo material. A disciplina é uma fórmula que se difere de conceitos tradicionais como escravidão e vassalagem. Ela é um tipo de organização do espaço, uma “arte do corpo” que transforma o corpo em obediente e útil através da sua inserção em uma “maquinaria de poder” que o toma, desarticula e recompõe. Ela funciona como uma rede que nos atravessa sem se prender a fronteiras. A disciplina se manifesta de diversas maneiras, mas sempre com a mesma essência, sob a forma de treinamento. Seu exercício se fundamenta na distribuição dos indivíduos no espaço, como nos colégios, quartéis, hospitais e cárceres, sendo esta condizente com uma organização retangular ou quadricular que, funcionalmente, é mais eficiente para o controle dos corpos individuais. Em resumo, pode-se dizer que a disciplina produz, a partir dos corpos que controla, quatro tipos de individualidade, ou antes, uma individualidade dotada de quatro características: é celular (pelo jogo da repartição espacial), é orgânica (pela codificação das atividades), 65 66 • BARRADOS é genética (pela acumulação do tempo) e é combinatória (pela composição das forças). Para tanto, utiliza quatro grandes técnicas: constrói quadros, prescreve manobras, impõe exercícios e organiza “táticas” para realizar a combinação das forças. A tática é a arte de construir, com os corpos localizados, atividades codificadas e aptidões formadas, aparelhos em que o produto das diferentes forças se encontra majorado por sua combinação calculada. Sem dúvida, trata-se da forma mais elevada da prática disciplinar. Assim, podemos perceber semelhanças entre a pedagogia escolar, a educação cristã e a formação militar. Desta forma, éramos todos, detidos e policiais, oprimidos e disciplinados bem antes de cruzamos a porta da prisão em Madri. Nós, prisioneiros, já sabíamos obedecer e reconhecer nossa situação de inferioridade. O poder é maior quanto mais sutil se expressa. A força que se impõe é um poder silencioso que molda discursos. O que parece liberdade é, na verdade, sujeição. A distribuição espacial como forma de controle disciplinar em Barajas Foucault42 já nos alertara que a distribuição espacial é de vital importância no sistema disciplinar, ainda que muitas vezes em um plano subliminar. O espaço é dividido de forma celular, para tornar-se especializado e funcional. Em Barajas não era diferente: os detidos, separados em salas de acordo com seu tempo de permanência, podiam ser monitorados a partir de um observatório 42 FOUCAULT, Michel. (2008) Vigiar e punir. Patricia Rangel • central. Isso porque tais lugares devem facilitar a circulação e a localização das pessoas, ao mesmo tempo em que as isola e as coloca em um lugar específico da cadeia hierárquica. Esses métodos facilitam a observação tal como acontece num acampamento militar (as barracas são dispostas de forma que o superior possa vigiar o subalterno), em um hospital (vidraças que facilitam a visualização dos doentes) e nas salas de aula (possuem tablados que permitem ao professor ver seus alunos e que o colocam em uma posição de superioridade). A vigilância, aparelho disciplinar perfeito, é um operador econômico decisivo, explica Foucault.43 De um ponto central, pode-se ver tudo permanentemente. Como num panóptico, os edifícios ou celas são dispostos em círculo de modo a abrir todos para um interior, onde há uma unidade que acumula as funções de direção, vigilância e verificação. O panóptico contemporâneo, para incrementar seu poder de controle, possui câmeras, olhos eternamente atentos que não deixam escapar o que a visão humana por distração deixaria. O estado permanente de vigilância provoca no detento um sentimento de vulnerabilidade e assegura o funcionamento automático do poder. A visibilidade se torna uma armadilha e a vigilância é permanente, pois cria uma relação de poder independente de quem o exerce. Pareceu-me peculiar a inexistência de dormitórios femininos e masculinos separados. Admito ter considerado isso uma vantagem, pois, por mais que seja desagradável compartilhar um dormitório com homens, sentia-me mais segura tendo um conhecido no 43 Ibid. 67 68 • BARRADOS ambiente. Entretanto, não foi o caso de outras pessoas, entre elas um marroquino que, por ser muçulmano, sentia-se extremamente desconfortável em dividir um recinto com mulheres. Foi difícil encontrar para ele um dormitório que não fosse misto. A distribuição dos detidos ficava a cargo dos próprios. Se alguém não ficasse satisfeito com o lugar reservado para si, não haveria nada a fazer. Se não houvesse, por exemplo, vaga em nenhum dormitório ocupado só por homens, o cidadão muçulmano teria de violar seus hábitos religiosos e se conformar com o fato de dormir entre mulheres. As técnicas através das quais se praticam a dominação, o controle minucioso, as inspeções e a racionalidade técnico-econômica Através da disciplina, é possível controlar as operações corporais, sujeitando o indivíduo constantemente e tornando-o dócil e útil. É por meio dela que se fabricam os “corpos dóceis”. Foucault44 nos mostra como o corpo se torna objeto e alvo do poder quando submetido a limitações, proibições e obrigações. Faz total sentido aqui a descrição de Foucault da sociedade industrial avançada como marcada pela irracionalidade, pela destruição, pela repressão e pela diminuição do indivíduo. A diminuição do indivíduo é a diminuição da autonomia, o homem vira objeto, resume-se a um corpo completamente manipulável e controlado. Tendo em mente o significado dos conceitos de disciplina e corpos dóceis, temos condições de entender a microfísica do 44 Ibid. Patricia Rangel • poder como técnicas minuciosas através das quais se dá a dominação. Ela se refere a um modo de investimento político do corpo, como uma espécie de anatomia política do detalhe. Como exemplo, podemos citar o controle minucioso, as inspeções, a racionalidade técnico-econômica e o regulamento preciso descrito nas formas citadas nos parágrafos anteriores. Repressão: da punição démodé à fashionable vigilância Houve um momento (nos séculos XVIII e XIX) em que, segundo a economia do poder, passou-se a considerar mais eficiente vigiar do que punir, conta Foucault.45 Esse movimento seguiu as transformações da mecânica do poder – manifesta agora em uma forma capilar, microscópica. Tanto o poder quanto a repressão são aplicados no corpo social, e não sobre o corpo social. O castigo não é mais uma arte de sensações insuportáveis, e sim de suspensão de direitos. As práticas punitivas, segundo o autor, se tornaram pudicas: não se toca mais o corpo do detido, ou toca-se o mínimo possível. Em vez de tortura e rituais de suplício, usa-se a reclusão e a deportação. Todas são penas físicas, pois se referem diretamente ao corpo, mas buscam atingir a alma. É aí que entra a atuação de um exército de técnicos (médicos, guardas, psiquiatras etc.), visando garantir que o corpo não seja o objeto da punição. O cadafalso, onde, no Antigo Regime era feito o suplício e onde se dava o teatro punitivo (a representação do castigo era dada ao corpo social), foi substituído por uma arquitetura complexa e 45 Ibid. 69 70 • BARRADOS hierarquizada, integrada ao corpo do Estado. A punição deixou de ser exibida e passou a ser fechada. Os instrumentos do castigo não são mais jogos de representação e sim formas de coerção, esquemas de limitação que são aplicadas e repetidas. O objetivo não é reformar o sujeito jurídico do pacto social, é formar um sujeito de obediência dobrado a um poder qualquer. Sobre o dia em que vivenciamos uma experiência de alquimia moral dos fatos Há alguns parágrafos, interrompi o relato de minha “entrevista”, que merece atenção na medida em que representa um fenômeno pitoresco, que beira a mágica. Como disse anteriormente, tal entrevista é na verdade um interrogatório levado a cabo teoricamente com direito a um intérprete e um advogado. O advogado permaneceu calado o tempo todo, nem sequer me olhou, e a intérprete, uma espanhola que falava um portuñol ainda pior que o meu, abriu a sessão me repreendendo pelo suposto mau comportamento: “meninas mal-educadas como você não serão aceitas em lugar algum da Europa”. Talvez tenha sido essa afirmação que lhe causou um leve rubor quando, ao responder uma pergunta, contei que já havia morado e estudado na Inglaterra e conhecido boa parte da Europa anos antes. Além das acusações infundadas a respeito de meu comportamento, a entrevista me ofereceu a possibilidade de passar por uma experiência de desmaterialização de objetos e relativização de ideias. Apresentei comprovantes, cartões de crédito, dinheiro vivo, seguro saúde, programa do congresso e respondi a diversas Patricia Rangel • perguntas, relevantes e irrelevantes. Perguntaram-me desde a profissão de meus pais e quanto eles ganhavam até se eu tinha irmãos e qual o sexo deles. Ao me perguntarem quanto dinheiro vivo eu possuía para os 10 dias na Europa, respondi que tinha 600 euros em espécie (dos quais 40 haviam sido gastos na prisão, com a compra de cartões telefônicos) e dois mil euros no cartão de crédito. Disse que tinha diversos amigos na Europa e que inclusive iria visitar uma amiga em Berlim após o fim do congresso. Passei o endereço, os telefones e mostrei as passagens Lisboa-Berlim e Berlim-Madri-Rio nas datas citadas. Passei endereços eletrônicos, telefones, nomes, apresentei a reserva no albergue em Lisboa e os contatos da amiga que me receberia em Berlim. Respondi a todas as perguntas indiscretas sobre os salários dos meus pais e tive que fazer uma palestra sobre meu tema de pesquisa, pelo qual eles não demonstraram grande interesse. Quando a entrevista terminou, imprimiram um documento no qual estava digitado, entre outras coisas: “A autuada possui 560 euros e nenhum cartão de crédito”, “ela não possui comprovantes adequados”, “não apresentou documentos que comprovem as condições da viagem e da estadia”, “ela não possui conhecidos na Europa”. Era minha carta de inadmissão. Quando afirmei que não iria assinar, porque aquela carta contradizia tudo que eu dissera e comprovara, a policial que conduzia minha “entrevista” disse que eu poderia não assinar, mas que ficaria lá até o final do processo, que seria melhor arranjar meu próprio advogado. Que não fazia diferença para ela, a escolha era minha. Honestamente, naquele momento, apesar da revolta, dar continuidade àquela situação temporária de encarceramento e sofrimento não era o preço que 71 72 • BARRADOS eu estava disposta a pagar para ver todos os dados corretos da minha viagem impressos num papel com o carimbo da Espanha. Assinei e esperei mais 20 horas até ouvir uma simpática frase e subir no avião recebendo o olhar de reprovação de todos aqueles que estavam no meu campo de visão. Esse fenômeno remete ao que Merton46 chama de profecia autorrealizável, uma afirmação inicialmente falsa que leva a determinadas condutas que acabam por torná-la verdadeira. Ao ser acusada injustamente de não cumprir os requisitos exigidos para ingressar na União Europeia, acabaram ocorrendo diversos fatos que me renderam uma detenção e uma repatriação respaldada pela lei. Como explica Bauman,47 quando se trata de discutir a verdade, a probabilidade de ocorrer uma “comunicação não distorcida”, tal qual postulou Habermas, é mínima. A humilhação se apresenta como arma poderosa para demonstrar quem tem poder e quem não tem, para indicar a desigualdade irreconciliável entre quem humilha e quem é humilhado. A “entrevista” em si me remete à análise de Foucault48 sobre o interrogatório: é por meio da confissão que o acusado toma lugar no ritual de produção da verdade penal, comprometendo-se com o processo ao assinar a verdade da informação. Contudo, nem sempre se chega à confissão por meios pacíficos, e a tortura é um método eficiente. É a ambiguidade dupla da confissão (providenciar provas/serem as provas 46 MERTON, R. (1970) Sociologia. 47 BAUMAN, Z. (2004) Amor Líquido. 48 FOUCAULT, M. (2008) Vigiar e punir. Patricia Rangel • efeito de coação) que explica os dois métodos do direito criminal clássico para a obtenção da confissão: o juramento (ameaça de perjuro diante da justiça ou de Deus) e a tortura (violência física para produzir uma “confissão espontânea”). Obviamente, a tortura física não é aplicada em Barajas, mas as pessoas não assinam suas “confissões” porque estas sejam verdadeiras, e sim pela motivação de deixar sua situação de detenção e sofrimento moral. 73 4. Que soberania? A vida das nações, da mesma forma que a dos homens, é vivida, em grande parte, na imaginação. Enoch Powell Qual o significado, em termos de política internacional, do fenômeno representado por nossas experiências pessoais em Barajas? O fato de termos sido arbitrariamente presos e inadmitidos na União Europeia demonstra que existe um descompasso entre o conceito de soberania atualmente aceito e aquele colocado em prática pelos Estados europeus. Toda noite, um policial de nome Pedro tirava-nos para conversar. Talvez por não ter oportunidade de conversar com pessoas interessantes em seu ambiente de trabalho, ele tenha conseguido passar por cima do fato de sermos latino-americanos presos para discutir conosco questões que iam da teologia às relações internacionais. Obviamente, os termos da conversa eram estabelecidos pelo policial Pedro, que também controlava nossas emoções e reações, gritando “não fique nervoso” se esboçávamos uma simples reação facial com os absurdos que ele proferia. Pois bem, em uma dessas “conversas”, o policial manifestou sua opinião sobre soberania nacional, que parece representar a do governo espanhol: uma concepção anacrônica que remonta à formação dos Estados nacionais. Ele parecia ignorar a existência de um Sistema Internacional composto 76 • BARRADOS por complexas relações de interdependência. Realmente acreditava que um país possui o direito de agir arbitrariamente e batia no peito para dizer que todas as suas ações são respaldadas por leis aprovadas pelo parlamento e, portanto, pelo povo espanhol. Ele possuía uma interpretação esquizofrênica de democracia que eu não sou capaz de compreender e explicar. Como considerar legítimos procedimentos que violam direitos humanos? As anomalias causadas pela soberania caduca da União Europeia Nossa prisão pode ser explicada pelo que Pedro Luiz Lima49 chamou de hipótese da anomalia, ou seja, um fenômeno que permite que a aplicação das normas do Espaço Schengen, de antemão tomadas como legítimas por estarem em conformidade com os princípios do Estado de direito (apesar de tal legitimidade ser duvidosa, dado o déficit democrático de seu fundamento), dependa de uma discricionariedade bêbada de preconceitos. Apesar de a inadmissão de pessoas que satisfazem as condições para entrar neste espaço representar um erro de procedimento, ela é sustentada como um acerto por parte das mais altas autoridades espanholas. Como comentou o embaixador da Espanha no Brasil, Ricardo Peidró, o governo não nos devia desculpas, pois o perdão é pedido quando se comete um erro. Sustentando que não teria havido qualquer erro por parte dos policiais de Barajas, o diplomata se enrolava em relação a qual versão seria mais convincente para 49 Em artigo publicado no Jornal do Brasil, 10/03/2008. Patricia Rangel • justificar o abuso. Primeiro, argumentou que não portávamos os documentos necessários ou não tínhamos condições de custear a viagem, mas, ao ser amplamente divulgado na imprensa que esse argumento era equivocado, Peidró apelou para uma justificativa que, além de igualmente mentirosa, era infantil – estaríamos fazendo bagunça no aeroporto. Até hoje me questiono qual passo apressado dado do avião até o posto de imigração poderia ser apontado como um ato de bagunça. Minha capacidade imaginativa ainda não alcançou uma possibilidade. Como sustentou a nota de repúdio do Iuperj, “quem se valeu do desmando (...) foram as autoridades que o embaixador representa. Lamentavelmente, em vez de desculpar-se como lhe conviria, o embaixador Peidró agrava a ofensa a que foram submetidos nossos alunos, juntamente com outros cidadãos e cidadãs brasileiros”. Segundo nota da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (Abed), que se manifestou contra o abuso em conjunto com o Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e outras associações científicas, o caso “serviu para ressaltar o caráter discriminatório desse tipo de atitude que tende a criar um ambiente de insegurança para as viagens acadêmicas e desincentiva os contatos com as universidades espanholas, num momento em que a aproximação entre nossos países nessa área atinge dimensões inéditas e muito bem-vindas.” A nota da Clacso sustentou que “esta não é uma prática isolada e incomum. Infelizmente, é a resposta que recebem cotidianamente milhares de latino-americanos e latino-americanas que decidem viajar à Europa pelos mais diversos motivos.” O cerne da questão é que as autoridades espanholas trabalham com uma margem de erro da aplicação da norma, na qual 77 78 • BARRADOS eu, Pedro Luiz Lima e tantos outros turistas tivemos a infelicidade de cair. Como Lima já destaca anteriormente, esse fenômeno seria aceito como um efeito natural da distorção de preceitos legais. Ele questiona ainda: teria sido mesmo devido a uma disfunção do Estado de direito “europeu” nossa permanência por tantas horas ao sabor das arbitrariedades das autoridades espanholas? Seria o nosso despejo apenas ilustração de um equívoco grave de uma política que se permite confundir estudantes e turistas com imigrantes ilegais? Para ele, a expulsão massificada de brasileiros não é apenas um erro de procedimento. Ela não se trata de consequênciasnão intencionais de uma norma a princípio justa, mas sim de um efeito intrínseco de uma política de controle cada vez mais agressiva e excludente de trabalhadores do sul. Como argumentou Bauman, em um mundo cuja economia global cada vez mais impõe as regras do jogo, em um sistema dividido entre “turistas” e “vagabundos”, todos os trabalhadores do sul representam perigo para a estabilidade do mercado europeu, por mais ilusória que ele seja. Quanto mais globalizado é o regime econômico, menos capaz de suprir as necessidades de seus cidadãos se torna o Estado, que fica reduzido a mero defensor deste mesmo regime. A inadmissão em massa de brasileiros na União Europeia seria o propósito de uma política de Estado voltada para assegurar as condições naturalistas de um mercado cego às demandas humanas da globalização, para Lima. A soberania da União Europeia é esquizofrênica: dura e mole ao mesmo tempo. Enquanto seus Estados acreditam desempenhar o papel de detentores da soberania formal, corporações e agências multilaterais exercem frequentemente o controle de fato das Patricia Rangel • condições de vida, trabalho e migração da população. Em meio a esse quadro, o neoliberalismo como exceção abre uma lacuna entre soberania e cidadania, gerando insegurança para cidadãos com baixa qualificação e migrantes, que terão de buscar uma forma de assegurar seus direitos em uma instância além das tradicionais instituições estatais. Hoje, os verdadeiros poderes capazes de moldar as condições sobre as quais atuamos fluem num espaço global, enquanto as instituições políticas permanecem locais e presas ao chão, afirma Bauman.50 E não há solução local para problemas globais. Para Manuel Castells,51 cada vez mais se percebe a aplicação de políticas locais num mundo que é estruturado por processos crescentemente globais. A única chance de resistência das localidades, para o autor, está na recusa de direitos de propriedade para fluxos migratórios esmagadores. Com isso, consegue-se desviar para a localidade vizinha a marginalização de comunidades indesejadas. Voltarei a falar desse tipo de reação no Capítulo 5, ao tratar do conflito entre autoridades espanholas e italianas por conta do endurecimento de políticas de imigração da Espanha, que desviou o fluxo para a Itália. Em que parte do passado a Europa se inspira para exercer a soberania? Segundo Carl Schmitt, a soberania é definida como o poder de se invocar estado de exceção para as normas estabelecidas 50 BAUMAN, Z. (2004) Amor Líquido. 51 CASTELLS, M. (1989) The Informational City. Oxford: Blackwell. 79 80 • BARRADOS em caso de ameaça à integridade do Estado. Desta forma, até os direitos básicos podem ser suspensos e as leis alteradas para melhor atender às necessidades do Estado. Mesmo legalmente, abusos podem ser cometidos de forma a defender os interesses de um país, como é o caso do surto de repatriações na Espanha. Enquanto estávamos presos em Barajas, tivemos de ouvir do tal policial Pedro que o que a Espanha estava fazendo era totalmente aceitável. Segundo ele, se sou convidada a passar uma temporada em sua casa, devo me preparar e atender às exigências para conviver em seu lar por determinado período. Creio que ninguém discorde. Mas ele vai além: se quando eu bater à sua porta, ele desejar não me receber e mandar-me procurar um hotel, tem total direito de fazê-lo. Foi com essa comparação que ele justificou o fato do país barrar tantas pessoas de forma arbitrária. Como se entrar em uma comunidade estrangeira fosse a mesma coisa que invadir a privacidade de uma família. Ainda segundo ele, a polícia é executora das regras votadas pelos legisladores do país que, por ser uma democracia, são eleitos pelo povo. Desta forma, dizia ele, eventuais erros cometidos por funcionários da polícia espanhola, além de merecerem perdão por caírem em uma margem de erro, são legítimos por expressarem a vontade do povo espanhol. Não importa se a ação dos policiais é cruel, a política de imigração injusta e sua aplicação arbitrária – a vontade do povo não pode ser questionada. Pergunto-me quantos cidadãos espanhóis já tiveram permissão para visitar a prisão de Barajas. Patricia Rangel • É como se os Estados europeus adotassem o que David Campbell52 define como uma “tradição hobbesiana” nas Relações Internacionais. Por meio dessa leitura, notamos a ênfase dada ao medo e ao perigo na construção da ordem e da identidade na sociedade. A corrente realista transfere esta natureza constitutiva do medo para as Relações Internacionais de forma quase que integral, sem diferenciar o estado de natureza hobbesiano do Sistema Internacional. As fronteiras são construídas para separar o inside do outside. Os espaços do inside servem para delinear o que é racional, ele é ordenado por políticas moderadas, onde os homens civilizados se encontram livres dos perigos do caos. O mundo outside, por outro lado, é anárquico, caótico. Os estudiosos de soberania, ainda hoje, tendem a relacionar determinados Estados-nação a tipos ideais de ordem política, como os modelos vestifaliano, liberal ou antiutópico. De qualquer forma, esses modelos reproduzem uma concepção weberiana de Estado liberal moderno, apoiado numa burocracia administrativa que detém o monopólio do uso legítimo da força. Segundo Ong,53 essa concepção, ainda que ultrapassada, continua produzindo problemas que vão desde o ataque dos Estados Unidos ao Iraque em 2003 até o atual fechamento das fronteiras da União Europeia, passando pelo modelo asiáticode desenvolvimento planejado e impulsionado pelos Estados-nacionais. 52 CAMPBELL, D. (1998) Writing Security: United States Foreign Policy and the Politics of Identity. University of Minnesota Press/Manchester University Press. 53 ONG, A. (2006) Neoliberalism as exception. 81 82 • BARRADOS Mas quais são as concepções contemporâneas de soberania? A União Europeia, adotando a visão descrita por Campbell, ignora as formas contemporâneas de soberania nacional e perspectivas pós-estruturalista e multiculturalista de territorialidade e nacionalidade. O sistema vestfaliano de Estados desapareceu devido à nova ordem mundial imposta pela globalização. O atual sistema político é descentralizado, desterritorializado, desvinculado de valores nacionais e tem por substância política o universalismo cosmopolita. As atitudes dos Estados repercutem mais profundamente do que julgamos e eles estão ligados mais intimamente do que os teóricos clássicos das Relações Internacionais puderam perceber. Atualmente, possuímos uma gama de abordagens alternativas, que indicam transformações da soberania em um mundo globalizante, mostrando que aquilo que hoje chamamos de soberania é bem diferente de seu conceito tradicional. É necessário tratar da flexibilização de fronteiras, da gradual extinção das etnias, da homogeinização da cultura, enfim, de fatores que nos ajudem a perceber que as nações não estão fechadas em si mesmas. Antonio Negri e Seyla Benhabib produziram trabalhos interessantís simos nesse sentido. Suas ideias são capazes de se articular com outras concepções de relativização de fronteiras, como a ideia de economia-mundo desenvolvida por Immanuel Wallerstein. Entre essas visões alternativas para os conceitos de soberania e Estado, está a corrente neoestruturalista das Relações Internacionais. Quando os neoestruturalistas falam de Estado, não estão Patricia Rangel • se referindo a um sujeito político. Para eles, o Estado não possui uma agenda única ou um “interesse nacional”. O que existe é uma noção de totalidade ou de “sistema internacional”. Sob uma ótica neoestruturalista, o central é relação entre políticas e um cenário socioeconômico e ideológico, doméstico e internacional mais amplo. Conceitos de Relações Internacionais tradicionais, que geralmente sugerem uma ideia de ritmo uniforme, são apontados como essencialmente equivocados. Segundo Ong,54 a soberania atualmente colocada em prática é manifestada de formas múltiplas, eventualmente contraditórias e amplamente contestadas. Em contato com os mercados globais e instituições regulatórias, ela invoca a exceção para criar novas técnicas, espaços e possibilidades de governar que aceitem a flexibilidade e a fragmentação. O fenômeno que convencionamos chamar de globalização, seja lá o que isso signifique (tenho ressalvas quanto ao termo, pois ele pode significar tudo e nada), pode ter efeito suavizante ou acirrador sobre a soberania. Para Ong, o argumento de que a globalização ameaça a sobrevivência do Estado encontra fortes contra-argumentos. Parece claro que os mercados globais têm alterado consideravelmente a forma clássica dos Estados, mas não necessariamente essas mudanças ocorreram no sentido de enfraquecer as diversas atividades do Estado ou sua capacidade de lidar com entidades reguladoras globais, tais quais o FMI. Assim, devemos pensar a nação tanto como um espaço territorializado quanto como um espaço desterritorializado. Além disso, Ong chama atenção para como 54 ONG, A. (2006) Neoliberalism as exception. 83 84 • BARRADOS dimensões de etnia e gênero estão intimamente relacionadas com as dinâmicas de construção de ações militares e políticas, por exemplo. Uma denotação adequada para um novo tipo de poder global seria o conceito de Império, criado por Antonio Negri: o mundo seria governado por uma estrutura de poder e não mais por sistemas políticos estatais. O Império global seria uma nova ordem mundial, uma superação positiva do sistema vestifaliano de Estados. Como, para Negri,55 os Estados-nação seriam dotados de uma ideologia falsa e danosa, a construção do Império constituiria um passo a frente, uma evolução em relação àquilo que veio antes. Na contemporaneidade, apesar de alguns Estados (geralmente os mais prósperos e poderosos) possuírem mais autonomia do que outros, nenhum país é totalmente autônomo. O Império teria a vantagem de varrer do poder regimes cruéis e oferecer possibilidades criativas de libertação. Sobre como a formação do “Império” de Negri se relaciona com o conceito de “economia-mundo” proposto por Wallerstein David Held56 argumenta que os Estados nunca foram tão autônomos ou soberanos quanto pretendem ser. A globalização não é um fenômeno recente e a modernidade é inerentemente globalizante, 55 NEGRI, A.; HARDT, M. (2001) Império. Rio de Janeiro: Record. 56 HELD, D. (1992) The development of modern state. In: HALL, S. e GIEBEN, B. (orgs.) Formations of Modernity. Cambridge: Polity Press/ Open University Press. Patricia Rangel • lembram Hall e Giddens. Wallerstein,57 por sua vez, aponta que o capitalismo sempre foi um elemento da economia mundial e que o capital nunca deixou que suas aspirações fossem delimitadas ou determinadas pelas fronteiras dos Estados. A tendência à autonomia global e à globalização estaria enraizada na modernidade. Podemos relacionar às ideias de formação do Império, como sugerido por Negri, o conceito de “economia-mundo” proposto por Wallerstein. “Economia-mundo” é distinta de “economia mundial” ou “economia internacional” (esta se refere a uma série de economias nacionais que comerciam umas com as outras). Ao contrário, “economia-mundo” sugere que há economia se há divisão social do trabalho em curso e um conjunto integrado de processos produtivos. A economia-mundo capitalista é uma divisão do trabalho em cuja estrutura todo o globo opera. Ela possui como superestrutura política um sistema interestatal através do qual Estados soberanos são legitimados e constrangidos. Soberania então não significa autonomia em tomada de decisão, mas sim uma autonomia formal combinada com limitações reais. O Brasil, ao considerar a reciprocidade um “princípio fundamental” das relações internacionais, demonstra uma concepção mais atual de soberania que a Europa Em março de 2008, após o episódio de detenção e repatriação em massa de cidadãos brasileiros na Espanha, o posicionamento 57 WALLERSTEIN, I. (1999) Patterns and Perspectives of the Capitalist World-Economy. In: Viotti, P.; Kauppi, M. (eds.) International Relations Theory. Boston: Allyn and Bacon. 85 86 • BARRADOS do Ministério das Relações Exteriores do Brasil foi concebido em termos de reciprocidade. O corpo diplomático, após manifestar seu desagrado e inconformidade com a constante denegação de brasileiros, passou a adotar medidas semelhantes para espanhóis que tentavam ingressar em território nacional. Firme em sua posição, o Brasil repatriou cidadãos espanhóis que, ao contrário de muitos brasileiros detidos e devolvidos, não portavam documentação ou recursos materiais necessários para ingressar no país. Anos antes, em 2004, houve um movimento semelhante, quando turistas brasileiros eram constantemente impedidos de entrar nos Estados Unidos. Naquele ano, ocorreu o episódio da identificação de turistas americanos. Na ocasião, o ministro Celso Amorim afirmou que a reciprocidade era o “princípio fundamental” das relações internacionais. Ao considerar a reciprocidade fundamental, a diplomacia brasileira demonstrou uma concepção mais atual de soberania que a Europa, interpretando que atitudes dos Estados repercutem profundamente na realidade de outros. Sobre como práticas de produção de fronteiras constituem a identidade e sobre o que é a soberania sem cidadania Retomando a interpretação de Campbell,58 a construção da identidade é um processo influenciado pelas práticas de produção de fronteiras, justificando a identidade de quem opera em nome dela. A política externa pode ser, então, identificada com 58 CAMPBELL, D. (1998) Writing Security. Patricia Rangel • práticas de diferenciação, implicando o embate entre o indivíduo e o outro. É a legitimação da identidade nacional perante o internacional. Nossa identidade passa a se ligar àquilo que tememos. O perigo constitui mais do que uma simples fronteira que demarca o espaço – ele constitui valores morais que transcendem o mesmo. Enquanto isso, a construção do espaço social, associadaao conceito de soberania, ultrapassa questões geográficas e gera a concepção de distintos espaços morais de identidade. É função do corpo político produzir discursos que naturalizam a identidade coletiva de uma comunidade e que a excluem dos diferentes espaços morais fora do território. Para Ong,59 um argumento a favor da imigração e contra o conceito de soberania adotado pela União Europeia é que a cidadania não é territorial. Segundo ela, a penetração das lógicas de mercado na política implicou no abandono da noção de cidadania como fundada no Estado-nação. O neoliberalismo, ademais, teria trabalhado de modo a articular elementos de cidadania em espaços menores do que o território de um Estado ou mais amplos do que suas fronteiras. Os elementos que costumamos considerar para compor uma ideia de cidadania, tais quais nação, território e direitos, têm se articulado e desarticulado com movimentos impulsionados por forças de mercado. De um lado, indivíduos que possuem capacidades materiais para gozar de um status móvel de valor social elevado, e que podem exercer sua cidadania em diversas localidades do globo. Do outro lado, aqueles que não possuem tais atributos 59 ONG, A. (2006) Neoliberalism as exception. 87 88 • BARRADOS tornam-se excluídos dessa prática, como os imigrantes evitados pela União Europeia. Segundo Bauman,60 o poder de exclusão não seria um marco da soberania se o poder soberano não tivesse, em um primeiro momento, unido-se à noção de território. Como toda aposta na pureza produz sujeira, o lixo fabricado pela promoção da trindade território-Estado-nação foram monstruosidades tais quais nações sem Estado, Estados com diversas nações e territórios sem Estado-nação. O medo do surgimento desses monstros permitiu que o poder soberano encarnado nos Estados pudesse impor absurdas regras de imigração e asilo e negar direitos aos que buscam proteção. Além disso, com a colonização e o impulso de se conquistar e anexar “terras virgens”, abriu-se a possibilidade de escoar para os “novos mundos” indivíduos indesejados e “detritos humanos” gerados e acumulados pelo fervor da lógica de inclusão-exclusão. Com a existência de “lixões” para esses detritos, a prática de exclusão estimulada pela trindade território-Estado-nação não só não chegou a ser encarada como problema como foi legitimada. Depois de colonizar novos mundos, os europeus poderiam descansar, como lemos nos versos de Fernando Pessoa: Pertenço a um gênero de portugueses/ Que depois de estar a Índia descoberta/ Ficaram sem trabalho. 61 Os versos do poeta inglês Rudyard Kipling (1899) também exemplificam bem a lógica da “missão” do europeu e sua visão a respeito do estrangeiro: 60 BAUMAN, Z. (2004) Amor Líquido. 61 Opiário (Álvaro de Campos) In: PESSOA, F. (2002) Poesias. Porto Alegre: L&P. Patricia Rangel • A Song of the White Men (...) Now, this is the road that the White Men tread When they go to clean a land – Iron underfoot and the vine overhead And the deep on either hand. We have trod that road – and a wer and windly road – Our chosen star for guide. Oh, well for the world when the White Man tread Their higway side by side! (...) The Stranger The Stranger within my gate, He may be true or kind, But he does not talk my talk -I cannot feel his mind. I see the face and the eyes and the mouth, But not the soul behind. (...) The Stranger within my gates, He may be evil or good, But I cannot tell what powers control What reasons sway his mood; Nor when the Gods of his far-off land Shall repossess his blood. (...) 89 90 • BARRADOS Para Hall,62 após a Segunda Guerra Mundial, as potências europeias acreditaram poder sair de suas esferas de influência e de seu passado de imperialismo. Contudo, como a interdependência global atua em ambos os sentidos, o movimento centrípeto de mercadorias, imagens e estilos ocidentais foi respondido por um monstruoso movimento de pessoas dos países periféricos para o centro. Motivadas pela pobreza, pela fome, por mudanças de regime político e pela esperança de uma vida melhor, essas pessoas em trânsito conformaram um dos períodos mais longos e sustentados de migração não planejada da história. Uma das consequências desse movimento, ainda para Hall,63 foi o alargamento do campo das identidades, a proliferação das novas posições de identidade e o aumento da polarização entre elas. Ou seja, houve fortalecimento de identidades locais (que pode ser interpretado como uma reação defensiva dos membros de grupos dominantes que se sentem ameaçados pela presença de outras culturas) e a produção de novas identidades. Constata-se um “racismo cultural” nas ruas, nos lugares de trabalho, nas escolas e nos partidos políticos de toda a Europa Ocidental. Estado, território e nação como formadores de identidades Gellner64 escreveu que a ideia de nação é uma imposição da imaginação moderna: um homem deve ter uma nacionalidade, 62 HALL, S. (2006) A identidade cultural na pós-modernidade. 63 Ibid. 64 GELLNER, E. (1983) Nations and Nationalism. Oxford: Blackwell. Patricia Rangel • assim como deve ter um nariz e duas orelhas. Ter uma nação, contudo, não é um atributo inerente à condição humana, apesar de ser o que parece. A nação, segundo Hall,65 além de entidade política, é algo que produz um sistema de representação cultural. Existe uma narrativa de nação, contada pela literatura e história nacionais e recontada pelos meios de comunicação de massa e pela cultura popular. Ela simboliza as experiências compartilhadas, as conquistas e derrotas que dão sentido à nação, conectando os indivíduos a um cotidiano e a um destino comum. E a linguagem, para Negri,66 é a principal forma de constituição do comum: quando trabalho vivo e linguagem se cruzam (e se definem como “máquina ontológica”), adquirem realidade e experiência fundadora do comum. A linguagem é, ao mesmo tempo, meio e resultado de uma ação, onde as consequências são transformadas em condições. Uma das estratégias discursivas é a invenção da tradição – um conjunto de práticas rituais ou simbólicas que injetam valores e normas de comportamento ao cotidiano, e que, por meio da repetição, implicam na continuidade de um passado histórico que seja adequado à nação. Há tradições nacionais que se mostram antiquíssimas, mas que na verdade são recentes ou inventadas. A ênfase em origens, tradição, continuidade e intemporalidade da identidade nacional faz com que os elementos essenciais do caráter nacional fiquem congelados, imutáveis, a despeito das 65 HALL, S. (2006) A identidade cultural na pós-modernidade. 66 NEGRI, A.; HARDT, M. (2001) Império. 91 92 • BARRADOS irregularidades da história. Também o mito de fundação, uma estória que localiza a origem da nação, do povo e do caráter nacional num passado distante, muitas vezes é fruto da invenção e de tempos bem recentes. Muitas vezes ele é baseado na ideia de um povo puro, original, ou seja, inexistente. Tomemos o caso dos territórios que formavam a União Soviética: com a necessidade de reafirmar identidades étnicas essenciais, os novos Estados-nação recorreram muitas vezes a estórias duvidosas de origem mítica, pureza racial e ortodoxia religiosa para desenvolver suas novas identidades nacionais. O discurso da cultura nacional constrói, então, identidades colocadas ambiguamente entre o passado e o futuro. Tentadas a olhar para trás e a recuar defensivamente para o passado, o “tempo perdido” no qual a nação era grande e forte, as culturas nacionais caem na armadilha da segregação e acabam por mobilizar as pessoas na tarefa de “purificar” suas fileiras e expulsar “os outros”, os que sujam o brilho da nação e a impedem de permanecer grande. Não somos somente cidadãos brasileiros legalmente, mas participantes da ideia de nação brasileira tal qual ela é representada em nossa cultura nacional. Por ser uma comunidade imaginada, a nação gera um sentido de identidade e lealdade. Lealdade esta que foi sendo transferida da tribo, da religião ou do povo das sociedades tradicionais para a cultura nacional das sociedades ocidentais modernas. Neste mesmo movimento, as diferenças regionais e étnicas foram se tornando poderosa fonte de significados para as identidades culturais – foram postas sob o “teto político” do Estado-nação. Patricia Rangel • Segundo Hall,67 é preciso ter em mente a forma como as culturas nacionais contribuem para “costurar” diferenças em uma única identidade. É tentador unir a cultura nacional à expressão da cultura de um “único povo”. Quando nos referimos a características culturais (língua, costumes, tradições, religião etc.), explica o autor, o termo que usamos é etnia. É como se ela fosse o elemento fundador das características partilhadas por um povo. Contudo, esse pensamento se mostrou um mito. É muito difícil unificar a identidade nacional em torno da raça, por vários motivos, mas destaca-se o fato de “raça” não ser uma categoria biológica com qualquer validade científica: é uma categoria discursiva e falha. Na Europa Ocidental, por exemplo, não há sequer uma nação formada por um único povo – todas as nações modernas são híbridos culturais. Os alemães têm origem germânica, céltica e eslava; franceses são de origem céltica, ibérica e germânica; os italianos são a mistura de gauleses, etruscos, pelaginos, gregos e por aí vai. Como, nos últimos anos, as noções sobre raça têm sido relacionadas e substituídas por definições de “cultura”, abriu-se espaço para a raça desempenhar um papel de destaque nos discursos sobre identidade nacional. Surge então um racismo crescente que não pode ser identificado como tal, pois é capaz de alinhar raça com nacionalidade. Trata-se de um racismo que conseguiu se distanciar de ideias grosseiras de superioridade biológica e que busca apresentar a definição de nação como comunidade cultural unificada. 67 HALL, S. (2006) A identidade cultural na pós-modernidade. 93 94 • BARRADOS Nova soberania, nova cidadania Nos primórdios do século XX, a ideia de cidadania estava limitada à identidade política e a direitos iguais em determinada comunidade. Foi o Estado-nação, enquanto produtor da humanidade nos tempos modernos, que assumiu o papel de senhor sobre a condição humana, decidindo quem é cidadão e quem não é, concedendo proteção aos selecionados e excluindo dos benefícios da comunidade o forasteiro, o trabalhador sem documentos, os que buscam asilo, os refugiados de guerra. Noções mais amplas para a noção de cidadania emergiram no contexto da Segunda Guerra Mundial e com o horror vivido numa Europa tomada por refugiados. Foi quando Hannah Arendt lançou a reflexão sobre a “condição humana” baseada em três tipos de atividades exercidas por todas as pessoas: existimos como seres vivos, temos a capacidade de trabalhar e somos atores políticos. É essa condição unificada de humanidade que passou a ser o centro das demandas por cidadania. A noção de cidadania foi ampliada de modo a abarcar as consequências dos fluxos migratórios da globalização. Assim, foi sugerido o termo “soberania pós-nacional”, de modo a lidar com a variedade de cidadanias que existem dentro de países da União Europeia e com a diversidade de imigrantes não europeus. Para Ong,68 tem se tornado cada vez mais claro que a noção de cidadania se altera fundamentalmente com os fluxos de pessoas e ideias, assim como as novas articulações e demandas em espaços políticos. A autora sustenta que seus conceitos estão cada vez menos fixos e temporais. 68 ONG, A. (2006) Neoliberalism as exception. Patricia Rangel • É nesse contexto que surgem grupos que lutam pela inclusão de minorias e imigrantes, tendo como inspiração a busca por uma convivência e uma existência mais democráticas. Ainda segundo Ong,69 “cidadania” é o direito de ser diferente, em termos de etnia, idioma e outros aspectos culturais, em relação às normas da comunidade nacional dominante. Estabelecer critérios de cidadania com base em residência ao invés de identidade cultural é indicador de normas cosmopolitas, argumenta Benhabib.70 Esse movimento nos remete a Taylor,71 que argumentava que só há direitos iguais quando existe respeito mútuo a diferenças culturais. Questionando a identidade nacional A formação da identidade nacional se dá construindo semelhança a despeito de diferenças. As culturas nacionais em que nascemos são apontadas como a principal (ou uma das principais) fonte de identidade cultural. Uma cultura nacional, entretanto, é um discurso, uma forma de construir sentido que influencia e organiza não só nossas ações, mas também a concepção que temos de nós mesmos. A identidade nacional é uma comunidade imaginada.72 69 Ibid. 70 BENHABIB, S. (2004) The Rights of Others. 71 TAYLOR, C. (1994) Multiculturalism: Examining the politics of recognition. Princeton University Press. 72 ANDERSON, B. (1983) Imagined Communities. 95 96 • BARRADOS Quando dizemos que somos brasileiros, alemães ou japoneses, estamos falando metaforicamente. Essas identidades não existem de forma concreta, não estão gravadas em nossos genes, elas só existem porque pensamos nelas como se fossem parte da essência de nossa natureza. A cultura nacional, ao produzir sentidos sobre a ideia de “nação” com os quais podemos nos identificar, constrói identidades. Uma cultura nacional se constitui de três elementos (os mesmos que constituem uma comunidade imaginada): 1) memórias do passado; 2) desejo de viver em comunidade; e 3) perpetuação da herança. Assim, não importa o quão diferentes os membros de um Estado-nação sejam – em termos de gênero ou classe, por exemplo –, todos eles são considerados pertencentes a uma grande família nacional. As identidades nacionais se manifestam como o resultado da união da condição de membro de um Estado e da identificação com a cultural nacional. Entretanto, sabemos que nenhuma cultura nacional é tão coesa e autocentrada quanto se pretende. Nunca foi um ponto de lealdade, união e identificação simbólica, nas palavras de Hall.73 As identidades nacionais não são atributos com os quais nascemos: são formadas e transformadas pela representação. Portanto, argumenta o autor, deveríamos pensar as culturas nacionais não como unificadas, e sim como constituidoras de um dispositivo discursivo que representa, como unidade e identidade, a diferença. Para Hall,74 as velhas identidades estão em declínio, após muito tempo servindo de estabilizadores do mundo social. Novas 73 HALL, S. (2006) A identidade cultural na pós-modernidade. 74 Ibid. Patricia Rangel • identidades estão surgindo e, com um tipo diferente de transformação, fragmentando as paisagens culturais de etnia, nacionalidade e raça. Isso implicaria na modificação de nossas identidades pessoais e no questionamento da ideia que fazemos de nós mesmos enquanto sujeitos integrados. Tal perda do “sentido de si” vem sendo chamada de deslocamento do sujeito ou descentração do sujeito. O duplo deslocamento – dos indivíduos no mundo sóciocultural e de si mesmos – é o que constitui a crise de identidade para o indivíduo, que pode ser interpretada como parte de um processo de transformação mais amplo, que desloca estruturas e processos centrais da modernidade, além de abalar os quadros de referência que serviam de âncora para os indivíduos no mundo social. 97 5. O espetáculo A imprensa pode causar mais danos que a bomba atômica. E deixar cicatrizes no cérebro. Noam Chomsky De como a mídia tem o poder de se apresentar como instrumento eficaz de denúncia ou simplesmente produtora de notícias Após nossos dias de sofrimento em Barajas, fomos recebidos no Rio de Janeiro por um mar de flashes e microfones. Não podemos deixar de reconhecer a inegável contribuição de toda a mídia na empreitada de denunciar os abusos cometidos no aeroporto madrilenho, nem esquecer que, não fosse a participação ativa da imprensa, não teríamos obtido sucesso em mostrar que havia algo de errado com o tratamento dispensado aos estrangeiros nas portas da Europa. Entretanto, o sentimento de gratidão e a sensação de dever cumprido foram ofuscados pela conclusão de que a denúncia havia se tornado espetáculo. Não se trata, quero enfatizar, de desmerecer o papel da imprensa em levar à população o conhecimento sobre as arbitrariedades das autoridades espanholas, mas sim questionar em que medida a transmutação de uma denúncia em uma notícia pitoresca não reforça preconceitos e estereótipos. Nas notícias de jornal e matérias de TV que tive a oportunidade de analisar 100 • BARRADOS depois de meu retorno, pareceu-me que os jornalistas comentavam o problema geral das repatriações em massa, mas focavam em nossa história particular, destacando o absurdo de deter e repatriar dois jovens de classe média, estudantes de mestrado com a documentação em ordem e cumprindo todos os requisitos para entrar no espaço Schengen. Outros casos eram citados, mas sempre no sentido de denunciar histórias particulares de turistas barrados na Europa. A imprensa costuma denunciar situações de abuso, mas raramente explora o problema que as provoca: ela para na ponta do iceberg Quando lemos uma notícia, lemos também a visão do mundo que inspira o jornalista. Assim, é fácil perceber que as manchetes reproduzem vozes e discursos da comunidade na qual o autor está inserido, servindo de ferramenta para entendermos como determinada sociedade pensa. Encontramos nestas manchetes a reprodução dos discursos sobre as relações entre os povos, do centro sobre a periferia, das visões e estereótipos etnocêntricos. Em nenhum momento, pelo menos analisando o material com que tive contato, pareceu-me que a grande mídia estava preocupada em denunciar um problema coletivo ou questionar a divisão do mundo entre turistas e vagabundos. Tive a impressão que o fato teve repercussão porque preocupou as classes médias e altas, que viam em mim e Pedro Luiz Lima seus próprios filhos, que passaram a correr o risco de serem maltratados por policiais europeus que aplicam normas de imigração a seu bel-prazer. Patricia Rangel • Também me pareceu que, mais do que denunciar um problema grave, nossa história serviu para virar notícia. Senti uma ponta de sensacionalismo na forma como as matérias eram escritas e nas perguntas que nos faziam nas entrevistas. Quanto mais sofrimento, melhor. Depois disso, o governo brasileiro negociou com o espanhol, disse ter acertado as coisas e nossos rostos desapareceram dos jornais, colocando um ponto final em um problema que não cessou e, na verdade, se agravou. Nos meses que se seguiram, muitos brasileiros continuaram sendo detidos em Barajas e outros aeroportos europeus. A política de imigração foi endurecida, com a aprovação da Diretiva de Retorno pelo Parlamento Europeu, que será analisada no capítulo seguinte. No entanto, muito pouco sobre isso foi tratado nos jornais brasileiros. Nos jornais europeus, obviamente, nem na época do auge da crise com o Brasil a notícia mereceu destaque. Quando a experiência do sofrimento não é apenas de uma pessoa, e sim um problema coletivo Presa em Barajas, minha experiência foi única, assim como a vivência de cada um dos indivíduos que estiveram lá e que passaram por situações de sofrimento e humilhação. Apesar de cada experiência ter sido única, a questão ilustrada pelo nosso caso não tem origem particular: trata-se de um problema estrutural que, portanto, demanda uma solução coletiva. Isso porque ele não surge de deficiências individuais, e sim de uma rede de instituições e práticas solidificadas e inculcadas nos atores sociais envolvidos. 101 102 • BARRADOS A atuação da mídia e dos corpos diplomáticos em denunciar e solucionar o abuso cometido contra nós especificamente foi de grande valia, mas não abarca os outros milhares de brasileiros que passaram pelo que passamos. E esse tratamento especial a um caso específico só faz perpetuar os abusos cometidos contra os numerosos outros inadmitidos. Destes, muitos optam por calar-se, motivados por medo ou vergonha, e acabam também contribuindo para alimentar esse sistema de fechamento de fronteiras tão cruel. É preciso ter em mente que, tratando-se de política, não há neutralidade. Até a inação constitui uma posição e gera consequências. Assim como afirmou Pedro Luiz Lima, a incursão da experiência individual na esfera pública exige que os conteúdos que dizem respeito à comunidade como um todo sejam universalizados para que se busque uma boa medida entre o insuperável desconforto subjetivo e a necessária referência a uma totalidade em que o caso específico aparece como epifenômeno. Sustento o argumento de Lima a respeito da diferenciação de nosso caso. Para ele, enxergar nossa prisão como um mero erro de aplicação das normas, e não como uma política sistemática de exclusão, leva à aceitação silenciosa da divisão da humanidade entre turistas e vagabundos. Sendo turistas, o problema central estaria em terem nos confundido com vagabundos, como se a liberdade humana devesse, de fato, estar submetida à liberdade do dinheiro (levado e trazido por nós turistas, que, portanto, temos acesso a outras comunidades) e das mercadorias. Ainda segundo Lima, a publicização de nosso sofrimento e de tantos brasileiros deve, pelo menos, servir para que lancemos um olhar reflexivo sobre a barbárie que se reproduz na Europa. Patricia Rangel • A imprensa pode mudar visões de mundo. Mas também pode fortalecê-las A mídia é uma forma de narrativa, pode ser fonte de história e política, possui um papel transformador ou mantenedor de visões de mundo e é formadora de opiniões. Ela interage com a realidade política reproduzindo-a e influenciando-a. É também um poderoso instrumento, pois participa do processo de formação de mentes, carregado de ideologias. Aquilo que se passa na televisão é o ensinamento do mainstream. O que se ensina aos cidadãos é a cultura política de uma sociedade em uma determinada época: suas ideologias, as percepções sobre outros povos, suas visões de mundo. No auge do problema das repatriações em massa, consultei os grandes jornais da Europa e o pouco que encontrei sobre o assunto eram matérias que justificavam a ação da polícia de fronteira dos Estados do continente e reforçavam não só os estereótipos negativos dos imigrantes oriundos da periferia, mas também os argumentos de que eles são os causadores dos males sociais naqueles territórios. Apesar das denúncias feitas contra a arbitrariedade das autoridades europeias, a mídia brasileira acabou mantendo velhos preconceitos ao criticar a inadmissão dos turistas sem questionar a legitimidade da rejeição e dos maus-tratos contra os imigrantes que buscavam no exterior uma vida menos sofrida. Tampouco foi explorada satisfatoriamente a institucionalização da xenofobia pelos Estados europeus na adoção de novas políticas imigratórias. 103 104 • BARRADOS Considero, assim como Orlando Miranda,75 que a interpretação do mundo é “uma floresta de signos e mitos”. O mito é uma inversão do real, a “fala despolitizada” da ideologia que busca construir o mundo que a própria ideologia deseja. Em minha opinião, a mídia não exerceu, neste e na maioria dos casos, a função de desvelar os mitos da política internacional. No que depender da grande mídia e dos Estados xenófobos, continuaremos vivendo em um mundo divido entre turistas e vagabundos, sem atribuir reconhecimento, valor ou livre passagem para uma multidão de sujeitos sem rosto, sem história, sem individualidade. Muito informados, porém pouco mobilizados Para Merton,76 as comunicações de massa podem ser consideradas os mais eficazes narcóticos sociais: a exposição exagerada das pessoas à informação pode levá-las a ficar narcotizadas, em vez de estimuladas. Uma vez que grande parte do tempo é dedicada à absorção dessa informação, sobra uma parcela bem menor para a ação organizada. O indivíduo confunde o conhecimento dos problemas cotidianos com a atuação sobre eles. No caso em questão, observei muita gente informada e pouca ação por parte da sociedade civil (pelo contrário, li muitas cartas de leitores e comentários na internet questionando as intenções e as 75 MIRANDA, O. (1978) Tio Patinhas e os mitos da comunicação. São Paulo: Summus Editorial. 76 MERTON, R. K.; LAZARSFELD, P. F. (2000) Comunicação de Massa, Gosto Popular e a Organização da Ação Social. In: ADORNO, T. et al., comentários e seleção de Luiz Costa Lima. Teoria da cultura de massa. São Paulo: Paz e Terra. Patricia Rangel • condições dos inadmitidos). De acordo com Miranda, “os meios de comunicação de massa impõem à sua clientela uma visão fechada, monolítica e padronizada do mundo”.77 Não seria possível desvincular o problema das “massas” do problema de “classes”. Os conteúdos dos objetos atenderiam às necessidades ou projeções da cultura dominante, ou do centro do sistema internacional, compartilhando de uma proposta global. A transmutação da denúncia em espetáculo Quando confidenciei meu estranhamento em relação ao assédio da mídia a um amigo alemão que, dois anos antes, havia surgido nas páginas dos jornais após ser sequestrado na Faixa de Gaza por um grupo de extremistas islâmicos, fui reconfortada por ele, que me garantiu que em poucos dias nenhum repórter iria me procurar e que em meses ninguém iria se lembrar da história. Foi o que aconteceu: tudo não passou de um espetáculo midiático. Para Ronaldo Helal,78 a mídia constrói os fatos, os ídolos, os mitos, os heróis, e as histórias em acordo com o público. Fomos então, totalmente ao acaso, transformados em mártires de uma classe média brasileira que nutre grande afeição pelo território europeu e que se revolta com a inadmissão de seus turistas. A imagem tem, em nossa tradição cultural, um poder profundamente sedutor. Ela é privilegiada como uma fonte especial de 77 MIRANDA, O. (1978) Tio Patinhas e os mitos da comunicação, p. 46. 78 HELAL, Ronaldo. (1998) Cultura e Idolatria: Ilusão, Consumo e Fantasia. In: ROCHA, E., organizador; LÁZARO, A. et al. Cultura & imaginário: interpretação de filmes e pesquisa de ideias. Rio de Janeiro: Mauad. 105 106 • BARRADOS obtenção de conhecimento. Daí o amplo uso de imagens pela mídia, que constrói um mundo apresentado como o único possível. As imagens podem alcançar alto grau de informação e expressividade, principalmente em seu elemento verbal. Daí a explicação, quando chegamos ao Rio, daquele mar de flashes ávidos por captar uma imagem comovente dos maltratados bons filhos que retornavam. A ideologia da mídia ou a mídia da ideologia? A linguagem nas relações culturais serve de instrumento e produto da ideologia. Ela é o mecanismo através do qual agem as notícias nos jornais, produto de determinado momento histórico e político. Os jornalistas e os intelectuais teriam, portanto, a função de promover hegemonia ou consenso ideológico na sociedade civil, como indicava Gramsci.79 Tanto no nosso caso, que ilustra o problema geral da rejeição de imigrantes do sul nos países do centro, quanto em outras ocasiões, a imprensa age de modo a reforçar as disposições culturais e ideológicas do grupo dominante na sociedade em questão. Da mesma forma que indicam Marx e Engels na Ideologia Alemã, a classe que exerce o poder material dominante é também seu poder espiritual dominante. Como as elites costumam dispor dos mecanismos de transmissão da qual se utiliza a política cultural, seu poder material possui mais chances de impor uma “espiritualidade”, ou ideologia através da cultura, como afirma Héctor Agostini.80 79 AGOSTI, H. P. (1984) Ideologia e Cultura. Lisboa: Livros Horizonte. 80 Ibid. Patricia Rangel • Ignácio Ramonet81 afirma que os veículos de comunicação de massa utilizam imagens com base em um designo ideológico. Essas imagens seriam máquinas repetitivas que reproduzem os estereótipos com total liberdade. Assim, a cultura que predomina é a das classes e das nações hegemônicas, e o processo de formação da ideologia seria sempre o mesmo: sua raiz é o processo de abstração que assume como universal a expressão de interesses particulares. A exclusão por meio da estigmatização na cultura e na mídia O indivíduo na sociedade de massa é somente um consumidor de imagens, informações e opiniões prontas. Estas são reproduzidas no cotidiano, nos diálogos com seus pares, na formação de sua visão de mundo. O que se fala e o que se escreve na Europa sobre as nações muçulmanas, por exemplo, são (em sua maioria) representações e análises exógenas, que não ouvem as vozes ou discursos do objeto em questão. O mundo muçulmano, como conhecem os europeus, é uma invenção ocidental. Trata-se, a meu ver, de um bom exemplo para se trabalhar a aversão dos europeus a povos “estranhos”. Portanto, ater-me-ei a essa questão por alguns parágrafos. Desde tempos remotos, o Oriente foi cenário de personagens exóticos. A cultura do imperialismo europeu englobava a curiosidade por sociedades asiáticas, afirma Albert Hourani.82 O Oriente 81 RAMONET, I. (2002) Propagandas silenciosas. Massas, Televisão, Cinema. Petrópolis: Vozes. 82 HOURANI, A. (1994) Uma história dos povos árabes. São Paulo: Companhia das Letras. 107 108 • BARRADOS foi associado ao berço de histórias fantásticas, o que estimulou a criatividade de escritores europeus que passaram a escrever sobre o tema: Goethe e seu Weltöstsliche Diwan, Walter Scott e O Talismã, entre outros, utilizaram temas islâmicos na criação de um mundo fantástico, distante, estranho. A imagem explorada nessas obras é sempre a do cavaleiro árabe como um selvagem, a sedução das belas mulheres dos haréns e outros estereótipos.83 Por mais absurdas que possam parecer essas imagens, elas sobrevivem até hoje em nosso inconsciente e se reproduzem nos filmes e nos jornais. A partir da Segunda Guerra Mundial, o muçulmano passou a ser um personagem popular na cultura americana e nos estudos acadêmicos, principalmente após as guerras árabe-israelenses. O mundo pós-moderno e sua padronização, através da televisão, dos filmes, dos desenhos animados e histórias em quadrinhos, reforçou os estereótipos e os rótulos impostos ao mundo oriental: Nos filmes e na televisão, o árabe é associado à libidinagem ou à desonestidade sedenta de sangue. Aparece como um degenerado supersexuado, capaz, é claro, de intrigas astutamente tortuosas, mas essencialmente sádico, traiçoeiro, baixo (...) Nenhuma individualidade, nenhuma característica ou experiência pessoal. A maior parte das imagens apresenta massas enraivecidas ou miseráveis, ou gestos irracionais (logo, desesperadoramente excêntricos). À espreita, por trás 83 Ibid. Patricia Rangel • de todas essas imagens, está a jihad. Resultado: um temor de que os muçulmanos (ou árabes) tomem conta do mundo.84 Os “outros” são construções criadas por “nós” Para Said,85 o Oriente é uma invenção ocidental, uma vez que as visões propagadas são “fabricadas por uma civilização para inventar uma outra”. Ainda segundo o autor, lugares como “Oriente” e “Ocidente” são criações das tradições de pensamento e do vocabulário que deram uma realidade e uma presença para cada um deles. Assim, as duas criações são entidades que se desenvolvem uma em oposição à outra. O estudo do Oriente, ou orientalismo, teria servido para domesticar um saber para o Ocidente, produzindo um discurso científico que fosse capaz de trazer legitimidade para a autoridade que as potências europeias exerceram sobre o mundo islâmico. Como afirma o autor, “no que diz respeito ao Oriente, a padronização e a estereotipação cultural intensificaram o domínio da demonologia acadêmica e imaginativa do ‘Oriente misterioso’”.86 Essa “estereotipação” inclui o preconceito antiárabe na Europa e a ausência da possibilidade de se identificar culturalmente ou discutir com neutralidade o islã e os árabes. A imprensa e o inconsciente do povo europeu estão repletos desses preconceitos. Após 1973 e as contendas do petróleo, 84 SAID, E. (1990) O Orientalismo, p. 105. 85 Ibid. 86 Ibid, p. 120. 109 110 • BARRADOS o árabe muçulmano passou a ser visto como mais ameaçador, sendo comuns as caricaturas representando um xeque atrás de uma bomba de gasolina. Ele foi envolto em uma aura negativa, tomado como perturbador da vida do Ocidente. Tais representações, como qualquer outra, são formações de todas as operações de linguagem, são deformações. O Oriente, como representação europeia, é uma deformação a partir de uma região geográfica denominada “leste”. O problema do Ocidente não é o mundo muçulmano em si, mas sim o seu próprio racismo. As imagens da TV não são neutras As visões ocidentais sobre o Oriente, o processo de “desumanização” do povo muçulmano e seu papel de “não povo”, de “ser estranho”, diferente e invisível, ficam bem claros na televisão, sobretudo em épocas de conflitos armados em algum território de maioria muçulmana. Bons exemplos são as coberturas dos telejornais na intervenção no Iraque em 2003 e na Guerra do Golfo de 1990: neste caso, enquanto a televisão mostrava inúmeras fotos dos soldados americanos contando sobre suas famílias, seus amores, suas vidas, nada mostrava sobre “o outro lado”. Tudo o que passava na TV eram mulheres de véu, crianças armadas, camelos, provando que “eles” eram machistas, fanáticos e atrasados. Muita simpatia foi despertada em relação aos americanos, e nada em relação aos árabes: eles se tornaram invisíveis, aponta Arbex.87 87 SACCO, J. (2002) Palestina. Patricia Rangel • A mídia trabalha com uma rápida sucessão de cenas sobre todas as partes do mundo e, em um discurso “objetivo” e neutro, cria uma realidade que é apresentada como a verdade. Os telespectadores e leitores nem sempre percebem que cenas são selecionadas, não julgam os critérios de escolha dos entrevistados, o tipo de depoimento que se privilegia. O bombardeamento da mídia planetária cria em nós a falsa sensação de que já vimos tudo e conhecemos o mundo todo, que temos capacidade de julgar o que é certo e o que é errado, quem é civilizado e quem é selvagem, quem representa o “bem” e o “mal”. Ainda segundo Arbex, a influência do cristianismo e suas convicções morais contribuem para essa definição, numa lógica maniqueísta de exclusão que elimina muitas possibilidades. Como as imagens que vemos do mundo não são objetivas, não são “o mundo”, mas sim “muitos mundos”, a mídia sempre escolhe um fato para dar destaque. O problema é que quando as pessoas estão absorvidas pela televisão num estado passivo, não realizam reflexões críticas e não percebem que as imagens que assistem não são neutras. A desproporcionalidade de capacidades e a impossibilidade de “o lado de lá” se defender não aparece nos jornais e nas telas da TV. Joe Sacco88 ressalta o fascínio dos ocidentais pela violência no conflito: a catástrofe é novamente transformada em espetáculo e vendida em forma de notícia. Não existe a preocupação com o sofrimento dos envolvidos na guerra e os mortos são tratados como números, não como sujeitos capazes de despertar interesse e comoção por sua história. 88 Idem. 111 112 • BARRADOS São só notícias, e a violência é o que fabrica a notícia. Portanto, a violência é necessária para dar continuidade ao processo, para vender a matéria. Ainda de acordo com Arbex,89 com o fim da Guerra Fria e sua visão cômoda de que o mundo é dividido em dois, sendo que um representa o bem e outro o mal, as relações entre os Estados se tornaram mais imprecisas. Os parâmetros morais que balizam seu julgamento acabam sendo encontrados na TV e nos jornais. Eles elegem o “lado bom” e o “lado mau”, criando um mundo composto por “mocinhos” e “bandidos”, ou Estados “democráticos” e “párias”. As nações muçulmanas são geralmente classificadas de “tirânicas”, “más”, são os bandidos das histórias em quadrinhos e filmes. Said chega a uma conclusão para entender os pontos destacados nesta seção: jornais, filmes e programas de TV “podem criar, não apenas o conhecimento, mas também a própria realidade que parecem descrever”. Assim, produzindo entretenimento ou conhecimento, cria-se um sistema de verdades e uma doutrina política que é imposta ao mais fraco. Seguir esse sistema de verdades, no sentido nietzscheano, transforma-nos obrigatoriamente em racistas. Um darwinismo social contribuiu para justificar “cientificamente” a divisão entre raças atrasadas (orientais-africanas) e desenvolvidas (europeias-arianas). Como uma convenção, a sociedade ocidental manteve sua separação da oriental-árabe, a ideia de atraso oriental, de diferença e incompatibilidade. 89 ARBEX, J. (1995) O poder da TV. 6. Jihad vs McWorld Sie konnen sich nicht vertreten, sie müssen vertreten werden90 Karl Marx O surgimento dos Estados-nacionais foi acompanhado de tensões internas que se reproduzem no sistema internacional Tensões internas que acompanharam o surgimento dos Estados-nacionais foram, ao longo dos séculos, reproduzidas no nível supranacional, afirma Benhabib.91 Assim aconteceu com cada um dos países que formam a União Europeia e a partir daí podemos desenvolver uma chave interpretativa para o severo problema da imigração e da xenofobia na Espanha. As políticas de migração são amplamente afetadas por atores políticos que não são comumente reconhecidos: os estrangeiros. Estes outsiders não estão nas fronteiras do mundo político, estão dentro dele, atuando como atores importantes, formadores de identidades e participantes do processo de ressignificação de direitos e identidades coletivas. Cerca de dois meses após sermos barrados no aeroporto de Madri, a Itália anunciou o endurecimento das leis de imigração e repatriou estrangeiros em situação ilegal no país. Em operação que 90 Não podem representar a si mesmos; devem ser representados. 91 BENHABIB, S. (2004) The right of Others. 116 • BARRADOS durou uma semana, a polícia prendeu 268 e deportou 53. A Espanha de Zapatero criticou o governo italiano por sua ação, classificando-ade ato racista e xenófobo, acusação que soa surpreendente. A polícia espanhola barrou mais de 18 mil pessoas no aeroporto de Madri só no primeiro trimestre de 2008. Neste mesmo período, mil brasileiros foram inadmitidos ao tentarem entrar no país. Foi a Espanha também que, pouco antes, anunciou a proposta de pagar 900 euros para imigrantes desempregados retornarem a seus países de origem. Há quase dez anos, o governo já custeia a passagem daqueles que desejam voltar para casa. Franco Frattini, chanceler italiano, chegou a afirmar que o governo espanhol adota políticas de imigração tão duras que são verdadeiros exemplos de métodos de expulsão. Poucos dias depois, em 18 de junho de 2008, o Parlamento Europeu aprovou a chamada “Normativa de Repatriação”, ou “Diretiva de Retorno”, prevista para entrar em vigor dois anos após sua publicação oficial. Esta propunha a detenção e expulsão de estrangeiros em situação irregular no território da União Europeia. Os imigrantes ilegais terão entre sete e 30 dias para abandonar o país em que se encontram e podem permanecer presos por até 18 meses sem direito a um processo jurídico, além de passar até cinco anos proibidos de regressar à União Europeia. Além disso, o retorno forçado pode obrigar o detido a voltar ao último país em que esteve antes de ingressar na União Europeia, mesmo que não tenha vínculos com o mesmo. Todos os imigrantes ilegais retidos receberão tratamento de criminosos. Crianças e adolescentes não terão privilégios e também poderão ser detidos. A solução veio a calhar, e italianos e espanhóis pararam de brigar. Patricia Rangel • O que há de antigo na novidade da União Europeia? O caso de Muhammed Não posso falar sobre a detenção de imigrantes ilegais em países europeus, pois não convivi com nenhum e nunca pesquisei profundamente o tema. Mas posso garantir que pelo menos o retorno forçado ao último país, não ao país de origem, não é uma novidade da norma. Enquanto estávamos detidos em Barajas, tomei conhecimento de pelo menos um caso dessa arbitrariedade. Muhammed, um cidadão marroquino (o mesmo que se recusou a dividir dormitório com mulheres), estava no aeroporto de Madri após uma temporada na República Tcheca, esperando por seu voo de volta para o Marrocos, quando acabou dormindo em um banco e sendo furtado. Sem a carteira com documentos ou dinheiro, ele procurou a polícia do aeroporto para pedir ajuda e acabou sendo detido. Ficou conosco na prisão por dois dias. Quando finalmente veio sua ordem de deportação, ficou sabendo que seria mandado para Praga, de onde saiu o voo que o levou a Madri, não ao Marrocos. O que a aprovação da Diretiva de Retorno nos diz sobre o posicionamento dos Estados europeus perante o mundo? A aprovação da Diretiva de Retorno, como norma comum a todos os membros da União Europeia, e o endurecimento das políticas de imigração por parte de Estados específicos nos fazem pensar que a Europa se esqueceu das ondas de imigrantes que enviou aos 117 118 • BARRADOS países cujos cidadãos hoje rejeita. Esquece-se também que muito da identidade europeia não tem origem endógena. As identidades coletivas das democracias liberais cada vez mais são influenciadas pelo elemento multicultural. Sobretudo na Europa, a face da cidadania tem se transformado graças à contribuição dos estrangeiros. Além disso, a maneira pela qual se tratam os “outros” expressa a consciência moral e a reflexividade política de um povo. E a forma como a Europa tem tratado os estrangeiros não parece condizer com sua longa e sólida tradição democrática. As trocas de farpas entre espanhóis e italianos tampouco parece condizer com a imagem que ambos tentam instituir no sistema internacional. A Diretiva de Retorno nos faz lembrar dos comentários de Foucault acerca do Antigo Regime, no qual qualquer crime era um ataque pessoal ao soberano, uma vez que a força da lei era a força do príncipe. Para que uma lei fosse eficaz, seria preciso que ela emanasse diretamente do soberano. Assim, o castigo pelo crime cometido era uma forma de vingar pessoal e publicamente o soberano, de vingar o desprezo pela sua autoridade. O que sustentava a prática de suplícios naquele período era a economia do exemplo e a economia do medo. A nova política europeia parece, assim como os suplícios do Antigo Regime, apoiar-se nas mesmas duas bases, fazendo com que o imigrante ilegal em potencial perca a vontade de arriscar. A semiótica utilizada para armar o poder de punir se baseia em algumas regras que podem ser identificadas na normativa aprovada pelo Parlamento Europeu: a regra da idealidade suficiente, ou seja, a eficácia da pena está em mostrar a desvantagem do crime, não na sensação de dor, mas sim de desprazer (a lembrança do sofrimento impede, ainda, a reincidência); a regra dos efeitos laterais, de Patricia Rangel • convencer os outros de que o infrator foi punido, direcionada aos que não cometeram a falta; a regra da certeza perfeita, para que as leis sejam claras na definição do crime e suas penalidades. No projeto político de classificar as ilegalidades e delimitar o poder de punir, afirma Foucault, o criminoso é tomado como inimigo de todos, desqualificado como cidadão e aparece como fragmento selvagem da natureza. Em todos os sentidos, a Diretiva de Retorno torna o imigrante irregular um criminoso. O vento da xenofobia encontra os ventos do sul A reação por parte dos países do sul veio de forma tão abrupta e intensa quanto a aprovação e o conteúdo da nova norma europeia. Na ocasião da Cúpula dos Chefes de Estado do Mercosul, que aconteceu na Argentina em 2008, os presidentes de países do Mercosul e nações associadas condenaram a política de imigração europeia. O presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez, proferiu declaração contra a nova lei. Ele relembrou que a Europa mandou ondas de imigrantes para a América Latina, recebidos com respeito, tolerância e com a oportunidade de levar adiante suas vidas. Vázquez, Cristina Kirchner (Argentina), Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil), Nicanor Duarte (Paraguai), Evo Morales (Bolívia), Hugo Chavez (Venezuela) e Michelle Bachelet (Chile), além de ministros e outras autoridades de Equador, Colômbia e Peru já haviam se manifestado contra a política por considerá-la uma manifestação de xenofobia. O Parlamento do Mercosul também aprovou por unanimidade moção de repúdio à normativa europeia. Os parlamentares de Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai consideraram que a norma 119 120 • BARRADOS viola o direito à livre circulação internacional e direitos humanos básicos. A moção também expressava a esperança de que o Parlamento Europeu revisse sua decisão que, segundo o documento, é equivocada, estéril e mancha a imagem da Europa. A moção foi encaminhada ao Parlamento Europeu, ao Conselho da União Europeia, à Organização das Nações Unidas (ONU), à Organização dos Estados Americanos (OEA) e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, entre outros organismos internacionais. O presidente Lula se declarou preocupado com o vento da xenofobia que “sopra falsas respostas aos desafios da economia e da sociedade”. Segundo a Chancelaria brasileira, o tema deixou de ser um assunto consular e passou a ser político, como afirmou o ministro das Relações Exteriores Celso Amorim. A Chancelaria argentina, em nota, reiterou que migração não é crime e rejeitou o uso de conceitos como “migração ilegal”. Segundo o documento, imigrante sem documentação é considerado “irregular” em países latino-americanos, não “criminoso”. O então presidente eleito do Paraguai, Fernando Lugo, classificou a aprovação da lei de ingratidão por parte dos europeus e também citou que no passado os países sul-americanos receberam bem os imigrantes que fugiam da guerra na Europa. A Câmara dos Deputados do país aprovou uma declaração rejeitando a norma e qualificando-a de abusiva. Na Venezuela, o presidente Hugo Chávez denominou a diretriz europeia de “lei da vergonha”, utilizando o termo lançado por seu homólogo boliviano, e cogitou não exportar mais petróleo à Europa, além de cancelar os investimentos europeus no país. Evo Morales disse não descartar a adoção de medidas de represália como a interrupção das negociações comerciais em andamento Patricia Rangel • entre a Comunidade Andina de Nações e a União Europeia. Na véspera da aprovação, Morales publicou uma carta aberta no jornal britânico The Guardian denunciando a injustiça e insensibilidade da proposta. Rafael Correa, presidente do Equador, repetiu o termo usado por Morales e também ameaçou cortar o diálogo entre a Comunidade Andina de Nações e a União Europeia. Para ele, países civilizados não podem falar com países que exerçam esse tipo de conduta. Os chanceleres da Colômbia, do Equador e do Peru enviaram ainda uma carta à União Europeia solicitando reflexão conjunta acerca dos efeitos da nova política. Ainda em junho de 2008, a OEA aceitou um pedido feito pelo Peru para avaliar a diretiva em sessão extraordinária. Segundo Jose Belaunde, chanceler do país, a posição de todos os países da América Latina foi de reprovação da norma. Em julho de 2008, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (HCR, na sigla em inglês) fez um apelo à presidência francesa contra o endurecimento da política migratória da União Europeia. A Rede Estatal pelos Direitos dos Imigrantes (Redi), da Espanha, promoveu uma jornada de protestos em várias cidades do país. A presença dos que vêm de fora contribui para rearticular o significado do universalismo democrático A norma aprovada pelo Parlamento Europeu joga por terra a riqueza, em amplos significados, trazida pelos imigrantes. Benhabib92 sustenta que a presença dos “outros”, dos imigrantes, dos que vêm 92 BENHABIB, S. (2004) The right of Others. 121 122 • BARRADOS de fora e que não compartilham nem da memória da cultura dominante nem de suas disposições morais, contribui para rearticular o significado do universalismo democrático. Para a autora, não existe formação de identidade coletiva sem conflito. As identidades não são dadas ou estáveis, e pensá-las dessa forma permite que se argumente (como Walzer e Rawls) que os outros constituem uma ameaça à coesão e a solidariedade de uma comunidade. Mas como fazê-lo se a identidade coletiva das democracias liberais nunca foram tão coesas ou autocentradas como tais teóricos supõem? Aqueles que residem na comunidade e não gozam de cidadania plena podem ser de três tipos: os que não atendem aos critérios de identidade definidos pelo povo para si mesmo; os que pertencem a outra comunidade; e os que escolheram permanecer fora. De qualquer forma, são vistos como forasteiros ou estrangeiros que possuem status diferenciado dos cidadãos de segunda classe. Aqui estão os refugiados, migrantes e aventureiros. A reconfiguração democrática dá voz a modelos de cidadania transnacionais, segundo a autora. Modelos de representação não baseados em territorialidade são certamente possíveis. Para Negri e Hardt, nomadismo e mestiçagem, frequentemente apontados como efeitos migratórios negativos induzidos pela não distribuição de poder e riqueza, são armas a serem usadas contra ideologias reacionárias. Para eles, a multidão,93 conceito que 93 “Multidão” refere-se a uma pluralidade de singularidades, pois as pessoas não são iguais. É uma ideia diferente de “povo” ou “Volk” (unidade artificial do Estado moderno como base de legitimação) e “massa” (conceito que a sociologia realista assume na base do mundo capitalista de produção, unidade indiferenciada). Também se contrapõe a “classe” (o trabalhador se apresenta como portador de capacidades imateriais de produção, seu instrumento é o cérebro. Por isso, os trabalhadores se constituem em multidão, em vez de classe). Patricia Rangel • se relaciona diretamente à relativização das fronteiras, deveria ser o sujeito de uma revolução dentro do “Império”, não só no sentido político mas também no ético e cultural, uma profunda modificação antropológica, uma mestiçagem e hibridação das populações, uma metamorfose biopolítica. Já que o capitalismo está em todos os lugares, é possível contestá-lo de qualquer lugar. Imigração ilegal: irregularidade ou crime? Por coincidência, durante o ano no qual ocorreu o incidente em Barajas, dividi minha casa com uma cidadã francesa que, durante um período, chegou a ficar em situação irregular no país. Acompanhando de perto sua angústia por conta das dificuldades para se conseguir um visto de trabalho aqui – os requisitos são muitos e difíceis de se cumprir e a ausência do visto de trabalho dificulta a conquista de um emprego, num processo de retroalimentação –, pude descobrir como a vida de imigrante, ainda que europeu, é por natureza sofrida. Com o convívio com minha amiga francesa, ficou bem claro para mim que um dos fatores que levam alguém a se tornar um “ilegal” são as barreiras institucionais à legalização de sua situação no país hospedeiro. Infelizmente, tais barreiras obrigaram minha amiga a desistir do Brasil. Felizmente, ela não o fez depois de 18 meses encarcerada e nem está impedida de retornar nos próximos anos, como aconteceria comigo se fosse pega habitando ilegalmente qualquer país europeu após a entrada em vigor da Diretiva de Retorno. Eis a diferença entre o “berço da civilização” e o “território da barbárie”: neste, imigração ilegal é uma 123 124 • BARRADOS irregularidade, naquele, um crime. O medo e a revolta provocados por tais políticas de imigração somente afastam pessoas e empobrecem os relacionamentos humanos. Migração Segundo Ong, a oscilação entre neoliberalismo como exceção e exceção ao neoliberalismo cria uma deformidade social de inclusão e exclusão que transforma expatriados prósperos em um tipo ideal de cidadão numa comunidade estrangeira, e imigrantes com baixa qualificação em máquinas de trabalho excluídas do mundo social. Esses imigrantes, classificados como não cidadãos, são privados de qualquer tipo de proteção por parte do Estado em cujo território vivem. É importante ressaltar que refugiados e imigrantes forçados a sair de seu país por motivos econômicos são os que mais necessitam de garantia de direitos, apoio contra exploração no trabalho e outras formas de abuso. Estes marginalizados, excluídos globalmente – pois não possuem condições de continuar em seu país e são rejeitados na nova comunidade – sofrem com as piores condições de vida e são negados à proteção humana da cidadania legal. Esta, em um contexto de crise humanitária, é somente um dos diversos esquemas de revaloração humana. Cidadãos de segunda classe, segundo Benhabib,94 podem ser considerados membros do povo soberano por vínculos culturais, familiares e religiosos ou não, por falta de identidade com o povo (escravos africanos nas Américas, por exemplo). 94 BENHABIB, S. (2004) The right of Others. Patricia Rangel • Em relação à incorporação ou exclusão dos imigrantes, não podemos deixar de lado a relevância que possui a educação. Trata-se de um aspecto central da assimilação que compreende uma forma institucional de transformação de imigrantes em europeus. De fato, dos milhares de refugiados e imigrantes empobrecidos, os que conseguem, mesmo que timidamente, ascender em alguma sociedade do mundo europeu, são aqueles que tiveram formação acadêmica considerável. A educação interpreta um papel relevante tanto para melhorar as condições de vida dos imigrantes quanto para moldar suas mentes e fazê-los se encaixar nos padrões da cultura dominante dessa sociedade. A questão da imigração à luz das mutações do capitalismo Segundo Ong,95 a ordem neoliberal negou a determinadas populações e lugares o usufruto de benefícios gerados pelo desenvolvimento capitalista. Os imigrantes ilegais viveriam em outra dimensão, como exceções ao liberalismo e do liberalismo. Hall96 questiona em que medida as identidades culturais nacionais estariam sendo afetadas pela globalização no fim do século XX e início do XXI. Ele aponta um complexo de forças e processos de mudança que atravessam fronteiras integrando comunidades e organizações em novas combinações, tornado o mundo mais interconectado. Esse processo de “globalização” implicaria num afastamento necessário da ideia clássica de 95 Ibid. 96 HALL, S. (2006) A identidade cultural na pós-modernidade. 125 126 • BARRADOS “sociedade” e em sua substituição por uma perspectiva que se concentra na forma como a vida social é ordenada ao longo do espaço e do tempo. Tudo isso resultaria na compressão de distâncias e escalas de tempo, e implicaria em mudanças nas identidades. Assim, ainda para Hall, as identidades nacionais estariam se desintegrando ao mesmo tempo em que seriam, com outras identidades locais ou particularistas, reforçadas pela resistência ao processo de globalização. De qualquer forma, as identidades nacionais estariam em declínio e sendo substituídas por novas identidades híbridas. A localização permanentemente temporária de imigrantes e refugiados como fonte de exclusão Quando um imigrante, voluntário ou involuntário, ou um asilado chega ao país hospedeiro, acredita que seus sofrimentos, de qualquer natureza, ficaram para trás. Contudo, o que lhe aguarda é, na maioria das vezes, mais sofrimento. Seu status de não cidadão ou cidadão de segunda classe, numa localização permanentemente temporária, lhe impede de criar raízes e se desenvolver de forma plena, configura uma fonte eterna de exclusão. No caso um refugiado, o indivíduo não pode voltar ao seu país porque suas formas de subsistência foram destruídas. Para ele, não há um caminho promissor pela frente, pois nenhum governo vê com bons olhos o fluxo de milhões de indivíduos desprovidos de condições materiais adentrando as fronteiras de seu país. Sem Patricia Rangel • identidade definida, esses novos moradores são estigmatizados. Suas identidades originais dificultam a busca por uma identidade nova e mais adequada à realidade que se apresenta. O medo como o combustível no qual queimam violência e exclusão do estrangeiro No mundo contemporâneo, cada vez mais as pessoas se encontram desgastadas e temerosas em relação ao futuro, ofuscado pela neblina que cobre suas esperanças, e buscam desesperadamente um responsável para seus problemas e preocupações. Ninguém melhor que o outsider pode cumprir esse papel: o estrangeiro, que possui disposições morais distintas, cujas ações são imprevisíveis, ele sim rouba empregos e traz o crime. Segundo Bauman,97 a incerteza das buscas existenciais, que atormenta todos os humanos, é potencializada com a presença de estranhos visíveis e próximos. O sentimento de insegurança e a falta de perspectiva estimulam a xenofobia, servem de combustível no qual queimam o ódio e o desprezo ao elemento estrangeiro. Os imigrantes seriam uma fonte inesgotável não só de ansiedade, mas também de uma agressividade que permanece adormecida na maior parte do tempo. O medo do desconhecido, que necessita ser escoado por canais confiáveis, é despejado sobre os forasteiros, que simbolizam o não familiar, o opaco, a ameaça em si. É encarcerando e deportando os estrangeiros que se pode restaurar a segurança e a estabilidade que 97 BAUMAN, Z. (2004) Amor Líquido. 127 128 • BARRADOS foi perdida. Quando uma categoria de forasteiros é expulsa do convívio de uma comunidade, exorciza-se o fantasma da incerteza e o monstro da insegurança, como se um ato de violência solucionasse, e não aprofundasse, um problema multifacetado e complexo. A não cidadania como produto da história A exclusão dos estrangeiros na Europa é um problema multifacetado e complexo, produto de um longo processo histórico. Nos últimos 200 anos, aqueles que não conseguiram se transformar em cidadãos foram sendo tomados como problema e tratados como tal. Aceitos como simplesmente um mal a ser erradicado, esses não cidadãos foram combatidos não só pelo Estado hospedeiro, mas por outras potências que respaldam a visão do imigrante como problema e direcionam sua atenção para preservar a inviolabilidade do que Bauman chama de trindade território-Estado-nação. Como dito anteriormente, toda aposta na pureza produz sujeira. O medo do surgimento dos monstros produzidos pela trindade permitiu que o poder soberano encarnado nos Estados impusesse regras de imigração absurdas. O trabalho dos Estados em produzir, com a ajuda de instituições políticas e sociais, identidades centradas na noção de territorialidade, obteve sucesso em impedir a emergência de princípios éticos globais que, aliados à inexistência de uma rede institucional global (agências globais de controle democrático eficazes, sistema jurídico global etc.), fazem com que o surgimento de uma comunidade global permaneça incubado como uma utopia. Patricia Rangel • Segundo Eric Hobsbwam,98 apesar de não ser um fenômeno novo, a xenofobia foi reforçada pelos intensos movimentos migratórios na Europa e nos Estados Unidos. Há uma longa tradição de hostilidade à imigração em massa, despertada pelo medo da ameaça que os imigrantes representam à identidade cultural e coletiva. A ideologia do capitalismo globalizado e dos mercados livres, adotada pelos principais Estados, fracassou em estabelecer a livre movimentação da força de trabalho, ao contrário do que aconteceu com as mercadorias. Em todos os países de regime democrático, a frase “serei duro com o crime” se tornou um trunfo nas eleições. As promessas e as ações são feitas no sentido de aumentar o número de cadeias, de policiais e da duração das sentenças, de impedir a imigração, cortar direitos de asilo e naturalização (motivadas pelo argumento que o crime é praticado por forasteiros, baseado num estereótipo que tem suas raízes no ódio étnico). A Diretiva do Retorno segue a lógica eleitoreira que busca aplacar a insatisfação de ordem econômica e a insegurança dos milhões de europeus temerosos. E não se trata de um fenômeno novo – grande parte do tempo e da energia dos governantes de países da União Europeia foi gasto com o planejamento de formas mais sofisticadas de fechar as portas do continente e de processos mais eficazes para se livrar de refugiados e migrantes. Tempos atrás, por exemplo, o ministro do Interior do Reino Unido, David Blunkett, chegou a ameaçar suspender a ajuda aos 98 HOBSBAWM, E. (2007) Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo: Companhia das Letras. 129 130 • BARRADOS países que não resgatassem seus “imigrantes desqualificados em busca de asilo”. Na realidade, culpar os estrangeiros por todos os aspectos da doença social dos tempos contemporâneos tem se tornado um hábito global. E as patologias sociais não são poucas: radicalização da individualização, alienação, anomia, desencantamento, miséria espiritual, perda do sentimento do mundo, perda da liberdade, perda da comunidade. Bauman99 cita o interessante exemplo dado por uma pesquisadora para a Reforma Europeia: “os alemães culpam os poloneses, os poloneses culpam os ucranianos, os ucranianos culpam os quirguizes, que, por sua vez, culpam os usbeques”. A redução do direito de asilo político e a recusa dos migrantes econômicos como resultado da falta de estratégia dos governos europeus Podemos ter certeza que a nova norma será acompanhada de um acirramento no controle de imigração nos aeroportos europeus. Deportações e expulsões maculam as credenciais internacionais dos países, então a maior parte dos governos prefere fechar as portas para os que batem nelas em busca de abrigo ou de uma vida nova. Daí a tendência atual de reduzir o direito de asilo político de forma drástica e da recusa taxativa ao ingresso dos chamados “migrantes econômicos”, ou migrantes voluntários. Na realidade, essa tendência não expressa uma nova estratégia em relação à imigração, mas sim uma ausência dela por 99 BAUMAN, Z. (2004) Amor Líquido.. Patricia Rangel • parte dos governos europeus, e devemos admitir que as manifestações de insurgência violenta em nível global contribuíram para justificá-lo. Além de ladrões de empregos, portadores de doenças contagiosas e criminosos comuns, os estrangeiros, após os ataques 11 de setembro, são frequentemente suspeitos de terrorismo. O caso do brasileiro Jean Charles de Menezes é exemplo disso. Ele foi morto em Londres pela Scotland Yard, que alegou tê-lo confundido com um suposto terrorista árabe. O elemento estranho é tomado de antemão como perigoso, que precisa ser detido ou exterminado, se permitido. O que as autoridades europeias não percebem, ou fingem não perceber, é que o problema não desaparecerá com o fechamento de fronteiras. Os refugiados não podem ser desativados ao apertar de um botão e continuarão sendo alvo fixo para o escoamento do excesso de angústia da população do país hospedeiro. O fundamentalismo é essencialmente antimoderno e infrutífero, para Peter Demant.100 Este sustenta que proteger militarmente o “mundo moderno urbanizado” contra atentados de fundamentalistas islâmicos, por exemplo, é necessário, porém não é suficiente para mudar a relação entre o Islã e o Ocidente. São necessárias mudanças estruturais que permitam um relacionamento menos desigual, que levem a repensar as relações. Essa coexistência pacífica só será possível se baseada no respeito mútuo e na celebração da diferença, valores primordiais embutidos na modernidade multicultural. A comunicação entre a Europa e o sul deve ser autêntica e implicar em reformas internacionais concretas. Ainda seguindo 100DEMANT, P. (2004) O Mundo Muçulmano. São Paulo: Contexto. 131 132 • BARRADOS as sugestões de Demant, uma coexistência que seja ativa deve se basear no conhecimento do “outro”, no exame de seus elementos de identidade e da compatibilidade com os mesmos. Da sedução do conto da aldeia global e da (im)possibilidade de uma humanidade unida por uma cidadania cosmopolita Muitos estudiosos contemporâneos têm destacado a dominação do ponto de vista da sedução, não da sujeição. Incorporamos ideias e mitos acerca de um mundo globalizado, de distâncias curtas, sem barreiras, no qual poderíamos transitar livremente em busca de novas experiências e aprendizados. Contudo, cada vez mais uma cidadania global e um direito cosmopolita parecem distante da realidade de nosso mundo. Poucos meses depois de nosso retorno do cárcere em Barajas, tive a oportunidade de ler um excelente artigo escrito por Bruna Nunes,101 aluna brasileira em uma universidade espanhola. Ela narrava com clareza suas impressões sobre a experiência no exterior e analisava as motivações que a levaram a optar por cursar a pós-graduação na Europa. Suas palavras sintetizavam o meu sentimento, e creio que de meus companheiros de mestrado, quando recebemos a aprovação dos trabalhos pela comissão de avaliação do congresso da Associação Portuguesa de Ciência Política. Dizia ela que havia sido seduzida pelo conto da aldeia global, pela atração da cidadania cosmopolita e pela ideia da suspensão de fronteiras. Ela teria, assim como nós, se esquecido do fato que 101Artigo publicado no jornal O Globo, em 25/06/2008. Patricia Rangel • nenhum avanço tecnológico é capaz de transformar as antigas e sólidas estruturas da desigualdade social e cultural no mundo. Teria sido a aprovação da Diretiva de Retorno a responsável por acordá-la de seu sonho idealista. No meu caso, despertar desse sonho ocorreu de forma um pouco mais agressiva, mas creio que o resultado tenha sido o mesmo. Apesar de entristecer-me com os resultados e o significado da aprovação dessa norma, fico feliz por saber que, pelo menos, ela teve a função de chamar a atenção dos povos do sul para a situação absurda que se apresenta diante de nós. Como muitos outros, eu e Nunes pensamos que políticas de imigração como esta, destinadas ao controle da imigração ilegal e das fronteiras, não são efetivas. A ausência de normas que regulem a situação dos “ilegais” e o endurecimento do controle jogam esses indivíduos, já tão fragilizados por sua situação econômica e pelo sofrimento causado pela exclusão social, nas mãos de quadrilhas especializadas em extorquir o pouco que lhes restou, incrementando assim o lucrativo negócio das redes de tráficos de pessoas. Além disso, esse tipo de política alimenta a crescente xenofobia nos Estados europeus, legitimando a culpa atribuída aos estrangeiros por todos os males sociais que emergem nesses territórios. Por fim, ela joga uma pá de cal no projeto de cidadania cosmopolita idealizado por Kant há 200 anos e que, em determinados momentos da história, começou a ser colocado em prática. Falamos em projeto e não sonho porque, por mais distante que pareça estar de nós, a ideia de um mundo no qual a espécie humana esteja unida por meio de uma cidadania comum não é mais absurda do que seu oposto. Afinal, por mais clichê que isso possa parecer, um sonho que se sonha junto é realidade. 133 134 • BARRADOS E é disso que se tratam os projetos políticos: de sonhos que se sonham juntos. Sei que hoje essa ideia está muito mais para uma utopia do que para um possível projeto político da humanidade. Certamente não serei eu a clamar “cidadãos do mundo inteiro, uni-vos”. E agora cá estou eu, com minha humanidade recuperada, voltando para o Rio após uma semana produtiva de debates e palestras do evento em Belo Horizonte, no qual, mesmo que modestamente, me senti parte importante, sem a qual o congresso teria sido de alguma forma mais pobre. Afinal, é assim que um indivíduo que tem seu reconhecimento devidamente situado costuma se sentir. E, perdendo-me nessas divagações, desejo que esse projeto um dia seja posto em prática. Creio que não viverei para isso, mas gostaria de pensar que ele é possível. Não consigo me conformar com o fato de ver, assim como disse a colega mestranda na Espanha, meus filhos impedidos de encher suas malas com as experiências que eu (antes de Barajas) enchi a minha. Vê-los participar do conto da aldeia global através apenas de seus computadores, será indubitavelmente triste. Barajas se tornou, para mim e para muitos outros, sinônimo de prisão. Espero que em breve, para todos e todas, Barajas volte a ser o nome de um aeroporto, porta de entrada para um mundo de experiências e oportunidades. Upon arriving to the melting pot I get penciled in as a goodamn white Now that I am categorized Officer gets me naturalized Now that I’m living up in God knows where Sometime it gets hard without a friend But as I am lurking around Hoptza! I see another immigrant punk! There is a little punk rock mafia Everywhere you go She is good to me and I am good to her... Legalize me! Realize me! Despite the living up in USA I’m still holding up in all my ways I gotta friends, we gotta band We still make sound you can’t stand Without banging on some big old pot Without getting out of bed But I’m relaxed, I’m just lurking around Hoptza! I see another immigrant punk! There is a little punk rock mafia Everywhere you go She is good to me and I am good to her... Legalize me! Realize me! Party! Of course we immigrants wanna sing all night long Don’t you know the singing salves the troubled soul? So I’m relaxed, I’m just lurking around I got a method and you don’t You got a dictionary kicking around? Look up the immigrant, immigrant, immigrant punk! (“Immigrant Punk”, Gogol Bordello) Referências bibliográficas ADORNO T.; HORKHEIMER, M. (1995) Dialectic of Enlightenment. New York: Continuum. ______. (2000) A Indústria Cultural - O Iluminismo Como Mistificação de Massas. In: ADORNO, T. et al., comentários e seleção de Luiz Costa Lima. Teoria da cultura de massa. São Paulo: Paz e Terra. AGOSTI, H. P. (1984) Ideologia e Cultura. Lisboa: Livros Horizonte. ANDERSON, B. (1983) Imagined Communities. London: Verso. ARBEX, J. (1995) O poder da TV. São Paulo: Scipione. ARENDT, H. (1989) As origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras. BARLOEWEN, C. (2001) Um mundo uniploar? A cultura como fator da realpolitik. Le Monde Diplomatique, novembro de 2001. BAUMAN, Z. 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Para a polícia, era somente uma operação Patrícia Rangel, estudiosa e militante feminista é doutoranda em Ciência Política na Universidade de Brasília, mestre pelo antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Mineira de Juiz de Fora, sempre se considerou uma pessoa do mundo. Sua opção pela carreira acadêmica contribuiu para que ela se tornasse uma “cigana estudiosa”, como costuma brincar. Inglaterra, Rio de Janeiro, Brasília e Buenos Aires são alguns dos lugares que ela já chamou de lar. Fora isso, já conheceu boa parte do continente americano e da Europa: considera viajar, BARRADOS • Patricia Rangel de rotina – afinal de contas, um terço dos brasileiros que residem no exterior são imigrantes ilegais; para a grande mídia, mais uma matéria inusitada; mas para Patrícia, essa detenção na fronteira euro- Um ensaio sobre os brasileiros inadmitidos na Europa e o conto da aldeia global peia foi uma experiência traumática e transformadora. Graças a sua sensibilidade, ela foi capaz de entender seu caso como universal. Tendo sentido na pele o que significa ser detida arbitrariamente, em seu retorno ao Brasil, realizou um percurso teórico (via Foucault, Bauman, Negri e outros) para reconceitualizar o que havia acontecido com ela e transformar sua própria experiência em um estudo de caso etnográfico da injustiça que tantos imigrantes de países em desenvolvimento sofrem ao visitar a “Fortaleza Europa”. Barajas não é Auschwitz nem Guantánamo, mas no extremo todos podem ser considerados variações do campo que separa o “Nós” dos “Outros”. Ao mesmo tempo em que esse livro pode ser lido como uma investigação sociológica sobre a “terra de ninguém” que separa a barbárie da civilização, ele também é um relato do quanto custaram a Patrícia seus 15 minutos de fama. além de um vício, uma expressão de sua condição humana, como já havia argumentado Kant há mais Fredéric Vandenberghe de 200 anos. Aos 17 anos, foi estudar inglês em Professor visitante de sociologia Londres e desde então não parou mais em casa. Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ Pelo menos até ser arbitrariamente barrada em Barajas, experiência sobre a qual fala neste livro.