Ao invés de realizar uma apresentação de 20
minutos em Portugal, Patrícia Rangel foi detida
no aeroporto de Barajas, Espanha, por mais de 48
horas. Para a polícia, era somente uma operação
Patrícia Rangel, estudiosa e militante feminista é
doutoranda em Ciência Política na Universidade de
Brasília, mestre pelo antigo Instituto Universitário de
Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e bacharel em
Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Mineira de Juiz de Fora,
sempre se considerou uma pessoa do mundo. Sua
opção pela carreira acadêmica contribuiu para
que ela se tornasse uma “cigana estudiosa”, como
costuma brincar. Inglaterra, Rio de Janeiro, Brasília
e Buenos Aires são alguns dos lugares que ela já
chamou de lar. Fora isso, já conheceu boa parte do
continente americano e da Europa: considera viajar,
BARRADOS • Patricia Rangel
de rotina – afinal de contas, um terço dos brasileiros que residem no exterior são imigrantes ilegais;
para a grande mídia, mais uma matéria inusitada;
mas para Patrícia, essa detenção na fronteira euro-
Um ensaio sobre os brasileiros
inadmitidos na Europa e o
conto da aldeia global
peia foi uma experiência traumática e transformadora. Graças a sua sensibilidade, ela foi capaz de
entender seu caso como universal. Tendo sentido
na pele o que significa ser detida arbitrariamente,
em seu retorno ao Brasil, realizou um percurso
teórico (via Foucault, Bauman, Negri e outros)
para reconceitualizar o que havia acontecido
com ela e transformar sua própria experiên­cia
em um estudo de caso etnográfico da injustiça
que tantos imigrantes de países em desenvolvimento sofrem ao visitar a “Fortaleza Europa”.
Barajas não é Auschwitz nem Guantánamo, mas
no extremo todos podem ser considerados variações do campo que separa o “Nós” dos “Outros”.
Ao mesmo tempo em que esse livro pode ser lido
como uma investigação sociológica sobre a “terra
de ninguém” que separa a barbárie da civilização,
ele também é um relato do quanto custaram a
Patrícia seus 15 minutos de fama.
além de um vício, uma expressão de sua condição
humana, como já havia argumentado Kant há mais
Fredéric Vandenberghe
de 200 anos. Aos 17 anos, foi estudar inglês em
Professor visitante de sociologia
Londres e desde então não parou mais em casa.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
Pelo menos até ser arbitrariamente barrada em
Barajas, experiência sobre a qual fala neste livro.
BARRADOS
Patricia Rangel
BARRADOS
Um ensaio sobre os brasileiros
inadmitidos na Europa e o
conto da aldeia global
Brasília, DF • 2012
© Patrícia Rangel, 2012
Projeto gráfico: Paulo Roberto Pereira Pinto
Impressão: Athalaia Digital
Tiragem: 100 exemplares
Ficha Catalográfica
P196b Rangel, Patrícia.
Barrados / Patrícia Rangel. Brasília : Editorial Abaré, 2012.
160p.
ISBN 978-85-89906-15-9
1. Ciências sociais. I. Título. II. Autora.
CDU 300
Abaré Editorial
Telefones: (61) 3879.6886 / (61) 9986.3632
E-mails: [email protected] / [email protected]
Ao embaixador espanhol
no Brasil, Ricardo Peidró
“Na semana passada, dois mestrandos foram barrados ao passar por Madri
(Espanha) com destino a Lisboa (Portugal). O caso detonou um mal-estar
entre Brasil e Espanha no que diz respeito à imigração”.
(Folha de S. Paulo, 11/03/2008).
“2.800 brasileiros repatriados pela Espanha entre de janeiro a março 2007.
97.715 pessoas repatriadas pela Espanha entre de janeiro a março 2007.
70.000 brasileiros residem na Espanha.
250.000 turistas brasileiros visitam a Espanha a cada ano.
A Espanha é o segundo maior investidor do Brasil,
só perde para os Estados Unidos”.
(Publico.es, 10/03/2008)
“As an academic organization BRASA is concerned about the implications
of this broad trend of intolerance. It now affects Brazilian scholars who
have no apparent interest in emigrating to Europe but nonetheless are detained and deported from a hitherto-friendly European capital while trying
to carry on essential academic work: meeting with
colleagues at conferences”.
(Trecho da nota da Brazilian Studies Association - BRASA)
“O embaixador espanhol no Brasil alegou que nossos estudantes, assim como
muitos outros brasileiros,’não são prisioneiros’, estando ‘alojados em boas
condições de higiene’. Dispensamos estas estranhas preocupações diplomáticas. Infelizmente, ele não soube explicitar adequadamente as razões desta
retenção de nossos estudantes, nem a dureza do tratamento que receberam;
nem parece que o poderia, porque tudo indica serem casuísmos arbitrários,
manipulados por policiais pouco afeiçoados ao Estado de Direito”.
(Trecho da carta de protesto do Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro)
“O tratamento recebido pelos alunos do Iuperj contraria a longa tradição
de intercâmbio e cooperação acadêmica entre Espanha e Portugal
com os países latino-americanos e caribenhos”.
(Trecho da nota de repúdio do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais)
“Ricardo Peidró [embajador español en Brasil], en declaraciones a Público,
asegura que (...) no ha habido ‘discriminación ninguna con los brasileños’
y ‘que han sido tratados correctamente’. El tono de los españoles, afirma
Ricardo, ‘es agresivo para los latinoamericanos’ y en momentos tensos
puede ‘ser malinterpretado”.
(Publico.es, 10/03/2008)
“O chanceler Celso Amorim declarou ontem que o tratamento dispensado aos brasileiros por autoridades da União Europeia (UE) deixou de ser
um assunto consular para o governo Luiz Inácio Lula da Silva e tornou-se
um tema político. Depois de uma audiência na Comissão de Relações
Exteriores da Câmara dos Deputados, ele afirmou que o Brasil adotará o
princípio da reciprocidade caso a Grã Bretanha exija visto para brasileiros”.
(O Estado de S. Paulo, 18/06/2008)
“A SBPC, que tem como missão o incentivo ao desenvolvimento da
ciência no Brasil e no mundo, condena veementemente as atitudes das
autoridades espanholas, que em muito desrespeitam a integridade desses
jovens cientistas, representantes de universidades e institutos de
pesquisas tradicionais no país”.
(Trecho da nota de repúdio da Associação
Brasileira de Ciência Política – ABCP)
“O fato, já de conhecimento público, ocorrido com os dois estudantes e
motivo de manifestações e protestos de toda a comunidade acadêmica, é
mais um arbítrio a que estamos sujeitos, e merece nossa atenção
para além dos membros envolvidos”.
(Trecho da nota do Sindicato dos Sociólogos
do Estado do Rio de Janeiro – SINDSERJ)
“A SBS está encaminhando solicitação à Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência para que encaminhe ao Governo Brasileiro, em nome
das sociedades científicas, a nossa manifestação de repúdio e pedido para
que gestões diplomáticas sejam feitas para evitar que tais fatos se repitam”.
(Trecho da nota da Sociedade Brasileira de Sociologia – SBS)
Sumário
1. Quem é gente pra gente? 19
2. Liberdade pra quem e até onde? 41
3. Cadernos do cárcere 53
4. Que soberania? 75
5. O espetáculo 99
6. Jihad vs McWorld 115
Referências bibliográficas 137
Referências de jornais e revistas 143
Repercussão 145
Prefácio
Em março de 2008, ao tentar entrar no chamado Espaço Schengen1 para participar de um congresso em Portugal, fui detida no
aeroporto madrilenho de Barajas pela polícia de fronteira da Espanha, que me acusava injustamente de não preencher os requisitos
para entrar no território.2 A despeito da ação do corpo diplomático
brasileiro, fui mantida sob o poder das autoridades espanholas, em
um sequestro legitimado pelas regras da União Europeia. O caso
foi denunciado e obteve reações consideráveis ao passo em que
vinha à tona um enxame de outros abusos e arbitrariedades cometidas pelas autoridades europeias em relação a visitantes do Sul
motivadas pela xenofobia.
1
Espaço limitado pelo Acordo de Schengen, convenção assinada por países da Europa.
O Schengen estabelece a livre circulação de pessoas dentro dos países signatários,
isentando-as de passar pelo controle de imigração nas fronteiras entre os mesmos
após ser admitido em um deles. Por exemplo, se tivéssemos passado pela Espanha,
não precisaríamos apresentar passaporte ao ir para Portugal e Alemanha. O Acordo
de Schengen foi originalmente assinado por Bélgica, França, Alemanha, Luxemburgo
e Países Baixos, em 14 de junho de 1985. Atualmente, o espaço Schengen é formado
por 24 países: Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha,
Estônia, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Islândia, Itália, Letônia, Lituânia,
Luxemburgo, Malta, Noruega, Polônia, Portugal, República Tcheca e Suécia. Mônaco,
San Marino e Vaticano foram incluídos por serem enclaves. Em Helgoland (Alemanha),
Svalbard (Noruega), Groelândia e Ilhas Faroé (Dinamarca), o tratado não vigora.
2
Segundo comunicado da Comissão Europeia de Turismo, brasileiros não precisam de
visto para entrar em qualquer um dos países europeus integrantes do Schengen e
as formalidades, válidas para todos os destinos, são: portar passaporte com validade
superior a seis meses; ter bilhete aéreo de ida e volta com permanência máxima de
90 dias; apresentar comprovante de alojamento; ter seguro saúde (varia de país para
país); e comprovante de meios financeiros para manter-se durante a estada no país.
Cumpríamos todos essas exigências na citada ocasião.
12
• BARRADOS
A experiência de perder injustamente a liberdade, de sofrer
maus-tratos e acompanhar de perto um atrito diplomático despertou-me para as diversas questões que motivaram este livro: o
que faz de uma pessoa “um de nós” e o que faz dela “um outro”?
Qual a influência da cultura nas políticas de migração? Qual o verdadeiro significado de entrar em outra comunidade: expressão
de liberdade humana ou invasão? O que define alguém como
ameaça? Por que direitos humanos são aplicados somente àqueles que possuem status de cidadão? A existência de um conflito
multicultural contribui para a formação de identidades coletivas
contemporâneas? O embate entre soberania popular e soberania
territorial tem uma solução?
Como diz Zygmunt Bauman,3 as pessoas tecem suas memórias de mundo usando o fio de suas experiências. É isso que me
proponho a fazer: com base em fragmentos de lembranças da
minha experiência, montar um compêndio de reflexões, de forma
a transcender minha vivência e relacioná-la a um problema estrutural, que demanda soluções coletivas. Trata-se de uma tentativa
de resolver uma questão que é, ao mesmo tempo, particular e global. Contudo, limitar-me-ei a reunir uma série de esboços e retalhos
de pensamentos, em vez de apresentar argumentos logicamente
encadeados nos tradicionais padrões acadêmicos. Minha intenção
não é explicar os acontecimentos vivenciados, mas sim explicitar
e problematizar o que observei. Trata-se mais de uma bricolagem
livre do que de uma fotografia. Para ilustrar, vale citar a metáfora
3
BAUMAN, Z. (2004) Amor Líquido. Sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar.
Patricia Rangel •
da teoria como uma pintura e do estudioso como um pintor, que
adiciona mais ou menos tinta para retratar uma imagem. Sem me
preocupar em pintar um quadro idêntico ao meu objeto, considerando que isso é impossível, adicionarei mais cores a determinados
aspectos e menos a outros, de acordo com a necessidade, o arcabouço teórico e o interesse por cada um dos assuntos abordados.
De forma livre, relato minha experiência em Barajas (que cumpre
aqui o papel de etnografia) e lanço mão dos trabalhos de Foucault,
Bourdieu, Taylor, Giddens, Bauman, Benhabib, Negri, Castells, Cox,
Wallerstein, Fraser, Hall, Ong e outros autores e outras autoras. Meu
texto não possui nenhuma ambição além do esforço de se debruçar sobre as interpretações que esses autores já apresentaram para
os fenômenos relacionados à minha experiência pessoal, de forma
a entendê-los um pouco melhor. Não adotei nenhuma vertente
teórica em especial nem fui fiel ao conjunto de pressupostos que
compõem uma “grande família” interpretativa, de forma a tornar a
avaliação mais fluída e permitir uma análise transversal de temas
que aparentemente não se relacionam, para fazê-los dialogar em
torno de um eixo. Eixo este, que, por sua vez, é uma experiência de
vida, o que justifica o caráter pessoal do texto – escrito em primeira
pessoa do singular –, que se apresenta como uma “conversação
interior” tal qual apresentada por Margareth Archer, apontando a
complexidade das experiências humanas e das ciências sociais.
O livro está dividido em seis grandes partes, nas quais diversos
temas são abordados sem a ambição de esgotar os debates já construídos em torno deles. No primeiro capítulo, dedico-me a reflexões acerca de sentimento de respeito, estima, cidadania, situações
de desrespeito e preconceito, igualdade e desigualdade, e abordo
13
14
• BARRADOS
conceitos de reconhecimento, exclusão, comunidades imaginadas,
e a dicotomia turistas x vagabundos. O segundo é dedicado a um
debate sobre a liberdade, o direito de ir e vir, o cosmopolitismo e o
significado de entrar em uma comunidade estrangeira. No terceiro
capítulo, relato minhas impressões sobre a detenção em Barajas e
faço referência à lógica do encarceramento, ao significado da punição, às relações entre detentos, a poder e disciplina, distribuição
espacial dos ambientes e técnicas de dominação e controle sobre
o sofrimento humano. O quarto capítulo trata dos conceitos de
soberania e sua aplicação (ou descompasso com a realidade), de
identidades nacionais, inclusão e exclusão, além de abordar anomalias e novas formas de soberania. No quinto capítulo, analiso o
papel da mídia como denunciante dos problemas relacionados à
migração e ao papel do Estado e sua função de combater/reforçar
os posicionamentos das autoridades e visões de mundo. O desfecho do ensaio se dá, no sexto capítulo, com um olhar sobre imigração e xenofobia, sobre a aprovação da “Diretiva de Retorno” pelo
Parlamento Europeu e os possíveis significados e implicações da
mesma, e com uma reflexão sobre o “conto da aldeia global” e as
possibilidades de surgimento de uma cidadania cosmopolita.
De antemão, desculpo-me com o leitor que esperava travar
contato com um artigo acadêmico e se depara com um texto tão
heterodoxo. No entanto, é impossível estabelecer um distanciamento entre o objeto e o observador neste caso. Por isso, agradeço ao professor Frédéric Vandenberghe, que lecionou a disciplina para a qual esse livro foi produzido como trabalho de final
de curso, e foi extremamente compreensivo com meu estado de
espírito. Agradeço também ao professor Charles Pessanha, que
Patricia Rangel •
incentivou a publicação do trabalho. Agradecimento especial
para Fábio Barcelos, pelas incontáveis revisões e sugestões ao
texto. Muito obrigada ao Paulo Roberto, que além de fazer todo o
projeto gráfico do livro, foi o grande responsável por me impedir
de desistir de sua publicação e por me convencer a seguir em
frente. Por fim, sou grata à Editorial Abaré, por acolher esses escritos, e à Tereza Vitale por sua atenta revisão.
Mais de três anos se passaram desde que estive injustamente
presa no aeroporto de Madri e fui repatriada. Nesse meio tempo,
as arbitrariedades das autoridades espanholas e de outros Estados europeus não cessaram. Muitos outros brasileiros foram submetidos a inexplicáveis maus-tratos, graças ao respaldo de figuras
como o embaixador espanhol no Brasil, Ricardo Peidró. Entre elas,
as religiosas que seguiam para a Alemanha em missão evangelizadora; o músico Guinga, que perdeu dois dentes após ser agredido por um policial do posto da Polícia Nacional Espanhola no
aeroporto Barajas; o padre Jeferson Flávio Mengali, que, além de
ficar detido, teve de suportar os policiais dizendo que suas roupas
religiosas eram para o desfile de carnaval; a física Patrícia Camargo
Guimarães, que me antecedeu nesta infeliz aventura e também
denunciou o abuso das autoridades que a mantiveram presa por
três dias sem qualquer justificativa; e a senadora Patrícia Saboya,
cuja posição política não a impediu de se tornar mais uma vítima
de maus-tratos e constrangimentos impostos pela polícia italiana
no aeroporto de Roma; entre inúmeros outros brasileiros injustiçados. É a essas pessoas que, na realidade, dedico este livro.
Patrícia Rangel, agosto de 2011
15
1. Quem é gente pra gente?
Cada um vê o mundo com os olhos que a vida ensinou.
Carlos Scliar
Quando o estranhamento do respeito
desencadeou lembranças e reflexões
sobre a experiência com o desrespeito
Hoje é 10 de junho de 2008 e estou embarcando num voo para
Belo Horizonte, onde participarei de um congresso sobre estudos
feministas. O estranhamento ao entrar na aeronave é inevitável.
Todas essas comissárias sorrindo para mim, desejando boa viagem, tratando-me com naturalidade e respeito, como se eu fosse
gente. Na última vez em que coloquei os pés num avião, o sentimento e o tratamento eram diferentes.
Fazia frio naquele dia de inverno madrilenho, um sol que
iluminava mas não aquecia, como lâmpada de geladeira, e um
vento congelante de cortar os ossos. Quando desci do camburão da polícia de fronteira da Espanha, ouvi do oficial que nos
conduzia um sarcástico “sua viagem de férias acabou” e fui entregue a outro policial. Este nos encaminhou até o avião que nos
traria de volta ao Brasil, onde nos tornaríamos atração barata
para os passageiros do voo ao passarmos escoltados pela escadinha da tripulação e, somente em nossos assentos, sermos deixados pelos policiais. Os passageiros eram gente de todos os tipos.
20
• BARRADOS
Jovens bonitas, famílias, homens de negócios, aventureiros. Diferentes entre si, porém iguais em seus status de cidadãos, tratados
como tais, vivendo seu cotidiano, sem imaginar os abusos que
ocorrem no universo paralelo daquele aeroporto.
Tristes, felizes ou indiferentes, aquelas pessoas todas pareciam
ter um papel social, ou pelo menos eram reconhecidas enquanto
seres humanos. Eu, pelo contrário, não me sentia gente. Não sei
se pelo fato de a tripulação e os passageiros me olharem como
um bicho ou pelo fato de eu mesma me sentir assim naquele
momento. Vejamos. Era uma sexta-feira e eu não tomava banho
desde a terça, ninguém se dirigia a mim a menos que fosse aos
berros, estava injustamente presa, privada violentamente de
gozar da liberdade inerente à minha condição de ser humano,
não tinha meus documentos, minha bagagem e meus pertences,
não podia me comunicar com ninguém, comia mal, dormia mal,
sentia frio, sentia medo, sentia revolta, ninguém podia me ouvir,
ninguém viria me salvar. É, eu não me sentia muito gente não.
Enquanto isso, lá estava eu, sendo colocada no avião pelo policial, como alguém sem autonomia, um elemento que precisa ser
controlado. O policial nos entregou a comissários de bordo que,
dias antes, me sorriam e desejavam boa viagem, mas que agora
faziam questão de demonstrar asco enquanto nos conduziam
aos últimos assentos, ao lado do banheiro, cujo cheiro ao longo
de diversas horas de voo não é exatamente agradável.
“Sua viagem de turismo acabou”. Foram essas as últimas palavras que ouvimos em solo espanhol. Digo, em território internacional, pois estávamos “em trânsito”, ou seja, em um território que
não pertence ao país de origem nem ao país de destino.4 Obra
Patricia Rangel •
do destino ou não, a frase condensa as características da nossa
estadia nas dependências da polícia de fronteira: ironia, desdém,
maus-tratos, humilhação e ignorância. Durante dois dias, fomos
tratados como gado. Não tivemos o direito de nos pronunciar e
muito menos de contestar as falsas afirmações a nosso respeito. A
nós não era dirigida nenhuma palavra que não ordens.
Fomos maltratados porque era natural que o fôssemos
Durante nossa detenção na prisão nem um pouco improvisada de Barajas, muitas vezes me questionei de onde vinha tanto
desrepeito por parte dos policiais com os quais travávamos contato diariamente. É óbvio que não se espera que numa prisão lhe
tratem com carinho, mas, considerando que as salas por onde
passei não constituíam oficialmente um centro de detenção, perguntava-me de onde vinha a legitimidade para as ações violentas
daqueles funcionários. Foi quando percebi que estávamos sendo
maltratados porque era normal que fôssemos. Éramos desiguais
e assim devíamos ser tratados.
Como sustentou Pierre Bourdieu,5 as desigualdades são perpetuadas por mecanismos sutis de dominação que naturalizam
e legitimam todo tipo de diferença. Tais diferenças já estavam
4 Segundo a Recomendação do Conselho da União Europeia de 22 de dezembro de
1995 relativa à concertação e à cooperação na execução das medidas de afastamento,
“trânsito” pode ser entendido como “passagem de uma pessoa não nacional de um
Estado-membro pelo território ou zona de trânsito de um porto ou aeroporto de um
Estado-membro”. Jornal Oficial nº C 005 de 10/01/1996 p. 0003-0007.
5
BOURDIEU, P. (1992) O poder simbólico, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
21
22
• BARRADOS
incorporadas e engatilhadas por aqueles guardas muito antes de
eles sonharem em nos ver. Não havia qualquer sentimento de
identificação ou de solidariedade em relação a nós. Não éramos
como seus filhos ou sobrinhos. Éramos outra coisa. É como quando
você mata uma barata. Não há qualquer relação de afeto ou identidade entre você e a barata. Ela te incomoda, você a elimina. Porque
é natural que seja assim.
No sistema de relações sociais, vigoram moralidades distintas
para grupos diferentes, o que permite a alguns oportunidades limitadas e a outros, todas as liberdades. A diferenciação extrema entre
certos grupos sociais nos remete a Robert Merton6 e a seus conceitos de intragrupo e extragrupo. Há o grupo tomado por referência,
ou intragrupo, e o grupo estranho, o extragrupo. Na realidade, não
há nada significativo que os diferencie. Contudo, certos aspectos
são reforçados e geram preconceito e marginalização. As características típicas do extragrupo são encaradas necessariamente
como defeitos. Se um indivíduo deste grupo apresentar as mesmas
qualidades valorizadas pelo intragrupo, estas serão distorcidas por
uma “alquimia moral”, processo através do qual qualidades sociais
“de ouro” são transformadas em “defeitos de chumbo” e vice-versa.
Enquanto jovens latino-americanos, visitantes do sul empobrecido, éramos membros de um extragrupo. Não havia reconhecimento entre as partes, uma vez que esse conceito está
vinculado à atribuição de respeito e autoestima, à formação
de identidades. Quando um grupo sofre com o não reconhecimento (misrecognition), é projetada nele uma imagem redutora,
6
MERTON, R. (1970) Sociologia: teoria e estrutura. São Paulo: Mestre Jou.
Patricia Rangel •
desvalorizada. Também podemos aplicar aqui a ideia de habitus
de Bourdieu: um sistema de estruturas cognitivas e disposições
duráveis inculcadas desde sempre, que pré-molda oportunidades e proibições, liberdades e limites, de acordo com condições
objetivas; um esquema de conduta que gera práticas individuais
e coletivas, que motiva uma série de comportamentos possíveis
dentro dos limites de determinadas regularidades. Esse sistema
produz a “mágica social” que transforma pessoas em instituições
feitas de carne. É o caso do filho mais velho e herdeiro em oposição ao mais novo, do homem em oposição à mulher, do policial
europeu em oposição ao migrante latino: são diferenças instituídas que tendem a se transformar em distinções naturais.
O que faz de uma pessoa “um de nós”
e o que faz dela “um outro”?
Segundo Aihwa Ong,7 migrantes e cidadãos de baixa qualificação são elementos excluídos dos mecanismos neoliberais e
constituídos como populações em trânsito passíveis de serem
excluídas. Robert Castel já havia chamado a atenção para o fato
de que há um desenvolvimento diferenciado de tratamento para
populações distintas nos Estados neoliberais avançados. Essas
diferentes formas de tratamento maximizam o que é lucrativo e
minimizam o que não é. Em poucas palavras, incentivam a rejeição dos visitantes com potencial de causar gastos ao Estado.
7 ONG, A. (2006) Neoliberalism as exception: mutations in citizenship and sovereignty.
Durham and London: Duke Univeristy Press.
23
24
• BARRADOS
Ao sermos assim considerados, nossa entrada foi legitimamente negada. Não importa o quanto tentássemos mostrar que
portávamos todos os documentos necessários e que cumpríamos todos os requisitos exigidos para ingressar na União Europeia: a desconfiança do policial que aplica as regras é respaldada
pelo mesmo sistema institucional que as criou. É a palavra deles
contra a nossa. Enquanto seres de fora da comunidade, não
podíamos medir forças com eles.
Ainda é bem clara a lembrança de minha “entrevista” (um inter­
rogatório após o qual a repatriação é oficializada), realizada creio que
27 horas após ser detida. Ela demonstrou a política do “atira antes e
pergunta depois” adotada pelas autoridades responsáveis. A primeira
coisa dirigida a mim foi uma advertência por “mau comportamento”,
uma repreensão por conta de suposta algazarra que eu teria feito em
meu primeiro dia em Barajas. Tive que utilizar toda a minha capacidade cognitiva para deduzir que estavam se referindo ao momento
em que entrei na prisão e comecei a chorar e protestar por estar em
uma situação estranha sem compreender os motivos. Por ser impedida de anotar o telefone da embaixada brasileira e de, nessa única
ocasião, ter reagido de forma truculenta por conta do absurdo. Até
então, não me dava conta que estava em um estado de exceção,
em uma terra sem regras claras e sem lugar (como já foi citado, estávamos em trânsito, não em território espanhol). Deveria ter desconfiado antes, quando fui minuciosamente revistada por uma policial à
qual entreguei todos meus pertences, inclusive o antibiótico com o
qual fazia tratamento. Fiquei apenas com a roupa do corpo e ainda
ouvi a policial dizer que eu era tratada como bicho porque me comportava como bicho. Mais uma vez, faltou reconhecimento.
Patricia Rangel •
O papel do reconhecimento e os efeitos de sua ausência
Para Charles Taylor e Axl Honneth,8 a intersubjetividade de
cada indivíduo depende amplamente do reconhecimento que
lhe é dado. Sem ele, podemos nos sentir e ser não reconhecidos
ou estigmatizados causando sofrimento físico, moral ou social que
passa a ser canalizado para uma única demanda por reconhecimento. De uma forma geral, políticas de reconhecimento se relacionam à noção de “reconhecimento cultural”, ou seja, à garantia
por parte do Estado de que grupos étnicos, raciais e nacionais
tenham asseguradas condições de preservação e exercício dos elementos culturais compartilhados pelos membros do grupo (suas
práticas, crenças e valores).
Cabe aqui a interpretação de Jünger Habermas9 sobre a função do direito como elemento de transformação, de transmutação das demandas políticas em realidade para alterar o sistema.
Desta forma, os indivíduos poderiam desenvolver plenamente
suas potencialidades sem prejuízo de suas identidades. Por outro
lado, quando não há reconhecimento cultural, surgem representações negativas do grupo.
A teoria de Honneth10 está inserida no seio da teoria crítica, que
visa dar centralidade à noção de reconhecimento num projeto
8 Apesar de Honneth não falar de reconhecimento cultural, considerei interessante
trazer alguns de seus argumentos para a seção.
9
HABERMAS, J. (2002) A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Edições
Loyola.
10 HONNETH, A. (2003) Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais.
Trad. Luiz Repa. São Paulo.
25
26
• BARRADOS
de emancipação. A luta pelo reconhecimento é relacionada a um
conflito social de caráter moral e busca a emancipação do indivíduo, além do desenvolvimento de relacionamentos que beneficiem tanto a inclusão social quanto a autorrealização. A partir da
sistematização do status psicológico de um indivíduo em distintas experiências interativas e de tensões que surgem no processo
de formação de uma subjetividade autônoma e autorrealizada,
o autor mostra que a identidade só se forma integralmente se o
sujeito desenvolve autoconfiança, autorrespeito e autoestima no
processo de interação social. Esses três aspectos precisam surgir
em três esferas: amor, direito e solidariedade.
Aqui, “amor” é tomado de forma abrangente, contemplando os
relacionamentos nos quais há um vínculo emocional forte entre
poucas pessoas, como um estágio no qual os indivíduos são unidos
por suas carências. Há uma tensão entre dependência e interdependência que só é superada quando o sujeito consegue expressar suas necessidades e desejos sem temer o abandono do outro.
O amor que é encontrado nessa esfera, segundo Honneth, faz com
que o indivíduo desenvolva autoconfiança e garanta assim a base
emocional necessária para a sua participação na vida pública. Portanto, se ocorre um abuso físico, psicológico ou moral, o que está
em jogo é a perda desta confiança e da habilidade de reconhecer
suas capacidades enquanto sujeito integrado na sociedade.
Para Nancy Fraser, o problema do conceito de reconhecimento
em Honneth é que ele não captura todas as injustiças ao enfatizar
o desenvolvimento psicológico de um indivíduo, perdendo assim
seu caráter emancipatório. Ele não daria conta de enfrentar os
modelos institucionalizados de valores culturais e simbólicos, além
Patricia Rangel •
das injustiças econômicas que colocam certos indivíduos em uma
condição de subordinação. Fraser, ao transferir o reconhecimento
para uma forma específica de justiça e descartar o alinhamento apenas no eixo da autorrealização, supera Honneth. Para ela, justiça é
tomada como uma forma de status, o que nos permite examinar ao
mesmo tempo padrões de subordinações cultural e institucional.
A conclusão que nos permite a leitura de Fraser é a de que
uma política de redistribuição não está somente ligada à injustiça
de classe, mas também à política de identidades. Noções de raça
e de gênero são, portanto, coletividades bivalentes porque sofrem
injustiças tanto no âmbito cultural quanto no econômico. Daí a
necessidade de se formular remédios e soluções que ajam concomitantemente, uma vez que tanto a falta de reconhecimento
quanto as desigualdades materiais constituem impedimentos para
a participação plena na arena pública. Sem tal estabelecimento da
igualdade em diversos patamares e a criação de “iguais”, não há
como esperar o surgimento de uma participação igualitária.
A dimensão da dignidade e do respeito depende de
uma noção de reconhecimento que muitos europeus
não desenvolveram em relação aos povos do sul
Com base no tratamento cruel que recebemos das autoridades policiais em Barajas, concluo que a dimensão da dignidade
e do respeito depende de uma noção de reconhecimento que,
infelizmente, muitos europeus não desenvolveram em relação aos
povos do sul. Daí os maus tratos que sofremos em Madri, as perseguições de turcos por skinheads alemães, o assassinato de Jean
27
28
• BARRADOS
Charles de Menezes pela polícia londrina, entre outros. Esses atos
somente cessarão com mudanças nas práticas sociais e com transformações na dimensão jurídica e nos controles institucionais.
Mudanças estruturais devem implicar mudanças qualitativas
no tipo de habitus para todos os grupos sociais envolvidos. As
disposições de comportamento internalizadas e incorporadas
implicam em uma noção de dignidade que, quando compartilhada por todos os membros de diversos grupos, conseguem
homogeneizar a economia emocional de uma sociedade. É essa
dignidade que faz com que indivíduos levem o outro em consideração, atitude que se apresenta como fundamento do reconhecimento social para que a regra jurídica de igualdade seja eficaz e
encha de sentido a noção moderna de cidadania. Essa dimensão
de dignidade e respeito mútuo tem de ser disseminada para que
a dimensão jurídica de cidadania seja efetiva em uma sociedade.
Ou seja, controles institucionais só são eficazes se a percepção de
igualdade estiver internalizada e presente no cotidiano.
Merton11 argumenta que os remédios morais não servem ao
físico. Assim, a criação de novos valores e a transformação cultural podem ajudar, mas são processos lentos e graduais que não
devem ser tomados como base para a superação da marginalização. As instituições, estas sim, podem ajudar a alcançar mudanças
de comportamento. É preciso dar um fim planejado e deliberado
aos mitos, pois eles só se cumprem na ausência de controles institucionais eficazes. Desta forma, em circunstâncias administrativas
e institucionais adequadas, a marginalização pode ser suplantada.
11 MERTON, R. (1970) Sociologia.
Patricia Rangel •
Em relação a modificações nas regras que regulam a migração, até
a polícia espanhola concorda quanto à sua necessidade. “Admito
que cometemos abusos, portanto, as regras têm que mudar para
que não haja mais casos como o seu”, foi o que ouvi de um dos
poucos policiais que conversaram comigo na última noite de
minha “viagem de turismo”. Essas, sim, eu gostaria que tivessem
sido as últimas palavras a ouvir em solo espanhol, digo, em território internacional.
Respeito é manifestação do amor ao próximo e,
consequentemente, do amor próprio
Bauman12 fala do amor ao próximo não só como um dos preceitos fundamentais da vida civilizada. Para mim, parece bem claro que
não amamos o próximo nem como fundamento da vida em comunidade nem como indício de qualquer outra coisa. Na verdade, só
demonstramos afeto, boa vontade ou respeito pelos que são parecidos conosco, aqueles com os quais compartilhamos determinadas
disposições morais ou culturais. Essa identificação faz com que seja
possível amá-los como amamos a nós próprios. Já aos estranhos,
que não nos atraem por nenhum valor ou significado adquiridos
durante experiências pessoais, é difícil amarmos. Aliás, por serem
tão diferentes, é natural esperar que na primeira oportunidade eles,
os “outros”, me humilhem ou demonstrem sua superioridade. É daí
que vem o excesso de diferenciação entre membros da comunidade e forasteiros, e o medo crescente em relação a estes.
12 BAUMAN, Z. (2004) Amor Líquido.
29
30
• BARRADOS
Apesar de exigir um salto de fé, argumenta Bauman,13 amar o
próximo pode ser o ato fundador da humanidade e a passagem
do instinto de sobrevivência para a moralidade. Se somos respeitados pelos outros, é porque devemos possuir algo de único, de
especial. Tal ato faz-nos pensar que nossa opinião importa, que
não somos uma cifra, que fazemos diferença e não podemos ser
substituídos ou descartados com facilidade. Esse pensamento
nos faz acreditar que o mundo seria mais pobre sem nós ou
sem cada um dos habitantes do planeta. Amando-nos profundamente, a exortação de amar o próximo como a nós mesmos
evoca um desejo de ver no outro sua dignidade reconhecida e
confirmada por, assim como nós, ser portador de um valor singular e insubstituível. Amar o outro como a si mesmo significa respeitar a singularidade e valorizar as diferenças como elementos
enriquecedores do mundo. Esse raciocínio é construtivo e agregador. Seu oposto é negativo e contribui para a gênese de movimentos destrutivos como o terrorismo global, que possui raízes
na segregação e no sentimento de marginalização. Quando se é
excluído de uma comunidade, torna-se cada vez mais difícil amar
seus membros como a si mesmo.
É ilegítimo pensar que a cultura do “outro” possui capacidade
limitada de expressão e que nossa interpretação, a partir de
recursos de nossas próprias categorias, é capaz de compreender
elementos dessa cultura. Quando realizamos esse tipo de julgamento, o resultado não pode ser muito diferente das repatriações
em massa levadas a cabo pela União Europeia, que representa o
13 Ibid.
Patricia Rangel •
homem branco como mais forte e as outras etnias como inferiores. Essa representação, como veremos adiante, reforça a hegemonia dos países ricos e legitima seu papel civilizatório. Somente
quando estivermos abertos para outras culturas é que poderemos
aderir a um centro de perspectiva. O conflito que existe entre o
“eu” e o “outro” faz parte de uma interpretação e de um exercício
eterno de compreensão.14 Quanto às saídas para uma visão de
mundo etnocêntrica, Everardo Rocha15 sugere que sejam praticadas ideias de relativização, ou seja, pensar a diferença, ver as coisas como suscetíveis à transformação e superar as visões preconceituosas que congelam as diferenças entre os seres humanos.
Entretanto, o mundo em que vivemos não é povoado
por pessoas que amam o próximo como a si mesmas.
Ele é dividido entre turistas e vagabundos
A rejeição sistemática de povos do sul pela União Europeia
representa uma tendência de se exorcizar o medo coletivo
gerado com a presença do forasteiro, do estranho, do que simboliza a insegurança dos tempos modernos. Os turistas, que levam
o capital ao seu destino e aquecem a economia, são bem-vindos.
Já os vagabundos, que usufruem dos recursos do país visitado,
não. Se você é um turista e foi confundido com vagabundo, tudo
o que tem a fazer é tentar superar o trauma em sessões de terapia
14 RICOEUR, P. (1975) Introdução. As culturas e o tempo. Estudos reunidos pela Unesco.
Petrópolis: Vozes.
15 ROCHA, Everardo. (2004) O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense.
31
32
• BARRADOS
e bater às portas da Europa nas próximas férias. Afinal, somente lá
se pode fazer turismo decente. Ou então pode tentar questionar
seu lugar neste mundo e problematizar a relação entre cidadania e direitos humanos, como estou fazendo agora. Por que esses
direitos só são aplicados àqueles que possuem status de cidadão?
Essa lógica cruel de distinção entre os turistas e os vagabundos,
entre os desejáveis e os indesejáveis, apontada por Bauman, exporta
para o sistema internacional a lógica de divisão que observamos
todos os dias em nossas cidades, entre os que temem e os que são
temidos. Da minha casa ao Iuperj, ambos no bairro carioca de Botafogo, num percurso de um quarteirão, passo por prédios de classe
média alta com segurança 24 horas e por uma favela. Observo os
“cidadãos de bem” atravessarem a rua para evitar pedintes e moradores de rua, vejo gente rica e gente pobre, sempre separadas. Tudo
isso em um quarteirão. A solução mais imediata e simples para lidar
com o medo gerado pelas diferenças é separar, segregar, impedir
que os socialmente inferiores possam ultrapassar os territórios limitados a eles. A construção de condomínios, cada vez mais presentes
no Rio de Janeiro e em outras capitais brasileiras, segue essa lógica:
garantem proteção contra a presença dos indesejáveis, dos vagabundos, por meio da construção de muros e da contratação de serviços de segurança. Assim, pode-se, com eficiência, separar quem
está dentro e quem está fora do espaço e da carga de significado
contida nele. Os moradores dos condomínios estão dentro de uma
ilha de calma e segurança, fora da vida ameaçadora e desconfortável da cidade. A sensação de controle é o principal atrativo desses
condomínios, feitos para quem busca a segurança de estar efetivamente separado daquilo que não se deseja ver.
Patricia Rangel •
Há também a divisão entre turistas e semituristas
Sim, o mundo está dividido entre “turistas” e “vagabundos”, e
para se ter acesso aos maravilhosos destinos turísticos do mundo
desenvolvido é preciso ser um turista completo. Certa vez, estávamos eu e um grupo de jovens brasileiros desfrutando do verão
holandês. Era agosto de 2002 e eu tinha acabado de concluir o
curso intensivo de inglês que frequentava em Londres. Passar os
últimos dias de sol em Amsterdã pareceu-me o desfecho perfeito para minha estadia na Europa, após meses de muito estudo.
Encontrei um grupo de alunos de Juiz de Fora, minha terra natal,
para fazermos juntos a viagem. Durante nosso city tour, escolhemos fazer um daqueles passeios pelos famosos canais da cidade
e que, segundo nossa guia, culminava com a visita a um museu
de diamantes e à loja anexa a ele. No grupo, além de nós, havia
pessoas de outros países europeus e alguns norte-americanos.
Após o agradável passeio e a visita ao museu, a guia pediu aos
outros turistas que a acompanhassem e nos informou que, para
nós, o passeio havia acabado ali. Intrigada, perguntei o motivo, ao
que fui prontamente respondida: “ora, obviamente jovens como
vocês, de países subdesenvolvidos, não possuem condições de
adquirir diamantes”. Ou seja, não poderíamos desfrutar totalmen­te
do passeio, como os outros, porque, sendo jovens de países
pobres, não éramos turistas completos – seríamos meio turistas ou
semituristas. Retruquei que aquilo era um absurdo, uma discriminação, que ela não podia nos julgar pela nossa imagem e assumir
que não tínhamos dinheiro. Ainda muito imatura e arraigada de
preconceitos e insegurança, defendi minha posição de turista com
33
34
• BARRADOS
unhas e dentes, reforçando assim essa dicotomia cruel que gera
tratamento diferenciado para cidadãos de mesma origem, abrindo
as portas para os “turistas” e batendo-as na cara dos “vagabundos”.
Hoje, obviamente, meu discurso seria outro, uma vez que
tenho consciência da lógica do absurdo que leva jovens brasileiros das classes altas a receberem tratamento digno, mas que, ao
mesmo tempo, submete imigrantes voluntários e involuntários
do mesmo país a um status de lixo humano. Foi preciso que eu
conhecesse o outro lado para me dar conta disso.
A empatia e as semelhanças de um grupo
são aliadas para expulsar o diferente
Não é preciso ir muito longe para perceber que a lógica de
segregação praticada pelos condomínios e pelas autoridades
Europeias é a mesma: busca-se separar o indesejável e manter o
que provoca medo fora das fronteiras, das ilhas de calma e paz, de
semelhança e mesmice, em meio a um oceano de diferença, como
diria Bauman.16 Uma vez que todos são iguais, estão prontos para
defender seu espaço da maneira como foi criado. O que os “cidadãos de bem” europeus querem não é muito diferente do que
os moradores de condomínios desejam. Eles buscam manter seu
cotidiano livre do contato com imigrantes inferiores e potencialmente perigosos. O que as autoridades de seus países fazem é o
trabalho das empresas de segurança: manter a ameaça fora dos
muros do condomínio.
16 BAUMAN, Z. (2004) Amor Líquido.
Patricia Rangel •
Esse processo, na medida em que isola determinadas comunidades, sejam moradores de condomínios ou populações de
países, só aumenta o medo do outsider. Quanto mais as pessoas
permanecem em um ambiente uniforme, menor sua capacidade
de conviver com outros hábitos e símbolos, e maior seu horror
em se confrontar com estranhos: praticar a separação territorial
significa preservá-la e alimentá-la.17
As comunidades imaginadas e a identificação
de uma multidão de desconhecidos
Para dar conta do mistério da identificação de uma multidão de desconhecidos que acreditam compartilhar algo importante, Benedict Anderson18 criou o conceito de comunidades
imaginadas. É essa categoria que nos permite entender como
milhões de pessoas que não se conhecem se percebam como
nós, como algo do que se faz parte. Para Anderson, a desintegração de vínculos impessoais teria atingido um estágio tão avançado que se tornou a única forma de se construir o convívio e
o único tipo de defesa humana contra a solidão. Somente reunindo desconhecidos como potenciais parceiros em rituais de
confissão, que revelam um interior familiar, e pressionando-os a
compartilhar íntimas sinceridades é que se pode transformá-los
em um de nós.
17 Ibid.
18 ANDERSON, B. (1983) Imagined Communities. London: Verso.
35
36
• BARRADOS
É aqui que observamos, como fez Richard Sennett,19 a substituição de “interesses compartilhados” por uma “identidade compartilhada”. É quando a empatia e as semelhanças de um grupo
seleto são aliadas para rejeitar os que não fazem parte dele. Todos
aqueles que são diferentes – estrangeiros, desconhecidos, estranhos, cidadãos de segunda classe, indivíduos socialmente inferiores – podem e devem ser afastados.
A identidade pode mudar de acordo com a ocasião
Mas nem tudo é assim tão simples. Há momentos em que
percebemos que há uma infinidade de “eus” nos habitando. O
indivíduo pode ser analisado de posições dissonantes. Daí parte
uma crítica ao conceito de habitus em Bourdieu: o mesmo sujeito
que vai à ópera pode assistir novelas, não há uma coerência
total nas ações das pessoas. Não se pode reduzir indivíduos a
uma prática. Stuart Hall,20 por exemplo identifica diversos tipos
de noções de identidade: o sujeito do Iluminismo (baseado em
uma concepção individualista do sujeito e de sua identidade), o
sujeito sociológico (que, refletindo a crescente complexidade do
mundo moderno, era uma concepção “interativa” da identidade
e do eu – a identidade seria formada na interação do “eu” com a
sociedade) e o sujeito pós-moderno (ou seja, as identidades são
diferentes em momentos distintos). Segundo a última, haveria
dentro de cada um de nós uma multiplicidade de identidades,
18 ANDERSON, B. (1983) Imagined Communities. London: Verso.
20 HALL, S. (2006) A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A.
Patricia Rangel •
muitas contraditórias, que empurram em diferentes direções: sou
mulher, mas também sou parda, sou brasileira etc.
Em determinados momentos, essas identidades podem se
chocar: por exemplo, qual identidade pesaria mais na escolha
de um candidato a prefeito? É melhor votar numa candidata de
direita ou num homem de esquerda? Votar num homem negro
de direita ou numa mulher branca de esquerda? Eis um problema
colocado pela complexidade da noção de identidade do sujeito
pós-moderno. As identidades, por serem contraditórias, cruzam-se e deslocam-se mutuamente, atuando tanto na sociedade e
em seus grupos estabelecidos quanto dentro da cabeça de cada
indivíduo. Uma identidade singular (classe social, por exemplo)
pode se alinhar com uma “identidade mestra” ou central, mas
nem sempre isso é possível. Já que a identidade muda de acordo
com a ocasião ou a forma como o sujeito é representado ou
interpelado, a identificação não é automática, mas sim politizada,
apontando a diferença entre uma política de identidade e uma
política de diferença.
A humilhação e o sofrimento de alguns não
pode servir de legitimação para qualquer
política ou instrumento institucional
Não adianta, para nenhum fim político, destacar o abuso
cometido contra uma pessoa ou um grupo e limitar um problema
coletivo a um caso individual. Que o argumento acima não abra
margem para se pensar que a minha experiência de sofrimento
não mereça ser publicizada e destacada. Nenhum clamor de
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38
• BARRADOS
tormento pode ser maior do que o clamor de uma pessoa, já dizia
Bauman.21 Também nenhum tormento pode ser maior do que
aquele que somente uma pessoa é capaz de suportar: o mundo
não pode sofrer tormento maior do que o de uma única alma.
A embaixadora dos Estados Unidos na ONU justificou o ataque ao Iraque em 2003 argumentando que não se pode fazer
uma omelete sem quebrar os ovos. O que precisamos perceber
é que, se quebrar os ovos significa causar morte, fome, dor ou
sofrimento emocional para outros seres humanos, a omelete simplesmente não pode ser feita. Nenhuma omelete, causa ou objetivo, pode valer esse preço. Ao depreciar a dignidade humana,
qualquer causa perde seu sentido.
Como afirmou Bauman,22 o que pode ser válido para omeletes
não serve para tratar do bem-estar e da felicidade de pessoas. A
ação dos governantes de grandes países ou de simples funcionários policiais não pode ser interessada, precisa ser ética – uma
manifestação inatamente estimulada da humanidade, que não
serve aos propósitos de alguém nem é guiada por expectativa
de lucro ou glória. Com essas palavras, fecho este capítulo reafirmando que não importa o número de vítimas e o tipo de sofrimento a elas imposto: o abuso não pode ser respaldado pela legitimidade dos mecanismos institucionais. Ele simplesmente não
pode ocorrer.
21 BAUMAN, Z. (2004) Amor Líquido.
22 Ibid.
2. Liberdade pra quem e até onde?
... lê génie inquiet et ambitieux des Européens...
impatient d’employer les nouveax instruments de leur puissance...23
Jean-Baptiste-Joseph Fourier
O dia em que a expressão de nossa liberdade
humana virou a perda arbitrária dela
Na noite do dia 04 de maio de 2008, eu e o companheiro de
mestrado Pedro Luiz Lima saímos do Rio em direção a Lisboa, onde
apresentaríamos trabalhos em um congresso da Associação Portuguesa de Ciência Política (APCP). Havíamos comprado uma passagem que fazia conexão em Madri, como todos os voos da Ibéria.
No dia seguinte, aos desembarcar no aeroporto de Barajas, fomos
arbitrariamente impedidos de seguir viagem. Ficamos prisioneiros
por 50 horas até sermos levados ao avião que nos repatriaria. Intermináveis horas de detenção injustificada e maus-tratos.
Na chegada a Madri, ao passarmos pelo posto de controle de
imigração, fomos perguntados sobre o motivo da viagem, acomodação, recursos financeiros e respondemos tudo mostrando
nossos comprovantes. Sem qualquer motivo ou justificativa, o
funcionário que nos atendeu disse que teríamos que ir a uma
sala nos fundos do saguão para carimbar nossas passagens. Ele
23Tradução: (...) o gênio irrequieto e ambicioso dos europeus (...) impaciente para empregar
os novos instrumentos do seu poderio (...)
42
• BARRADOS
ficou com nossos passaportes e cartões de embarque. Quando
entrei na sala, ampla e fria, porém ainda com aparência de sala de
espera de aeroporto, não fazia ideia que já era uma detida. Tudo
que havia nos dito é que precisávamos carimbar as passagens
para pegarmos a conexão para Lisboa. Omitindo-nos a verdade,
a polícia nos submeteu uma incerteza que se estendeu por
intermináveis horas. Disseram-nos que, caso viéssemos a perder
nossa conexão, poderíamos embarcar no voo seguinte. Eles não
precisavam ter contado essa mentira.
Nessa primeira sala, havia somente africanos e latino-americanos. Minhas piores sensações lá, além do incômodo e do estranhamento de ser totalmente ignorada pelos policiais, foram a
fome e o medo de perder o voo. Sentimentos bestas, pensaria
eu depois. Não imaginava que, em menos de 24 horas, minha
pior sensação seria a privação total da liberdade e a destituição
da minha condição de humanidade.
Nesta sala ficamos mais de duas horas sem entender o que
estava acontecendo. Sem água, sem comida, sem comunicação.
Era um estado definitivo de espera. Os policiais chamavam de
vez em quando algumas pessoas para um pequeno escritório e
faziam perguntas, mas nossa vez nunca chegou. Quando tentávamos pedir esclarecimentos, nossas perguntas eram respondidas do mesmo jeito: com um rude e frio “Tem que esperar!”
Minha sorte é que meu colega estava calmo e tentava me
tranquilizar. Eu, por outro lado, muitas vezes fui egoísta e só pensei em meu próprio desconforto e em minha angústia. Não conseguia olhar para o lado e perceber que todos estavam assustados e ansiosos. Talvez, só por isso, não tenha me dado conta da
Patricia Rangel •
minha condição de prisioneira em Barajas. O medo me paralisou
e me cegou.
A única investida considerável que fiz nesse primeiro momento,
apesar das acusações de arruaça e mau comportamento, foi entrar
em um dos três escritórios que ficavam dentro dessa grande sala
e perguntar: “o que está havendo?” Em inglês, pois era a única língua que conseguia articular fora o português naquele momento
de tensão. Eles disseram que não falavam inglês (a propósito,
nenhum policial falava inglês, o que me parece estranho, levando
em consideração que aquela é a polícia de imigração). O policial
informou em espanhol que estavam conferindo minha documentação. Quando repliquei que minha documentação estava
em ordem e que não entendia a razão de ficar esperando tanto
tempo, ele gritou, que era a polícia que iria decidir se minha documentação estava em ordem. Foi aí que eu comecei a sentir medo
de verdade. Estava sujeita à arbitrariedade da polícia de um país
estrangeiro, para o qual o meu país não é exatamente relevante.
Eu seria absolutamente qualquer coisa que a polícia decidisse.
Quem iria questionar a legitimidade de autoridades europeias?
Eu seria uma imigrante ilegal, uma traficante de drogas ou uma
terrorista internacional perigosíssima se a polícia assim quisesse.
Seria até uma turista com a documentação em ordem indo a Lisboa para participar de um congresso, se a polícia assim decidisse.
Eu não era eu, era o que a polícia de Barajas decidisse. Eu iria até
onde a polícia permitisse: seguiria para Lisboa se eles fossem com
a minha cara ou voltaria para o Brasil se assim desejassem. Ficaria ainda, como fiquei, detida por três dias se eles quisessem me
punir por minhas perguntas inconvenientes.
43
44
• BARRADOS
As palavras de Kant sobre a liberdade de
visitar comunidades estrangeiras se calam
Segundo Ong,24 “liberdade” acabou se tornando uma palavra
que se refere a “ação econômica livre”, não à liberdade política,
assim como “liberalismo político” se tornou palavrão. Foi há mais
de dois séculos que Immanuel Kant falou, mas algumas pessoas
(entre elas, eu) ainda gostam de acreditar que hospitalidade não é
filantropia ou virtude, mas sim direito. Hospitalidade é um direito
que pertence a todos os seres humanos como participantes em
potencial de uma república mundial, um direito que regula as
interações de indivíduos pertencentes a diferentes entidades cívicas, que ocupa o espaço entre direitos humanos e direitos civis e
que delimita o espaço cívico ao reger relações entre membros da
comunidade e estranhos.
O mesmo Kant, ao observar a forma esférica da Terra, concluiu
que estávamos destinados a viver eternamente na companhia
uns dos outros e que nossos constantes movimentos reduziriam as distâncias entre os povos. A Natureza, ao nos fazer brotar na superfície de um planeta esférico, teria nos dado como
destino a perfeita união da espécie humana por meio de uma
cidadania comum: die volkommende bürgerliche Vereinigung in der
Menschengattung. Também seria uma imposição da Natureza a
visão recíproca de hospitalidade enquanto preceito supremo da
humanidade. Mais cedo ou mais tarde, acabaríamos por terminar
nos reconhecendo todos como cidadãos globais.
24 ONG, A. (2006) Neoliberalism as exception.
Patricia Rangel •
Kant deixou claro que hospitalidade é diferente de Gastrecht
(direito de permanência), de Hausgenossen (tornar-se um companheiro) e Besuchsrecht (permanência temporária). Hospitalidade
seria o direito que um estranho possui de não ser tratado como
inimigo quando chega às terras de outro. A hospitalidade seria obrigatória com base em duas premissas: 1) todos os seres humanos
possuem a capacidade de se associar; e 2) a posse da (limitada)
superfície da terra é comum a todos. Ou seja, devemos usufruir de
seus recursos em conjunto, mas a propriedade já existente deve
ser respeitada. É uma demanda de ordem moral com consequências legais na medida em que a obrigação do Estado em conceder
residência temporária a estrangeiros está ancorada em uma ordem
republicana cosmopolita que não possui um supremo Executivo
como governante.
Entrar em outra comunidade: expressão
de liberdade humana ou invasão?
Para Kant,25 o direito cosmopolita se refere a relações entre pessoas e Estados estrangeiros, diferentemente do direito de um Estado
(referente a relações entre pessoas dentro de um mesmo Estado)
e do direito das nações (relações entre Estados). Em sua Paz Perpétua, ele propõe três condições para que haja paz perpétua entre
as nações. Um deles é: das Weltbürgerrecht soll auf Bedingungen der
allgemeinen Hospitalität eingeschränkt sein, ou seja, que o direito cosmopolita seja limitado às condições da hospitalidade universal.
25 KANT, I. (1990) À Paz Perpétua. Trad. Marco A. Zingano. Porto Alegre: L&PM.
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46
• BARRADOS
Entrar em outra comunidade possui um significado de expressão da liberdade humana, não invasão ou ameaça, já dizia Kant.
Viver em um território com regras diferentes não é um ato criminoso, mas uma manifestação de nossa condição de pessoas
livres e da busca por um mundo melhor para compartilharmos.
Apesar de muitos estudiosos apontarem caminhos em direção
a um direito cosmopolita e a uma soberania relativizada, as atitudes dos governos europeus nos fazem ter a impressão de que
estamos voltando no tempo.
Contudo, esses pressupostos são inúteis para expressar o caráter
cosmopolita se indivíduos cujo status é indefinido são tratados como
criminosos pelas regras. A forma como democracias liberais tratam os
forasteiros, os estrangeiros, os “outros”, expressa a consciência moral e
a reflexibilidade política dessas sociedades. Isso nos faz perceber que
justo nem sempre é sinônimo para legal. Há uma tensão constante
entre o constitucional e o político no liberalismo. Seyla Benhabib26
fala da necessidade constante de o Estado liberal ser desafiado e
rearticulado. Somente quando um grupo reclama ser incluído em
um círculo de direitos do qual era inicialmente excluído é que se percebe a limitação da tradição constitucional e sua validade.
A despeito de eventuais ressalvas em relação à sua obra, não
podemos deixar de admitir que Kant foi um visionário. Sua afirmação de que não se pode negar a entrada de um estranho
quando isso causa sua destruição foi incorporada pela Convenção de Genebra sobre o Status dos Refugiados de 1951.
26 BENHABIB, S. (2004) The Rights of Others: Aliens, Residents and Citizens. Cambridge:
Cambridge University Press.
Patricia Rangel •
A tarefa moral do direito universal à hospitalidade se torna
imperfeita, pois permite exceções, das quais a mais relevante é
a autopreservação. São os Estados soberanos que interpretam o
que constitui risco à vida ou à liberdade e isso cria um problema:
o destino daquele que busca asilo se torna vulnerável à boa vontade do Estado ao qual pede refúgio. Ao formular políticas de
asilo e regras de migração, os governos podem lançar mão de tal
direito para inviabilizar a entrada de estranhos.
Com base nesse argumento, defensores da soberania nacional territorial justificam o direito dos Estados de policiar suas
fronteiras da forma que lhes convier. O direito à hospitalidade
obriga a aceitação da permanência temporária pacífica, mas não
da estadia permanente, considerada por Kant um privilégio. Esse
pressuposto é um argumento a favor dos ferrenhos defensores
da soberania num sentido vestifaliano.
Kant morreu há dois séculos
Infelizmente, as premissas de Kant foram escritas há muito
tempo. Hoje, na prática, a política de migração é intimamente
relacionada a uma política de conformismo e de disciplina dos
estrangeiros e da oposição, baseada em critérios de identidade.
Como argumentou Bauman,27 o mundo não prestou atenção
em Kant – preferimos homenagear nossos sábios com placas e
monumentos a seguir suas advertências. Nos dois séculos que
se seguiram aos escritos do filósofo, os Estados se ocuparam em
27 BAUMAN, Z. (2004) Amor Líquido.
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48
• BARRADOS
desenvolver invenções modernas de controle como passaporte,
visto e controles de imigração, utilizando mecanismos de identificação individual como formas de burocratização essenciais à
consolidação e à centralização dos Estados nacionais modernos.
John Torpey28 sustenta que, por meio da criação do passaporte,
os Estados garantiram o monopólio do controle sobre a circulação dos cidadãos, processo que teve como consequência o
surgimento de distinções entre cidadãos e não cidadãos. Em vez
de aceitarmos nossa “natureza” e nosso destino enquanto cidadãos do mundo, preocupamo-nos em controlar os movimentos
de pessoas como prerrogativa do poder do Estado, levantando
barreiras à entrada dos que desejamos manter longe e colocando
nessas barreiras guardas bem treinados, armados e disciplinados
para desempenhar bem seu papel.
Eis um grande erro, como argumenta Benhabib,29 pois o sistema internacional de Estados e povos é caracterizado por interdependência. Esse movimento, deveria nos levar a transcender a
perspectiva de territorialidade, não a fechar fronteiras, favorecendo
a disposições de um regime de soberania vestifaliano (Estado livres
e iguais, com autoridade absoluta sobre todos os assuntos relativos
ao seu território, para os quais relações com outros países são contingentes), em vez de uma soberania internacional liberal (interdependência entre Estados, valores, comuns, observância dos direitos
humanos e respeito aos princípios democráticos).
28 TORPEY, J. (2002) The Invention of Passport – Surveillance, Citizenship and the State.
Cambridge: Cambridge University Press.
29 BENHABIB, S. (2004) The right of Others.
Patricia Rangel •
Como esse movimento de transcendência não vigora, a
soberania serve para que interesses de Estados xenófobos justifiquem o endurecimento de políticas e regras de migração, como
é o caso da Espanha e da União Europeia de uma forma geral.
A isso se relacionam também conceitos de soberania popular e
soberania territorial. Este significa controle sobre um determinado
território, enquanto aquele afirma que todos os submetidos às
leis são também seus autores. Como então ser afetado por uma
política da qual não se participa da formulação ou sobre a qual
sequer se abre a possibilidade de opinar?
Na época de Kant, a visão orientadora do homem foi as­sociada
à universalidade da liberdade individual. Tendo esse pres­suposto
sido esquecido ao longo dos séculos posteriores, fomos encarcerados, segundo Bauman,30 na nova prisão trina território-Estado-nação, sendo os direitos do homem definidos como produto
da união entre o súdito de um Estado, o membro de uma nação
e o residente (legítimo) de um território. O Estado, reafirmado e
empoderado, criou então o direito de exclusão. Como Hannah
Arendt31 afirmou, os direitos do homem, teoricamente inalienáveis, mostraram-se não aplicáveis naqueles lugares em que
há pessoas que não são cidadãs de nenhum Estado. Os direitos humanos só existem e são aplicados àqueles que possuem
status­ de cidadão. Desta forma, a comunidade humana da qual
nos falou Kant parece hoje distante e ilusória.
30 BAUMAN, Z. (2004) Amor Líquido.
31 ARENDT, H. (1989) As origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras.
49
50
• BARRADOS
O paradoxo da legitimidade democrática
A soberania republicana deveria se ocupar de unir sua vontade de pré-comprometimentos ao conjunto de normas formais
e substantivas que conhecemos como direitos humanos. Os direitos e demandas dos “outros” (estrangeiros, auxiliares da comunidade, povos subjugados etc.) são negociados sobre esse terreno
flanqueado por direitos humanos de um lado e por afirmações de
soberania por outro.
A legitimidade democrática é baseada em ilusões como a
homogeneidade dos povos e a autossuficiência territorial. Contudo, na contemporaneidade, há momentos em que a interpretação dos “direitos dos outros” acarreta transformações autor­
reflexivas.32 Assim, temos o desafio de realizar uma reconfiguração
democrática que não seja assentada em ilusões como a ideia de
autossuficiência territorial, que enfrenta o desafio de uma realidade de enorme interdependência entre os Estados. Como
afirma Ong,33 a cidadania global só será possível se promovermos
normas cosmopolitas capazes de mediar uma infinita diversidade
de tradições, interesses e comunidades políticas.
32 Ibid.
33 ONG, A. (2006) Neoliberalism as exception.
3. Cadernos do cárcere
Nada mudará a sociedade se os mecanismos de poder que funcionam fora,
abaixo e ao lado dos aparelhos de Estado a um nível muito
mais elementar, cotidiano, não forem modificados.
Michel Foucault
Lembranças de como fomos parar na prisão
em Barajas e reflexões sobre o caráter
desagregador do medo
Aquela quarta-feira, aquele 05 de março de 2008, foi o pior
dia da minha vida. Gostaria de não lembrar a situação na qual fui
destituída de qualquer humanidade, em que fui tratada como
um número, privada de comunicação com o mundo externo,
comida, água, respeito. Enfim, de vários aspectos que, unidos,
dão dignidade a uma pessoa. Continuando a narrativa interrompida pelas divagações acerca da liberdade humana, ficamos aproximadamente duas horas na primeira sala. A conexão
para Lisboa estava perdida. Lá pelas duas horas da tarde chegou
um policial que gritou para que saíssemos da sala em fila. Ouvi
rumores de que agora poderíamos nos alimentar e que a situação estaria resolvida em breve. Para variar, estávamos enganados. Em elevadores de carga, fomos levados a um andar inferior,
guiados como gado. Tudo que ouvia era os policias gritando
“passa!”. Logo estávamos do lado de fora, em fila indiana, sendo
colocados em um micro-ônibus e levados para Deus-sabe-onde.
54
• BARRADOS
Conta Foucault34 que o treinamento escolar no século XIX era
pautado por uma técnica de sinais ligados a ações unitárias e
obrigatórias, de modo a excluir qualquer representação e necessidade de palavras, criando obediência cega e pronta. Assim,
gestos, palmas ou um simples olhar serviam como comandos
que deviam ser obedecidos sem qualquer comunicação verbal.
O cotidiano em Barajas era semelhante ao treinamento escolar
arcaico: poucas palavras, nenhuma explicação, silêncio total.
O silêncio ensurdecedor dentro do veículo lotado foi o que
mais chamou atenção. Salvo exceções, podemos dizer que,
quando submetidas a situações assustadoras, as pessoas não se
comunicam, não tentam se mobilizar, agir em conjunto. Cada
um se fecha em sua própria dor e tenta “se salvar”. E lá estava eu
naquele momento, fechada e encolhida. Foram cerca de 20 minutos por uma estrada que nos guiou ao terminal antigo do aeroporto. Nessa hora, já estava destruída pela sede e pelo cansaço.
Sobre a burocracia policial, a arbitrariedade
e o “jeitinho espanhol”
Chegando ao antigo terminal, fomos levados a uma sala que
já não parecia uma sala de espera de aeroporto, mas sim uma
delegacia de polícia. Quando chegamos, já estava lotada de
outros latino-americanos. Não lembro de ver nenhuma pessoa
de outras partes do mundo nessa sala pequena e abafada, que
abrigava o triplo de gente da anterior. Nomes eram chamados
34 FOUCAULT, M. (2008) Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Editora Vozes.
Patricia Rangel •
para serem entrevistados pelos policiais. “Primeiro os hispano-hablantes”, diziam eles, depois os brasileiros. Muitas pessoas
pareciam estar sendo liberadas. Algumas inclusive sabíamos, por
conta de prévias conversas casuais, estavam de fato indo trabalhar ilegalmente na Europa. Era possível usar os banheiros do terminal antigo, bem em frente à nossa sala, mas não podíamos nos
afastar – havia policiais por todos os lados nos observando. Aos
poucos, a sala foi esvaziando, as horas foram passando, a fome
aumentando, a revolta e a humilhação também. Eu fiquei sentada no chão, o que irritou um dos guardas, que gritou para que
eu me levantasse. Indaguei a razão, ele nos xingou de cachorros,
dizendo que são cachorros que ficam no chão. Fiquei aliviada por
ele não bater na gente.
Foucault35 argumenta que o aparelho policial sempre esteve
ligado ao excesso da justiça regulamentada e que, por isso,
resistiu à reorganização do Poder Judiciário com um mínimo de
modificações. É à polícia que a Justiça impõe mais pesadamente
suas prerrogativas. É também a instituição que mais se identifica com a sociedade disciplinar: é ligada ao centro da soberania
política, mas tem um aparelho coextensivo a todo o corpo social.
O poder policial deve ser exercido sobre tudo e todos, sobre a
massa dos acontecimentos, dos comportamentos, das opiniões,
das ações. Seus objetos são as coisas de todo instante.
Apesar de não nos bater, o policial conseguiu atrasar nosso
processo. Fomos, daquela leva de brasileiros detidos, os primeiros a chegar e os últimos a sair de Barajas. É curioso notar que
35 Ibid.
55
56
• BARRADOS
muito se fala sobre um “jeitinho brasileiro” e sobre uma suposta
conduta ética exemplar por parte dos europeus. O que vi em
Madri foi, ao contrário, a existência de um “jeitinho espanhol”,
uma conduta que privilegia os que agradam, prejudica os que
incomodam e que adapta a realidade de modo a fazê-la caber
nos procedimentos.
Isso nos remete à relativização do código legal/ilegal. As
regras jurídicas frequentemente são flexibilizadas e influenciadas
pelo código econômico e político. “Para os amigos tudo, para os
inimigos a lei”. É nessa diretiva que se guiam muitos burocratas
e autoridades, fazendo possível ter a lei sem as obrigações de
sua aplicação. É o caso das constituições fictícias: sem o suporte
necessário, a Carta Magna só existe no papel. Sem a aplicação
ética por parte da polícia de fronteira, as regras de imigração da
Europa também.
Na prisão, a homogeneidade da exclusão
se manifesta em todos os aspectos
Já era noite quando um policial veio buscar os detidos restantes, nos quais estávamos incluídos. Fomos levados para um andar
superior. Eu tinha esperança de estar sendo liberada, mas não. Estávamos sendo presos sem passarmos por qualquer entrevista, sem
sermos ouvidos pelas autoridades. Quem disser que aquilo não é
uma prisão estará mentindo. O lugar não é nada improvisado para
receber um detido ou outro. É uma estrutura carcerária pronta e
eficiente. Em vez de grades, vidros, como um Big Brother. Havia uma
espécie de recepção que, na verdade, era o panóptico, cercada por
Patricia Rangel •
três grandes salas – uma ao norte, uma a leste e outra a oeste. Elas
eram fechadas com vidros, cada uma tinha dois telefones públicos,
mesas, cadeiras e dormitórios com dois beliches cada uma. A sala
leste não tinha dormitórios, era lá que os “calouros” ficavam. A sala
oeste tinha cinco dormitórios. Para lá iam os “veteranos” – quando
você ia para essa sala, significava pelo menos 24 horas de detenção.
A sala norte era a maior, tinha muitos dormitórios. Quem ia para lá
era “bacharel”, tinha mais de dois dias de experiência. Alguns estavam lá há uma semana, como o uruguaio “Pepe”.
Passamos por todas as salas. Ficamos detidos nessa prisão da
quarta até a sexta-feira à noite. Junto conosco, dezenas de outros
brasileiros e pessoas de outras nacionalidades, sobretudo da
América Latina (apesar de haver também gente de países africanos), aguardando repatriação, mantidos em condições clas­
sificadas de “inadequadas” pela diplomacia brasileira. E eu garanto,
elas eram no mínimo inadequadas. Para começar, a alimentação.
Pareceu-me que era composta dos restos das refeições servidas
nos aviões, oferecida dura e fria. Pessoas com restrições alimentares, como eu, certamente passam fome ali. Muçulmanos também
correm o risco de passar fome, se os policiais decidirem se divertir
servindo porco, como me contaram ter ocorrido dias antes. Não
foram poucas as ocasiões em que tiver de alertar um companheiro muçulmano que, bastante distraído, quase comia a carne
de porco que vinha misturada ao feijão. Na prisão, a individualidade não pode ser expressada, não existe o direito de se desviar
dos padrões da cultura dominante. É preciso que todos sejam
iguais, que você seja mais um número, mais uma cama ocupada
e mais um passaporte riscado.
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58
• BARRADOS
Em qualquer casa de detentos, o cotidiano é semelhante: os
detentos se levantam ao mesmo tempo e o guarda vem abrir as
celas. Há filas para qualquer percurso ou atividade, horários estipulados para refeições e, racionamento da ração, horário para que
todos se deitem, horário para apagar a luz e uma ronda noturna
para certificar a ordem e o silêncio do local. Nesse sentido, Barajas é
um exemplo de prisão. Lá, as crianças, os bebês de colo, os adultos,
os jovens e os idosos são submetidos à mesma rotina e ao mesmo
ambiente: do toque de recolher ao de alvorecer, passando pelas
refeições, pelas sessões de humilhação e violência.
Creio que a lógica do encarceramento seja desagradável e dolorosa para qualquer pessoa, culpada ou não. Mas devo admitir que
ela é especialmente enlouquecedora quando submetida injustamente e sem preparo. Nenhum livro ou filme é capaz de passar uma
ideia razoável do que acontece lá dentro, mesmo que não ocorra
nenhuma tragédia. Em alguma medida, estar preso é algo semelhante a estar em uma situação de escravidão – a humilhação, a obediência e o medo se fazem presentes. Um sentimento de vulnerabilidade e fragilidade se torna perene quando você é destituído de seus
documentos, colocado em silêncio, impedido de falar, e quando
você percebe que está sujeito a qualquer tipo de agressão. Por mais
insignificante que seja no sistema, ele é uma autoridade espanhola e
você, um detido sob suspeita de ingressar ilegalmente no país.
Significado da prisão: punição
Numa sociedade em que a liberdade é um bem supremo
que pertence a todos, a prisão é a pena por excelência. Retirar da
Patricia Rangel •
pessoa punida seu tempo é mostrar concretamente que a ação
do indivíduo lesou a sociedade como um todo. Prender alguém e
mantê-lo detido, privado de alimentação, aquecimento, impedi-lo de sair, de fazer amor etc. é a manifestação de poder mais delirante que podemos imaginar, escreveu Foucault.36 Nas prisões, o
poder não se esconde nem se mascara, ele é mostrado em seus
íntimos detalhes – ele é puro, totalmente justificado. Ele pode se
formular no interior de uma moral que serve de enfeite ao seu
exercício, e sua tirania aparece então como a dominação serena
da ordem sobre a desordem, do bem sobre o mal. Ainda segundo
o autor, os métodos punitivos não são simples regras do direito,
mas técnicas que possuem sua especificidade num campo mais
geral de processos de poder.
Quando as situações de pânico criam relações
que, apesar de fugazes, são intensas
Em Barajas, ficou para mim bem clara a existência do que Bauman37 chama de comunidades da ocasião, ou seja, comunidades
reunidas em torno de pânico, eventos, modas, ídolos. Unidos
por uma situação de opressão e medo, eu e os outros detidos
em Madri criamos uma afinidade instantânea, compartilhamos
emoções, confidências, trocamos objetos que amenizavam o
desconforto (quem tinha pasta de dente emprestava para quem
não tinha, quem chegava com fome ganhava comida de quem
36 Ibid.
37 BAUMAN, Z. (2004) Amor Líquido.
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60
• BARRADOS
tinha guardado, os fumantes compartilhavam os poucos cigarros salvos para os que aceitavam correr o risco de serem pegos
fumando no banheiro) e nos tornamos amigos por alguns dias.
Contudo, apesar de e-mails e telefones terem sido trocados,
nenhum contato foi mantido.
Como as máquinas de cartões telefônicos só aceitavam notas
pequenas (de dez ou cinco euros), os presos precisavam se empenhar na busca de dinheiro trocado. Como eu possuía muitas
notas de dez euros, acabei assumindo a função de cambista que,
combinada às conversas telefônicas com jornalistas e familiares,
ocupava-me o tempo. A solidariedade entre os presos é ilustrativa
da solidariedade do indivíduo da líquida sociedade moderna: as
conexões interpessoais são frouxamente atadas para que possam
ser facilmente desfeitas quando os cenários mudam.38 As relações
surgidas em comunidade de ocasião não duram mais do que as
emoções que estimularam a conjugação de interesses.
Durante os dias em que estivemos presos, cada entrada de
um guarda portando um papel na mão fazia nosso coração
pular. Tratava-se das listas de convocados para as “entrevistas” e
para as repatriações. Desejosos de esclarecer nossas situações e
ansiosos por deixar aquela situação de sofrimento, não havíamos
como deixar de nutrir expectativas quando víamos aquela folha
de papel. Cada um que era chamado para ser repatriado recebia
vários abraços e desejos sinceros de felicidades e superação.
Para minha surpresa, a comunidade de ocasião surgida em
Barajas também teve a capacidade de reunir indivíduos dos dois
38 Ibid.
Patricia Rangel •
lados. No turno noturno, com menos policiais presentes e com o
controle afrouxado, tive a oportunidade de ver opressores e oprimidos compartilhando um momento de descontração e diálogo.
Foi em minha última noite em Madri, quando um dos guardas,
por sinal um dos mais duros, convidou os presos fumantes a sair
para fumar no pátio. Num primeiro momento, o orgulho me fez
ficar onde estava, mas depois fui vencida pela curiosidade e não
me arrependi.
Lá fora, enquanto autoridades espanholas acendiam os cigarros de prisioneiros do sul, surgiu o assunto da arbitrariedade na
aplicação das normas e do preconceito embebido na mesma. Os
policiais, em menor número, pareciam envergonhados com sua
atuação. Foi quando um deles disse que admitia os abusos cometidos e que pensava que as regras deveriam mudar. Ele citou a
necessidade de se formular procedimentos mais efetivos e neutros, como a adoção obrigatória de vistos. Não que eu concorde
com a adoção de vistos para viagens curtas, mas aquelas palavras amenizaram minha revolta. Não tenho isso filmado, nem por
escrito e sei que não mais de dez pessoas o ouviram. Mas serve,
ainda que modestamente, para diminuir minha indignação. O
erro foi admitido por pelo menos um deles, mesmo que em uma
conversa informal, mesmo que o mundo não saiba.
Da diferença sensorial entre violência física e violência
psicológica, e da sua igualdade em produzir humilhação
Sofri agressões verbais e fui submetida a uma tortura psicológica constante, mas alegro-me por não ter sofrido agressão física.
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62
• BARRADOS
Tenho certeza que tal agressão teria saído impune, da mesma
forma que a arbitrariedade de me prender e me negar entrada à
União Europeia. Certa vez, horas depois de ver uma mulher que
estava tendo um ataque histérico virar motivo de zombaria dos
policiais, presenciei uma moça brasileira sendo agredida na minha
frente. Depois de ter sido empurrada para dentro de minha “sala”,
como eles costumavam chamar as celas, a moça ficou praguejando e foi chorar. Juntei o pouco de coragem que tinha e fui falar
com o guarda que ele estava errado e exigir uma explicação. Ele
foi muito agressivo e mandou que eu me recolhesse.
Procurei então a assistente social que, teoricamente, era a responsável por ouvir nossas queixas e cuidar de nossos assuntos.
Quando entrei e fui recebida pouco amistosamente, tentei colocar as ideias em ordem e fazer a denúncia. Ela então, friamente,
saiu da sala e me pediu que eu mostrasse onde ocorrera a agressão. Apontei o lugar e dei os detalhes. Ela perguntou se eu seria
capaz de mostrar o guarda que praticou a agressão. Apontei o
sujeito, que respondeu com um olhar de descaso. Após isso, ela
me disse, mostrando uma câmera no alto da parede: “há câmeras
aqui. É sua palavra contra a dele. Acho que você não teria como
provar o que acabou de dizer”. Dito isso, ela me deu as costas e
foi embora.
Não reclamei mais depois disso. Como explicou Bauman,39
citando experiências realizadas com ratos, a incapacidade de
escolha entre esperanças e temores – e no nosso caso, entre
revolta e medo – resulta na paralisia da ação. Não reclamei nem
39 Ibid.
Patricia Rangel •
quando presenciamos um turco ser violentamente arrastado
pelos guardas até uma salinha onde não havia ninguém, uma
espécie de solitária. Ele se desesperara, pois havia sido jurado de
morte em seu país e iria ser deportado no dia seguinte. Aquela
noção kantiana de hospitalidade enquanto demanda de residência temporária que não pode ser negada quando envolver a destruição do outro, foi tacitamente negada ao jovem turco. Meus
problemas pareceram bem menores depois disso, o que não me
impediu de ficar miseravelmente triste.
No cárcere, os procedimentos são unilaterais
e o detido, desprovido de voz, cala-se
Em Barajas, não há diálogo. Todos os processos são unilaterais.
Até mesmo nas “entrevistas” – o eufemismo utilizado para interrogatório – não se pode falar. Eles decidem qual foi sua infração e
você acata. Exauridas e humilhadas, as pessoas rezam para serem
repatriadas logo. É mais ou menos aquela coisa de preferir o suicídio à tortura. De certo modo, cometi suicídio moral quando
assinei aqueles papeis dizendo que eu não tinha como comprovar a razão e a documentação necessária para entrar no Território
Schengen. Assim como o consulado brasileiro afirmou, eu tinha
não só toda a documentação necessária como cumpria todos os
requisitos para ingressar na União Europeia.
Como bem explicou o colega Pedro Luiz Lima,40 “o lado de
dentro da prisão dificilmente pode ser compreendido a partir do
40 Em artigo publicado no Jornal do Brasil, 10/03/2008.
63
64
• BARRADOS
lado de fora. O roubo arbitrário e injustificado da liberdade pode
ser teorizado das mais diversas maneiras, alcançando os tantos
êxitos que advêm da teoria; mas o peso da prisão pode apenas
ser sentido – e a razão analítica se rende, então, impotente frente
ao sentimento da opressão.”
Em solo espanhol, não passei de uma prisioneira. Uma prisioneira em Barajas e uma prisioneira em meu próprio corpo, pois
possuía incorporadas todas as disposições da obediência, como
diria Foucault41 em suas reflexões acerca da microfísica do poder e
disciplina.
Em relação ao tema do poder, chama-me atenção a dificuldade em se definir o fenômeno e a heterogeneidade do conceito.
Alguns autores encaram poder como uma condição pré-dada,
enquanto outros o percebem como uma construção social.
Alguns pensam que a dominação é exercida de forma direta,
enquanto que para outros ela está agregada em toda e qualquer
ação humana. Estes apresentam, a meu ver, os argumentos mais
interessantes, pois analisam relações de poder em toda a sua
complexidade, sem se prender a modelos cientificistas que minimizam a compreensão do fenômeno.
Dos autores que veem no poder uma construção, devemos
citar como maior expoente Michel Foucault. Suas obras tratam
da construção de uma cultura de opressão na qual o indivíduo
nada mais é que um prisioneiro em seu próprio corpo, vivendo
uma realidade que o violenta através de uma subordinação instaurada historicamente. Não resta dúvidas que a obra de Foucault
41 FOUCAULT, M. (1979) Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal.
Patricia Rangel •
influenciou as teorias pós-modernas, devido à sua abordagem
pioneira da relação entre ideias e mundo material e à releitura do
paradigma da soberania.
De como já éramos todos, detidos e policiais,
oprimidos e disciplinados bem antes de
cruzamos a porta da prisão em Madri
Foucault procura explicitar aspectos que permitam uma reflexão acerca da manipulação (às vezes autorizada) do ser humano
por outros seres humanos, devido à necessidade que alguns possuem de controlar o abstrato pelo material. A disciplina é uma
fórmula que se difere de conceitos tradicionais como escravidão
e vassalagem. Ela é um tipo de organização do espaço, uma “arte
do corpo” que transforma o corpo em obediente e útil através da
sua inserção em uma “maquinaria de poder” que o toma, desarticula e recompõe. Ela funciona como uma rede que nos atravessa
sem se prender a fronteiras.
A disciplina se manifesta de diversas maneiras, mas sempre
com a mesma essência, sob a forma de treinamento. Seu exercício
se fundamenta na distribuição dos indivíduos no espaço, como
nos colégios, quartéis, hospitais e cárceres, sendo esta condizente
com uma organização retangular ou quadricular que, funcionalmente, é mais eficiente para o controle dos corpos individuais. Em
resumo, pode-se dizer que a disciplina produz, a partir dos corpos
que controla, quatro tipos de individualidade, ou antes, uma individualidade dotada de quatro características: é celular (pelo jogo da
repartição espacial), é orgânica (pela codificação das atividades),
65
66
• BARRADOS
é genética (pela acumulação do tempo) e é combinatória (pela
composição das forças). Para tanto, utiliza quatro grandes técnicas:
constrói quadros, prescreve manobras, impõe exercícios e organiza “táticas” para realizar a combinação das forças.
A tática é a arte de construir, com os corpos localizados, atividades codificadas e aptidões formadas, aparelhos em que o produto das diferentes forças se encontra majorado por sua combinação calculada. Sem dúvida, trata-se da forma mais elevada da
prática disciplinar. Assim, podemos perceber semelhanças entre
a pedagogia escolar, a educação cristã e a formação militar. Desta
forma, éramos todos, detidos e policiais, oprimidos e disciplinados bem antes de cruzamos a porta da prisão em Madri. Nós, prisioneiros, já sabíamos obedecer e reconhecer nossa situação de
inferioridade. O poder é maior quanto mais sutil se expressa. A
força que se impõe é um poder silencioso que molda discursos.
O que parece liberdade é, na verdade, sujeição.
A distribuição espacial como forma
de controle disciplinar em Barajas
Foucault42 já nos alertara que a distribuição espacial é de vital
importância no sistema disciplinar, ainda que muitas vezes em
um plano subliminar. O espaço é dividido de forma celular, para
tornar-se especializado e funcional. Em Barajas não era diferente:
os detidos, separados em salas de acordo com seu tempo de permanência, podiam ser monitorados a partir de um observatório
42 FOUCAULT, Michel. (2008) Vigiar e punir.
Patricia Rangel •
central. Isso porque tais lugares devem facilitar a circulação e a
localização das pessoas, ao mesmo tempo em que as isola e as
coloca em um lugar específico da cadeia hierárquica. Esses métodos facilitam a observação tal como acontece num acampamento militar (as barracas são dispostas de forma que o superior
possa vigiar o subalterno), em um hospital (vidraças que facilitam
a visualização dos doentes) e nas salas de aula (possuem tablados
que permitem ao professor ver seus alunos e que o colocam em
uma posição de superioridade).
A vigilância, aparelho disciplinar perfeito, é um operador econômico decisivo, explica Foucault.43 De um ponto central, pode-se ver tudo permanentemente. Como num panóptico, os edifícios ou celas são dispostos em círculo de modo a abrir todos
para um interior, onde há uma unidade que acumula as funções
de direção, vigilância e verificação. O panóptico contemporâneo,
para incrementar seu poder de controle, possui câmeras, olhos
eternamente atentos que não deixam escapar o que a visão
humana por distração deixaria. O estado permanente de vigilância provoca no detento um sentimento de vulnerabilidade e
assegura o funcionamento automático do poder. A visibilidade se
torna uma armadilha e a vigilância é permanente, pois cria uma
relação de poder independente de quem o exerce.
Pareceu-me peculiar a inexistência de dormitórios femininos e
masculinos separados. Admito ter considerado isso uma vantagem,
pois, por mais que seja desagradável compartilhar um dormitório com homens, sentia-me mais segura tendo um conhecido no
43 Ibid.
67
68
• BARRADOS
ambiente. Entretanto, não foi o caso de outras pessoas, entre elas
um marroquino que, por ser muçulmano, sentia-se extremamente
desconfortável em dividir um recinto com mulheres. Foi difícil
encontrar para ele um dormitório que não fosse misto. A distribuição dos detidos ficava a cargo dos próprios. Se alguém não ficasse
satisfeito com o lugar reservado para si, não haveria nada a fazer. Se
não houvesse, por exemplo, vaga em nenhum dormitório ocupado
só por homens, o cidadão muçulmano teria de violar seus hábitos
religiosos e se conformar com o fato de dormir entre mulheres.
As técnicas através das quais se praticam a
dominação, o controle minucioso, as inspeções
e a racionalidade técnico-econômica
Através da disciplina, é possível controlar as operações corporais, sujeitando o indivíduo constantemente e tornando-o dócil e
útil. É por meio dela que se fabricam os “corpos dóceis”. Foucault44
nos mostra como o corpo se torna objeto e alvo do poder quando
submetido a limitações, proibições e obrigações. Faz total sentido
aqui a descrição de Foucault da sociedade industrial avançada
como marcada pela irracionalidade, pela destruição, pela repressão e pela diminuição do indivíduo. A diminuição do indivíduo é
a diminuição da autonomia, o homem vira objeto, resume-se a
um corpo completamente manipulável e controlado.
Tendo em mente o significado dos conceitos de disciplina
e corpos dóceis, temos condições de entender a microfísica do
44 Ibid.
Patricia Rangel •
poder como técnicas minuciosas através das quais se dá a dominação. Ela se refere a um modo de investimento político do corpo,
como uma espécie de anatomia política do detalhe. Como exemplo, podemos citar o controle minucioso, as inspeções, a racionalidade técnico-econômica e o regulamento preciso descrito nas
formas citadas nos parágrafos anteriores.
Repressão: da punição démodé à fashionable vigilância
Houve um momento (nos séculos XVIII e XIX) em que, segundo
a economia do poder, passou-se a considerar mais eficiente vigiar
do que punir, conta Foucault.45 Esse movimento seguiu as transformações da mecânica do poder – manifesta agora em uma
forma capilar, microscópica. Tanto o poder quanto a repressão
são aplicados no corpo social, e não sobre o corpo social. O castigo não é mais uma arte de sensações insuportáveis, e sim de
suspensão de direitos. As práticas punitivas, segundo o autor, se
tornaram pudicas: não se toca mais o corpo do detido, ou toca-se
o mínimo possível. Em vez de tortura e rituais de suplício, usa-se
a reclusão e a deportação. Todas são penas físicas, pois se referem
diretamente ao corpo, mas buscam atingir a alma. É aí que entra a
atuação de um exército de técnicos (médicos, guardas, psiquiatras
etc.), visando garantir que o corpo não seja o objeto da punição.
O cadafalso, onde, no Antigo Regime era feito o suplício e onde
se dava o teatro punitivo (a representação do castigo era dada
ao corpo social), foi substituído por uma arquitetura complexa e
45 Ibid.
69
70
• BARRADOS
hierarquizada, integrada ao corpo do Estado. A punição deixou
de ser exibida e passou a ser fechada. Os instrumentos do castigo
não são mais jogos de representação e sim formas de coerção,
esquemas de limitação que são aplicadas e repetidas. O objetivo
não é reformar o sujeito jurídico do pacto social, é formar um
sujeito de obediência dobrado a um poder qualquer.
Sobre o dia em que vivenciamos uma
experiência de alquimia moral dos fatos
Há alguns parágrafos, interrompi o relato de minha “entrevista”,
que merece atenção na medida em que representa um fenômeno pitoresco, que beira a mágica. Como disse anteriormente,
tal entrevista é na verdade um interrogatório levado a cabo teoricamente com direito a um intérprete e um advogado. O advogado permaneceu calado o tempo todo, nem sequer me olhou,
e a intérprete, uma espanhola que falava um portuñol ainda pior
que o meu, abriu a sessão me repreendendo pelo suposto mau
comportamento: “meninas mal-educadas como você não serão
aceitas em lugar algum da Europa”. Talvez tenha sido essa afirmação que lhe causou um leve rubor quando, ao responder uma
pergunta, contei que já havia morado e estudado na Inglaterra e
conhecido boa parte da Europa anos antes.
Além das acusações infundadas a respeito de meu comportamento, a entrevista me ofereceu a possibilidade de passar por
uma experiência de desmaterialização de objetos e relativização
de ideias. Apresentei comprovantes, cartões de crédito, dinheiro
vivo, seguro saúde, programa do congresso e respondi a diversas
Patricia Rangel •
perguntas, relevantes e irrelevantes. Perguntaram-me desde a
profissão de meus pais e quanto eles ganhavam até se eu tinha
irmãos e qual o sexo deles. Ao me perguntarem quanto dinheiro
vivo eu possuía para os 10 dias na Europa, respondi que tinha
600 euros em espécie (dos quais 40 haviam sido gastos na prisão, com a compra de cartões telefônicos) e dois mil euros no
cartão de crédito. Disse que tinha diversos amigos na Europa e
que inclusive iria visitar uma amiga em Berlim após o fim do congresso. Passei o endereço, os telefones e mostrei as passagens Lisboa-Berlim e Berlim-Madri-Rio nas datas citadas. Passei endereços
eletrônicos, telefones, nomes, apresentei a reserva no albergue
em Lisboa e os contatos da amiga que me receberia em Berlim.
Respondi a todas as perguntas indiscretas sobre os salários dos
meus pais e tive que fazer uma palestra sobre meu tema de pesquisa, pelo qual eles não demonstraram grande interesse.
Quando a entrevista terminou, imprimiram um documento
no qual estava digitado, entre outras coisas: “A autuada possui 560
euros e nenhum cartão de crédito”, “ela não possui comprovantes
adequados”, “não apresentou documentos que comprovem as
condições da viagem e da estadia”, “ela não possui conhecidos na
Europa”. Era minha carta de inadmissão. Quando afirmei que não
iria assinar, porque aquela carta contradizia tudo que eu dissera e
comprovara, a policial que conduzia minha “entrevista” disse que
eu poderia não assinar, mas que ficaria lá até o final do processo,
que seria melhor arranjar meu próprio advogado. Que não fazia
diferença para ela, a escolha era minha. Honestamente, naquele
momento, apesar da revolta, dar continuidade àquela situação
temporária de encarceramento e sofrimento não era o preço que
71
72
• BARRADOS
eu estava disposta a pagar para ver todos os dados corretos da
minha viagem impressos num papel com o carimbo da Espanha.
Assinei e esperei mais 20 horas até ouvir uma simpática frase e
subir no avião recebendo o olhar de reprovação de todos aqueles
que estavam no meu campo de visão.
Esse fenômeno remete ao que Merton46 chama de profecia
autorrealizável, uma afirmação inicialmente falsa que leva a determinadas condutas que acabam por torná-la verdadeira. Ao ser
acusada injustamente de não cumprir os requisitos exigidos para
ingressar na União Europeia, acabaram ocorrendo diversos fatos
que me renderam uma detenção e uma repatriação respaldada
pela lei.
Como explica Bauman,47 quando se trata de discutir a verdade,
a probabilidade de ocorrer uma “comunicação não distorcida”, tal
qual postulou Habermas, é mínima. A humilhação se apresenta
como arma poderosa para demonstrar quem tem poder e quem
não tem, para indicar a desigualdade irreconciliável entre quem
humilha e quem é humilhado. A “entrevista” em si me remete à
análise de Foucault48 sobre o interrogatório: é por meio da confissão que o acusado toma lugar no ritual de produção da verdade
penal, comprometendo-se com o processo ao assinar a verdade
da informação. Contudo, nem sempre se chega à confissão por
meios pacíficos, e a tortura é um método eficiente. É a ambiguidade dupla da confissão (providenciar provas/serem as provas
46 MERTON, R. (1970) Sociologia.
47 BAUMAN, Z. (2004) Amor Líquido.
48 FOUCAULT, M. (2008) Vigiar e punir.
Patricia Rangel •
efeito de coação) que explica os dois métodos do direito criminal
clássico para a obtenção da confissão: o juramento (ameaça de
perjuro diante da justiça ou de Deus) e a tortura (violência física
para produzir uma “confissão espontânea”). Obviamente, a tortura
física não é aplicada em Barajas, mas as pessoas não assinam suas
“confissões” porque estas sejam verdadeiras, e sim pela motivação
de deixar sua situação de detenção e sofrimento moral.
73
4. Que soberania?
A vida das nações, da mesma forma que a dos homens,
é vivida, em grande parte, na imaginação.
Enoch Powell
Qual o significado, em termos de política
internacional, do fenômeno representado
por nossas experiências pessoais em Barajas?
O fato de termos sido arbitrariamente presos e inadmitidos na
União Europeia demonstra que existe um descompasso entre o
conceito de soberania atualmente aceito e aquele colocado em
prática pelos Estados europeus. Toda noite, um policial de nome
Pedro tirava-nos para conversar. Talvez por não ter oportunidade
de conversar com pessoas interessantes em seu ambiente de trabalho, ele tenha conseguido passar por cima do fato de sermos
latino-americanos presos para discutir conosco questões que iam
da teologia às relações internacionais.
Obviamente, os termos da conversa eram estabelecidos pelo
policial Pedro, que também controlava nossas emoções e reações,
gritando “não fique nervoso” se esboçávamos uma simples reação
facial com os absurdos que ele proferia. Pois bem, em uma dessas
“conversas”, o policial manifestou sua opinião sobre soberania nacional, que parece representar a do governo espanhol: uma concepção anacrônica que remonta à formação dos Estados nacionais. Ele
parecia ignorar a existência de um Sistema Internacional composto
76
• BARRADOS
por complexas relações de interdependência. Realmente acreditava que um país possui o direito de agir arbitrariamente e batia no
peito para dizer que todas as suas ações são respaldadas por leis
aprovadas pelo parlamento e, portanto, pelo povo espanhol. Ele
possuía uma interpretação esquizofrênica de democracia que eu
não sou capaz de compreender e explicar. Como considerar legítimos procedimentos que violam direitos humanos?
As anomalias causadas pela soberania
caduca da União Europeia
Nossa prisão pode ser explicada pelo que Pedro Luiz Lima49 chamou de hipótese da anomalia, ou seja, um fenômeno que permite
que a aplicação das normas do Espaço Schengen, de antemão tomadas como legítimas por estarem em conformidade com os princípios do Estado de direito (apesar de tal legitimidade ser duvidosa,
dado o déficit democrático de seu fundamento), dependa de uma
discricionariedade bêbada de preconceitos. Apesar de a inadmissão
de pessoas que satisfazem as condições para entrar neste espaço
representar um erro de procedimento, ela é sustentada como um
acerto por parte das mais altas autoridades espanholas.
Como comentou o embaixador da Espanha no Brasil, Ricardo
Peidró, o governo não nos devia desculpas, pois o perdão é pedido
quando se comete um erro. Sustentando que não teria havido
qualquer erro por parte dos policiais de Barajas, o diplomata se
enrolava em relação a qual versão seria mais convincente para
49 Em artigo publicado no Jornal do Brasil, 10/03/2008.
Patricia Rangel •
justificar o abuso. Primeiro, argumentou que não portávamos os
documentos necessários ou não tínhamos condições de custear
a viagem, mas, ao ser amplamente divulgado na imprensa que
esse argumento era equivocado, Peidró apelou para uma justificativa que, além de igualmente mentirosa, era infantil – estaríamos
fazendo bagunça no aeroporto. Até hoje me questiono qual passo
apressado dado do avião até o posto de imigração poderia ser
apontado como um ato de bagunça. Minha capacidade imaginativa ainda não alcançou uma possibilidade. Como sustentou a nota
de repúdio do Iuperj, “quem se valeu do desmando (...) foram as
autoridades que o embaixador representa. Lamentavelmente, em
vez de desculpar-se como lhe conviria, o embaixador Peidró agrava
a ofensa a que foram submetidos nossos alunos, juntamente com
outros cidadãos e cidadãs brasileiros”.
Segundo nota da Associação Brasileira de Estudos de Defesa
(Abed), que se manifestou contra o abuso em conjunto com o
Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e outras
associações científicas, o caso “serviu para ressaltar o caráter discriminatório desse tipo de atitude que tende a criar um ambiente de
insegurança para as viagens acadêmicas e desincentiva os contatos
com as universidades espanholas, num momento em que a aproximação entre nossos países nessa área atinge dimensões inéditas e
muito bem-vindas.” A nota da Clacso sustentou que “esta não é uma
prática isolada e incomum. Infelizmente, é a resposta que recebem
cotidianamente milhares de latino-americanos e latino-americanas
que decidem viajar à Europa pelos mais diversos motivos.”
O cerne da questão é que as autoridades espanholas trabalham com uma margem de erro da aplicação da norma, na qual
77
78
• BARRADOS
eu, Pedro Luiz Lima e tantos outros turistas tivemos a infelicidade
de cair. Como Lima já destaca anteriormente, esse fenômeno seria
aceito como um efeito natural da distorção de preceitos legais.
Ele questiona ainda: teria sido mesmo devido a uma disfunção
do Estado de direito “europeu” nossa permanência por tantas
horas ao sabor das arbitrariedades das autoridades espanholas?
Seria o nosso despejo apenas ilustração de um equívoco grave
de uma política que se permite confundir estudantes e turistas
com imigrantes ilegais? Para ele, a expulsão massificada de brasileiros não é apenas um erro de procedimento. Ela não se trata de
consequências­não intencionais de uma norma a princípio justa,
mas sim de um efeito intrínseco de uma política de controle cada
vez mais agressiva e excludente de trabalhadores do sul.
Como argumentou Bauman, em um mundo cuja economia
global cada vez mais impõe as regras do jogo, em um sistema
dividido entre “turistas” e “vagabundos”, todos os trabalhadores
do sul representam perigo para a estabilidade do mercado europeu, por mais ilusória que ele seja. Quanto mais globalizado é o
regime econômico, menos capaz de suprir as necessidades de
seus cidadãos se torna o Estado, que fica reduzido a mero defensor deste mesmo regime. A inadmissão em massa de brasileiros
na União Europeia seria o propósito de uma política de Estado
voltada para assegurar as condições naturalistas de um mercado
cego às demandas humanas da globalização, para Lima.
A soberania da União Europeia é esquizofrênica: dura e mole ao
mesmo tempo. Enquanto seus Estados acreditam desempenhar
o papel de detentores da soberania formal, corporações e agências multilaterais exercem frequentemente o controle de fato das
Patricia Rangel •
condições de vida, trabalho e migração da população. Em meio a
esse quadro, o neoliberalismo como exceção abre uma lacuna entre
soberania e cidadania, gerando insegurança para cidadãos com baixa
qualificação e migrantes, que terão de buscar uma forma de assegurar seus direitos em uma instância além das tradicionais instituições
estatais. Hoje, os verdadeiros poderes capazes de moldar as condições sobre as quais atuamos fluem num espaço global, enquanto
as instituições políticas permanecem locais e presas ao chão, afirma
Bauman.50 E não há solução local para problemas globais.
Para Manuel Castells,51 cada vez mais se percebe a aplicação
de políticas locais num mundo que é estruturado por processos
crescentemente globais. A única chance de resistência das localidades, para o autor, está na recusa de direitos de propriedade
para fluxos migratórios esmagadores. Com isso, consegue-se desviar para a localidade vizinha a marginalização de comunidades
indesejadas. Voltarei a falar desse tipo de reação no Capítulo 5,
ao tratar do conflito entre autoridades espanholas e italianas por
conta do endurecimento de políticas de imigração da Espanha,
que desviou o fluxo para a Itália.
Em que parte do passado a Europa
se inspira para exercer a soberania?
Segundo Carl Schmitt, a soberania é definida como o poder
de se invocar estado de exceção para as normas estabelecidas
50 BAUMAN, Z. (2004) Amor Líquido.
51 CASTELLS, M. (1989) The Informational City. Oxford: Blackwell.
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• BARRADOS
em caso de ameaça à integridade do Estado. Desta forma, até
os direitos básicos podem ser suspensos e as leis alteradas
para melhor atender às necessidades do Estado. Mesmo legalmente, abusos podem ser cometidos de forma a defender os
interesses de um país, como é o caso do surto de repatriações
na Espanha.
Enquanto estávamos presos em Barajas, tivemos de ouvir
do tal policial Pedro que o que a Espanha estava fazendo era
totalmente aceitável. Segundo ele, se sou convidada a passar
uma temporada em sua casa, devo me preparar e atender às
exigências para conviver em seu lar por determinado período.
Creio que ninguém discorde. Mas ele vai além: se quando eu
bater à sua porta, ele desejar não me receber e mandar-me
procurar um hotel, tem total direito de fazê-lo. Foi com essa
comparação que ele justificou o fato do país barrar tantas pessoas de forma arbitrária. Como se entrar em uma comunidade
estrangeira fosse a mesma coisa que invadir a privacidade de
uma família.
Ainda segundo ele, a polícia é executora das regras votadas
pelos legisladores do país que, por ser uma democracia, são
eleitos pelo povo. Desta forma, dizia ele, eventuais erros cometidos por funcionários da polícia espanhola, além de merecerem perdão por caírem em uma margem de erro, são legítimos
por expressarem a vontade do povo espanhol. Não importa se
a ação dos policiais é cruel, a política de imigração injusta e sua
aplicação arbitrária – a vontade do povo não pode ser questionada. Pergunto-me quantos cidadãos espanhóis já tiveram
permissão para visitar a prisão de Barajas.
Patricia Rangel •
É como se os Estados europeus adotassem o que David
Campbell­52 define como uma “tradição hobbesiana” nas Relações
Internacionais. Por meio dessa leitura, notamos a ênfase dada
ao medo e ao perigo na construção da ordem e da identidade
na sociedade. A corrente realista transfere esta natureza constitutiva do medo para as Relações Internacionais de forma quase
que integral, sem diferenciar o estado de natureza hobbesiano do
Sistema Internacional. As fronteiras são construídas para separar
o inside do outside. Os espaços do inside servem para delinear o
que é racional, ele é ordenado por políticas moderadas, onde os
homens civilizados se encontram livres dos perigos do caos. O
mundo outside, por outro lado, é anárquico, caótico.
Os estudiosos de soberania, ainda hoje, tendem a relacionar determinados Estados-nação a tipos ideais de ordem política, como os modelos vestifaliano, liberal ou antiutópico. De
qualquer forma, esses modelos reproduzem uma concepção
weberiana de Estado liberal moderno, apoiado numa burocracia administrativa que detém o monopólio do uso legítimo
da força. Segundo Ong,53 essa concepção, ainda que ultrapassada, continua produzindo problemas que vão desde o ataque dos Estados Unidos ao Iraque em 2003 até o atual fechamento das fronteiras da União Europeia, passando pelo modelo
asiático­de desenvolvimento planejado e impulsionado pelos
Estados-nacionais.
52 CAMPBELL, D. (1998) Writing Security: United States Foreign Policy and the Politics of
Identity. University of Minnesota Press/Manchester University Press.
53 ONG, A. (2006) Neoliberalism as exception.
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82
• BARRADOS
Mas quais são as concepções
contemporâneas de soberania?
A União Europeia, adotando a visão descrita por Campbell,
ignora as formas contemporâneas de soberania nacional e perspectivas pós-estruturalista e multiculturalista de territorialidade
e nacionalidade. O sistema vestfaliano de Estados desapareceu
devido à nova ordem mundial imposta pela globalização.
O atual sistema político é descentralizado, desterritorializado,
desvinculado de valores nacionais e tem por substância política
o universalismo cosmopolita. As atitudes dos Estados repercutem
mais profundamente do que julgamos e eles estão ligados mais
intimamente do que os teóricos clássicos das Relações Internacionais puderam perceber.
Atualmente, possuímos uma gama de abordagens alternativas,
que indicam transformações da soberania em um mundo globalizante, mostrando que aquilo que hoje chamamos de soberania
é bem diferente de seu conceito tradicional. É necessário tratar
da flexibilização de fronteiras, da gradual extinção das etnias, da
homogeinização da cultura, enfim, de fatores que nos ajudem a
perceber que as nações não estão fechadas em si mesmas. Antonio Negri e Seyla Benhabib produziram trabalhos interessantís­
simos nesse sentido. Suas ideias são capazes de se articular com
outras concepções de relativização de fronteiras, como a ideia de
economia-mundo desenvolvida por Immanuel Wallerstein.
Entre essas visões alternativas para os conceitos de soberania
e Estado, está a corrente neoestruturalista das Relações Internacionais. Quando os neoestruturalistas falam de Estado, não estão
Patricia Rangel •
se referindo a um sujeito político. Para eles, o Estado não possui
uma agenda única ou um “interesse nacional”. O que existe é uma
noção de totalidade ou de “sistema internacional”. Sob uma ótica
neoestruturalista, o central é relação entre políticas e um cenário
socioeconômico e ideológico, doméstico e internacional mais
amplo. Conceitos de Relações Internacionais tradicionais, que
geralmente sugerem uma ideia de ritmo uniforme, são apontados como essencialmente equivocados.
Segundo Ong,54 a soberania atualmente colocada em prática
é manifestada de formas múltiplas, eventualmente contraditórias
e amplamente contestadas. Em contato com os mercados globais e instituições regulatórias, ela invoca a exceção para criar
novas técnicas, espaços e possibilidades de governar que aceitem a flexibilidade e a fragmentação. O fenômeno que convencionamos chamar de globalização, seja lá o que isso signifique
(tenho ressalvas quanto ao termo, pois ele pode significar tudo e
nada), pode ter efeito suavizante ou acirrador sobre a soberania.
Para Ong, o argumento de que a globalização ameaça a sobrevivência do Estado encontra fortes contra-argumentos. Parece
claro que os mercados globais têm alterado consideravelmente
a forma clássica dos Estados, mas não necessariamente essas
mudanças ocorreram no sentido de enfraquecer as diversas atividades do Estado ou sua capacidade de lidar com entidades reguladoras globais, tais quais o FMI. Assim, devemos pensar a nação
tanto como um espaço territorializado quanto como um espaço
desterritorializado. Além disso, Ong chama atenção para como
54 ONG, A. (2006) Neoliberalism as exception.
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84
• BARRADOS
dimensões de etnia e gênero estão intimamente relacionadas
com as dinâmicas de construção de ações militares e políticas,
por exemplo.
Uma denotação adequada para um novo tipo de poder global
seria o conceito de Império, criado por Antonio Negri: o mundo
seria governado por uma estrutura de poder e não mais por sistemas políticos estatais. O Império global seria uma nova ordem
mundial, uma superação positiva do sistema vestifaliano de Estados. Como, para Negri,55 os Estados-nação seriam dotados de uma
ideologia falsa e danosa, a construção do Império constituiria um
passo a frente, uma evolução em relação àquilo que veio antes.
Na contemporaneidade, apesar de alguns Estados (geralmente
os mais prósperos e poderosos) possuírem mais autonomia do
que outros, nenhum país é totalmente autônomo. O Império teria
a vantagem de varrer do poder regimes cruéis e oferecer possibilidades criativas de libertação.
Sobre como a formação do “Império”
de Negri se relaciona com o conceito de
“economia-mundo” proposto por Wallerstein
David Held56 argumenta que os Estados nunca foram tão autônomos ou soberanos quanto pretendem ser. A globalização não é um
fenômeno recente e a modernidade é inerentemente globalizante,
55 NEGRI, A.; HARDT, M. (2001) Império. Rio de Janeiro: Record.
56 HELD, D. (1992) The development of modern state. In: HALL, S. e GIEBEN, B. (orgs.)
Formations of Modernity. Cambridge: Polity Press/ Open University Press.
Patricia Rangel •
lembram Hall e Giddens. Wallerstein,57 por sua vez, aponta que o
capitalismo sempre foi um elemento da economia mundial e que
o capital nunca deixou que suas aspirações fossem delimitadas ou
determinadas pelas fronteiras dos Estados. A tendência à autonomia global e à globalização estaria enraizada na modernidade.
Podemos relacionar às ideias de formação do Império, como
sugerido por Negri, o conceito de “economia-mundo” proposto
por Wallerstein. “Economia-mundo” é distinta de “economia mundial” ou “economia internacional” (esta se refere a uma série de
economias nacionais que comerciam umas com as outras). Ao
contrário, “economia-mundo” sugere que há economia se há
divisão social do trabalho em curso e um conjunto integrado de
processos produtivos. A economia-mundo capitalista é uma divisão do trabalho em cuja estrutura todo o globo opera. Ela possui
como superestrutura política um sistema interestatal através do
qual Estados soberanos são legitimados e constrangidos. Soberania então não significa autonomia em tomada de decisão, mas
sim uma autonomia formal combinada com limitações reais.
O Brasil, ao considerar a reciprocidade um “princípio
fundamental” das relações internacionais, demonstra
uma concepção mais atual de soberania que a Europa
Em março de 2008, após o episódio de detenção e repatriação
em massa de cidadãos brasileiros na Espanha, o posicionamento
57 WALLERSTEIN, I. (1999) Patterns and Perspectives of the Capitalist World-Economy. In:
Viotti, P.; Kauppi, M. (eds.) International Relations Theory. Boston: Allyn and Bacon.
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• BARRADOS
do Ministério das Relações Exteriores do Brasil foi concebido em
termos de reciprocidade. O corpo diplomático, após manifestar
seu desagrado e inconformidade com a constante denegação de
brasileiros, passou a adotar medidas semelhantes para espanhóis
que tentavam ingressar em território nacional.
Firme em sua posição, o Brasil repatriou cidadãos espanhóis
que, ao contrário de muitos brasileiros detidos e devolvidos, não
portavam documentação ou recursos materiais necessários para
ingressar no país. Anos antes, em 2004, houve um movimento
semelhante, quando turistas brasileiros eram constantemente
impedidos de entrar nos Estados Unidos. Naquele ano, ocorreu
o episódio da identificação de turistas americanos. Na ocasião, o
ministro Celso Amorim afirmou que a reciprocidade era o “princípio fundamental” das relações internacionais. Ao considerar a
reciprocidade fundamental, a diplomacia brasileira demonstrou
uma concepção mais atual de soberania que a Europa, interpretando que atitudes dos Estados repercutem profundamente na
realidade de outros.
Sobre como práticas de produção de fronteiras constituem
a identidade e sobre o que é a soberania sem cidadania
Retomando a interpretação de Campbell,58 a construção da
identidade é um processo influenciado pelas práticas de produção de fronteiras, justificando a identidade de quem opera em
nome dela. A política externa pode ser, então, identificada com
58 CAMPBELL, D. (1998) Writing Security.
Patricia Rangel •
práticas de diferenciação, implicando o embate entre o indivíduo e o outro. É a legitimação da identidade nacional perante o
internacional. Nossa identidade passa a se ligar àquilo que tememos. O perigo constitui mais do que uma simples fronteira que
demarca o espaço – ele constitui valores morais que transcendem o mesmo. Enquanto isso, a construção do espaço social,
associada­ao conceito de soberania, ultrapassa questões geográficas e gera a concepção de distintos espaços morais de identidade. É função do corpo político produzir discursos que naturalizam a identidade coletiva de uma comunidade e que a excluem
dos diferentes espaços morais fora do território.
Para Ong,59 um argumento a favor da imigração e contra o
conceito de soberania adotado pela União Europeia é que a cidadania não é territorial. Segundo ela, a penetração das lógicas de
mercado na política implicou no abandono da noção de cidadania como fundada no Estado-nação. O neoliberalismo, ademais,
teria trabalhado de modo a articular elementos de cidadania
em espaços menores do que o território de um Estado ou mais
amplos do que suas fronteiras.
Os elementos que costumamos considerar para compor uma
ideia de cidadania, tais quais nação, território e direitos, têm se
articulado e desarticulado com movimentos impulsionados por
forças de mercado. De um lado, indivíduos que possuem capacidades materiais para gozar de um status móvel de valor social elevado, e que podem exercer sua cidadania em diversas localidades
do globo. Do outro lado, aqueles que não possuem tais atributos
59 ONG, A. (2006) Neoliberalism as exception.
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• BARRADOS
tornam-se excluídos dessa prática, como os imigrantes evitados
pela União Europeia.
Segundo Bauman,60 o poder de exclusão não seria um marco
da soberania se o poder soberano não tivesse, em um primeiro
momento, unido-se à noção de território. Como toda aposta na
pureza produz sujeira, o lixo fabricado pela promoção da trindade território-Estado-nação foram monstruosidades tais quais
nações sem Estado, Estados com diversas nações e territórios
sem Estado-nação. O medo do surgimento desses monstros
permitiu que o poder soberano encarnado nos Estados pudesse
impor absurdas regras de imigração e asilo e negar direitos aos
que buscam proteção.
Além disso, com a colonização e o impulso de se conquistar
e anexar “terras virgens”, abriu-se a possibilidade de escoar para
os “novos mundos” indivíduos indesejados e “detritos humanos”
gerados e acumulados pelo fervor da lógica de inclusão-exclusão. Com a existência de “lixões” para esses detritos, a prática de
exclusão estimulada pela trindade território-Estado-nação não só
não chegou a ser encarada como problema como foi legitimada.
Depois de colonizar novos mundos, os europeus poderiam descansar, como lemos nos versos de Fernando Pessoa: Pertenço a
um gênero de portugueses/ Que depois de estar a Índia descoberta/
Ficaram sem trabalho. 61 Os versos do poeta inglês Rudyard Kipling
(1899) também exemplificam bem a lógica da “missão” do europeu e sua visão a respeito do estrangeiro:
60 BAUMAN, Z. (2004) Amor Líquido.
61 Opiário (Álvaro de Campos) In: PESSOA, F. (2002) Poesias. Porto Alegre: L&P.
Patricia Rangel •
A Song of the White Men
(...)
Now, this is the road that the White Men tread
When they go to clean a land –
Iron underfoot and the vine overhead
And the deep on either hand.
We have trod that road – and a wer and windly road –
Our chosen star for guide.
Oh, well for the world when the White Man tread
Their higway side by side!
(...)
The Stranger
The Stranger within my gate,
He may be true or kind,
But he does not talk my talk -I cannot feel his mind.
I see the face and the eyes and the mouth,
But not the soul behind.
(...)
The Stranger within my gates,
He may be evil or good,
But I cannot tell what powers control
What reasons sway his mood;
Nor when the Gods of his far-off land
Shall repossess his blood.
(...)
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• BARRADOS
Para Hall,62 após a Segunda Guerra Mundial, as potências europeias acreditaram poder sair de suas esferas de influência e de
seu passado de imperialismo. Contudo, como a interdependência global atua em ambos os sentidos, o movimento centrípeto
de mercadorias, imagens e estilos ocidentais foi respondido por
um monstruoso movimento de pessoas dos países periféricos
para o centro. Motivadas pela pobreza, pela fome, por mudanças
de regime político e pela esperança de uma vida melhor, essas
pessoas em trânsito conformaram um dos períodos mais longos
e sustentados de migração não planejada da história.
Uma das consequências desse movimento, ainda para Hall,63
foi o alargamento do campo das identidades, a proliferação das
novas posições de identidade e o aumento da polarização entre
elas. Ou seja, houve fortalecimento de identidades locais (que
pode ser interpretado como uma reação defensiva dos membros
de grupos dominantes que se sentem ameaçados pela presença
de outras culturas) e a produção de novas identidades. Constata-se um “racismo cultural” nas ruas, nos lugares de trabalho, nas
escolas e nos partidos políticos de toda a Europa Ocidental.
Estado, território e nação como formadores de identidades
Gellner64 escreveu que a ideia de nação é uma imposição da
imaginação moderna: um homem deve ter uma nacionalidade,
62 HALL, S. (2006) A identidade cultural na pós-modernidade.
63 Ibid.
64 GELLNER, E. (1983) Nations and Nationalism. Oxford: Blackwell.
Patricia Rangel •
assim como deve ter um nariz e duas orelhas. Ter uma nação,
contudo, não é um atributo inerente à condição humana, apesar de ser o que parece. A nação, segundo Hall,65 além de entidade política, é algo que produz um sistema de representação
cultural. Existe uma narrativa de nação, contada pela literatura
e história nacionais e recontada pelos meios de comunicação
de massa e pela cultura popular. Ela simboliza as experiências
compartilhadas, as conquistas e derrotas que dão sentido à
nação, conectando os indivíduos a um cotidiano e a um destino comum.
E a linguagem, para Negri,66 é a principal forma de constituição do comum: quando trabalho vivo e linguagem se cruzam
(e se definem como “máquina ontológica”), adquirem realidade
e experiência fundadora do comum. A linguagem é, ao mesmo
tempo, meio e resultado de uma ação, onde as consequências
são transformadas em condições.
Uma das estratégias discursivas é a invenção da tradição – um
conjunto de práticas rituais ou simbólicas que injetam valores e
normas de comportamento ao cotidiano, e que, por meio da repetição, implicam na continuidade de um passado histórico que seja
adequado à nação. Há tradições nacionais que se mostram antiquíssimas, mas que na verdade são recentes ou inventadas.
A ênfase em origens, tradição, continuidade e intemporalidade da identidade nacional faz com que os elementos essenciais
do caráter nacional fiquem congelados, imutáveis, a despeito das
65 HALL, S. (2006) A identidade cultural na pós-modernidade.
66 NEGRI, A.; HARDT, M. (2001) Império.
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92
• BARRADOS
irregularidades da história. Também o mito de fundação, uma
estória que localiza a origem da nação, do povo e do caráter
nacional num passado distante, muitas vezes é fruto da invenção
e de tempos bem recentes. Muitas vezes ele é baseado na ideia
de um povo puro, original, ou seja, inexistente.
Tomemos o caso dos territórios que formavam a União
Soviética: com a necessidade de reafirmar identidades étnicas
essenciais, os novos Estados-nação recorreram muitas vezes a
estórias duvidosas de origem mítica, pureza racial e ortodoxia
religiosa para desenvolver suas novas identidades nacionais.
O discurso da cultura nacional constrói, então, identidades
colocadas ambiguamente entre o passado e o futuro. Tentadas
a olhar para trás e a recuar defensivamente para o passado, o
“tempo perdido” no qual a nação era grande e forte, as culturas nacionais caem na armadilha da segregação e acabam por
mobilizar as pessoas na tarefa de “purificar” suas fileiras e expulsar “os outros”, os que sujam o brilho da nação e a impedem de
permanecer grande.
Não somos somente cidadãos brasileiros legalmente, mas
participantes da ideia de nação brasileira tal qual ela é representada em nossa cultura nacional. Por ser uma comunidade
imaginada, a nação gera um sentido de identidade e lealdade.
Lealdade esta que foi sendo transferida da tribo, da religião ou
do povo das sociedades tradicionais para a cultura nacional das
sociedades ocidentais modernas. Neste mesmo movimento, as
diferenças regionais e étnicas foram se tornando poderosa fonte
de significados para as identidades culturais – foram postas sob o
“teto político” do Estado-nação.
Patricia Rangel •
Segundo Hall,67 é preciso ter em mente a forma como as culturas nacionais contribuem para “costurar” diferenças em uma
única identidade. É tentador unir a cultura nacional à expressão
da cultura de um “único povo”. Quando nos referimos a características culturais (língua, costumes, tradições, religião etc.),
explica o autor, o termo que usamos é etnia. É como se ela fosse
o elemento fundador das características partilhadas por um
povo. Contudo, esse pensamento se mostrou um mito. É muito
difícil unificar a identidade nacional em torno da raça, por vários
motivos, mas destaca-se o fato de “raça” não ser uma categoria
biológica com qualquer validade científica: é uma categoria discursiva e falha.
Na Europa Ocidental, por exemplo, não há sequer uma nação
formada por um único povo – todas as nações modernas são
híbridos culturais. Os alemães têm origem germânica, céltica e
eslava; franceses são de origem céltica, ibérica e germânica; os
italianos são a mistura de gauleses, etruscos, pelaginos, gregos
e por aí vai. Como, nos últimos anos, as noções sobre raça têm
sido relacionadas e substituídas por definições de “cultura”, abriu-se espaço para a raça desempenhar um papel de destaque nos
discursos sobre identidade nacional. Surge então um racismo
crescente que não pode ser identificado como tal, pois é capaz
de alinhar raça com nacionalidade. Trata-se de um racismo que
conseguiu se distanciar de ideias grosseiras de superioridade biológica e que busca apresentar a definição de nação como comunidade cultural unificada.
67 HALL, S. (2006) A identidade cultural na pós-modernidade.
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• BARRADOS
Nova soberania, nova cidadania
Nos primórdios do século XX, a ideia de cidadania estava limitada à identidade política e a direitos iguais em determinada comunidade. Foi o Estado-nação, enquanto produtor da humanidade
nos tempos modernos, que assumiu o papel de senhor sobre a
condição humana, decidindo quem é cidadão e quem não é, concedendo proteção aos selecionados e excluindo dos benefícios da
comunidade o forasteiro, o trabalhador sem documentos, os que
buscam asilo, os refugiados de guerra. Noções mais amplas para
a noção de cidadania emergiram no contexto da Segunda Guerra
Mundial e com o horror vivido numa Europa tomada por refugiados. Foi quando Hannah Arendt lançou a reflexão sobre a “condição
humana” baseada em três tipos de atividades exercidas por todas as
pessoas: existimos como seres vivos, temos a capacidade de trabalhar e somos atores políticos. É essa condição unificada de humanidade que passou a ser o centro das demandas por cidadania.
A noção de cidadania foi ampliada de modo a abarcar as consequências dos fluxos migratórios da globalização. Assim, foi sugerido
o termo “soberania pós-nacional”, de modo a lidar com a variedade
de cidadanias que existem dentro de países da União Europeia e
com a diversidade de imigrantes não europeus. Para Ong,68 tem se
tornado cada vez mais claro que a noção de cidadania se altera fundamentalmente com os fluxos de pessoas e ideias, assim como as
novas articulações e demandas em espaços políticos. A autora sustenta que seus conceitos estão cada vez menos fixos e temporais.
68 ONG, A. (2006) Neoliberalism as exception.
Patricia Rangel •
É nesse contexto que surgem grupos que lutam pela inclusão de minorias e imigrantes, tendo como inspiração a busca
por uma convivência e uma existência mais democráticas. Ainda
segundo Ong,69 “cidadania” é o direito de ser diferente, em termos de etnia, idioma e outros aspectos culturais, em relação às
normas da comunidade nacional dominante. Estabelecer critérios de cidadania com base em residência ao invés de identidade
cultural é indicador de normas cosmopolitas, argumenta Benhabib.70 Esse movimento nos remete a Taylor,71 que argumentava
que só há direitos iguais quando existe respeito mútuo a diferenças culturais.
Questionando a identidade nacional
A formação da identidade nacional se dá construindo semelhança a despeito de diferenças. As culturas nacionais em que
nascemos são apontadas como a principal (ou uma das principais) fonte de identidade cultural. Uma cultura nacional, entretanto, é um discurso, uma forma de construir sentido que influencia e organiza não só nossas ações, mas também a concepção
que temos de nós mesmos. A identidade nacional é uma comunidade imaginada.72
69 Ibid.
70 BENHABIB, S. (2004) The Rights of Others.
71 TAYLOR, C. (1994) Multiculturalism: Examining the politics of recognition. Princeton
University Press.
72 ANDERSON, B. (1983) Imagined Communities.
95
96
• BARRADOS
Quando dizemos que somos brasileiros, alemães ou japoneses, estamos falando metaforicamente. Essas identidades não
existem de forma concreta, não estão gravadas em nossos genes,
elas só existem porque pensamos nelas como se fossem parte da
essência de nossa natureza. A cultura nacional, ao produzir sentidos sobre a ideia de “nação” com os quais podemos nos identificar, constrói identidades. Uma cultura nacional se constitui de
três elementos (os mesmos que constituem uma comunidade imaginada): 1) memórias do passado; 2) desejo de viver em comunidade; e 3) perpetuação da herança. Assim, não importa o quão
diferentes os membros de um Estado-nação sejam – em termos
de gênero ou classe, por exemplo –, todos eles são considerados
pertencentes a uma grande família nacional.
As identidades nacionais se manifestam como o resultado da
união da condição de membro de um Estado e da identificação
com a cultural nacional. Entretanto, sabemos que nenhuma cultura
nacional é tão coesa e autocentrada quanto se pretende. Nunca foi
um ponto de lealdade, união e identificação simbólica, nas palavras
de Hall.73 As identidades nacionais não são atributos com os quais
nascemos: são formadas e transformadas pela representação. Portanto, argumenta o autor, deveríamos pensar as culturas nacionais
não como unificadas, e sim como constituidoras de um dispositivo
discursivo que representa, como unidade e identidade, a diferença.
Para Hall,74 as velhas identidades estão em declínio, após
muito tempo servindo de estabilizadores do mundo social. Novas
73 HALL, S. (2006) A identidade cultural na pós-modernidade.
74 Ibid.
Patricia Rangel •
identidades estão surgindo e, com um tipo diferente de transformação, fragmentando as paisagens culturais de etnia, nacionalidade e raça. Isso implicaria na modificação de nossas identidades pessoais e no questionamento da ideia que fazemos de
nós mesmos enquanto sujeitos integrados. Tal perda do “sentido
de si” vem sendo chamada de deslocamento do sujeito ou descentração do sujeito. O duplo deslocamento – dos indivíduos no
mundo sóciocultural e de si mesmos – é o que constitui a crise
de identidade para o indivíduo, que pode ser interpretada como
parte de um processo de transformação mais amplo, que desloca
estruturas e processos centrais da modernidade, além de abalar
os quadros de referência que serviam de âncora para os indivíduos no mundo social.
97
5. O espetáculo
A imprensa pode causar mais danos que a bomba atômica.
E deixar cicatrizes no cérebro.
Noam Chomsky
De como a mídia tem o poder de se apresentar
como instrumento eficaz de denúncia ou
simplesmente produtora de notícias
Após nossos dias de sofrimento em Barajas, fomos recebidos no Rio de Janeiro por um mar de flashes e microfones. Não
podemos deixar de reconhecer a inegável contribuição de toda a
mídia na empreitada de denunciar os abusos cometidos no aeroporto madrilenho, nem esquecer que, não fosse a participação
ativa da imprensa, não teríamos obtido sucesso em mostrar que
havia algo de errado com o tratamento dispensado aos estrangeiros nas portas da Europa. Entretanto, o sentimento de gratidão
e a sensação de dever cumprido foram ofuscados pela conclusão
de que a denúncia havia se tornado espetáculo.
Não se trata, quero enfatizar, de desmerecer o papel da
imprensa em levar à população o conhecimento sobre as arbitrariedades das autoridades espanholas, mas sim questionar em
que medida a transmutação de uma denúncia em uma notícia
pitoresca não reforça preconceitos e estereótipos. Nas notícias
de jornal e matérias de TV que tive a oportunidade de analisar
100
• BARRADOS
depois de meu retorno, pareceu-me que os jornalistas comentavam o problema geral das repatriações em massa, mas focavam em nossa história particular, destacando o absurdo de deter
e repatriar dois jovens de classe média, estudantes de mestrado
com a documentação em ordem e cumprindo todos os requisitos para entrar no espaço Schengen. Outros casos eram citados,
mas sempre no sentido de denunciar histórias particulares de
turistas barrados na Europa.
A imprensa costuma denunciar situações de
abuso, mas raramente explora o problema
que as provoca: ela para na ponta do iceberg
Quando lemos uma notícia, lemos também a visão do mundo
que inspira o jornalista. Assim, é fácil perceber que as manchetes
reproduzem vozes e discursos da comunidade na qual o autor
está inserido, servindo de ferramenta para entendermos como
determinada sociedade pensa. Encontramos nestas manchetes
a reprodução dos discursos sobre as relações entre os povos, do
centro sobre a periferia, das visões e estereótipos etnocêntricos.
Em nenhum momento, pelo menos analisando o material
com que tive contato, pareceu-me que a grande mídia estava
preocupada em denunciar um problema coletivo ou questionar
a divisão do mundo entre turistas e vagabundos. Tive a impressão
que o fato teve repercussão porque preocupou as classes médias
e altas, que viam em mim e Pedro Luiz Lima seus próprios filhos,
que passaram a correr o risco de serem maltratados por policiais
europeus que aplicam normas de imigração a seu bel-prazer.
Patricia Rangel •
Também me pareceu que, mais do que denunciar um problema grave, nossa história serviu para virar notícia. Senti uma
ponta de sensacionalismo na forma como as matérias eram escritas e nas perguntas que nos faziam nas entrevistas. Quanto mais
sofrimento, melhor.
Depois disso, o governo brasileiro negociou com o espanhol,
disse ter acertado as coisas e nossos rostos desapareceram dos
jornais, colocando um ponto final em um problema que não cessou e, na verdade, se agravou. Nos meses que se seguiram, muitos
brasileiros continuaram sendo detidos em Barajas e outros aeroportos europeus. A política de imigração foi endurecida, com a
aprovação da Diretiva de Retorno pelo Parlamento Europeu, que
será analisada no capítulo seguinte. No entanto, muito pouco
sobre isso foi tratado nos jornais brasileiros. Nos jornais europeus,
obviamente, nem na época do auge da crise com o Brasil a notícia mereceu destaque.
Quando a experiência do sofrimento não é apenas
de uma pessoa, e sim um problema coletivo
Presa em Barajas, minha experiência foi única, assim como a
vivência de cada um dos indivíduos que estiveram lá e que passaram por situações de sofrimento e humilhação. Apesar de cada
experiência ter sido única, a questão ilustrada pelo nosso caso não
tem origem particular: trata-se de um problema estrutural que,
portanto, demanda uma solução coletiva. Isso porque ele não
surge de deficiências individuais, e sim de uma rede de instituições
e práticas solidificadas e inculcadas nos atores sociais envolvidos.
101
102
• BARRADOS
A atuação da mídia e dos corpos diplomáticos em denunciar
e solucionar o abuso cometido contra nós especificamente foi de
grande valia, mas não abarca os outros milhares de brasileiros que
passaram pelo que passamos. E esse tratamento especial a um caso
específico só faz perpetuar os abusos cometidos contra os numerosos outros inadmitidos. Destes, muitos optam por calar-se, motivados por medo ou vergonha, e acabam também contribuindo
para alimentar esse sistema de fechamento de fronteiras tão cruel.
É preciso ter em mente que, tratando-se de política, não há neutralidade. Até a inação constitui uma posição e gera consequências. Assim como afirmou Pedro Luiz Lima, a incursão da experiência individual na esfera pública exige que os conteúdos que dizem
respeito à comunidade como um todo sejam universalizados para
que se busque uma boa medida entre o insuperável desconforto
subjetivo e a necessária referência a uma totalidade em que o caso
específico aparece como epifenômeno.
Sustento o argumento de Lima a respeito da diferenciação de
nosso caso. Para ele, enxergar nossa prisão como um mero erro
de aplicação das normas, e não como uma política sistemática de
exclusão, leva à aceitação silenciosa da divisão da humanidade
entre turistas e vagabundos. Sendo turistas, o problema central
estaria em terem nos confundido com vagabundos, como se a
liberdade humana devesse, de fato, estar submetida à liberdade
do dinheiro (levado e trazido por nós turistas, que, portanto,
temos acesso a outras comunidades) e das mercadorias. Ainda
segundo Lima, a publicização de nosso sofrimento e de tantos
brasileiros deve, pelo menos, servir para que lancemos um olhar
reflexivo sobre a barbárie que se reproduz na Europa.
Patricia Rangel •
A imprensa pode mudar visões de mundo.
Mas também pode fortalecê-las
A mídia é uma forma de narrativa, pode ser fonte de história e política, possui um papel transformador ou mantenedor de
visões de mundo e é formadora de opiniões. Ela interage com
a realidade política reproduzindo-a e influenciando-a. É também
um poderoso instrumento, pois participa do processo de formação de mentes, carregado de ideologias. Aquilo que se passa na
televisão é o ensinamento do mainstream. O que se ensina aos
cidadãos é a cultura política de uma sociedade em uma determinada época: suas ideologias, as percepções sobre outros povos,
suas visões de mundo.
No auge do problema das repatriações em massa, consultei
os grandes jornais da Europa e o pouco que encontrei sobre o
assunto eram matérias que justificavam a ação da polícia de fronteira dos Estados do continente e reforçavam não só os estereótipos negativos dos imigrantes oriundos da periferia, mas também
os argumentos de que eles são os causadores dos males sociais
naqueles territórios.
Apesar das denúncias feitas contra a arbitrariedade das autoridades europeias, a mídia brasileira acabou mantendo velhos
preconceitos ao criticar a inadmissão dos turistas sem questionar a legitimidade da rejeição e dos maus-tratos contra os
imigrantes que buscavam no exterior uma vida menos sofrida.
Tampouco foi explorada satisfatoriamente a institucionalização
da xenofobia pelos Estados europeus na adoção de novas políticas imigratórias.
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104
• BARRADOS
Considero, assim como Orlando Miranda,75 que a interpretação
do mundo é “uma floresta de signos e mitos”. O mito é uma inversão do real, a “fala despolitizada” da ideologia que busca construir o mundo que a própria ideologia deseja. Em minha opinião,
a mídia não exerceu, neste e na maioria dos casos, a função de
desvelar os mitos da política internacional. No que depender da
grande mídia e dos Estados xenófobos, continuaremos vivendo
em um mundo divido entre turistas e vagabundos, sem atribuir
reconhecimento, valor ou livre passagem para uma multidão de
sujeitos sem rosto, sem história, sem individualidade.
Muito informados, porém pouco mobilizados
Para Merton,76 as comunicações de massa podem ser consideradas os mais eficazes narcóticos sociais: a exposição exagerada das pessoas à informação pode levá-las a ficar narcotizadas,
em vez de estimuladas. Uma vez que grande parte do tempo é
dedicada à absorção dessa informação, sobra uma parcela bem
menor para a ação organizada. O indivíduo confunde o conhecimento dos problemas cotidianos com a atuação sobre eles. No
caso em questão, observei muita gente informada e pouca ação
por parte da sociedade civil (pelo contrário, li muitas cartas de leitores e comentários na internet questionando as intenções e as
75 MIRANDA, O. (1978) Tio Patinhas e os mitos da comunicação. São Paulo: Summus
Editorial.
76 MERTON, R. K.; LAZARSFELD, P. F. (2000) Comunicação de Massa, Gosto Popular e a
Organização da Ação Social. In: ADORNO, T. et al., comentários e seleção de Luiz Costa
Lima. Teoria da cultura de massa. São Paulo: Paz e Terra.
Patricia Rangel •
condições dos inadmitidos). De acordo com Miranda, “os meios
de comunicação de massa impõem à sua clientela uma visão
fechada, monolítica e padronizada do mundo”.77 Não seria pos­sível
desvincular o problema das “massas” do problema de “classes”. Os
conteúdos dos objetos atenderiam às necessidades ou projeções
da cultura dominante, ou do centro do sistema internacional,
compartilhando de uma proposta global.
A transmutação da denúncia em espetáculo
Quando confidenciei meu estranhamento em relação ao
assédio da mídia a um amigo alemão que, dois anos antes, havia
surgido nas páginas dos jornais após ser sequestrado na Faixa de
Gaza por um grupo de extremistas islâmicos, fui reconfortada por
ele, que me garantiu que em poucos dias nenhum repórter iria
me procurar e que em meses ninguém iria se lembrar da história.
Foi o que aconteceu: tudo não passou de um espetáculo midiático. Para Ronaldo Helal,78 a mídia constrói os fatos, os ídolos, os
mitos, os heróis, e as histórias em acordo com o público. Fomos
então, totalmente ao acaso, transformados em mártires de uma
classe média brasileira que nutre grande afeição pelo território
europeu e que se revolta com a inadmissão de seus turistas.
A imagem tem, em nossa tradição cultural, um poder profundamente sedutor. Ela é privilegiada como uma fonte especial de
77 MIRANDA, O. (1978) Tio Patinhas e os mitos da comunicação, p. 46.
78 HELAL, Ronaldo. (1998) Cultura e Idolatria: Ilusão, Consumo e Fantasia. In: ROCHA, E.,
organizador; LÁZARO, A. et al. Cultura & imaginário: interpretação de filmes e pesquisa
de ideias. Rio de Janeiro: Mauad.
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• BARRADOS
obtenção de conhecimento. Daí o amplo uso de imagens pela mídia, que constrói um mundo apresentado como o único possível. As
imagens podem alcançar alto grau de informação e expressividade,
principalmente em seu elemento verbal. Daí a explicação, quando
chegamos ao Rio, daquele mar de flashes ávidos por captar uma imagem comovente dos maltratados bons filhos que retornavam.
A ideologia da mídia ou a mídia da ideologia?
A linguagem nas relações culturais serve de instrumento e
produto da ideologia. Ela é o mecanismo através do qual agem
as notícias nos jornais, produto de determinado momento histórico e político. Os jornalistas e os intelectuais teriam, portanto,
a função de promover hegemonia ou consenso ideológico na
sociedade civil, como indicava Gramsci.79
Tanto no nosso caso, que ilustra o problema geral da rejeição de
imigrantes do sul nos países do centro, quanto em outras ocasiões,
a imprensa age de modo a reforçar as disposições culturais e ideológicas do grupo dominante na sociedade em questão. Da mesma
forma que indicam Marx e Engels na Ideologia Alemã, a classe que
exerce o poder material dominante é também seu poder espiritual
dominante. Como as elites costumam dispor dos mecanismos de
transmissão da qual se utiliza a política cultural, seu poder material
possui mais chances de impor uma “espiritualidade”, ou ideologia
através da cultura, como afirma Héctor Agostini.80
79 AGOSTI, H. P. (1984) Ideologia e Cultura. Lisboa: Livros Horizonte.
80 Ibid.
Patricia Rangel •
Ignácio Ramonet81 afirma que os veículos de comunicação de
massa utilizam imagens com base em um designo ideológico. Essas
imagens seriam máquinas repetitivas que reproduzem os estereótipos com total liberdade. Assim, a cultura que predomina é a das
classes e das nações hegemônicas, e o processo de formação da
ideologia seria sempre o mesmo: sua raiz é o processo de abstração
que assume como universal a expressão de interesses particulares.
A exclusão por meio da estigmatização
na cultura e na mídia
O indivíduo na sociedade de massa é somente um consumidor
de imagens, informações e opiniões prontas. Estas são reproduzidas no cotidiano, nos diálogos com seus pares, na formação de sua
visão de mundo. O que se fala e o que se escreve na Europa sobre as
nações muçulmanas, por exemplo, são (em sua maioria) representações e análises exógenas, que não ouvem as vozes ou discursos
do objeto em questão. O mundo muçulmano, como conhecem os
europeus, é uma invenção ocidental. Trata-se, a meu ver, de um bom
exemplo para se trabalhar a aversão dos europeus a povos “estranhos”. Portanto, ater-me-ei a essa questão por alguns parágrafos.
Desde tempos remotos, o Oriente foi cenário de personagens
exóticos. A cultura do imperialismo europeu englobava a curiosidade por sociedades asiáticas, afirma Albert Hourani.82 O Oriente
81 RAMONET, I. (2002) Propagandas silenciosas. Massas, Televisão, Cinema. Petrópolis:
Vozes.
82 HOURANI, A. (1994) Uma história dos povos árabes. São Paulo: Companhia das Letras.
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• BARRADOS
foi associado ao berço de histórias fantásticas, o que estimulou a
criatividade de escritores europeus que passaram a escrever sobre
o tema: Goethe e seu Weltöstsliche Diwan, Walter Scott e O Talismã,
entre outros, utilizaram temas islâmicos na criação de um mundo
fantástico, distante, estranho.
A imagem explorada nessas obras é sempre a do cavaleiro árabe
como um selvagem, a sedução das belas mulheres dos haréns e
outros estereótipos.83 Por mais absurdas que possam parecer essas
imagens, elas sobrevivem até hoje em nosso inconsciente e se
reproduzem nos filmes e nos jornais. A partir da Segunda Guerra
Mundial, o muçulmano passou a ser um personagem popular na
cultura americana e nos estudos acadêmicos, principalmente após
as guerras árabe-israelenses. O mundo pós-moderno e sua padronização, através da televisão, dos filmes, dos desenhos animados
e histórias em quadrinhos, reforçou os estereótipos e os rótulos
impostos ao mundo oriental:
Nos filmes e na televisão, o árabe é associado à libidinagem
ou à desonestidade sedenta de sangue. Aparece como um
degenerado supersexuado, capaz, é claro, de intrigas astutamente tortuosas, mas essencialmente sádico, traiçoeiro,
baixo (...) Nenhuma individualidade, nenhuma característica
ou experiência pessoal. A maior parte das imagens apresenta
massas enraivecidas ou miseráveis, ou gestos irracionais
(logo, desesperadoramente excêntricos). À espreita, por trás
83 Ibid.
Patricia Rangel •
de todas essas imagens, está a jihad. Resultado: um temor de
que os muçulmanos (ou árabes) tomem conta do mundo.84
Os “outros” são construções criadas por “nós”
Para Said,85 o Oriente é uma invenção ocidental, uma vez que as
visões propagadas são “fabricadas por uma civilização para inventar uma outra”. Ainda segundo o autor, lugares como “Oriente” e
“Ocidente” são criações das tradições de pensamento e do vocabulário que deram uma realidade e uma presença para cada um
deles. Assim, as duas criações são entidades que se desenvolvem
uma em oposição à outra.
O estudo do Oriente, ou orientalismo, teria servido para
domesticar um saber para o Ocidente, produzindo um discurso
científico que fosse capaz de trazer legitimidade para a autoridade
que as potências europeias exerceram sobre o mundo islâmico.
Como afirma o autor, “no que diz respeito ao Oriente, a padronização e a estereotipação cultural intensificaram o domínio da
demonologia acadêmica e imaginativa do ‘Oriente misterioso’”.86
Essa “estereotipação” inclui o preconceito antiárabe na Europa e a
ausência da possibilidade de se identificar culturalmente ou discutir com neutralidade o islã e os árabes.
A imprensa e o inconsciente do povo europeu estão repletos desses preconceitos. Após 1973 e as contendas do petróleo,
84 SAID, E. (1990) O Orientalismo, p. 105.
85 Ibid.
86 Ibid, p. 120.
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110
• BARRADOS
o árabe muçulmano passou a ser visto como mais ameaçador,
sendo comuns as caricaturas representando um xeque atrás de
uma bomba de gasolina. Ele foi envolto em uma aura negativa,
tomado como perturbador da vida do Ocidente. Tais representações, como qualquer outra, são formações de todas as operações
de linguagem, são deformações. O Oriente, como representação
europeia, é uma deformação a partir de uma região geográfica
denominada “leste”. O problema do Ocidente não é o mundo
muçulmano em si, mas sim o seu próprio racismo.
As imagens da TV não são neutras
As visões ocidentais sobre o Oriente, o processo de “desumanização” do povo muçulmano e seu papel de “não povo”, de
“ser estranho”, diferente e invisível, ficam bem claros na televisão, sobretudo em épocas de conflitos armados em algum território de maioria muçulmana. Bons exemplos são as coberturas
dos telejornais na intervenção no Iraque em 2003 e na Guerra
do Golfo de 1990: neste caso, enquanto a televisão mostrava
inúmeras fotos dos soldados americanos contando sobre suas
famílias, seus amores, suas vidas, nada mostrava sobre “o outro
lado”. Tudo o que passava na TV eram mulheres de véu, crianças
armadas, camelos, provando que “eles” eram machistas, fanáticos e atrasados. Muita simpatia foi despertada em relação aos
americanos, e nada em relação aos árabes: eles se tornaram invisíveis, aponta Arbex.87
87 SACCO, J. (2002) Palestina.
Patricia Rangel •
A mídia trabalha com uma rápida sucessão de cenas sobre
todas as partes do mundo e, em um discurso “objetivo” e neutro, cria uma realidade que é apresentada como a verdade. Os
telespectadores e leitores nem sempre percebem que cenas são
selecionadas, não julgam os critérios de escolha dos entrevistados, o tipo de depoimento que se privilegia. O bombardeamento
da mídia planetária cria em nós a falsa sensação de que já vimos
tudo e conhecemos o mundo todo, que temos capacidade de
julgar o que é certo e o que é errado, quem é civilizado e quem
é selvagem, quem representa o “bem” e o “mal”. Ainda segundo
Arbex, a influência do cristianismo e suas convicções morais contribuem para essa definição, numa lógica maniqueísta de exclusão que elimina muitas possibilidades.
Como as imagens que vemos do mundo não são objetivas,
não são “o mundo”, mas sim “muitos mundos”, a mídia sempre
escolhe um fato para dar destaque. O problema é que quando as
pessoas estão absorvidas pela televisão num estado passivo, não
realizam reflexões críticas e não percebem que as imagens que
assistem não são neutras. A desproporcionalidade de capacidades e a impossibilidade de “o lado de lá” se defender não aparece
nos jornais e nas telas da TV. Joe Sacco88 ressalta o fascínio dos
ocidentais pela violência no conflito: a catástrofe é novamente
transformada em espetáculo e vendida em forma de notícia.
Não existe a preocupação com o sofrimento dos envolvidos na
guerra e os mortos são tratados como números, não como sujeitos capazes de despertar interesse e comoção por sua história.
88 Idem.
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• BARRADOS
São só notícias, e a violência é o que fabrica a notícia. Portanto,
a violência é necessária para dar continuidade ao processo, para
vender a matéria.
Ainda de acordo com Arbex,89 com o fim da Guerra Fria e sua
visão cômoda de que o mundo é dividido em dois, sendo que um
representa o bem e outro o mal, as relações entre os Estados se
tornaram mais imprecisas. Os parâmetros morais que balizam seu
julgamento acabam sendo encontrados na TV e nos jornais. Eles
elegem o “lado bom” e o “lado mau”, criando um mundo composto
por “mocinhos” e “bandidos”, ou Estados “democráticos” e “párias”.
As nações muçulmanas são geralmente classificadas de “tirânicas”,
“más”, são os bandidos das histórias em quadrinhos e filmes.
Said chega a uma conclusão para entender os pontos destacados nesta seção: jornais, filmes e programas de TV “podem
criar, não apenas o conhecimento, mas também a própria realidade que parecem descrever”. Assim, produzindo entretenimento ou conhecimento, cria-se um sistema de verdades e
uma doutrina política que é imposta ao mais fraco. Seguir esse
sistema de verdades, no sentido nietzscheano, transforma-nos
obrigatoriamente em racistas. Um darwinismo social contribuiu
para justificar “cientificamente” a divisão entre raças atrasadas
(orientais-africanas) e desenvolvidas (europeias-arianas). Como
uma convenção, a sociedade ocidental manteve sua separação da oriental-árabe, a ideia de atraso oriental, de diferença e
incompatibilidade.
89 ARBEX, J. (1995) O poder da TV.
6. Jihad vs McWorld
Sie konnen sich nicht vertreten, sie müssen vertreten werden90
Karl Marx
O surgimento dos Estados-nacionais foi
acompanhado de tensões internas que
se reproduzem no sistema internacional
Tensões internas que acompanharam o surgimento dos Estados-nacionais foram, ao longo dos séculos, reproduzidas no nível
supranacional, afirma Benhabib.91 Assim aconteceu com cada um
dos países que formam a União Europeia e a partir daí podemos
desenvolver uma chave interpretativa para o severo problema da
imigração e da xenofobia na Espanha. As políticas de migração são
amplamente afetadas por atores políticos que não são comumente
reconhecidos: os estrangeiros. Estes outsiders não estão nas fronteiras do mundo político, estão dentro dele, atuando como atores
importantes, formadores de identidades e participantes do processo de ressignificação de direitos e identidades coletivas.
Cerca de dois meses após sermos barrados no aeroporto de
Madri, a Itália anunciou o endurecimento das leis de imigração e
repatriou estrangeiros em situação ilegal no país. Em operação que
90 Não podem representar a si mesmos; devem ser representados.
91 BENHABIB, S. (2004) The right of Others.
116
• BARRADOS
durou uma semana, a polícia prendeu 268 e deportou 53. A Espanha
de Zapatero criticou o governo italiano por sua ação, classificando-a­de ato racista e xenófobo, acusação que soa surpreendente.
A polícia espanhola barrou mais de 18 mil pessoas no aeroporto de Madri só no primeiro trimestre de 2008. Neste mesmo
período, mil brasileiros foram inadmitidos ao tentarem entrar no
país. Foi a Espanha também que, pouco antes, anunciou a proposta de pagar 900 euros para imigrantes desempregados retornarem a seus países de origem. Há quase dez anos, o governo já
custeia a passagem daqueles que desejam voltar para casa. Franco
Frattini, chanceler italiano, chegou a afirmar que o governo espanhol adota políticas de imigração tão duras que são verdadeiros
exemplos de métodos de expulsão.
Poucos dias depois, em 18 de junho de 2008, o Parlamento
Europeu aprovou a chamada “Normativa de Repatriação”, ou
“Diretiva de Retorno”, prevista para entrar em vigor dois anos após
sua publicação oficial. Esta propunha a detenção e expulsão de
estrangeiros em situação irregular no território da União Europeia.
Os imigrantes ilegais terão entre sete e 30 dias para abandonar o
país em que se encontram e podem permanecer presos por até
18 meses sem direito a um processo jurídico, além de passar até
cinco anos proibidos de regressar à União Europeia. Além disso, o
retorno forçado pode obrigar o detido a voltar ao último país em
que esteve antes de ingressar na União Europeia, mesmo que não
tenha vínculos com o mesmo. Todos os imigrantes ilegais retidos
receberão tratamento de criminosos. Crianças e adolescentes
não terão privilégios e também poderão ser detidos. A solução
veio a calhar, e italianos e espanhóis pararam de brigar.
Patricia Rangel •
O que há de antigo na novidade da
União Europeia? O caso de Muhammed
Não posso falar sobre a detenção de imigrantes ilegais em
países europeus, pois não convivi com nenhum e nunca pesquisei profundamente o tema. Mas posso garantir que pelo menos
o retorno forçado ao último país, não ao país de origem, não é
uma novidade da norma. Enquanto estávamos detidos em Barajas, tomei conhecimento de pelo menos um caso dessa arbitrariedade. Muhammed, um cidadão marroquino (o mesmo que se
recusou a dividir dormitório com mulheres), estava no aeroporto
de Madri após uma temporada na República Tcheca, esperando
por seu voo de volta para o Marrocos, quando acabou dormindo
em um banco e sendo furtado. Sem a carteira com documentos
ou dinheiro, ele procurou a polícia do aeroporto para pedir ajuda
e acabou sendo detido. Ficou conosco na prisão por dois dias.
Quando finalmente veio sua ordem de deportação, ficou sabendo
que seria mandado para Praga, de onde saiu o voo que o levou a
Madri, não ao Marrocos.
O que a aprovação da Diretiva de Retorno nos
diz sobre o posicionamento dos Estados
europeus perante o mundo?
A aprovação da Diretiva de Retorno, como norma comum a
todos os membros da União Europeia, e o endurecimento das políticas de imigração por parte de Estados específicos nos fazem pensar
que a Europa se esqueceu das ondas de imigrantes que enviou aos
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118
• BARRADOS
países cujos cidadãos hoje rejeita. Esquece-se também que muito
da identidade europeia não tem origem endógena. As identidades
coletivas das democracias liberais cada vez mais são influenciadas
pelo elemento multicultural. Sobretudo na Europa, a face da cidadania tem se transformado graças à contribuição dos estrangeiros.
Além disso, a maneira pela qual se tratam os “outros” expressa a
consciência moral e a reflexividade política de um povo. E a forma
como a Europa tem tratado os estrangeiros não parece condizer
com sua longa e sólida tradição democrática. As trocas de farpas entre espanhóis e italianos tampouco parece condizer com
a imagem que ambos tentam instituir no sistema internacional.
A Diretiva de Retorno nos faz lembrar dos comentários de Foucault acerca do Antigo Regime, no qual qualquer crime era um ataque pessoal ao soberano, uma vez que a força da lei era a força do
príncipe. Para que uma lei fosse eficaz, seria preciso que ela emanasse
diretamente do soberano. Assim, o castigo pelo crime cometido era
uma forma de vingar pessoal e publicamente o soberano, de vingar
o desprezo pela sua autoridade. O que sustentava a prática de suplícios naquele período era a economia do exemplo e a economia do
medo. A nova política europeia parece, assim como os suplícios do
Antigo Regime, apoiar-se nas mesmas duas bases, fazendo com que
o imigrante ilegal em potencial perca a vontade de arriscar.
A semiótica utilizada para armar o poder de punir se baseia em
algumas regras que podem ser identificadas na normativa aprovada
pelo Parlamento Europeu: a regra da idealidade suficiente, ou seja,
a eficácia da pena está em mostrar a desvantagem do crime, não
na sensação de dor, mas sim de desprazer (a lembrança do sofrimento impede, ainda, a reincidência); a regra dos efeitos laterais, de
Patricia Rangel •
convencer os outros de que o infrator foi punido, direcionada aos
que não cometeram a falta; a regra da certeza perfeita, para que as
leis sejam claras na definição do crime e suas penalidades.
No projeto político de classificar as ilegalidades e delimitar
o poder de punir, afirma Foucault, o criminoso é tomado como
inimigo de todos, desqualificado como cidadão e aparece como
fragmento selvagem da natureza. Em todos os sentidos, a Diretiva
de Retorno torna o imigrante irregular um criminoso.
O vento da xenofobia encontra os ventos do sul
A reação por parte dos países do sul veio de forma tão abrupta
e intensa quanto a aprovação e o conteúdo da nova norma europeia. Na ocasião da Cúpula dos Chefes de Estado do Mercosul,
que aconteceu na Argentina em 2008, os presidentes de países
do Mercosul e nações associadas condenaram a política de imigração europeia. O presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez, proferiu
declaração contra a nova lei. Ele relembrou que a Europa mandou
ondas de imigrantes para a América Latina, recebidos com respeito, tolerância e com a oportunidade de levar adiante suas vidas.
Vázquez, Cristina Kirchner (Argentina), Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil), Nicanor Duarte (Paraguai), Evo Morales (Bolívia), Hugo Chavez
(Venezuela) e Michelle Bachelet (Chile), além de ministros e outras
autoridades de Equador, Colômbia e Peru já haviam se manifestado
contra a política por considerá-la uma manifestação de xenofobia.
O Parlamento do Mercosul também aprovou por unanimidade
moção de repúdio à normativa europeia. Os parlamentares de
Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai consideraram que a norma
119
120
• BARRADOS
viola o direito à livre circulação internacional e direitos humanos
básicos. A moção também expressava a esperança de que o Parlamento Europeu revisse sua decisão que, segundo o documento,
é equivocada, estéril e mancha a imagem da Europa. A moção
foi encaminhada ao Parlamento Europeu, ao Conselho da União
Europeia, à Organização das Nações Unidas (ONU), à Organização
dos Estados Americanos (OEA) e à Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, entre outros organismos internacionais.
O presidente Lula se declarou preocupado com o vento da
xenofobia que “sopra falsas respostas aos desafios da economia
e da sociedade”. Segundo a Chancelaria brasileira, o tema deixou
de ser um assunto consular e passou a ser político, como afirmou
o ministro das Relações Exteriores Celso Amorim. A Chancelaria
argentina, em nota, reiterou que migração não é crime e rejeitou
o uso de conceitos como “migração ilegal”. Segundo o documento,
imigrante sem documentação é considerado “irregular” em países
latino-americanos, não “criminoso”. O então presidente eleito do
Paraguai, Fernando Lugo, classificou a aprovação da lei de ingratidão por parte dos europeus e também citou que no passado os
países sul-americanos receberam bem os imigrantes que fugiam da
guerra na Europa. A Câmara dos Deputados do país aprovou uma
declaração rejeitando a norma e qualificando-a de abusiva.
Na Venezuela, o presidente Hugo Chávez denominou a diretriz europeia de “lei da vergonha”, utilizando o termo lançado por
seu homólogo boliviano, e cogitou não exportar mais petróleo à
Europa, além de cancelar os investimentos europeus no país. Evo
Morales disse não descartar a adoção de medidas de represália
como a interrupção das negociações comerciais em andamento
Patricia Rangel •
entre a Comunidade Andina de Nações e a União Europeia. Na
véspera da aprovação, Morales publicou uma carta aberta no jornal britânico The Guardian denunciando a injustiça e insensibilidade da proposta. Rafael Correa, presidente do Equador, repetiu
o termo usado por Morales e também ameaçou cortar o diálogo
entre a Comunidade Andina de Nações e a União Europeia. Para
ele, países civilizados não podem falar com países que exerçam
esse tipo de conduta. Os chanceleres da Colômbia, do Equador e
do Peru enviaram ainda uma carta à União Europeia solicitando
reflexão conjunta acerca dos efeitos da nova política.
Ainda em junho de 2008, a OEA aceitou um pedido feito pelo
Peru para avaliar a diretiva em sessão extraordinária. Segundo Jose
Belaunde, chanceler do país, a posição de todos os países da América Latina foi de reprovação da norma. Em julho de 2008, o Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (HCR, na sigla
em inglês) fez um apelo à presidência francesa contra o endurecimento da política migratória da União Europeia. A Rede Estatal
pelos Direitos dos Imigrantes (Redi), da Espanha, promoveu uma
jornada de protestos em várias cidades do país.
A presença dos que vêm de fora contribui para rearticular
o significado do universalismo democrático
A norma aprovada pelo Parlamento Europeu joga por terra a
riqueza, em amplos significados, trazida pelos imigrantes. Benhabib92
sustenta que a presença dos “outros”, dos imigrantes, dos que vêm
92 BENHABIB, S. (2004) The right of Others.
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• BARRADOS
de fora e que não compartilham nem da memória da cultura dominante nem de suas disposições morais, contribui para rearticular o
significado do universalismo democrático. Para a autora, não existe
formação de identidade coletiva sem conflito. As identidades não
são dadas ou estáveis, e pensá-las dessa forma permite que se argumente (como Walzer e Rawls) que os outros constituem uma ameaça
à coesão e a solidariedade de uma comunidade. Mas como fazê-lo
se a identidade coletiva das democracias liberais nunca foram tão
coesas ou autocentradas como tais teóricos supõem?
Aqueles que residem na comunidade e não gozam de cidadania plena podem ser de três tipos: os que não atendem aos critérios
de identidade definidos pelo povo para si mesmo; os que pertencem a outra comunidade; e os que escolheram permanecer fora.
De qualquer forma, são vistos como forasteiros ou estrangeiros
que possuem status diferenciado dos cidadãos de segunda classe.
Aqui estão os refugiados, migrantes e aventureiros. A reconfiguração democrática dá voz a modelos de cidadania transnacionais,
segundo a autora. Modelos de representação não baseados em
territorialidade são certamente possíveis.
Para Negri e Hardt, nomadismo e mestiçagem, frequentemente apontados como efeitos migratórios negativos induzidos
pela não distribuição de poder e riqueza, são armas a serem usadas
contra ideologias reacionárias. Para eles, a multidão,93 conceito que
93 “Multidão” refere-se a uma pluralidade de singularidades, pois as pessoas não são iguais. É
uma ideia diferente de “povo” ou “Volk” (unidade artificial do Estado moderno como base de
legitimação) e “massa” (conceito que a sociologia realista assume na base do mundo capitalista de produção, unidade indiferenciada). Também se contrapõe a “classe” (o trabalhador
se apresenta como portador de capacidades imateriais de produção, seu instrumento é o
cérebro. Por isso, os trabalhadores se constituem em multidão, em vez de classe).
Patricia Rangel •
se relaciona diretamente à relativização das fronteiras, deveria ser o
sujeito de uma revolução dentro do “Império”, não só no sentido político mas também no ético e cultural, uma profunda modificação
antropológica, uma mestiçagem e hibridação das populações, uma
metamorfose biopolítica. Já que o capitalismo está em todos os lugares, é possível contestá-lo de qualquer lugar.
Imigração ilegal: irregularidade ou crime?
Por coincidência, durante o ano no qual ocorreu o incidente em Barajas, dividi minha casa com uma cidadã francesa
que, durante um período, chegou a ficar em situação irregular
no país. Acompanhando de perto sua angústia por conta das
dificuldades para se conseguir um visto de trabalho aqui – os
requisitos são muitos e difíceis de se cumprir e a ausência do
visto de trabalho dificulta a conquista de um emprego, num
processo de retroalimentação –, pude descobrir como a vida
de imigrante, ainda que europeu, é por natureza sofrida.
Com o convívio com minha amiga francesa, ficou bem claro
para mim que um dos fatores que levam alguém a se tornar um
“ilegal” são as barreiras institucionais à legalização de sua situação
no país hospedeiro. Infelizmente, tais barreiras obrigaram minha
amiga a desistir do Brasil. Felizmente, ela não o fez depois de 18
meses encarcerada e nem está impedida de retornar nos próximos anos, como aconteceria comigo se fosse pega habitando
ilegalmente qualquer país europeu após a entrada em vigor
da Diretiva de Retorno. Eis a diferença entre o “berço da civilização” e o “território da barbárie”: neste, imigração ilegal é uma
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• BARRADOS
irregularidade, naquele, um crime. O medo e a revolta provocados por tais políticas de imigração somente afastam pessoas e
empobrecem os relacionamentos humanos.
Migração
Segundo Ong, a oscilação entre neoliberalismo como exceção
e exceção ao neoliberalismo cria uma deformidade social de inclusão e exclusão que transforma expatriados prósperos em um tipo
ideal de cidadão numa comunidade estrangeira, e imigrantes com
baixa qualificação em máquinas de trabalho excluídas do mundo
social. Esses imigrantes, classificados como não cidadãos, são privados de qualquer tipo de proteção por parte do Estado em cujo
território vivem. É importante ressaltar que refugiados e imigrantes forçados a sair de seu país por motivos econômicos são os que
mais necessitam de garantia de direitos, apoio contra exploração
no trabalho e outras formas de abuso.
Estes marginalizados, excluídos globalmente – pois não possuem condições de continuar em seu país e são rejeitados na nova
comunidade – sofrem com as piores condições de vida e são negados à proteção humana da cidadania legal. Esta, em um contexto de
crise humanitária, é somente um dos diversos esquemas de revaloração humana. Cidadãos de segunda classe, segundo Benhabib,94
podem ser considerados membros do povo soberano por vínculos
culturais, familiares e religiosos ou não, por falta de identidade com
o povo (escravos africanos nas Américas, por exemplo).
94 BENHABIB, S. (2004) The right of Others.
Patricia Rangel •
Em relação à incorporação ou exclusão dos imigrantes, não
podemos deixar de lado a relevância que possui a educação.
Trata-se de um aspecto central da assimilação que compreende uma forma institucional de transformação de imigrantes
em europeus. De fato, dos milhares de refugiados e imigrantes
empobrecidos, os que conseguem, mesmo que timidamente,
ascender em alguma sociedade do mundo europeu, são aqueles
que tiveram formação acadêmica considerável. A educação interpreta um papel relevante tanto para melhorar as condições de
vida dos imigrantes quanto para moldar suas mentes e fazê-los
se encaixar nos padrões da cultura dominante dessa sociedade.
A questão da imigração à luz das mutações do capitalismo
Segundo Ong,95 a ordem neoliberal negou a determinadas
populações e lugares o usufruto de benefícios gerados pelo
desenvolvimento capitalista. Os imigrantes ilegais viveriam em
outra dimensão, como exceções ao liberalismo e do liberalismo.
Hall96 questiona em que medida as identidades culturais
nacionais estariam sendo afetadas pela globalização no fim do
século XX e início do XXI. Ele aponta um complexo de forças
e processos de mudança que atravessam fronteiras integrando
comunidades e organizações em novas combinações, tornado
o mundo mais interconectado. Esse processo de “globalização”
implicaria num afastamento necessário da ideia clássica de
95 Ibid.
96 HALL, S. (2006) A identidade cultural na pós-modernidade.
125
126
• BARRADOS
“sociedade” e em sua substituição por uma perspectiva que se
concentra na forma como a vida social é ordenada ao longo do
espaço e do tempo.
Tudo isso resultaria na compressão de distâncias e escalas de
tempo, e implicaria em mudanças nas identidades. Assim, ainda
para Hall, as identidades nacionais estariam se desintegrando ao
mesmo tempo em que seriam, com outras identidades locais ou
particularistas, reforçadas pela resistência ao processo de globalização. De qualquer forma, as identidades nacionais estariam em
declínio e sendo substituídas por novas identidades híbridas.
A localização permanentemente
temporária de imigrantes e refugiados
como fonte de exclusão
Quando um imigrante, voluntário ou involuntário, ou um
asilado chega ao país hospedeiro, acredita que seus sofrimentos, de qualquer natureza, ficaram para trás. Contudo, o que lhe
aguarda é, na maioria das vezes, mais sofrimento. Seu status
de não cidadão ou cidadão de segunda classe, numa localização permanentemente temporária, lhe impede de criar raízes
e se desenvolver de forma plena, configura uma fonte eterna
de exclusão.
No caso um refugiado, o indivíduo não pode voltar ao seu país
porque suas formas de subsistência foram destruídas. Para ele,
não há um caminho promissor pela frente, pois nenhum governo
vê com bons olhos o fluxo de milhões de indivíduos desprovidos
de condições materiais adentrando as fronteiras de seu país. Sem
Patricia Rangel •
identidade definida, esses novos moradores são estigmatizados.
Suas identidades originais dificultam a busca por uma identidade
nova e mais adequada à realidade que se apresenta.
O medo como o combustível no qual queimam
violência e exclusão do estrangeiro
No mundo contemporâneo, cada vez mais as pessoas se
encontram desgastadas e temerosas em relação ao futuro, ofuscado pela neblina que cobre suas esperanças, e buscam desesperadamente um responsável para seus problemas e preocupações. Ninguém melhor que o outsider pode cumprir esse papel: o
estrangeiro, que possui disposições morais distintas, cujas ações
são imprevisíveis, ele sim rouba empregos e traz o crime. Segundo
Bauman,97 a incerteza das buscas existenciais, que atormenta
todos os humanos, é potencializada com a presença de estranhos visíveis e próximos. O sentimento de insegurança e a falta
de perspectiva estimulam a xenofobia, servem de combustível
no qual queimam o ódio e o desprezo ao elemento estrangeiro.
Os imigrantes seriam uma fonte inesgotável não só de ansiedade,
mas também de uma agressividade que permanece adormecida
na maior parte do tempo.
O medo do desconhecido, que necessita ser escoado por canais
confiáveis, é despejado sobre os forasteiros, que simbolizam o não
familiar, o opaco, a ameaça em si. É encarcerando e deportando os
estrangeiros que se pode restaurar a segurança e a estabilidade que
97 BAUMAN, Z. (2004) Amor Líquido.
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foi perdida. Quando uma categoria de forasteiros é expulsa do convívio de uma comunidade, exorciza-se o fantasma da incerteza e o
monstro da insegurança, como se um ato de violência solucionasse,
e não aprofundasse, um problema multifacetado e complexo.
A não cidadania como produto da história
A exclusão dos estrangeiros na Europa é um problema multifacetado e complexo, produto de um longo processo histórico.
Nos últimos 200 anos, aqueles que não conseguiram se transformar em cidadãos foram sendo tomados como problema e tratados como tal. Aceitos como simplesmente um mal a ser erradicado, esses não cidadãos foram combatidos não só pelo Estado
hospedeiro, mas por outras potências que respaldam a visão
do imigrante como problema e direcionam sua atenção para
preservar a inviolabilidade do que Bauman chama de trindade
território-Estado-nação.
Como dito anteriormente, toda aposta na pureza produz
sujeira. O medo do surgimento dos monstros produzidos pela
trindade permitiu que o poder soberano encarnado nos Estados
impusesse regras de imigração absurdas. O trabalho dos Estados
em produzir, com a ajuda de instituições políticas e sociais, identidades centradas na noção de territorialidade, obteve sucesso em
impedir a emergência de princípios éticos globais que, aliados à
inexistência de uma rede institucional global (agências globais de
controle democrático eficazes, sistema jurídico global etc.), fazem
com que o surgimento de uma comunidade global permaneça
incubado como uma utopia.
Patricia Rangel •
Segundo Eric Hobsbwam,98 apesar de não ser um fenômeno
novo, a xenofobia foi reforçada pelos intensos movimentos migratórios na Europa e nos Estados Unidos. Há uma longa tradição
de hostilidade à imigração em massa, despertada pelo medo da
ameaça que os imigrantes representam à identidade cultural e
coletiva. A ideologia do capitalismo globalizado e dos mercados
livres, adotada pelos principais Estados, fracassou em estabelecer
a livre movimentação da força de trabalho, ao contrário do que
aconteceu com as mercadorias.
Em todos os países de regime democrático, a frase “serei duro
com o crime” se tornou um trunfo nas eleições. As promessas e as
ações são feitas no sentido de aumentar o número de cadeias, de
policiais e da duração das sentenças, de impedir a imigração, cortar direitos de asilo e naturalização (motivadas pelo argumento
que o crime é praticado por forasteiros, baseado num estereótipo
que tem suas raízes no ódio étnico). A Diretiva do Retorno segue
a lógica eleitoreira que busca aplacar a insatisfação de ordem
econômica e a insegurança dos milhões de europeus temerosos.
E não se trata de um fenômeno novo – grande parte do tempo
e da energia dos governantes de países da União Europeia foi
gasto com o planejamento de formas mais sofisticadas de fechar
as portas do continente e de processos mais eficazes para se livrar
de refugiados e migrantes.
Tempos atrás, por exemplo, o ministro do Interior do Reino
Unido, David Blunkett, chegou a ameaçar suspender a ajuda aos
98 HOBSBAWM, E. (2007) Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo: Companhia
das Letras.
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• BARRADOS
países que não resgatassem seus “imigrantes desqualificados em
busca de asilo”. Na realidade, culpar os estrangeiros por todos os
aspectos da doença social dos tempos contemporâneos tem se
tornado um hábito global. E as patologias sociais não são poucas: radicalização da individualização, alienação, anomia, desencantamento, miséria espiritual, perda do sentimento do mundo,
perda da liberdade, perda da comunidade. Bauman99 cita o interessante exemplo dado por uma pesquisadora para a Reforma
Europeia: “os alemães culpam os poloneses, os poloneses culpam os ucranianos, os ucranianos culpam os quirguizes, que, por
sua vez, culpam os usbeques”.
A redução do direito de asilo político e a recusa
dos migrantes econômicos como resultado
da falta de estratégia dos governos europeus
Podemos ter certeza que a nova norma será acompanhada de
um acirramento no controle de imigração nos aeroportos europeus. Deportações e expulsões maculam as credenciais internacionais dos países, então a maior parte dos governos prefere
fechar as portas para os que batem nelas em busca de abrigo ou
de uma vida nova. Daí a tendência atual de reduzir o direito de
asilo político de forma drástica e da recusa taxativa ao ingresso
dos chamados “migrantes econômicos”, ou migrantes voluntários.
Na realidade, essa tendência não expressa uma nova estratégia em relação à imigração, mas sim uma ausência dela por
99 BAUMAN, Z. (2004) Amor Líquido..
Patricia Rangel •
parte dos governos europeus, e devemos admitir que as manifestações de insurgência violenta em nível global contribuíram
para justificá-lo. Além de ladrões de empregos, portadores de
doenças contagiosas e criminosos comuns, os estrangeiros,
após os ataques 11 de setembro, são frequentemente suspeitos de terrorismo. O caso do brasileiro Jean Charles de Menezes
é exemplo disso. Ele foi morto em Londres pela Scotland Yard,
que alegou tê-lo confundido com um suposto terrorista árabe.
O elemento estranho é tomado de antemão como perigoso,
que precisa ser detido ou exterminado, se permitido.
O que as autoridades europeias não percebem, ou fingem
não perceber, é que o problema não desaparecerá com o fechamento de fronteiras. Os refugiados não podem ser desativados ao
apertar de um botão e continuarão sendo alvo fixo para o escoamento do excesso de angústia da população do país hospedeiro.
O fundamentalismo é essencialmente antimoderno e infrutífero,
para Peter Demant.100 Este sustenta que proteger militarmente o
“mundo moderno urbanizado” contra atentados de fundamentalistas islâmicos, por exemplo, é necessário, porém não é suficiente para
mudar a relação entre o Islã e o Ocidente. São necessárias mudanças
estruturais que permitam um relacionamento menos desigual, que
levem a repensar as relações. Essa coexistência pacífica só será possível se baseada no respeito mútuo e na celebração da diferença,
valores primordiais embutidos na modernidade multicultural.
A comunicação entre a Europa e o sul deve ser autêntica e
implicar em reformas internacionais concretas. Ainda seguindo
100DEMANT, P. (2004) O Mundo Muçulmano. São Paulo: Contexto.
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132
• BARRADOS
as sugestões de Demant, uma coexistência que seja ativa deve se
basear no conhecimento do “outro”, no exame de seus elementos
de identidade e da compatibilidade com os mesmos.
Da sedução do conto da aldeia global e da (im)possibilidade
de uma humanidade unida por uma cidadania cosmopolita
Muitos estudiosos contemporâneos têm destacado a dominação do ponto de vista da sedução, não da sujeição. Incorporamos
ideias e mitos acerca de um mundo globalizado, de distâncias
curtas, sem barreiras, no qual poderíamos transitar livremente em
busca de novas experiências e aprendizados. Contudo, cada vez
mais uma cidadania global e um direito cosmopolita parecem
distante da realidade de nosso mundo. Poucos meses depois de
nosso retorno do cárcere em Barajas, tive a oportunidade de ler
um excelente artigo escrito por Bruna Nunes,101 aluna brasileira
em uma universidade espanhola. Ela narrava com clareza suas
impressões sobre a experiência no exterior e analisava as motivações que a levaram a optar por cursar a pós-graduação na
Europa. Suas palavras sintetizavam o meu sentimento, e creio que
de meus companheiros de mestrado, quando recebemos a aprovação dos trabalhos pela comissão de avaliação do congresso da
Associação Portuguesa de Ciência Política.
Dizia ela que havia sido seduzida pelo conto da aldeia global,
pela atração da cidadania cosmopolita e pela ideia da suspensão
de fronteiras. Ela teria, assim como nós, se esquecido do fato que
101Artigo publicado no jornal O Globo, em 25/06/2008.
Patricia Rangel •
nenhum avanço tecnológico é capaz de transformar as antigas e
sólidas estruturas da desigualdade social e cultural no mundo. Teria
sido a aprovação da Diretiva de Retorno a responsável por acordá-la
de seu sonho idealista. No meu caso, despertar desse sonho ocorreu­
de forma um pouco mais agressiva, mas creio que o resultado tenha
sido o mesmo. Apesar de entristecer-me com os resultados e o significado da aprovação dessa norma, fico feliz por saber que, pelo
menos, ela teve a função de chamar a atenção dos povos do sul
para a situação absurda que se apresenta diante de nós.
Como muitos outros, eu e Nunes pensamos que políticas de
imigração como esta, destinadas ao controle da imigração ilegal
e das fronteiras, não são efetivas. A ausência de normas que regulem a situação dos “ilegais” e o endurecimento do controle jogam
esses indivíduos, já tão fragilizados por sua situação econômica
e pelo sofrimento causado pela exclusão social, nas mãos de
quadrilhas especializadas em extorquir o pouco que lhes restou,
incrementando assim o lucrativo negócio das redes de tráficos
de pessoas. Além disso, esse tipo de política alimenta a crescente
xenofobia nos Estados europeus, legitimando a culpa atribuída
aos estrangeiros por todos os males sociais que emergem nesses
territórios. Por fim, ela joga uma pá de cal no projeto de cidadania
cosmopolita idealizado por Kant há 200 anos e que, em determinados momentos da história, começou a ser colocado em prática.
Falamos em projeto e não sonho porque, por mais distante
que pareça estar de nós, a ideia de um mundo no qual a espécie
humana esteja unida por meio de uma cidadania comum não
é mais absurda do que seu oposto. Afinal, por mais clichê que
isso possa parecer, um sonho que se sonha junto é realidade.
133
134
• BARRADOS
E é disso que se tratam os projetos políticos: de sonhos que se
sonham juntos. Sei que hoje essa ideia está muito mais para uma
utopia do que para um possível projeto político da humanidade.
Certamente não serei eu a clamar “cidadãos do mundo inteiro,
uni-vos”.
E agora cá estou eu, com minha humanidade recuperada, voltando para o Rio após uma semana produtiva de debates e palestras do evento em Belo Horizonte, no qual, mesmo que modestamente, me senti parte importante, sem a qual o congresso teria
sido de alguma forma mais pobre. Afinal, é assim que um indivíduo que tem seu reconhecimento devidamente situado costuma se sentir. E, perdendo-me nessas divagações, desejo que
esse projeto um dia seja posto em prática. Creio que não viverei
para isso, mas gostaria de pensar que ele é possível. Não consigo
me conformar com o fato de ver, assim como disse a colega mestranda na Espanha, meus filhos impedidos de encher suas malas
com as experiências que eu (antes de Barajas) enchi a minha. Vê-los participar do conto da aldeia global através apenas de seus
computadores, será indubitavelmente triste.
Barajas se tornou, para mim e para muitos outros, sinônimo de
prisão. Espero que em breve, para todos e todas, Barajas volte a ser
o nome de um aeroporto, porta de entrada para um mundo de
experiências e oportunidades.
Upon arriving to the melting pot
I get penciled in as a goodamn white
Now that I am categorized
Officer gets me naturalized
Now that I’m living up in God knows where
Sometime it gets hard without a friend
But as I am lurking around
Hoptza! I see another immigrant punk!
There is a little punk rock mafia
Everywhere you go
She is good to me and I am good to her...
Legalize me! Realize me!
Despite the living up in USA
I’m still holding up in all my ways
I gotta friends, we gotta band
We still make sound you can’t stand
Without banging on some big old pot
Without getting out of bed
But I’m relaxed, I’m just lurking around
Hoptza! I see another immigrant punk!
There is a little punk rock mafia
Everywhere you go
She is good to me and I am good to her...
Legalize me! Realize me!
Party!
Of course we immigrants wanna sing all night long
Don’t you know the singing salves the troubled soul?
So I’m relaxed, I’m just lurking around
I got a method and you don’t
You got a dictionary kicking around?
Look up the immigrant, immigrant, immigrant punk!
(“Immigrant Punk”, Gogol Bordello)
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Repercussão
Ao invés de realizar uma apresentação de 20
minutos em Portugal, Patrícia Rangel foi detida
no aeroporto de Barajas, Espanha, por mais de 48
horas. Para a polícia, era somente uma operação
Patrícia Rangel, estudiosa e militante feminista é
doutoranda em Ciência Política na Universidade de
Brasília, mestre pelo antigo Instituto Universitário de
Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e bacharel em
Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Mineira de Juiz de Fora,
sempre se considerou uma pessoa do mundo. Sua
opção pela carreira acadêmica contribuiu para
que ela se tornasse uma “cigana estudiosa”, como
costuma brincar. Inglaterra, Rio de Janeiro, Brasília
e Buenos Aires são alguns dos lugares que ela já
chamou de lar. Fora isso, já conheceu boa parte do
continente americano e da Europa: considera viajar,
BARRADOS • Patricia Rangel
de rotina – afinal de contas, um terço dos brasileiros que residem no exterior são imigrantes ilegais;
para a grande mídia, mais uma matéria inusitada;
mas para Patrícia, essa detenção na fronteira euro-
Um ensaio sobre os brasileiros
inadmitidos na Europa e o
conto da aldeia global
peia foi uma experiência traumática e transformadora. Graças a sua sensibilidade, ela foi capaz de
entender seu caso como universal. Tendo sentido
na pele o que significa ser detida arbitrariamente,
em seu retorno ao Brasil, realizou um percurso
teórico (via Foucault, Bauman, Negri e outros)
para reconceitualizar o que havia acontecido
com ela e transformar sua própria experiên­cia
em um estudo de caso etnográfico da injustiça
que tantos imigrantes de países em desenvolvimento sofrem ao visitar a “Fortaleza Europa”.
Barajas não é Auschwitz nem Guantánamo, mas
no extremo todos podem ser considerados variações do campo que separa o “Nós” dos “Outros”.
Ao mesmo tempo em que esse livro pode ser lido
como uma investigação sociológica sobre a “terra
de ninguém” que separa a barbárie da civilização,
ele também é um relato do quanto custaram a
Patrícia seus 15 minutos de fama.
além de um vício, uma expressão de sua condição
humana, como já havia argumentado Kant há mais
Fredéric Vandenberghe
de 200 anos. Aos 17 anos, foi estudar inglês em
Professor visitante de sociologia
Londres e desde então não parou mais em casa.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
Pelo menos até ser arbitrariamente barrada em
Barajas, experiência sobre a qual fala neste livro.
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Um ensaio sobre os brasileiros inadmitidos na Europa e o conto da