Ano 1 | Nº 3 | Mar 2013
ISSN 2316-8102
O CORPO DO OUTRO – O EROS ELETRÔNICO
por Tales Frey
Por motivos tão internos, os quais impossibilitam discernimento com rigorosidade
para melhor esclarecimento, os observadores deixavam a sala da performance-instalação de
Fábio Lopes com ares explícitos de um sentimento de solidão corrosiva. Certamente, não se
sentiam mal por terem abominado o trabalho de Subterrâneo: o corpo distribuído, mas por
terem sido verdadeiramente tocados, interpelados profundamente por algo. Cada observadorparticipante da sua maneira e, por mais que saíssem disfarçados nos seus aspectos blasés, a
sensação era subentendida e garantia a certeza de um efeito unânime causado.
O trabalho não podia ser apreciado por um grupo a um só tempo; era permitida a
entrada de um observador por vez na sala do NEC (Núcleo de Experimentação Coreográfica)
da cidade do Porto, onde estava disposto um computador no chão com imagens em
movimento de homens em ações de sexo explícito. Eram frames diversos, ou melhor, trechos
do filme “Mates” de António da Silva, que, assim como no filme original, exibiam a troca de
cenas homoeróticas em alta velocidade de diversas transas acompanhadas por um som
interminável de um cão latindo.
Resumidamente, a imagem a ser vista, em uma sala de 6 x 6m, era apenas um
computador a exibir cenas eletrizantes de homens fazendo sexo selvagem – sexo animal. O
computador, com as tais imagens em movimento, era algo tão pequeno naquele espaço, mas
auferia uma monstruosa dimensão que mal podia caber naquele lugar. A sala se tornou ampla
ao lado da proporção real da obra, mas minúscula em relação ao avassalador tema que ela
propôs: a apavorante solidão contemporânea com o advento da tecnologia.
Subterrâneo: o corpo distribuído. Performance-instalação de Fábio Lopes
A visita à performance-instalação de Fábio Lopes – desenvolvida com colaboração de
António da Silva e Paulo Brás – era feita com um aparelho de telemóvel (telefone celular)
recebido logo na entrada e, ao adquiri-lo, o espectador não era orientado com nenhuma
instrução; contava, portanto, unicamente com o imprevisto. Então, em um pequeno corredor,
num canto da sala, uma luz acesa – vinda de outro cômodo – indicava o acesso a um
minúsculo banheiro, onde o vaso sanitário e o bidê estavam abarrotados de terra e ladeavam
arranjos de flores com cartões tais quais vemos em um velório, no entanto, havia um número
de telefone indicado em um desses papéis.
Subterrâneo: o corpo distribuído. Performance-instalação de Fábio Lopes
Subterrâneo: o corpo distribuído. Performance-instalação de Fábio Lopes
Ao discar para o número ali recomendado, o performer atendeu. O medo de ser
observado ao falar, de ter a conversa gravada ou de ser surpreendido pelo próprio artista que
estava ausente no espaço tomava conta de quem vivenciava aquela experiência. O diálogo era
exclusivo para cada caso; não havia como ser repetido. Podia ser um lamento, um desabafo
sobre as impressões acerca do que estava sendo ali visto, uma troca inflamada de confissões
de desejos, enfim, tudo podia ser conversado. Acredito que o diálogo do outro espectador
tenha sido tão particular quanto o meu, tão único quanto o que eu estabeleci com o artista.
O telefone disposto naquele banheiro nos faz lembrar de portas de banheiros públicos
masculinos, onde há revelada a ânsia de certos sujeitos em frases curtas com seus contatos de
e-mail e telefone, sendo um meio eficaz para estabelecerem encontros com qualquer
desconhecido. Por fetiche talvez, ou ainda, pela desesperada vontade de rescindir com o vazio
da solidão através do sexo feito com avidez, sem amor, com desespero.
O meio tecnológico proporciona uma maior facilidade na comunicação, mas isola os
sujeitos por detrás dos artefatos criados. Muitos optam pelo sexo virtual ou pelo exagerado
número de encontros estabelecidos por meio destes mecanismos, seja através de um site de
relacionamento ou de um telefone deixado na porta de um banheiro público com frases curtas
a explicar de forma sucinta o que é desejado se o encontro dos corpos for concretizado.
Frames obtidos a partir do filme Mates de António da Silva mostrados durante a performance-instalação
Subterrâneo: o corpo distribuído de Fábio Lopes
Subterrâneo: o corpo distribuído
faz
alusão
aos
corpos
contemporâneos
caracterizados pelo elo entre a presença e ausência ao mesmo tempo. No caso, o espectador
estava lidando com a voz do performer naquele espaço juntamente com a sua obra, com os
objetos colocados no recinto, mas estava distante do corpo do artista. Trata-se de um corpo
fisicamente ausente, mas virtualmente presente; é um corpo fantasmagórico, virtual, que pode
proporcionar prazer sem a preocupação com as doenças sexualmente transmissíveis, risco que
propicia uma paranoia generalizada desde as duas últimas décadas do Século XX. Ao telefone
com o performer, poderia ser estabelecida uma conversa dotada de erotização, ou ainda,
poderíamos optar por não revelarmos nossa voz e nosso gênero se estabelecêssemos um
diálogo meramente através de mensagens escritas.
Os conceitos presentes nessa performance-instalação nos remetem para os
pensamentos de Le Breton quando este afirma o seguinte:
A sexualidade cibernética realiza plenamente esse imaginário do desaparecimento do
corpo e até do outro. O sexo é substituído pelo texto. Descreve-se ao outro o que se
está fazendo com ele por muitos sinais gráficos que traduzem o gozo ou a emoção. O
erotismo atinge o estágio supremo da higiene, eliminando o corpo físico em proveito
do corpo virtual. Acabou-se o medo da Aids ou das doenças sexualmente
transmissíveis, e até o cansaço, nessa sexualidade angélica na qual é até possível,
graças ao anonimato na Internet, escolher sexos e estados civis. [1]
As imagens de sexo, o latido dos cães, o banheiro tomado por terra, cartões e flores
conduzem-nos ao imperativo da morte no que diz respeito ao risco de contaminação entre
seres que buscam sexo tão fácil quanto comprar um alimento fast-food, mas, ao mesmo
tempo, expõem o desespero da solidão e a necessidade do viver em sociedade, do viver de
forma harmônica com o outro e , ainda, atribui ao ser humano a mesma carência canina ao
mesmo tempo que o coloca numa atitude animalesca e agressiva de fazer sexo como bicho,
traduzindo, assim, a forma mais imediata e voraz de se matar o imenso desejo de ter o outro
fisicamente perto.
Esse trabalho, mostrado no dia 11 de Janeiro de 2013 como resultado prático de uma
residência artística desenvolvida no NEC, apresenta-se como primeira experiência expandida
de um processo de criação que visa concretizar um espetáculo maior e, embora seja uma
experimentação para atingir uma outra expressão artística, a sua autonomia enquanto
manifestação está garantida bem como a sua perpetuação no mais profundo sentimento do
público, que leva na memória o denso argumento da obra.
Nota
[1] LE BRETON, David. Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade. Tradução de Marina
Appenzeller. Campinas, SP: Papirus, 2003. Pág. 24.
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