O AUTOR Félix Bermudes, poeta, prosador, comediógrafo e desportista, brilhou em todas estas facetas das suas actividades. Como poeta deixou uma vasta obra disseminada por livros e teatro; dela se destacando as magistrais adaptações à língua portuguesa dos poemas «If» de Rudyard Kipling e dos «Versos Doirados dos Pitagóricos». Como prosador, entre outros trabalhos deixou--nos os seus livros «Cinza e Nada», «Aos meus Irmãos Comunistas», «O Homem condenado a ser Deus» e «Buda Instruindo os Discípulos». A sua familiaridade com a língua francesa permitiu-lhe editar em Paris a sua notável obra «La Conquête de VÊternel». Como comediógrafo — e englobamos nesta designação a revista, a opereta, a farsa, a comédia e a mágica — escreveu, em colaboração, ou apenas 7 com a sua assinatura, ora criando, ora adaptando, 105 peças de teatro. Para se avaliar do extraordinário êxito que as suas peças alcançaram bastará dizer que, numa mesma noite, cinco dos seus trabalhos eram representados em cinco teatros de Lisboa. Como desportista foi, em diversas épocas, campeão nacional de várias modalidades. Praticou hipismo, futebol, remo, ciclismo, ginástica, atletismo, esgrima, ténis, alpinismo e tiro. Campeão nacional de tiro, à espingarda e à pistola, capitaneou a equipa portuguesa nos Jogos Olímpicos de Antuérpia, em 1920, e de Paris, em 1924, tendo nestes últimos alcançado o honroso 4." lugar na grande «Prova de Mestres Atiradores Internacionais à Pistola». Em espada, ganhou aos 50 anos o campeonato de Portugal, em competência com dezenas de esgrimistas, dos quais alguns tinham metade da sua idade. Já com 67 anos foi finalista, em pares, do campeonato de Portugal de ténis, em segundas categorias. Aos 82 anos, na sua última 8 visita a Moçambique, jogou ténis de mesa com a vivacidade e alegria de um adolescente. Presidente da Sociedade de Escritores e Compositores Teatrais Portugueses, presidente da Société Internationale des Gens de Lettres, presidente da Sociedade Teosófica de Portugal, desportista Internacional e Olímpico, Félix Bermudes viveu sempre sob o signo do «Mens sana in corpore sano». A sua obra «Sem armas no meio das Feras», agora editada, a título póstumo, foi terminada pouco antes do seu falecimento, que se verificou em 5 de Janeiro de 1960. 9 NO MISTÉRIO DA NOITE Naquela estrada da Rodésia, o porta-bagagem do tejadilho abriu as garras de aço e trambolhou sobre o alcatrão, espadanando a carga que lhe fora confiada, com a mais pura ingenuidade. Enquanto recolhíamos e reacomodávamos a tralha desmantelada, uma linda borboleta azul, com grandes rosáceas amarelas, teimava em pousar nos nossos sapatos. Bastava que um de nós parasse e logo aquela jóia Viva fazia aterrissagem numa gáspea. Que eflúvio oculto atrairia para os nossos cambados sapatorros, aquela turquesa alada? A cor do calçado?... o cheiro da graxa?... a graça antiga dos nossos joanetes? Nunca o pudemos apurar, por não sabermos a língua das borboletas; mas o que apurámos desde logo é que as três horas perdidas no local do desastre e na reparação nos impediriam de entrar na reserva da Gorongosa à hora regulamentar. Se chegássemos lá de noite, quem se havia de aguentar com a furibunda descompostura do fiscal 11 Rodrigues, que das feras da reserva é a que ruge mais alto, muito embora, no fundo, seja o amigo mais manso? Estávamos em Junho, pleno inverno austral, e naquelas paragens o Sol apaga os candeeiros às cinco e meia. Passava dessa hora quando a jangada nos fez atravessar o rio Púnguè, numa paisagem linda, que só espera que ali seja instalada uma praia fluvial, para os pares românticos devorados pela paixão, que aspirem também a ser devorados pelos crocodilos. Estamos no seio do sertão africano, mas já a praga do telefone trouxe até este posto o desaforo da civilização e foi por um fio que não escapámos à descompostura sem fio: — Então isto é que são horas? — Tivemos uma avaria, Sr. Rodrigues. — Bem sei, uma avaria nos miolos! E querem atravessar a Reserva com uma noite destas? — Não temos outra, Sr. Rodrigues. — Mas olhem que já hoje um elefante se atirou ao camião do Dr. Palhinha. — Um ca... ca...camião carregou o elefan... fante?! então não... não... vamos! — Ele a bem dizer não foi desse lado, foi na «picada» três (1). (1) Chama-se «picada» a estrada de terra batida talhada na Reserva. 12 — Então podemos seguir os quatro? — Quatro cacetadas é o que vocês precisam por chegarem a uma hora destas! Arrangem-se como puderem e durmam aí no mato. — Mas aqui não há quartos e as pretas das cubatas recusam-se a deixar-nos lá dormir. Têm medo de ficar mascarradas de branco. — Então avancem, mas olhem que é por vossa conta. E se virem uma tromba no ar, agachem-se. — Agachar talvez não seja preciso... o medo também não é tanto! — E se forem comidos pelos leões, não venham depois queixar-se à Administração. — Não, Sr. Rodrigues, queixamo-nos a S. Pedro, quando chegarmos ao céu. — Qual céu! Vocês vão direitinhos mas é para casa do diabo! — Está bem, Sr. Rodrigues, daqui a uma hora estaremos em sua casa. E lá fomos, estrada fora, mergulhados num mar de treva, com dois funis de luz jorrando à nossa frente. Começaram a surgir os coelhos, correndo encandeados diante do carro, sem saber apartar-se do nosso caminho. Juntavam-se, como numa capoeira, e atrasavam a nossa marcha, mantendo-nos na permanente angústia de os esborrachar. Quando já o espectáculo se tornava irritante, surgiu o pri- 13 meiro texugo, com a sua capa branca sobre o dorso. Logo deixámos de ter pressa, regulando o andamento do carro pelo galope tardo do plantígrado. Sumido o texugo na cortina de treva, entrou em cena um lince. Que bem se destacavam as ovais negras sobre o fundo amarelo, no traje de noite daquela fera que ninguém vê de dia! Uma coruja, reflectindo nos grandes olhos os fachos do carro, ia sendo atropelada, pela sua hesitação em descolar. Noitibós, bufos e outras aves cruzavam constantemente os cones de luz. Outro lince, outro texugo, ginetas, manguços e por fim um urso formigueiro foram passando neste documentário dos mistérios da selva, que os olhos dos homens só podem descortinar quando infringem os regulamentos das reservas de caça, que, com justa razão, nos proíbem de circular de noite. Mas esta infracção, tão amavelmente consentida entre descomposturas e pragas, proporcionou-nos um espectáculo de sonho tropical, que jamais se apagará no arquivo da nossa memória. Apenas chegámos à secretaria da Reserva, começámos a desfiar ao Fiscal Rodrigues os nossos encontros com a fauna nocturna e ele, entusiasmado a emendar as nossas asneiras zoológicas, deixou passar o prazo legal para a descompostura. Quando se lembrou, já a fúria estava fria. 14 A minha surpresa foi enorme e altamente agradável, quando me encontrei naquele acampamento, instalado com uma perfeição e um esmero que eu ainda não tinha visto nem sonhado em organizações similares. Belos e firmes edifícios abrigam todos os serviços de secretaria, armazéns, residências e anexos, em vasto e bonito parque, bem arborizado e ajardinado a primor. No vasto restaurante foi-nos logo servido um saboroso jantar, em cuja ementa figuravam os legumes e hortaliças frescas e as carnes e peixes que diariamente são expedidos em gelo do mercado da Beira. Vinhos, cervejas e refrescos saem de grandes frigoríficos. As habitações turísticas para os visitantes da Reserva estão pitorescamente espalhadas e revestem a forma de enormes cubatas semi-esféricas. Simplesmente, em vez de estacaria e colmo, são todas construídas em cimento, com sólidas portas e amplas janelas, orientadas na melhor direcção. Um extenso balneário, com serviço permanente de duchas a quente e frio, completa o conforto desta bela estância. As camas, de fofos colchões, estão guarnecidas de mosquiteiros, que eu nunca utilizei, porque tendo ali estado sempre na estação seca, nunca lá vi um único mosquito. Ao redor das habitações, alargam-se plataformas circulares de cimento, sempre muito bem varri15 das, para que a bicharia miúda não se aventure a aproximar-se das casas. Apenas surge um cordão de formigas é logo exterminado; uma aranha não se atreve a mostrar-se a descoberto naquele espaço limpo. Assim, em vez de um «safari» de mato, o turista, sempre acarinhado, ingressa numa organização hoteleira de alta categoria, às portas dum verdadeiro Éden. 16 O SOLAR DOS LEÕES A mais elementar das lógicas parecia aconselhar, na organização duma Reserva de animais selvagens, que todos os serviços do acampamento fossem instalados no centro do território. Demonstrou, porém, a experiência que a lógica, às vezes, não passa duma batata, O movimento diário das funções administrativas e hoteleiras, agravado com o turismo, acabou por tornar tão familiares as próprias feras, que ameaçava transformá-las em bichos de capoeira, capazes de vir comer à mão. Esta mansidão excessiva tirava todo o carácter ao espectáculo da vida bravia da selva. Era preciso que os animais se deixassem ver a boa distância, mas seria incoerente e decepcionante ter de lhes pedir licença para passar. Reconheceu-se, portanto, que se tornava imperativo transferir o acampamento para a entrada do território mais próxima da cidade da Beira. Com actividade e zelo, aproveitando os ensinamentos da 17 experiência, foi construído o acampamento actual e abandonado o primeiro. Logo uma família de sete leões tomou posse de todos os recintos, incluindo o terraço do restaurante de que fizeram solário. Aprenderam, não se sabe como, a servir-se da escada exterior, em caracol. Arvoraram o interior das casas em abrigos, alcovas e maternidades e passaram a organizar uma vida citadina. O mercado é ali à beirinha, o próprio «tando» (1), onde dezenas de milhares de antílopes se oferecem à escolha do freguês. Outros leões se foram juntando à primeira família, para usufruirem todo este conforto de civilização, e quando lá fui pela primeira vez já o burgo comportava mais de trinta. Hoje, o antigo acampamento é um dos atractivos mais aliciantes do programa turístico da Reserva e constitui romagem obrigatória dos visitantes. As fotografias tomadas neste bairro leonino fornecem-nos as cenas mais inéditas e mais inesperadas: um leão à janela (fig. 1); uma leoa com as patas traseiras a sair duma porta e as dianteiras a entrar noutra (fig 2); leões estirados nas soleiras das portas (fig. 3). Mas o espectáculo mais inacreditável a que jamais assistimos e avidamente focámos na câmara, foi o de seis leões em cima do telhado (fig. 4). Como os fotografássemos insistentemente, a uns oito metros, acabaram todos por descer pacatamente a escada de caracol, espalhando-se cá por baixo, onde já se encontrava estirada uma dúzia deles. Imediatamente ligada à cidade dos leões, estende-se a vasta planura rasa, ocelada aqui e além de charcos que servem de bebedouro e onde se espraiam, a perder de vista, dezenas de milhar de antílopes, gazelas, zebras, bois-cavalos, sem contar os palmípedes que enxameiam nos lagos. À hora das refeições, um grupo de dois ou mais senhores da selva, saem as portas da cidade e vão ali, ao açougue, escolher uma rez. A operação é simples e rápida. Um dos felinos agacha-se, cosido à terra, e os outros enxotam-lhe para cima um herbívoro, que é colhido à passagem. Uma patada na nuca ou um estorcegão no pescoço e fica resolvido o problema dos abastecimentos. Vida simples, fácil, confortável, a dos fidalgos de juba instalados neste solar feudal, cujo brazão é todo carregado de leões. (1) Chamam-se «tandos» às grandes planícies, quase sem árvores, da Reserva. 18 19 RESTOS DE UM MUNDO QUE DESAPARECEU De todos os grandes bichos que vagueiam no estado bravio, o mais impressionante e o mais inteligente é o elefante, o colosso sobrevivente de épocas que a evolução encerrou. Uma laboriosa transformação reduziu as proporções da fauna e da flora, aperfeiçoando-lhes as formas. Numa sucessão de contrastes, o grande proboscídio é dos animais mais aptos a amar e servir o Homem, mas é, do mesmo passo, o mais perigoso e o que maiores danos lhe acarreta. É pouco frequente, mas irreparàvelmente fatal, que um elefante tome a iniciativa de atacar e perseguir o homem, sem provocação; mas um estado doentio de perturbação nervosa e talvez mental em que pode cair, transforma-o no inimigo número um e na ameaça mais grave que os seres humanos podem encontrar na selva. Até entre os elefantes domesticados da índia estas crises se dão. 21 Mas outros defeitos incorrigíveis incompatibilizam o elefante com a civilização: o gigantone destrói tudo na sua passagem, não apenas por necessidade, mas por divertimento. Cubatas e choças que se encontram desabitadas são reduzidas a escombros; postes e fios telegráficos são derrubados e torcidos; as plantações são devastadas, as culturas espezinhadas; os milhos, as beterrabas, inhames e bananais são devorados em massa numa só noite, por aqueles comilões, deixando, para o homem, a miséria, onde havia a fartura. As desgraçadas tribos por onde passa a manada, vêem todo o seu trabalho de lavoura aniquilado e ficam sem ter que comer. Para defender o indígena destas depredações catastróficas, tem sido indispensável mandar exterminar grandes manadas, por caçadores profissionais experimentados, que arriscam mil vezes a vida. À medida que o solo africano for conquistado para a cultura, cada vez mais terá de ser suprimido o elefante, fatalidade económica que torna mais preciosa a função das Reservas, para acautelar alguns milhares de representantes da espécie. Mas nem assim o problema dos estragos fica plenamente resolvido, porque bandos vagabundos fogem, por vezes, da zona reservada e é preciso reconduzi-los ao território de onde se evadiram, o que acarreta dispêndios, trabalhos e perigos. Felizmente, a maioria dos animais acaba por com22 preender que ultrapassar determinada fronteira é perder toda a protecção e atirar-se para a zona da morte. Nas cercanias das Reservas há sempre caçadores à espreita dos imprudentes que se afastam. Assim, num fim de semana em que deambulávamos pela Reserva, no camião do Dr. Teles Palhinha, que para esse efeito no-lo havia emprestado, aquele ardoroso caçador dirigira-se em carro ligeiro para a sua reserva de caça pessoal, nas cercanias da Gorongosa. Numa volta de mão, surgiu-lhe um belo macho, lindamente armado, fugido da Reserva grande, e como não era possível consentir àquele vadio que fosse destruir as plantações e devorar as colheitas dos indígenas, o caçador emérito abateu-o ao primeiro tiro. Vimos, dois dias depois, as lindas pontas de marfim, duma rara perfeição e grão finíssimo, pesando 30 e 31 quilos. Custou caro àquele vagabundo o espírito de aventura. Se eu não fosse vegetariano, tinha uma bela ocasião de provar uma rodela de tromba ou Um talhaço de chispe de elefante. Sucede às vezes que um velho macho da Reserva surge em crise de mau humor e entra a carregar os automóveis ou os guardas, que, aliás, são exímios na arte de lhe fugir de vista. Quando os ataques se repetem com insistência, o animal é reconhecido oficialmente como perigoso e o Chefe Rodrigues recebe da Direcção a sentença de o eliminar. Com 23 profundo pesar do seu coração, o Chefe rapa da formidável escopeta e vai provocar a derradeira carga do mal intencionado trombicho. O elefante ataca e a bala do Rodrigues não perdoa. De uma vez, porém, o velho rabugento que ia ser abatido, ao ver o Rodrigues de carabina em punho, quedou-se a olhá-lo, como quem medita e, parecendo compreender do que se tratava, virou-lhe a garupa e fugiu espavorido. Nunca mais esse elefante ameaçou fosse quem fosse e ainda hoje é vivo. Torna-se deveras impressionante o complexo de emoções e de raciocínios de que este animal se mostrou capaz: reconhecimento de culpas, pressentimento de que ia ser castigado, resolução de se emendar e de não voltar a provocar a cólera do bicho homem, que pode matar de longe. Em certa manhã, parámos na «picada», a contemplar uma manada de elefantes que pastava na margem do caminho (fig. 5). Um macho enorme e bem armado repontou com o camião e avançou em carga (fig. 6). Foi só o trabalho de engrenar a primeira e seguir em frente. O animal começou a acompanhar o camião por dentro do mato, correndo paralelamente à nossa marcha. O condutor acelerou e libertámo-nos daquela ameaçadora perseguição. Quando cinco minutos depois voltámos para trás, o elefante, que estava onde o deixáramos, não fez caso nenhum do carro. Ficámos na dúvida sobre se o animal pretendia atacar ou divertir-se 24 apenas. O condutor afirmou que era carga. De todos os modos, posso garantir que não é nada agradável ver um elefante selvagem prestar-nos assim tanta atenção. Doutra vez, viemos encontrar uma bicha de automóveis parada no meio da «picada», porque, mais adiante, estava um elefante atravancando o caminho. Não sei há quanto tempo as viaturas ali se encontravam, nem quanto tempo ficariam ainda, se um impaciente não se tivesse resolvido a tocar o «claxon», no que foi logo acompanhado por todos os outros. Perante este concerto sinfónico, o elefante, sem pressa, afastou-se para o interior do mato, deixando a passagem livre. Mas esta prática não foi considerada prudente pelo veterano da Reserva: um elefante verdadeiramente agressivo poderia irritar-se com o barulho e «arder Tróia». Doutra vez ainda, tivemos de deixar passar uma grande família de tromboscídios, que atravessou a nossa estrada, em fila indiana. Entre outros donairosos monstrengos, passou uma jovem e elegantíssima mamã, com o bebé pela mão. Aqui, a mão era o apêndice caudal, a que o miúdo, se assim se pode chamar a uma besta daquele tamanho, se filava com o apêndice nasal (fig. 7). Os extremos tocam-se. Com estes bebés de elefante, quando ficam abandonados na selva, porque lhes mataram a mãe, ou porque não puderam acompanhar a manada em 25 fuga demente, dá-se uma curiosíssima manifestação de instinto que os impele a procurar a protecção do homem. Muitas vezes, esse homem é o mesmo que lhes matou a mãe e que, dum só tiro se apodera duma presa morta e doutra viva. Quando a pobre cria desamparada, no desespero da solidão, encontra aquele ser que anda só em dois pés e que o seu instinto lhe segreda que pode protegê-lo, corre a entregar-se-lhe sem reservas, como a uma segunda mãe. Essa segunda mãe encontrá-la-ia o órfão na manada, se conseguisse regressar a ela. Desde que o pequeno elefante resolve espontaneamente entregar-se a um homem, nunca mais o larga e acompanha-o passo a passo. Por vezes, se esse passo se lhe afigura lento, o elefante empurra o homem com a cabeça, ajuda que este dispensaria de bom grado. Aqui surge para o protector o gravíssimo problema de alimentar o protegido, porque as vacas leiteiras não estão ali ao alcance e o leite que sustenta um vitelo em todo um dia é um pequeno almoço para uma cria elefantina. Mas um pequeno elefante representa um grande valor, se se conseguir mantê-lo vivo e sadio, até o transaccionar para um circo ou para um jardim zoológico. Começam então os grandes sacrifícios do proprietário do bicho, que vão ao extremo de o alimentar a leite condensado, o que sai mais caro do que sustentar um burro a pão de ló. 26 A esta grande despesa outras se juntam, porque o elefante pequeno é um garoto terrível, que passa a vida a inventar partidas, sempre de carácter demolidor: vai aos lavatórios das mulheres e vira-os de cangalhas, partindo-os quase sempre; esfrangalha a roupa estendida nas cordas ou no chão; arromba as aramadas de hortas e pomares, pondo tudo em fanicos; destroça as capoeiras, soltando para a selva todos os seus habitantes; e pesca pelas janelas móveis e utensílios, que se entretém a fazer em cavacos, O grande tratante, que é muito inteligente, tem bem a consciência do mal que pratica, porque, feita a partida, logo foge, embora saiba perfeitamente que as boas chicotadas de cavalo-marinho não tardarão a correr atrás dele e a alcançá-lo em cheio, por muito que ele grunha e guinche e trombeteie, a pedir uma misericórdia que não merece. É muito dispendiosa a criação dum pequeno elefante na selva e muito elevada a percentagem de insucessos. Em toda a parte, o conflito entre o elefante e a cultura das terras é um problema sem outra solução que não seja a destruição comandada das grandes manadas, quando a sua expulsão das regiões agrícolas se torna impossível. São então encarregados dessas penosas e arriscadíssimas 27 campanhas de extermínio os mais experimentados caçadores profissionais. James Hunter, possivelmente o maior perito de grande caça de todos os tempos, foi encarregado, pelo Governo da África do Sul, da mais árdua tarefa de exterminação de hordas devastadoras de proboscídeos. Tratava-se de uma manada enorme, refugiada no coito quase inacessível de uma floresta muito difícil de penetrar, floresta situada às portas da Cidade do Cabo, de onde a praga trombuda irradiava a seu belo prazer, a devastar tudo ao de redor. A expedição arrastou-se durante longos no decurso dos quais Hunter, correndo riscos, abateu muitas centenas de elefantes e lheu várias toneladas de marfim, além da neração ajustada com o Governo. tramo-nos em presença duma fatalidade natural, que proíbe a coexistência da civilização e destes colossos anacrónicos de Idades desaparecidas. Contentemo-nos pois em guardar alguns milhares de conserva, nesses museus vivos que são as Reservas. meses, graves recoremu- Em 1934, A. Cunningham foi incumbido de dar combate às hordas de elefantes fugidos de Baringo e da Reserva do Norte, que alastravam, como uma tromba de trombas, pelas zonas de cultura, destruindo tudo na sua passagem. O hábil caçador matou 80 elefantes e recolheu uma tonelada de marfim. Marcus Daly, à sua conta, dizimou milhares de grandes paquidermes. É aflitiva e dramática a notícia destas tombes comandadas, mas nada há a fazer. Encon28 heca- 29 A PERDER DE VISTA E DE CONTAGEM A imensa planície onde os leões vão abastecer-se oferece um espectáculo de movimento e de vida que deixa assombrado o visitante. De qualquer lado que se encare, estende-se sempre uma cortina infindável de animais, desde o primeiro plano até aos confins perdidos no horizonte. Aliás, na Reserva da Gorongosa, nunca se está sem animais à vista; mas não se julgue que é só a profusão que assombra, é também a variedade que empolga. Desde o elande ou pacala (cefo, em Angola) duma tonelada de peso, até ao minúsculo ourebi, encontrasse naquele «tando» tudo o que a África pode fornecer nos géneros antílope, gazela, cervídeos, equídeos, bovídeos, porcinos e caprídeos. Apartados segundo o seu capricho, ou reunidos segundo as suas afinidades, os imensos rebanhos de mil e mais cabeças cruzam-se com os pequenos grupos de espécies menos gregárias. Mas tudo em proximidades imediatas, guardando apenas as distâncias 31 indispensáveis para não haver misturas. Aliás, estas misturas não deixam de se dar, entre espécies animais que guardam umas pelas outras simpatias atávicas que não se justificam por caracteres de espécie, mas nem por isso são menos reais. O exemplo mais frisante é o dos gnus, ou bois-cavalos, sempre associados com zebras, embora entre os dois géneros não exista qualquer vislumbre de parentesco. Há animais que se distinguem pela grandeza de porte associada à elegância das formas, como é o caso do enorme elande, armado de bonitos chifres que saem do crâneo em sacarrolhas, mas logo crescem a direito até às agudas pontas. O cudo é também um grande antílope, tão excessivamente armado que dá a impressão duma cabeça mal equilibrada em proporções. As palancas ostentam lindas armações, arqueadas sobre o dorso em graciosas curvas. As zebras reconhecem-se a qualquer distância, desde que o sol faça brilhar as suas raias negras (fig. 8). O inhacoso é um antílope de porte médio, mas muito bem plantado, enchendo a paisagem com a sua elegância (fig. 9). Nada, porém, excede a graciosidade da redunca e da carvicapra, de estatura modesta, mas perfil airoso, fino e bem lançado. Outros animais há que espalham no «tando» a nota cómica: citemos o javali facochero, a cabeça mais feia da criação, que corre com a grande cauda erguida a pino, com um penacho na ponta, como 32 se, muito expressamente, quisesse ser ridículo. O gnu, ou boi-cavalo, um dos grandes antílopes (fig. 10), é o palhaço da planície, porque, além de se apresentar com uma cabeça feia e disparatada, tem a mania de desatar, sem mais nem menos, a fazer cabriolas, corcovas e pinos, disparar parelhas de coices no espaço vazio e afirmar que é maluco por todos os meios ao seu alcance. Uma surpreza, que não é de prever e nada tem de agradável, é a existência de uma gazela, mal intencionada e extremamente perigosa, que ataca o homem, Trata-se do orix, ou galengue, bicho poderoso, do tamanho de um burro e armado de duas grandes lanças ponteagudas, que crescem verticalmente em linha recta. Ao homem atravessado por tão agressivas armas não restam esperanças de vida. Eu próprio vi, uma vez, no jardim zoológico de Lisboa, um orix carregar com fúria insana um visitante que se aproximou das grades. É evidente que essas grades estavam reforçadas com rede forte, de malhas finas, que as pontas não transpunham, e estava afixado um aviso, acautelando o público; mas o choque da marrada contra o obstáculo foi espantoso de brutalidade, verdadeira explosão de maus instintos. E vá a gente deixar-se embalar no velho conceito poético «meiga como uma gazela»! Em contraste com este truculento herbívoro, fera nas horas vagas, os liliputianos da floresta e do «tando» enchem-nos de enternecimento. Nada 33 pode haver de mais gracioso, de mais vivo, de mais elástico do que um dick-dick, um ourebi, um cefalofo, verdadeiras miniaturas vivas, empoleiradas em canelas tão delgadinhas, que parece milagre sustentarem corridas tão velozes. Singularmente notável é, também, o grupo das impalas, o mais espectacular dos animais da selva (fig. 11). Quando se lançam em correria, assustadas ou perseguidas, todas as rezes do rebanho jogam aos ares grandes pulos, de três metros de altura ou mais, dum efeito acrobático surpreendente. Com certeza procuram descortinar se, no seu caminho, surge qualquer perigo que deva ser evitado. Na Reserva, basta que um automóvel corra um pouco atrás delas, para desencadear o frenesi dos saltos; e o efeito desses voos planados é mais uma maravilha a acrescentar ao espectáculo prodigioso da vida na selva. Circular no «tando» por entre esta natureza efervescente, é viajar num sonho que nos reconduz ao paraíso, quando o Homem era um ente puro e contemplava com amor inocente a Criação inteira. 34 LEÕES NA INTIMIDADE Naquela tarde, as senhoras ficaram no acampamento e só meu filho e eu saímos no automóvel. Dirigimo-nos ao rio Nhamussenguere, nas faldas da Gorongosa, em busca de espécies ainda não vistas, incluindo algum rinoceronte. Quando a «picada» cortava uma clareira, deparámos um grupo de 14 leões, fazendo repousadamente a digestão do almoço. O carro entrou na clareira, os leões cederam-lhe o lugar e dispersaram para 15 metros de distância. Meu filho, sempre guloso de documentário, pediu autorização para sair do carro, a fim de fotografar alguns leões cara a cara — ou focinho a focinho —, conforme o conceito de cada uma das partes. O guarda consentiu, atendendo a que as feras se mostravam bem almoçadas. Ao passarmos ao lado de uma moita, indo meu filho à frente, com a câmara, um leão, que devia estar profundamente adormecido, acordou sobres35 saltado e, vendo um homem à ilharga, fugiu espavorido, a três metros de meu filho. O excêntrico do caso é que o homem desarmado não teve o menor sobressalto, ao passo que o rei das feras, armado até aos dentes, apanhou um susto espectacular e fugiu ridiculamente, com a coroa à banda e o ceptro de rojo entre as patas. Por ali nos demorámos, tirando meu filho várias fotografias, até à distância em que os leões resistiam ao medo. Com excepção das raras pessoas que podem observar os animais ferozes na sua vida livre, toda a gente os imagina terrivelmente perigosos para o homem e sempre à espreita de oportunidades para o atacar e comer. Não pode haver conceito mais contrário à verdade. Todos os animais selvagens, por perigosos que sejam, desde a víbora ao elefante, vivem no terror do homem, fogem e escondem-se dele como duma divindade nefasta e impiedosa, que dispõe do poder supremo de matar a distância. A experiência, reforçada pelo instinto atávico, que é ainda experiência armazenada na espécie, ensina aos animais da selva que as flechas e os dardos saem da mão do homem com a morte na ponta. Se o homem é branco, brilha-lhe na mão o raio que fulmina, rugindo um trovão. Os animais dão-se bem conta deste poder insuperável do rei da Criação e apavoram-se ao vê-lo, fugindo aterrados ao sentir-lhe as emanações. 36 Só por circunstâncias excepcionais e raras as feras fazem frente ao homem. Mais raramente ainda lhe provam o sabor. Num outro capítulo nos ocuparemos dos «comedores de gente» (1). Nas Reservas, onde os animais não são perseguidos, perdem o pavor do homem, mas conservam-lhe o respeito suficiente para guardar as distâncias. Podemos então observá-los de perto e à nossa vontade, sem inquietações mútuas. Foi uma experiência de raro e impressionante encanto encontrarmos-nos, assim, numa clareira de mato de 40 metros de raio, rodeados de 14 leões, que nos encaravam com respeito mas confiadamente, sem a menor agressividade. Perfeita, suave, harmoniosa evocação do Paraíso! Compreendemos (J) Este capítulo já não pôde ser escrito, devido ao falecimento do autor; apenas se encontrou um apontamento incompleto, que transcrevemos a seguir: Quando um grande carnívoro sofre um acidente que, sem o matar, lhe rouba a faculdade de caçar as suas presas habituais, atinge, obrigado pela fome, um grau de ousadia que o leva a aproximar-se das aldeias indígenas, para passar a alimentar-se com animais domésticos, cujas capacidades de defesa se encontram diminuídas pela submissão ao homem. Tem assim, por vezes, a oportunidade de descobrir que as crianças que vão buscar água, ou as mulheres que se dedicam aos trabalhos agrícolas, são presas mais fáceis ainda. Perde então o medo à espécie humana e passa a atacar todas as pessoas que pode surpreender, tornando-se um «comedor de gente». É por isso que, na selva, um caçador escrupuloso nunca abandona a perseguição de uma fera ferida. Tem de a abater, para evitar o perigo de que ela passe a alimentar-se com os gados e populações da região, transformando-se num flagelo terrível. 37 então os preceitos piedosos de Buda, quando ensinava aos homens que os animais são os nossos irmãos mais novos. São Francisco de Assis, uma das almas mais bondosas que atravessaram o Cristianismo, renovou idêntica doutrina no mundo ocidental. Se nos debruçarmos com sinceridade sobre este problema espiritual, podemos impregnar-nos de sentimentos de fraternidade, lendo no livro divino da Mãe Natura que foi através da longa e laboriosa evolução animal que se estruturou, elo por elo, a forma maravilhosa que havia de servir de corpo físico ao Ser humano, cúpula e coroamento de todos os reinos da Natureza. Em verdade completa, a mesma evolução que preparava o corpo ia, do mesmo passo, desenvolvendo o embrião duma alma, a desabrochar plenamente no Reino Humano. Mas este assunto transcendente não é para ser tratado aqui. Se algum leitor se interessar por ele, encontrá-lo-á largamente explanado na minha Série Azul — «O Homem Condenado a Ser Deus», «A Poesia do Espírito» e «Buda Instruindo os Discípulos». Apresso-me a confessar, à imitação de Santo Agostinho, que nem sempre protegi esses irmãos mais novos e que a minha simpatia pelos seres viventes os não defendeu, durante muito tempo, da minha cupidez nem da minha gula. Fui um caçador furioso, enquanto não cheguei à idade de ter juízo, primavera psíquica que oscila entre os 50 e os 100 anos, conforme a precocidade de cada criança 38 grande. Isto, sem contar com os serôdios que nunca chegam a amadurecer. A culpa não era exclusivamente minha, visto que vim encontrar no meio social hábitos inveterados e correntes que naturalmente adoptei, até à hora em que a minha consciência desperta resolveu reagir. Desde que recebi um pouco de iluminação, não mais me diverti a praticar o mal e a espalhar o sofrimento. Mas, se nunca mais cacei, não tenho vergonha de confessar que foi esse o mais duro sacrifício da minha vida, um esforço angustioso de vontade que se arrastou durante anos, antes de conseguir concretizar-se numa resolução definitiva. A sedução da aventura, a ânsia de captar a presa difícil, a vaidade da minha perícia, pulverizavam todos os meus impulsos de reacção piedosa, Era escravo duma paixão inveterada na alma, nos nervos, na medula que fabrica o sangue. Foi com a mais rude violência que pus cobro a estas transigências cobardes, obrigando a minha consciência a encontrar em si própria a força de se fazer obedecer. Ao dominar essa paixão absorvente e horrenda, senti-me verdadeiramente um Homem. Em seguida, para completar a harmonização destes sentimentos de protecção e amor aos animais, tornei-me vegetariano, sem que este novo esforço de renúncia parecesse pesar-me como um sacrifício. Outras pessoas de minha família seguiram corajosamente o meu exemplo. 39 Foi nesta disposição de espírito que, aos 82 anos, consegui pela primeira vez a oportunidade tão desejada de visitar as Reservas africanas de feras e animais selvagens, arriscando-me a ser caçado, eu que já não caçava. Apesar de ser vegetariano, este risco de ser comido pelos bichos do mato, eu que já não como bicho nenhum, não chegou a esfriar o meu entusiasmo de curiosidade ardente pelos mistérios da selva e pelo desenrolar da vida girando em roda livre. E agora aqui estou entre 14 leões, verificando que a máquina fotográfica ou a de filmar substituem com vantagem a carabina, no desporto emocionante da caça à imagem. Este, afinal, exige mais perícia e coragem, proporciona aventuras mais palpitantes e arriscadas, do que matar os animais. Por isso, grandes caçadores têm renunciado às armas, para se dedicarem ao estudo apaixonante da vida dos bichos na selva. Quando abandonámos a clareira, as feras deixaram-se ficar repartidas como estavam. 40 O BANDIDO Sempre com a consciência pesada dum crime recente, do dia ou da véspera; sempre pronto a comer um irmão, os miolos do pai ou uma perna da esposa; roubador de crianças, para as devorar, sem se dar ao trabalho de lhes tirar os brincos, as pulseiras nem os colares, que depois lhe aparecem no bucho; salteador de ninhos e de gados; ladrão em terra e pirata nas águas; este facínora-mor de todos os reinos sabe melhor do que ninguém que lhe trazem sempre a cabeça a prémio. Esta indesejável certeza transformou o nosso herói no último dos cobardes, sempre apavorado com a ideia de lhe chegar a vez de ser comido ou de ter de prestar contas à justiça dos homens. Incapaz de atacar sem ser à traição, o asqueroso e fedorento crocodilo tem um medo horroroso desses deuses que matam de longe, embora deixem ficar uma ou outra vez uma perna esquecida no fundo das águas. E que saboroso petisco! Que tenra que é 41 a carne do Rei da Criação!... Mesmo da criação de capoeira, o rei é ele, pois não há frango que tão apetitosamente se preste a ser comido cru, por nem sequer ter penas, e, assim, ser muito mais fácil apreciar-lhe o gosto e a lisura da pele. A dele, crocodilo, faz um contraste flagrante com a nossa; é áspera, dura e escamosa, mas nem por isso ele a defende com menos devoção e tenacidade. O facto de com essa pele se fazerem lindas malas não convence nenhum crocodilo a deixar-se esfolar; parece até que o instiga a fugir mais depressa, mal lhe chega aos ouvidos um roçagar que traga suspeitas de gente. Nas Reservas de vida selvagem, vi de perto e à minha vontade quase todos os bichos do continente africano; mas, a despeito dos avanços mais cautelosos, dos rodeios mais estratégicos e dos silêncios mais presumidamente absolutos, crocodilos, em África, só os vi por um óculo. Mais exactamente, por dois óculos ou seja um binóculo. Os únicos que não fugiram à minha aproximação foram os que estavam empalhados nos museus de Salisbury e de Lourenço Marques. Nado e criado neste pavor, desde que o homem apareceu no mundo, a atirar-lhe com grandes calhaus que lhe partiam as escamas, o crocodilo foi aprendendo todas as lições que o mimetismo ensina aos medrosos e aos velhacos, uns para terem mais probabilidades de não ser comidos, outros para reunirem mais possibilidades de comer. Ajudado 42 por esta indústria natural de camuflagem, o crocodilo veste-se de tronco de árvore, quer a boiar, espreitando uma presa, quer varado no lodo, a dormir uma sesta. Para os olhos do preto, de nada lhe serve o embuste; mas para um ingénuo europeu sem experiência, o cepo que para ali está encalhado na margem, é um cepo mesmo. Por uma linda tarde de Junho, passávamos à ilharga duma pequena lagoa, de uns cem metros de diâmetro, que já nos era familiar. Parámos o camião a pequena distância, para ver os pernaltas que por ali andavam, a mostrar como se podem pescar trutas com as bragas enxutas. — Reparem que na margem de lá está um crocodilo, disse o chefe Rodrigues. — Crocodilos neste charco?! — Vêm do Urema com as grandes chuvas e deixam-se ficar por aqui. Não vê aquela mancha amarelada, nesta direcção? — Aquilo é um cepo. — Veja com o binóculo. Obedeci e trouxe à minha presença o objecto em análise. As lentes do meu esplêndido binóculo desvaneceram toda a ilusão: era um tronco de árvore. — É cepo, Sr. Rodrigues. — É crocodilo, Sr. Bermudes. — Salvo seja, Sr. Rodrigues. 43 Nisto, o cepo, para acabar com a discussão, levantou-se nas quatro pernas e atirou-se de cabeça para a água, como qualquer campeão de saltos. — Então é cepo, Sr. Bermudes? — É crocodilo, Sr. Rodrigues. — Salvo seja, Sr. Bermudes. O EXÉRCITO DO AR A selva também dispõe das suas esquadrilhas aéreas, organizadas segundo uma técnica variadíssima, que as leis da Natureza sabem adaptar a cada tipo de funções. Nunca nessas formações de vôo ocorreria um desastre, se não fora a agressiva intervenção do homem, destruindo indescriminadamente tudo quanto pode. Até sem intenção propositada o homem destrói as aves, estendendo pelos espaços livres fios eléctricos, onde elas vão quebrar os pescoços ou as asas, quando a falta de visibilidade as atraiçoa. Até sem querer, o homem é mau para os bichos! Felizmente que nem todos são assim, e é aos que fazem excepção que devemos as Reservas onde a Vida selvagem é protegida e amparada, no respeito das suas condições naturais. E então é um enlevo empolgante ver essa Vida em acção. De toda a fauna voadora da África, a que mais impressiona os europeus pela sua variedade, abun44 45 dância e indiferença pela presença do homem é a irmandade dos abutres, encarregada da limpeza do lixo em toda a parte. As vassouras são os bicos, os caixotes o papo. Em Casablanca, Dacar e outras cidades, é preciso pedir-lhes licença para passar e o homem da Europa tem mais medo de apanhar uma bicada do que eles um pontapé. Na selva, os abutres são muito maiores e bastante menos familiares. O seu aparecimento, nas árvores, no chão, ou no ar em grandes carroceis, denuncia sempre a presença de bicho morto e de festim de feras de que ambicionam partilhar (fig, 12), O abutre não mata: espera sempre que lhe sirvam a pitança já pronta, fresca ou podre, indiferentemente. O talher são as garras e o guardanapo onde vai limpar o bico é a casca do imbondeiro ou da acácia mais próximos. Se a cobardia não tornasse esses poderosos rapaces inofensivos para o homem e para os animais vivos, que devastações eles poderiam levar a cabo com a sua força, a acuidade da sua vista, o seu domínio dos ares e os enormes bandos em que se juntam! Felizmente que esses «skymasters» de carne e penas, que podiam ser bombardeiros, não passam de paraquedistas. Seguem-se em importância, nas manchas de água dos matagais, os hidro-aviões palmípedes de todas as espécies, desde a garça Golias, de dois metros de altura, até às marrequinhas e borrelhos, pouco maiores que os pardais. Os flamingos, empo46 leirados em duas canas vermelhas, com um nó ao meio; os pelicanos, quase sem pernas, que vão encher a sua grande e fedorenta bolsa ao mercado do peixe das lagoas e praias fluviais; os gansos do Egipto e patos de toda a parte, incluindo a China, de onde vêm nobilitados com o título de mandarins; os grous coroados, majestosos de beleza, de elegância e de porte; as cegonhas, que dão sempre a impressão de que se esqueceram duma perna no bengaleiro; toda essa imensa família aquática enche de vida, de animação e de cor as bordas dos charcos e dos rios. Catando os búfalos e os hipopótamos, as lindas garças brancas são as sentinelas vigilantes que avisam toda a selva do perigo humano, quando este se acerca, camuflado entre as moitas. Que mágico espectáculo, para o bípede desnaturalizado das cidades, esses bandos infinitos de gente alada, quer entregues às suas ocupações pousados nas praias ou na água, quer catapultados em massa para os ares, sincronizados pelo mesmo alarme! Um bom binóculo permite observá-los em plena tranquilidade, nossa e deles. Outro grande atractivo das «picadas» e charnecas de mato são os bandos de galináceos agarrados ao chão, teimando em não voar. Pintadas e perdizes correm Maratonas à frente dos carros, obrigando-nos a reduzir o andamento, para as não depenar vivas sob os pneus. Só de uma vez, juntou~se uma 47 bandada de mais de cem galinhas de mato, fugindo e cacarejando diante do nosso camião, sem se resolverem a atravessar a sebe, para saírem do caminho. Era um espectáculo muito mais divertido para nós do que para elas, se é que eu soube interpretar o significado daqueles cacarejos em língua de galinha. Por fim, quando a «picada» abriu numa clareira, espalharam-se em leque pelo meio das moitas, ofegantes e aflitas. Cumpre-nos fazer neste capítulo uma referência especial às aves do género pássaro, que animam a Reserva com os seus voos e os seus cantos e muitas delas com a sua beleza. Entre estas destaca-se a espécie típica do Gaio de Moçambique, uma das mais admiráveis jóias vivas da natureza, em cuja roupagem de plumas predomina o vermelho cintilante, contrastando com manchas de verde e azul, formando uma sinfonia estridente de cores. Quando esta ave maravilhosa voa de árvore para árvore, desejaríamos que levasse consigo os nossos olhos, para a vermos melhor e de mais perto. Devemos ainda citar a imensa variedade de borboletas, algumas duma formosura fascinante, que excitam em nós a cobiça de as agarrar e prender, só pelo crime de serem lindas. Quantas vezes vagueei pelas florestas e jardins, só para espreitar as borboletas e contemplar como Deus geometriza! 48 A MESA DOS REIS Um carrocel de abutres, planando lá nos ares, de asa aberta e parada, anunciou-nos, na linguagem imutável da selva, que mais um drama da batalha entre a vida e a morte se estava desenrolando na floresta. Logo nos apressámos a ir espreitar cá em baixo o que eles viam lá em cima, com aqueles olhos de penetração prodigiosa, que a distância não vela e o sol não ofusca. Avaliando por cálculo o centro daquele círculo, que nos desviava para o espaço aberto do grande «tando», descobrimos dois poderosos leões de juba, em tudo iguais, que devoravam os acepipes ainda quentes do abdómen rasgado duma zebra, que mais parecia talhado pela faca dum cortador de ofício. Clientes familiares desta mesa de reis, recalcando a gula e a cobiça, alinhavam, numa fila indiana de mais de cem metros, incontáveis abutres, como mendigos numa sopa de pobres, esperando resignadamente com tigela pronta, a sua vez 49 que, na selva, pode não chegar nunca. A experiência de que a fome é má conselheira e de que atropelar os que chegam primeiro é desencadear a fúria de todos ensinou aos rapaces a disciplina milenária das «bichas», que os abutres humanos só agora aprenderam, depois de criarem à sua volta a miséria, o desconforto e a fome. Cada candidato que chega, de garras em arpão e de bico afiado para a carnagem, aterra no último lugar do sinistro cordão, para evitar as querelas, as navalhadas e os pescoços rasgados. Só o repugnante marabú, de bico formidando como esporão de nau, goza da prioridade de passagem por entre a turba aviadora de comedores de destroços. Mas nem sempre os leões conseguem acautelar a sua despensa da rapacidade das hienas, dos chacais e das esquadrilhas de paraquedistas emplumados. Estes dois, que surpreendemos abancados à sua mesa real e vimos depois que tinham arrastado a presa desde longe para a sombra daquela acácia isolada, começaram, ao ver-nos, por retirar magestosamente em boa ordem, sem pressas nem impropérios. O nosso camião de caça, reduzido à inofensividade pelas leis da Reserva e pelo pacifismo dos viageiros, que nem levavam consigo qualquer arma, parou a 12 metros da zebra sinistrada. Os dois reis da selva, confiados na imobilidade do grande intruso rolante, que já estão habituados a não temer, suspenderam a retirada e vol50 taram a estender-se a ambos os lados da sua presa, para que dela não se apoderassem os abutres. Era, na verdade, um espectáculo raro o destes senhores feudais da selva, abancados à mesa fartamente servida pelo tributo lançado sobre os seus vassalos, e rodeados, como é próprio de reis, por uma corte de parasitas esperando as prebendas de alguns sobejos do banquete régio. Depois de poucos minutos de mútua observação, abandonámos o teatro das operações aos heróis e comparsas deste drama da natureza bruta. 51 DEPOIS DE JANTAR Em mata aberta, de árvores e moitas espaçadas, encontrámos um grupo de quatro leões, que dormiam espalhados à sombra, a vinte ou trinta metros uns dos outros. Já tinham sido inquietados por turistas, o que explica a dispersão do bando, pois a espécie felis-leo manifesta uma índole acentuadamente gregária, que os incita a viver em conjunto. Descobrimo-los precisamente porque o nosso guia viu, ao longe, o sinal convencionado entre os familiares da Reserva para indicarem uns aos outros a presença de leões, elefantes, ou espécies mais raras, que se tenham deixado ficar onde foram vistos. Esta telegrafia é realizada por meio de ramos de palmeira, em posições determinadas por um código de sinalização que torna mais eficientes os serviços de turismo. Graças a este semáforo, outros carros ali vieram, antes e depois do nosso, permitindo fotografias que colheram no mesmo campo um leão e um automóvel (fig. 13). 53 O leão é um fidalgo preguiçoso, cuja ocupação favorita é dormitar, no seu triclínio de palha, ao lado do fogão do refeitório. Depois de comer, tem a digestão pesada como os frades e não gosta que lhe perturbem a sesta. Era precisamente o que estávamos fazendo a uma pacata família de quatro destes felinos, com as evoluções do nosso camião, que só aproximando-se a sete ou oito metros conseguiu fazê-los deslocar, para se deitarem de novo a pequena distância. Dois deles suportaram as nossas impertinências sem reacções agressivas e com uma paciência de caixeiro de armazém de modas. Os outros dois, porém, agacharam-se prontos a atacar e bombardearam-nos com um rugido que devia vir carregado de impropérios em língua de leão. Não tivemos tempo para decifrar os insultos porque o nosso condutor acelerou com tanta pressa como bravura, preferindo o jogo a distância ao corpo-a-corpo. Em frente de um leão que ruge ao pé de nós, fora da jaula e em plena selva, metralhando-nos com perdigotos de jacto, até para fugir é preciso coragem. Foi animado da mais nobre valentia desta espécie que abandonámos tão pitoresca aventura, em busca doutras menos turbulentas. Nestas entrevistas na selva, com as feras, o melhor canhenho de apontamentos é a máquina fotográfica e ainda superior a cine-câmara. 54 Não é possível conjecturar até que ponto as ameaças dos felinos seriam levadas por diante. O mais provável seria uma prudente retirada, ou mesmo pânico de cada uma das feras, se o camião continuasse a investir na sua direcção; mas é proibido inquietar os animais e os regulamentos da Reserva fizeram-se para ser cumpridos. A quem não obedecer rigorosamente às disposições regulamentares, ensina-se-lhe, depois de multado, a «picada» mais curta para sair da Reserva e fica inscrito na lista dos indisciplinados. Só assim se explica que não tenha havido até hoje qualquer acidente lamentável entre os milhares de feras e os milhares de visitantes que se entrevistam nas Reservas: é que ali, ao contrário do que se passa nos jardins zoológicos, as feras andam cá fora e os visitantes em jaulas rolantes, de onde lhes é proibido sair. Se andasse tudo à solta, logo surgiriam as incompatibilidades do costume. Noutra ocasião, num alargamento da «picada», passámos por um corpo de zebra, literalmente coberto e rodeado de abutres, em massas compactas. Dentro da própria carcassa estavam refugiados os mais felizardos, devorando as saborosas entranhas. Como os proprietários daquela presa não deviam estar longe, demos por ali umas voltas e não tardámos em descobrir um casal de leões, que o movimento de carros na «picada» impedia de 55 ir guardar a sua despensa, enxotando os gatunos (fig. 14). É que, felizmente para nós, onde passar o Homem, acaba-se a realeza do leão. Como nem só os leões têm direito a regalos opíparos, também a minha família e a mim nos foi oferecido um delicado ágape em plena floresta. Há, num dos mais bonitos recantos da Reserva, uma lagoa que uma turista inglesa de bom gosto que por ali se demorou, baptizou de «Lagoa do Paraíso». Aí se juntaram, num radioso meio-dia, todos os elementos grados de superintendência na Reserva, para um alegre e delicioso almoço oferecido aos hóspedes que iam alvorotar o sossego. Estavam presentes o Administrador Júlio dos Santos Peixe da Circunscrição da Gorongosa, o Director da Reserva e perito de caça Dr. Joaquim Teles Palhinha e o Fiscal Geral, Alfredo Rodrigues, além de vários convidados. O florestal pic-nic foi organizado pela categorizada desportista D. Sara Teles Palhinha. Ficaram-me gravados no coração os requintes de solicitude que esta gentil Senhora e seu marido nos dispensaram, na Gorongosa e na Beira. No ano seguinte, o Administrador Santos Peixe hospedou-nos no seu palácio residencial de Paiva de Andrade, então já acompanhados de minha filha Cesina. O que foi a fidalguia e a distinção desta hospedagem, presidida pela gentilís- sima castelã, excede toda a imaginação; e o encanto das excursões a que nos levaram, incluindo as imponentes quedas de água do Morombose, jamais se desvanecerá na nossa memória (fig. 15). Como é pena que a nossa vida não possa fixar-se permanentemente, como num céu, em momentos, em horas, em dias assim vividos! 56 57 UM BAILE NO MUNDO ELEGANTE Um, dois, vinte, cinquenta, cem..., não foi possível contá-los, aos hipopótamos que fazem sala de estar num troço do Urema, largo rio que de longe vem e limita a Reserva numa grande extensão (fig. 16). Na água ou fora dela, ali se encontram, a todas as horas, numerosas famílias daqueles paquidermes, que alternam os banhos de sol com os de tina, sem receio de tisnar a cútis mimosa, de cinco centímetros de espessura. A um quilómetro de distância já cheira a hipopótamo e a crocodilo, essências que ninguém sente o desejo de deitar no lenço; duvidamos até de que tivessem aceitação, entre a própria gente hipopótama, para perfumar o «baton» das beiçudas e rotundas banhistas que, em pleno nudismo, ostentam as suas toneladas de graciosidade, por aquelas elegantes praias de lodo e vasa negra (fig. 17). Os hipos, silhuetas fortes, recortadas no horizonte daquela bacia plana e careca, saltam aos olhos a grande distância. Os crocos, porém, tron59 cos apodrecidos estirados na lama, são mais difíceis de descortinar e a sua consciência de salteadores em sobressalto atira-os para a água, ao mais ligeiro alarme. Não são, por isso, fáceis de observar, sem lentes poderosas, os crocodilos dos rios de África. Na Gorongosa, nem por não serem atacados se mostram menos ariscos, eles que atacam tudo. Aquela zona da Reserva portuguesa é talvez a mais rica de todo o mundo em hipopótamos, e o espectáculo que eles oferecem, quando sobrevoados, é inédito e surpreendente. Cá de baixo, no «tando», só se alcançam por troços fragmentados do rio, onde se refastela uma centena de bichos por sector. Todos os dias íamos filmá-los com tele-objectiva de grande alcance, recolhendo cenas movimentadas daquele orbe fluvial. Em certa manhã, entre meia centena de indivíduos agrupados na margem, desencadeou-se uma enorme bronca e lançaram-se em carrocel, em perseguição uns dos outros. Não podíamos descortinar a causa nem a intenção da agitada farândola, que terminou por todos se lançarem à água, desabando sobre os que já lá estavam e continuando na mesma correria, em dansa de roda. Tivemos de concluir que se tratava dum baile, naquele mundo elegante, festividade que proporcionou a meu filho um curioso e movimentado filme. 60 A uns duzentos metros deste mesmo local, cava-se uma pequena lagoa, onde costuma estacionar um velho solitário. Deve ser um D. Juan decrépito, a quem a mocidade esperançosa escorraçou para longe do harém e que, para evitar questões e golpes de queixada, se mantém a distância dos rufiões na idade atlética. É evidente que não é sem azedume que o sultão deposto aceita o exílio; a disposição do seu espírito de grande porco não é das melhores nem das mais acomodatícias, conforme teve ensejo de experimentar uma turista inglesa, que pretendeu aproximar-se dele mais do que ele considerou discreto. Ainda a visitante estava a cinquenta metros e já o brutamontes trotava, de má catadura, ao encontro dela. A filha de Albion correu, gritando, para o autocarro, que estava a 200 metros e de onde largou, gritando mais ainda, o chefe Rodrigues, de escopeta em punho. Ao vê-lo e ouvi-lo, o velho e sabido paquiderme percebeu logo do que se tratava e fugiu em direcção oposta, a esconder-se no rio. A pobre da senhora é que não ganhou para o susto e prometeu não tornar a afastar-se para longe do autocarro, quando lhe fosse permitido sair dele. Ao mesmo charco fui eu, dias depois, binocular um crocodilo, mas não estava presente o quezilento cavalo do rio. No mesmo trecho do Urema se juntaram mais tarde, filmando cada um na sua margem, o chefe 61 Rodrigues e meu filho Fernando. Captaram cenas admiráveis da variadíssima fauna do rio e cada um ficou, entre outros bichos, na tele-objectiva do outro. Mas nunca mais conseguiram filmar outro baile daquele mundo elegante. TSÉ-TSÉ ÀS PÀZADAS Àquela hora ainda quente da tarde, na «picada» que da jangada do Púnguè conduz à Reserva, as moscas tsé-tsé, verdadeiros tavões de lanceta acerada e corpos de borracha, puderam banquetear-se à nossa custa e embebedar-se de sangue humano. Uma grande manada de búfalos devia frequentar as paragens vizinhas, arrastando consigo aquela praga de vampiros, torturante e perigosa. Desprevenidos como íamos, nada mais podíamos fazer do que distribuir pelas costas uns dos outros grandes palmadas, que nos doíam mais a nós do que às moscas. Chegados ao acampamento da Reserva, logo nos munimos das pás mata-moscas regulamentares, única forma de agressão a que a tsé-tsé não resiste. Não é que a pàzada a fulmine, mas deixa-a no chão, estonteada, o tempo suficiente para a espesinharmos e espremer-lhe o sangue que nos chupou. No dia seguinte, apesar de ser proibido andar com armas na Reserva, cada um de nós brandia a 62 63 sua pá, esgrimindo contra a tsé-tsé nos lombos uns dos outros. É claro que quando a pàzada era mais rija, não estava lá «tsé» nenhuma... era só malvadez do vizinho do lado, esquecido de que a lei da selva inclui a «vendeta». Se o agredido era branco, refilava logo e vingava-se um minuto depois; se era preto, não dava confiança. — «Também tu, meu filho Bruto»..., repontei eu, parafraseando César, quando meu filho Fernando me aplicou uma pàzada suspeita. Explicou-nos o guarda indígena que nos acompanhava, que o campo de cultura daqueles enxames de moscas de gado era uma manada de 5000 búfalos, prosperamente instalada naquela zona, gorda de pastos, rica em toalhas de água e fresca de sombras florestais. — Cinco mil búfalos?! estranhámos nós. — Sim, siô; todo juntado num manada só. Olhámos uns para os outros, sorrimos do exagero e tirámos mentalmente duas cifras aos 5000. Uma manada de 50 búfalos já era bonita em qualquer parte do mundo. O nosso cepticismo justificou-se plenamente, porque, de tantos búfalos, só vimos umas amostras isoladas, que não nos deixaram aproximar mais de trinta metros (fig. 18), De outras espécies animais, vimos dezenas de milhar. No dia seguinte, o guarda era diferente, mas também nos falou da manada dos cinco mil. Tornámos a olhar uns para os outros, mas já não nos atre64 vemos a tirar mais duma cifra. Seria possível que se juntassem em manada 500 búfalos?... É esse o número em que está computado o total da existência desses bovídeos no parque Kruger, mas ali repartidos em diversas manadas. À tarde, de volta ao acampamento, abordámos o assunto com o chefe da Reserva. — Ó Sr. Rodrigues, até agora temos visto poucos búfalos. — É porque não calhou. Temos uma manada de 5000, sem contar os que andam por fora dela. — 5000!... Agora, perante esta afirmação fidedigna, já não podíamos tirar cifra nenhuma; tínhamos de aceitar o inacreditável. — E onde poderemos desencantar essa floresta de chifres? — A área é muito grande e uma tal massa de gado tem de andar sempre em movimento, porque onde parar uma hora ceifa a pastagem. Mas eu amanhã vou com vocês, a ver se a topo. Disse e cumpriu. Na manhã seguinte, antes de nós termos lavado a cara, já ele tinha tudo a postos para a partida. Batemos e espiolhámos uma larga faixa de floresta e de «tando» até ao rio. Vimos de tudo, no reino da bicharia; só dos grandes ruminantes não havia notícia. — Ó amigo Rodrigues, de búfalos nem a sombra! 65 — A sombra levam-na eles, o que deixam ficar é o cheiro. Se quer uma prova, aí a tem no chão. — Eu não quero prova nenhuma, prove você! E regressámos ao acampamento, ao fim de uma jornada de encantos e de surprezas, mas vazia de búfalos. Aquilo dos 5000 era uma grande escova, a explorar a nossa ingenuidade. Ao romper da manhã do dia seguinte, logo o chefe Rodrigues nos foi acordar com o grito de guerra — vamos aos búfalos!... Mas foi sem pressas, nem alvoroço, nem sequer esperança, que passámos por água a ponta do nariz, engoiados de frio. A ducha regulamentar toma-se à tarde, no regresso da soalhada e da poeira. Repetiu-se a batida aos bovídeos, mas, em todo o dia só conseguimos ver tudo o que não era búfalo. Nem essa palavra se pronunciava já, fosse para não magoar o amor próprio do Chefe, fosse para não dar a impressão de termos engulido a patranha dos 5000. Ao cair da tarde, despedimo-nos da Reserva, pois retirávamos na manhã seguinte, e, quando regressávamos ao acampamento, vimos de longe, no meio da «picada», uma coluna de automóveis imobilizados em fila indiana. — Que estarão ali a fazer aqueles carros? — Estão a ver passar os búfalos, respondeu o chefe tranquilamente. «Anda depressa, rapaz!», gritou para o condutor. E foi em acelerado que o 66 nosso camião foi colocar-se à frente da caravana, estacionada e receosa de avançar entre duas muralhas de ruminantes. Ali começava o mar de búfalos (fig. 19). A 15 metros da estrada, de um lado e de outro, massas compactas de ruminantes conservavam-se imóveis, olhando-nos em perfeita calma, sem tugir nem mugir. Quando chegaram os primeiros carros, os bichos que já tinham passado afastaram-se um pouco e ficaram à espera dos outros; estes, porém, já não se atreveram a cruzar o caminho por onde ia passar o Rei das Feras, entrincheirado nas suas conchas duras, que correm mais e rosnam mais alto do que os próprios leões. Uma pesada espectativa de receio mútuo paralisava os dois campos: os búfalos não se decidiam a passar diante dos automóveis e estes não se afoitavam a circular por aquela fenda através da massa incontável de búfalos. Com o grande camião rompendo à frente, já os carros ligeiros podiam seguir mais confiados, porque os animais se iam apartando diante de nós, parando à distância regulamentar de homenagem ao homem. Rodámos cinquenta metros, cem, duzentos, quinhentos e sempre de cada lado a mesma massa compacta, interminável, a perder de vista na floresta clara, à direita e à esquerda; sempre as duas muralhas de carne e de chifre. Todos os animais 67 voltados para nós, numa imobilidade de parada, pareciam estátuas negras, todas iguais, na forma e na cor, na imponência e na força. Quando saímos daquele oceano de três mil toneladas de carne viva, mas felizmente imóvel, pelo seu inabalável respeito ao homem, já não eram cinco mil, mas um milhão de búfalos e dois milhões de chifres, que a nossa imaginação exaltada calculava ter visto, naquele sonho evocador das idades edénicas. Se o medo se tivesse infiltrado nos nossos nervos, o sonho teria degenerado num pesadelo angustioso de meio quilómetro; mas neste espantoso espectáculo, nenhum de nós deu pela presença do perigo, tão focada se mantinha toda a nossa atenção na beleza desta rara aventura. 68 MACACARIA Não é por falta de consideração e do respeito devido, que não temos feito referência à gente primata, que tem sobre nós a grande superioridade de dispor de quatro mãos, e às vezes de cinco, quando o ornamento da fachada posterior é susceptível de armar em gancho. Esta buliçosa e dinâmica família marca sempre uma nota de pitoresco, onde quer que pule, guinche, ou se dirija circunspectamente ao contacto imediato com o turista, a requisitar-lhe brindes. Chegado a Livingstone, por via Atenas-Cairo, segui para Victoria-Falls, no automóvel da família que estava à minha espera, e, logo ali, sofri a primeira surpresa pelas coisas estranhas que se passam em África. Os cinocéfalos, cercopitecos e outros quadrumanos da floresta integraram-se de tal maneira no turismo local, que vêm reclamar dos visitantes o seu tributo de guloseimas, tomando-as da mão do oferente com a maior cautela, para o 69 não molestarem. Mal pára um automóvel ao longo da extensa estrada, logo os símios o rodeiam; saltam-lhe para o «capot» ou para o tejadilho (fig. 20) e ali ficam pacificamente à espera da pitança, que às vezes não chega nunca, porque o viajante, desconhecedor das praxes, não se preveniu com subsistências para os monos. Ali presenciámos e filmámos cenas homéricas de folia simiesca. A todas sobrelevava, no efeito cómico, a luta romana sobre os tejadilhos de automóveis, de onde os contendores vinham sempre parar ao chão, na impossibilidade de se segurarem na chapa. Eu fui entrevistado dentro do carro, por um cinocéfalo, que se sentou no «capot», a olhar para mim com ar interrogativo e extremamente familiar... salvo seja. Este é o aspecto alegre e pitoresco do convívio com os mais divertidos habitantes da floresta; mas nem tudo são rosas neste contacto entre a selva viva e o progresso rodoviário: a macacada brava aprendeu a abrir as portas dos automóveis e, sempre que os bugios descobrem um que não fique fechado à chave, introduzem-se nele, revolvem e esfarrapam tudo, despedaçam os estofos, à procura de comedorias, e roubam os objectos que lhes excitam a cobiça. Tornaram-se assim uma verdadeira calamidade, para os visitantes que não reparem nos avisos, profusamente espalhados, ou desconheçam a língua inglesa em que são redigidos. 70 Aqui se repete o que se passa em Gibraltar, com a última dinastia da macacada europeia, que encontrou naquela rocha um acolhedor refúgio. De um caso sei eu, ali ocorrido muito recentemente, em que uma pobre senhora, que tinha ficado só no banco da frente dum automóvel, viu, paralisada de terror, entrar pela porta dentro um macacão que se apoderou dos embrulhos de chocolate e pastelaria que estavam na prateleira, diante dela. O símio, tão despido de cerimónia como de roupa, foi desembrulhar e devorar tudo, empoleirado numa árvore vizinha, ficando a senhora ansiosa, no pavor de que ele voltasse à despensa, antes que lhe acudissem. Numa avenida arborizada de Lourenço Marques, também prolifera a família macacoide, sob a protecção municipal. As crianças da cidade divertem-se a dar-lhes de comer, registando-se plena confiança mútua. Se os macacos falassem poderiam surgir discussões que passassem a vias de facto; mas, sendo uma das partes muda, entendem-se as duas muito melhor. Nas Reservas de caça, as várias espécies de macacos não são tão confiadas, mas também não fogem senão aproximadas de perto. Nas florestas desprotegidas, porém, onde são perseguidos, é muito difícil vê-los, porque se escondem nas ramarias mais densas e vão fugindo sempre diante de quem passe. 71 Nas proximidades de culturas, estes bichos têm de ser dizimados, pelos estragos que fazem e descaramento de que dão provas. São constantemente acossados pelos leopardos, que os atacam no chão e nas árvores; mas os grandes cinocéfalos e mandris dão combate vitorioso a estas feras, cercando-as, esfarrapando-as e vingando a espécie. Não há antropóides nas Reservas que visitei. O colobo é o mais esbelto e o mais bonito dos primatas africanos, principalmente o negro, de suissas e grande avental branco. Os caçadores de origem europeia dão-lhe caça para lhe aproveitarem a linda pele; os indígenas matam-no para se regalarem com uma carne tenra e saborosa, que, possivelmente, deve matar saudades dos tempos áureos da antropofagia. 72 A RESERVA DE WANKIE Tiveram as autoridades da Rodésia do Sul a gentileza de nos concederem autorização para a visita e hospedagem na Reserva de Wankie, antes da abertura da estação. Nela ingressámos, vindos de Victoria Falis, e logo apareceu a receber-nos uma girafa, animal ainda novo, galopando algum tempo, no seu estilo desmanchadão, ao lado do nosso carro. Um quilómetro mais adiante, surgiu uma manada de zebras, que longamente caracoleou à nossa direita, porque pretendia cruzar a estrada para a esquerda. Reconhecida a intenção, meu filho abrandou a velocidade e logo o esquadrão raiado aproveitou a concessão de passar, desfilando a dez metros pela frente do carro. Foi este o meu primeiro contacto com os animais da selva e o meu entusiasmo não cabia em mim. Chegados à hospedaria (rest house), recebeu-nos e instalou-nos, com toda a afabilidade, o Director da Reserva; mas como ainda não havia pessoal, 73 tivemos que bastar-nos a nós próprios, o que não foi difícil, graças à assistência de minha nora Joan e da minha neta Mary Clair, O Director conduziu-nos a uma torre, de onde, à luz do poente, se descortinava uma larga extensão de planuras, onde pastavam, muito dispersos, alguns antílopes. Com os mantimentos sortidos que levávamos, cozinharam as damas um saboroso jantar, rematado com boa sobremesa, a que se seguiu uma noite bem dormida, em fofos colchões e numa paz edénica. Na manhã seguinte, saboreado o primeiro almoço, o Director tomou lugar no nosso carro e seguimos a percorrer a Reserva. O primeiro encontro foi com um magnífico casal de leões, deitado a atravancar a estrada. Tivemos de parar junto deles e o Director falou-lhes, para os convencer a deixar-nos passar. Retiraram-se para fora do caminho e tornaram-se a deitar a uns dez metros. Eram duas enormes e explêndidas feras, na pujança da vida, sendo ele portador duma farta e frisada juba negra. Foram estes os exemplares maiores e mais belos, entre tantos que depois vi. A Reserva de Wankie, reduzida em área, é riquíssima em variedades de fauna. Não comporta grandes rebanhos, mas tem de tudo, num completo sortido, incluindo os animais mais procurados pelos turistas, como os elandes ou tucas, o maior dos antílopes, cujos machos atingem por vezes o peso de uma tonelada; os cudos, de enormes armações em 74 lira espiralada, e os avestruzes, de tão excêntrico e pitoresco aspecto (fig. 21). Mas o principal atractivo é o das enormes girafas que ali abundam, de parceria com os elefantes. Dispõe esta Reserva de um grande palanque de muitos lugares e defendido com toda a segurança, junto de uma lagoa que serve de vasto bebedoiro a toda a bicharia, a todas as horas. Dali podem os turistas observar a fauna que vai beber. A nós coube-nos a sorte de surpreender as manobras de aproximação de uma girafa encalmada (fig- 22). Durante três dias, percorremos esta bonita reserva que, em profusão de animais não suporta paralelo com a da Gorongosa, mas é, incontestavelmente, favorecida pela diversidade. Daqui seguimos por Bulawayo para as montanhas dos Matopos, de uma beleza tão suave e nostálgica que foram escolhidas para nelas erguer o mausoléu-monumento de Cecil Rhodes (fig. 23). Nada mais existe, como construção, alguns quilómetros ao redor, e assim aquela grande e próspera nação agradece ao clarividente Chefe que a organizou, deixando-o dormir o seu eterno sono na paz tranquila do deserto. Partimos no dia seguinte para Zimbabwe, onde se erguem as construções mais misteriosas do mundo, para as quais ainda não se encontrou explicação satisfatória (fig. 24). Na planície estendem75 -se vários recintos, cercados de altas muralhas de oito metros, com acesso por um corredor onde apenas cabe um homem. A construção é toda em grandes paralelepípedos de granito, admiravelmente talhados e sobrepostos sem qualquer cimento, segurando-se pelo próprio peso. Na montanha à ilharga, ergue-se, com o mesmo material, uma espécie de castelo, sem qualquer torre ou muralha, mas apenas guarnecido de muros baixos, podendo servir, quando muito, de parapeitos de resguardo (fig. 25). De que civilização provirão estas singulares construções? Que acontecimentos, usos e costumes teriam por ali passado? Perguntas a que, até hoje, ninguém se sentiu habilitado a dar resposta admissível. O esforço de subir à montanha foi compensado pela vasta paisagem, que de lá desfrutámos. A seguir, visitámos Fort Victoria, Umvuma, Gwelo, Quéqué, Salisbury e Umtali, bonitas e bem traçadas cidades, que nos demonstraram quanto a Rodésia do Sul é um país progressivo, opulento e bem apetrechado. Em toda a parte há bons hotéis. As cidades são desafogadas, de padrão moderno, com vastos e bem sortidos armazéns, onde se encontram as últimas novidades de Paris e Londres por preços que, em muitos artigos, são mais reduzidos que na Europa, graças à leveza dos impostos. Umtali, cidade fronteiriça com Moçambique, ligada à Beira por uma boa estrada, é constituída por um núcleo central de várias avenidas, onde não 76 há habitações, mas apenas comércio, hotéis, postas, serviços municipais e administrativos. Ao redor deste núcleo, estendem-se as zonas residenciais, onde cada família tem a sua vivenda cercada de jardins. É, na verdade, uma cidade ideal, que há-de servir de modelo para a humanidade futura. Antes de passarmos a fronteira, subimos a montanha florestal de Vumba, de imponente beleza, e de cuja cumeada a vista mergulha em terra portuguesa, até meia centena de quilómetros (fig. 26). No ano seguinte, havíamos de voltar a percorrer a Rodésia para visitar Inyanga, maravilha desértica onde mais nada existe além de um imenso hotel, à beira dum lago e encostado à montanha, (a última montanha que eu subi). Campos de variados jogos o rodeiam e para obter alojamento é preciso solicitá-lo com um mês de antecedência. Mas que paz inefável se desfruta naquele deserto, privilégio de ermitões que dispõem de automóveis e jogam o ténis e o golf, o bridge e a canasta. Inyanga, recanto escondido que não tem parceiro! Felizes os que te descobrem, assim oculta e apartada do mundo! 77 DE FRONTEIRA A FRONTEIRA Foi sempre reconfortante, para os meus sonhos de fraternidade humana, verificar o impulso espontâneo de confiança e simpatia com que os indígenas negros das províncias portuguesas do ultramar saúdam os brancos que passam nas estradas. As mulheres, com os filhos às costas ou a carga à cabeça, paravam sempre, à passagem do carro que me levava, saudando com a mão espalmada e um largo sorriso branco rasgando o rosto escuro. Os homens saudavam com a mesma simpatia e, se usavam chapéu, tiravam-no. E isto repete-se assim mesmo, sem falhar nunca, nas duas províncias distantes, a da costa do Atlântico e a das margens do Índico. Sente-se intensamente que o nosso compatriota indígena vive feliz por ser português e reconhece que a actividade do branco lhe acarreta o progresso, a justiça, a liberdade, o conforto e um nível superior de vida, condições sociais que ele jamais poderia usufruir nos 79