LIVROS HISTÓRIAS AMERÍNDIAS História dos índios no Brasil. Manuela Carneiro da Cunha, org. São Paulo: Companhia das Letras/Secretaria Municipal de Cultura/Fapesp, 1992, 611 pp. (mapas, ilustrações, índices). Eduardo Viveiros de Castro Anthropology must choose between being history and being nothing. (S. Maitland, 1911) L'histoire mène à tout, mais à condition d'en sortir. (C. Lévi-Strauss, 1962) Nestes termos um pouco drásticos, este "tudo ou nada" tão frequente na reflexão sobre as relações entre história e antropologia, não há dúvida que nos encontramos em uma fase "tudo". A antropologia está tomada por uma profunda cliofilia, para não dizer cliomania; a palavra "história" pulula substantiva, adjetiva e adverbialmente nos textos antropológicos recentes, servindo para qualquer coisa: des-de invectivar e/ou desconstruir a antropologia "préhistórica" e seus ingênuos ou maliciosos praticantes, até determinar e qualificar o objeto, o sujeito, o tema, as condições, as limitações e as aspirações do novo e sofisticado conhecimento que se pretende. Enfim, a história está em toda parte, em companhia, aliás, de outras figuras da moda: a prática, a estraté-gia, o poder, a retórica, a heteroglossia, a reflexivi-dade, a crise da autoridade etnográfica, o "fim das grandes narrativas"... 22 NOVOS ESTUDOS N.° 36 Crer-se-ia que este é um fenômeno novo, como se os antropólogos, despertos de seu sono funcionalista ou estruturalista, tivessem só agora descoberto o caminho das pedras apontado por Maitland (um historiador), ao perceberem que o sonho de constituir uma ciência natural da sociedade ou do espírito humano dava em nada. A história levaria, afinal, a tudo — e não haveria como ou por que sair dela. Ora, a história tem sido uma preocupação e um valor constantes da antropologia. Muitos e eminentes foram os antropólogos que se viram obrigados a deitar pelo menos uma falação intitulada "História e Etnologia", "Antropologia e História" ou algo no gênero (pois se trata efetivamente de um gênero): Boas, Rivers, Kroeber, Evans-Pritchard, Lévi-Strauss, Sahlins... Vários destes, e seus epígonos, socorreram-se da grande partilha de Dilthey (que hoje volta a sevir de mito epistemológico maior para algumas correntes antropológicas) e se puseram ao lado do espiritual e do histórico. Mesmo Lévi-Strauss, visto como inimigo público número um da história, dedicou-se em várias ocasiões à tarefa de definir as relações teóricas e empíricas entre as duas disciplinas e os respectivos objetos. Ele é, na verdade, o antropólogo talvez mais obcecado com a história; mas sua recusa em fazer da historicidade "o último refúgio de um humanismo transcendental" — bem como um certo pendor para as fórmulas lapidares — custou-lhe alguns dissabores críticos. Mas há sem dúvida algo de novo, na fase cliófila atual. Não se trata apenas de um retorno do pêndu-lo, e da volta a uma metafísica da história; disto, ao menos, o estruturalismo teria nos livrado. É verdade que por vezes parece que não: ao se constatar o caráter quase obrigatório de um insulto ritual a Lévi- LIVROS Strauss toda vez que se vai falar hoje da história de povos não ocidentais (ver por exemplo a coletânea organizada por Jonathan Hill, Rethinking history and myth, University of Illinois Press, 1988; ou recordem-se os trabalhos mais ambiciosos de J. Fabian, R. Rosaldo), fica-se com a impressão de que a antropologia, tendo afinal introjetado o decreto hegeliano que recusava o Espírito aos povos "sem história", vê-se compelida a provar a qualquer custo que eles "têm história"; às vezes (como na teoria do Sistema Mundial) acaba-se concluindo que eles a têm às próprias custas, o que não era bem o que se queria provar. A novidade certamente não passa por aí, e poucos são os antropólogos contemporâneos que souberam tirar algo de realmente estimulante desta revalorização da história (Sahlins é o exemplo mais notável). Ela me parece residir antes no fato de que a atual historicização da antropologia deve-se em larga medida a uma prévia, e já não tão recente, antropologização da história. É porque esta soube se renovar pela assimilação dos métodos, temas e problemas da antropologia, estendendo seu olhar para dimensões das sociedades ocidentais antes consideradas como imóveis ou insignificantes — a "cultura popular", as "classes subalternas", a "vida privada" —, que o diálogo entre as duas disciplinas tornou-se incontornável. Evans-Pritchard, depois de citar aprovativamente o aforismo de Maitland, invertia-o: "history must choose between being social anthropology or being nothing". Se o contraste entre os povos "infantis" dispondo apenas da "etnografia" e os povos maduros dignos da história (para evocarmos uma famosa passagem de Varnhagen) torna-se hoje sem nenhum sentido, é porque antropologia e história descobrem que têm o mesmo objeto. Trata-se, mais que de qualquer outra coisa, de desdramatizar a questão: se o humano, bororo ou francês, só se revela na história, não é preciso, como diria Paul Veyne, entrar em transe por causa disso. É tal desdramatização que se pode constatar na coletânea organizada por Manuela Carneiro da Cunha, sobre a história dos povos ameríndios que vivem ou viveram no Brasil e regiões adjacentes. O ano passado foi muito rico editorialmente para a etnologia sul-americana: com esta, tivemos três coletâneas publicadas no Brasil (Lux Vidal, org. Grafismo indígena. São Paulo: Nobel/Edusp; Grupioni, L. org. Índios no Brasil. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura); no exterior, um número especial (n° 122-124) da revista L'Homme foi dedicado à história indígena da América espanhola, e outro, sobre a etnologia da Amazônia, está no prelo (n° 125-128), assim como uma coletânea sobre a memória indígena (Monod, A. et alii, orgs. Mémoire de la tradition. Paris: Université de Paris X — Nanterre); no Brasil, acaba de sair mais uma compilação de ensaios etnológicos e históricos (Coelho, V. P., org. Karl von den Steinen: um século de antropologia no Xingu. São Paulo: Edusp/Fapesp, 1993) e outra se prepara (Viveiros de Castro, E. & M. Carneiro da Cunha, orgs. Amazônia: etnologia e história indígena. São Paulo: Núcleo de História Indígena/Usp). Parte desta efervescência (e da prevalência do recorte histórico no que se publicou em etnologia ameríndia) se deve a razões mercadológicas — notadamente o V Centenário da invasão da América, agora rebatizada, numa mistura de cinismo e irenismo, "o encontro" das sociedades européias e americanas...; ela exprime mais profundamente, entretanto, o enorme ímpeto recente da etnologia, da história indígena e da arqueologia sul-americanas, que a partir de meados dos anos 70 começaram a repensar seus métodos e objetivos. O volume organizado por Manuela Carneiro da Cunha é um exemplo de tal dinamismo. Ele deriva de um trabalho de pesquisa que esta antropóloga vem realizando há vários anos, associada a alunos e colegas no Brasil e no exterior, e que já nos deu livros importantes (Carneiro da Cunha, M. Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense/Edusp, 1986; idem, org. Os direitos do índio, ensaios e documentos. São Paulo: Brasiliense/CPISP, 1987; Farage, N. As muralhas dos sertões: os povos indígenas no rio Branco e a colonização. Rio de Janeiro: Paz e Terra/Anpocs, 1991) bem como uma excelente coletânea de ensaios que complementam os reunidos na atual (Revista de Antropologia, nº 30-32, 1987-89). Dentro desta produção abundante, que vai aos poucos retirando o americanismo de seu lugar marginal relativamente à mainline antropológica (tributária de uma etnografia centrada na África, Ásia e Oceania), a História dos índios no Brasil merece um lugar de destaque. Em primeiro lugar — vale sublinhá-lo, em uma paisagem editorial de grande indigência estética —, por se tratar de obra admiravelmente bem apresentada, luxuosa mesmo, mas sem nenhum traço de mau gosto: uma impressão impecável, um projeto gráfico soberbo, mateJULHO DE 1993 23 LIVROS riais iconográficos ricos e bem escolhidos. Em segundo lugar, e sobretudo, pela qualidade dos materiais reunidos, que nos dão uma visão ampla e atualizada da dinâmica indígena pré- e pós-colombiana das chamadas "terras baixas" da América do Sul, e particularmente do Brasil. Não se busque aqui nenhuma unidade metodológica ou teórica: trata-se de 25 ensaios, alguns deles de dimensões quase monográficas, escritos por profissionais de diversa origem e formação (geneticistas, arqueólogos, lingüistas, antropólogos, historiadores), versando sobre temas variados em seu escopo, recorte e estilo. Alguns oferecem-nos um balanço do "estado da arte" disciplinar ou regional (artigos sobre a biologia do homem americano, a classificação das línguas sul-americanas); outros sumarizam períodos da história pós-colombiana do ponto de vista das relações jurídico-administrativas entre a etnia invasora e os povos indígenas (três excelentes ensaios sobre a política e a legislação indigenistas na colônia, reinado e república); alguns tratam de sociedades extintas antes ou logo após a chegada dos europeus (o "cacicado" de Marajó, os povos da várzea do Amazonas); a maioria traça panoramas históricos densos de povos singu-lares (os grupos de língua pano, os Xavante, os Mura, os Kampa, os Botocudo, os Tupinambá, os Guarani, os Kayapó); outros examinam sistemas regionais e conjuntos linguístico-culturais, com ênfases mais ou menos etnológicas, históricas, arqueológicas (a Alta Amazônia peruana e equatoriana, o rio Negro, os povos de língua pano, o rio Branco, o Alto Xingu, o Madeira-Tapajós, o Chaco, Goiás, o Nordeste brasileiro)... Acrescente-se a isto uma copiosa bibliografia, uma análise da museologia e um índice das coleções etnográficas existentes, um inventário da legislação indigenista de 1500 a 1800, e pode-se prever que a História dos índios no Brasil será doravante uma obra de referência essencial, vindo sob vários aspectos substituir o que se podia achar no venerável Handbook of South American Indians (1943-48), até agora o único guia geral para a etnologia, a arqueologia e a história indígena do continente. Se ainda não temos uma verdadeira "nova síntese" da história pré- e/ou pós-colombiana dos índios brasileiros (a síntese pré-histórica panamericana de Betty Meggers está obsoleta, os sobrevôos históricos de John Hemming são úteis mas superficiais), esta coletânea é uma contribuição valiosa nesta direção. 24 NOVOS ESTUDOS N.° 36 O grande valor da História dos índios no Brasil, entretanto, não está tanto do lado desta síntese futura, mas precisamente na variedade e na especificidade das contribuições que reúne, que nos permitem apreciar os avanços realizados no conhecimento das realidades ameríndias, avaliar as questões atualmente colocadas por especialidades como a biologia humana, a lingüística e a arqueologia, e sobretudo assistir à demonstração serena (desdramatizada, como disse — isto é, sem nenhum longo mea culpa sobre o tradicional pecado antropológico de sincronismo explícito, ou qualquer anúncio grandiloqüente da historicidade ameríndia) de que se sabe, se deve e se pode saber muitíssimo mais sobre a história das populações ameríndias do que registram nossos livros de história do Brasil. Eu diria mesmo que esta coletânea deve ser lida antes de mais nada pelos historiadores do Brasil: é a eles que ela poderá dar uma idéia da complexidade, variedade e permanência de uma quantidade de situações etnográficas e históricas específicas, experimentadas por setores diferenciados da população do país. Penso que esta amostra de múltiplas histórias locais (pontuada por algumas análises globais, como nos ensaios sobre as línguas ameríndias ou as legislações indigenistas) deve ser considerada em seu aporte à história geral do país: se nossa história não é apenas a crônica da classe dominante, não pode ser também apenas aquela da etnia dominante. Outra coisa que esta coletânea permite constatar é a mudança experimentada pela comunidade antropológica americanista quanto ao interesse pela história dos povos que estuda, e à competência de que se armou para torná-lo operativo. É verdade que a etnologia praticada no Brasil sempre se distinguiu por uma sensibilidade especial a esta dimensão — recordem-se os trabalhos pioneiros de Curt Nimuendaju, Florestan Fernandes ou Darcy Ribeiro, ou a quantidade de bons estudos do "contato interétnico" que reconstruíam os determinantes históricos das situações estudadas...; mas o que se vê hoje é de outra ordem. Assim, reata-se de um lado um diálogo há muito rompido entre a etnografia de povos contemporâneos e disciplinas como a arqueologia e a lingüística histórica; de outro lado, os etnólogos deixaram de se contentar com referências superficiais a fontes secundárias ou terciárias, quando empreendem a contextualização histórica de seu objeto, debruçando-se sobre materiais de LIVROS arquivo muito mais abundantes que se imaginava; em seguida, o conhecimento obtido pela pesquisa etnográfica de campo — que, no caso dos povos indígenas brasileiros, somente a partir dos anos 70 atingiu um grau de sofisticação e profundidade comparável ao que se fazia em outras partes do mundo — tem sido aplicado mais sistematicamente sobre as fontes históricas, preenchendo lacunas e avançando hipóteses capazes de dar substância sociológica a informações vagas e contraditórias. Finalmente, a maior competência lingüística alcançada pela nova geração de etnólogos tem permitido a exploração mais sistemática de domínios como a tradição oral dos povos indígenas, fonte essencial para a construção de uma história indígena que se preocupa em transcender uma perspecti-va puramente externalista e que se abre para uma autêntica etno-história. Entendamo-nos sobre esta última noção. "Etnohistória" é palavra que se aplica hoje de modo algo indiscriminado, tendo mesmo sido incorporada por certas correntes de investigação da história do Brasil, onde é empregada como uma espécie de sinônimo de história social, ou de história das mentalidades, ou de história das classes subalternas, ou, enfim, de história antropológica — isto é, de uma história atenta às questões e objetos tradicio-nais da antropologia, agora aplicados, com grande sucesso, a fenômenos e dimensões da sociedade brasileira tradicionalmente ignorados pela história política ou econômica. Em antropologia, etno-história é conceito que se costuma reservar a uma dimensão (principal mas não exclusivamente discursiva ou conceitual) das sociedades que estudamos, não do fazer antropológico. Em primeiro lugar, diz-se etno-história como se diz etnogeografia ou etnoastronomia, isto é, estáse falando de etno-historiografia ("etno-historiologia" seria mais apropriado, no caso de povos ágrafos): do saber desta ou daquela sociedade a respei-to de sua inscrição na temporalidade, dos métodos que usa para ordenar e preencher a série temporal (narrativas tipologicamente diferenciadas sobre o passado, marcadores linguístico-retóricos evidenciais ou citacionais, crônicas genealógicas, cronologias e calendários, mitologias, relíquias e troféus...), dos eventos que retém e elabora, daqueles que ignora ou oculta. Pode-se também dar um conteúdo etno-histórico a certas instituições que codificam a reprodução social de uma perspectiva simultanea- mente sincrônica e diacrônica: sistemas de classes de idade, ciclos onomásticos ou matrimoniais, genealogias... Pode-se dizer ainda "etno-história" do que seria melhor chamar de etnofilosofia da história, isto é, aquelas concepções (explícitas ou implícitas) mais abstratas ou gerais sobre as propriedades da série temporal: tratamento do evento por dispositivos conceituais de explicação e classificação, distinções entre "tempo mítico" e "tempo histórico", orientação para a origem ou o fim da história, gêneses, ciclos e escatologias cósmicas... Podem-se, finalmente, definir como etno-históricas aquelas investigações que procuram elucidar os modos pelos quais as sociedades indígenas administram ideológica e praticamente o contato com a sociedade ocidental (mitos de origem dos brancos, reelaboração das identidades étnicas, reorganizações da base materi-al e do sistema político...), isto é, o modo pelo qual as estruturas sócio-cosmológicas nativas — historicamente determinadas — experimentam e respondem ao contato com a nossa história. Mas ou isto está, a rigor, contido nas acepções anteriores do termo, ou então trata-se simplesmente de investigações etnológicas sensíveis à dimensão diacrônica das sociedades-objeto, e em particular à história destas sociedades após o choque com o "Ocidente". Trocando em miúdos: "história indígena" possuiria um sentido possessivo (quando é uma "metadisciplina", uma etno-história no sentido próprio) e um sentido exclusivamente genitivo — ou, como diriam alguns antropólogos, inspirando-se na distinção entre os níveis fonêmico e fonético da língua, um sentido "êmico" e um sentido "ético" —, cujo cruzamento é um problema, não uma evidência. Haveria ainda uma acepção última para este termo de "etno-história", que até certo ponto engloba o objeto das anteriores e transcende a oposição um tanto escolástica entre história e etno-história, historiografia e etno-historiografia. Trata-se de uma investigação que procura estabelecer os regimes de historicidade característicos de diferentes sociedades, os modos concretos de estar no tempo de cada forma sócio-cultural, e que são tributários de seu modo de produção e reprodução, de sua estrutura morfológica, de sua cosmologia, sua filosofia da história e de sua "cultura" em sentido mais amplo. É destes regimes diferenciais de historicidade que falava Lévi-Strauss ao propor a muito vituperada noção de "história fria" — empiricamente questioJULHO DE 1993 25 LIVROS nável em vários casos, mas muito longe de ser teoricamente absurda. A História dos índios no Brasil não é nem pretendeu ser uma "etno-história dos índios no Brasil", em qualquer das acepções acima. Vários dos autores que contribuíram para o volume destacaram-se por estudos sobre etno-história, ou trabalharam na interface entre história e etno-história (citem-se por exemplo M. Menéndez, R. Wright, Nádia Farage, ou ainda a organizadora do volume, que há tempos escreveu comigo um trabalho sobre as propriedades "crônicas" do sistema guerreiro tupinambá e suas implicações para o regime de historicidade deste povo). No presente livro, apenas o artigo de B. Franchetto tematiza especificamente narrativas e concepções indígenas (kuikúro) do contato histórico com os brancos; os ensaios de R. Wright, C. Fausto e T. Turner trazem entretanto elementos valiosos para se pensarem as condições estruturais e ideológicas muito diferenciadas das respostas indígenas à invasão ocidental; outros, como os de F.-M. Renard-Casevitz, de A.-C. Taylor, de N. Farage e P. Santilli, esboçam panoramas e periodizações complexas de grandes áreas da Amazônia, onde se podem divisar os modos sucessivos de ajustamento dos povos nativos aos desafios que lhes foram sendo lançados pelas sociedades nacionais envolventes. Em muitos casos, por outro lado — e isto é tanto mais inevitável quanto os povos estudados foram exterminados ou assimilados, ou não foram ainda objeto de uma investigação centrada especificamente na etno-história —, o que temos são boas descrições "de fora", baseadas em fontes documentais brancas, dos efeitos (demográficos, políticos, territoriais, econômicos) do "contato" sobre diferentes grupos ameríndios (A. Porro, M. Amoroso, M. Karasch, B. Dantas et alii). Para vários destes povos, aliás, pode-se infelizmente inverter o juízo arrogante de Varnhagen: para eles não há mais etnografia, apenas história. Em outros casos, os autores optaram por oferecer uma espécie de introdução etnográfica e histórico-arqueológica geral, capaz de organizar uma massa confusa de etnônimos, topônimos e sucessos históricos sedimentados na literatura: vejam-se as úteis paisagens esboçadas por P. Erikson para os Pano ou S.M. de Carvalho para o Chaco. A organização e avaliação das fontes disponíveis para cada caso é outra tarefa indispensável, de que se desincumbem com rigor os trabalhos, por exemplo, de J. Monteiro, R. Wright, M.H. 26 NOVOS ESTUDOS N.° 36 Paraíso. Finalmente, os balanços da legislação e política indigenistas (B. Perrone-Moisés, M. Carneiro da Cunha, A.C. de Souza Lima) permitem complexificar consideravelmente a história das relações político-administrativas entre o Estado, colonial ou nacional, e os povos indígenas, desmontando de passagem vários mitos historiográficos e hagiográficos. Trata-se, em suma, de uma coletânea de história indígena do Brasil e adjacências, vista tanto do ponto de vista geral (ensaios de síntese arqueológica, lingüística, político-administrativa) quanto daquele de diversas situações específicas. Com isto, ele estabelece as bases para qualquer estudo etnológico ou histórico, sincrônico ou diacrônico, externalista ou internalista, das regiões e povos aqui tratados. Há alguns reparos menores a fazer — para manter as convenções do gênero... F. Salzano, em seu balanço sobre os desenvolvimentos que os métodos da genética de populações, da antropologia física e da paleoepidemiologia estão permitindo, no retraçar a história biológica dos povos ameríndios, reporta uma investigação sobre as diferenças entre os sistemas genéticos de "quatro populações em três tribos Tupi: Asurini (duas localidades), Urubu-Kaapor e Parakanã [...] os Asurini dessas duas localidades (Trocará e Koatinemo) diferiam tanto entre si quanto com relação às populações das outras duas tribos [...]" (p. 34). Ora, o etnônimo "Asurini", de origem estrangeira (juruna), é aplicado pela Funai a duas sociedades que nada têm a ver uma com a outra, ou antes, que só têm em comum o fato de falarem línguas tupi-guarani (diferentes entre si) e viverem no interflúvio Xingu-Tocantins; na verdade, os "Asurini" do Trocará são historicamente muito mais próximos dos Parakanã que dos "Asurini" do Koatinemo. A confusão de nomes fez o pesquisador achar que eles deveriam ser o mesmo grupo, e portanto concluir que a heterogeneidade genética era particularmente significativa. (Vê-se aqui a necessidade perene de trabalhos de elucidação crítica dos etnônimos presentes na documentação, como o feito por P. Erikson na História dos índios...) No excelente artigo de Greg Urban sobre a história lingüística do continente, o título pode se prestar a equívoco; e a classificação da família de línguas tupi-guarani pareceu-me problemática: não sei que critérios foram usados para se distinguirem os subgrupos "dialetais" chamados (de modo que se presta à confusão com as sociedades epônimas) de LIVROS "Tapirapé", "Tenetehara" e "Tupi-Guarani". Urban dá ainda os Xakriabá, grupo Jê Central, como extintos (p. 90), o que não corresponde à realidade — é possível que a língua original do grupo não seja mais falada, mas há uma considerável população indígena no norte de Minas que se identifica por este etnônimo, vivendo concentrada em uma reserva; trata-se indubitavelmente dos Xakriabá históricos. E há um destaque a fazer, dentro de um conjunto de estudos de tão alta qualidade. Trata-se do ensaio de Terence Turner sobre a história dos Kayapó. Turner dá um exemplo da riqueza de perspectivas que o conhecimento etnográfico detalhado — e teoricamente sofisticado — pode gerar sobre a história de uma sociedade ameríndia. O exame da articulação complexa entre a estrutura social kayapó e as condições históricas criadas pelo "contato" transcende com sucesso o dilema entre uma perspectiva puramente culturalista ou "cosmologista" que, ao tomar uma formação sociocultural como sistema fechado e equilibrado de princípios extratemporais, obriga-se a tomar a mudança social como algo degenerativo ou teoricamente inexplicável, e uma perspectiva sociologista que vê a mudança social como resultado exclusivo de determinações externas à sociedade ameríndia, como fruto de uma mecânica histórica inteiramente explicável pelas características da sociedade nacional (a lógica do capitalismo, as frentes de expansão...). O ensaio de Turner testemunha uma mudança importante no fazer etnológico contemporâneo: o surgimento de uma perspectiva mais integrada sobre as sociedades indígenas, que procura dissolver certas antinomias tradicionais: ecologia ou cultura, história ou etnografia, sociologia do contato ou análise de mônadas ideológicas. Assiste-se hoje a um esforço para diminuir a distância entre os especialistas em sociedades fortemente articuladas aos sistemas nacionais (que praticam uma sociologia histórica essencialmente externalista) e aqueles voltados para sociedades "tradicionais" (que preferem as abordagens internalistas e sincrônicas de recorte culturalista). Ele é a condição fundamental para que superemos definitivamente esta falsa contrariedade entre sociedades "aculturadas", objetos de uma sociologia do contato e de uma história documental, versus sociedades "puras", objeto de uma indagação culturalista e de uma "etno-história". Além da sóbria introdução de Manuela Carneiro da Cunha, que diz melhor do que se poderia resumir aqui a que vem este livro, a primeira seção do volume ("Fontes da história indígena") é a de apelo mais geral. Ela é a mais abrangente e polêmica, indicando as linhas atuais de investigação da préhistória biológica, lingüística e cultural americanas, merecendo por isto uma discussão mais extensa. Creio que se pode divisar um amplo movimento de revisão das idéias aceitas sobre a América précolombiana, e conseqüentemente sobre o impacto da invasão européia, que vem tomando conta do americanismo desde alguns anos atrás. Em primeiro lugar, assiste-se a um recuo das datações arqueológicas para a chegada do Homo sapiens no continente americano. Este fenômeno de recuo das datações paleoantropológicas é mundial, mas particularmente evidente no caso das Américas, e sobretudo da América do Sul. Ainda bastante controvertida, mas caminhando para a aceitação geral, uma data de 50 mil anos BP [antes do presente — N.R.] vem substituir o limite tradicional de 12 mil anos para os sinais de presença humana no atual território brasileiro. Ao lado desta maior antigüidade do homem americano, começam a surgir evidências de que a Beríngia não teria sido a única via de acesso ao continente, sugerindo assim pelo menos uma leva de migrantes transpacíficos. No presente volume, deve-se consultar o artigo de Niède Guidon, que expõe a questão a partir dos achados arqueológicos no sertão do Piauí. Assiste-se também a um aumento considerável (e também ainda sujeito a controvérsia) das estimativas da população americana em 1492. Passou-se de algo na casa dos 9 milhões para algo entre 60 e 100 milhões (total das Américas); para as terras baixas da América do Sul, foi-se de 1 milhão para 8,5 milhões. A famosa escola de demografia histórica de Berkeley é a responsável por estes cálculos mais recentes, que indicariam ser a América mais populosa que a Europa (do Atlântico aos Urais) à época da invasão. Isto, naturalmente, significa que o impacto demográfico da chegada dos europeus foi muitíssimo mais forte que o tradicionalmente aceito: fala-se mesmo hoje em algo como 90% de depopulação, entre o efetivo de 1492 e o nadir demográfico (localizado por volta JULHO DE 1993 27 LIVROS de 1650). Como recorda M. Carneiro da Cunha em sua introdução, estes cálculos desmentem a imagem de um continente quase vazio à espera do excedente populacional europeu: a América foi invadida e despovoada, não "descoberta". A reavaliação do impacto demográfico, e portanto da densidade populacional da América, é crucial para o caso da região amazônica. O aumento das estimativas de população convergem com várias investigações pedológicas e botânicas na Amazônia, que, além de desmentirem o mito da uniformidade ecológica da região, abalam a imagem da "mata virgem". Assim, sabia-se já há bastante tempo que há uma grande diferença ecológica entre as regiões aluviais da calha de certos rios (especialmente o Amazonas), que recebem os sedimentos andinos e se prestam a culturas de sementes (milho, leguminosas), e as regiões de interflúvio, de solos mais pobres e mais apropriados aos tubérculos (mandioca); sabe-se mais recentemente que tal distinção não é tão nítida, e que diversas zonas ribeirinhas fora da várzea amazônica são capazes de sustentar uma população numerosa; outrossim, o interflúvio ou "terra firme" não é homogêneo, e os solos da Amazônia são razoavelmente variados. Sobretudo, hoje se tende a sustentar (isto também ainda está em discussão) que boa parte da cobertura vegetal amazônica, em sua distribuição e composição específicas, é o fruto de milênios de intervenção humana; a maioria das plantas úteis da região proliferou diferencialmente em função das técnicas indígenas de aproveitamento do território; porções consideráveis do solo amazônico são antropogênicas (estes solos antropogênicos costumam ser escolhidos pelas populações indígenas atuais, por sua fertilidade — a ocupação humana produzindo assim a ocupação humana), indicando uma ocupação intensa e muito antiga. Isto que chamamos "natureza" seria portanto parte e resultado de uma longa história cultural. A reavaliação do choque demográfico associase também diretamente a uma reconsideração do impacto organizacional da conquista sobre os povos indígenas, e portanto sobre a paisagem sóciopolítica da América pré-colombiana. A imagem tradicional da América indígena opõe radicalmente dois tipos sócio-políticos: as "grande civilizações" dos Andes e da Mesoamérica e as tribos ou bandos igualitários de agricultores itinerantes ou caçadores-coletores do resto do continente. Na verdade, já há bastante tempo os antropólogos e arqueólo28 NOVOS ESTUDOS N.° 36 gos distinguem uma muito maior variedade de configurações. Para ficarmos apenas na América do Sul, distinguiam-se, além das civilizações das terras altas: as formações sociais complexas das áreas sub-andina e caribenha da América do Sul (os "cadeados" chibcha e aruaque da região "circuncaraíba"); os caçadores-horticultores da costa atlântica e da floresta tropical; e os "marginais", povos supostamente "primitivos" ou "involuídos", nômades e não agrícolas, do Brasil Central, do Chaco e da Patagônia. Entretanto, mantinha-se o contraste maior entre as civilizações do planalto andino (e da costa árida do Peru e do Equador) e as sociedades das terras baixas orientais. Os Andes apareciam como o grande foco de difusão dos eventuais traços "avançados" encontrados fora do planalto. Esta visão do "desenvolvimento cultural" do continente foi consolidada no Handbook 0f South American Indians, enciclopédia guiada pelas classificações geográfico-culturais da escola difusionista norte-americana e, mais imediatamente, pelas teorias materialistas e neo-evolucionistas de Julian Steward, seu organizador. A arqueologia amazônica dos anos 50 e 60 tendeu a reforçar esta visão dos Andes como pólo de alta cultura, e das terras baixas como região imprópria para o desenvolvimento de sociedades complexas. O materialismo cultural norte-americano propôs uma série de teorias limitativas para explicar o que entendia como baixo desenvolvimento sóciopolítico das terras baixas: primeiro, falou-se na pequena capacidade de suporte agrícola dos solos amazônicos (Betty Meggers); em seguida, quando esta hipótese foi abalada (por um célebre artigo de Robert Carneiro), passou-se a considerar a disponibilidade de proteína animal como o fator limitante (M. Harris, E. Ross, D. Gross). Esta teoria recebeu uma quantidade de desmentidos etnográficos (S. Beckerman, J. Lizot, P. Descola, entre outros), e as teorias limitativas conhecem hoje um certo declínio. Mas foi das fileiras da tradição neo-evolucionista — et pour cause — que veio a crítica de maior impacto à idéia da Amazônia como região hostil à civilização. Trata-se da teoria que a arqueóloga Anna Roosevelt vem propagando sobre as sociedades da várzea amazônica, e em particular sobre a "fase marajoara" — uma formação social que existiu na ilha de Marajó entre 400 e 1300 AD. Deve-se ler com atenção o que esta pesquisadora escreveu na História dos índios no Brasil; suas idéias prometem causar ainda mais LIVROS barulho que o que já estão fazendo nos meios especializados. Em síntese, Roosevelt se opõe à visão difundida por Betty Meggers e Clifford Evans sobre as socieda-des pré-colombianas da calha amazônica. Estes arqueólogos, defrontados com a complexidade evi-dente das formações que deixaram os famosos complexos cerâmicos do baixo Amazonas (Santarém, Marajó etc.) — e com as abundantes descrições dos primeiros exploradores, sobre o tamanho e a riqueza das sociedades que encontraram na várzea do grande rio (ver o ensaio de A. Porro) —, procuraram salvar a teoria de que a região não poderia sustentar e sobretudo gerar uma sociedade estratificada e politicamente complexa, atribuindo tais restos a uma influência, ou mesmo migração, das terras altas andinas. Estes migrantes do planalto teriam decaído nas terras baixas: a extinção da sociedade (ou sociedades) que deixou a cerâmica marajoara seria fruto da pobreza do ambiente amazônico. Note-se que Betty Meggers foi um dos primeiros estudiosos a popularizar a oposição entre a várzea e a terra firme, e a aceitar a maior complexidade econômica e morfológica dos grupos da várzea; mas ela insistiu em que esta região ecológica não poderia sustentar um nível de complexidade social maior que o então atingido pelos Omágua ou Tapajós do século XVI. Anna Roosevelt, desenvolvendo (e modificando) teses propostas há bastante tempo pelo brilhante arqueólogo Donald Lathrap — o primeiro estudioso a propor a várzea como berço de sociedades complexas e foco original de dispersão cultural —, propõe essencialmente que: (1) a várzea amazônica foi capaz de sustentar populações muito numerosas e densas, graças ao cultivo intensivo do milho e à proteína animal obtida nos piscosos rios de várzea; (2) o milho não teria sido difundido a partir dos Andes e/ou da Mesoamérica em direção à Amazônia, mas pode ter sido domesticado independentemente nesta última região; (3) os Andes não foram um fator de difusão cultural para a Amazônia, mas o contrário — embora as sociedades da calha amazônica só tenham atingido um nível de complexidade elevado bem depois das sociedades andinas, certos traços culturais panamericanos decisivos (cerâmica, sedentarismo, agricultura) surgiram primeiro ali; (4) as sociedades da calha amazônica, e em particular aquela associada à "fase marajoara" — muito mais sofisticada que os povos históricos do tipo Tapajós ou Omágua —, eram cacicados complexos ou mesmo pequenos estados, exibindo estratificação social, manufaturas especializadas, sistema tributário, sacerdotes, culto de ancestrais, e toda a parafernália que se costuma associar a uma "civilização hidráulica" (os restos arqueológicos sugerem "grandes trabalhos" de sabor witffogeliano); (5) estas sociedades são autóctones, nada devendo aos Andes. Indo mais adiante, a autora sustenta a idéia de que as sociedades indígenas amazônicas atualmente existentes, isto é, aquelas descritas pela etnografia moderna, são "remanescentes geograficamente marginais dos povos que sobreviveram à dizimação ocorrida nas várzeas durante a conquista européia" (História dos índios no Brasil, p. 57); neste processo degenerativo, elas teriam involuído até um nível arcaico, anterior ao da formação das civilizações fluviais (pp. 57, 70, 82). A indigência tecnológica e sócio-política das sociedades indígenas atuais — a autora repete o juízo clássico de Steward, Meggers e Lathrap, bem como aquele sobre a pobreza agrícola dos solos do interflúvio — não seria assim inerente à Amazônia, mas resultado da conquista européia. Ruptura radical entre os ricos cacicados dos comedores de milho e peixe da várzea e os pobres bandos atuais de comedores de caça e farinha de mandioca... Ruptura radical entre arqueologia e etnografia, portanto: é preciso evitar o que ela chama de "projeção etnográfica", que lê o glorioso passado da Amazônia através da simplicidade regressiva da situação indígena atual. Algumas das idéias acima foram propostas segundo caminhos próprios, outras são interdependentes; associadas todas, entretanto, elas desenham um panorama nítido: alta antigüidade do povoamento; densidade populacional elevada; alto grau de antropização do ambiente; grande complexidade sócio-política da Amazônia indígena. Em suma: a América não era um "novo mundo", quase virgem e quase despovoado, ocupado por um punhado de selvagens mal-sedentarizados (sempre com as intrigantes exceções mesoamericanas e andinas); era um mundo antigo, populoso e complexo, paralelo ao velho mundo de onde enxamearam os euroJULHO DE 1993 29 LIVROS peus. O impacto quantitativo e qualitativo da invasão e colonização, portanto, foi incomparavelmente maior que o já admitido pela má consciência ocidental. O passivo político da "descoberta" aumenta ainda mais. O que dizer de tudo isto? A validade científica de quase todos os pontos acima ainda é mais ou menos controvertida. Pessoalmente, inclino-me a aceitar as novas estimativas demográficas e as hipóteses sobre um ponderável componente antrópico nos ecossistemas das terras baixas; tenho certa desconfiança (que admito preconceituosa, pois pouco entendo do assunto) frente a recuos muito dramáticos nas datações da chegada do homem nas Américas; e tenho muitas reservas quanto a vários aspectos da reconstrução das sociedades da várzea por A. Roosevelt, e sobretudo quanto às conclusões que dali ela pretende tirar para a paisagem etnográfica contemporânea. O sentido ideológico global desta revisão da história ameríndia é claro, mas ambíguo: se a maior culpabilização do "Ocidente" é historicamente justa, a conseqüente maior vitimização das populações indígenas pode caucionar uma visão degeneracionista perigosa dos grupos atuais, que, sobre revestir velhos mitos antropológicos com uma nova roupagem, nega aos povos indígenas contemporâneos a capacidade de agência histórica. Há de fato uma tendência geral, na antropologia americana de corte cultural-materialista, a se imputar qualquer aspecto problemático das sociedades ameríndias — isto é, via de regra irredutível a considerações práticoadaptativas e/ou "politicamente incorreto" segundo os cânones atuais, como a guerra (ver por exemplo Ferguson, B. "Blood of the Leviathan: Western contact and warfare in Amazonia". American Ethnologist, 17 (2): 237-57) — aos efeitos avassaladores do "Ocidente". Apesar de seu radicalismo bempensan-te, este tipo de explicação termina por ver os ameríndios como joguetes passivos da lógica inexorável do Estado e do Capital, como o seriam, do outro lado, da razão ecológica: entre a história e a natureza, desaparece a sociedade. Parece que é sempre preciso explicar por que os ameríndios das terras baixas não "evoluíram": antes se acreditava que eles jamais o fizeram, por conta do ambiente hostil; hoje se crê que evoluíram sim, mas que decaíram por obra e desgraça da praga ocidental. Não é o caso de embarcar aqui numa análise detalhada da contribuição de A. Roosevelt à história /n 30 NOVOS ESTUDOS N.° 36 cultural da América do Sul (vejam-se as críticas avançadas por C. Fausto na p. 388 da coletânea, que subscrevo integralmente). Diga-se que suas pesquisas são valiosíssimas, tecnicamente sofisticadas, trazendo um sopro de ar fresco para a arqueologia amazônica, e que suas especulações sócio-políticas, por questionáveis que sejam, são pelo menos mais interessantes que a seriação de cacos de cerâmica ou o mero estabelecimento de datações. A origem local das sociedades de várzea do pré-histórico tardio parece admissível, embora a influência dos cacicados da costa caribenha não possa ser descartada. Já a idéia de que os índios da terra firme amazônica (mas também os da costa atlântica, e os do Brasil Central?) seriam "remanescentes marginais" de grandes civilizações do passado (antigamente eram os Andes — quando não os fenícios ou egípcios... —, agora são a várzea e Marajó) pareceme inteiramente distorcida ou mesmo completamente falsa, além de poder desembocar em uma posição absurda: a de que as sociedades ameríndias atuais, sendo "não representativas" do passado da América, são descartáveis. Esta é uma típica "perversão arqueológica", bem mais grave que a tal da "projeção etnográfica" de que fala A. Roosevelt. Projeção, aliás, que ela só denuncia quando a etnografia não ecoa sua reconstrução arqueológica, mas que não se peja de empregar, de maneira antropologicamente bastante ingênua, quando se trata de preencher as inumeráveis lacunas que todo sítio arqueológico deixa ao arbítrio da fantasia dos cientistas (ver, a propósito, seu livro mais recente, Moundbuilders of the Amazon, Academic Press, 1991). Não há dúvida que a Amazônia, em particular as várzeas do seu rio principal, abrigava à época da invasão européia populações numerosas, e que esta região mostra maior capacidade de suporte agrícola para a cultura de sementes; há ainda vários indícios documentais de que os sistemas sociais da região mostravam maior centralização e hierarquização que a maioria dos sistemas ameríndios contemporâneos. Não há dúvida que a várzea foi despovoada por epidemias, descimentos missionários e predação de escravos, e que pelo menos alguns grupos atuais devem ser remanescentes destes povos, que fugiram do furacão da conquista internando-se nas matas de terra firme ou buscando o alto curso dos afluentes do Amazonas. Está igualmente claro que vários povos atuais vivendo em nnnn LIVROS condições de nomadismo e dependentes da caça e coleta não são representantes de um estado prime-vo pré-agrícola, mas foram forçados a abandonar a horticultura e a vida sedentária devido a pressões territoriais externas (brancas ou indígenas) — Sirionó, Hetá, Guajá, Aché —; assim como está claro, aliás, que atividades como a guerra aumentaram de intensidade e/ou mudaram de sentido como efeito da invasão (o ensaio de Terence Turner neste volume analisa em profundidade a questão para os Kayapó). Mas é falso supor que as regiões distantes da várzea fossem despovoadas antes da invasão, como se houvesse um tropismo irresistível de qual-quer povo em relação a áreas mais férteis — em abstrato, e desprezando qualquer consideração dos regimes de produção e reprodução sócio-cultural destas populações —, ou que os povos que porven-tura habitavam a terra firme ao tempo do floresci-mento das sociedades da várzea fossem todos "mar-ginais" alijados do paraíso fluvial pelos ocupantes desta região; ou, finalmente, que os Tupinambá só começaram a fazer a guerra por causa dos portugueses e franceses... Há, de início, vários problemas empíricos para esta hipótese. O trabalho de reconstrução lingüísti-ca apresentado por Greg Urban neste volume, por exemplo, vai de encontro às teses (de Lathrap, entre outros) de que alguns grandes grupos lingüísticos atuais — Aruaque e Tupi — teriam se originado no médio Amazonas. Urban sugere convincentemente que os focos de dispersão dos troncos lingüísticos das terras baixas são precisamente áreas periféricas: as cabeceiras ocidentais do Amazonas (os Aruaque), o alto interflúvio Madeira-Xingu (os Tupi), o altiplano do escudo da Guiana (os Caribe); o planalto oriental brasileiro, entre o Tocantins e o São Francisco (os Macro-Jê). Se este é de fato o caso — e as estimativas glotocronológicas de Urban devem ser confrontadas às datações de Roosevelt —, então vários dos registros arqueológicos da várzea remetem a populações de línguas extintas, que teriam sido invadidas e destruídas por "bárbaros" de tecno-logia inferior vindos precisamente da antivárzea. De qualquer modo, não há por que supor que todos os proto-Tupi, proto-Aruaque e proto-Caribe saíram em massa das cabeceiras em direção à várzea. Certos sucessos históricos também ficam um pouco misteriosos, se se adota de modo generalizado a hipótese de civilizações poderosas da várzea mantendo à distância os grupos "marginais". Por exem- plo, como teriam os Tupinambá conseguido se impor no médio Amazonas? Os Tupinambá da rica várzea de Tupinambarana chegaram à região pouco depois de 1500, saindo da costa atlântica nordeste, atravessando boa parte da Amazônia meridional, até vir submeter as populações (provavelmente caribe e aruaque) da várzea. Considerando-se que os Tupi da costa atlântica não possuíam nada de semelhante a um "cacicado" (ver Fausto, neste volume), e que dificilmente o efetivo populacional dos migrantes seria maior que o dos povos estabelecidos na várzea (e que à época ainda não haviam sofrido o colapso demográfico) — Acuña diz claramente que não era —, fica a questão. O destino da sociedade marajoara de Roosevelt não é menos misterioso: por que teria ela desaparecido por volta de 1300? Os Aruã (de língua aruaque) que se achavam em Marajó na época dos primeiros registros europeus (século XVII) teriam suplantado este poderoso mini-Estado? A sociedade aruã nem de longe exibia a complexidade sócio-política imputada por Roosevelt aos marajoaras de duzentos anos antes. Lévi-Strauss comparou a América indígena a "un Moyen âge auquel aurait manqué sa Rome: masse confuse, ellemême issue d'un vieux syncrétisme dont la texture fut sans doute très lâche, et au sein duquel subsistèrent çà et là [...] des foyers de haute civilisation et des peuples barbares, des tendances centralisatrices et des forces de morcellement" (Le cru et le cuit, p. 16). Bem, eis que, nestes tempos em que se retorna ao afro-egiptocentrismo e se fala em "Black Athena", os arqueólogos da Amazônia põem-se a querer dar uma "Red Rome" marajoara para os ameríndios... Continuo preferindo a paisagem esboçada por Lévi-Strauss. Entendamo-nos mais uma vez. O impacto demográfico, político, econômico da invasão européia foi profundíssimo. Não é preciso recorrer aos cacicados (seja lá o que isto signifique precisamente) da várzea para atestar isto; os estudos reunidos na História dos índios no Brasil dão testemunho de uma paisagem global para as terras baixas muito diferente da atual, onde prevalece um perfil sociológico insular, composto de pequenas mônadas sócioculturais, etnicamente congeladas e cortadas de qualquer contato sistemático com suas congêneres. O mundo ameríndio pré-colombiano era um tecido mais ou menos denso, mas sem falhas, em estado de fluxo constante, composto de gigantescos sistemas regionais que articulavam regiões tão disJULHO DE 1993 31 LIVROS tantes como a montaña peruana e a bacia do Orinoco, os Andes e o litoral de São Paulo. Fragmentos destes vastos complexos de troca comercial e cultural, matrimonial e guerreira, podem-se ver ainda hoje no rio Negro, no Alto Xingu, na Amazô-nia sub-andina ou no escudo da Guiana. O congelamento e o isolamento das etnias é um fenômeno sociológico e cognitivo pós-colombiano; a multiplicação de etnônimos nas crônicas e relatórios antigos é fruto de uma incompreensão total da dinâmica étnica e política do socius ameríndio, incompreensão baseada em um conceito inadequado de sociedade, substantivista e "nacional-territorialista", incapaz de dar conta da natureza relativa e relacional das categorias étnicas, políticas e sociais indígenas. Mas por isto mesmo, qualquer distinção radical — ecológica, étnica e sócio-política — entre cacicados da várzea e bandos ou tribos igualitárias da terra firme é injustificada. Se não é mais possível tomar a Amazônia como sítio exclusivo de caçadores-horticultores organizados em pequenos bandos igualitários e aguerridos (seja por uma limitação extrínseca e negativa de tipo ecológico, ao modo de Steward, seja por uma limitação intrínseca e positiva de tipo ontológico, ao modo de Pierre Clastres — que sempre raciocinou a partir da vulgata do Handbook, e de sua experiência de campo com os caçadores Aché), tampouco se pode cair no exagero oposto, postulando a natureza vestigial, degenerativa e marginal dos grupos da terra firme. Assim como a oposição entre várzea e interflúvio (ou entre a várzea dos rios de água branca e o habitat ribeirinho das regiões menos afortunadas) deve ser qualificada e modalizada, assim também deve-se evitar qual-quer contraste drástico, a partir das tipologias evolucionistas de níveis sócio-políticos de complexidade, entre a Amazônia e o Brasil Central; os Jê, ao que se saiba, jamais andaram pela várzea, e sua complexidade sociológica (que não é do tipo caro aos evolucionistas, é verdade, pois nada tem a ver com centralização, tecnologia e coisas do gênero) demonstrou há bastante tempo a inanidade das classificações do Handbook. É claro, a sofisticação sociológica dos Jê já foi interpretada (por Lévi-Strauss inclusive) nos termos de uma regressão arcaizante, ou, para dizê-lo mais diretamente, os Jê foram vistos como Inca decaídos. Mas, a menos que se consiga provar que os Inca saíram do sertão da Bahia, esta hipótese não é muito verossímil (bem, se afinal os Azteca vieram do deserto do Arizona...). 32 NOVOS ESTUDOS N.° 36 A idéia de um tropismo de tipo "sumério" (agricultura intensiva, grandes trabalhos, realeza divina, casta sacerdotal etc.) para as sociedades da América tropical encontra outro obstáculo no caso dos Tupinambá da costa brasileira: tínhamos aqui populações muito numerosas, ocupando uma região extensa e fértil em recursos de todo tipo (os manguezais e enseadas litorâneas, o vale do Paraí-ba, o planalto paulistano, o Recôncavo baiano). Entretanto, e apesar de várias tentativas baseadas no raciocínio analógico e no wishful thinking para dar aos Tamoio, Tupiniquim e Caeté uma organização em províncias, com régulos e potentados, os cronistas do litoral quinhentista — ao contrário daqueles que andaram pelo Amazonas — não registram nada nem vagamente semelhante a tal situação (ver, mais uma vez, o artigo de Carlos Fausto). O caso dos Guarani do Paraguai é por certo mais complicado (ver o artigo de John Monteiro), mas as evidências são ambíguas. Pode-se sempre argumentar, para o caso da costa brasileira, que não se encontrava aqui a indispensável limitação de áreas férteis, aguilhão capaz de gerar a centralização encontrada na mais restrita área de várzea do Amazonas (a hipótese de R. Carneiro para os Andes, que Roosevelt adapta para os cacicados da várzea). Mas aqui entramos no terreno da casuística: pois se alguns autores argumentam ao contrário que a costa apresentava sim limitações ecológicas — e tentam deduzir daí a necessidade dos (inexistentes) cacicados... Em suma: se, como observei, está cada vez mais difícil supor uma essência da natureza tropical como barreira ao desenvolvimento sócio-político (entendido sempre em termos eurocêntricos: grãos, manufaturas, chefes, sacerdotes, escravos..., e visto sempre como um movimento natural e portanto positivo), ou uma essência da sociedade ameríndia que segregaria deliberadamente anticorpos contra o vírus do Estado (como queria a leitura libertária, simultaneamente setecentista e "soixante-huitarde", que Clastres fez do Handbook) — isto certamente Lathrap e Roosevelt, entre outros, provaram —, e se ao contrário é de fato preciso ver a invasão européia como um fator poderosíssimo de desagregação demográfica e sóciocultural, não basta por isto simplesmente inverter os sinais, mantendo-se o mesmo determinismo ecológico pedestre e o mesmo evolucionismo (ou involucionismo) produtivista ingênuo. Remeto aqui o leitor ao minucioso estudo de Philippe Descola (La nature domestique: symbolis- LIVROS me et praxis dans l'écologie des Achuar. Maison des Sciences de l'Homme, 1986), sobre os Jívaro Achuar do Equador. Descola põe em evidência um regime econômico que sustenta a população jívaro (territorialmente atomizada e politicamente acéfala — se posso usar esta expressão para caçadores de cabeça...) em condições nutricionalmente luxuosas, ao mesmo tempo que se caracteriza por uma radical subexploração dos recursos, fundada em razões sociais e culturais, não em limitações ecológicas. Ora, os Achuar ocupam habitats tanto interfluviais como aluviais; nestes últimos, não se verifica nenhum predomínio do cultivo do milho ou de leguminosas sobre o da mandioca, ao contrário da sequência irresistível suposta por A. Roosevelt; tampouco se verifica nenhuma pressão dos moradores da terra firme sobre os moradores ribeirinhos, nem qualquer diferença política ou cultural entre as duas regiões. Acrescente-se que os Jívaro não são uma pequena etnia impotente, mantida longe do maná aluvial por povos mais poderosos, indígenas ou europeus: eles contam cerca de 80 mil pessoas, e são um dos povos de maior fama guerreira do continente (ver o ensaio de A.-C. Taylor na História dos índios...). Cito a conclusão de Descola: "Si, malgré tous les atouts dont ils disposaient, les Achuar riverains n'ont pas fait le choix du développement de leur base matérielle, c'est donc peutêtre parce que le schème symbolique qui organise leur usage de la nature n'était pas suffisamment flexible pour pouvoir absorber la réorientation des rapports sociaux que ce choix aurait engendrée. [...] Au rebours du déterminisme technologique sommaire dont sont souvent imprégnées les théories évolutionnistes, on pourrait ici postuler que la transformation par une société de sa base matérielle est conditionnée par une mutation préalable des formes d'organisation sociale qui servent d'armature idéelle au mode matériel de produire" (op. cit., p. 405). O que nos deixa diante da questão de saber, de um lado, que mutação extratecnológica teria ensejado o surgimento das sociedades centralizadas da várzea pré-histórica, e de saber, de outro, quão diferentes realmente de grupos como os Jívaro ou os Tupinambá foram os Omágua, Tapajós, e os misteriosos marajoaras. Eduardo Viveiros de Castro é pesquisador do Museu Nacional da UFRJ. - JULHO DE 1993 33