1 Terceira Lei No decorrer do curso vimos que a existência de um reservatório térmico, ou um sistema qualquer, com T = 0 violaria a segunda lei. Descartamos então, sem maiores conseqüências, a existência de qualquer sistema com T = 0. Entretanto, a eliminação deste ponto dos diagramas da nossa teoria não nos permite negligenciar o comportamento do limite T !0: Esta questão possui conseqüências tanto teóricas quanto práticas: 1. Em teoria, por consistência, se estamos eliminado um certo ponto do nosso espaço, devemos ainda ser capazes de descrever o comportamento dos sistemas em qualquer vizinhança deste ponto. Caso contrário, seríamos obrigados a eliminar da nossa teoria toda uma região de tamanho …nito. 2. Este último procedimento nos leva ao problema prático de de…nir “o que é uma temperatura baixa”. Ou seja, até onde devemos esperar que a termodinâmica funcione. Obviamente não haveria nenhuma razão para crer que esta temperatura fosse a mesma para todo sistema. Assim, ao desenvolver um modelo termodinâmico para um sistema qualquer, deveríamos sempre dizer até qual temperatura este modelo é válido, descartando qualquer possibilidade de uma descrição termodinâmica para este sistema a temperaturas abaixo deste limite. Isso, obviamente, destruiria a “universalidade” da temperatura termodinâmica, a menos que se introduza uma nova constante universal na natureza. Este problema concerne a chamada Terceira Lei da Termodinâmica. Neste momento talvez seja relevante salientar uma diferença entre a Lei Zero e as outras duas. A primeira e a segunda lei postulam a existência de duas funções de estado. Com isso, estas leis podem ser aplicadas a qualquer processo na natureza, não apenas aos processos quase-estáticos, ou de equilíbrio. Na verdade, nem é importante saber se o sistema irá ou não entrar em equilíbrio, nem mesmo se ele partiu do equilíbrio. O postulado da existência destas duas funções (e suas características) impõe limites em qualquer processo que possa ocorrer. Assim, a entropia de um sistema fechado jamais diminuirá, independente do tipo de processo que possa ocorrer. Não é necessário acrescentar observações do tipo “...se o sistema for um sistema termodinâmico sua entropia...”. Isso é válido para qualquer sistema no universo. O mesmo se aplica para a conservação de energia e a mínima energia. Já a lei zero, a…rma que todo sistema termodinâmico em contato térmico e em equilíbrio terá a mesma temperatura. Ou ainda, todo sistema termodinâmico em equilíbrio possui uma quantidade bem de…nida que chamamos de temperatura. Estas a…rmações só devem ser aplicadas a sistemas termodinâmicos em equilíbrio. De uma certa forma, esta lei pode ser entendida como uma 1 de…nição do que é equilíbrio termodinâmico. Ou mesmo se um sistema pode ou não ser considerado um sistema termodinâmico. Considere, por exemplo, o caso de duas estrelas em contato térmico, i.e., trocando radiação entre si. Problem 1 Este sistema entrará em equilíbrio térmico? Cada estrela terá sua temperatura de…nida pelos processos internos e não devemos esperar nenhum equilíbrio térmico. Problem 2 E se esperarmos tempo su…ciente? Neste caso as estrelas podem apagar e entrar em equilíbrio térmico. Entretanto, podemos ainda imaginar que nossas estrelas são diferentes (massas diferentes) e grandes o su…ciente para se tornarem buracos negros. Neste caso, após o término do seu combustível, cada uma terá uma temperatura ditada pela radiação Hawking (ou seja, ainda pela sua estrutura interna) e, a não ser sob condições muito especiais, elas não entrarão em equilíbrio térmico. Problem 3 E se esperarmos ainda mais tempo? Se esperarmos ainda mais, estes buracos irão evaporar e o sistema desaparecerá sem nunca ter entrado em equilíbrio térmico. Problem 4 Seria razoável então a…rmar que este é o exemplo de uma violação da lei zero? Certamente não. Podemos apenas a…rmar que nosso sistema não pode ser tratado como um sistema termodinâmico. Mas observe que, mesmo assim, as leis um e dois valem para este sistema. Assim, como a…rmado, a lei zero possui mais uma “cara”de estabelecer quais sistemas podem ser tratados termodinamicamente do que uma lei. Mas, ao mesmo tempo, sem a lei zero a de…nição do conceito formal de temperatura não faz sentido. Assim, esta lei é colocada na teoria desta forma para uma consistência formal da termodinâmica. Em muitos aspectos isso também ocorre com a terceira lei. Se adotarmos a visão do …nal do século XIX de que a termodinâmica pode ser derivada de primeiros princípios, por exemplo, usando a Teoria Cinética dos Gases, realmente teremos o surgimento de uma nova constante onde a teoria deixa de ser válida, a saber, a constante de Planck. Entretanto, o que a experiência mostrou é que, na verdade, esta constante impõe limites, não na Termodinâmica, mas sim na Teoria Cinética, mantendo assim a universalidade da primeira teoria. Problem 5 Mas o que acontece então quando T ! 0? 2 Precisamos então estabelecer, ou impor, o comportamento das grandezas termodinâmicas neste limite. Considere um sistema simples K formado por um número …xo de partículas. A descrição termodinâmica deste sistema implica dU = T dS + P dX ) T dS = dU P dX : Se considerarmos U = U (S (T; X) ; X) = U (T; X) temos @U @T T dS = @U @X dT + X P dX (1) T Podemos baixar a temperatura do sistema mudando sua variável X ou retirando calor deste sistema. Entretanto, como conseqüência da segunda lei, sabemos que para retirar calor do sistema precisamos colocá-lo em contato com um reservatório a uma temperatura mais baixa. Assim, se queremos nos aproximar de T = 0 devemos já ter a nossa disposição sistemas com temperaturas arbitrariamente baixas, e voltamos ao problema sobre qual o comportamento destes sistemas. Ou seja, não saímos do lugar. Vamos então supor que nosso sistema com temperatura arbitrariamente baixa possa ser preparado, não pelo bombeamento de calor, mas por um processo isentrópico (adiabático reversível). Com isso, @U P T @X @U @T X dS = 0 =) dT = dX = (UX P ) dV : UT De (1) 1 @S = (UX @X T @S 1 = UT @T T P) ; calculando @ @T 1 1 (UX P ) = (UX T T2 @ 1 1 UT = UT;X ; @X T T P) + 1 (UX;T T PT ) ; temos então a relação de Maxwell 1 (UX T2 P) + 1 (UX;T T 1 UT;X ; T T PT = (UX P ) ; PT ) = Substituindo em (2) dT = 1 T PT dX UT Lembrando que CX = @U @T 3 C X (2) temos dT = C 1 T PT dX ou, trabalhando com quantidades especí…cas, dT = c 1 T PT dx ; ou ainda, para facilitar a interpretação, se usarmos X = V (P ! dT = P) cv 1 T PT dV ; Se c (T ! 0) 6= 0 para T ! 0 temos que dT ! 0, ou seja, conforme nos aproximamos de zero perdemos cada vez mais a capacidade de variar a temperatura do sistema, 1 dT = T PT ! 0 ; (3) dx c de sorte que não podemos atingir T = 0 por nenhum processo adiabático …nito. De outra forma, se c 1 for …nito a expressão acima terá um comportamento assintótico exponencial PT ! ! 6= 0 ) T ! exp (!x) : cv Ou ainda se x = v (c = cv ; P ! P ), T ! exp ( !v) ; ou seja, só poderemos baixar a zero a temperatura do sistema se aumentamos o volume in…nitamente. Com isso, podemos estabelecer o limite para baixas energias …xando, ou obtendo (por outra teoria), o limite do calor especí…co. Assim, a consistência da nossa teoria poderia ser restaurada simplesmente pelo “fato” de que c é diferente de zero para “baixas”temperaturas, desde que P;T continue …nito. De fato, as previsões da Teoria Cinética implicam que, para baixas temperaturas, c é uma constante (em especial, não depende da temperatura). Tudo parecia muito bem, até que este resultado foi confrontado com dados experimentais. Experimentos mostram que c (T ! 0) ! 0 : Este fato, já salientado por Maxwell em 1859, mostra que limites deveriam ser impostos na validade da Teoria Cinética e apontam para o surgimento de uma nova Física. Mas, voltando para à Termodinâmica, o fato (sem aspas) de c tender a zero com a temperatura, indica que, a princípio, podemos através de processos adiabáticos atingir o zero absoluto. Devemos assim continuar procurando pelo comportamento da nossa teoria neste limite. 4 Entretanto, se observarmos (3) mais atentamente, veremos que, na verdade, podemos garantir que T = 0 não seja atingido se a razão P;T c for …nita, pois assim teríamos novamente a consistência restaurada. Uma condição necessária para isso (mas não su…ciente é claro) é que PT !0 ! 0 : Para estabelecer a condição su…ciente precisaríamos saber como c tende a zero (para a maioria dos sistemas esta tendência é linear em T ). Usando novamente a relação de Maxwell na igualdade d (T S U ) = SdT P dx temos @S @P = P;T = S;x ) @T x @x T Assim, uma forma de restaurar a condição de inacessibilidade do zero absoluto (em processos adiabáticos) é que a entropia seja independente de x (qualquer deformação) para baixas temperaturas. Ou seja, a entropia não varia com relação a nenhum parâmetro x no limite T ! 0 e, consequentemente, neste limite a entropia é uma constante @S @x T !0 T T !0 ! 0 =) S ! S0 : Se S for bem comportada ( S for …nito), podemos estender este resultado para @S @x = 0 =) S (T = 0) = S0 : T =0 O argumento acima pode ser invertido no sentido de que, se a entropia tente a uma constante quanto a temperatura tende a zero, o calor especí…co de qualquer substância tende a zero. O mesmo pode ser dito para o coe…ciente de expansão isobárica etc. Problem 6 E sobre a variação de entropia proveniente da alteração de parâmetros internos (e.g., reações químicas)? Entre as conseqüências do postulado acima, temos que, partido da igualdade G= H T S Obviamente, para T = 0, se a variação de entropia for …nita, G = H, mas, como sabemos, esta temperatura não pode ser atingida. Assim, gostaríamos de saber como G se aproxima de H quando T ! 0. Escrevendo a expressão acima como H G S= ; T 5 temos uma indeterminação em T = 0. Entretanto, usando a regra de L’Hospital f 0 (x) f (x) f 0 (x) ) lim = lim ; x!c g 0 (x) x!c g (x) x!c g 0 (x) Se lim f (x) = lim g (x) = 0 e 9 lim x!c x!c e fazendo g (x = T ) = T ) g 0 = 1 f (x = T ) = H G temos lim H G T T !0 d ( H T !0 dT = lim G) o que fornece d ( H G) = lim S T !0 dT Onde não temos mais nenhuma indeterminação no lado esquerdo da igualdade. Assim, temos não apenas H = G para T = 0, mas se postularmos limT !0 S = 0 o limite H ! G também existe para T ! 0. Como vimos H = Q para processos isobáricos, enquanto g = . Assim, a igualdade acima pode ser veri…cada numa série de reações químicas a baixa (na verdade, moderada) temperatura. Vemos então que limT !0 S = 0 mesmo quando há reações químicas no sistema. Estes resultados são compatíveis também com o postulado que @S @S lim = =0: T !0 @Ni @Ni T =0 T lim T !0 De forma que a entropia não depende também dos parâmetros internos. A imposição @S =0 @X T =0 é o postulado de Nerst o qual estabelece que: Axiom 7 Para qualquer sistema a variação da entropia é nula em qualquer processo reversível isotérmico quando T = 0. O valor da constante S0 não precisa ser estabelecido, uma vez que apenas a variação de entropia é relevante em Termodinâmica. Entretanto, este valor possui um signi…cado em Mecânica Estatística de forma que muitas vezes é adicionado ao postulado acima o adendo de Planck S0 = 0. Ou que a entropia tente a zero quando a temperatura tende a zero. Mais uma vez, para justi…car este adendo precisaríamos de conceitos da Mecânica Estatística. Estas duas formas do postulado (Nerst e Planck) são conhecidas como a Terceira Lei da Termodinâmica. Se lembrarmos a de…nição da temperatura termodinâmica através do ciclo de Carnot Q T = QR 6 onde QR é o calor transferido para um reservatório de referência, temos que T = 0 ) Q = 0. Ou seja, em T = 0 adiabáticas encontram as isotermas. A diferença entre os postulados de Nerst e Planck é que para Nerst as adiabáticas se aproximam das isotermas em T ! 0, enquanto para Planck as adiabáticas coincidem com as isotermas quando T ! 0. O fato da isoterma encontrar a adiabática implica, obviamente, que neste ponto elas não se cruzam. Assim, não é possível que nenhuma outra adiabática, com S 6= S0 , cruze a isoterma T = 0. Ou ainda, não é possível atingir a isoterma T = 0 a partir de qualquer outra com T 6= 0 por um processo adiabático. De qualquer forma, o estabelecimento da terceira lei tenta fornecer um limite para o comportamento de todas as grandezas termodinâmica quanto T tende a zero de forma que isso seja compatível com a de…nição de temperatura termodinâmica (consequentemente, com a segunda lei). Como no caso da lei zero, precisamos tomar cuidado na aplicação da terceira lei em problemas especí…cos. Uma vez que ela estabelece o comportamento dos sistemas quando T tende a zero apenas após o sistema em questão atingir o equilíbrio termodinâmico. Mais uma vez, podemos ver esta lei como uma de…nição se um sistema é ou não um sistema termodinâmico. Ou se um determinado sistema atingiu ou não o equilíbrio termodinâmico. Um sistema que quando examinado em laboratório não respeite as condições previstas pela terceira lei indicaria apenas que este sistema ainda não atingiu o equilíbrio termodinâmico. Mesmo que, como no caso das estrelas com a lei zero, ele nunca venha a respeitar a terceira lei, podemos dizer apenas que este não é um sistema termodinâmico. Isso obviamente restringe os sistemas que podem ser tratados pela termodinâmica. Entretanto, assim como no caso de estrelas, cuja aproximação de equilíbrio (e consequentemente o tratamento termodinâmico) é grosseira, mas pode fornecer alguns resultados importantes. O mesmo acontece com sistemas que demoram muito a entrar em equilíbrio a baixas temperaturas. Certos materiais (e.g., glicerol) quando resfriados assumem uma forma 7 cristalina. Entretanto, dependendo de como este resfriamento é feito, o material pode assumir uma forma amorfa, ou um cristal com uma série de defeitos. A estrutura cristalina é mais estável. Assim, se o sistema sofrer transições espontâneas ele tenderá completamente a forma cristalina. Entretanto, como estas transições são geradas por agitações térmicas, a transição é muito lenta para baixas temperaturas. Assim, como o material não entra em equilíbrio (num tempo razoável) não se espera que ele respeite a terceira lei. Entretanto, quando a temperatura é muito baixa as transições são tão pequenas que, num tempo curto, o sistema não se altera e resultados previstos pela terceira lei são válidos. O mesmo acontece no tratamento termodinâmico usual de substâncias como o vidro. Mesmo que um pedaço de vidro sobre a mesa não esteja em equilíbrio mecânico, pois é um ‡uido, a viscosidade é tão grande que podemos considerar o sistema como em equilíbrio e usar o tratamento termodinâmico. Ou seja, se realmente fossemos esperar que, rigorosamente o sistema entrasse em equilíbrio, colocando o vidro dentro de outro recipiente e esperando que ele assumisse a forma deste recipiente, o tratamento termodinâmico seria inviável (e provavelmente inútil). 8