1.º Prémio – Ensino Secundário Cheiro a Maresia A manhã acabara de começar e os raios de sol já espreitavam atrás daquele monte imponente e gelado. Há quatro dias que Celeste via aquele amanhecer lindo e gelado nos Pirenéus. Há quatro dias que Celeste deixara o inferno que era a “ Casa dos Libertinos”. Sempre que vinha da escola e olhava para aquele portão verde e ferrugento com aquela placa de metal velho, pensava: “bela maneira de insinuarem que eles são livres de amor e livres de família”. Mas aí estava a questão: ela tinha família. Celeste fora uma menina com uma vida digna de um filme dramático. O seu nascimento tinha sido conturbado, dado que nasceu cinco semanas antes do tempo devido. Esteve durante três meses na incubadora a lutar pela vida e o certo é que saiu vencedora. Aos três anos, a sua mãe, se é que se pode dar esse nome, porque uma verdadeira mãe não abandona, muito menos dando como desculpa de não querer viver com aquele constante “cheiro a peixe”, abandonou-a. Sendo assim, ficou só com seu pai e a sua querida avó. Vivia feliz naquela comunidade de homens e mulheres humildes, mesmo com o “cheiro a peixe”. Celeste, embora não revelasse à maioria dos colegas da escola, amava de verdade aquelas redes velhas, aquelas traineiras com a tinta lascada, aquelas velhotas com lenços pretos por terem enviuvado e até as bancas com as tripas dos pobres animais. Foi num final de tarde de setembro que Tomé, um garoto pouco mais velho que Celeste também residente na comunidade, foi ter com ela ao tanque onde a rapariga lavava roupa e lhe disse que desde a manhã não avistavam uma das traineiras. Celeste não ficou especialmente impressionada, pois os barcos e os homens que já tinha visto desaparecer tinham sido, certamente, mais do que um quarteirão. Voltou para o seu terraço pensando na desgraça que estaria para acontecer, até que se lembrou que o seu adorado pai partira naquela manhã para o mar. Mas, de certeza, que haveria de ter ido noutra traineira… Para tirar as dúvidas, decidiu que o melhor seria ir ao café Gaivota e lá lhe diriam o que se estava a passar realmente. Decidiu que não devia ir a correr, afinal não era uma urgência e de certeza que não se havia passado nada. Não correr iria fazer com que se convencesse que não era preciso ter uma resposta, pois o seu pai estava são e salvo. Decidiu, então, ir em passo apressado. Nunca aquela calçada lhe parecera tão longa. Entrou no café atravessando aquelas portas rotativas e procurou com o olhar Manuel, um velho muito sabedor e perguntou: - Boa tarde, já ouviu falar no que vai no mar, Manuel? - Sei pois menina, pensava que ainda não tinha sido informada, tenho a certeza que a Nossa Senhora dos Navegantes está acompanhar o seu paizinho e os seus homens. Respondeu Manuel com os olhos colados ao chão de tijoleira. Celeste saiu nesse momento do café. Será que ela tinha ouvido mesmo aquilo? Quantas vezes já tinha visto aquilo? Homens que desaparecem no oceano e passados uns dias voltam a aparecer, mas mortos. O Jorge, o Richie, o Leandro, o Luís eram todos homens a quem a vida fora tirada pelo mar. Simão (nome do pai de Celeste) não podia ser um desses nomes nesta lista negra. Não podia, Celeste tinha apenas 10 anos e não podia perder tão nova os dois seres humanos que a trouxeram ao mundo. O certo é que aconteceu. Os tripulantes da Vela Cinzenta apareceram na costa na manhã seguinte, mas sem o brilho nos olhos, com olhos baços. Foram duras as semanas seguintes, Celeste sentira uma dor demasiado grande para uma menina tão pequena. Ficou a viver com a avó Adelaide, grande mulher, diga-se de passagem. Ao fim do funeral, não permitiu a si própria uma lagrima sequer. Sentia que tinha de ser forte, tinha que mostrar a Celeste que a vida devia prosseguir, mesmo que fosse difícil. Então passaram seis anos e não havia dia que Celeste não pensasse em seu pai, mas sempre com um sorriso no rosto. Celeste estava agora no 11.º ano, em economia, e era uma excelente aluna, talvez a melhor da turma. Amigos, tinha bastantes, embora fossem todos um bocado diferentes dela. Aqueles seus olhos azuis do pai, o seu cabelo castanho liso cortado direito à medida dos ombros e os seus tops coloridos, revestidos por uma camisa de quadrados, não passavam despercebidos. Muito menos a João. João era um aluno de Humanidades, com cabelo preto curto e olhos caramelo. A sua forma física era invejável, o ténis bem que tinha trazido resultados. Celeste já o tinha visto nos torneios da escola e já tinham falado ocasionalmente. Inexplicavelmente, ficava sempre corada como um “verdadeiro tomate” a dizer coisas totalmente disparatadas. Será que seriam ao que o povo chama “borboletas na barriga”? Nem parecia aquela rapariga decidida e inteligente que era usualmente. Era meio-dia certo e Celeste estava a voltar para casa, atravessando aquelas travessas estreitas e com o Sol a dar-lhe na cara. Não se importava propriamente com o facto de não ter uns óculos de Sol para conseguir ver com clareza nestas situações. Aliás, considerava o olhar a coisa mais linda do ser humano, porque haveria de o esconder? Chegou ao pelourinho e sentouse num dos bancos mesmo encostado ao muro. Olhou à sua volta e deliciou-se com o céu sem manchas brancas, com os terraços de tijoleira, com roupa estendida das casas abaixo e com a serra a contrastar com o mar daquela baía linda que era S.Martinho do Porto. Era ali que vinha quando queria refletir, segundo Celeste não havia melhor companhia do que aquele cheiro a maresia. Acabara de lhe vir à cabeça João, desde quando é que uma pessoa invadia assim os seus pensamentos, sem qualquer tipo de permissão? Era espantoso como lhe era difícil controlar as emoções. Já dizia Shakespeare : “quem será pois tão forte ao ponto de não ser seduzido? ” e sem dúvida que Celeste estava a sê-lo. Decidiu, então, para afastar estes pensamentos, regressar a casa. Quando chegou ao portão que lhe dava pelos joelhos, saltou-o como fazia diariamente, abriu a porta de casa, chamou pela avó, mas ninguém respondeu. Perante isto, em vez de ir diretamente para o seu quarto, entrou na sala para averiguar o aparente desaparecimento da avó. A porta estava fechada. Desde que se lembrava da sua existência que nunca tinha vista aquela porta fechada. O seu coração estava a começar a bater cada vez mais depressa e parecia que a qualquer momento iria ter um ataque cardíaco. Pôs a mão na maçaneta e rodou vagarosamente. Ao abrir a porta, deparou-se com a avó banhada em lágrimas ajoelhada no tapete verde-garrafa da sala e com as mãos elevadas ao céu. Estava sentado no sofá um homem, que nunca tinha visto antes, com fato preto impecavelmente engomado e com uma cara de falsa piedade. Celeste ficou ali parada à porta da sala a olhar para todo aquele cenário. Totalmente paralisada, não gritou, não chorou, não questionou, não moveu um único órgão, nem as pálpebras. O sujeito engravatado levantou-se e disse-lhe “Celeste, tenho a certeza que esta decisão é a melhor para todos, vais adorar as meninas”. Ao ouvir isto, Celeste não se moveu, continuou exatamente como estava anteriormente, apenas com uma única diferença, uma lágrima escorria-lhe pela face. A avó levantou-se e abraçou-a. Celeste continuou apática, não respondeu ao abraço, ficou apenas a fixar o mar e a deixar correr as lágrimas sem um único soluço. Não era possível! Que mal fizera um ser humano em apenas dezasseis anos para ter tanto azar? “É melhor para todos?” É melhor para alguém ir para um orfanato sabendo que tem uma família que a trata com muito amor? Só tinha até ao dia seguinte para organizar tudo para o novo lar. Celeste pensara que tinha passado por todas as situações ruins que um ser humano pode passar, mas estava errada. Como é que se despede de alguém para sempre? Como é que se lida com tamanha injustiça? Como é que se vai viver para um orfanato com dezasseis anos? A última noite com a avó foi o mais doloroso que alguém pode imaginar. Passaram a noite toda abraçadas, não dormiram para tentar aproveitar as últimas horas que tinham juntas. Esperavam que o impossível acontecesse e que o tempo parasse ou o assistente de ação social telefonasse a dizer que tinha sido um equívoco… Eram 9 horas da manhã e nada disso tinha acontecido. Faltava meia hora para partir. Era a última meia hora em que podia ver, tocar, falar e sorrir para avó, afinal a avó tinha 94 anos e a sua saúde não era a melhor, por isso certamente que a senhora iria ser abandonada num lar. Agora Celeste estava nos Pirenéus sozinha. Foi o sítio mais longínquo que conseguiu depois de saber a triste noticia que a avó morrera, talvez de desgosto. Sentia uma tristeza profunda, como nunca tinha sentido antes, mesmo quando falecera seu pai. Estava completamente sozinha no mundo. Sem ninguém que conhecesse ou pudesse contactar para ajudar, totalmente sozinha no meio de sete biliões de pessoas. Fechou os olhos, a água que tinha nos seus olhos parecia que se tinha esgotado e já não podia chorar mais. Pôs as mãos nos bolsos do seu casaco vermelho e sentiu um papel enrodilhado. Abriu o papel e tinha escrito “se precisares de umas aulas de ténis ou de qualquer outra coisa aqui está o meu número…João”. Obrigada, João, por seres a salvação. Maria Teresa Rosa