O QUE É A FILOSOFIA? SENTIDO F I L O S Ó F I C O E V I R T U A L I D A D E S P E D A G Ó G I C A S D E U M A DEFINIÇÃO D E F I L O S O F I A Antonio Pedro Mesquita Universidade de Lisboa Da sich indessen die Nachfrage nach ihr doch auch niemals verlieren kann, weil das Interesse der allgemeinen Menschenvernunft mit ihr gar zu innigst verflochten ist. "Mas a sua pesquisa nunca p o d e r á cessar, porque o interesse da r a z ã o humana universal está demasiado intimamente ligado com ela." Kant, Prolegomena (Ak.JV, 257) § 1. P a r a u m a d e f i n i ç ã o d e f i l o s o f í a E m a n t e r i o r c o n t e x t o , t i v e m o s j á o c a s i ã o de d i s c u t i r o p r o b l e m a d a definibilidade da filosofia . 1 N a o p o r t u n i d a d e , os o b j e c t i v o s visados i n c l u í a m os seguintes: I ) i m p u g n a r de u m p o n t o de v i s t a f i l o s ó f i c o geral a tese segundo a o q u a l a f i l o s o f i a é i n d e f i n í v e l p o r natureza; 2 ) o advertir para os m a l e f í c i o s pedagógicos provenientes de, n o m o m e n t o c r u c i a l d o p r i m e i r o c o n t a c t o c o m a f i l o s o f i a , se i l u d i r a s a u d á - 1 Cf. "Introduzir à filosofia. A filosofia e o problema da sua definição", Philosophica, 6, 1995, pp. 91-103. Philosophica 8, Lisboa, 1996, pp. 111-141. 112 António v e l , d e c i s i v a e incontornável Pedro Mesquita q u e s t ã o pela sua natureza e sentido, sem q u a l q u e r c o n t r a p a r t i d a e f i c a z e, p r i n c i p a l m e n t e , s e m q u a l q u e r j u s t i f i c a ção teórica plausível; 3 ) m o s t r a r a p o s s i b i l i d a d e e necessidade o f i l o s ó f i c a s de u m a d e f i n i ç ã o de f i l o s o f i a , à l u z de duas c o n s t a t a ç õ e s f u n d a m e n t a i s : e n q u a n t o cada f i l o s o f i a h i s t o r i c a m e n t e c o n s i d e r a d a c o n s t i t u i desde l o g o u m a d e t e r m i n a d a d e f i n i ç ã o d e f i l o s o f i a , que i m p l í c i t a o u e x p l i c i t a m e n t e e x i b e , mas antes de m a i s e x e m p l a r m e n t e é ; e e n q u a n t o todas c o n s t i t u e m e m cada caso a f i l o s o f i a , c u j o s t r a ç o s c o m u n s se t o r n a sempre p o s s í v e l r e c o n s t i t u i r ; 4 ) perante a necessidade f i l o s ó f i c a que assiste à d e f i n i ç ã o da f i l o s o o f i a , n o s t e r m o s a n t e r i o r e s , a l e r t a r para o i m p e r a t i v o de t o d a a i n t r o d u ç ã o v e r d a d e i r a m e n t e f i l o s ó f i c a à f i l o s o f i a se introduzir nada filosofia, como uma determi- isto é , a t r a v é s da d e f i n i ç ã o da f i l o s o f i a que é ; 5 ) e, perante a p o s s i b i l i d a d e sempre e m aberto de i n t e r r o g a r as d i v e r o sas f i l o s o f i a s p e l o s e n t i d o de a f i l o s o f i a , apresentar e m t r a ç o s largos a c o n f i g u r a ç ã o que deveria formalmente assumir uma d e f i n i ç ã o consen- s u a l i z á v e l de f i l o s o f i a , i s t o é , capaz de estabelecer a m e d i a ç ã o entre cada f i l o s o f i a e a f i l o s o f i a e p o r t a n t o de i n t e g r a r u m a v e r d a d e i r a i n t r o d u ç ã o à f i l o s o f i a , e n q u a n t o i n t r o d u ç ã o que i n t r o d u z à c o m o a f i l o s o f i a q u e é ) e i n t r o d u z a filosofia filosofia (necessariamente ( c o m o o que e l a necessaria- mente é). A simples c o n s i d e r a ç ã o deste elenco evidencia os limites d o seu escopo. Tratava-se e n t ã o , c o m e f e i t o , apenas de suscitar o debate acerca de u m p r o b l e m a de a l g u m m o d o r e c a l c a d o na m a i s recente r e f l e x ã o p e d a g ó g i c a entre n ó s , i s t o é , e x a c t a m e n t e o da p o s s i b i l i d a d e e l e g i t i m i d a d e de d e f i n i r a f i l o s o f i a , t a n t o e m t e r m o s f i l o s ó f i c o s gerais q u a n t o m u i t o e s p e c i a l m e n t e e m t e r m o s p e d a g ó g i c o s . M a s , p o r essa m e s m a r a z ã o , f a l t o u e x p l o r a r e m p r o f u n d i d a d e a q u e s t ã o d e c i s i v a , apenas g e n e r i c a m e n t e a f l o r a d a , da n a t u reza que d e v e a s s u m i r a q u e l a d e f i n i ç ã o de f i l o s o f i a para c u j a necessidade se a l e r t o u e c u j o s c o n t o r n o s se s u g e r i u . O p r o p ó s i t o d o presente e s c r i t o c o n s i s t e j u s t a m e n t e e m c o l m a t a r a i n s u f i c i ê n c i a d o a n t e r i o r e m r e l a ç ã o a esta q u e s t ã o . N a c i r c u n s t â n c i a , h a v í a m o s utilizado o b i n ó m i o corrente da filosofia e n q u a n t o " a t i t u d e " vs. a f i l o s o f i a e n q u a n t o " c o n j u n t o de p r o b l e m a s " para mostrar c o m o cada uma destas vertentes, correspondendo decerto a m a t r i z e s de e n t e n d i m e n t o que a p r ó p r i a f i l o s o f i a a m p l a m e n t e testemunha, m a n t ê m a i n d a a s s i m u m a u n i l a t e r a l i d a d e q u e s ó se r e s o l v e n a história, c o m o m o m e n t o de a r t i c u l a ç ã o r e a l entre ambas. E h a v í a m o s i g u a l m e n t e a l e r t a d o , c o m o q u e s t ã o f u n d a m e n t a l neste p o n t o , para o s e n t i d o constante q u e u m a t a l h i s t ó r i a e n v o l v e e r e v e l a , e n q u a n t o " p e r m a n ê n c i a de u m O Que é a determinado questionar Filosofia? imediatamente envolvido em 113 determinadas q u e s t õ e s " , s e m t o d a v i a p r o s s e g u i r essa d e t e r m i n a ç ã o m e s m a , e m que a 2 d e f i n i ç ã o de f i l o s o f i a p r o p r i a m e n t e consiste. O que p r o c u r a r e m o s fazer agora é j u s t a m e n t e f u n d a m e n t a r e esclarecer a n o ç ã o de f i l o s o f i a a s s i m i n t r o d u z i d a , na d u p l a d i r e c ç ã o e m que u m a t a l f u n d a m e n t a ç ã o e u m tal e s c l a r e c i m e n t o s ã o e x i g i d o s , a saber, n o que t o c a à sua s u s t e n t a ç ã o c o m o f o r m u l a ç ã o g e r a l d a f i l o s o f i a e n o que se refere à sua c o n c r e t i z a ç ã o c o m o p r o p r i a m e n t e definição, através da d e t e r m i n a ç ã o d o s c o n c e i t o s que ela e n v o l v e . F á - l o - e m o s , t o d a v i a , u m a v e z m a i s segundo d o i s m o d o s : e m sede p r o p r i a m e n t e f i l o s ó f i c a , s i t u a n d o a q u e s t ã o pela n a t u r e z a d a f i l o s o f i a nos t e r m o s r e f e r i d o s ; e m sede p e d a g ó g i c a , d i s c u t i n d o a a d e q u a ç ã o desta p r o p o s t a à c i r c u n s t â n c i a de u m a i n t r o d u ç ã o à f i l o s o f i a n o q u a d r o do e n s i n o s e c u n d á r i o e a p u r a n d o a sua p e r t i n ê n c i a e e x e q u i b i l i d a d e perante os p r o gramas e m v i g o r . S e m d ú v i d a que esta d i s t i n ç ã o entre u m n í v e l f i l o s ó f i c o e u m n í v e l p e d a g ó g i c o de a b o r d a g e m t e m o seu q u ê de a r b i t r á r i o . A verdade, t o d a v i a , é q u e ela é neste caso n e c e s s á r i a . Pois da l e g i t i m i d a d e de t a l o u t a l d e f i n i ç ã o de f i l o s o f i a , sustentada e m abstracto, n ã o r e s u l t a necessariamente a sua a d e q u a ç ã o a t o d o s os t i p o s e n í v e i s d e e n s i n o . E , nesta m e d i d a , torna-se n e c e s s á r i o d i s t i n g u i r a q u i os dois m o m e n t o s indicados, procedendo p r i m e i r o a u m a d i s c u s s ã o geral do c o n c e i t o de f i l o s o f i a e a p l i c a n d o - a depois ao q u a d r o e s p e c í f i c o d o e n s i n o da filosofia. É isso j u s t a m e n t e que f a r e m o s e m seguida. § 2. C o n d i ç õ e s f i l o s ó f i c a s d e u m a d e f i n i ç ã o de filosofia: q u a t r o teses s o b r e a filosofia e a s u a h i s t ó r i a E m p r i m e i r o l u g a r , p o i s , o que é a filosofia } 1 P e r g u n t a r o que ê s i g n i f i c a , e v i d e n t e m e n t e , p e d i r u m a d e f i n i ç ã o . N ã o d e v e m o s recear a p e r g u n t a n e m a s o l i c i t a ç ã o que ela e n v o l v e . C o m e f e i t o , n ã o h á r a z ã o para que seja m a i s d i f í c i l d e f i n i r a f i l o s o f i a d o que a f í s i c a o u a arte, a m e s a o u a á r v o r e . T a l c o m o n o caso da f i l o s o f i a , h á muitas físicas diferentes, muitas artes d i f e r e n t e s , m u i t a s á r v o r e s e m u i t a s mesas d i f e r e n t e s . M a s , e m todos estes casos, a d i v e r s i d a d e n ã o i m p e d e que se i n s t i t u a u m a d e f i n i ç ã o satisf a t ó r i a de cada u m deles. */<£, p. 101. 114 António Pedro Mesquita E e m b o r a seja p o s s í v e l c o n d i c i o n a r j u s t i f i c a d a m e n t e o alcance o n t o l ó g i c o das d e f i n i ç õ e s , na sua capacidade de dar c o n t a d o s e n t i d o q u e e s p e c i f i c a c a d a c o n c e i t o nessa e s p e c i f i c i d a d e m e s m a , parece razoável c o n c e d e r a sua l e g i t i m i d a d e o p e r a t ó r i a , e n q u a n t o e n u n c i a ç ã o dos caracteres c o m u n s ao c o n j u n t o de objectos s u b s u m i d o s p e l o c o n c e i t o , e a l i á s t a m b é m a sua v a n t a g e m p r á t i c a , c o m o c r i t é r i o c ó m o d o para a d e s c r i ç ã o do real. N a v e r d a d e , i n d e p e n d e n t e m e n t e d o v a l o r q u e e m ú l t i m a i n s t â n c i a poss a m t e r c o m o c i r c u n s c r i ç ã o da natureza dos entes d e f i n i d o s , as d e f i n i ç õ e s o b e d e c e m antes de mais a u m a necessidade p r a g m á t i c a : a necessidade de a l c a n ç a r u m p l a n o de i n t e l i g i b i l i d a d e u n i v e r s a l e u n í v o c o q u e p e r m i t a a c o m u n i c a ç ã o . E , simultaneamente, fundamentam-se n u m p r i n c í p i o cuja e v i d ê n c i a se e n c o n t r a a n t e c i p a d a m e n t e g a r a n t i d a : a capacidade de p r é - r e c o n h e c e r n o t o d o i n f i n i t a m e n t e d i f e r e n c i a d o d o m u n d o q u e nos é de cada vez dado unidades definidas que se nos i m p õ e m incontornavelmente. Nesta medida, definir a filosofia não supõe senão aceder àquela necessidade e reconhecer aquele p r i n c í p i o . E a v e r d a d e é que, q u e i r a m o s o u n ã o , estamos c o n s t a n t e m e n t e a i n v o c a r u m t a l p r i n c í p i o , n o m e a d a m e n t e s e m p r e q u e f a l a m o s de a f i l o s o f i a , ainda que para a reduzir à s d i v e r s a s f i l o s o f i a s . E é j u s t a m e n t e o f a c t o de n o caso da f i l o s o f i a o r e c o n h e c i m e n t o desse p r i n c í p i o s ó se fazer t a c i t a m e n t e q u e de m o d o m a i s a g u d o c o l o c a a necessidade da sua d e f i n i ç ã o : p o i s de o u t r a f o r m a n u n c a d e i x a r e m o s de a d e f i n i r ; s i m p l e s m e n t e , f á - l o - e m o s s e m c r i t é r i o . O r a a ú n i c a f o n t e e m q u e se p o d e f u n d a m e n t a r a d e f i n i ç ã o de u m o b j e c t o real c o n s i s t e na sua e x p e r i ê n c i a . E t o d a v i a essa e x p e r i ê n c i a m e s m a q u e a l g u n s c o n s i d e r a m ser, n o caso d a f i l o s o f i a , i r r e m e d i a v e l m e n t e s i n g u l a r e ú n i c a para cada u m a das f i l o sofias e p a r a cada u m dos f i l ó s o f o s , de t a l m o d o q u e n ã o seria p o s s í v e l e n c o n t r a r - s e nesta m a t é r i a u m consenso r a z o á v e l . E d a í que, na i n v a r i á v e l c i r c u n s t â n c i a de ter f i n a l m e n t e de a d e f i n i r ( e m q u e t o d o s m a i s tarde o u m a i s c e d o n o s e n c o n t r a m o s ) , cada u m o p t e p o r o fazer à sua m a n e i r a , n ã o p o r q u e seja i m p o s s í v e l f a z ê - l o d a q u e l e o u t r o m o d o , mas p o r q u e , perante s e m e l h a n t e c o n s i d e r a ç ã o , todos se s e n t e m l i b e r t o s p a r a d i z e r m a i s o u m e n o s o q u e lhes apetece. Mas n ã o h a v e r á r e a l m e n t e f o r m a de a l c a n ç a r u m p l a n o n o q u a l o a c o r d o seja p o s s í v e l ? E certo que n i n g u é m pode garantir à partida que determinada definiç ã o seja c o n s e n s u a l : p o d e t o d a v i a p e r s p e c t i v a r - s e a n t e c i p a d a m e n t e essa d e f i n i ç ã o de u m m o d o consensualizável, isto é , s u s c e p t í v e l de ser aceite consensualmente c o m o uma definição legítima. O Que ê a 115 Filosofia? E o f a c t o é que, para p r o d u z i r u m a tal d e f i n i ç ã o , n ã o é n e c e s s á r i o n e n h u m p r o c e d i m e n t o e x c e p c i o n a l : basta, de acordo c o m a regra, alargar o p l a n o s i n g u l a r e m que cada u m e x p e r i m e n t a a f i l o s o f i a , de m o d o a c r i a r as c o n d i ç õ e s para u m a e x p e r i ê n c i a ela própria sualizável consensual ou consen- da f i l o s o f i a . O r a , esse p l a n o e s t á j á sempre d a d o : ele é precisamente aquele e m que a f i l o s o f i a a t o d o s se d á e m p i r i c a m e n t e a ver. D i g a m o s deste o u t r o m o d o : para saber o que é a f i l o s o f i a , basta c o m e ç a r p o r ver o que e l a t e m sido. O r a n ó s p o s s u í m o s u m testemunho seguro d i s t o : a história da filosofia. N a r e a l i d a d e , a h i s t ó r i a da f i l o s o f i a c o n s t i t u i o p l a n o e m que ela se d á e m p i r i c a m e n t e a ver; e, nesta m e d i d a , c o n f i g u r a o u t r o s s i m o p l a n o e m q u e se t o r n a p o s s í v e l a t i n g i r dela u m a e x p e r i ê n c i a consensual. N o s term o s de h á p o u c o , p o i s , a h i s t ó r i a da f i l o s o f i a diz-nos o q u e e l a t e m sido e, nesta m e d i d a , p e r m i t e - n o s i n d a g a r o que ela é. D o i s esclarecimentos d e v e m n o entanto ser aqui i n t r o d u z i d o s . E m p r i m e i r o l u g a r , a f i r m a r que a h i s t ó r i a da f i l o s o f i a nos mostra o que a f i l o - s o f i a t e m s i d o n ã o s i g n i f i c a conceder que a p r ó p r i a f i l o s o f i a tem sido h i s t ó r i a c o m o t a l ; e m segundo essa lugar, e p o r m a i o r i a de r a z ã o , t a l n ã o s i g n i f i c a e s p e c i a l m e n t e i d e n t i f i c a r a f i l o s o f i a c o m a h i s t ó r i a da f i l o s o f i a . A f i r m a r , p o i s , que a h i s t ó r i a da f i l o s o f i a nos m o s t r a o que ela t e m s i d o n ã o i m p l i c a s e n ã o i s t o : que é p o s s í v e l c o l h e r o que a f i l o s o f i a é a p a r t i r d a sua h i s t ó r i a , c o m o c a m p o da sua e x p e r i ê n c i a consensual. O r a desta f ó r m u l a s ó é p o s s í v e l r e t i r a r de m o d o i m e d i a t o a c o n c l u s ã o n e g a t i v a d o que ela não é. P o r e x e m p l o , que a f i l o s o f i a n ã o é u m a a d e s ã o m a i s o u m e n o s m í s t i c a ao I n c o n d i c i o n a d o , o u u m a d i s p u t a g i n á s t i c a de p o n t o s de v i s t a c o n t r o v e r s o s , o u ainda que ela n ã o é a n á l i s e l ó g i c a da l i n g u a g e m ( e m b o r a possa, e v i d e n t e m e n t e , e n v o l v e r a l g u m a o u todas estas vertentes). M a s n ã o se r e t i r a a i n d a q u a l q u e r c o n c l u s ã o p o s i t i v a acerca d o que a f i l o s o f i a é . E i s , p o i s , o que nos p e r m i t e apresentar para j á dois c o n j u n t o s de teses, que e m seguida passaremos a tematizar: I ) a f i l o s o f i a tem u m a h i s t ó r i a ; a 2 ) a f i l o s o f i a constitui-se a na sua h i s t ó r i a . Mas: 3 ) a f i l o s o f i a não ê essa h i s t ó r i a ; a 4 ) a f i l o s o f i a não ê a histórica. Para a a v a l i a ç ã o destas teses, encetemos a e x p e r i ê n c i a h á p o u c o e n u n c i a d a , a e x p e r i ê n c i a da h i s t ó r i a da f i l o s o f i a . O que é que, c o m e f e i t o , ela nos mostra? 116 António Pedro Mesquita S e m d ú v i d a que nos m o s t r a o d e s e n v o l v i m e n t o de d e t e r m i n a d a a c t i v i dade, caracterizada, entre outros traços, pela interrogaiividade, pela a r g u m e n t a ç ã o , pela i n v e s t i g a ç ã o regressiva dos f u n d a m e n t o s - e mostra¬ -nos t a m b é m a permanência dessa a c t i v i d a d e . E s e m d ú v i d a que nos m o s t r a i g u a l m e n t e a e m e r g ê n c i a de d e t e r m i n a d o c o n j u n t o de p r o b l e m a s , p e l o sentido da realidade, p e l a natureza d o c o n h e c i m e n t o , p e l o s i g n i f i c a d o e f i n a l i d a d e do h o m e m , b e m c o m o t o d o s os que se lhes acrescentam o u sob eles c a i e m - e mostra-nos t a m b é m a permanência desse c o n j u n t o de p r o b l e m a s . M a s n ã o nos m o s t r a apenas i s t o : n e m t ã o - p o u c o apenas a p e r m a n ê n c i a d o d e b r u ç a r - s e de u m a tal a c t i v i d a d e sobre u m t a l c o n j u n t o de p r o b l e m a s , justamente através da história. Mostra-nos p r i n c i p a l m e n t e que essa h i s t ó r i a se c o n s t i t u i de u m m o d o m u i t o s i n g u l a r e, dir-se-ia, inesperado: a saber, a t r a v é s da e m e r g ê n c i a p o n t u a l de unidades discretas (os sistemas f i l o s ó f i c o s ) que, e m b o r a e m d i á l o g o uns c o m os outros, n ã o g e r a m q u a l q u e r t i p o de p r o g r e s s ã o n e m , e m g e r a l , se i n c l u e m n a q u i l o a que se poderia chamar u m fluxo histórico. O r a , a esta l u z , o que a h i s t ó r i a da f i l o s o f i a nos m o s t r a n ã o é o desenv o l v i m e n t o h i s t ó r i c o de u m a a c t i v i d a d e b e m d e f i n i d a i n c i d i n d o sobre u m b e m d e f i n i d o c o n j u n t o de p r o b l e m a s . O que a h i s t ó r i a da f i l o s o f i a nos m o s t r a é antes a e m e r g ê n c i a essencialmente d e s c o n t í n u a de focos i n d i v i d u a l i z a d o s o n d e u m a t a l a c t i v i d a d e é i n v e s t i d a para a r e f o r m u l a ç ã o e r e i n v e n ç ã o d a q u e l e c o n j u n t o de p r o b l e m a s ( n a sua resposta, mas, desde l o g o , na sua f o r m u l a ç ã o ) , sempre de u m m o d o i n t e r n a m e n t e consistente e a r t i c u l a d o , isto é , s i s t e m á t i c o . E , nesta m e d i d a , l o n g e de a h i s t ó r i a d a f i l o s o f i a c o n s t i t u i r a h i s t ó r i a d a a c t i v i d a d e f i l o s ó f i c a e/ou dos seus p r o b l e m a s e respectivas e l a c o n f i g u r a m u i t o m a i s o f u n d o sobre o q u a l cada f i l o s o f i a soluções, reflecte sobre os p r o b l e m a s que outras de o u t r o m o d o r e f l e c t i r a m , de t a l f o r m a que cada u m a delas, gerando-se m u i t o e m b o r a h i s t o r i c a m e n t e , v a l e a i n d a a s s i m c o m o u m a m a t r i z perene de f o r m u l a ç ã o e e n t e n d i m e n t o desses problemas, n ã o chegando p o r t a n t o a haver entre elas, e m b o m r i g o r , verdadeira s u c e s s ã o histórica. O que a h i s t ó r i a d a f i l o s o f i a n e n h u m a história nos m o s t r a n ã o é p o i s p r o p r i a m e n t e - é u m c o n j u n t o de sistemas. E e m b o r a esses sistemas s e j a m devedores de factores h i s t ó r i c o s , c o m o f i l h o s d o seu t e m p o , o seu s e n t i d o e a sua v a l i d a d e n ã o d e p e n d e m desses mesmos factores n e m s ã o p o r t a n t o h i s t o r i c a m e n t e r e v o g á v e i s , mantendo-se antes c o m o propostas p a r a d i g m á t i c a s de f o r m u l a ç ã o dos p r o b l e m a s sobre os quais se i n t e r rogam. A história da filosofia é assim o quadro sobre o qual se "sucedem", n a r e i t e r a d a c o n t e m p o r a n e i d a d e da p r e s e n ç a à q u e l e que lhe O Que é a 117 Filosofia? assiste o u nela p a r t i c i p a , tais propostas p a r a d i g m á t i c a s n a sua perenidade intrínseca. E , deste m o d o , n o q u e t o c a à f i l o s o f i a , a h i s t ó r i a coloca-se apenas n u m p l a n o : o d o d i á l o g o c o n s t i t u t i v o que cada sistema e n c e r r a c o m os predecessores e a n t e c i p a c o m os v i n d o u r o s . A n o ç ã o de história s o f i a s ó t e m p o r t a n t o este sentido: o do diálogo constitutivo da f i l o - com a tradi- ção. N e s t a a c e p ç ã o , t o d a v i a , a h i s t o r i c i d a d e de f i l o s o f i a n ã o c o n s t i t u i u m f a c t o r p o r a s s i m d i z e r " e x t e r n o " , mas apenas u m a c o n d i ç ã o puramente "interna". C o m efeito, a h i s t ó r i a n ã o t e m aqui a ver c o m a c o n c a t e n a ç ã o d o s sistemas f i l o s ó f i c o s uns e m r e l a ç ã o aos outros, e n q u a n t o ela p o d e ser s i n ó p t i c a m e n t e apreciada "de f o r a " , s e n ã o c o m a p r ó p r i a constituição i n t e r n a de cada u m deles, e n q u a n t o t o d o s j u s t a m e n t e se c o n s t i t u e m a p a r t i r de u m a r e f l e x ã o sobre os outros, isto é , sobre a ( r a d i ç ã o . A esta l u z , torna-se c o n t u d o e v i d e n t e a necessidade de d i s t i n g u i r a h i s t ó r i a da f i l o s o f i a d a sua h i s t o r i c i d a d e : aquela, c o m o v i m o s , consiste apenas n o c o n j u n t o dos sistemas f i l o s ó f i c o s ; esta, p e l o c o n t r á r i o , i n d i c a a v i n c u l a ç ã o c o n s t i t u t i v a de cada u m deles à t r a d i ç ã o . E , nesta m e d i d a , a n o ç ã o de h i s t ó r i a d a f i l o s o f i a , à parte p o d e r designar, p o r p a r a l e l i s m o e q u í v o c o c o m outras d i s c i p l i n a s , a l e i t u r a r e t r o s p e c t i v a d a q u e l e c o n j u n t o c o m o s u c e s s ã o , s ó m e r e c e p r o p r i a m e n t e o n o m e de h i s t ó r i a m e r c ê dessa m e s m a v i n c u l a ç ã o , a q u a l , n ã o a afectando a ela, afecta m u i t o e m b o r a cada u m dos sistemas que de um modo não histórico a constituem. O r a é neste â m b i t o que se a f i g u r a p o s s í v e l c o m p r e e n d e r p o r que é que a f i l o s o f i a n ã o é h i s t ó r i c a e p o r que é que ela n ã o se i d e n t i f i c a c o m a h i s t ó r i a da f i l o s o f i a . C o m e f e i t o , o q u e v e m a ser a f i l o s o f i a n o q u a d r o desta d i s t i n ç ã o entre a h i s t ó r i a e a h i s t o r i c i d a d e da f i l o s o f i a ? D e u m p o n t o de v i s t a f o r m a l , e l a é e v i d e n t e m e n t e a r e a l i d a d e q u e cada sistema f i l o s ó f i c o i m e d i a t a m e n t e c o r p o r i z a . O r a esta, e m b o r a atestada pela h i s t ó r i a da f i l o s o f i a e p o r t a n t o s u s c e p t í v e l de ser d e l a retirada, n ã o se c o n f u n d e c o m ela, q u e r d i z e r , c o m o c o n j u n t o dos sistemas f i l o s ó f i c o s enquanto P o r q u ê ? P r e c i s a m e n t e p o r q u e esse c o n j u n t o não é histórico: tal conjunto. isto é , p o r - que esse c o n j u n t o , n ã o sendo c u m u l a t i v a n e m p r o g r e s s i v a m e n t e c o n s t i t u í d o , n ã o acrescenta s e n t i d o a cada u m dos sistemas q u e o i n t e g r a m n e m se acrescenta s e n t i d o p o r q u a l q u e r deles o integrar. E , nesta m e d i d a , a f i l o s o f i a n ã o é a h i s t ó r i a da f i l o s o f i a , e m b o r a a h i s t ó r i a d a f i l o s o f i a nos m o s t r e ( o que é ) a f i l o s o f i a . O r a , reversamente, o que de m o d o m a i s f i a nos m o s t r a é q u e a f i l o s o f i a não flagrante é histórica, a h i s t ó r i a da f i l o s o no sentido aludido s e g u n d o o q u a l os d i v e r s o s sistemas se n ã o i n t e g r a m n u m a s u c e s s ã o h i s - Antonio 118 Pedro Mesquita t ó r i c a , mas c o n f i g u r a m ao i n v é s propostas i n c o n d i c i o n a d a s e perenes, n ã o obstante a r e f e r ê n c i a à t r a d i ç ã o que c o n s t i t u t i v a m e n t e e n c e r r a m . E , nesta p e r s p e c t i v a , a q u e s t ã o " p o r que é que a f i l o s o f i a n ã o é h i s t ó r i c a ? " dever-se-ia antes c o l o c a r deste m o d o : em que sentido é que a filosofia n ã o é h i s t ó r i c a ? E a resposta é : precisamente n o s e n t i d o da história da filosofia. N e s t a m e d i d a , p o r é m , as duas p r i m e i r a s teses apresentadas (a f i l o s o f i a t e m u m a h i s t ó r i a ; a f i l o s o f i a c o n s t i t u i - s e nessa h i s t ó r i a ) s ó na a p a r ê n c i a se o p õ e m à duas q u e m a i s d e t a l h a d a m e n t e c o m e n t á m o s (a f i l o s o f i a n ã o é a h i s t ó r i a da f i l o s o f i a ; a f i l o s o f i a n ã o é h i s t ó r i c a ) . N a verdade, elas harmonizam-se à l u z das duas a c e p ç õ e s de "história" que destacámos, e n q u a n t o , r e s p e c t i v a m e n t e , h i s t o r i c i d a d e dos sistemas f i l o s ó f i c o s e h i s t ó r i a dos sistemas f i l o s ó f i c o s . D e c e r t o , p o i s , a f i l o s o f i a t e m u m a h i s t ó r i a e c o n s t i t u i - s e nessa h i s t ó r i a : mas na a c e p ç ã o d a q u e l a h i s t o r i c i d a d e i n t r í n s e c a a cada u m dos sistemas f i l o s ó f i c o s e ao seu p r ó p r i o e x e r c í c i o c o n s t i t u t i v o . T o d a v i a , s e m c o n t r a d i ç ã o , ela n ã o é h i s t ó r i c a e, e m p a r t i c u l a r , n ã o é a h i s t ó r i a da f i l o s o f i a , u m a v e z que t a l h i s t o r i c i d a d e é " i n t e r n a " e p u r a m e n t e c o n s t i t u t i v a , n o sentido a n t e r i o r m e n t e i n d i c a d o . § 3. E s c l a r e c i m e n t o s e o b j e c ç õ e s : a c e r c a d a r e i n v e n ç ã o , p e r e n i d a d e e c o n t e m p o r a n e i d a d e d a filosofia O s t e r m o s da presente c o n c l u s ã o e x i g e m c o n t u d o q u e se algumas c o n s i d e r a ç õ e s aduzam suplementares. C o m e f e i t o , o t e o r e x a c t o da r e l a ç ã o entre f i l o s o f i a e h i s t ó r i a t a l c o m o e l a a p o s t u l a n ã o p o d e considerar-se a i n d a s u f i c i e n t e m e n t e e l u c i d a d a . C o m e c e m o s p o i s pela r e l a ç ã o entre a f i l o s o f i a e a h i s t ó r i a e m s e n t i d o l a t o , isto é , c o m o processo h i s t ó r i c o - s o c i a l . A este p r o p ó s i t o , i m p o r t a desde l o g o v i n c a r que as teses a n t e r i o r m e n t e expostas de m o d o a l g u m p õ e m e m causa a v i n c u l a ç ã o d a q u e l a a esta ú l t i m a . É i n d e s m e n t í v e l , e m p a r t i c u l a r , que cada f i l o s o f i a sofre i n f l u ê n c i a s d o m e i o e é i n s e p a r á v e l dessas mesmas i n f l u ê n c i a s . I n ú m e r o s testemunhos p o d e m ser a d u z i d o s e m a b o n o desta verdade: P l a t ã o e a m o r t e de S ó c r a t e s , K a n t e a r e v o l u ç ã o c o p e r n i c i a n a , H e g e l e a n o v a o r d e m n a p o l e ó n i c a , H e i d e g g e r e a r e j e i ç ã o da m o d e r n i d a d e , etc. T o d a v i a , os sistemas (e.g., o p l a t ó n i c o , o kantiano, o hegeliano, o heideggeriano) s ã o e n q u a n t o tais independentes dessas i n f l u ê n c i a s e s ã o - n o p r e c i s a m e n t e na m e d i d a e m que delas s ã o inseparáveis. C o m e f e i t o , se cada f i l o s o f i a c o n s t i t u i u m a resposta p a r t i c u l a r aos p r o b l e m a s da f i l o s o f i a , decerto q u e a e l a b o r a c o m os m a t e r i a i s e os i n s t r u m e n t o s ao seu d i s p o r , d e b a i x o d o O Que é a 119 Filosofia? q u a d r o c u l t u r a l p r e d o m i n a n t e na sua é p o c a e sofrendo o i n f l u x o das c i r c u n s t â n c i a s h i s t ó r i c a s e das v i c i s s i t u d e s pessoais que a f e c t a r a m o f i l ó sofo; mas, d e n t r o d o sistema e l a b o r a d o , esses m a t e r i a i s e essa r e f e r ê n c i a histórico-cultural s ã o os seus m a t e r i a i s e a sua r e f e r ê n c i a histórico¬ - - c u l t u r a l , isto é , n u m a p a l a v r a , s ã o o sistema m e s m o . E , nesta m e d i d a , j á não p o d e m ser apreciados c o m o i n g e r ê n c i a s estranhas que, de f o r a , p e r m i t i r i a m e x p l i c á - l o e d a r - l h e sentido, mas antes de m a i s c o m o i n g r e d i e n t e s e s p e c í f i c o s sem os quais esse sistema j á n ã o seria esse N u m a palavra, portanto, a i n d e p e n d ê n c i a da filosofia sistema. que aqui se sustenta n ã o t e m u m s e n t i d o s u b j e c t i v o , p o i s n ã o encara os sistemas na sua r e l a ç ã o c o m os autores que os p r o d u z i r a m . N ã o se trata de c o n s i d e r a r que tais sistemas p o d e r i a m afirmar-se na sua i d e n t i d a d e e s p e c í f i c a quaisquer c o n d i ç õ e s h i s t ó r i c a s e portanto independentemente sob de todas elas: trata-se, p e l o c o n t r á r i o , de sustentar esta tese de c a r á c t e r o b j e c t i v o (a saber, acerca dos p r ó p r i o s sistemas f i l o s ó f i c o s na sua o b j e c t i v i d a d e ) , s e g u n d o a q u a l cada u m deles v a l e i n d e p e n d e n t e m e n t e das condições h i s t ó r i c a s sob as q u a i s se a f i r m o u - e que, e v i d e n t e m e n t e , lhe p e r m i t i r a m a f i r m a r - s e , ao i n f l u i r nos t e r m o s dessa m e s m a a f i r m a ç ã o . Se t o d a v i a e n c a r a r m o s agora a r e l a ç ã o da f i l o s o f i a c o m a h i s t ó r i a e m s e n t i d o e s t r i t o , isto é , c o m a sua p r ó p r i a h i s t ó r i a , t a m b é m a q u i se a f i g u r a f o r ç o s o reconhecer, n u m a aparente i n f l e x ã o d o teor das teses apresentadas, a e x i s t ê n c i a de a l g u m g r a u de p r o g r e s s ã o entre os d i v e r s o s sistemas. C o m e f e i t o , parece r a z o á v e l dizer-se que a l ó g i c a a r i s t o t é l i c a ultrapassa a p l a t ó n i c a , nomeadamente n o m u i t o que e x p l i c i t a , sistematiza e desen- v o l v e ; e, d o m e s m o m o d o , p o d e afirmar-se c o m s e g u r a n ç a que o ideal i s m o a l e m ã o é t o d o ele d e v e d o r da r e v o l u ç ã o c r í t i c a , precisamente no q u e a p a r t i r dela p r o g r i d e e m sua d i r e c ç ã o . A verdade, p o r é m , é que s ó é p o s s í v e l f o r m u l a r u m a e o u t r a destas a s s e r ç õ e s ( o u todas as d e m a i s de sentido a n á l o g o ) e m a n c i p a n d o cada u m dos aspectos à l u z dos quais se estabelece as c o m p a r a ç õ e s d o t o d o sistem á t i c o e m que o r i g i n a l m e n t e se i n s c r e v e m e a s s i m d e s i n t e g r a n d o , para efeitos d a p r ó p r i a c o m p a r a ç ã o , os sistemas e n q u a n t o tais. Q u e r isto d i z e r que, a priori, s ó se p o d e f a l a r e m p r o g r e s s ã o a í onde j á n ã o h á sistema: i s t o é , nos termos anteriores, a í o n d e j á n ã o h á f i l o s o f i a . A v a l i d a d e da n o ç ã o de p r o g r e s s ã o restringe-se p o r t a n t o ao tratamento p u r a m e n t e h i s t o r i o g r á f i c o das diversas f i l o s o f i a s , de a c o r d o c o m aquela e q u í v o c a p e r s p e c t i v a d a h i s t ó r i a da f i l o s o f i a que a l ê c o m o s u c e s s ã o . E , n a r e a l i d a d e , se se atender a cada u m daqueles aspectos na sua i n t e g r a ç ã o n o t o d o s i s t e m á t i c o , a n o ç ã o de p r o g r e s s ã o d e i x a de fazer sentido, j u s t a m e n t e p o r q u e , p o r natureza, n e n h u m sistema p r o g r i d e e m r e l a ç ã o aos a n t e r i o r e s : apenas f o r m u l a de m o d o d i v e r s o (de u m a d i v e r s i d a d e que Antonio 120 Pedro Mesquita c o n s t i t u í p a r a d i g m a ) os p r o b l e m a s a n t e r i o r m e n t e f o r m u l a d o s , dando-lhes a s o l u ç ã o q u e d e c o r r e dessa m e s m a f o r m u l a ç ã o . A p r ó p r i a c o m p a r a ç ã o em que se baseia a p o s s i b i l i d a d e de a f i r m a r u m a " p r o g r e s s ã o " entre sistemas é a s s i m f i l o s o f i c a m e n t e i m p r o c e d e n t e , na m e d i d a e m q u e press u p õ e a sua i n t e r p r e t a ç ã o d e f i c i t á r i a e v i r t u a l m e n t e d o x o g r á f i c a m e r a s respostas a p r o b l e m a s essencialmente como i d ê n t i c o s e i m u t á v e i s , ao i n v é s de r e c o n h e c e r o c a r á c t e r r a d i c a l m e n t e d i v e r s o que esses m e s m o s p r o b l e m a s a d q u i r e m e m cada u m dos sistemas, m e r c ê d a reformulação que efectuam e e m que finalmente consistem. S i g n i f i c a i s t o , p o r e x e m p l o , que s ó p o r e q u í v o c o se p o d e t o m a r a teor i a d a r e m i n i s c ê n c i a , a d o u t r i n a cartesiana das ideias inatas e o c r i t i c i s m o k a n t i a n o c o m o outras tantas s o l u ç õ e s , a l i á s aparentadas, p a r a um p r o b l e m a f i l o s ó f i c o , o d a o r i g e m d o c o n h e c i m e n t o . N a verdade, a p r e o c u p a ç ã o que as a n i m a s e r á , c o m a l g u m a b e n e v o l ê n c i a , g e n e r i c a m e n t e a m e s m a ; a c a t e g o r i a h i s t o r i o g r á f i c a sob as q u a i s p o d e m ser arrumadas t a m b é m ; mas o seu s e n t i d o f i l o s ó f i c o m a n t é m - s e a i n d a a s s i m i r r e d u t í v e l mente d i f e r e n te, p o r q u e c a d a u m a destas " s o l u ç õ e s " c o n s t i t u i antes de m a i s reformulação r a d i c a l dos próprios termos do problema, uma os q u a i s só p o d e m ser v e r d a d e i r a m e n t e c o m p r e e n d i d o s n o c o n t e x t o g l o b a l d o s sistemas que as r e q u i s i t a r a m . A i n c o m e n s u r a b i l i d a d e dos sistemas, da sua formulação mas e da sua formulação das soluções, dos proble- constitui pois uma c o n s e q u ê n c i a i n c o n t o r n á v e l d a sua p r ó p r i a n a t u r e z a s i s t e m á t i c a . E , nesta m e d i d a , se se n ã o t o r n a e v i d e n t e m e n t e i l e g í t i m a a c o m p a r a ç ã o q u a l i t a t i v a entre eles, q u a n t o ao teor das p r o p o s i ç õ e s q u e p r o d u z e m e, e m g e r a l , q u a n t o ao sent i d o das f ó r m u l a s que c o n f i g u r a m , torna-se m u i t o e m b o r a antecipada- m e n t e i n v á l i d a q u a l q u e r c o m p a r a ç ã o q u a n t i t a t i v a , c o m o a que e s t á p r e sente n o c r i t é r i o da p r o g r e s s ã o , u m a vez que n ã o h á n e n h u m padrão e x t e r i o r aos p r ó p r i o s sistemas q u e p e r m i t i s s e aferir d a sua p r o x i m i d a d e a ele, n e m , d e n t r o dos sistemas, h á a u n i v o c i d a d e c o n c e p t u a l que s u p o r t a r i a a a v a l i a ç ã o c o n j u n t a das diversas s o l u ç õ e s . U m a s e g u n d a c o n s i d e r a ç ã o e x i g i d a pelas teses expostas prende-se n ã o j á c o m o e s c l a r e c i m e n t o d o seu s i g n i f i c a d o exacto, mas c o m a a n t e c i p a ç ã o de a l g u m a s o b j e c ç õ e s que aquelas p o d e r i a m sugerir. P o d e m o s i g u a l m e n t e f o r m u l á - l a e m d o i s m o m e n t o s , p o i s s ã o duas as o b j e c ç õ e s e x t r e m a s q u e neste p o n t o se p o d e r i a m a b r i r . E m p r i m e i r o l u g a r , d i r - s e - i a : se o c a r á c t e r h i s t ó r i c o f u n d a m e n t a l da f i l o s o f i a é a p e r e n i d a d e , se os sistemas f i l o s ó f i c o s s ã o v á l i d o s i n c o n d i c i o n a d a m e n t e e n e n h u m depende da c i r c u n s t â n c i a h i s t ó r i c a e m q u e f o i p r o d u z i d o , e n t ã o a f i l o s o f i a , t a n t o a de o n t e m c o m o a de h o j e , n ã o t e m a v e r c o n n o s c o , nada sabe dos p r o b l e m a s e das necessidades actuais, n ã o é O Que é a 121 Filosofia? d o nosso t e m p o ( n e m a l i á s de t e m p o a l g u m ) . A f i l o s o f i a , n u m a p a l a v r a , nunca é c o n t e m p o r â n e a . M a s , se cada s i s t e m a v a l e perenemente c o m o u m a p r o p o s t a p a r a d i g m á t i c a p e r m a n e n t e m e n t e e m aberto, e n t ã o t a m b é m n u n c a é p o s s í v e l ser¬ -se a n a c r ó n i c o e m f i l o s o f i a , p o i s p o d e b e m ser-se h o j e p l a t ó n i c o , t o m i s t a o u l e i b n i z i a n o , a d o p t a n d o a gosto a p r o p o s t a a l i c i a n t e , s e m r i s c o de anacronismo. A filosofia, portanto, nunca é a n a c r ó n i c a . A f e i ç ã o l i g e i r a destas o b j e c ç õ e s n ã o pretende d i m i n u i r a sua seriedade. A verdade, t o d a v i a , é que n e n h u m a delas p o d e ser a c o l h i d a . A p r i m e i r a , c o m efeito, c o m p o r t a o v í c i o de pensar que s ó o que fala de h o j e p o d e ser de h o j e . N ã o é a s s i m : para ser de h o j e , basta f a l a r "ao" h o j e . O r a , o que é perene n ã o é decerto de h o j e , n o sentido e x c l u s i v o d o d e t e r m i n a t i v o : mas n ã o é de h o j e p o r q u e é de sempre. E ser de sempre s i g n i f i c a : f a l a r a t o d o s os "hojes" sucessivos, perenemente. C o m efeito, a c o n d i ç ã o d a p e r e n i d a d e é j u s t a m e n t e essa: e p o r isso m e s m o s ó o m o d e r n o é l o g o passado; o perene é s e m p r e a c t u a l . N e s t a m e d i d a , os p r o b l e m a s da f i l o s o f i a e as suas s o l u ç õ e s (os sistemas f i l o s ó f i c o s p r o p r i a m e n t e ) , p o r q u e s ã o de sempre, s ã o sempre de h o j e . P e l o que, l o n g e de se p o d e r c o n s i d e r a r consistente a o p o s i ç ã o entre a p e r e n i d a d e d a f i l o s o f i a e a sua c o n t e m p o r a n e i d a d e , c o m o a o b j e c ç ã o i m p l i c i t a m e n t e p r e s u m e , é p r e c i s a m e n t e d a q u e l a que esta d e c o r r e : e p o r isso m e s m o , ao c o n t r á r i o d o que ela sustenta, a f i l o s o f i a é sempre c o n temporânea. A esta l u z , t o d a v i a , à segunda o b j e c ç ã o deve reconhecer-se u m a parte de r a z ã o : a f i l o s o f i a , de facto, n u n c a é a n a c r ó n i c a ; o que n ã o i m p e d e , e n t r e t a n t o , que o f i l o s o f a r o n ã o seja. H á a q u i u m aparente p a r a d o x o , mas que f a c i l m e n t e se d i s s o l v e . C o m efeito, se a f i l o s o f i a n ã o é h i s t ó r i c a , na a c e p ç ã o a c i m a sustentada, o a n a c r o n i s m o de que a q u i se fala t a m b é m n ã o p o d e ser h i s t ó r i c o , mas apenas filosófico. Por anacronismo filosófico entenda-se: uma i n c o n f o r m i d a d e e m r e l a ç ã o ao t e m p o d a f i l o s o f i a . O r a , c o m o c l a r a m e n t e decorre, o tempo da filosofia é justamente a contemporaneidade. E n c a r a d a c o n s t i t u t i v ã m e n t e , esta p r o p o s i ç ã o s i g n i f i c a , c o m o j á v i m o s , q u e os sistemas f i l o s ó f i c o s s ã o s e m p r e perenes e, c o m o t a l , c o n t e m p o r â neos de t o d o s os t e m p o s . E n t e n d e n d o - a t o d a v i a de m o d o d i n â m i c o , i s t o é , q u a n t o ao processo de c o n s t i t u i ç ã o d a f i l o s o f i a , e l a s i g n i f i c a que é c o n d i ç ã o da o b r a f i l o s ó f i c a a c o n s t r u ç ã o d o seu p r ó p r i o t e m p o - a saber, p r e c i s a m e n t e p o r a q u e l a r a d i c a l r e i n v e n ç ã o e r e p o s i ç ã o dos p r o b l e m a s q u e , sob outras f o r m u l a ç õ e s , herda da t r a d i ç ã o . N ã o h á , c o m e f e i t o , f i l o s o f i a q u e seja m e r a r e t o m a d a o u p u r a r e p e t i ç ã o : p o r e s s ê n c i a o f i l o s o f a r i m p l i c a a r e f o r m u l a ç ã o das p r ó p r i a s ques- 122 António Pedro Mesquita t õ e s que o i n t e r p e l a m , j u s t a m e n t e n o q u a d r o daquelas propostas s i s t e m á ticas e m que u n i c a m e n t e ela p o d e haver. N e s t a m e d i d a , a p r ó p r i a p e r e n i d a d e d a f i l o s o f i a , q u e r d i z e r , de cada u m dos sistemas f i l o s ó f i c o s , p r e s u m e o c a r á c t e r i n t r i n s e c a m e n t e s i n g u l a r , i n o v a d o r e, p o r isso m e s m o , " f u t u r a n t e " que lhe a d v é m de u m a t a l r e f o r m u l a ç ã o . E nesta a c e p ç ã o u m a f i l o s o f i a torna-se perene (e p o r t a n t o torna-se f i l o s o f i a ) p o r essa m e s m a c a p a c i d a d e de r e f o r m u l a ç ã o ; o que de o u t r o m o d o s i g n i f i c a que u m a f i l o s o f i a se t o r n a p e r e n e m e n t e c o n t e m p o r â n e a p o r antes de m a i s se haver t o r n a d o c o n t e m p o r â n e a d o seu p r ó p r i o t e m p o , isto é , d o t e m p o que de c a d a v e z abre c o m o o seu p r ó p r i o . A esta l u z , t o d a v i a , a o r d e m de a p r e c i a ç ã o da f i l o s o f i a ( j á c o n s t i t u í d a ) e d o f i l o s o f a r ( c o m o processo de c o n s t i t u i ç ã o ) é nos d o i s casos i n v e r s a : a r e i t e r a d a c o n t e m p o r a n e i d a d e d a p r i m e i r a deve-se, c o m e f e i t o , à p e r e n i d a d e que l h e a d v é m d a s i n g u l a r i d a d e da sua proposta, e n q u a n t o p e l o c o n t r á r i o esta m e s m a s i n g u l a r i d a d e é j á , no caso da segunda, o sinal d a i n o v a d o r a c o n t e m p o r a n e i d a d e que de cada v e z f u n d a . P o r isso m e s m o , a f i l o s o f i a , n a q u e l e s e n t i d o , n u n c a p o d e ser a n a c r ó n i c a : p o r q u e j u s t a m e n t e é s e m p r e c o n t e m p o r â n e a ; mas o f i l o s o f a r pode s ê - l o , se se l i m i t a r a r e p i sar a t r a d i ç ã o , s e m a r e i n v e n t a r , s e m c r i a r a sua c o n t e m p o r a n e i d a d e , isto é, s e m v e r d a d e i r a m e n t e c h e g a r a ser f i l o s o f i a . E i s , p o i s , p o r que a f i l o s o f i a p l a t ó n i c a , o u a f i l o s o f i a t o m i s t a , o u a f i l o s o f i a l e i b n i z i a n a , mantendo-se c o n t e m p o r â n e a s , n u n c a s ã o a n a c r ó n i cas. M a s eis t a m b é m p o r que, p r e c i s a m e n t e ao i n v é s , ser-se h o j e p l a t ó n i c o , t o m i s t a o u l e i b n i z i a n o , c o m o o p ç õ e s f i l o s ó f i c a s , acarreta o anacron i s m o fatal de n ã o se ser h o j e f i l o s o f i a n e n h u m a . N u m a p a l a v r a , p o r t a n t o , p o d e ser-se a n a c r ó n i c o e m f i l o s o f i a : se b e m que, de o u t r a p e r s p e c t i v a , n u n c a se possa s ê - l o , se é r e a l m e n t e de f i l o s o f i a q u e se trata. § 4. A d e f i n i ç ã o d e filosofia d e u m p o n t o de v i s t a f i l o s ó f i c o : a n a t u r e z a d a s q u e s t õ e s e do q u e s t i o n a m e n t o f i l o s ó f i c o O r a é j u s t a m e n t e neste p o n t o que se t o r n a p o s s í v e l r e t o m a r c o m p r o v e i t o o f i o c o n d u t o r d a nossa i n d a g a ç ã o p e l o s e n t i d o da f i l o s o f i a a p a r t i r d o que sobre ela nos i n d i c a a h i s t ó r i a da f i l o s o f i a . U m a vez m a i s , p o i s , o que nos m o s t r a a h i s t ó r i a d a f i l o s o f i a ? O que é que, na história da filosofia, constitui propriamente a filosofia? D e n o v o , d e c e r t o o c o n j u n t o de p r o b l e m a s e o seu m o d o de t r a t a m e n t o . M a s , se se v a l i d a r d e v i d a m e n t e o p e r c u r s o a t é agora efectuado e e m e s p e c i a l os seus ú l t i m o s d e s e n v o l v i m e n t o s , o que p r i n c i p a l m e n t e c o n s t i - O Que é a t u i a f i l o s o f i a é a reinvenção 123 Filosofia? desse c o n j u n t o de p r o b l e m a s e desse m o d o de t r a t a m e n t o . P o r isso m e s m o , entretanto, é precisamente u m a tal r e i n v e n ç ã o que se a f i g u r a a q u i essencial para c i r c u n s c r e v e r o proprium da f i l o s o f í a . É que a r e f o r m u l a ç ã o dos p r o b l e m a s e das suas s o l u ç õ e s , n o i n t e r i o r de propostas o r g â n i c a s e s i s t e m á t i c a s , b e m c o m o a n ã o p r o g r e s s i v i d a d e q u e d a í d e c o r r e para a h i s t o r i a da f i l o s o f í a , n ã o r e l e v a de q u a l q u e r d i f i c u l d a d e m e t o d o l ó g i c a r a d i c a l das o p e r a ç õ e s f i l o s ó f i c a s , n e m de q u a l q u e r f a l t a de s e n t i d o dos seus p r o b l e m a s , n e m a i n d a de q u a l q u e r d i s c o r d a n c i a e m r e l a ç ã o a u m a "pedra de t o q u e " segura sem a q u a l se visse entregue a u m " c a m p o de b a t a l h a de lutas sem f i m " . E l a r e l e v a antes, p u r a e s i m p l e s m e n t e , da própria blemas que natureza dos pro- indaga. C o m e f e i t o , esses p r o b l e m a s n ã o s ã o , desde l o g o , os seus problemas, n o s e n t i d o de p r o b l e m a s que a f i l o s o f i a l i v r e m e n t e convocasse o u p o r v e n t u r a criasse, ao sabor das s o l i c i t a ç õ e s da h i s t ó r i a e de a c o r d o c o m o s i n g u l a r â n g u l o de a p r e c i a ç ã o que é o seu. P e l o c o n t r á r i o , tais p r o b l e m a s c o n s t i t u e m , na sua r a i z , q u e s t õ e s q u e i n d e c l i n a v e l m e n t e se l h e i m p õ e m e que i m e d i a t a m e n t e a c o n s t i t u e m c o m o f i l o s o f i a , antes m e s m o de serem enunciadas de u m m o d o f i l o s o f i c a m e n t e t e m a t i z á v e l , i s t o é , j u s t a m e n t e c o m o p r o b l e m a s . E , se elas a s s i m se lhe i m p õ e m , é p o r q u e r a sua o r i g e m n ã o se e n c o n t r a n e l a m e s m a , n e m na e s p e c u l a ç ã o que p r i m i t i v a m e n t e as f o r m u l a , n e m na t r a d i ç ã o que c o n t i n u a m e n t e as elabora, mas antes de m a i s na p r ó p r i a r a z ã o e n o interesse que c o n s t i t u t i v a m e n t e a m o v e a colocar-se reiteradamente tais q u e s t õ e s . A n t e s , p o i s , de s e r e m p r o b l e m a s - o que na verdade s ó se t o r n a m n o i n t e r i o r de d e t e r m i n a d o sistema - , eles s ã o questões da razão, no duplo s e n t i d o e m que a r a z ã o i n e v i t a v e l m e n t e as c o l o c a e e m que e l a p r ó p r i a se e n c o n t r a e m q u e s t ã o q u a n d o as c o l o c a e p o r t a n t o na a c e p ç ã o e m que u m t a l q u e s t i o n a m e n t o c o r r e s p o n d e a u m a e x i g ê n c i a i n c o n t o r n á v e l da sua natureza. O que n u m a p a l a v r a s i g n i f i c a : que as q u e s t õ e s da f i l o s o f i a s ã o r a d i calmente c o n g é n e r e s à própria razão. M a s - poder-se-ia p e r g u n t a r - p o r q u e é estas q u e s t õ e s s ã o j u s t a m e n t e q u e s t õ e s da filosofia! P o r que é que se t r a t a a q u i de q u e s t õ e s que a f i l o - s o f i a c o l o c a e q u e só a f i l o s o f i a c o l o c a ? A resposta t e m necessariamente precisamente questões de r e v e s t i r a f o r m a de u m t r u í s m o : p o r q u e tais q u e s t õ e s s ã o r a d i c a l m e n t e e e m si mesmas filosóficas. U m a v e z m a i s , p o i s , antes de serem q u e s t õ e s da f i l o s o f i a , elas s ã o j á q u e s t õ e s f i l o s ó f i c a s : e, n a verdade, s ó s ã o q u e s t õ e s da f i l o s o f i a p o r serem António 124 Pedro Mesquita q u e s t õ e s f i l o s ó f i c a s . O que de o u t r o m o d o s i g n i f i c a : que, se se trata a q u i deveras de q u e s t õ e s c o n a t u r a i s à r a z ã o h u m a n a , a r a z ã o f i l o s o f a n a t u r a l m e n t e q u a n d o as c o l o c a . Q u e r i s t o d i z e r que tais q u e s t õ e s s ã o n ã o p o r a c i d e n t e ( h i s t ó r i c o ) , mas por essência, q u e s t õ e s irredutivelmente filosóficas, q u e s t õ e s irredutíveis a q u a l q u e r o u t r o m o d o de a b o r d a g e m d i s t i n t o do da f i l o s o f i a . N ã o se trata p o r t a n t o de a l g o q u e o p r o g r e s s o h i s t ó r i c o das c i ê n c i a s p a r t i c u l a r e s v á deixando para a filosofia provisoriamente discutir e confusamente des- b r a v a r c a m i n h o , mas s i m de u m p a t r i m ó n i o r a d i c a l e c o n s t i t u t i v a m e n t e filosófico. A r a z ã o d i s t o n ã o reside e v i d e n t e m e n t e n u m a e s p é c i e de apetência p r e f e r e n c i a l destas q u e s t õ e s pela f i l o s o f i a , o que pareceria, c a r i c a t u r a l m e n t e , u m t a n t o a n i m i s t a , n e m m u i t o menos n u m a i n c l i n a ç ã o n a t u r a l da f i l o s o f i a pelas m e s m a s q u e s t õ e s , o que acrescentaria a esse o pecado da r e d u n d â n c i a . T a ! seria, c o m e f e i t o , p r e s u m i r que entre ambas e x i s t e a r e l a ç ã o e x t e r i o r de duas coisas, q u a n d o , na realidade, a f i l o s o f i a é i m e d i a t a m e n t e o q u e s t i o n a m e n t o dessas q u e s t õ e s e elas, p o r seu l a d o , s ó t ê m l u g a r d e n t r o d a f i l o s o f i a e p a r a a f i l o s o f i a . A e s p e c i f i c i d a d e da f i l o s o f i a depende j u s t a m e n t e de tais q u e s t õ e s e p o r t a n t o n ã o faz s e n t i d o c o n c e b ê ¬ -las c o m o se u m a e outras f o s s e m p o s s í v e i s e m m ú t u a a b s t r a c ç ã o . D i z e r q u e as q u e s t õ e s d a f i l o s o f i a s ã o i r r e d u t i v e l m e n t e f i l o s ó f i c a s n ã o a p e l a p o i s , c o m o seu f u n d a m e n t o , para u m a e x p l i c i t a ç ã o dos p r e d i c a d o s especiais q u e a f i l o s o f i a deve t e r e q u e a c a p a c i t a m o u e l e g e m p a r a l i d a r c o m tais q u e s t õ e s . P e l o c o n t r á r i o , d i z e r i s t o s i g n i f i c a que as q u e s t õ e s que e l a i n d a g a e p o r c u j a i n d a g a ç ã o u n i c a m e n t e é f i l o s o f i a r e q u e r e m para o seu q u e s t i o n a m e n t o ( i s t o é , desde l o g o , para se tornarem m o d o e s p e c í f i c o , e neste s e n t i d o irredutível, questões) um de q u e s t i o n a r e que esse m o d o é q u e é o r i g i n a l m e n t e a f i l o s o f i a . A a l u d i d a i r r e d u t i b i l i d a d e das questões filosóficas questões s i g n i f i c a , p o i s , s i m p l e s m e n t e i s t o : que s ó h á tais ( o u : q u e tal s ó emerge como questão) para u m questionar determinado, o qual é imediatamente a filosofia. M a s que m o d o de q u e s t i o n a r é esse? O que antecede c o n t é m c o n c i s a m e n t e a resposta: a radicalidade sistematicidade do questionar filosófico. e C o m efeito, as q u e s t õ e s d a f i l o - s o f i a , e m p a r t i c u l a r e n q u a n t o irredutivcimente filosóficas, s ã o aquelas q u e r e g r i d e m até à raiz (ao f u n d a m e n t o , aos p r i m e i r o s p r i n c í p i o s , à p r i m e i r a c o n d i ç ã o ) e que p a r a isso e x i g e m a i n t e g r a ç ã o n u m h o r i z o n t e a r t i c u l a d o de t o t a l i d a d e , i s t o é , um sistema. O r a é j u s t a m e n t e esta c o n a t u r a l i d a d e e i r r e d u t i b i l i d a d e das q u e s t õ e s f i l o s ó f i c a s q u e c o n d u z a u m ú l t i m o e d e c i s i v o caracter f u n d a m e n t a l , a saber, a sua i n e s g o t a b i l i d a d e . C o m e f e i t o , é p o r q u e as q u e s t õ e s pelas O Que é a 125 Filosofia? quais a f i l o s o f i a se i n t e r r o g a s ã o r a d i c a l m e n t e congéneres à r a z ã o huma- n a e n ã o p o d e m ser d e l a irradicadas e p o r q u e a sua i n d a g a ç ã o n e c e s s á r i a é irredutível a q u a l q u e r m o d o o p e r a t ó r i o d i s t i n t o d o d a f i l o s o f i a que elas s ã o t a m b é m r i g o r o s a m e n t e inexauríveis, n o s e n t i d o j u s t a m e n t e e m que t ê m de ser r e i t e r a d a m e n t e colocadas p e l a r a z ã o a si m e s m a e p o r ela de c a d a v e z respondidas. É p o r isso que a f i l o s o f i a é r e i n v e n ç ã o e cada sistema u m a d e t e r m i n a da f o r m u l a ç ã o , j u s t a m e n t e s i s t e m á t i c a , das q u e s t õ e s f i l o s ó f i c a s : porque f i l o s o f a r n ã o é s e n ã o r e c o l o c a r as q u e s t õ e s d a f i l o s o f i a , e m o b e d i ê n c i a ao q u e s t i o n a m e n t o da p r ó p r i a r a z ã o . É p o r isso que as q u e s t õ e s da f i l o s o f i a , m a n t e n d o - s e sempre as mesmas, s ã o t o d a v i a sempre diversas. E p o r isso, f i n a l m e n t e , que n ã o h á p r o g r e s s ã o entre os sistemas f i l o s ó f i c o s e que a h i s t ó r i a da f i l o s o f i a c o n f i g u r a u m c o n j u n t o de matrizes perenes que a c a d a t e m p o c o n t e m p o r a n e a m e n t e se oferece. O r a esta j u s t a m e n t e a c o n d i ç ã o para que seja agora p o s s í v e l ensaiar u m a resposta à i n t e r r o g a ç ã o r e i t o r a p e l o sentido da f i l o s o f i a . C o m e f e i t o , à l u z dos ú l t i m o s d e s e n v o l v i m e n t o s , a f i l o s o f i a , tal j u s t a m e n t e c o m o a sua h i s t ó r i a n o - l a atesta, surge c o m o a reiterada, s i s t e m á t i c a e r a d i c a l r e s p o n s a b i l i z a ç ã o p o r aquelas q u e s t õ e s que o b e d e c e m à t r i p l a d e t e r m i n a ç ã o d a c o n a t u r a l i d a d e , da i r r e d u t i b i l i d a d e e da i n e s g o t a b i l i d a d e e q u e p r e c i s a m e n t e p o r isso n e l a b u s c a m de cada vez f o r m u l a r - s e e ser respondidas. A f i l o s o f i a é p o i s , a este t í t u l o , a t e m a t i z a ç ã o expressa das q u e s t õ e s que a p r ó p r i a r a z ã o necessariamente coloca ( n ã o só porque p o r n a t u r e z a as c o l o c a , mas p o r q u e p o r natureza as r e c o l o c a sempre) e que s ó j u s t a m e n t e a t r a v é s da f i l o s o f i a , i s t o é , de u m m o d o r a d i c a l e sist e m á t i c o , p o d e m ser c o l o c a d a s . M a s que q u e s t õ e s s ã o essas? P o r p e r t i n e n t e e o p o r t u n a que a i n t e r r o g a ç ã o se a f i g u r e , é ó b v i o que s ó teria aqui cabimento u m a a p r e s e n t a ç ã o iterativa. Porquê? Porque n ã o é p o s s í v e l q u a l q u e r e n u n c i a ç ã o abstracta e geral das q u e s t õ e s f i l o s ó f i c a s . Estas, c o m e f e i t o , s ã o as que s ã o : q u e r d i z e r , as que c a d a f i l o s o f i a d e t e r m i n a . E , nesta m e d i d a , e n u n c i á - l a s c o m o c o n j u n t o é j á f o r m u l a r u m a d e c i s ã o que p r e s u m e u m h o r i z o n t e s i s t e m á t i c o , é j á , p o i s , produzir u m a filosofia. S i g n i f i c a isto que a e n u m e r a ç ã o das q u e s t õ e s da f i l o s o f i a é sempre tarefa de cada f i l o s o f i a . M a s i s t o de m o d o a l g u m nos faz c a i r de n o v o n a r e l a t i v i d a d e das f i l o s o f i a s e p o r t a n t o na r a d i c a l i n d e f i n i b i l i d a d e da f i l o s o f i a : p o i s é s u f i c i e n t e p a r a a d e f i n i r segundo aquele r e q u e r i d o m o d o c o n s e n s u a l i z á v e l que as q u e s t õ e s da f i l o s o f i a sejam r e c o n h e c i d a s na sua Antonio 126 Pedro Mesquita n a t u r e z a p r ó p r i a e, nesta m e d i d a , sejam enunciadas em espécie, q u e n ã o , necessariamente, em se b e m número. A esta l u z , e n u n c i a r e x t e n s i v a m e n t e as q u e s t õ e s da f i l o s o f i a n ã o é s i m p l e s m e n t e i m p o s s í v e l , f o r a d o q u a d r o da d e c i s ã o de cada filosofia s i n g u l a r : é a c i m a de t u d o i r r e l e v a n t e . N ã o s ó p o r q u e p a r a d e t e r m i n a r u n i v e r s a l m e n t e a f i l o s o f i a o que interessa é a e s p e c i f i c i d a d e das filosóficas questões e n ã o a sua e n u m e r a ç ã o concreta; n ã o s ó t a m b é m , p o r q u e , a l é m d o m a i s , é sempre p o s s í v e l representar i n t u i t i v a m e n t e u m c o n j u n t o de q u e s t õ e s que a c t u a l i z a m essa e s p e c i f i c i d a d e ; mas fundamentalmente p o r q u e o que v e r d a d e i r a m e n t e i m p o r t a para efeitos da f o r m u l a ç ã o de u m a definição c o n sen suai i z á v e l de f i l o s o f i a e s q u e m a t i z á m o s , o proprium é reconduzir, tal como da f i l o s o f i a à natureza i n d a g a , de t a l m o d o que d e f i n i r consensualmente t ã o - s ó determinar Uma essa natureza das aqui questões que a f i l o s o f i a v e m a ser mesma. d e f i n i ç ã o c o n s e n s u a l i z á v e l de f i l o s o f i a é pois, simplesmente, aquela q u e f u n d a m e n t a a i d e n t i d a d e da f i l o s o f i a na natureza das q u e s t õ e s f i l o s ó f i c a s . E é nessa i d e n t i d a d e , o u , d i t o d o u t r o m o d o , é na dessas q u e s t õ e s , q u e reside aquela m e d i a ç ã o entre cada natureza filosofia e a f i l o s o f i a q u e n o i n í c i o se r e q u e r i a e que, sendo e v i d e n t e m e n t e feita, e m cada caso, pelas p r ó p r i a s filosofias, c o n s t i t u i o que p o d e e deve ser sem- pre i n t e r r o g a d o d o p o n t o de v i s t a d o que faz de cada u m a delas uma filo- sofia. P o d e m o s agora e x p l i c i t á - l o a t r a v é s de u m a d e c o m p o s i ç ã o da d e f i n i ç ã o n o s seus e l e m e n t o s o r i g i n á r i o s , a saber, n ã o naqueles que d i s c u r s i v a - m e n t e a c o n s t i t u e m , mas nos que, c o m o m o m e n t o s passados d o seu p r o cesso de c o n s t i t u i ç ã o , n e l a se m a n t é m i m p l i c i t a m e n t e . É , c o m e f e i t o , c l a r o p o r si m e s m o que a espontaneidade c o m que a p e r g u n t a i n i c i a l p e l o s e n t i d o da f i l o s o f i a surge r e s p o n d i d a p o r r e f e r ê n c i a a u m a atitude e a u m conjunto de problemas d e n u n c i a estes d o i s t ó p i c o s c o m o as i n s t â n c i a s m a i s elementares de u m a q u a l q u e r d e f i n i ç ã o g e r a l de f i l o s o f i a . M a s é i g u a l m e n t e c l a r o que q u a l q u e r d e f i n i ç ã o g e r a l de f i l o s o f i a s e r á u n i l a t e r a l se c o n t e m p l a r apenas u m a delas; e s e r á abstracta i g n o r a r a q u e l a o u t r a i n s t â n c i a que c o n c r e t a m e n t e se as a r t i c u l a , i s t o é , a h i s t ó r i a , c o m o m o m e n t o real e d i n â m i c o de i n t e r a c ç ã o entre u m a t a l a t i t u d e e u m t a l c o n j u n t o de p r o b l e m a s . A história da filosofia constitui, pois, u m terceiro elemento fundamental da d e f i n i ç ã o procurada. Este o p o n t o a p a r t i r d o q u a l é p o s s í v e l a v a n ç a r . E a c o n d i ç ã o desse a v a n ç o reside n o r e c o n h e c i m e n t o da natureza m u i t o p e c u l i a r da h i s t ó r i a da f i l o s o f i a , c o m o c o n j u n t o de sistemas cuja h i s t o r i c i d a d e se esgota n a sua c o n s t i t u t i v a r e f e r ê n c i a à t r a d i ç ã o e c u j a m a r c a i d e n t i t a t i v a consiste n a r e i n v e n ç ã o r a d i c a l e t o t a l i z a n t e dos p r o b l e m a s que d e l a herda o u a p a r t i r O Que é a dela constrói. O c a r á c t e r 127 Filosofia? irredutivelmente sistemático c o m o seu f u n d a m e n t o , a sua d e t e r m i n a ç ã o radicalmente da f i l o s o f i a criadora e, cons- t i t u e m , p o r isso m e s m o , d o i s outros m o m e n t o s d e c i s i v o s para a sua d e f i nição. O ú l t i m o passo para u m a tal d e f i n i ç ã o consiste, e n t ã o , na v i n c u l a ç ã o d o caracter a n t e r i o r à natureza dos problemas históricos da filosofia p o r t a n t o , na t r a n s m u t a ç ã o desses p r o b l e m a s e m , p r o p r i a m e n t e , filosóficas, e n q u a n t o q u e s t õ e s i r r e d u t i v e l m e n t e f i l o s o f a n t e s da e, questões própria r a z ã o , c u j a e s p e c i f i c i d a d e j u s t a m e n t e reside, p o r esse m e s m o m o t i v o , n a sua c o n a t u r a l i d a d e , i r r e d u t i b i l i d a d e e i n e x a u r i b i l i d a d e . E , p r e c i s a m e n t e p o r isso, v e m a f i l o s o f i a a c o n s t i t u i r o q u e s t i o n a m e n t o r a d i c a l e s i s t e m á t i c o de tais q u e s t õ e s , i s t o é , daquelas que se d e i x a m s u b s u m i r sob aquele t r i p l o c r i t é r i o , de a c o r d o c o m as c o n d i ç õ e s í n s i t a s na sua p r ó p r i a n a t u reza. E e v i d e n t e que se p o d e r á contestar o r e s u l t a d o , n ã o j á p e l o seu c o n t e ú d o , mas pela d e s p r o p o r ç ã o e m r e l a ç ã o ao l o n g o d e s e n v o l v i m e n t o que a ele c o n d u z i u . P o i s , d i r - s e - i a , esta d e f i n i ç ã o s ó c o n t e m p l a o que j á se sabia e, p i o r d o q u e isso, l i m i t a - s e a t r a d u z i r o que a p r ó p r i a f i l o s o f i a f l a g r a n t e m e n t e nos m o s t r a . E , na verdade, n ã o r e v e r t e ela no p u r o a p o n t a m e n t o das q u e s t õ e s d a f i l o s o f i a , e x a c t a m e n t e daquelas de que a m a i s s u p e r f i c i a l a p r o x i m a ç ã o nos i n f o r m a r i a ? N ã o se trata a q u i , a f i n a l , de c o n f i r m a r p u r a e s i m p l e s m e n t e que a f i l o s o f i a i n d a g a o s e n t i d o da realidade, a p o s s i b i l i d a d e d o c o n h e c i m e n t o , a n a t u r e z a e f i n a l i d a d e d o h o m e m , isto é , e m g e r a l , o que j á era sabido e j á era s a b i d o p o r m e r a r e f l e x ã o sobre o passado h i s t ó r i c o da filosofia? E i s u m a i l a ç ã o t a n t o j u s t a c o m o injusta. Justa, sem d ú v i d a , p o r q u e o que neste percurso se a l c a n ç o u f o i de f a c t o a s i m p l e s r e c o n d u ç ã o da f i l o s o f i a à s suas q u e s t õ e s c l á s s i c a s . M a s a v e r d a d e é que t a m b é m era t ã o - s ó isto que se p r o c u r a v a , p r e c i s a m e n t e à l u z d o desiderato d e f i n i d o e da m e t o d o l o g i a proposta: c i r c u n s c r e v e r u m a d e f i n i ç ã o c o n s e n s u a l i z á v e l de f i l o s o f i a , f u n d a m e n t a n d o - a na p r é v i a c o n s e n s u a l i z a ç ã o d a sua p r ó p r i a e x p e r i ê n c i a e, p o r t a n t o , na e x p e r i ê n c i a d o que a h i s t ó r i a da f i l o s o f i a c o n s e n s u a l m e n t e nos m o s t r a . A redescoberta da f i l o s o f i a c o m o isso m e s m o que a sua h i s t ó r i a nos m o s t r a , l o n g e p o i s de s i n a l i z a r u m a f a l ê n c i a d o p e r c u r s o s e g u i d o , c o n s t i t u i , ao i n v é s , a sua mais exemplar c o n s a g r a ç ã o . Mas nesta j u s t e z a , a l i á s a s s i m l i m i t a d a , reside a i n d a u m a injustiça m a i o r . E que, n a r e a l i d a d e , o q u e c o m este percurso se l o g r o u n ã o f o i a m e r a r e c o n d u ç ã o c i r c u l a r ao p o n t o de p a r t i d a , n e m a c o n f i r m a ç ã o da f i l o s o f i a c o m o , p o r a s s i m d i z e r , o q u e s t i o n a m e n t o das suas q u e s t õ e s . F o i a Antonio 128 fundamentação Pedro Mesquita da f i l o s o f i a c o m o u m t a l q u e s t i o n a m e n t o , f u n d a m e n t a ç ã o o b v i a m e n t e a p u r a d a a p a r t i r d a q u e l e p r i n c í p i o que u n i c a m e n t e a sustenta, a saber, a f i l o s o f i a m e s m a . Q u e a f i l o s o f i a t r a n s p a r e ç a desta sua d e f i n i ç ã o é a s s i m o r e s u l t a d o esperado d o p e r c u r s o e s c o l h i d o e a p r o v a da c o n s e n s u a l i d a d e que c o m e l e se b u s c a v a a t i n g i r , n ã o o l a s t i m á v e l p e n h o r de u m v i c i o s o b e c o sem saída. § 5. A d e f i n i ç ã o d e filosofia d e u m ponto de v i s t a pedagógico: s e n t i d o , f i n a l i d a d e e r e a l i z a ç ã o p r o g r a m á t i c a d a filosofia n o ensino secundário Resta-nos, p o i s , s i t u a r agora a q u e s t ã o que nos ú l t i m o s p a r á g r a f o s nos o c u p o u , encarando-a d o p o n t o de v i s t a da sua c i r c u n s c r i ç ã o p e d a g ó g i c a . O que, e m t e r m o s i n t e r r o g a t i v o s , se p o d e f o r m u l a r deste m o d o : que c o n s e q u ê n c i a s e n c e r r a a c o n c l u s ã o a n t e r i o r para o e n s i n o da f i l o s o f i a e, desde l o g o , a t é que p o n t o se m a n t é m ela a q u i adequada? U m a a n á l i s e deste n o v o p r o b l e m a e x i g e a sua sucessiva c o n s i d e r a ç ã o s e g u n d o t r ê s p e r s p e c t i v a s , r e s p e c t i v a m e n t e : [a] e m tese: q u a n t o à e s s ê n c i a d o e n s i n o d a f i l o s o f i a ; [b] n o c o n c r e t o da l e c c i o n a ç ã o : perante outros m o d o s d e d e f i n i r f i l o s o f i a ; e [c] n a c i r c u n s t â n c i a a c t u a l : n o que t o c a à sua a d a p t a b i l i d a d e ao p r o g r a m a de I n t r o d u ç ã o à F i l o s o f i a p a r a o ensino secundário. Comecemos e n t ã o pelo primeiro ponto. À l u z d o que se disse, d e s i g n a d a m e n t e a p r o p ó s i t o dos d i v e r s o s elem e n t o s c o n v e r g e n t e s n a d e f i n i ç ã o de f i l o s o f i a , parece c l a r o que o seu ensino exige: / 1 ] d o p o n t o de v i s t a d a actividade, a p r o m o ç ã o u m a a t i t u d e de i n t e r - r o g a t i v i d a d e , a p u r a n d o as capacidades de c o m p r e e n s ã o abstracta e de a r g u m e n t a ç ã o , b e m c o m o de j u í z o c r í t i c o ; [2] d o p o n t o de v i s t a dos conteúdos, da filosofia, a i n f o r m a ç ã o acerca da h i s t ó r i a n o s e n t i d o de m o s t r a r c o m o d i v e r s o s sistemas, e m m ú t u o d i á l o g o , c o n s t i t u e m m o d o s acabados de a b o r d a r a r t i c u l a d a m e n t e os p r o blemas filosóficos; [3] mas p r i n c i p a l m e n t e , de u m p o n t o de v i s t a d i n â m i c o g l o b a l , a abertura, a t r a v é s das anteriores, p a r a o q u e s t i o n a m e n t o das q u e s t õ e s da f i l o s o f i a c o m o questões da razão em cada m e n t e c o m o elas s ã o q u e s t õ e s da razão e e s t ã o em cada um de nós, m o s t r a n d o j u s t a - ( q u e ela necessariamente c o l o c a ) um de nós e f o r n e c e n d o ao m e s m o t e m p o os i n s t r u m e n - tos c o n c e p t u a i s , o p e r a t ó r i o s e d o u t r i n á r i o s ( h i s t ó r i c o - f i l o s ó f i c o s ) p a r a a sua l i v r e p r o s s e c u ç ã o . O Que é a 129 Filosofia? D e s t e m o d o , s e m p r e j u í z o das suas f i n a l i d a d e s f o r m a t i v a s e i n f o r m a t i v a s , q u e , e m m a i o r o u m e n o r g r a u , a generalidade dos p r o g r a m a s de filosofia l h e reconhece, o que se a f i g u r a f u n d a m e n t a l n ã o é n e n h u m a delas, mas a sua s u b o r d i n a ç ã o a u m a f i n a l i d a d e ú l t i m a , q u a l é a de r e c o n d u z i r o f i l o s o f a r ao seu o r i g i n á r i o f u n d o r a c i o n a l e de s i m u l t a n e a m e n t e o despertar c o m o u m a p o s s i b i l i d a d e e f e c t i v a de cada u m dos d e s t i n a t á r i o s , e n t ã o v i r t u a l m e n t e t o r n a d o s sujeitos a c t i v o s d e l a . O m e s m o é d i z e r q u e o o b j e c t i v o d o e n s i n o da f i l o s o f i a n ã o é o m e r o a d e s t r a m e n t o de capacidades generalistas, p o r decisivas que d o p o n t o de v i s t a c o g n i t i v o , m o r a l o u c í v i c o se m o s t r e m , n e m t ã o - p o u c o a i n i c i a ç ã o n u m a d i s c i p l i n a p a r t i c u l a r d o t a d a de c o n t e ú d o s específicos c o n s t i t u e m e n t r e t a n t o , c o m o v i m o s , u m a sua m e d i a ç ã o (os quais incontornável), mas a c o n v o c a ç ã o de u m a d i s p o s i ç ã o latente - e, m a i s d o que isso, de uma d e s t i n a ç ã o radical - , e m cujo exercício se d e c i d e u m interesse i n d e c l i n á v e l d a r a z ã o h u m a n a e s e m o q u a l , p o r t a n t o , a r e a l i z a ç ã o desta j a m a i s se c o n s u m a i n t e g r a l m e n t e . N e s t e sentido, e v i d e n t e m e n t e , e n s i n a r f i l o s o f i a é s e m p r e i n t r o d u z i r à f i l o s o f i a . E , neste sentido, o l u g a r de u m a i n t r o d u ç ã o à f i l o s o f i a n o t o d o do ensino s e c u n d á r i o decorre c o m naturalidade da p r ó p r i a e s s ê n c i a do ensinamento filosófico. C o m efeito, p a r a l á d a sua natureza e n q u a n t o d i s c i p l i n a de f o r m a ç ã o g e r a l ( p e l a a t i t u d e que p r o m o v e ) e de f o r m a ç ã o e s p e c í f i c a ( p e l o s c o n t e ú d o s que t e m de m i n i s t r a r ) , e l a c o n s t i t u i s o b r e t u d o a q u i l o a que d e v e r í a m o s c h a m a r u m i n s t r u m e n t o de f o r m a ç ã o i n t e g r a l , e n q u a n t o t o m a j u s t a m e n t e a seu c a r g o o despertar para u m a t a l d e s t i n a ç ã o e e n q u a n t o , ao f a z ê - l o , se encarrega e x p r e s s a m e n t e da tarefa para que t o d o o e n s i n o , nas suas diversas d i s c i p l i n a s , i m p l i c i t a m e n t e se o r i e n t a : a p r o m o ç ã o da auton o m i a r a c i o n a l d o h o m e m e, a t r a v é s dela, a sua h a b i l i t a ç ã o para se c o l o car, e ao m u n d o c o m o t a l , e m q u e s t ã o . N e s t e q u a d r o , t o d a v i a , a m o t i v a ç ã o para a f i l o s o f i a n ã o p o d e ser j á a c h a d a e m a r t i f í c i o s m a i s o u menos e l a b o r a d o s que p o n h a m à p r o v a as q u a l i d a d e s h i s t r i ó n i c a s d o professor, o seu s e n t i d o d r a m á t i c o o u sequer a sua h a b i l i d a d e para d e s l u m b r a r c o m a e r u d i ç ã o c i e n t í f i c a o u a c o m p e t ê n c i a d i d á c t i c a , mas apenas n o apelo r a d i c a l d o p r ó p r i o q u e s t i o n a r f i l o s ó f i c o e m cada u m de n ó s e n a v e r t i g e m da descoberta desse apelo c o m o a l g o q u e , s u r p r e e n d e n t e m e n t e , a nós apela e de dentro de nós apela. D i r - s e - á q u e s ã o p o u c o s os q u e e f e c t i v a m e n t e s e n t i r ã o essa v e r t i g e m e q u e n ã o é l e g í t i m o pensar o e n s i n o s ó para eles. E i s d e c e r t o u m a d i s c u s s ã o que se a r r i s c a a ser p o u c o p r o d u t i v a : mas a v e r d a d e é que n ã o é sequer n e c e s s á r i o e m p r e e n d ê - l a , p o r q u e o d e c i s i v o é que todos passíveis de a sentir; serão e, p o r t a n t o , é t a m b é m a todos que deste m o d o nos Antonio 130 Pedro Mesquita d i r i g i r e m o s , e m b o r a d e p o i s s ó p o u c o s , u m o u n e n h u m v e n h a m de f a c t o a fazer a l g u m a coisa c o m ela. M a i s i m p o r t a n t e , p o i s , d o que i n t e r r o g a r m o - n o s sobre a r e a l i d a d e dos efeitos q u e a a c t i v i d a d e l e c t i v a d e v e r i a p r o v o c a r , e que e m t o d o o caso, u m a vez i n i c i a d a esta, j á n ã o e s t á e m nosso p o d e r c o n t r o l a r e a l i á s o l i v r e - a r b í t r i o a l h e i o faz c o m que v e r d a d e i r a m e n t e nos n ã o d i g a respeito, s e r á p e r g u n t a r se isso, q u e r dizer, se u m a t a l a c t i v i d a d e , c o n c e b i d a nos t e r m o s a n t e r i o r e s , é simplesmente possível. V e j a m o - l o , p o i s , p r i m e i r o e m g e r a l e depois n o q u a d r o da actual s i t u a ç ã o educativa. O r a , a p o s s i b i l i d a d e de u m e n s i n o da f i l o s o f i a tal c o m o f o i a n t e r i o r mente descrito pode ser abstractamente reversa: se ele poderia ser de outra a v a l i a d a a p a r t i r da questão maneira. Trata-se p o i s de saber se s e r á a i n d a e n s i n o f i l o s ó f i c o o que o b e d e ç a a u m a o u t r a c o n s c i ê n c i a d o f i l o s o f a r e p o r t a n t o se o r i e n t e para u m a o u t r a finalidade que n ã o a indicada. U m a a n á l i s e e x a u s t i v a e c o n c l u d e n t e desta q u e s t ã o e x i g i r i a e v i d e n t e m e n t e que se l h e dedicasse u m a i n v e s t i g a ç ã o p r ó p r i a . É p o r t a n t o p r e f e r í v e l , neste q u a d r o m a i s r e s t r i t o , p r o c e d e r a v e r i g u a ç ã o d i r e c t a , p r o c u r a n d o d e d u z i r a a n t e r i o r d e f i n i ç ã o de a uma filosofia apenas a p a r t i r de c o n s i d e r a ç õ e s p e d a g ó g i c a s . S e m l o g r a r p o i s , neste caso, d e m o n s t r a r a p o s s i b i l i d a d e de u m a t a l d e f i n i ç ã o a p a r t i r da sua necessidade, a p r o x i m a r - n o s - e m o s entretanto e m p i r i c a m e n t e desse desider a t o , c o t e j a n d o as v i r t u a l i d a d e s respectivas de d i v e r s o s acessos escolares típicos à filosofia. O s e l e m e n t o s nucleares que n a sua d e f i n i ç ã o c i r c u n s c r e v e m o s p o d e m t e r a q u i n o v a m e n t e u t i l i d a d e . Basta c o m p a r a r , u m a v e z mais à l u z de critérios puramente p e d a g ó g i c o s , os m é r i t o s e d e m é r i t o s das l e c t i v a s que a d o p t a m a d e t e r m i n a ç ã o da f i l o s o f i a práticas c o m o atitude, c o m o c o n j u n t o de p r o b l e m a s , c o m o h i s t ó r i a , o u , f i n a l m e n t e , nos t e r m o s a c i m a defendidos. A o f a z ê - l o , estaremos c o m e f e i t o a esgotar o c o n j u n t o de soluções r e g u l a r m e n t e adoptadas ao n í v e l d o e n s i n o s e c u n d á r i o e, a l i á s , a s u b s u m i r sob grandes m a t r i z e s as diversas t e n d ê n c i a s que sobre esta m a t é r i a a p r ó p r i a h i s t ó r i a da f i l o s o f i a e x e m p l a r m e n t e revela. E , p a r a a sua a v a l i a ç ã o , n ã o c a r e c e m o s de n e n h u m o u t r o p r i n c í p i o para a l é m d a p r e v i s ã o dos resultados que, n o que t o c a à l e c c i o n a ç ã o da f i l o s o f i a , c a d a u m a destas s o l u ç õ e s necessariamente p r o m o v e . N ã o se t r a t a p o i s de u m e x a m e q u e t e n h a por o b j e c t o o m o d o c o m o , d a a c t i v i d a d e c o n c r e t a e c o n t i n u a d a da l e c c i o n a ç ã o , se desprende u m a d e t e r m i n a d a , mas t á c i t a , c o n c e p ç ã o de f i l o s o f i a . N a v e r d a d e , c o m q u a l - O Que é a 131 Filosofia? q u e r c o n c e p ç ã o de f i l o s o f i a é p o s s í v e l fazer-se f i l o s o f i a e, p o r t a n t o , e n s i nar-se f i l o s o f i a ; mas t o d a a c o n c e p ç ã o de f i l o s o f i a c o n d i c i o n a a f o r m a c o m o se faz e se ensina f i l o s o f i a e, nesta m e d i d a , s ó a p a r t i r de u m a e x i b i ç ã o expressa dessa m e s m a c o n c e p ç ã o é p o s s í v e l d i s c u t i r - s e as v i r t u des e d e f i c i ê n c i a s d a q u e l e d u p l o e x e r c í c i o . Precisamente p o r isso, entret a n t o , é o m o d o c o m o e x p l i c i t a m e n t e se p r o c e d e à d e t e r m i n a ç ã o da f i l o sofia, p r e s u m i v e l m e n t e n u m a c i r c u n s c r i ç ã o p r e l i m i n a r e p r o v i s ó r i a d e s t i n a d a a situar os alunos que nela se i n i c i a m , de acordo c o m aquela e x i g ê n c i a que e m a n t e r i o r c o n t e x t o t i v e m o s o c a s i ã o de frisar, que c o n s t i t u i r á aqui o tópico e m apreço. É e v i d e n t e que, à l u z do que precede, deste exame c o m p a r a t i v o das diversas matrizes n ã o p o d e resultar a i m p u g n a ç ã o de n e n h u m a , enquanto m e r a o r i e n t a ç ã o t á c i t a d a l e c c i o n a ç ã o - p o i s j u s t a m e n t e , entendidas deste m o d o , n e n h u m a delas é r i g o r o s a m e n t e i m p e d i t i v a de u m a i n i c i a ç ã o f i l o s ó f i c a . M a s p o d e antecipar-se as que, q u a n d o expressamente enunciadas e s e m c o n s i d e r a ç ã o de q u a l q u e r f a c t o r p e d a g ó g i c o c o n j u n t u r a l (as q u a l i dades d i d á c t i c a s d o professor, o v a l o r i n t e r p e l a n t e dos t e x t o s e s c o l h i d o s , o a l i c i a n t e i n t r í n s e c o das q u e s t õ e s debatidas, e t c ) , c o n d i c i o n a m d r á s t i c a o u i r r e m e d i a v e l m e n t e u m a tal i n i c i a ç ã o e que, p o r t a n t o , na ausência daqueles factores, p o r si mesmas d e f i n i t i v a m e n t e a i n v i a b i l i z a m . D e n t r o destes c r i t é r i o s , c o m e c e m o s p o i s pela c o n c e p ç ã o da como filosofia atitude. A t é que p o n t o se adequa ela a u m a i n t r o d u ç ã o f i l o s ó f i c a à f i l o s o f i a e q u e v i r t u a l i d a d e s p e d a g ó g i c a s l h e d e v e m , neste q u a d r o , ser r e c o n h e c i das? Perguntar pelas v i r t u a l i d a d e s da d e f i n i ç ã o de f i l o s o f i a c o m o atitude s i g n i f i c a , o b v i a m e n t e , indagar os m o t i v o s que l e v a r a m a generalidade dos p r o g r a m a s e m v i g o r nos ú l t i m o s d e c é n i o s a p r e f e r i - l a c o m o m o d o de acesso à f i l o s o f i a . O r a esses m o t i v o s s ã o f á c e i s de r e c o n s t i t u i r . E m p r i m e i r o lugar, sem d ú v i d a , a u n i v e r s a l i d a d e que esta n o ç ã o p e r m i t e abranger: p o i s d i f i c i l m e n t e se a c h a r i a u m a f i l o s o f i a a que n ã o coubessem os p r e d i c a d o s que se r e ú n e m sob o t í t u l o de "atitude f i l o s ó f i c a " (a i n t e r r o g a t i v i d a d e , a p r o b l e m a t i z a ç ã o , a a r g u m e n t a d v i dade, e t c ) . D e p o i s , a sua p r o x i m i d a d e c o m o s e n t i d o c o r r e n t e : p o i s a f i l o s o f i a é a i n d a especialmente c o n c e b i d a p e l o h o m e m c o m u m c o m o u m a actividade puramente especulativa, o u , n o m í n i m o , e m i n e n t e m e n t e c r í t i c a , a que cabe d i s c u t i r , para u t i l i z a r a express ã o de u m c o n h e c i d o autor p o r t u g u ê s , "ideias gerais e m q u a l q u e r d o m í n i o " . F i n a l m e n t e - e este p o n t o n ã o é p e d a g o g i c a m e n t e d e s p i c i e n d o - , a sua f a c i l i d a d e de a s s i m i l a ç ã o , quer pelas duas r a z õ e s anteriores, q u e r p e l a i n t e l i g i b i l i d a d e i n t r í n s e c a d o c o n c e i t o , o q u a l se d e i x a i n t u i t i v a m e n t e António 132 Pedro Mesquita representar a t r a v é s de u m a m u l t i p l i c i d a d e de e x e m p l o s c o l h i d o s n o q u o t i d i a n o ( o que e v i d e n t e m e n t e n ã o sucede de m o d o i m e d i a t o c o m os p r o b l e m a s d a f i l o s o f i a e a sua h i s t ó r i a ) e m e s m o espontaneamente experi- m e n t a r p o r c a d a s u j e i t o . P a r a m a i s , esta c o n c e p ç ã o p e r m i t e , pela sua a b r a n g ê n c i a , estabelecer n a t u r a l m e n t e a p o n t e entre a f i l o s o f i a e outras á r e a s d o saber, c o m o a c i ê n c i a , a arte o u a r e l i g i ã o , e n q u a n t o todas elas p o d e m i g u a l m e n t e ser c o n v e r t i d a s e m outras tantas "atitudes", o que, p a r a certos p r o g r a m a s generalistas ( c o m o o a c t u a l ) , c o n s t i t u i u m a v i r t u d e . M a s i m p l i c a r á este a s s i n a l á v e l c o n j u n t o de m é r i t o s q u e u m a t a l c o n c e p ç ã o é a u t o m a t i c a m e n t e c o n v e n i e n t e para encetar e enformar uma i n t r o d u ç ã o filosófica à filosofia? E m a n i f e s t o que n ã o . D e s d e l o g o , d i r - s e - i a , p o r q u e a g e n e r a l i d a d e e vagueza destas v i r t u a l i d a d e s p a r e c e m , m u i t o ao c o n t r á r i o , denotar o e s f o r ç o para i n t r o d u z i r a filosofia do m o d o menos filosófico p o s s í v e l ; h á aqui u m a m á c o n s c i ê n c i a q u e p o r v e n t u r a v a l e r i a a pena estudar sob o u t r a ó p t i c a . M a s principal- m e n t e , j á s e m i r o n i a , p o r q u e u m a tal "atitude f i l o s ó f i c a " padece d o ó b v i o e m b a r a ç o de se adequar t a n t o à f i l o s o f i a c o m o , e m g e r a l , a todas as a c t i v i d a d e s t e o r é t i c a s que r e c l a m a m as mesmas qualidades i n t e r r o g a t i v a s , c r í t i c a s e p r o b l e m á t i c a s que n e l a r e c o n h e c e m o s , n o m e a d a m e n t e j u n t o das c i ê n c i a s p u r a s . P e l o que, e x c e p t o se fosse p o s s í v e l o con- enumerar e x a u s t i v a m e n t e t o d o s os seus p r e d i c a d o s e neles i d e n t i f i c a r p e l o menos u m q u e i n c o n t e s t a v e l m e n t e coubesse e m e x c l u s i v o à f i l o s o f i a , u m a t a l " d e f i n i ç ã o " c o n t r a d i z - s e a s i m e s m a ao n ã o c i r c u n s c r e v e r a diferença e s p e c í f i c a d o d e f i n i d o e, p o r t a n t o , ao e n u n c i a r o que é sua condição n e c e s s á r i a , mas n ã o sua c o n d i ç ã o s u f i c i e n t e . N e s t a m e d i d a , o m a i s que se p o d e r i a d i z e r é q u e e l a e n v o l v e a " a t i t u d e f i l o s ó f i c a " da f í s i c a , d a m a t e m á t i c a , da b i o l o g i a e também da d a f i l o s o f i a : n ã o o que c o n s t i t u i a a t i t u d e filosofia. Este, p o i s , o m o t i v o d a u n i l a t e r a l i d a d e q u e a t r á s h a v í a m o s a p o n t a d o : o f a c t o de esta d e f i n i ç ã o c o n t e m p l a r apenas o g é n e r o sob o q u a l a f i l o s o f i a c a i , n ã o a d i f e r e n ç a que a e s p e c i f i c a . D a q u i d e c o r r e m todas as suas c o n s e q u ê n c i a s p e d a g ó g i c a s . C o m e f e i t o , o f a c t o de se optar p o r d e f i n i r a f i l o s o f i a a t r a v é s d o q u e m a n i f e s t a m e n t e a n ã o d e f i n e , r e m e t e n d o - a apenas, ao i n v é s , p a r a u m h o r i z o n t e g e r a l n o q u a l ela se i n c l u i j u n t a m e n t e c o m outras tantas a c t i v i dades, a p a r d a p e r p l e x i d a d e q u e n ã o p o d e d e i x a r de gerar nos e s p í r i t o s m a i s agudos, o u m a i s m a l i c i o s o s , acarreta i n e v i t a v e l m e n t e a d i l u i ç ã o dos seus c o n t o r n o s , t o r n a d o s i m p r e c i s o s e d i f u s o s . O r a o e f e i t o p e d a g ó g i c o que desde l o g o se p r o c u r a r i a r e t i r a r de u m a d e f i n i ç ã o de f i l o s o f i a n o q u a d r o da sua i n t r o d u ç ã o seria c o n f i r m a r que a f i l o s o f i a é a l g o , antes m e s m o O Que é a Filosofia? 133 d e m o s t r a r o que e l a é : e esta " d e f i n i ç ã o " , p e l a sua i n d e t e r m i n a ç ã o e i n s u f i c i ê n c i a , r e f o r ç a p e l o c o n t r á r i o a i d e i a de que a f i l o s o f i a n ã o é nada e n ã o serve p a r a nada, n o f u n d o que ela é apenas "aquela coisa c o m a q u a l o u sem a q u a l se f i c a t a l e q u a l " . P o r o u t r o l a d o , t a m b é m o s i m p l e s f a c t o de se d e f i n i r a f i l o s o f i a c o m o m e r a a c t i v i d a d e o u m e r a "atitude", s e m c o n s i d e r a ç ã o dos seus c o n t e ú d o s p r ó p r i o s , n ã o p o d e d e i x a r de ter c o n s e q u ê n c i a s ruinosas. Desde l o g o , ao n í v e l da c o n c e p ç ã o g e r a l da d i s c i p l i n a , acarreta a d e s c a r a c t e r i z a ç ã o da sua natureza, a d e s i n t e g r a ç ã o d o seu o b j e c t o , o desenraizamento do seu e x e r c í c i o ( p r e c i s a m e n t e e n q u a n t o d e s p r o v i d o de o b j e c t o d e f i n i d o ) e p o r t a n t o , e m g e r a l , a sua v i r t u a l n a d i f i c a ç ã o c o m o e s p a ç o r e f l e x i v o p r ó p r i o . D e p o i s , ao n í v e l d o s seus resultados p e d a g ó g i c o s , encerra a i n e v i t á v e l p r o m o ç ã o de u m e s p í r i t o m e r a m e n t e d e s t r u t i v o o u p o l e m i s t a , p e l a desp r o p o r ç ã o entre o i n v e s t i m e n t o nas c o m p e t ê n c i a s a r g u m e n t a t i v a s e c r í t i cas, e m que a f i l o s o f i a e x c l u s i v a m e n t e consiste q u a n d o u n i l a t e r a l m e n t e e n c a r a d a c o m o " a c t i v i d a d e " , e a aposta na sua r e s p o n s á v e l v o c a ç ã o e d i f i c a d o r a e c r i a t i v a , que v e r d a d e i r a m e n t e lhe é correlativa, ou e n t ã o o i n c e n t i v o de u m a a t i t u d e p u r a m e n t e r a p s ó d i c a , p o r a u s ê n c i a da d i s c i p l i n a m e t ó d i c a e dos c o n t e ú d o s e s p e c í f i c o s que s ó a v i n c u l a ç ã o de u m a t a l a c t i v i d a d e ao seu o b j e c t o p r ó p r i o p o d e r i a g a r a n t i r . F i n a l m e n t e , ao n í v e l d o seu estatuto, e n v o l v e a i n c o n t o r n á v e l r e d u ç ã o d o f i l o s o f a r ao p l a n o d o s e n s o - c o m u m e da o p i n i ã o , o n d e é f o r ç o s o que f i q u e e n c l a u s u r a d o , o d e b a t e a r g u m e n t a t i v o s e m o c r i t é r i o , a f i n a l i d a d e e a f o r m a ç ã o que a q u e l a v i n c u l a ç ã o lhe f o r n e c e , e p o r t a n t o o seu p a r a d o x a l , e f a t a l , recuo a u m horizonte pré-filosófico. O esvaziamento da filosofia como disciplina, a d i s t o r ç ã o e inviabilizaç ã o d o seu e x e r c í c i o , a i d e n t i f i c a ç ã o d a sua f i n a l i d a d e c o m a de u m a n o v a s o f í s t i c a , d a q u a l se a p r o x i m a n ã o s ó p e l o e s t i l o e alcance o p e r a t i v o c o m o p e l a l ú d i c a e d e s c u i d a d a a u t o - s a t i s f a ç ã o que d e l a parece resultar, e n f i m a c o n t r a d i t ó r i a m a n u t e n ç ã o do filosofar n u m n í v e l irredutivelmente p r é - f i l o s ó f i c o , c o n s t i t u e m , assim, os resultados i n c o n t o r n á v e i s d o acesso à f i l o s o f i a p e l a p e r s p e c t i v a da " a t i t u d e " . S e m d ú v i d a que esta n ã o é p o r isso l i m i n a r m e n t e i m p u g n a d a : j á que é s e m p r e p o s s í v e l c o n c e b e r factores que a t e n u e m tais resultados. M a s , e m a b s t r a c ç ã o de t o d o s estes factores, c o m o r e q u e r i d o , e sob c o n d i ç ã o de q u e u m a t a l p e r s p e c t i v a seja a que, u m a v e z expressa, e f e c t i v a e c o e r e n t e m e n t e o r i e n t e a l e c c i o n a ç ã o , torna-se l e g í t i m o antecipar que ela s e r á , nesse caso, r a d i c a l m e n t e i m p e d i t i v a de u m a q u a l q u e r i n t r o d u ç ã o à f i l o sofia e portanto radicalmente inadequada para a levar a efeito. N a v e r d a d e , se a o l h a r m o s agora r e t r o s p e c t i v a m e n t e , torna-se claro q u e as suas p r ó p r i a s v i r t u a l i d a d e s s ã o m e r a m e n t e i l u s ó r i a s , j á que a cada António 134 Pedro Mesquita u m a delas c o r r e s p o n d e u m m a l e f í c i o f i l o s ó f i c o e p e d a g ó g i c o mais grave. P o i s n ã o é a i n d e t e r m i n a ç ã o d a f i l o s o f i a e f i n a l m e n t e a sua n a d i f i c a ç ã o o p r e ç o a p a g a r p e l a p u t a t i v a u n i v e r s a l i d a d e da "atitude f i l o s ó f i c a " ? E n ã o é a p e r v e r s ã o p o l e m i s t a o u r a p s ó d i c a d o seu e x e r c í c i o o reverso da sua s u b s u n ç ã o sob u m a c r í t i c o e, a f i n a l , p r é - f i l o s ó f i c o s e n t i d o de f i l o s o f i a ? E n ã o é a r e c a í d a n o s e n s o - c o m u m e na t r o c a de o p i n i õ e s a c o n s e q u ê n c i a da s i m p l i c i d a d e c o m que a " a t i t u d e f i l o s ó f i c a " se d e i x a e s p o n t a n e a m e n t e representar? N u m a p a l a v r a , p o i s , os d e m é r i t o s desta d e f i n i ç ã o s ã o tantos c o m o os seus m é r i t o s : e aqueles s ã o i m e d i a t a m e n t e o resultado destes. M a i s d o q u e isso, aqueles " m é r i t o s " n ã o c o n s t i t u e m s e n ã o a v e r s ã o o p t i m i s t a da r a d i c a l i n a d e q u a ç ã o da d e f i n i ç ã o , a q u a l s ó é a l i á s p o s s í v e l p e l o ó n u s de u m n ã o m e n o s r a d i c a l e s q u e c i m e n t o da f i l o s o f i a . Perante i s t o , q u e d i z e r e n t ã o agora d a f i l o s o f i a c o m o conjunto de problemas! O seu t e o r c l a r a m e n t e c o m p l e m e n t a r e m r e l a ç ã o à p e r s p e c t i v a a n t e r i o r c o n f e r e - l h e c o m n a t u r a l i d a d e as vantagens que a e l a l h e f a l t a v a m . Podemos e n u n c i á - l a s sucessivamente. Desde l o g o , a o b j e c t u a l i z a ç ã o da f i l o s o f i a e m t o r n o de c o n t e ú d o s e, o q u e é m a i s , de c o n t e ú d o s i n d i s c u t i v e l m e n t e f i l o s ó f i c o s , o que p e r m i t e u m a i d e n t i f i c a ç ã o c l a r a e i n e q u í v o c a d a f i l o s o f i a . D e p o i s , a p r o m o ç ã o de u m a real c a p a c i d a d e argumentativa, n ã o j á avulsamente recomendada c o m o a t i t u d e i n d i s c r i m i n a d a e c o m p u l s i v a , mas d e c o r r e n t e da própria n a t u r e z a dos p r o b l e m a s f i l o s ó f i c o s e d e n t r o dos l i m i t e s da sua d i s c u s s ã o , n o q u e t o c a à sua r i g o r o s a f o r m u l a ç ã o , à a v a l i a ç ã o das diversas s o l u ç õ e s q u e a b r e m e à f u n d a m e n t a ç ã o de cada u m a . F i n a l m e n t e , o que é p e d a g o g i c a m e n t e d e c i s i v o , a segura m o t i v a ç ã o dos alunos, d o p o n t o de v i s t a de que a filosofia lida c o m problemas e resolve problemas. T o d a v i a , se se t r a t a r de f a c t o de u m a a p r e s e n t a ç ã o da f i l o s o f i a apenas c o m o m e r o c o n j u n t o de p r o b l e m a s , c u j a a r t i c u l a ç ã o p r o f u n d a e m f u n ç ã o de u m a n a t u r e z a c o m u m n ã o é e n t ã o expressamente e x i b i d a e c u j o f u n d a m e n t o e n q u a n t o c o n j u n t o n ã o é p o r t a n t o t a m b é m patenteado, acaba p o r suscitar tantas dificuldades c o m o as que a "atitude f i l o s ó f i c a " m e r e c i a . O r a a v e r d a d e é que esta d e f i n i ç ã o c o n t é m por e s s ê n c i a u m t a l l i m i t e , a saber, o de n ã o p o d e r dar o salto e m d i r e c ç ã o à a r t i c u l a ç ã o g l o b a l e ao seu f u n d a m e n t o : p o i s , se o desse, a d e f i n i ç ã o de f i l o s o f i a n ã o c o n s i s t i r i a j á na s i m p l e s r e c o n d u ç ã o f a c t u a l a u m c a s u í s t i c o c o n j u n t o de p r o b l e m a s e s i m n o a p o n t a m e n t o d a q u e l e seu m e s m o f u n d a m e n t o a r t i c u l a d o r g e r a l . P r e c i s a m e n t e p o r isso, as referidas d i f i c u l d a d e s f a t a l m e n t e d e c o r r e m : e é f á c i l c i r c u n s c r e v e r que d i f i c u l d a d e s s ã o essas. O Que é a 135 Filosofia? E m p r i m e i r o l u g a r , a i n e v i t á v e l d e s a g r e g a ç ã o e p u l v e r i z a ç ã o da f i l o s o f i a e m tantos á t o m o s quantos os p r o b l e m a s debatidos: o que, sendo a d m i s s í v e l e m tese ( e m b o r a , como tese, d i s c u t í v e l e m e s m o i m p u g n á v e l à l u z d o s c r i t é r i o s f i l o s ó f i c o s a t r á s e x p e n d i d o s ) , é decerto i n a c e i t á v e l de u m p o n t o de v i s t a p e d a g ó g i c o , u m a vez que i n v i a b i l i z a de n o v o a d e f i n i ç ã o de f i l o s o f i a que era suposto i n t r o d u z i r , t r a n s f o r m a n d o - a e m m e r o e s c r u t í n i o e m p í r i c o de casos de f i l o s o f i a . E m segundo l u g a r , a r e d u ç ã o d o f i l o s o f a r à p u r a a r g u m e n t a t i v i d a d e pro e contra, n ã o t a n t o agora p e l o que é r e q u e r i d o p o r parte dos alunos, m a s p e l a p r ó p r i a a p r e s e n t a ç ã o dos p r o b l e m a s da f i l o s o f i a s e g u n d o a d e f i n i ç ã o , pela própria apresentação da (e p o r t a n t o , filosofia) a t r a v é s da p o n d e r a ç ã o dos m é r i t o s das diversas s o l u ç õ e s que h i s t ó r i c a o u t i p i c a m e n te lhe p o d e m ser dadas; o que nos faz regressar à c o n s e q u ê n c i a anterior, acrescentando-lhe t o d a v i a o p e r i g o de c o n f i r m a r a f i l o s o f i a c o m o "campo de b a t a l h a de lutas s e m f i m " . M a s p r i n c i p a l m e n t e , e m t e r c e i r o lugar, o r i s c o b e m p l a u s í v e l e sempre i m i n e n t e de r e d u z i r a f i l o s o f i a a u m d o m í n i o destinado a ser p r o g r e s s i v a e i n a p e l a v e l m e n t e s u b s t i t u í d o , u m a v e z que n a d a nos p r o b l e m a s a que f i n a l m e n t e se r e d u z os v i n c u l a e s p e c i a l m e n t e a ela, e x c e p t o (o que n ã o c o n s t i t u i p r o v a ) a e v i d ê n c i a da sua v i n c u l a ç ã o a c t u a l : c o n s e q u ê n c i a que e x e m p l a r m e n t e m o s t r a a f r a g i l i d a d e de q u a l q u e r acesso e m p í r i c o à f i l o s o f i a , o u , de o u t r o m o d o , a d e p e n d ê n c i a e m que q u a l q u e r se e n c o n t r a e m r e l a ç ã o a u m a f u n d a m e n t a ç ã o que e n q u a n t o tal o transcenda, e que, n o caso, f l a g r a n t e m e n t e m i l i t a e m f a v o r de u m a s u i c i d a i n a n i d a d e p e d a g ó g i c a da f i l o s o f i a , e m p a r t i c u l a r n o ensino s e c u n d á r i o , o n d e s ó l h e p o d e r i a restar u m a f i n a l i d a d e m e r a m e n t e g i n á s t i c a , o u e n t ã o a d e s o l a d o r a m i s s ã o de p r e s e r v a r u m a t r a d i ç ã o a r q u e o l ó g i c a a m e a ç a d a , o que e m t o d o o caso n ã o seria n e m m u i t o m o t i v a d o r para o p r o f e s s o r n e m m u i t o c a t i v a n t e para o aluno. M a i s u m a vez, pois, encontramos a q u i u m estreito p a r a l e l i s m o de m é r i t o s e d e m é r i t o s . A n e c e s s á r i a o b j e c t u a l i z a ç ã o da f i l o s o f i a e m t o r n o de c o n t e ú d o s f i l o s ó f i c o s é f e i t a à custa d a sua a r t i c u l a ç ã o ; a p r o m o ç ã o de c a p a c i d a d e s a r g u m e n t a t i v a s arrisca t o r n a r a p r ó p r i a f i l o s o f i a em pura a r g u m e n t a ç ã o ; e a t é a s a u d á v e l c o n s c i ê n c i a do filosofar como p o s i ç ã o e r e s o l u ç ã o de p r o b l e m a s surge f i n a l m e n t e c o n d i c i o n a d a p e l a l i m i t a ç ã o das s o l u ç õ e s a m e r o s ensaios i m p r e c i s o s e p r i m i t i v o s , i n t r i n s e c a m e n t e v o t a dos a ser u l t i m a m e n t e c o n v e r t i d o s . e m a p r o p r i a d a s " e x p l i c a ç õ e s c i e n t í f i cas". Resta decerto a q u i a c o n s o l a ç ã o de que, neste c ô m p u t o de v i r t u d e s e d i f i c u l d a d e s , estas n ã o s ã o , c o m o h á p o u c o , a real faceta daquelas, mas apenas u m a e s p é c i e de seu i n e v i t á v e l e f e i t o perverso. M a s a verdade é Antonio 136 Pedro Mesquita q u e , b e m pesadas as ú l t i m a s , p o u c o m a i s sobra p a r a a f i l o s o f i a como " c o n j u n t o de p r o b l e m a s " , de u m p o n t o de v i s t a p e d a g ó g i c o , d o que f u n c i o n a r c o m o u m a r e f o r m u l a ç ã o d a "atitude f i l o s ó f i c a " . E m suma, p o i s , i n d e p e n d e n t e m e n t e de outras c o n s i d e r a ç õ e s t e ó r i c a s , a s i m p l e s c i r c u n s c r i ç ã o p e d a g ó g i c a desta c o n c e p ç ã o de f i l o s o f í a permite a v a l i a r a sua i n a d e q u a ç ã o n o q u a d r o de u m a i n t r o d u ç ã o à f i l o s o f i a . N ã o , u m a vez m a i s , p o r q u e n ã o seja p o s s í v e l fazer f i l o s o f i a c o m ela; mas p o r q u e , e n c a r a n d o - a c o m o expresso f i o c o n d u t o r de u m a tal i n t r o d u ç ã o , ele p r ó p r i o se encarrega de i m p e d i r que esta possa a l g u m a vez i n t r o d u z i r o q u e q u e r q u e seja. A u n i l a t e r a l i d a d e das duas s o l u ç õ e s anteriores parece v o c a c i o n a r a terceira, p e l a h i s t ó r i a d a f i l o s o f i a , p a r a u m a g e n u í n a i n i c i a ç ã o f i l o s ó f i c a . M a s s e r á r e a l m e n t e assim? S e m d ú v i d a que e l a p e r m i t e a r t i c u l a r , j u s t a m e n t e a t r a v é s da h i s t ó r i a , a a c t i v i d a d e f i l o s ó f i c a c o m o c o n j u n t o de p r o b l e m a s sobre o q u a l i n c i d e e assim colmatar a i n s u f i c i ê n c i a de ambas. E sem d ú v i d a que permite t a m b é m , n a e v i d ê n c i a s i s t e m á t i c a da t r a d i ç ã o , sondar os caracteres constantes da f i l o s o f i a e n e l a i n d i s c u t i v e l m e n t e se f i r m a r , a i n d a q u a n d o esses caracteres p e r m a n e c e m p o r t e m a t i z a r . M a s se, c o m o c o m p e t e , nos a t i v e r m o s a q u i a c o n s i d e r a ç õ e s p e d a g ó g i cas, resulta c l a r o q u e n o v o s p r o b l e m a s i n e v i t a v e l m e n t e se a b r e m . E que a h i s t ó r i a , m e s m o q u a n d o , c o m o é o caso, se trata d a h i s t ó r i a dos sistemas f i l o s ó f i c o s , r e m e t e i n e l u t a v e l m e n t e para o d o m í n i o d a c o n t i n g ê n c i a , ao q u a l n ã o é l í c i t o e x i g i r m a i s d o que o c o n h e c i m e n t o do que f o i o u do q u e r e g u l a r m e n t e t e m s i d o e q u e p o r t a n t o n ã o p o d e i n d i c a r j a m a i s o que p r o p r i a m e n t e é . O r a é isso que a f i l o s o f i a é que e v i d e n t e m e n t e se s o l i c i t a d a sua d e f i n i ç ã o : e isso j u s t a m e n t e o que a h i s t ó r i a , e n q u a n t o t a l , n ã o p o d e dar, a menos que n e l a se b u s q u e o f u n d a m e n t o d o sido e neste o s e n t i d o d o é, caso e m que e n t ã o n ã o é j á na h i s t ó r i a , mas nesse seu f u n d a m e n t o , q u e v e r d a d e i r a m e n t e reside a d e f i n i ç ã o p r o c u r a d a . P o r o u t r o l a d o , a m e s m a c o n t i n g ê n c i a da h i s t ó r i a e n v o l v e necessariam e n t e a q u e s t ã o d o seu f i m . D e c e r t o que t u d o o que é h i s t ó r i c o c a m i n h a i r r e m e d i a v e l m e n t e p a r a u m t e r m o . N ã o é esse, c o n t u d o , o p r o b l e m a q u e a q u i se c o l o c a : o p r o b l e m a que a q u i se c o l o c a é antes o de que o acesso p u r a m e n t e h i s t ó r i c o à f i l o s o f i a p o r si m e s m o c o n v o c a a q u e s t ã o d o " f i m da h i s t ó r i a " e, p o r t a n t o , a d o f i m d a f i l o s o f i a , ao i n v é s d e acentuar a d a sua necessidade i n t r í n s e c a - e n q u a n t o , e v i d e n t e m e n t e , d u r a r a h i s t ó r i a dos que p o r n a t u r e z a f i l o s o f a m . N e s t a m e d i d a , a c i r c u n s c r i ç ã o h i s t ó r i c a da f i l o s o f i a e n c e r r a o p e r i g o , desde l o g o p e d a g ó g i c o , mas t a m b é m f i l o s ó f i c o , de pensar a sua c o n t i n g ê n c i a c o m o u m c i c l o t e m p o r a l j u s t i f i c a d o e m si m e s m o , q u a n d o o que, p r e c i s a m e n t e ao c o n t r á r i o , h a v e r i a a r e a l ç a r O Que é a seria a sua necessidade e a necessidade mais vasto d e s t i n o d a r a z ã o 137 Filosofia? da sua historia, humana, v i n c u l a n d o - a s ao apenas c o m c u j a consumação t a m b é m ela p r e s c r e v e . D i t o p o r outras palavras, p o i s , e m b o r a a f i l o s o f i a , c o m o q u a l q u e r o u t r a realidade h i s t ó r i c a , seja c o n t i n g e n t e , a sua sorte e s t á i n d i s s o l u v e l m e n t e l i g a d a à da p r ó p r i a r a z ã o e, neste sentido, ela e n c o n t r a nesta u m a necessidade que n ã o é j á a m e a ç a d a p o r n e n h u m a v i c i s s i t u d e h i s t ó r i c a , e n q u a n t o j u s t a m e n t e s ó d e l a e da sua h i s t ó r i a d e p e n d e ; o r a é esta verdade que a c a r a c t e r i z a ç ã o e x c l u s i v a m e n t e h i s t ó r i c a da filosofia i g n o r a , s u s c i t a n d o u m a f o r m u l a ç ã o inadequada dos t e r m o s e m que o " f i m d a f i l o s o f i a " d e v e r i a ser pensado ( c o m o a l i á s a s o l u ç ã o a n t e r i o r h a v i a j á f e i t o ) e desde l o g o i n d u z i n d o - a na sua s i m p l e s a p r e s e n t a ç ã o . A estas duas o b s e r v a ç õ e s n ã o p o d e d e i x a r de acrescer, c o m o c i r c u n s tancialismo p e d a g ó g i c o a ponderar, as d i f i c u l d a d e s adstritas a uma c o r r e c t a c o m p r e e n s ã o da h i s t ó r i a . C o m e f e i t o , esta é h a b i t u a l m e n t e vista, n u m c o n t e x t o escolar, c o m o o d o m í n i o d o passado, q u e r n o s e n t i d o d o a n t i g o , q u e r n o d o que i r r e v e r s i v e l m e n t e passou. Os efeitos de uma p r o j e c ç ã o desta c o n c e p ç ã o sobre a f i l o s o f i a s ã o f á c e i s de antecipar: p o r um l a d o , e l a c o n v i d a a encarar os sistemas f i l o s ó f i c o s como eventos h i s t ó r i c o s j á c a d u c a d o s e, p o r t a n t o , a p r ó p r i a f i l o s o f i a c o m o u m patri- m ó n i o i r r e m e d i a v e l m e n t e transacto, c u j a h e r a n ç a s ó p o d e r i a ser apreciad a ao m e s m o t í t u l o d o de u m e s p ó l i o m e r a m e n t e m u s e o l ó g i c o ; p o r o u t r o - o q u e é a i n d a m a i s grave - , acentua a t e n d ê n c i a j á d o m i n a n t e p a r a a r c a i z a r o c o n t e ú d o s f i l o s ó f i c o s , encarando o d i t o de cada f i l ó s o f o c o m o a l g o que ele o u t r o r a disse o u p e n s o u , de a c o r d o c o m c r i t é r i o s e m o d o s de v e r c u j o s e n t i d o e p e r t i n ê n c i a f i c a r a m r e t i d o s na é p o c a e m que "ele" pensava. Nesta medida, a s u b j e c t i v a ç ã o e a r c a i z a ç ã o do filosofar, c o m ela a s u s p e n s ã o d e t o d a a v i t a l i d a d e e de t o d o o d i n a m i s m o p r o p r i a m e n t e h i s t ó r i c o que a este m o d o de acesso c a b e r i a p u t a t i v a m e n t e recuperar e, f i n a l m e n t e , c o m a m b o s , a r e d u ç ã o da a p r e n d i z a g e m f i l o s ó f i c a a uma f a s t i d i o s a r e c o l e c ç ã o de factos c o n s t i t u e m , quase i n e v i t a v e l m e n t e , conseq u ê n c i a s nefastas da p e r s p e c t i v a ç ã o d a f i l o s o f i a c o m o h i s t ó r i a . T o d a v i a , o que a c i m a de t u d o dela r e s u l t a é a p a r a d o x a l c o l o c a ç ã o d o seu d e s t i n a t á r i o n a s i t u a ç ã o de q u e m e s t á f o r a da h i s t ó r i a e, p o r t a n t o , de q u e m v e r d a d e i r a m e n t e e x p e r i m e n t a j á o f i m d a f i l o s o f i a , u m a vez que, p a r a ele, t a l f i m o c o r r e u j á sempre, e x a c t a m e n t e n o m o m e n t o e m que de cada v e z sobre e l a se d e b r u ç a . P e l o que a p r ó p r i a d i s s o l u ç ã o da h i s t ó r i a e a consequente r e d u ç ã o da filosofia a u m mero objecto h i s t ó r i c o , no mau s e n t i d o , v ê m a ser, p a r a d o x a l m e n t e , o u t r o s tantos riscos q u e p r e v i s i v e l mente acompanham a análise exclusivamente histórica da filosofia. António 138 Pedro Mesquita E i s , p o i s , u m a v e z m a i s , o p a r a l e l i s m o de m é r i t o s e d e m é r i t o s que a t r á s h a v í a m o s s u r p r e e n d i d o . S ó que a q u i o c á l c u l o de a m b o s n ã o i n d i c a os segundos c o m o a v e r d a d e i r a natureza dos p r i m e i r o s n e m t ã o - p o u c o c o m o u m seu i n c o n t o r n á v e l r e s u l t a d o , mas s i m c o m o a p r ó p r i a e x p r e s s ã o d o seu p r e s u m í v e l fracasso, e n q u a n t o n e n h u m dos b e n e f í c i o s que esta s o l u ç ã o se p r o p o r i a trazer p o d e m honestamente ser d e l a esperados. É c e r t o q u e n a d a d i s t o i m p e d e o u i n v i a b i l i z a seguramente u m a i n t r o dução à filosofia: assinalados, mas c o n d i c i o n a - a pela o c o r r ê n c i a dos fenómenos os quais s ó d i f i c i l m e n t e p o d e m ser c o n t o r n a d o s c o m esta p e r s p e c t i v a ( p o r q u e d e l a m e s m a n a t u r a l m e n t e d e c o r r e m ) , de t a l m o d o q u e , e m o c o r r e n d o , c o m p r o m e t e m e m l a r g a m e d i d a a p o s s i b i l i d a d e de uma verdadeira i n i c i a ç ã o filosófica. Para m a i s , o ó b i c e f u n d a m e n t a l d a " a t i t u d e f i l o s ó f i c a " e d o " c o n j u n t o d e p r o b l e m a s " m a n t é m - s e c o m ela. Pois esse n ã o era o da sua m e r a u n i l a t e r a l i d a d e : era o de lhes f a l t a r a ambos f u n d a m e n t a ç ã o e n q u a n t o presunt i v a s d e f i n i ç õ e s de f i l o s o f i a , o u , de o u t r o m o d o , o de e m ambos ficar p o r e n u n c i a r a d e t e r m i n a ç ã o d o que neles consiste o propriamente seja d a a t i t u d e propriamente filosófico filosófica, seja d o s e n t i d o filosófico, propriamente de t a l c o n j u n t o de p r o b l e m a s . E a h i s t ó r i a da f i l o s o f i a , a despei- to de r e s o l v e r a q u e l a d i f i c u l d a d e , de m o d o a l g u m s o l u c i o n a esta ú l t i m a . O r a é j u s t a m e n t e este ó b i c e f u n d a m e n t a l que a ú l t i m a s o l u ç ã o p e r m i t e dirimir. É que, na v e r d a d e , t a l s o l u ç ã o n ã o c o n s t i t u i u m a a l t e r n a t i v a à h i s t ó r i a : c o n s t i t u i , antes, a r e c o n d u ç ã o da p r ó p r i a h i s t ó r i a à sua v e r d a d e , isto é , ao q u e nela j u s t a m e n t e se d á c o m o a f i l o s o f i a , e o n d e p o r isso m e s m o , transc e n d e n d o a p u r a e m p i r i c i d a d e daquela, se acha a f u n d a m e n t a ç ã o reque- rida. P a r a o fazer, basta, c o m e f e i t o , passar d o m e r o n í v e l da h i s t ó r i a ao n í v e l d a q u i l o que a p r ó p r i a h i s t ó r i a m o s t r a - e que c o n s t i t u i a f i l o s o f i a precisamente. A f ó r m u l a t e ó r i c a deste p r o c e d i m e n t o f o i j á a n t e r i o r m e n t e e x i b i d a . N e s t e m o m e n t o t e r m i n a l , é p o i s s u f i c i e n t e e l u c i d a r as v i r t u a l i d a d e s pedag ó g i c a s deste m o d o de acesso, n ã o s ó c o m o n e c e s s á r i o contraponto à q u e l e m o m e n t o t e ó r i c o , mas e m d e c o r r ê n c i a d a e x c l u s ã o a que, na l ó g i c a da d e m o n s t r a ç ã o p e d a g ó g i c a que t e m v i n d o a ser prosseguida, os d e m a i s f o r a m sujeitos, e a j u i z a r f i n a l m e n t e d a sua p e r t i n ê n c i a e adaptabilidade à actual s i t u a ç ã o educativa. O r a tais v i r t u a l i d a d e s d e c o r r e m p o r si mesmas. E m p r i m e i r o l u g a r , esta s o l u ç ã o p e r m i t e de facto f a z ê - l o de u m m o d o s i m u l t a n e a m e n t e fundamentado. definir a filosofia e i n e q u í v o c o , c a b a l , abrangente e O Que é a 139 Filosofia? E m segundo lugar, p e r m i t e e v i d e n c i a r a necessidade da f i l o s o f i a e a sua i r r e d u t i b i l i d a d e e m r e l a ç ã o aos outros saberes ( o que a l i á s é i g u a l m e n t e p r e v i s t o p e l o a c t u a l p r o g r a m a , sob os t e r m o s de " u n i v e r s a l i d a d e " e " a u t o n o m i a " da f i l o s o f i a ) . E m t e r c e i r o l u g a r , p e r m i t e salvaguardar a n ã o - p r o g r e s s i v i d a d e e inesgotabilidade do questionamento filosófico como uma característica posit i v a da sua natureza, j u s t i f i c a n d o i n c l u s i v e , deste p o n t o de v i s t a , a p l u r a l i d a d e v i r t u a l m e n t e i n d e f i n i d a de d e f i n i ç õ e s de f i l o s o f i a e, a esta n o v a l u z , a sua " i n d e f i n i b i l i d a d e " i n t r í n s e c a . Em q u a r t o l u g a r , p e r m i t e i n t e g r a r a r t i c u l a d a m e n t e t o d o s os outros sentidos, os q u a i s , e m b o r a e x c l u í d o s e n q u a n t o o p ç õ e s a l t e r n a t i v a s , constituem, como v i m o s , seus m o m e n t o s c o n s t i t u t i v o s , e, através dessa m e s m a i n t e g r a ç ã o , c u l t i v a r as qualidades, a d q u i r i r os c o n h e c i m e n t o s e r e c o n s t i t u i r o e x e r c í c i o s i s t e m á t i c o que ela prescreve. E f i n a l m e n t e , e m q u i n t o l u g a r , p e r m i t e , u m a vez m a i s nos t e r m o s d o actual programa, partir do " v i v i d o " , i l u m i n a n d o a actividade filosófica a t r a v é s de u m a e x i g ê n c i a de a u t o q u e s t i o n a m e n t o que e n c o n t r a c o r r e s p o n d ê n c i a e m cada s u j e i t o e que a cada u m i n c l u i na t r a d i ç ã o c o m que e n t ã o t o m a contacto. O r a é j u s t a m e n t e este ú l t i m o p o n t o que nos fornece simultaneamente u m a resposta à q u e s t ã o pela a d a p t a b i l i d a d e da presente s o l u ç ã o ao q u a d r o d e f i n i d o p e l o actual c u r r í c u l o de I n t r o d u ç ã o à F i l o s o f i a n o e n s i n o secundário. C o m e f e i t o , d a d a a natureza deste e a e v i d e n t e a m b i g u i d a d e e d e s a r t i c u l a ç ã o que o c a r a c t e r i z a , o que se d e v e r i a p e r g u n t a r n ã o é p e l a c o n c e p ç ã o de f i l o s o f i a que e s p e c i a l m e n t e se lhe adequa ( p o r q u e , n ã o v e i c u l a n d o n e n h u m a , t a m b é m n e n h u m a especialmente r e j e i t a ) , mas p e l a c o n c e p ç ã o d e f i l o s o f i a que o pode tornar adequado, a saber, respeitando a sua o r i e n - t a ç ã o , os seus c o n t e ú d o s e a sua estrutura, mas c o n f e r i n d o - l h e ao m e s m o tempo a d e t e r m i n a ç ã o t e ó r i c a e o f i o condutor p r o g r a m á t i c o que manifest a m e n t e lhe f a l t a m . O r a , para l á da sua v a l i a f i l o s ó f i c a e p e d a g ó g i c a e n q u a n t o m o d o de acesso à f i l o s o f i a , n o m e a d a m e n t e perante as a l t e r n a t i v a s ponderadas, a p r o p o s t a apresentada p e r m i t e c o m s i n g u l a r a d e q u a ç ã o adaptar o p r o g r a m a vigente segundo o m o d o requerido. Desde l o g o , ao f a c u l t a r u m a e f e c t i v a i n i c i a ç ã o f i l o s ó f i c a "a p a r t i r d o v i v i d o " . D e p o i s , ao p r o m o v e r a d e t e r m i n a ç ã o da f i l o s o f i a d e a c o r d o c o m p r i n c í p i o s que o p r o g r a m a t a m b é m subscreve (a a u t o n o m i a , a r a d i c a l i dade, a u n i v e r s a l i d a d e e a " b u s c a de f u n d a m e n t o s " ) . F i n a l m e n t e , ao c e n t r a r aquela i n i c i a ç ã o n o p e r c u r s o das q u e s t õ e s f i l o s ó f i c a s , q u e ele i g u a l - Antonio 140 Pedro Mesquita m e n t e r e c o n h e c e , mas para as q u a i s a c h o u a t e r m i n o l o g i a e q u í v o c a e u m t a n t o opaca de " v a l o r e s " . Adequar o p r o g r a m a de a c o r d o c o m aquela c o n c e p ç ã o e x i g e apenas, p o r t a n t o , que se estruture os dados e m que ele e m g r a n d e m e d i d a e x c l u s i v a m e n t e c o n s i s t e segundo a o r i e n t a ç ã o c o n f e r i d a p o r u m a expressa d e f i n i ç ã o de f i l o s o f i a que c a b a l m e n t e a e x p o n h a . M a s para isso é e v i d e n t e m e n t e n e c e s s á r i o , antes de m a i s , que, ao i n v é s d o l o n g o e d o l o r o s o r o s á r i o d e m e d i a ç õ e s c o m que alegadamente nos a p r o x i m a r í a m o s da f i l o s o f i a e p e l o q u a l o a c t u a l p r o g r a m a i l u d e de f a c t o a q u e s t ã o p e l o seu sentido e i n i b e a sua resposta, u m a t a l q u e s t ã o seja f r o n t a l m e n t e c o l o c a d a e c o e r e n temente respondida. N a o r d e m d e t e r m i n a d a p o r semelhante p r o j e c t o , o p e r c u r s o resultante torna-se e n t ã o m u i t o c l a r o . P o d e m o s e n u n c i á - l o e m t r ê s grandes m o m e n t o s . E m p r i m e i r o l u g a r , n a t u r a l m e n t e , tratar-se-ia de d e t e r m i n a r g l o b a l m e n t e esse m e s m o p e r c u r s o a t r a v é s de u m a l i m i n a r , d i r e c t a e p r i m á r i a d e f i n i ç ã o de f i l o s o f i a , c o n c e b i d a , nos t e r m o s anteriores, a p a r t i r da espec i f i c a ç ã o d a n a t u r e z a das q u e s t õ e s f i l o s ó f i c a s e d o m o d o de q u e s t i o n a r q u e as requer e que elas r e q u e r e m . E m s e g u n d o l u g a r , seria n e c e s s á r i o apresentar s i n ó p t i c a m e n t e u m t a l p r o c e s s o de q u e s t i o n a m e n t o n a sua c o n c r e t a c o n t e x t u a l i z a ç ã o histórica, i l u s t r a n d o deste m o d o o seu i r r e d u t í v e l c a r á c t e r s i s t e m á t i c o , mas t a m b é m a sua h i s t o r i c i d a d e i n t r í n s e c a . N e s t e q u a d r o , a u n i d a d e d o p r o g r a m a dest i n a d a a i n t r o d u z i r a h i s t ó r i a d a f i l o s o f i a e nele m a r g i n a l i z a d a e d e s v i t a l i z a d a c o m o u m a m e r a e x i g ê n c i a a p e n d i c u l a r , seria a q u i r e c u p e r a d a p a r a p r e c e d e r e e n q u a d r a r t o d o s os d e m a i s t ó p i c o s . Em t e r c e i r o l u g a r , seria igualmente n e c e s s á r i o resgatar para este p e r c u r s o a t e m á t i c a d o s " v a l o r e s " , que preenche a t o t a l i d a d e d o d e s e n v o l v i m e n t o f i l o s ó f i c o e f e c t i v o d o p r o g r a m a . O que é p o s s í v e l fazer, s e m a descaracterizar, à l u z deste f i o c o n d u t o r : basta que, p a r a esse e f e i t o , tais "valores" sejam devidamente reformulados como horizontes questionantes emergentes d a a c ç ã o e dotados de s e n t i d o a x i a l n a d e t e r m i n a ç ã o dessa m e s m a a c ç ã o , os q u a i s , p e r f i l a n d o - s e necessariamente sujeito, s ã o pela filosofia n a v i d a de cada p r e c i s a m e n t e e x p l i c i t a d o s como questões. O t r a t a m e n t o das u n i d a d e s subsequentes sob esta p e r s p e c t i v a e, p o r t a n t o , a t r a v é s d a a n á l i s e sucessiva das q u e s t õ e s e s t é t i c a s , é t i c a s , g n o s i o l ó g i c a s e o n t o l ó g i c a s justamente enquanto tais questões teológicas, decorreria a s s i m n a t u r a l m e n t e desta r e f o r m u l a ç ã o . O que t o d a v i a c u m p r e a q u i s o b r e t u d o s u b l i n h a r é q u e esta m e s m a reformulação, e c o m e l a a t o t a l i d a d e dos m o m e n t o s c o n s t i t u t i v o s d o O Que é a 141 Filosofia? programa, dependem estritamente do m o d o como a filosofia f o i i n i c i a l mente determinada. O r a esta d e t e r m i n a ç ã o s ó é e f i c a z e, desde l o g o , s ó é sequer c o n c e b í v e l p o r i n t e r m é d i o de u m a a p r o p r i a ç ã o " v i v i d a " das q u e s t õ e s e d o m o d o de q u e s t i o n a r p a r a q u e ela apela. N ã o , n o entanto, a t r a v é s d o recurso avulso a conhecimentos e e x p e r i ê n c i a s anteriores d o a l u n o , que por e s s ê n c i a f i c a m sempre a q u é m d o r e q u e r i d o : mas j u s t a m e n t e a t r a v é s de u m a e f e c t i v a " v i v ê n c i a " d o p r ó p r i o processo de q u e s t i o n a m e n t o , e n q u a n to ele p o d e ser " c o n a t u r a l m e n t e " suposto e m cada s u j e i t o e p o r t a n t o ser n e l e despertado e f e i t o e m e r g i r p e l o c o n v í v i o c o m os p r o b l e m a s e/ou t e x t o s d a t r a d i ç ã o e p e l a e x i g ê n c i a da sua i n t e r p e l a ç ã o . A experiência do questionar filosófico, e m que verdadeiramente c o n s i s t e o ú n i c o " v i v i d o " a recuperar ( n ã o , e v i d e n t e m e n t e , c o m o " v i v i d o " a pensar, mas c o m o pensar que tem de ser vivido), constitui assim o a u t ê n t i c o m o m e n t o c r u c i a l da d e f i n i ç ã o da f i l o s o f i a , p o i s nele exercita-se e consciencializa-se o p r ó p r i o definir-se da filosofia, enquanto reconhe- c i m e n t o e m acto d a sua natureza. RESUME QU'EST-CE QUE LA PHILOSOPHIE? SENS PHILOSOPHIQUE E T VIRTUALITES PEDAGOGIQUES D'UNE DEFINITION DE LA PHILOSOPHIE Dans un article precedent, nous avons essaye de refuter la these selon laquelle la philosophie possede une nature essentiellement indefm is sable. En utilisant cette fois une voie positive, nous cherchons d'etablir les conditions d'une definition de la philosophie qui contienne organiquement les elements suivants: d'abord, la philosophie en tant qu'activite et en tant qu'ensemble de problemes; deuxiemement, la philosophie et sa nature radicalement creatrice; en dernier lieu, I'identification de la philosophie avec un interet irreductiblement philosophique de la raison elle-meme. Apres la presentation philosophique de la definition proposee, i l y a lieu a une discussion de ses virtualites pedagogiques.