AMADIS E ORIANA: PAR ROMÂNTICO DA NOVELA DE CAVALARIA E AS PECULIARIDADES COM AS POESIAS LÍRICO-AMOROSAS DO TROVADORISMO STRINGINI, Joseana. Trabalho realizado na disciplina de Literatura Portuguesa I, no curso de Letras – Bacharelado / UFSM, sob a orientação da Prof.ª Andrea do Roccio Souto, no primeiro semestre de 2012. Bacharel em Jornalismo. Acadêmica de Letras - Bacharelado / UFSM. E-mail: [email protected]. RESUMO O presente artigo busca analisar a novela de cavalaria O Romance de Amadis, dando um enfoque principal aos personagens que formam o par romântico: Amadis e Oriana. Este trabalho tem por objetivo mostrar que, apesar de a obra ser uma novela de cavalaria, ela apresenta traços específicos da poesia lírico-amorosa do Trovadorismo. A análise pretende demonstrar, a partir de excertos da obra de Amadis, algumas características peculiares das cantigas trovadorescas, como as regras do amor cortês, a coita amorosa, a vassalagem, os serviços amorosos e outras. Palavras-chave: Amadis de Gaula. Oriana. Trovadorismo. Novelas de Cavalaria. INTRODUÇÃO O Romance de Amadis, de Afonso Lopes Vieira, é considerado uma das mais importantes novelas de cavalaria. Apresenta uma classificação variada quanto ao gênero, ora sendo chamado de romance, ora sendo chamado de história, conto ou mesmo novela. A primeira impressão da obra data de 1508, tornando-se núcleo de um ciclo novelesco, no século XVI. Muitas têm sido as pesquisas e discussões sobre sua autoria, e sua origem continua sendo objeto de investigações. Segundo Figueiredo (1966, p.89): A primeira impressão do Amadis é de Saragoça, 1508, devida a GarciRodríguez Montalvo. Nas edições posteriores este nome aparece alterado para Garci-Ordoñez. Essa primeira edição está em língua castelhana, mas o seu texto não é igualmente atribuído a Rodríguez Montalvo ou GarciOrdoñez: este corrigiu os três primeiros livros, traduziu e emendou o quarto, e acrescentou um quinto, Sergas de Esplandián, aventuras do filho de Amadis. A obra era muito anterior e muito circulara em Portugal. Antes da imprensa e muito antes do nascimento da noção de propriedade literária, essa história dos amores de Amadis e Oriana, e das perigosas façanhas que o cavaleiro pratica para merecer a sua dama, corria de mão em mão por cópias; e cada leitor ou cada copista aditava ou alterava o texto da obra. Outros autores demonstram essa dificuldade em encontrar as origens de Amadis. “Nenhuma prova apareceu até hoje capaz de dirimir a polêmica entre os que defendem a tese da autoria portuguesa e os que defendem a da autoria castelhana [..] em qualquer caso, o Amadis é uma obra peninsular, contemporânea ainda da primeira fase da poesia da corte medieval” (SARAIVA e LOPES, 2001, p. 97-98). A imprensa possibilitou uma maior circulação ao público as diversas versões do texto de Amadis. [...] durante quatro séculos, as histórias de cavaleiros valentes salvando damas em perigo, corrigindo injustiças, fizeram parte do entretenimento da nobreza. Com a imprensa, essas histórias tornaram-se mais populares e disponíveis a um público maior, tal como atestam as 30 edições de Amadis de Gaula impressas entre os anos de 1508 e 1587. (AGUINAGA, apud PAZ, 2011, p. 63-64) Visto, então, o problema de autoria de Amadis de Gaula, tratar-se-á da comparação da obra com as poesias do trovadorismo. Apesar de a obra ser uma narrativa, apresenta algumas peculiaridades próprias das cantigas trovadorescas. A análise trabalhada aproxima o texto da poesia lírico-amorosa do trovadorismo, a partir de elementos como a vassalagem, a coita amorosa, as regras do amor cortês etc. Nessa perspectiva, dois personagens serão mais relevantes para a análise: Amadis e Oriana, os quais formam o par romântico principal da obra. NOVELAS DE CAVALARIA E A FIGURA DO HERÓI O romance de cavalaria, segundo Demétrio Alves de Paz (2004, p.40), “não surgiu ex-abrupto, ele possui uma história ligada a outros gêneros, principalmente com a canção de gesta e a lírica trovadoresca provençal”. Essas canções de gesta contribuíram com seus temas guerreiros para a poesia lírico-amorosa do Trovadorismo. De acordo com Moisés (1972, p. 32), também a lírica trovadoresca deixa de ser expressa em “versos para o ser em prosa”, bem como deixa de ser cantada para ser lida. Uma característica típica das novelas de cavalaria é a figura do herói. Esse sempre está presente nas obras, fazendo grandes feitos, e seu nome, na maioria das vezes, intitula os livros. No que diz respeito ao herói do romance cortês ou de cavalaria,[...] percebemos que ele é filho de heróis, principalmente de um famoso guerreiro. Seus pais são nobres (reis, na maioria das vezes), mas ele é criado por alguém de fora da família ou longe da corte. O herói deve vencer por mérito, nunca por afinidade ou eleição, pois tudo deve ser merecido ou conquistado. Nada pode ser dado pela sua posição. Num momento crítico, há uma revelação. Da mesma forma, quando necessário, o herói revela a sua verdadeira origem. (PAZ, 2004, p.125). Nota-se que O Romance de Amadis foge do padrão das novelas de cavalaria, pois, apesar de haver uma figura de herói, no caso, o Amadis, ele se apresenta de maneira diferente do convencional. Nele se encontra um amor-adoração, se voltando e sendo fiel a Deus, mas também a Oriana. Não há somente a busca da graça de Deus, há também a busca da graça na Terra, ou seja, de um amor terreno. Isso pode ser visto já no primeiro capítulo, quando Amadis é apresentado como “o namorado”, aquele que se mantém de amor, e não apenas guerreiro fiel a Deus. A experiência do amor, vivido por Amadis em relação a Oriana, permitirá que elementos lírico-amorosos do período trovadoresco se evidenciem na trajetória dos protagonistas. ELEMENTOS TROVADORESCOS NA NARRATIVA AMADIS DE GAULA Analisando o par romântico da obra, percebe-se diversas semelhanças com as cantigas lírico-amorosas do trovadorismo, apesar de a obra ser uma narrativa. Amadis e Oriana, em muitas situações, se apresentam como modelos das Cantigas de Amor. Em outros, aparece Oriana apresentando o comportamento do eu-lírico feminino das Cantigas de Amigo. Nas Cantigas de Amor, o trovador “empreende a confissão, dolorosa e quase elegíaca, de sua angustiante experiência passional frente a uma dama inacessível aos seus apelos, entre outras razões porque de superior estirpe social, enquanto ele era, quando muito, um fidalgo decaído” (MOISÉS, 1972, p.25). Nessa explicação, encontram-se alguns pontos que caracterizam o personagem Amadis. Em primeiro lugar, as confissões que faz a um amor inacessível e também as suas angústias perante Oriana, em muitas vezes relacionadas à morte, a um sofrimento extremo: “Se eu morrer, pensava êle – morro por ela, e a vê-la!” (VIERA, 1968, p. 83). Também podem ser notadas essas confissões em: “Pedia a Deus, pois lhe fora o Senhor tão benigno salvando-o, destinando-lhe por amos tão bons senhores e mandando que ali viesse aquela por quem o seu coração batia, que no amor de Oriana e na glória das armas lhe desse mercê de vitória” (idem, p. 58) e em: “Era ali que estava Oriana: e ele tanto a queria ver, que se arreceava também de a encontrar; só por ela viera, como só por ela vivia; e agora, sabendo-a tão perto, quási quisera partir, morrendo entanto por vê-la.” (idem, p. 78). Outro ponto a ser destacado, e que caracteriza a coita amorosa, é a dama inacessível, de superior estirpe social. Amadis, a exemplo do eu-lírico das cantigas de amor, acredita que Oriana seja um amor inatingível, pois, até então, desconhecia o seu passado, sem saber também quem eram os seus verdadeiros pais, assinalando uma diferença social entre ele e Oriana. Vale lembrar que até ser descoberto o seu passado, era chamado de Donzel do Mar. “[…] cavaleiro pobre e sem nome.” (idem, p. 81). Outra passagem que atesta a coita amorosa pela disparidade social entre trovador e senhora é que segue: “Lembrando-se da sua amiga, ia o Donzel do Mar pensando: - Pobre Donzel sem linhagem nem bem, como ousaste escolher aquela que em linhagem e formosura todas as outras vale? Mais formosa é ela que o mais belo cavaleiro armado, brilha mais sua bondade que a riqueza dos maiores tesouros – e tu, pobre Donzel, não sabes mesmo quem és, e só te cabe calar o amor, morrer de amor antes de o confessar!” (idem, p. 62). Também podem ser percebidos nessa passagem o sofrimento interior, a dor e a angústia decorrentes de pedidos e súplicas inúteis. A Amadis só “cabe calar o amor, morrer de amor antes de o confessar.” (idem, p. 62). A coita amorosa também pode ser vista nas passagens já citadas anteriormente, em que o sofrimento está relacionado à morte. Para Helena Lourenço (2009, p.142): “Desde o início da narrativa, a ideia de coita de amor aparece associada à soledad, à ausência do ser amado”. Amadis se comporta como um vassalo perante Oriana, se comprometendo a prestar serviço a ela, “dirigindo em vassalagem e subserviência à dama de seus cuidados (mia senhor ou mia dona = minha senhora), e rendendo-lhe o culto que o ‘serviço amoroso’ lhe impunha. E este orienta-se de acordo com um rígido código de comportamento ético: as regras do ‘amor cortês’, recebidas da Provença” (MOISÉS, 1972, p.25). Notam-se esses serviços prestados à dama, como um vassalo, em: “A este tempo o Donzel do Mar tinha doze anos, e em altura e força mostrava quinze. Servia a rainha, mas, pois chegara Oriana, deu-lho a rainha para que a servisse” (VIEIRA, 1968, p. 53). Igualmente ocorre em: “E, como Oriana o quisera, ficou Amadis na côrte para servir a rainha, - senhores, para a servir a ela!” (idem, p. 88). Esses serviços podem ser encontrados em: “Ora, o Donzel do Mar, pensando em sua senhora e que esta lhe queria mais se em seu serviço praticasse grandes feitos, ou por ela morresse a praticá-los, desejou ser armado cavaleiro” (idem, p. 53), e em: – “Senhora, no mar fui achado e vivo para vos servir!” (idem, p. 61). REGRAS DO AMOR CORTÊS Há, então, um encantamento mútuo entre o par romântico, mas, claro, um amor proibido. Para que esse amor não possa ser descoberto, seguem-se as regras do “amor cortês”, um rígido código de comportamento e ética, próprias da lírica trovadoresca. Segundo Moisés (1972, p. 25), o trovador teria de mencionar comedidamente o seu sentimento (mesura), a fim de não incorrer no desagrado (sanha) da bem-amada; teria de ocultar o nome dela ou recorrer a um pseudônimo (senhal), e prestar-lhe uma vassalagem que apresentava quatro fases: a primeira correspondia à condição de fenhedor, de quem se consome em suspiros; a segunda é a de precador, de quem ousa declarar-se e pedir; entendedor é o namorado; drut, o amante. Em relação à primeira regra, a mesura, deve existir um cuidado em manter a dama devidamente protegida de se saber quem ela é. A declaração amorosa precisa ser feita de maneira comedida, com respeito, para não deixá-la mal-vista ou mal-falada. Amadis tem esse cuidado, como, por exemplo, na prova para desembainhar a espada e para colocar a guirlanda em cabeças de donas e donzelas. Disse então Amadis à sua amiga: - À prova iremos também! Pasmou Oriana do que ouviu, tão impossível lhe pareceu por perigoso e louco. Respondendo ao espanto que lia nos formosos olhos da sua amiga, beijoulhe Amadis as mãos e explicou seu pensamento: - Mas ireis rebuçada de guisa que ninguém saiba quem sois; e comigo sereis diante de vosso pai – e faremos a prova da Espada e da Guirlanda! (VIEIRA, 1968, p. 164). Já a sanha, a segunda regra, seria evitar a fúria da dama, não devendo, assim, descumprir nenhuma regra. Pode-se encontrar esse elemento no momento em que o autor relata a fúria de Oriana ao descobrir uma possível infidelidade de Amadis, o qual prometera amor eterno. “Quando a Oriana chegaram estes dizeres do pajem, sentiu no coração queixa mortal. [...] Oriana crera na traição e não ouvia conselho nem a razões atendia. Ora, enquanto Oriana padece e guarda no coração a injusta sanha, ouvide como Amadis padecia por lhe ficar fiel até à morte.” (VIEIRA, 1968, p. 110). Quanto ao senhal, terceira regra, cabe utilizar pseudônimos, a fim de ocultar a identidade da dama. No que se refere a essa regra, não há muitos episódio em que isso ocorra (com exceção da cantiga a Leanoreta, feita por Amadis a sua amada Oriana. A camuflagem pelo nome da irmã seria uma espécie de senhal). Essa regra devia ser seguida nas cantigas porque, na maioria dos casos, a senhora era casada, o que não ocorre aqui. Mas o fato de Amadis e Oriana terem epítetos pode ter algum significado em relação a isso. Donzel do mar, como um modelo cristão do herói, “aquele que achaste no mar será a flor da Cavalaria: fará tremer os fortes, humilhará os soberbos, defenderá os agravados, e tudo obrará com honra. E será também o cavaleiro que com mais bela lialdade há-de manter seu amor!” (idem, p. 37). Oriana, a Sem-Par, seria um modelo cristão da mulher idealizada no período medieval, mulher anjo, a que não tem comparação. Mas esses epítetos não se encaixam totalmente na regra dos pseudônimos que caracteriza a senhal, porque todos os chamavam assim, não era algo exclusivo aos dois, nem era utilizado com a finalidade de ocultar a dama. Percebe-se que nas conversas entre Amadis e Oriana há sempre uma ocultação dos seus nomes. Eles nunca ou raramente se dirigem ou ao outro por seus nomes. Nos diálogos, quase sempre se referem um ao outro com a palavra “amigo”, a qual, se verá mais adiante, pode significar amante ou namorado, nas cantigas de amigo. A quarta e última regra do “amor cortês” diz respeito à vassalagem, apresentando quatro fases. A primeira, a do fenhedor, é a fase do suspiro, do sonhar, externado pela dor do amor, como em “tinha-se por ousado em pensar nela” (idem, p. 53) e em “Olhava a muito, a dizer-lhe adeus até não sabia quando!” (idem, p. 61) ou em “como ousaste escolher aquela que em linhagem e formosura todas as outras vale?” (idem, p. 62). Também em “e ficava-se a olhar com lágrimas nos olhos.” (idem, p. 78). Na segunda fase, a do precador, o apaixonado ousa declarar e pedir, evoca e põe para fora seus sentimentos. Essa fase pode ser vista em: “Meu senhor, sêde bemvindo [...] - “Senhora, em tudo obedeço [...] Beijando aquelas mãos, as mais lindas que havia [...]” (idem, p. 85-86). A terceira, do entendedor, é a fase do namorado, em que a senhora dá a chance de ele poder falar, ou seja, em que eles estão se entendendo: Doces horas vividas a furto entre os amigos fiéis, no coração dos quais demorava o segredo escondido e amado; doces horas de tanto sabor na câmara de Oriana, ao tomar rijo nos braços a esbelteza do corpo de ouro; doces horas em que ambos passeavam à sombra rescendente dos vergéis – adeus! (idem, p. 175-176). A última é a drit, em que já se apresenta certa familiaridade, e são considerados amantes. O final do livro pode ser considerado essa fase, ou seja, o momento em que Amadis fica junto de Oriana. “Agora que a idade verde fugira, fazendo o amor mais pensado, apetecia Amadis para ele a bênção da igreja, que diante de Deus e dos homens juntaria o seu coração ao de Oriana, senhora da Ilha Firme e futura rainha de Gaula [...] E Amadis liberta e leva para a Ilha Firme – Oriana, Oriana a Sem-Par!...” (idem, p. 203). Essas passagens citadas anteriormente podem ser identificadas como exemplos das regras do amor cortês. Além disso, há outros trechos em que se demonstra o sofrimento de Amadis, principalmente após receber a carta em que Oriana o despreza. Essas outras passagens, as quais não serão citadas aqui, podem ser caracterizadas dentro das fases do amor cortês, em parte, pois algumas não estão muito claras e parecem, às vezes, se misturarem. Há uma crescente gradação do sofrimento, como é exigido pelo código de comportamento e ética, a fim de se tornar um bom trovador, como nas cantigas líricoamorosas. Mas não em todo o romance, pois apesar da dor, há também a felicidade em alguns momentos, como os em que estiveram juntos. Ambos viviam um amor puro, mas proibido, como os amores medievais. Viviam encobertos, para que ninguém suspeitasse do amor. Existe um respeito entre os dois, mas Amadis ousa, em certos momentos, como, por exemplo, em: “tinha-se por ousado em pensar nela, vista sua grandeza e formosura; e Oriana, que tanto lhe queria, não falava ao Donzel mais que a outro, por já temer que a suspeitassem. Assim viviam encobertos, e um para o outro viviam.” (idem, p. 37). Segundo Moisés (1972, p. 25), há “uma atmosfera plangente, suplicante, de litania […]. Os apelos do trovador colocam-se alto, num plano de espiritualidade, de idealidade ou contemplação platônica, mas entranham-se-lhe no mais fundo dos sentidos: o impulso erótico situado na raiz das súplicas transubstancia-se, purifica-se, sublima-se”. O Romance de Amadis remete ao período da poesia palaciana, então esse envolvimento, essa “contemplação platônica” a que se refere Massaud Moisés não é tão platônica assim entre o par romântico. O amor entre eles inicia ingênuo, puro e desprovido de um amor carnal. Pelo fato de ser um amor de almas, poderão, ao final, serem merecedores de uma relação mais íntima. Existe uma preocupação em adquirir a graça ainda na terra, com o amor de Oriana. Percebe-se que esse fingimento, típico das cantigas lírico-amorosas trovadorescas, existe no par romântico, frente à sociedade. Ainda segundo Moisés (1972, p.25): “Tudo se passa como se o travador ‘fingisse’, disfarçando com o véu do espiritualismo, obediente às regras de conveniência social e da moda literária vinda da Provença, o verdadeiro e oculto sentido das solicitações dirigidas à dama”. Esse fingimento, seguindo as regras do trovadorismo, deve existir. Se houver uma relação entre o casal, se o amor carnal ocorrer, esse jamais poderá ser descoberto pelos demais. No caso do par romântico – Amadis e Oriana -, esse encontro, essa relação de corpo e alma, realmente existiu. E isso pode ser percebido em alguns momentos da obra, como a primeira vez em que se encontram, em que há um toque, um secar de lágrimas, um beijar de mãos. Vale lembrar que, seguindo as regras do amor cortês do trovadorismo, eles, sim, fingiram e esconderam de todos (com exceção dos respectivos confidentes) os encontros e as relações que tiveram. Isso se evidencia em encontro a sós de Amadis com a bem-amada: Diante dos maus cavaleiros, mortos por terra com disformes gestos, Oriana estremeceu; e Amadis, ajoelhado a seus pés, disse-lhe com doçura: Quanto mais custa morrer de amor! - Fazeis como quiserdes, que bem fareis; e, se parecer pecado, não o será para Deus. Ia Amadis gozando pela primeira vez este bem sem igual de se achar só com a bem-amada. (VIEIRA, 1968, p.104). Essa passagem, além de mostrar o encontro, assinala também uma referência, por parte de Oriana, a Deus, acreditando que “se parecer pecado, não será para Deus”. Por terem um amor puro desde o início, acreditavam ser, então, escolhidos de Deus, e que poderiam ter um amor carnal, pois, seriam merecedores. A ideia do maravilhoso que aparece na obra seria a personificação cristã para demonstrar que eles eram os escolhidos. É também por isso que Amadis se apresenta, em muitas situações, agradecendo a Deus e à amada, ao céu e à terra. Na sequência do encontro citado anteriormente, há essa ideia de pureza, de amor escondido, de amor eterno: “E ainda ali Amadis amava a furto, se não já por temor dos homens, por temor do amor. […] E então, mais por ela o querer que por êle o ousar, a donzela se fez dona sôbre aquela cama verde. Bem abraçados se tinham, e do amor o amor crescia – puro amor, amor sem fim!” (idem p. 105). Outra passagem de encontro e de contato entre eles é mostrada em “[...] - que eu vim a este castelo esperar a Amadis meu senhor [...] entrou Amadis no castelo – e ficou preso num beijo à boca da bem-amada!” (idem, p. 158). CANTIGA DE AMIGO E A CANTIGA FEITA A ORIANA - LEONORETA Além das características das Cantigas de Amor, há também peculiaridades em relação às Cantigas de Amigo. Há o Donzel do Mar, que se comporta como um vassalo perante a moça, mas há outro personagem, nesse caso, a Oriana, que demonstra, em certos momentos, um amor como o eu-lírico feminino das cantigas de amigo. Esse tipo de cantiga, segundo Moisés, é representado pelo outro lado da relação amorosa, pelo sofrimento amoroso da mulher, mas, no caso de Oriana, não pertencendo às camadas populares, como pastoras e camponesas, como são encontradas nessas canções. “O trovador, amado incondicionalmente pela moça [...] projeta-se-lhe no íntimo e desvendalhe o desgosto de amar e ser abandonada, por causa da guerra ou de outra mulher.” (MOISÉS, 1972, p.26). Oriana permite a Amadis ir às lutas, guerras, pois ele prestava serviço a ela, mas, em algumas situações, sofre com a partida e/ou com a distância. Esse sofrimento, por parte agora da amada, pode ser visto em algumas passagens, como: “E olhava Oriana, a despedir-se dela... Olhava a muito, a dizer-lhe adeus até não sabia quando! Sentia a infanta o coração aos saltos, e os seus olhos respondiam aos dêle, e tudo um ao outro diziam.” (VIEIRA, 1968, p .61). Ou em “E ali agora Oriana sentida das dores que sofrera, trazendo no rosto formoso o sinal descorado das penas.” (idem, p. 153). Também pode ser notado o sofrimento da dama em “tudo nela era chorar, arrepender-se e doer-se, desafogando-se em vozes de aflição: - Ai! Coitada sem ventura, que matei o que mais amava! E a morte do meu senhor mal vingada será com a minha!” (idem, p. 131). Do mesmo modo, se vê a dor de Oriana: “Tendo Amadis por morto, choraram-no todos. E Oriana, encerrada em uma câmara, maldizia como doida a sua ventura, e queria morrer.” (idem, p. 135). Na passagem seguinte, também são percebidos esses sofrimentos: - Ai! – gemia Oriana. – Por que se foi Amadis e me deixou sozinha, ele, o lume das coitadas? [...] - Meu pai e senho, se é vossa vontade mandar-me ao Imperador de Roma, apartando-me de vós, da minha mãe e da terra onde nasci, sabei que tal vontade se não poderá cumprir porque antes morrerei ou me darei a morte!. (idem, p. 192) As cantigas de amigo são marcadas pelo diálogo, pela tensão. Há confissões da própria mulher, tratando-se de uma entrega de corpo e alma e de uma paixão não correspondida ou incompreendida. Nessas confissões, a moça dirige-se à mãe, a amigas ou a seres da natureza, como pássaros. Fala sempre da saudade do “amigo” (que pode significar amante ou namorado), das tristezas do abandono, mas tratando o abandono de alguém com quem já teve alguma relação amorosa. Muitas confissões de Oriana são feitas à amiga Mabília. E o ambiente da natureza, característico das cantigas de amigo, é visto, principalmente, no castelo de Miraflores, que o pai de Oriana compra para ela, por ela gostar muito do lugar, e onde ela passa diversos momentos de amor, e mais tarde de sofrimento. Rodeado de vergéis, assentava numa encosta toda coberta de árvores tão boas que todo o ano davam fruto e flor. E dentro tinha câmaras de rico lavor e patiozinhos onde as fontes cantavam. […] Com a fiel Mabília sentava-se a infanta num patiozinho ensombrado de árvores frondosas, debaixo das quais uma fonte cantava por melodiosa bica. Aí confessava Oriana o seu temor de lhe não perdoar Amadis a crueza com que o tratara; e contava-lhe de como o amava mais, depois que tanto o fizera penar. (VIEIRA, 1968, p. 152). Por fim, para terminar a análise, se mostrará a cantiga que Amadis criou para Oriana, e que apresenta características das cantigas lírico-amorosas trovadorescas. Para preservar a dama, Amadis troca o nome pelo da sua irmã mais nova – Leonoreta, para que não possa ser descoberta a relação entre o par romântico, por ser um amor-proibido. Também há no refrão, que pode ser que esteja se referindo ao sofrimento, à coita amorosa, um pedido, para que não o meta em tal coita, o vosso amor. “Mas o que el-rei não sabia era que essa canção a fizera Amadis para Oriana, e que enquanto falava a Leonoreta, brincando com ela no estribilho, em verdade dizia como amava a furto a Sem-Par.” (Idem, p. 171). A cantiga diz claramente o sentimento dele por Oriana, mas é um fingimento perante os outros, pela simples troca de nome: [...] Leonoreta, / fin roseta, / bela sobre toda fror, / fin roseta, / non me meta / en tal coita vosso amor! Das que vejo / non desejo / outra senhor se vós non. / E desejo / tan sobejo / mataria um leon, / senhor do meu coraçon! [...] / Mha ventura / en loucura / me meteu de vus amar. / É loucura / que me dura, / que me non poss’ên quitar / Ai fremosura sem par! [...]. (idem, p. 172). CONSIDERAÇÕES FINAIS Nota-se que há, desde os primeiros capítulos até ao final da obra, muitas peculiaridades correspondentes às das cantigas de amor e de amigo do período trovadoresco. Percebem-se algumas características destas cantigas na obra analisada, mesmo sendo ela uma narrativa. Outros elementos fazem com que a obra fuja das novelas de cavalaria tradicionais. Por exemplo, a figura do herói. Este se apresenta como um cavaleiro preocupado com as questões divinas, em buscar grandes feitos para o bem de todos. Mas também volta-se ao amor, ao terreno. E vive um amor mesmo que proibido. Há diversas peculiaridades com as poesias lírico-amorosas trovadorescas, como o serviço amoroso, ou seja, a prestação de serviços à dama, desde quando se conheceram, o sofrimento da distância, da partida, das súplicas não correspondidas, ou seja, a coita amorosa. O propósito deste trabalho foi o de mostrar como se aproximam O Romance de Amadis das cantigas lírico-trovadorescas e mostrá-lo no formato de exemplos. E como o próprio narrador da história conta na página 63 do livro O Romance de Amadis, de Afonso Lopes Vieira, “senhores, não nos demoraremos [...]. Se eu vos contasse, agora ou mais tarde [...], a história alongar-se-hia e encurtava-se a vontade de a ouvir.” REFERÊNCIAS FIGUEIREDO, Fidelino de. História literária de Portugal. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966. LOURENÇO, Helena. Do Amor e da Soledad no Amadís de Gaula: ressonâncias no teatro vicentino. Península. Revista de Estudos Ibéricos, Universidade Nova de Lisboa, n.6, p.133149, 2009. MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. São Paulo: Editora Cultrix, 1972. PAZ, Demétrio A. Galaaz: A cristianização do herói do Graal. Dissertação (Mestrado em literatura brasileira e literatura de expressão lusófonas) - Programa de Pós-Graduação em Letras, Instituto de Letras. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2004. PAZ, Demétrio A. O idealismo cavaleiresco medieval revisitado: três renascentistas antecessores de Dom Quixote e um romântico idealista. Tese (Doutorado em Letras) – Curso de Pós-graduação em Letras, da Faculdade de Letras. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2011. SARAIVA, A. J.; LOPES, Óscar. História da literatura portuguesa. 17ª ed. Porto: Porto Editora, 2001. VIEIRA, Afonso L. O Romance de Amadis. Lisboa: Sociedade Editora Portugal – Brasil, 1968.